Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Democracia e Linchamento Virtual
Democracia e Linchamento Virtual
virtual
Tocqueville concebia a sociedade democrática como um plano inclinado em que forças naturais a faziam
tender a essa ditadura do mais cinzento conformismo. Cumpriria, então, agregar contra-forças que
ponderassem essa atração gravitacional e que detivessem o de outro modo inexorável deslizar da esfera
sobre o plano inclinado em direção ao reinado das maiorias, com o decorrente exílio humano dos
dissidentes. Daí a importância por ele acordada aos corpos intermediários, como as associações ou os
membros da profissão legal, que representavam interesses e princípios não necessariamente refletidos na
opinião dominante.
É duvidoso que essas contra-forças estejam atuando com o efeito desejado em nossa época. Não porque
esses corpos médios não existam, mas justamente porque, ao crescerem, alguns passaram a compor
mundos à parte, dominados eles também por maiorias tirânicas. Tocqueville analisa a tirania das maiorias
em um quadro nacional, americano. O deslocamento das identidades nacionais na nossa época não
pareceu acompanhar-se de um esmorecer correspondente desse despotismo do número, mas de sua
reprodução fractal em uma poeira de microcosmos: meios de ativistas de todas as cores, de todos os
partidos; comunidades raciais e religiosas isoladas nas periferias das metrópoles.
Como sob muitos outros aspectos da nossa sociedade, as redes sociais fazem-se caixas de reverberação
dessas tendências.
Isso não apenas porque, como no caso de Charlottesville, muitas das tribos contemporâneas se formam e
se articulam por meio delas. Sobretudo, movida por esse funcionamento de grupo, uma nova forma de
Justiça se constitui nessas redes. Nova, não; trata-se antes da velha Justiça popular. Viu-se isso em
Charlottesville mesmo, na caçada às bruxas, via Facebook, contra os supremacistas brancos – os quais,
não nos enganemos, teriam procedido exatamente da mesma forma caso tivessem tido “um dos seus”
atropelado e assassinado pelos ditos antifascistas.
A tendência ao justiçamento pelas redes sociais não se limita a grandes eventos coletivos como o de
Charlottesville; quem pode dizer que sua vida privada está imune? Uma mulher relata, em um texto de
rede social, anos de um relacionamento abusivo com um homem, reclamando-se da intenção de
esclarecer outras mulheres sobre o que há de intolerável nesse tipo de relação. Estas últimas se unem em
apoio àquela que se reclama vítima de uma situação inaceitavelmente por demais comum a muitas delas.
Ao mesmo tempo, uma massa se congrega num único asco ao antigo cônjuge, apedrejado em suas
páginas pessoal e profissional, e cuja versão dos fatos ninguém se lembra de perguntar. Daí a culpa, antes
mesmo de pesada, estende-se aos seus amigos, que teriam sido coniventes, no mínimo omissos. A
condenação de todos: a perda dos direitos à humanidade de que fala Tocqueville, o ostracismo social e
profissional. Todos os elementos do linchamento virtual em uma democracia contemporânea estão nessa
história: um pequeno mundo homogêneo (no caso, os hipsters progressistas dos bairros centrais das
cidades grandes – entre gays, militantes conservadores ou veganos, o funcionamento seria diferente?); a
maioria unida por sentimentos unânimes de piedade e de repulsa; o exílio, descrito por Tocqueville, a que
o acusado se vê condenado por seus pares.
O mundo ocidental, das tragédias gregas e da justiça romana a Beccaria e aos direitos do homem, levou
séculos aperfeiçoando o sistema judiciário para assegurar o direito de defesa ao réu, a proporcionalidade
entre a pena e o crime, a incidência da culpabilidade sobre o indivíduo, e tão-somente sobre ele.
Estaríamos nos dirigindo a um mundo tribal de pequenas maiorias tirânicas em que a justiça pelas redes
sociais estabelece o acusado de certos crimes ser culpado por ele ser quem é; a pena ser proporcional não
ao crime, mas às paixões que o acusador suscita na turba justiceira, e a culpa extravasar do indivíduo aos
seus próximos, familiares ou amigos? Tocqueville teria imaginado pior em seus parágrafos mais
distópicos?