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A TRADIÇÃO REIVENTADA: MEMÓRIAS SOBRE O PERTENCIMENTO E O

EMPODERAMENTO DAS MULHERES NOS MARACATUS NAÇÃO DE RECIFE

JÉSSICA HELENA DA SILVA1

Resumo: Os maracatus nação são hoje considerados um dos maiores símbolos da identidade
negra pernambucana. Tal evocação exerce grande influência da indústria cultural e da
espetacularização da cultura popular nas tradições do maracatu, o que culminou na recriação e
reinvenção destas ao longo dos anos e permitiu, por outro lado, a inserção de elementos da
cultura negra e periférica no mercado cultural. Essas reinvenções foram fundamentais para a
construção das identidades dos sujeitos históricos pertencentes às comunidades onde se
encontram os maracatus tradicionais, bem como o empoderamento de mulheres que
participaram desses processos. Para tomar conhecimento sobre estes significados, a presente
pesquisa se valeu da História Oral como metodologia para a análise das memórias individuais
e coletivas dos colaboradores2 e colaboradas, a fim de compreender o impacto destas nas
formulações e interpretações da concepção de tradição, pertencimento e participação feminina
nos maracatus nação de Recife.

Palavras-chave: Maracatu; Tradição; Memória; Identidade; Mulheres.

Introdução

É indiscutível que a tradição é transformada e ressignificada constantemente, pois seus


símbolos e práticas precisam seguir dando sentido às experiências dos sujeitos que vivem a
cultura popular e o mesmo vale para o maracatu de baque virado. Ao longo de mais de século
as nações de maracatu precisaram se adaptar, se disfarçar, se esconder, se ressignificar e se
reinventar para resistirem às tentativas de opressão, de violência e mesmo de enquadramento
em padrões estéticos e morais determinados por pesquisadores, pela igreja, pela polícia, pela
sociedade em geral.

Tantas mudanças ora causaram grandes transtornos, ora se estabeleceram com facilidade
entre os grupos tradicionais de maracatu, mas é preciso nos perguntarmos como fica a tradição

1
Professora na Escola Municipal Cônego Artur, Graduada em História pela Universidade Federal de Alfenas,
UNIFAL-MG.
2
O Manual de História Oral , define colaborador mais do que depoente ou informante, pois é muito mais do
que um fornecedor de informações, mais do que um objeto de pesquisa. Isso pressupõe diálogo entre ele e o
entrevistador, pressupondo intervenções de ambas as partes e a responsabilidade ética por parte do pesquisador.
(MEIHY, 2005: 124˗125)
nesse jogo de sobrevivência e resistência e os significados com os quais ela rompe e os que
adquire a partir de cada mudança.

Tradição é aqui compreendida como um conjunto de práticas herdadas do passado e que


permanecem fazendo sentido no presente, sintetizadas no fazer, no pensar e no viver que se
inserem de tal forma na cultura e no dia a dia que, mesmo passado o tempo, transformado o
espaço no qual é praticada e renovados os sujeitos que as praticam, elas ainda têm grande
significado e seguem tendo ressonância para estes sujeitos (SILVA; SILVA, 2009: 405). A
tradição pode ser vista também como uma preservação de aspectos do passado que vão se
mostrando eficazes nas dinâmicas socioculturais cultivadas.

É a partir das novas demandas dadas pela sociedade moderna que a cultura vai se
reinventando e se reestruturando. Hobsbawm diz que “É o contraste entre as constantes
mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e
invariável ao menos alguns aspectos da vida social que torna a ‘invenção da tradição’ um
assunto tão interessante para os estudiosos da história contemporânea.” (HOBSBAWM, 1984,
p.11).

A noção de “tradições inventadas” trazida por Eric Hobsbawm serve aqui para
compreendermos determinadas transformações pelas quais passou o maracatu3 e como elas
passaram a dar sentido às comunidades tradicionais onde se encontram as sedes das nações,
bem como os novos espaços em que o brinquedo passa a ser praticado.

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente


reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual
ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado
histórico apropriado. (HOBSBAWM; RANGER; 1984: 10)

Para tornar mais claro o uso deste conceito, cito um exemplo bastante interessante.
Houve na década de 1960 a invenção de uma tradição marcante para o maracatu, A Noite dos
Tambores Silenciosos. Este evento foi se ressignificando ao longo dos anos e adquirindo forte

3
Ao longo do século XX o maracatu de baque virado passou por transformações ligadas mais diretamente à questão
de seu envolvimento com a religião, aos períodos de maior visibilidade e outros de ostracismo – como citado no
capítulo 1. Porém, há na década de 1990 o auge do maracatu, um movimento chamado de “boom do maracatu”,
justamente por ter acarretado transformações substanciais em um curto período de tempo e estastransformações
redefiniram inúmeras práticas como a inserção de novos instrumentos, a permissão de homens transvestidos de
baianas de cordão, a entrada das mulheres na bateria, a expansão do maracatu pelo Brasil, Estados Unidos e
diversos países da Europa.
conotação religiosa, sendo, atualmente, um momento ritual de homenagens aos espíritos dos
antepassados e eguns. Como afirma Ivaldo Marciano, “a Noite dos Tambores Silenciosos
tornou-se uma referência obrigatória, e qualquer maracatu-nação que preze as ‘tradições
africanas’ tem o dever de nela participar” (LIMA, 2006: 188). Criado com o intuito de ressaltar
o viés artístico e turístico do maracatu - tornando-se, pois, um produto cultural -, esse evento é
reinventado e ressignificado pelos maracatuzeiros e hoje, muito mais que um produto, é símbolo
da religiosidade e das reminiscências africanas e afro-brasileiras.

Este é apenas um dos muitos exemplos que aqui poderiam ser apresentados, mas o que
interessa é perceber como este conceito de tradição se aplica às dinâmicas do maracatu. Assim,
podemos considerar que as mudanças ocorridas durante as décadas de1980 e 1990 foram
essenciais para a invenção de novas tradições no folguedo.

A partir de 1980 o maracatu ganhou enorme destaque na indústria cultural através,


principalmente, da banda Chico Science e Nação Zumbi e do Mangue Beat. Esse movimento
foi o responsável por propor a valorização da cultura regional e marginal, somando-as à cultura
Pop. Desde então muitas pessoas de classe média passam a visitar Recife a fim de aprenderem
a tocar o ritmo, com o objetivo de criar novos grupos de estudo do folguedo, o que leva ao
aparecimento de grupos por todo Brasil, Estados Unidos, e alguns países da Europa.

Outro fator de grande relevância para a disseminação de novos grupos Brasil e mundo
afora, foi a configuração do Maracatu Nação Pernambuco. Pela ênfase dada à percussão e a
dança, mas não necessariamente à religião, Jailma Oliveira acredita que esta configuração
alcançou “relativo sucesso, dando origem ao que se convencionou chamar de grupos
percussivos” (OLIVEIRA, 2011: 26)

Com estes dois movimentos ressignificando as práticas e os modos do maracatu de


baque virado, os grupos percussivos foram surgindo pelo Brasil e pelo mundo. Sua prática
estava disseminada em novos espaços, alcançando principalmente pessoas de classe média e
brancas. Como efeito de políticas de turismo e a normatização do carnaval, os maracatus nação,
assim como outros folguedos, tiveram que se adaptar a uma dinâmica de manutenção pautada
na globalização e mercantilização da cultura (GUILLEN, LIMA, 2006).

Alguns aspectos são essenciais para determinar essas mudanças. Em primeiro lugar, o
maracatu deixa de ser um brinquedo da cultura de um lugar bem definido e passa a fazer parte
de um universo totalmente diferente, para não dizer, o seu extremo oposto, ou seja, das
comunidades periféricas de Recife, com altos índices de violência e analfabetismo, ele passa a
ser realizado por pessoas brancas da classe média, com alto índice de escolaridade. Essas
diferenças são determinantes e definidoras dos novos espaços em que os maracatus surgem a
partir de então e também das pessoas que passam a praticá-lo.

A partir de 1990, principalmente, é que novas demandas sociorrelacionais estabelecidas


pelos novos grupos e sujeitos envolvidos com o folguedo fazem necessárias a transformação e
invenção de algumas tradições. E essas invenções e transformações parecem modificar não
apenas as dinâmicas dos grupos internamente e em relação a outros, mas também com os
indivíduos que experenciaram estas transformações e que foram parte delas, direta ou
indiretamente.

É fato, contudo, que todas essas transformações, ressignificações e reinvenções foram


determinantes na negociação de memórias e perceber em que medida estas se configuram em
relação às identidades individuais e coletivas dos sujeitos que vivenciaram todo esse processo.
É em meio a esse turbilhão de transformações que as mulheres conquistam novos espaços no
maracatu, questionando hierarquias e funções, inserindo-se em lugares antes permitidos
somente a homens.

Para compreender como este feito produziu e consagrou algumas memórias foi preciso,
pois, buscar o significado das mesmas por meio de entrevistas, uma vez que as fontes oficiais
não dão conta de tamanha problemática. Para tanto, foram realizadas entrevistas com três
mulheres e três homens que viveram e vivem nas nações de maracatu, ou que fizeram parte dela
de alguma forma. Como esses espaços significam e negociam memórias, funções e tradições é
o que se coloca a seguir.

Batendo tambores, tecendo memórias

Para se fazer uma história do maracatu, o pesquisador pode se ater à bibliografia, aos
relatos de viajantes e cronistas e às fontes oficiais de periódicos, registros policiais e da Igreja.
Estas fontes foram, durante certo tempo, as únicas utilizadas para se escrever e se traduzir para
a Academia, anos de tradição e cultura, ainda de forma restrita e lacunar.

Porém, como se trata da cultura das classes populares e, por muito tempo, de pessoas
iletradas, os primeiros estudos acadêmicos sobre o maracatu traziam apenas a observação das
danças, cantos e práticas que se faziam ver na avenida ou no dia a dia das comunidades – se
mais do que isso.

Porém, como seria possível exprimir ou mesmo traduzir as subjetividades inerentes a


sujeitos históricos ainda silenciados pela intelectualidade nos registros acadêmicos? O que
poderia dizer a voz daqueles que fazem e vivem a cultura popular?

Como nos diz Alessandro Portelli “[...] as fontes orais dão-nos informações sobre o povo
iletrado ou grupos sociais cuja história escrita é, ou falha, ou distorcida. Outro aspecto diz
respeito ao conteúdo: a vida diária e a cultura material dessas pessoas e grupos.” (PORTELLI,
1997: 27). A história oral permite valorizar a memória das pessoas que fazem e vivem o
maracatu, a partir de suas histórias pessoais, os significados sagrados e profanos de suas
experiências e as relações sociais e de gênero ali vivenciadas.

As comunidades tradicionais4, de classes não hegemônicas, trazem-nos, por meio da


subjetividade da narrativa, novas perspectivas que a história oficial não dá conta e vão além
dela. A história oral difere-se, pois, da escrita oficial da história, por valorizar sujeitos e
memórias, sem a pretensão de julgá-los corretos ou incorretos diante do que nos contam ou de
buscar “uma verdade”.

Segundo Portelli, a história oral nos dá luz para novas “áreas inexploradas da vida diária
das classes não hegemônicas”, na valorização dos significados e não dos fatos (PORTELLI,
1997: 31). Dessa forma, o que interessou aqui é como os colaboradores e colaboradoras vão
tecendo suas memórias, buscando sentido no passado para ressignificá-lo, produzindo
entendimento quanto às suas próprias experiências e identidades.

O objetivo da presente pesquisa foi perceber os diferentes significados sobre viver o


maracatu na esfera do pertencimento, ou seja, na formulação de identidades capazes de dar
sentido às experiências destes sujeitos históricos, destacando as relações existentes entre
homens e mulheres praticantes do maracatu de baque virado, somando-se à história do
folguedo, a memória dos e das brincantes. É um trabalho sobre história oral de vida,

4
De acordo com o Decreto 6040, de 07 de fevereiro de 2007, do Governo Federal, Povos e Comunidades
Tradicionais são “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas
próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas
gerados e transmitidos pela tradição”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2007/decreto/d6040.htm>.
entendendo-a como uma história coletiva, a partir da memória coletiva de uma comunidade de
destino5.

Para entender essas relações foram realizadas entrevistas com três mulheres e três
homens envolvidos com o maracatu6. Das mulheres, todas são ex-batuqueiras e nenhuma delas
nasceu ou viveu na comunidade em que seu grupo vivia; todas vieram para o maracatu por
interesse pelo brinquedo e suas práticas. É relevante pensarmos que são três mulheres que vêm
de outro universo que não os espaços onde encontram-se as sedes dos maracatus e que, portanto,
inserem-se naquele meio até então resguardado apenas a moradores daquela comunidade e
também das comunidades vizinhas, ou a pesquisadores que faziam parte do dia a dia e
conviviam com aquelas pessoas por tempo determinado por suas pesquisas.

Apesar de não compartilharem dos mesmos anseios, dificuldades e experiências que as


pessoas das comunidades, elas se envolveram com as nações ao ponto de se comprometerem
com seu funcionamento diário e suas práticas sociorrelacionais, algo que só foi possível durante
a Década de Noventa, dada a nova dinâmica a partir da entrada de pessoas de classe média e de
mulheres tocando na bateria.

O fato destas pessoas se interessarem pela cultura popular mesmo vivendo condições
sociais e econômicas diferentes, nos dá luz para pensarmos a relação acerca da perspectiva de
que o maracatu passa a ser um produto cultural a partir dos Anos Noventa o que lhe agrega um
valor de uso, distinto entre aqueles que o praticavam até então e os que viriam depois. Essa
mudança foi fundamental para determinar os rumos dos maracatus.

Uma característica também compartilhada pelas colaboradoras e muito interessante, é


que todas estudaram música antes, durante ou depois de sua vivência com a nação. É necessário
salientar, pois, que a visão delas tem como pano de fundo suas experiências e expectativas

5
Para José C. S. B. Meihy, a comunidade de destino está relacionada à união de um grupo de pessoas por meio de
base material ou de fundamento psicológico, de gênero ou orientação (política, cultural ou sexual). “No primeiro
caso, elementos de efeitos físicos dizem respeito a situações que vinculam pessoas, clãs e grupos expostos a
circunstâncias que dão unidade traumática ao destino das pessoas: calamidades, terremotos, pestes, flagelos,
marcam a experiência coletiva de um grupo em um lugar físico e cultural. Outra alternativa, está de base
psicológica, diz respeito às experiências de cunho moral: pessoas afetadas por dramas subjetivos ou não naturais
como violência, abusos, arbitrariedades, discriminação. De uma ou de outra forma, a sustentação que marca a
união de pessoas são dramas comuns, coetâneos, vividos com intensidade e consequências relevantes, episódios
que alteram no porvir o comportamento pretérito, rotineiro, e que impõem mudanças radicais de vida grupal.”
(MEIHY; HOLANDA, 2008, p.51)
6
Suas entrevistas foram consentidas e sua publicação autorizada.
acadêmicas e também técnicas, ressaltadas em suas falas ao relatarem que a escolha ou a
permanência no grupo do qual faziam parte, deu-se pela sonoridade e especificidade do mesmo.

Em relação aos homens, os três tocam atualmente em suas respectivas nações. Com
exceção de Luís Água, que conheceu as nações de maracatu por meio de grupos percussivos,
os demais viram surgir em sua comunidade o maracatu, onde vivenciam o dia a dia do folguedo.
Todos três participam da dinâmica de funcionamento de suas comunidades, seja uma
participação de cunho social, econômico, cultural e também religioso.

Uma das características definidoras da singularidade dos maracatus nação em relação


aos grupos percussivos é exatamente o pertencimento à comunidade. No caso dos três, suas
vivências são permeadas pelas dificuldades sociais e econômicas deste espaço, suas
experiências se valem de toda dinâmica sociohistórica que promove a integração dos moradores
e moradoras do bairro, além de toda lógica religiosa e cultural que ditam regras e fornecem
saberes específicos que só podem ser apreendidos pelos sujeitos históricos envolvidos no dia a
dia dessa localidade, o que não impede, porém, que pessoas vindas "de fora" sejam capazes de
abstrair estes saberes e vivências.

É pertinente observar, assim, que os questionamentos que levaram as mulheres a


proporem mudanças no funcionamento destas instituições se dão, por um lado, por suas
expectativas em relação à sua condição enquanto mulheres ˗ ou seja, uma questão de gênero ˗,
e, por outro lado, pela possibilidades de se intervir nessas dinâmicas culturais e
sociorrelacionais, uma vez que, ao virem de ambientes "de fora", lhes foi possível conceber as
tradições a partir de concepções que extrapolam o dia a dia dessas comunidades onde se
inseriram, trazendo seus anseios para dentro destas, propondo novos modelos de socialização e
concepção do feminino dentro do maracatu.

Sobre este aspecto de gênero falaremos mais a frente, mas o que nos importa por
enquanto é perceber como essas mulheres e suas experiências foram fundamentais para a
ressignificação de inúmeros símbolos e saberes do folguedo, bem como a reinvenção de
tradições no interior das nações e das comunidades nas quais se inserem.

Memória coletiva e identidade

Michael Pollak considera alguns elementos como constitutivos da memória individual


ou coletiva: acontecimentos, pessoas e personagens e lugares. Em relação aos acontecimentos,
estes podem ter sido vividos realmente ou, como chama o autor, aqueles “vividos por tabela”,
“acontecimentos vividos pelos grupos ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer”
(1992: 201).

Podemos dizer que a escravização e a resistência a ela configuram uma memória


herdada entre aqueles que vivem o dia a dia de uma nação de maracatu. O discurso sobre como
os antepassados resistiram e lutaram para a sua própria sobrevivência e a do maracatu, está
muito marcado nas falas de nossos entrevistados. Mesmo para as mulheres que não são daquela
comunidade, mas que passaram a viver e conviver ali, essa narrativa é muito forte, chegando
mesmo a ser utilizada como um diferencial legitimador entre as nações e os grupos percussivos.

Em relação às pessoas e personagens, é muito comum ouvir de alguém algum


ensinamento que fora passado por um ancestral dentro dos maracatus. Não se faz necessário ter
convivido com esta pessoa para que seus ensinamentos perdurem entre as memórias atuais.
Muitos são os nomes evocados na memória das pessoas que vivem o maracatu, principalmente
por ser uma manifestação da cultura negra afro-descendente de culto aos antepassados e
valorização de seus feitos, o que permite a existência de memórias sobre o ser e fazer dessas
pessoas, geralmente trazendo aspectos de valorização de suas experiências e resistências, sendo
considerados heróis e heroínas, grandes conhecedores da cultura do maracatu.

Por fim, o terceiro elemento constitutivo da memória é o lugar. Ficou evidente ao longo
das entrevistas que há um forte sentimento de pertencimento entre nossos colaboradores e
colaboradoras, seja em relação aos que não moravam na comunidade mas que passaram a
acompanhar o dia a dia, os problemas, conflitos, a religiosidade e toda a dinâmica de
funcionamento da mesma, seja em relação aos que nasceram nessas comunidades e que se
sentem pertencentes a uma identidade afro-brasileira, e por serem descendentes de
escravizados, conservam muitas memórias que lhes foram passadas oralmente, que marcam e
determinam suas lutas e suas narrativas.

Essa identidade negra é invocada em algumas falas, muitas vezes utilizadas para
legitimar essa relação direta com o passado em comum de escravização e resistência. O lugar
de memória mais ressaltado é, ainda, a comunidade. Cada uma dessas comunidades conserva
aspectos muito singulares em relação às demais e foram essas características que permitiram o
desenvolvimento de tal identidade que rege não apenas o funcionamento da nação, mas também
a importância dada ao mestre e, sempre, às rainhas, que são também as mães de santo do terreiro
no qual a nação está inserida7.

Como já mencionado anteriormente, esse aspecto do espaço determina toda a lógica de


funcionamento da comunidade, da religião e da nação. Estar inserido nessa lógica é conhecer e
abstrair os saberes e memórias que conduzem o funcionamento destas instituições, seja
propondo reinvenções e ressignificações, seja vivendo de maneira passiva, sem questionar
qualquer aspecto.

É curiosos observar, ainda, que as memórias da vida pública e privada de nossos


colaboradores e colaboradoras se entrelaçam, tecendo toda a trama das narrativas, em uma
relação constante. Isso se explica pelo fato de que a memória pessoal e a coletiva vão se
construindo uma em relação a outra e um acontecimento marca não apenas a vida de quem a
vive diretamente, mas também de quem está inserido no grupo.

É claro que ao considerarmos as memórias e as identidades como parte de um processo


de negociação, organização e construção, aceitamos que nenhuma memória está isenta das
relações entre indivíduos e meio. Em relação à construção da memória, Pollak diz:

[...] a memória é um fenômeno construído. Quando falo em construção, em nível


individual, quero dizer que os modos de construção podem tanto ser conscientes como
inconscientes. O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é
evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização.
Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social
e individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que
há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de
identidade. [...] (POLLAK, 1992: 204)

O sentimento de pertencimento advindo de grupos como uma nação de maracatu, parece


perpassar pela identidade social do indivíduo em relação ao grupo. Para ser aceito naquele meio
que resguarda ensinamentos e memórias ancestrais, o sujeito que ali se coloca e se preserva,
segue determinadas regras de conduta e convívio que extrapolam a vontade pessoal de um e
outro, pois estas regras servem a todos e repousam, portanto, na memória consciente e também
inconsciente destes indivíduos.

A construção dessa identidade vai se reproduzindo em relação ao outro, a partir do que


se torna aceitável ou não naquele espaço, ou seja, há sempre um processo de negociação

7
Esta afirmação é válida para as nações das quais fazem parte nossos entrevistados e nossas entrevistadas. Apesar
de ser uma característica comum à maioria das nações, não é uma regra inerente à existência das mesmas.
(POLLAK, 1992: 204). Assim como a identidade passa por um processo constante de
negociação, também o é a memória. No maracatu de baque virado, a transmissão de
conhecimentos segue a mesma linha das religiões de matriz africana, ou seja, pela tradição oral,
e está em constante negociação e disputa de identidades.

Dessa forma, foi possível verificar que as memórias individuais dos colaboradores e
colaboradoras da pesquisa são formuladas, silenciadas, negociadas e significadas em relação à
memória coletiva do grupo, da religião, da comunidade e da nação. Nenhuma memória está
isenta, pois, de elementos maiores e constitutivos do coletivo. O pertencimento consiste
justamente na habilidade, consciente ou não, de se tecer e entrelaçar junto daquilo que é do
outro, mas que é abstraído como seu e que toma proporções significativas em toda teia da
memória e da identidade.

As mulheres no maracatu

Segundo Michelle Perrot (1989), a narrativa história voltada aos espaços públicos –
política, guerra, economia – impossibilitou que as mulheres estivessem presentes nesta escrita
uma vez que estavam resguardadas ao espaço privado – da família, do lar. Mesmo quando
passaram a ser tema das investigações históricas, a escassez de fontes mostrou-se grande
problema para as pesquisas, pois estas não estavam nos arquivos públicos, tão caros à história
oficial. Contudo, a história oral possibilitou que as vozes destas mulheres fossem ouvidas, assim
como as vozes de todos os sujeitos históricos ignorados pelo apreço às fontes oficiais. Para as
mulheres, a história oral aparece como uma “revanche” (PERROT, 1989).

No que diz respeito ao maracatu de baque virado, assim como em outras expressões da
cultura popular, às mulheres estavam destinadas posições de menor ou quase nenhuma
visibilidade, elas estavam presentes além das personagens do cortejo, em funções confinadas
ao espaço privado como a costura, a cozinha, aos afazeres e preparação do grupo e da
comunidade e eram, portanto, consideradas secundárias. Nas funções de poder, de maior
visibilidade e prestígio, estavam os homens, estabelecendo regras e condutas, enquanto
detinham o poder da memória e da fala.

Foi a partir das mudanças trazidas pelas décadas de 1980 e 1990 que as mulheres
passaram a questionar os espaços e as funções de poder dentro do maracatu, possibilitando
ressignificações desses símbolos e reinvenção das tradições. A primeira conquista dessas
mulheres foi, como mostrado anteriormente, a permissão para tocarem na bateria das nações.
Olhar para essa mudança é também olhar para os conflitos que se seguiram a ela,
principalmente no que diz respeito aos “incômodos” causados pela tomada de espaços e funções
de poder que antes pertenciam apenas a homens. A partir do momento em que as mulheres
passaram a ocupar lugares de destaque e prestígio, elas passaram também a demandar
reconfigurações e reavaliações de certos conceitos e costumes.

O desconforto causado só pode ser estimado por meio das memórias tanto de homens
quanto mulheres, uma vez que ambos participaram deste processo. Não seria possível alcançar
os resultados pretendidos tomando como base apenas nas memórias de uns ou outros, fazendo-
se necessário considerar tanto as mulheres que chegam e transformam quanto dos homens que
vivem esta transformação. Afinal, como considerou Joan Scott (1995), a questão de gênero é
sempre cultural e relacional e, portanto, só pode ser entendida em conjunto, ou seja, em relação
de complemento, de construção mútua, de tensão, de conflito

Pode-se imaginar que estas mudanças tiveram diferentes significados para homens e
mulheres e, claro, entre estas, dadas suas relações com o folguedo, a nação na qual se inseriram
e os conflitos vivenciados por cada uma. Concordando com Alessandro Portelli (1997), quando
tratou da história oral, as memórias nos são valiosas, no caso das mulheres entrevistadas por
conterem referências desconhecidas até então, trazendo luz a aspectos ignorados, tornando
possível a reformulação de determinados conceitos, suscitando novos questionamentos e
olhares.

A partir das entrevistas, foi possível constatar que a inserção das mulheres nas baterias
das nações se deu de maneira despretensiosa. De acordo com o que foi aferido pela pesquisa, a
primeira nação a permitir a entrada de mulheres no batuque foi o Estrela Brilhante de Recife,
entre 1993 e 1994. A princípio, essas mulheres – junto de um grupo de estudantes de música –
foram conhecer a nação já com o intuito de tocar, mas desconheciam a proibição do toque no
aspecto de gênero, lhes foi permitido, porém, ensaiar na bateria, mas nos desfiles e
apresentações, elas faziam outras funções.

Contudo, nesse mesmo momento entre 1993 e 1994 houve uma apresentação em que
muitos integrantes não puderam comparecer e uma dessas mulheres acabou tocando para
"cobrir" a falta de batuqueiros. Diante da aceitação do público, foi permitido que a partir
daquele momento as mulheres pudessem sempre se apresentar na bateria. Esse modelo foi
seguido por outras nações e cada vez mais delas abriam espaço para as mulheres na bateria.
Porém, a partir desse novo espaço conquistado pelas mulheres, foi comum a vivência
de desafios e conflitos para elas. Houve relatos de nossas colaboradoras que, muitas vezes, eram
propostos cortejos por horas seguidas a fim de verificar se as mulheres realmente dariam conta
do desafio, onde aquelas que chegassem ao final eram consideras aptas para a função, enquanto
as demais já sabiam de seu desfecho. Entre as mulheres também era comum que lhes incitassem
a disputa, como se elas devessem provar qual delas realmente saberia tocar, enquanto os
homens, acreditava-se, existiria um dom natural para o toque dos tambores, nesse sentido as
mulheres precisavam sempre mostrar que eram capazes de tocar "como homens".

As narrativas colocam em evidência o caráter sociocultural das relações de gênero,


aspecto importante levantado por Joan Scott (1995) construindo atributos e funções para cada
um deles de forma a naturalizá-los. Mesmo no maracatu, a observação feita pela entrevistada
demonstra o questionamento sobre certas habilidades consideradas naturais entre os gêneros,
estabelecendo hierarquias.

Outro elemento aferido ao longo da pesquisa foi o desconhecimento pelos homens que
cederam suas entrevistas sobre o processo de entrada das mulheres na percussão das nações.
Isso pode se dar pelo fato de que quando se envolveram com o maracatu as mulheres já tocavam,
ou, possivelmente, por não constituir um aspecto relevante na trajetória destes. Apesar de não
tomarem conhecimento sobre estes eventos, os três defendem essa presença atualmente e
consideram uma inovação e um direito as mulheres ocuparem este espaço. Como afirmou Scott,
as diferenças entre gêneros, cada vez mais visíveis, levam a novas reflexões sobre o direito à
igualdade, numa condição complexa das relações de gênero e que não pode mais ser negada.
Isso fica claro nas disputas do maracatu.

Os conflitos entre homens e mulheres parecem ser percebidos de maneiras distintas


entre uns e outros. As disputas podem se dar em diversos eventos e podem, inclusive, ser muito
sutis e passar desapercebidas. Entre os homens há consonância na afirmação de que não há
conflitos entre eles e as mulheres em suas nações.

Os aspectos trazidos nas entrevistas possibilitam compreender em que medida os


conflitos relativos à presença das mulheres podem passar despercebidos para os homens. Este
desconhecimento se dá por tratar-se de uma situação em que violências sutis permeiam as
relações entre homens e mulheres e podem, inclusive, gerar comportamentos discriminatórios
que não são vistos como tal, justamente por sua sutileza. Por outro lado, é importante
compreender que estas situações passaram a ser questionadas após a entrada de mulheres de
classe média nos grupos tradicionais, o que não significa que estas violências não aconteciam
anteriormente, apenas que com as novas posições assumidas pelas mulheres e também pelas
novas concepções trazidas pelas pessoas “de fora” os conflitos tornaram-se mais evidentes.

O território da cultura popular, assim como qualquer outro, é um espaço de disputas e


conflitos e a mulher torna-se epicentro destes quando se propõe a inovar em suas funções e
demonstrar sua capacidade. Não questionar suas posições e as limitações impostas parece não
ser uma opção para estas mulheres que incitaram o questionamento quanto à ordem vigente,
aceitaram os desafios, indagaram sobre suas posições, seus papéis e supostas demarcações.
Estas e tantas outras mulheres mudaram os rumos do maracatu de baque virado, fazendo
história, convertendo opressões em conquistas, redefinindo aspectos fundamentais para a
emancipação e empoderamento no seio da cultura popular, das identidades e das memórias
femininas.

Conclusão

A noção de tradição aplicada a este trabalho possibilitou verificar em que medida as


mudanças ocorridas no universo do maracatu de baque virado a partir das décadas de 1980 e
1990 foram fundamentais para a reinvenção e ressignificação de elementos rituais e simbólicos
do folguedo, perpassando o espaço no qual se insere, ou seja, as comunidades periféricas de
Recife, os usos que se faz da cultura popular enquanto produto cultural, a disseminação do
mesmo em novos espaços e a promoção por novos agentes culturais, bem como um campo de
luta e empoderamento das mulheres quando da conquista de novos direitos e funções.

Procurei demonstrar em que medida essas mudanças resultaram nos processos atuais do
folguedo, chamando atenção para o movimento conhecido como “boom do maracatu” entre fins
da década de 1980 e início de 1990, que foi crucial para a entrada das mulheres na percussão
das nações, evento que considerei como questão central da pesquisa.

Falar de gênero na cultura popular é adentrar um campo ainda pouco explorado ao


mesmo tempo em que se apresenta cheio de possibilidades. A escassez de fontes não parece
limitar o trabalho quando as vozes de sujeitos históricos envolvidos nestes processos são
ouvidas, quando suas memórias são valorizadas e suas subjetividades e identidades individuais
e coletivas tonam-se referências.
Foi através de memórias dos entrevistados e entrevistadas que pude compreender
melhor todo o processo de reconfiguração das nações de maracatu de baque virado e todos os
conflitos passados e atuais resultantes desse processo. A memória e as narrativas foram o
alicerce para dar conta do problema proposto e seria impossível realizar esse trabalho sem o
uso destas.

Essas fontes foram fundamentais para compreender as negociações e os conflitos


existentes entre homens e mulheres dentro do maracatu, assim como as noções de poder e
espaço adquiridos por cada um deles e delas. É evidente, porém, que seis pessoas não são
capazes de exprimir o todo que é este universo. Contudo, a pesquisa teve o intuito de incitar
essas discussões e não as findar, afinal, a memória, assim como a tradição, se reinventa e se
transforma em processos constantes. Enquanto a cultura é praticada, também o são os elementos
constitutivos da memória, seja no silenciamento ou na busca por ser ouvido. Dar ouvidos a estes
sujeitos históricos é, pois, uma dívida que a intelectualidade tem para com a cultura popular.

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