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Como a saúde se tornou um

desafio geopolítico, de
Dominique Kerouedan
POR SAÚDE GLOBAL (DV) 17/08/2013
Diplô Brasil – Nem o altruísmo nem a filantropia explicam a preocupação
das grandes potências com a saúde mundial, mas sim interesses
econômicos, geopolíticos e de segurança. Contudo, a Europa poderia
utilizar melhor os fundos concedidos às instituições internacionais

Em 2000, 193 Estados-


membros da Organização das Nações Unidas (ONU) e 23 organizações
internacionais estabeleceram oito “Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio” (ODM): atingir, até 2015, “níveis de progresso mínimo” em
matéria de redução da pobreza, da fome e da desigualdade, além de
melhorar o acesso à saúde, água potável e educação(ver quadro nesta
página).
Gro Harlem Brundtland, então diretora da Organização Mundial da Saúde
(OMS), logo identificou a prioridade: conseguir financiamento à altura do
desafio. Ela confiou a Jeffrey Sachs, conselheiro especial do secretário-
geral da ONU, Kofi Annan, a comissão “Macroeconomia e Saúde”, cuja
meta era aumentar os investimentos em favor da rápida realização dos
ODM ligados à saúde.1

Entre 2000 e 2007, multiplicou-se por quatro o financiamento mundial para


os países em desenvolvimento, proveniente de parcerias público-privadas
envolvendo os setores industrial e comercial, sobretudo fabricantes de
vacinas e medicamentos; no período 2001-2010, ele triplicou, atingindo um
pico de US$ 28,2 bilhões em 2010. A maior parte dos recursos é
constituída por fundos norte-americanos públicos e privados. Só a
Fundação Bill e Melinda Gates doou cerca de US$ 900 milhões em 2012.
A África teria recebido 56% dos recursos em 2010.2 A ajuda mundial ao
desenvolvimento aumentou 61% nesse período, chegando a US$ 148,4
bilhões em 2010.

Nos Estados Unidos, uma questão de segurança

Mas 2015 se aproxima, e a realização dos ODM continua muito distante na


África subsaariana. A insuficiência de financiamento não basta para
explicar o atraso: outros fatores, menos conhecidos, também tiveram um
papel importante. É interessante retomar a questão, num momento em que
já se prepara a elaboração de “novos objetivos” a serem colocados em
prática a partir de 2015.

Muitos estudos e pesquisas3 mostram que a alocação da ajuda mundial não


obedece apenas a critérios epidemiológicos, populacionais ou de carga de
doença, mas também aos poderosos vetores que sempre foram e continuam
sendo os interesses comerciais, as relações históricas e as ligações
geopolíticas (ver boxe na página ao lado).

Uma releitura da história da saúde mostra que a realização das primeiras


conferências internacionais sobre o assunto, no século XIX, era motivada
menos pelo desejo de vencer a propagação da peste, do cólera e da febre
amarela do que pela vontade de reduzir ao mínimo as medidas de
quarentena, que custavam caro ao comércio… As tensões entre medicina,
saúde, interesses do mercado e poder político compõem os termos de uma
equação paradoxal inerente à questão da saúde pública global. O acesso das
populações pobres aos medicamentos, no contexto do Acordo sobre
Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao
Comércio (Trips, na sigla em inglês), exprime bem essas tensões, que, no
mundo contemporâneo, podem chegar a um braço de ferro.

Os fundadores e parceiros do Fundo Global contra Aids, Tuberculose e


Malária pressupõem que as estratégias de luta contra essas três doenças são
pertinentes em todos os países e que “só falta dinheiro”. Para compreender
essa visão financeira das questões da saúde e seus limites em termos de
eficiência, é preciso retomar o contexto no qual o Fundo Global foi criado.

Em 1996, Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos, publicou uma
norma convocando uma estratégia mais orientada para as doenças
infecciosas. Era menos um impulso de altruísmo que uma preocupação de
segurança nacional. Propagação, consequências econômicas, atraso no
desenvolvimento de novas moléculas, resistência de agentes infecciosos
aos antibióticos, mobilidade das populações, crescimento das megalópoles,
fragilidade dos sistemas de saúde dos países pobres: esses eram os tópicos
que perturbavam a administração norte-americana, e isso bem antes dos
ataques de 11 de setembro de 2001.

Em 1997, o Institute of Medicine, instância norte-americana de referência


científica, publicou um relatório afirmando que a saúde global é “de
interesse vital para os Estados Unidos”. Era a primeira vez que aparecia a
expressão global health, a qual traduzimos como “saúde global”: “Os
países do mundo têm coisas demais em comum para que a saúde seja
considerada uma questão nacional. Um novo conceito de ‘saúde global’ é
necessário para tratar dos problemas de saúde que transcendem as
fronteiras, podendo ser influenciados por eventos em outros países e ter
soluções melhores por meio da cooperação”.4

A aids se propagou na África austral de maneira espetacular, e em 1999 as


autoridades se alarmaram com a publicação, pelo Ministério da Defesa sul-
africano, das elevadas taxas de prevalência de infecção pelo vírus HIV
entre os militares de muitos Estados desse continente. Em um curto prazo,
as capacidades de defesa nacional não seriam mais suficientes para
enfrentar conflitos internos e externos. Segundo o International Crisis
Group (ICG), muitos países “em breve não terão mais condições de
contribuir para as operações de manutenção da paz”.5 No período 1999-
2008, a Comissão Nacional dos Serviços de Inteligência do governo norte-
americano, o National Intelligence Council (NIC), centro de reflexão
estratégica, publicou seis relatórios sobre a questão da saúde global. Fato
inédito, esses documentos definiam a doença como um “agente de ameaça
não tradicional” para a segurança dos Estados Unidos, cujas bases militares
estão salpicadas por todo o planeta.

A “ameaça” chegou até a ONU. Pela primeira vez em sua história, no dia
10 de janeiro de 2000, em Nova York, o Conselho de Segurança incluiu na
ordem do dia de sua reunião um assunto não relacionado a um risco direto
de conflito: “A situação na África: o impacto da aids sobre a paz e a
segurança na África”. Os Estados Unidos presidiam as comunicações, com
o vice-presidente Al Gore de manhã e o embaixador norte-americano na
ONU, Richard Holbrooke, à tarde. Dali saíram várias resoluções. O artigo
90 da resolução da sessão especial da Assembleia Geral das Nações Unidas
de 27 de junho de 2001 solicitava a criação de um “fundo global de saúde e
HIV/aids para financiar uma resposta urgente à epidemia em uma
abordagem integrada de prevenção, cuidado, apoio e tratamento, e para
apoiar os Estados em seus esforços contra a aids, com prioridade para os
países mais afetados, especialmente na África subsaariana e Caribe”.

O Fundo Global nasceu graças à mobilização dos membros do G8 por Kofi


Annan. Longe do “fundo para saúde e aids” recomendado, o mandato da
parceria público-privada (PPP) global trata apenas de aids, tuberculose e
malária. A política de segurança nacional norte-americana alimenta-se de
medos mais ou menos fundados contra os quais é preciso lutar: o
comunismo, o terrorismo, as doenças… Esses são os “traumas” que
inspiram as políticas de defesa dos Estados Unidos, que não hesitaram,
para defender suas posições sobre questões de saúde global, em
instrumentalizar o Conselho de Segurança da ONU.

Após uma década marcada pela guerra no Afeganistão e no Iraque, a


estratégia de Barack Obama consiste em conduzir seu país a outras batalhas
que não os “conflitos no exterior”. Trata-se de “restaurar a liderança norte-
americana no exterior”, inclusive para enfrentar os desafios relacionados ao
controle de epidemias, tema expressamente mencionado na estratégia de
segurança nacional em 2010. Quando o governo anunciou, em julho de
2012, a criação, dentro do Departamento de Estado, do Office of the Global
Health Diplomacy – instituído pouco antes da saída de Hillary Clinton –,
ele afirmou querer tomar o controle e o poder. “Nós recomendamos passar
da liderança interna [isto é, entre as agências nacionais de cooperação
sanitária] para a liderança global pelo governo norte-americano”, esclarece
o comunicado. “Os Estados Unidos compreenderam que, no fundo, o
verdadeiro poder, hoje, é ser capaz de jogar nas esferas interestatal e
transnacional”, analisa o historiador de relações internacionais Georges-
Henri Soutou.6

Decisões financeiras influenciadas

A análise dos fatores que formataram as políticas de saúde das últimas


décadas permite distinguir três concepções: a saúde global como
investimento econômico, como ferramenta de segurança e como elemento
de política externa (sem falar de caridade ou saúde pública, dois
componentes suplementares que, de acordo com David Stuckler e Martin
McKee, completam o conjunto).7 Em política, a noção de segurança
implica a emergência, o curto prazo e o controle das doenças contagiosas,
em vez da abordagem holística e sistêmica de longo prazo que exigiria o
fortalecimento das capacidades institucionais dos sistemas de saúde. A
perenidade das intervenções financiadas por quase quinze anos está
fragilizada.

Essas observações contribuem para entender por que a ajuda tem uma
eficácia limitada: quaisquer que sejam os montantes alocados pelo Fundo
Global ou pelo governo norte-americano por meio do Plano de Emergência
para o Combate à Aids (Pepfar,8 na sigla em inglês), o desempenho desses
programas em campo revela-se decepcionante. A pertinência do
financiamento para a prevenção, além do ajuste das intervenções a
dinâmicas demográficas, urbanas, sociais, econômicas e de conflitos, e às
especificidades nacionais de propagação são elementos fundamentais que
recebem relativamente pouca atenção.

Trinta anos após o início da pandemia, poucos recursos são destinados à


pesquisa local, epidemiológica, antropológica e econômica para subsidiar
as decisões. Para cada duas pessoas colocadas em tratamento, ocorrem
cinco novas infecções. O impacto da violência sexual sobre a feminização
da pandemia na África não é sequer uma hipótese de pesquisa, num
continente onde os conflitos armados se multiplicam! Em escala
internacional, o desvio de alguns milhões de dólares do Fundo Global
provoca mais indignação do que a ausência de análise, nos próprios países,
da eficácia das estratégias. Enviesadas, as escolhas financeiras privilegiam
o paradigma curativo da saúde, em benefício da indústria farmacêutica, em
vez da prevenção da transmissão do HIV.

Da multiplicação de atores ligados à ajuda para o desenvolvimento


emergem conflitos de governança entre “tomadores de decisão” e
“parceiros”, o que leva a uma diluição das responsabilidades: quem deve
prestar contas da utilização dos fundos alocados por meio de parcerias
globais ou mecanismos inovadores, independentemente do tema? Para os
aspectos financeiros, a responsabilidade recai sobre o Conselho de
Administração do Fundo Global, em vez de apenas a secretaria executiva.
Os aspectos técnicos e estratégicos devem ser tratados pelos países e seus
parceiros (Unaids, Unicef e OMS). Embora as agências da ONU tenham
prestado apoio técnico aos Estados, suas equipes têm sabido acompanhá-
los rumo a uma visão estratégica que considere suas especificidades para
frear as três pandemias? Se a resposta for não, é hora de assumir isso.

África, França e Europa terão de enfrentar nas próximas décadas


desmesurados desafios. A população do continente negro vai dobrar até
2050, passando de 1 bilhão para 2 bilhões de habitantes, ou 20% da
população mundial. De acordo com o economista François Bourguignon,
convidado pelo Collège de France para apresentar seu trabalho sobre a
“globalização da desigualdade”, a pobreza – em seu sentido estrito – será
um problema exclusivamente africano até 2040 ou 2050.9

Transições demográficas e epidemiológicas estão em marcha, num


continente que se urbaniza rapidamente,e onde doenças crônicas cuja
extensão ainda nem conseguimos medir se tornam mais maciças: câncer,
diabetes, doenças cardiovasculares e respiratórias, problemas de saúde
mental, doenças relacionadas à poluição ambiental… Essas afecções, não
ou tardiamente detectadas e diagnosticadas, propagam-se como novas
pandemias, além dos acidentes de trânsito, aumentando a carga de trabalho
do pessoal da saúde, já em número muito insuficiente. As desigualdades de
saúde inscrevem-se na esteira das desigualdades econômicas e sociais. Os
sistemas de assistência à saúde e de proteção social são aplicados muito
lentamente e de forma desigual de uma região para outra. A “cobertura de
saúde universal” seria útil a populações pobres se estivesse pautada numa
política fundada nas prioridades nacionais e em particular na prevenção.

Considerando-se as ligações históricas e as relações políticas, econômicas e


comerciais que a França e a Europa mantêm com a África subsaariana há
séculos, ainda se esperam sua contribuição política, experiência e recursos,
e eles não devem desaparecer por trás das prioridades norte-americanas. A
situação na África ocidental francófona e na África central pede reações
maciças e de longo prazo.

Procurando fazer convergir os objetivos de desenvolvimento com os do


desenvolvimento “sustentável” para o mundo pós-2015, corremos o risco
de nos interessar apenas pelas questões globais comuns, negligenciando
mais uma vez os Estados frágeis e as populações mais vulneráveis. As
prioridades, para estes, são sobretudo a educação das meninas (até o nível
superior), a saúde das mulheres grávidas, as doenças tropicais ignoradas e
as capacidades institucionais para elaborar e gerir políticas complexas.

Não percamos nosso tempo defendendo a saúde: “Aqueles que colocam a


questão de definir se uma saúde melhor é um bom instrumento de
desenvolvimento talvez estejam negligenciando o aspecto mais
fundamental da questão, a saber, que saúde e desenvolvimento são
indissociáveis”, insiste Amartya Sem. “Não é necessário instrumentalizar a
saúde para estabelecer seu valor, isto é, para tentar mostrar que uma boa
saúde também pode contribuir para estimular o crescimento econômico.”
Privilegiemos, para cada pessoa no planeta, a ideia de uma saúde
sustentável, em vez de apenas o mecanismo de financiamento que encarna
a cobertura de saúde universal, agora apresentado como um objetivo de
desenvolvimento sustentável.

BOX:

Objetivos de desenvolvimento do milênio (ODM) relacionados à saúde

Entre 1990 e 2015, ou seja, o período de uma geração:

ODM 4: Reduzir em dois terços a taxa de mortalidade de crianças menores


de 5 anos.

ODM 5: Melhorar a saúde materna e reduzir em três quartos a taxa de


mortalidade materna.

ODM 6: Combater a aids, a malária e outras doenças.


ODM 8, alvo E: Em cooperação com a indústria farmacêutica,
proporcionar o acesso a medicamentos essenciais a preços acessíveis nos
países em desenvolvimento.

BOX 2:

Saúde, um investimento

Concebido logo após a Segunda Guerra Mundial como uma consequência


inevitável do crescimento econômico, o paradigma de desenvolvimento
tornou-se menos ambicioso quando a crise econômica atingiu a África, na
década de 1980, e as instituições multilaterais criaram as iniciativas
supostamente paliativas das “estratégias de redução da pobreza”. O Banco
Mundial publicou seu primeiro relatório anual sobre o desenvolvimento no
mundo, em 1978, sobre o tema “Acelerar o crescimento, reduzir a
pobreza”. Tentando responder à situação da saúde, a arquitetura da ajuda
ao desenvolvimento modificou-se ao longo das três décadas seguintes. Aos
atores clássicos da ajuda bilateral e das ONGs que apoiavam a OMS,
acrescentaram-se novos jogadores.

Severamente criticado pelo dano social causado por suas políticas de ajuste
estrutural, o Banco Mundial decidiu então “investir na saúde” – título de
seu relatório sobre o desenvolvimento no mundo em 1993. Nele podemos
ler: “Visto que um indivíduo saudável é economicamente mais produtivo e
a taxa de crescimento econômico do país ganha com isso, o investimento
na saúde é um meio, entre outros, de acelerar o desenvolvimento”. Pela
primeira vez, a OMS se viu obrigada a dividir suas prerrogativas em
matéria de saúde e desenvolvimento.

De sua parte, a Comissão Europeia também investiu no desenvolvimento


dos Estados da África, Caribe e Pacífico (ACP). Em 1950, a França teve
um papel determinante em favor da criação do Fundo Europeu de
Desenvolvimento (FED): “A Europa poderá, com mais recursos, concluir a
realização de uma de suas tarefas essenciais: o desenvolvimento do
continente africano”, escreveu Robert Schuman.1 A pedido dos países mais
atingidos pela aids, a saúde tornou-se um eixo do FED. O Conselho
Europeu publicou em 1994 sua primeira resolução sobre a “cooperação
com os paísesem desenvolvimento no campo da saúde”, apresentada como
um “elemento motriz do desenvolvimento”.
Foi também na década de 1990 que explodiu a pandemia de aids na África
austral, enquanto se aplicava a “governança global” na luta contra a doença
no sistema da ONU. A tutela do programa mundial de combate à aids
passou da OMS para o programa conjunto Unaids, instituído em 1996,
reunindo o Banco Mundial e uma dúzia de agências da ONU, incluindo a
OMS, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e para a
População (UNFPA). No mesmo espírito, foram criadas parcerias globais
na luta contra a malária (Roll Back Malaria) e a tuberculose (Stop TB
Partnership).

Ao longo da década 2000-2010, o cenário institucional da saúde continuou


se transformando, especialmente com a elaboração dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODM).2

Paralelamente, surgiram iniciativas mundiais que associaram os setores


privados industrial e comercial, incluindo os fabricantes de vacinas e
medicamentos: a Aliança Global para Vacinas e Imunização (Gavi, 2000) e
o Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária (2002), para
ficar apenas nos mais importantes. Trata-se de arrecadar dinheiro, colocá-lo
à disposição dos países elegíveis e medir os resultados: “Raise it, spend it,
prove it” [Arrecadar, gastar, provar] é o lema do Fundo Global. Em 2006, o
setor da saúde tornou-se o “laboratório dos financiamentos inovadores” do
desenvolvimento: graças a uma taxa que incide sobre a compra de
passagens aéreas, a Unitaid financiou a compra de medicamentos contra a
aids, a tuberculose e a malária. A comunidade internacional fez a compra
das vacinas. Três consultas políticas de alto nível foram realizadas, a fim de
melhorar a eficácia da ajuda e sobretudo harmonizar os mecanismos de
financiamento dos captadores de fundos: em Paris, em 2005; Acra, em
2008; e Busan, em 2011.

Apesar desses esforços, os resultados no continente negro são desiguais. Se


a situação de saúde tem melhorado na África oriental e austral, a África
ocidental francófona e a África central registram os piores resultados. O
relatório conjunto da Unaids e da Organização Internacional da
Francofonia (OIF) apresentado em Kinshasa, em outubro de 2012, mostra
que 36% das mulheres grávidas soropositivas da zona OIF fazem
tratamento antirretroviral para prevenir a transmissão do vírus da aids ao
bebê, contra 62% em outros lugares. Do mesmo modo, 43% dos pacientes
com aids, elegíveis para o tratamento antirretroviral, têm acesso a ele nos
países francófonos, contra cerca de 60% em outros lugares. De acordo com
o relatório da OMS sobre a aids na África em 2011, apenas um quarto dos
pacientes elegíveis para medicamentos antirretrovirais na África ocidental e
central efetivamente os recebeu, e isso dezessete anos após a conferência
de Vancouver ter atestado sua eficácia. O relatório de realização dos ODM
indica que a mortalidade por tuberculose está diminuindo, “exceto na
África ocidental”, onde aumentou entre 2007 e 2008. Quanto à malária, o
relatório destaca que dezesseis países tinham uma taxa de mais de cem
mortes por 100 mil habitantes em 2008, “quase todos na África ocidental”.

A comunidade internacional reconhece que a meta de reduzir a mortalidade


de mulheres grávidas e parturientes (ODM 5) recebeu pouca atenção
política e financeira até a cúpula do G8 em Muskoka, em 2010, na qual o
secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, apresentou uma “estratégia global
para a saúde da mulher e da criança”. As complicações relacionadas às
gestações precoces explicam em parte os atrasos na realização dos ODM
da saúde. Quando elas matam, matam duas vezes: a adolescente e seu bebê.
Aliás, essa é a principal causa de morte entre adolescentes. Segundo um
estudo realizado pelo Overseas Development Institute, em Londres, as
gestações precoces atingem a cada ano 18 milhões de meninas menores de
20 anos, 2 milhões delas com menos de 15 anos. De acordo com o relatório
de realização dos ODM em 2012, “nenhum progresso foi registrado na área
ao longo dos últimos vinte anos (1990-2010)”. Noventa por cento das
gestações de adolescentes ocorrem entre as jovens casadas – é por isso que
a oferta de serviços de saúde tem relativamente pouco impacto sobre o
fenômeno. Em compensação, o prolongamento da duração da
escolarização das meninas atrasa o casamento: em média, uma década de
escolaridade adia a idade de casamento em cerca de seis anos.(D.K.)

BOX 3:

O continente das pandemias

•Doenças infecciosas, patologias maternas e neonatais, distúrbios


nutricionais: 76% da mortalidade na África.

•HIV/aids: 70% das mortes em todo o mundo; 75% das novas infecções –
a maioria de jovens, meninas e mulheres (60% dos casos).

•75% dos jovens soropositivos entre 15 e 24 são meninas. A aids é mais


comum na cidade, onde as doenças da promiscuidade (como a tuberculose)
se estendem com a urbanização. O uso do preservativo continua sendo
ocasional (menos de 20% nos países com alta prevalência).

•75% dos homens soropositivos declaram ter mantido recentemente uma


relação sexual desprotegida em quatro países de alta prevalência.

•Segundo um estudo realizado com o apoio da Unicef, em Abidjan, a


prevalência da aids é maior entre os jovens mais bem informados, mais
instruídos e mais ricos. 75% dos jovens de 15 a 44 anos ignoram seu
estatuto sorológico quanto à infecção por HIV. Na faixa que vai de 15 a 24
anos, apenas 10% dos rapazes e 15% das moças já fizeram teste sorológico.

•Na África central e ocidental, a cada quatro pacientes elegíveis, apenas um


tem acesso a medicamentos antirretrovirais (20% das mulheres grávidas
soropositivas têm acesso a eles para se tratar e um terço para evitar a
transmissão do vírus à criança).

•Mortalidade de mulheres grávidas ou mortalidade por aborto: 50% de


todos os casos do mundo. A taxa de fecundidade precoce, de meninas
menores de 15 ou 18 anos, é a mais alta do mundo. O aborto é praticado
em condições precárias em 97% dos casos.

•Mortalidade mundial ligada à malária: 91% (segundo a OMS), sendo 87%


de crianças menores de 5 anos.

•Crise de pessoal de saúde: em escala mundial, a África representa 25% da


carência de profissionais de cuidados à saúde (falta 1 milhão deles) e
apenas 3% do pessoal de saúde.

Fontes: relatórios ODM África e ODM mundial, Measuredhs.org, relatório


IHME “Financing global health 2012: the end of the golden age?”
[Financiamento da saúde global 2012: o fim da idade de ouro?]

Dominique Kerouedan

Professor no Collège de France, titular da cátedra “O saber contra a


pobreza” (2012-2013). Autor de Géopolitique de la santé mondiale
[Geopolítica da saúde global], Fayard, Paris, 2013. Também organizou
a obra Santé internationale: les enjeux de santé au Sud [Saúde
internacional: os desafios da saúde no Sul], Presses de Sciences Po,
Paris, 2011.

1 Ler Philippe Rekacewicz, “Défis du millénaire en matière de santé”


[Desafios do milênio na saúde], Le Monde Diplomatique, jun. 2013.
2 “Financing global health 2012. Has the golden age of global health
funding come to an end?” [Financiamento da saúde mundial 2012. Teria a
idade de ouro dos fundos para a saúde global chegado ao fim?], Institute
for Health Metrics and Evaluation, Seattle, fev. 2013.
3 Estudos quinquenais de avaliação do Fundo Mundial, em 2008; relatório
do Tribunal de Contas Europeu, com o apoio da Comissão Europeia para
os Serviços de Saúde na África Subsaariana, 2009; estudos referentes a
vários anos do Institute for Health Metrics and Evaluation, op. cit.
4 “America’s vital interest in global health: protecting our people,
enhancing our economy, and advancing our international interests”
[Interesse vital norte-americano na saúde global: proteger nosso povo,
melhorar nossa economia e fazer avançar nossos interesses internacionais],
Institute of Medicine, Washington, 1997.
5 “HIV/AIDS as a security issue” [HIV/aids como uma questão de
segurança], International Crisis Group, 19 jun. 2001.
6 Georges-Henri Soutou, “Le nouveau système international” [O novo
sistema internacional], Aquilon, n.5, Paris, 1º jul. 2011.
7 David Stuckler e Martin McKee, “Five metaphors about global health
policy” [Cinco metáforas sobre política de saúde global], The Lancet,
v.372, n.9.633, Londres, jul. 2008.
8 The United States’s President Emergency Programme for AIDS Relief
[Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para o Combate à
Aids]. Disponível em: .
9 François Bourguignon, La mondialisation de linégalité [A globalização
da desigualdade], Seuil, Paris, 2012. Ver também “Towards the end of
poverty” [Rumo ao fim da pobreza], The Economist, 1º jun. 2013.

02 de Julho de 2013

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