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O Duatlo

Chuva forte, muito forte. Abro a porta do quarto. Um pouco frio. Nada de mais, deve estar
perto de 15ºC. Levanto animado. Dormi bem e estou preparado. Nem lembro se sonhei
alguma coisa. Acho que hibernei durante a noite. Ótimo. Visto a roupa de ciclismo. Não
posso esquecer as luvas de novo. Sapatilhas, bermuda, esta camisa promocional do Tour de
France. Vai me dar sorte.
Desço para o café da manhã. Prometeram que já estaria servido às 6h30. Tínhamos que
deixar as bicicletas no check-in do duatlo às 7h. Meia hora vai ser suficiente. Só eu no café.
Cadê o John? Não deve estar dormindo. No mínimo tomou café no quarto. Agora vejo um
sujeito enorme no lado oposto do salão do café da manhã. Deve pesar uns 150kg. Gordo e
feio. Uns 170kg, mais provavelmente. Esse não veio para o duatlo. Tem no prato uns quatro
pães e pelo menos mais quatro colheradas de molho de cachorro-quente com salsicha. Sim,
são só 6h30 da manhã e o cara detonando salsicha com pão. Muito pão. E vai repetir.
Levanta com dificuldade e repete mesmo. Parece empurrar os pães para dentro da boca.
Mal cabe na cadeira.
Na tarde anterior havíamos viajado duas horas até Joaçaba. Nunca tinha ouvido falar desse
duatlo, mas o John me convenceu a vir. Na Internet, um vídeo e fotos do ano anterior
reforçaram o convite. Bem organizado. Ótimo, já não sou mais tão paciente para entrar em
roubadas.
Joaçaba tem uns trinta mil habitantes. Para a média da região, até que não é uma cidade
pequena. O bom é a infraestrutura. Excelente, se comparada às demais aqui do Oeste.
Restaurantes, bom comércio, riqueza exibida por toda a parte: carros de luxo e roupas de
grife. Nem parece que estamos 400 km interior adentro de Santa Catarina.
Subo novamente para o quarto do hotel. Pequeno, mas aconchegante. Já que vamos passar
pouco tempo por aqui, não vale a pena gastar muito mesmo. A Nádia vai ficar no quarto
durante a competição. Ela não gosta muito disso, eu sei. Mas ela é parceira. Vai ficar no
quarto lendo enquanto nós nos molhamos, suamos e sofremos, pedalando e correndo por
um mar de lama e asfalto encharcado.
Encharcadas. As ruas estão completamente encharcadas. A calcular pela força da água das
primeiras horas da manhã, deve ter chovido o equivalente a uma semana inteira. Ou um
mês inteiro, nem sei. É muito. Enchente em algum lugar, diz o cara na televisão.
Lá embaixo nenhum sinal do John. Diabos, será que está dormindo? Ligo no quarto. E aí, já
tomou café? Estava esperando eu ligar?! Caramba, já são quase sete horas. Temos que estar
lá para o check-in daqui a cinco minutos! Desço, novamente. Desta vez com todo o
equipamento. Confiro a bicicleta, os tênis, a meia, luva, água, gel energético, capacete.
Tudo pronto.
Quando eu era criança costumávamos andar de bicicleta por longas horas. Nunca imaginei
que o ciclismo seria meu esporte favorito. Em qualquer esporte coletivo eu acabava sempre
muito mal. Ou mal começava. Era o último a ser escolhido naquele método tirânico que os
professores de educação física utilizavam antigamente. Escolhiam os dois melhores e os
mandavam escolher cada um o seu time. Que pedagogia, não? Eu e o Fábio sempre éramos
os últimos. E, no campo, nem pensar em tocar na bola. Ninguém confiava nas minhas
jogadas. Nem eu mesmo. Quando pegava a bola não sabia o que fazer. Um desastre.
Já nas pedaladas, mesmo sem saber, a ordem se invertia. Hoje parece pouco, mas naquela
época percorríamos dezenas de quilômetros até uma cachoeira, até um topo de morro, até
um arrozal para caçar passarinho. E sem um gole d´água ou barrinhas energéticas! Só
foram inventar isso uma década depois. Do centro íamos à Madre, uma comunidade rural
que ficava quase no litoral. Isto é: eu sempre imaginei que ficasse no litoral; nunca tivemos
o ímpeto ou a coragem de conferir. Alguns diziam que era isso e acreditávamos,
simplesmente. Olhar num mapa hoje vai me fazer perder aquele saudosismo da infância.
Deixa pra lá.
Em frente à praça de Joaçaba estacionaram um ônibus e um caminhão. O caminhão já
recolheu mais de cinquenta bicicletas. De novo me surpreendo com a organização. Anotam
o nome, número e colocam a bicicleta para cima. O tênis mandam colocar numa caixa com
meu número de inscrição. Confiro tudo. Entramos no ônibus. Rumo à pequena cidade de
Ibicaré, local da largada do Duathlon Caminhos de Ferro, o nome oficial da prova.
A criatividade do nome me traz uma indignação. Como é que chegaram nossos governantes
a acabar com o transporte ferroviário no Brasil? Como uma idiotice dessas chegou a
acontecer? O duatlo aqui percorre as margens de uma antiga estrada de ferro, desativada,
que serviu de transporte de pessoas e mercadoria do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina
para o Sudeste. Hoje não teríamos tantos caminhões – e tantos acidentes, e tantos buracos
na estrada – se o trem ainda funcionasse. Cada povo tem o governante que merece? Não
sei. Cada povo tem o governante que as campanhas podem pagar... Ninguém aqui merece
uma estupidez dessas.
No caminho, mais chuva. Parece que não vai estiar. Os rios que desembocam no Rio do
Peixe estão muito acima do nível normal. Enormes poças d´água se formam no asfalto. É
por aqui que vamos correr, afirma um entusiasmado competidor atrás de mim. Na frente,
um casal prestes a dar o primeiro beijo. São 7h10 dum dia cinza e chuvoso e todos naquele
ônibus estão excitados. Vai ser fantástico.
O entusiasmo não chegou a atingir a todos. Ainda no restaurante do hotel um casal tomava
café da manhã devagar. Ele vestia roupa de ciclismo. Ela não. Só deu pra ouvir ele falando
“com essa chuva, sem chance”. Desistiu. Colocou as tralhas no carro e voltou sei lá para
onde dali mesmo. Fraco. Nem devia ter vindo.
O ônibus segue por pelo menos uns vinte minutos até Ibicaré. Me impressiona a
organização da cidade. Ruas bonitas, canteiros ajeitados, um rio imenso correndo caudaloso
ao longo do caminho. Um casal de idosos toma chimarrão na varanda da casa, cheia de
orquídeas e samambaias.
O ônibus finalmente para. Retiramos as bicicletas. Muita chuva. Alguns logo começam o
aquecimento debaixo daquela água. Uma fila de ciclistas pedalando em círculos na frente
da linha de largada se forma. Eu começo meus alongamentos. Encontro água e reponho a
mistura de maltodextrina na minha garrafa. Paradinha para um xixi. Estou pronto.
Há uns dez anos participo também de maratonas aquáticas. Na verdade não são maratonas,
mas geralmente competições de mil e quinhentos a dois mil e quinhentos metros de natação
em lagos ou no mar. A natação foi meu esporte favorito por todo este tempo, mas aqui no
Oeste não havia piscina aquecida para nadar durante o ano inteiro e tive que comprar uma
bicicleta. Uma GTS M7, pesadíssima, foi a primeira. Linda, eficiente e durável. Jamais me
deixou na mão. Eu é que deixava a GTS na mão até aprender a consertar furos no pneu. Ela
lá, querendo continuar a brincadeira, e eu, ali, sem poder amenizar a agonia. Uma estrada
rural imensa pela frente e nós dois, tristes, voltando para casa a pé. Até que tomei vergonha
na cara e aprendi a arrumar pneus furados. Um amigo me chamou de pão duro. O
bicicleteiro da cidade consertava furos por um real e cinquenta e eu levava quase três horas
para consertar os primeiros furos. Hoje meu tempo é de no máximo dez minutos.
Nessas competições de natação tentei de tudo. Largar atrás, para não ser atropelado pelos
nadadores mais afoitos. Largar bem na frente, junto com a elite, para evitar os grandões
desengonçados. Largar nas bordas, no meio, enfim. Nada adianta. Sempre que a buzina dá a
largada o coração dispara e parece que uma adrenalina toma conta de mim. A respiração se
prende e tenho que sair com a força toda. Vira uma afobação, um princípio de desespero,
até os primeiros minutos passarem e o ritmo começar a engrenar.
Pensei em tudo isso antes da largada do duatlo. Melhor não arriscar logo de princípio.
Muitos aqui não vão aguentar até o final o ritmo da saída. Mais cedo ou mais tarde vou
passá-los. O John já pensa diferente. Ele quer ganhar. Vai para a frente e fica na primeira
linha, concentrado. Eu estou na quinta ou sexta fileira. Vou passar a metade dessa turma até
o final da primeira subida. Subidas são o meu forte.
Ela novamente. A buzina na largada. Parece que tudo fica dormente. O coração dispara. As
pernas, que até poucos minutos atrás estavam fortes, amolecem. Começo a ofegar. Depois
da ponte, uma curva de noventa graus para a direita e um declive. Moradores nas varandas
aplaudindo. Asfalto molhado. Ainda bem que coloquei quarenta libras em ambos os pneus.
Já passei boa parte do grupo.
O ritmo aumenta. Tento ficar na roda de um grandão à minha frente. Rodas de grandões são
excelentes muralhas contra o vento. O problema aqui é a chuva e a lama. Sobe pela roda
traseira e espirra no meu rosto. Passo mais esse. Marchas para baixo. Descida leve. A
velocidade aumenta.
Mais dois minutos e já vejo uma aglomeração na frente. Deve ser o começo da estrada de
barro. A transição nem sempre é fácil. Quem não tem muita prática acaba caindo,
escorregando, encavalando as marchas. Já vi até câmbio quebrar nessa situação. Alguns já
começam a empurrar a bicicleta. Um sujeito olha para mim e diz “aqui é melhor empurrar”.
Fraco. Nem olho pra ele. Fico de pé na bicicleta e continuo o passo. Subida é comigo.
Uns duzentos metros adiante começa a lama. Toda aquela chuva não foi em vão. A água
desce a ladeira ao lado e corre para o rio por onde encontra espaço. Lá se vai a lubrificação
da corrente. Além de água descem muitos detritos. Um ciclista à minha frente tem um
galho verde preso no câmbio traseiro. Vai ter que parar para retirar. Passo dele também.
Pelo que ouvi falar antes da largada, esta estrada hoje só é usada por jipes. Deve realmente
ser verdade. O mato é alto no meio e nos lados se formaram dois trilhos, dois sulcos, com
uma diferença de talvez vinte centímetros de profundidade entre cada ponto. A água, claro,
corre pelos sulcos. E é justamente ali que tenho que pedalar. Algumas pedras pequenas
rolam também. As rodas à frente vão cavoucando o chão aos poucos. É impressionante a
quantidade de água. Este duatlo deveria se chamar “Caminhos D´água” e não “Caminhos
de Ferro”.
Lembro uma das primeiras travessias de natação, há uns dez anos. Tinha recomeçado a
nadar em Florianópolis, numa piscina perto de casa, recém inaugurada. A piscina não tinha
bem vinte metros de comprimento. Os melhores nadadores da cidade, claro, não nadavam
ali. Mas, pelo incentivo dos treinadores, passei a achar que nadava muito. Era um dos
poucos a nadar borboleta e tinha a melhor marca no teste de trinta minutos. Fui me
acostumando com os elogios. Às vésperas da travessia, perguntei ao treinador como me
comportar na largada. Forçar ao máximo, largar mais para trás ou no meio do pelotão?
Largue na frente e force ao máximo, foi a resposta. Fui. Nos primeiros metros tomei um
tapa nas costas. Um pouco mais à frente alguém puxou o meu pé para forçar uma
ultrapassagem. Aquilo não foi nada confortável. Mas eu gostei da adrenalina. Repeti em
todos os anos seguintes.
Os primeiros quilômetros do duatlo seriam assim mesmo. Subidas e descidas, com muita
lama. Na descida muitos, com medo de uma altamente provável queda, eram mais lentos.
Continuei passando vários. Ninguém me passava. As pernas deram sinais de voltarem à
força normal. Apertei o passo. Agora sim.
Droga! No meio de uma subida, com um pouco mais de cascalho do que nos outros pontos,
um sujeito de camisa amarela cai na minha frente. Tenho que descer da bicicleta e empurrar
um pouco. Não tenho aderência suficiente para montar novamente e seguir no meio daquela
lama toda. Mais duzentos metros adiante, um outro sujeito desmontado no meio do
caminho. Encosto nele. “Esquerda, esquerda”, insisto repetidamente pedindo passagem. Ele
olha para trás e continua no mesmo lugar. A baixa velocidade e todas aquelas pedras me
fazem desmontar. Outra vez alguém diz que o melhor é empurrar. Fracos. Mesmo
empurrando passo por eles e sigo adiante. Será que o John já está muito longe agora?
Meu deus, o que será aquilo adiante? Um rio? Um sujeito ao lado de um caminhão, vestido
com capa de chuva, manda diminuir a velocidade. Mantenho o mesmo ritmo. Parece uma
pequena ponte. E é! O riacho subiu tanto que transbordou. Está agora correndo por cima da
ponte. Pelo mapa fornecido pela organização, são três riachos como este. O pé e as meias
ficam completamente encharcados. Quando digo completamente, acredite. Chega a estar
pesado de tão molhado. Impressionante!
Logo em seguida sinto um barulho diferente no câmbio traseiro. Olho rapidamente por
baixo do braço direito. Nada de anormal. Troco de marcha. O barulho continua. Tomara
que nada quebre hoje. Estou indo bem.
Outra descida. Deve ter mais um riacho adiante. O cara da capa de chuva novamente. Ou é
outro? Parece um pouco mais escuro por aqui. Olho por cima das lentes do óculos. Não é
escuridão, é sujeira. Uma fina camada de lama cobre meus óculos. Olho para meu pé
esquerdo e confirmo olhando para o pé direito. As meias também estão cobertas de lama.
Reduzo a marcha para ultrapassar este riacho. Deve ter muita pedra e barro por cima da
ponte. O risco de queda é maior. Passo sem problemas. O rangido de novo no câmbio
traseiro. Claro! Só pode ser lama na corrente. Sem lubrificação e com lama. Ótimo. Vamos
ver até quando aguenta.
Começa um trecho plano. Parece que estamos na crista de um morro. Lá embaixo o Rio do
Peixe e os trilhos do trem. Muito verde. A Mata Atlântica. Bonita paisagem. Aumento a
velocidade. Um sujeito está a uns trezentos metros de mim. O velocímetro marca 42 km/h.
estamos muito rápido. Lama, água, corrente seca e velocidade, uma queda aqui doeria
muito.
Alcanço o sujeito. Ele reclama da organização. Não tinha ponto de hidratação no caminho.
É, realmente não tinha. Ofereço a ele minha caramanhola. Caramba, ele estava realmente
com muita sede. Bebe quase tudo. Quanto falta?, pergunto. O asfalto já é ali na frente. Que
bom. Qual a sua categoria, individual ou dupla?, ele pergunta. Individual, claro!
Sinceramente não entendo como alguém vem para um duatlo para competir em duplas. Não
é duatlo, são duas provas numa só. Ainda se fosse uma prova muito longa, até poderia
entender. Não. Não entenderia. Duatlo é duatlo, e ponto. Parece um atestado de
incompetência inicial. Assinar a inscrição em duplas significa dizer: não consigo. E isso
não dá pra aceitar.
Daqui a quinhentos metros começa o asfalto, ele me atualiza. Começo a pensar na
transição. Tenho que trocar a sapatilha da bicicleta pelo tênis de corrida. Minha roupa está
toda encharcada, isso vai pesar durante a corrida. Levo uma garrafa de Gatorade na mão ou
deixo? Será que não haverá pontos de hidratação também na corrida? Já vejo o asfalto.
Lembro novamente da infância. Depois das aulas de pingue-pongue eu sempre voltava para
casa correndo. Já que o esporte em si não era de tão grande exigência física, parecia mais
interessante concluir o dia correndo até a minha casa. Seria uma espécie de duatlo? Naquela
cidade que morávamos quase ninguém praticava corrida. Quem fazia era considerado
estranho. Minha mãe uma vez perguntou o porquê de fazer tanto esforço sem motivo. Eu
respondi: por que eu gosto. Outra coisa que me passa à cabeça são as corridas nas aulas de
educação física. Corríamos até a fábrica de cigarros. A maioria cansava já na metade do
caminho. Eu sentia dores no abdome, principalmente próximo da fábrica. Devia ser o
cheiro de nicotina.
Entramos no asfalto. A velocidade aumenta ainda mais. Penso como seria bom colar na
roda de alguém. Ninguém à frente. Só o ciclista da dupla atrás de mim. Vou me poupar para
a corrida. Siga na frente, digo a ele. Deixa eu aproveitar o vácuo. Ele não sabe o que é isso.
Fica querendo me dar lado, deixar eu passar. Eu passo. Uma ponte. Uma poça enorme.
Muito mais água no asfalto. A corrida vai ser realmente muito molhada.
A área de transição fica dentro de uma estação rodoviária da cidade de Luzerna. À
esquerda, um grande cavalete recebe as bicicletas. Os ciclistas devem deixá-las ali para que
sejam recolhidas pela organização da prova. Em ordem numérica as caixas com os tênis e
os outros acessórios estão dispostas nas vagas dos ônibus. Desço na área demarcada e deixo
a bicicleta no cavalete. Alguém me aponta minha caixa. Identifico o número e começo a
tirar o capacete. Outra pessoa me oferece água. Tiro o capacete, a sapatilha e aproveito para
trocar as meias. Além da água, a quantidade absurda de lama poderia me causar bolhas nos
pés. Tiro a camisa que estava por baixo, para evitar a perda de calor no ciclismo, e aceito
finalmente o copo d´água que me ofereceram. Começo a correr. A fotógrafa aproveita o
momento, provavelmente porque toda aquela lama vai render uma boa imagem.
Meias e tênis secos. Por enquanto. A sensação é agradável. A chuva grossa caindo e meus
pés secos. Uma primeira poça d´água. E outra ali na frente. Tento correr pela calçada, pelo
meio-fio. Não adianta. Nos primeiros quinhentos metros já está tudo completamente
encharcado. Os tênis ficam pesados. Não dá pra colocar um ritmo muito forte agora no
começo. Não sei como meu corpo vai se comportar. São mais oito quilômetros.
As luvas! Droga! Na transição esqueci de deixar na caixa as luvas de ciclismo. Agora,
molhadas e sujas, elas atrapalham minha corrida. Tiro e tento colocá-las no bolso traseiro
da camisa. Impossível. O peso faz com que fiquem pulando nas minhas costas. O jeito é
levar em uma das mãos. A chuva diminui um pouco. No canto da estrada corre bastante
água ainda. Vamos lá. São mais oito mil metros.
Na outra mão vai a garrafa de Gatorade. Só agora fica claro que não deveria ter trazido
nada. Só atrapalha. E, afinal, é mais meio quilo para transportar. Nessas condições isso vai
fazer a diferença. Vejo um ponto de abastecimento. Deve haver outros. Tomo o máximo
que consigo de Gatorade e jogo a garrafa fora. Não vou mais precisar disso. Aumento o
ritmo das passadas.
Correr é completamente diferente de pedalar. Parece óbvio, mas tem gente que não sabe
disso. Acham que são dois esportes igualmente aeróbicos e só isso. Na corrida é que vemos
quem está preparado e quem não está. Na corrida não há espaço para iniciantes. Correr é
mais difícil, muito mais. Além de todo o impacto nas articulações, o movimento tem que
ser bem sincronizado, porque cada desperdício de energia vai cobrar caro no final da prova.
Pé ante pé, eu continuo correndo, já sentindo um pouco o desgaste da pedalada.
Não vejo ninguém à frente. Um sujeito de camisa branca se aproxima uns duzentos metros
atrás de mim. A julgar pela brancura da camisa, certamente é outro participando só de uma
das pernas do duatlo. Não pedalou, por isso não experimentou a lama e a água até agora.
Limpinho, engomadinho. Vai passar por mim. Quando passar, vou seguir o ritmo dele. Mas
meu tênis está muito pesado. A água já sai pelos cantos do tênis, que a essa altura devem
pesar um quilo cada um. Ele passa. E eu não consigo acompanhá-lo. Se forçasse
conseguiria, mas prefiro uma estratégia conservadora. As inclinações no percurso vão punir
quem forçar no começo.
Numa casa, na beira da estrada, uma família toma chimarrão. Aquela cena me dá água na
boca. Com essa chuva, este frio, este cansaço, um chima iria muito bem. Chego a sentir o
gosto, o cheiro. Eles me olham de um jeito estranho. Na verdade, sou estranho mesmo.
Sujo, molhado e correndo sem destino. Quem olha de fora nunca vai entender.
Duzentos metros adiante, numa outra casa, alguém grita “parabéns” da janela. Me sinto
encorajado a seguir mais forte. Aumento o passo. Para uma cidade tão pacata, o duatlo deve
ser o acontecimento do mês. Ou do ano. Pensando bem, em qualquer cidade do Brasil um
duatlo na chuva e no frio deve ser visto como o acontecimento, não importa o tamanho.
Afinal, quem é que entende esses loucos que pedalam pela lama e depois correm debaixo
de um dilúvio só para se divertirem?
Mais dois engomadinhos me passam. Até os tênis estão limpos. Limpos demais. Fica fácil
assim. Mais quatro quilômetros e outro ponto de hidratação. Aproveito para pegar um copo.
Descida. Já dá para ver Joaçaba a distância. Carros de apoio acompanham o tempo todo. A
polícia, com cones, faz a proteção. Muito bem organizado. Estou gostando.
Curva numa ponte. No congresso técnico haviam informado. Tenho que correr pelo local
destinado aos pedestres. O Rio do Peixe está correndo junto. E com toda a força. Mais um
dia de chuva assim e o medo da enchente já começaria a dominar a população local. Uma
cidade num vale, com montanhas para todos os lados. Muito frágil. Dois dias de chuvas
fortes bastam para acabar com a tranquilidade local.
O cadarço do meu tênis direito desamarra. Isso é hora? Olho para trás. Não vem ninguém.
Na frente também não vejo corredores. Outra ponte, a da chegada, já é visível. Mais uns
dois quilômetros. Agora vejo como os cadarços elásticos são bons. Da próxima vez...
Subida para a ponte. A polícia tranca o trânsito. Alguém xinga. Domingo e essa gente
estressada. Francamente... Atravesso a ponte. A vista é bonita lá de cima. Joaçaba ao longo
do rio. Nuvens encobrem a estátua do Frei Bruno, quase um Cristo Redentor aqui no Oeste.
Não tenho certeza, mas sinto que a chegada está próxima. Aperto ainda mais o passo.
Ninguém à frente. Mesmo assim aumento o ritmo. Uma leve descida. Escuto passos atrás.
Um sujeito alto e esguio, correndo a passos muito largos. Engomadinho. Também não
pedalou. Mas corre muito bem. Aumento ainda mais o ritmo. Já reconheço a esquina.
Estamos perto da prefeitura. É lá a chegada. Dobro a esquina e já vejo a linha final, com
balões, uma tenda e muita gente. O locutor anuncia no microfone que o campeão dos jogos
abertos está chegando. É o corredor. Ele me passa, muito rápido.
Eu chego logo em seguida. Adrenalina, suor, prazer, dever cumprido. Uma mistura de
sensações agradáveis. A fotógrafa pede para eu fazer uma pose. Umas duas fotos a mais.
Famílias inteiras estão participando. Um grupo se reúne para uma foto conjunta. O John me
cumprimenta. Diz que chegou há pouco tempo. Está com frio. Ainda dou uma caminhada
de leve na parte de trás da linha de chegada. Tenho que dissipar toda aquela energia ou
minha pressão vai cair. Já aconteceu isso. Como um pedaço de melancia, oferecida pela
organização. Excelente!
Chegar em 11º não é um grande resultado, eu sei disso. Para mim o prazer foi participar do
duatlo. A chuva só aumentou o tamanho do desafio. E voltar para casa podendo contar que
participei já equivale a uma vitória. Parabenizo pessoalmente o pessoal da organização, e
volto para o hotel. É, finalmente, hora de tomar um banho.

Texto inspirado no livro The Rider, de Tim Krabbé, 1978.

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