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Cadernos FUNDAP

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n. 22, 2001, p. 102-110

Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social


com intersetorialidade
Rose Marie Inojosa

SINOPSE O artigo, baseado em palestra proferida são. Desenvolve os seguintes pontos: mudança
no seminário “A Reforma Administrativa”, tra- de paradigma, a perspectiva da complexidade;
ta da introdução da perspectiva intersetorial nas projeto político transformador; prática de pla-
políticas públicas, refletindo-se na produção e nejamento das políticas públicas como processo
oferta dos serviços, com o objetivo de impulsio- participativo; e mobilização e atuação em redes
nar o desenvolvimento social e reverter a exclu- de compromisso social.

A sinergia entre as políticas públicas e


entre os serviços públicos é possível? A or-
ganização de algumas idéias em torno de
três questões permite-nos examinar a ques-
tão da intersetorialidade nas políticas e nos
serviços públicos.
− O tema: Por que esse tema tem apare-
cido tanto em artigos e discussões?
− O interesse: Qual é a oportunidade des-
se tema para os serviços públicos?
− As implicações: Quais são as implica-
ções da atuação intersetorial para a or-
ganização dos serviços públicos.
O tema está vinculado à discussão da
transdisciplinaridade, bem mais madura e
antiga. A nosso ver, a intersetorialidade,
ou transetorialidade, é uma expressão, no
campo das políticas públicas e das organi-
zações, da transdisciplinaridade tal como
tem sido discutida no campo do conheci-
mento científico. Por isso, convém exa-
Rose Marie Inojosa é minar um pouco mais atentamente a
técnica em planejamento e
transdisciplinaridade, cujas raízes se fin-
gestão da Fundap. Mestre
em Ciências da Comunica- cam na teoria da complexidade.
ção e doutoranda em Saúde A transdisciplinaridade é a geração de
Pública, pela Universidade
de São Paulo (USP).
conhecimentos ecologizados, para usar
uma expressão feliz de Edgar Morin.1 Esse
1) Sociólogo francês, cuja autor afirma que as disciplinas nasceram sob
produção, nos últimos anos, tem-
se centradado na questão da o paradigma da disjunção e da redução. E
complexidade. Morin tem
proferido conferências anuais em foram dar em clausuras setoriais — ou seja,
São Paulo, na PUC e na Associação
Palas Atena. as disciplinas fecharam-se em si mesmas.

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Construíram os seus saberes de um modo que se tratava de uma aproximação de
bastante isolado e com a pretensão de es- corporações fechadas, e seus representan-
gotar as questões. E acabaram criando lin- tes acabavam preservando suas respectivas
guagens e corporações próprias. clausuras setoriais.
A teoria da complexidade, por sua vez, Na literatura, é possível encontrar os
trabalha com a compreensão da diversida- termos intersetorialidade e transetorialidade
de. Para tanto, é preciso superar a fragmen- com o mesmo sentido: a articulação de sa-
tação do conhecimento, já que as clausuras beres e experiências para a solução sinérgica
setoriais não dão conta de enxergar a diver- de problemas complexos.
sidade. Sobre isso, Morin costuma dar como
exemplo a ecologia, que seria uma trans- O QUE ACONTECE NO
disciplina: ela usa várias disciplinas, porém é MUNDO DAS
mais do que a mera composição de saberes ORGANIZAÇÕES?
disciplinares, pois cria um novo conhecimen-
to apoiado em diversas disciplinas. Sabemos que a vida em sociedade é a
No âmbito acadêmico, há um movi- expressão do axioma de que a vida está
mento no campo da produção de conheci- tecida em conjunto. As necessidades e ex-
mento para abrir essas clausuras setoriais e pectativas das pessoas e dos grupos sociais
até rompê-las. Em um de seus livros, Morin referentes à qualidade de vida são integra-
(1999), analisando a Universidade na Fran- das. Não adianta prover escola para uma
ça, discute a questão da transdisciplinari- criança se ela não estiver bem alimentada e
dade, o modo como a universidade poderá saudável. Sem um conjunto de necessida-
romper as clausuras setoriais e criar conhe- des atendidas, ela não conseguirá realizar
cimentos articulados. Isso porque as disci- seu aprendizado e desenvolver-se. A vio-
plinas são incapazes, isoladamente, de cap- lência não se resolve com a repressão à
tar o que está tecido em conjunto. Essa criminalidade, mas, principalmente, com
expressão em destaque é o significado da educação, distribuição de renda e outras
palavra “complexidade”. A vida está tecida ações sociais. O atendimento médico de
em conjunto; não é possível separá-la. E é boa qualidade no parto pode até diminuir
por isso que as disciplinas não têm dado a mortalidade materna, mas não consegue
conta da complexidade, dessa diversidade evitar outros riscos, como o baixo peso do
articulada. bebê ao nascer, após uma gestação em con-
A transdisciplinaridade é informada por dições inadequadas. Sabemos, portanto,
esse novo paradigma de complexidade. E, que coisas separadas ou itens isolados não
no campo das organizações e das institui- dão conta de promover qualidade de vida,
ções, temos, então, a intersetorialidade – de fomentar o desenvolvimento, de supe-
ou transetorialidade, já que o prefixo rar a exclusão social.
“trans” expressa melhor a idéia. E, no entanto, o aparato governamen-
A crítica ao prefixo “inter” é que ele tal reflete perfeitamente as clausuras das
poderia significar apenas a proximidade de disciplinas. Tal aparato governamental é
saberes isolados, sem daí gerar novas arti- todo fatiado por conhecimentos, por sabe-
culações. Isso ocorreu com a idéia de equi- res, por corporações. Ninguém encara as
pe multiprofissional, que pretendia a arti- pessoas e as famílias como as totalidades
culação de vários saberes profissionais para que são.
a solução de um mesmo problema, mas Há, também, uma outra herança, que é
que, na prática, se limitou, na maioria das a hierarquia verticalizada, piramidal, em
vezes, a reunir diferentes profissionais num que os processos percorrem vários escalões,
mesmo lugar ou com um mesmo objeto, mas as decisões são tomadas apenas no
sem que o diálogo prosperasse. Isso por- topo, não na base, próximo à população.

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Além desses dois fatores, o aparato go- vém itens isolados “para todos”, valendo-
vernamental também é objeto de lotea- se de uma leitura míope do conceito de
mento político-partidário e de grupos de universalização, pois não pode dar a mes-
interesse. Todas as estruturas, em todos os ma coisa para diferentes grupos sem se per-
níveis de governo e a cada governo, a cada guntar: “Que diferença isso fará?”.
nova gestão, são novamente loteadas para O aparato governamental preocupa-se
os partidos e para os grupos de apoio. Desse com cada uma de suas fatias e seus produ-
modo, cada uma dessas fatias – que já é tos, isoladamente. Dificilmente consegui-
campo de uma dada corporação e de um mos perceber, nos vários níveis de gover-
gr upo de interesses que extrapola a no, a prática da avaliação de resultados. Faz-
corporação setorial – passa por um novo se a avaliação dos produtos oferecidos:
loteamento político-partidário. Todos os quantas consultas foram realizadas, quantas
setores, como Educação, Obras, Saúde etc., cestas básicas estão sendo distribuídas, quais
são campos de interesse de fornecedores, as obras terminadas. Mas, de fato, que di-
de produtores, de corporações e de grupos ferença isso fez para o grupo que vive em
político-partidários. tal região, com tal perfil, para segmento
Esses fatores, que decorrem de escolhas tal ou qual, que tem determinadas caracte-
político-ideológicas, fizeram com que a rísticas? Isso é uma coisa que não se sabe
estrutura governamental, que deveria ser nem se pergunta.
cooperativa, no sentido de melhorar a qua- Atualmente, a sociedade volta-se para a
lidade de vida das pessoas, seja de fato com- questão da juventude, que é um segmento
petitiva. A lógica de competição reflete a da população sempre muito esquecido nas
própria competição entre grupos de inte- políticas públicas. Temos tido, tradicional-
resse e facções. Isso fica bem evidente, por mente, políticas para crianças, além de po-
exemplo, na hora de dividir o orçamento, líticas mais genéricas, mas nunca houve
quando a briga é por mais verba para a Saú- preocupação maior com uma política para
de, ou para a Educação, mais para Obras, a juventude. E menos ainda para as varia-
com transferência de verba de um setor para das juventudes – a que mora no interior,
outro etc. Essa é uma lógica que não tem nas áreas fronteiriças, ou a que vive na re-
nada a ver com a necessidade das pessoas gião metropolitana; para a juventude rica,
ou dos grupos populacionais, que têm, sim, com oportunidades; para a juventude po-
perfis diferentes, mas referidos ao lugar, à bre, vulnerável a muitos outros riscos além
região onde vivem, a suas características daqueles naturais da idade. E essas ques-
socioeconômicas e culturais. E que preci- tões continuam "presas" de setores. A Saú-
sam, integradamente, de condições de de- de se ocupa da questão da Aids, da preven-
senvolvimento social, de condições ambien- ção de doenças sexualmente transmissíveis
tais e de infra-estrutura. (DST). A Educação cuida do ensino fun-
São as características socioeconômicas damental, do ensino médio. A Assistência
e culturais que singularizam os grupos que fica dando bolsa, cesta básica, e coisas des-
o governo deveria estar atendendo, no sen- se tipo. E esses itens acabam atingindo as
tido de garantir o provimento dos direitos pessoas e as famílias de uma forma meio
que estão na Constituição, como é de sua desconjuntada. Não é necessariamente a
responsabilidade. mesma família que recebe essas coisas de
Mas, na realidade, o aparato governa- maneira integrada e/ou continuada. Por-
mental, essa pirâmide fatiada, nem sempre tanto, essa atuação não permite superar a
olha para os grupos populacionais, para os exclusão social nem promove efetivamente
conjuntos de pessoas, atento para as o desenvolvimento social.
vulnerabilidades e oportunidades que os Então, a oportunidade do tema deve-
identificam. O aparato governamental pro- se a uma queixa generalizada em relação

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aos resultados das políticas e ações gover- processos e itens de estrutura, o que foi
namentais. E particularmente sobre essa produzido e o que foi entregue: “Entrega-
manifesta dificuldade dos governos em di- mos tantas casas, tantas cestas, tantas salas
minuir as desigualdades sociais e reverter de aula”. Mas que diferença isso fez?
os quadros de exclusão social. Uma perspectiva de trabalho interseto-
É evidente que existem outras razões rial implica mais do que justapor ou com-
para essa dificuldade, começando com as por projetos que continuem sendo formu-
razões de caráter ideológico, que limitam, lados e realizados setorialmente. Interse-
dentre outras coisas, as alternativas de mu- torialidade, ou transetorialidade, não é isso.
dança, saltando aos olhos a flagrante incom- Às vezes, as pessoas usam a expressão
patibilidade entre a lógica de organização intersetorialidade para se referir a conjun-
do governo, essa lógica segmentada e de- tos de projetos que eventualmente estabe-
sarticulada, e as necessidades e expectati- lecem algum diálogo na hora da formula-
vas complexas das pessoas e dos grupos ção ou da avaliação. Mas aqui estamos fa-
sociais. lando de uma perspectiva muito maior do
Retomando o conceito, estamos defi- que essa e que tem um conjunto de impli-
nindo intersetorialidade ou transetoriali- cações para a ação do Estado, seja ela dire-
dade como a articulação de saberes e expe- ta ou indireta.
riências com vistas ao planejamento, para a Duas coisas são fundamentais sobre a
realização e a avaliação de políticas, pro- formulação, a realização e a avaliação de
gramas e projetos, com o objetivo de al- políticas, programas e projetos intersetoriais
cançar resultados sinérgicos em situações ou transetoriais:
complexas. Trata-se, portanto, de buscar − a focalização, com base regional, em
alcançar resultados integrados visando a um segmentos da população; e
efeito sinérgico. Transpondo a idéia de − a preocupação com resultados e
transdisciplinaridade para o campo das or- impactos.
ganizações, o que se quer, muito mais do Mas é preciso examinar o que se pode
que juntar setores, é criar uma nova dinâ- chamar de cisão entre produto e resultado.
mica para o aparato governamental, com Quando se tem, por exemplo, um progra-
base territorial e populacional. ma de assentamento de famílias, o produto
Convém ressaltar a idéia de sinergia. é o número de famílias assentadas e os tí-
Essa questão de os programas atuarem iso- tulos que as famílias receberam. O resulta-
ladamente, provendo itens essenciais sem do seria conhecido ao acompanhar o que
a preocupação de integrá-los — ainda que aconteceu com essas famílias, a partir do
se tenham programas, agendas e grupos de assentamento. Elas estão conseguindo pro-
trabalho —, reflete-se muito claramente no duzir? Permanecem naquela casa, naquele
orçamento, por exemplo. Basta olhar o or- terreno ou naquela terra? O assentamento
çamento do Estado para ver que progra- teve algum impacto no desenvolvimento
mas prioritários, assim definidos pelo pró- local e da região? Normalmente, esse re-
prio governo, não têm acolhida no orça- sultado não é acompanhado. E, justamen-
mento. O orçamento torna-se aquela peça te por não ser acompanhado, muitas vezes
de ficção que revela muito bem as clausuras são repetidos erros históricos.
setoriais, a separação dos setores, a compe- Em todos os níveis de governo, o pro-
tição entre os grupos de interesse que ocu- blema é o mesmo. Por exemplo: o governo
pam os vários setores. A avaliação dos pla- consegue entregar determinado número de
nos e projetos governamentais mal acom- unidades habitacionais, mas não se sabe
panha os resultados efetivos, ou seja, o que quanto tempo as pessoas ficaram nas mora-
aconteceu com as famílias e com as pesso- dias. Isso levanta uma questão: essas mes-
as. Acompanha apenas itens de produção, mas pessoas continuarão pedindo uma mo-

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radia, somando-se a novos sem-teto? Enfim, enfrentar na sociedade. Então, a primeira
o governo pode estar provendo alguns itens, coisa a ser feita é essa mudança de paradig-
mas não sabe exatamente quais os resulta- ma, que significa uma reforma do pensa-
dos dessas provisões. mento: é preciso pensar de outro jeito, para
E nós, como cidadãos, temos de come- criar, de fato, um paradigma com foco na
çar a cobrar isso dos planos e programas de complexidade, na compreensão da diversi-
governo, da prefeitura, do Estado e da dade e, com certeza, na questão da comu-
União. Que diferença se pretende conseguir nicação.
com tais planos e programas? Como vamos Os estudiosos que vêm discutindo a
monitorar e acompanhar os resultados, ou transdisciplinaridade fazem uma aborda-
seja, a diferença ou a mudança provocadas gem muito interessante, ressaltando que
ou não na vida das pessoas? Evidentemente, não se trata de desprezar ou de ignorar as
a sociedade acaba acompanhando os resul- disciplinas, mas de promover uma comu-
tados pelos reflexos na qualidade de vida, nicação verdadeira entre elas. Podemos
mas nem sempre é fácil vincular esses refle- transportar isso também para o campo das
xos aos programas e planos. organizações. É claro que continuarão exis-
A transetorialidade seria conseguir mon- tindo saberes e provimento de itens, conti-
tar um quebra-cabeças que se refere àque- nuará havendo obras, escola, serviço de saú-
le foco, em relação às políticas governamen- de, porque, por enquanto, é assim que sa-
tais. O foco teria base regional e atingiria bemos operar. Começamos a mudança pen-
segmentos da população, seja por faixa sando em como planejar isso de modo di-
etária, por gênero ou por ocupação, consi- ferente, como entregar isso à população,
derando as características de cada grupo pensando nas singularidades dos grupos
para saber o que prover e como garantir o populacionais, pois não se trata de homoge-
acesso e o aproveitamento dos bens e ser- neizar toda a produção.
viços públicos.
Para tanto, devem ser discutidos qua-
tro aspectos básicos para se trabalhar a par- PROJETO POLÍTICO
tir de uma perspectiva de transetorialidade: TRANSFORMADOR
− mudança de paradigma;
− projeto político transformador; O segundo aspecto diz respeito ao pro-
− planejamento e avaliação participativos jeto político para as políticas públicas.
e com base regional; Aquele desenho piramidal e fatiado das
− atuação em rede de compromisso social. corporações, dos grupos de interesse e do
loteamento político atende confortavel-
MUDANÇA DE PARADIGMA mente às políticas chamadas assistencia-
listas. O aparato governamental está afeito
O primeiro aspecto seria o acolhimen- a isso. Cabem lá, muito bem, todas as polí-
to de um novo paradigma, assim como ticas assistencialistas. Contudo, tais políti-
ocorre no campo das disciplinas (o que tem cas não se encaixam no modo de pensar
sido uma discussão importante na univer- intersetorial, pois ele contradiz a natureza
sidade). Como poderemos superar aquele do assistencialismo, que tem caráter de
paradigma da disjunção, da separação, da compensação e de provimento de itens. Por
clausura e da redução, e transitar para o exemplo: quando está faltando algo, bus-
paradigma de compreensão da diversidade ca-se sanar esse problema específico. Mas,
e, mais que isso, da produção de nova pers- cuidar da transformação da sociedade e
pectiva a partir dessa diversidade? A res- promover o desenvolvimento social é uma
posta é: adotar uma nova postura, ante os abordagem diferente, que significa a repar-
problemas que a organização pública deve tição mais equânime das riquezas.

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Esse é o conceito de desenvolvimento ATUAÇÃO EM REDE DE
social que estamos usando aqui, ou seja, a COMPROMISSO SOCIAL
repartição mais equânime das riquezas exis-
tentes na sociedade em determinado momen- Finalmente, o quarto aspecto refere-se
to histórico, com a redução das desigualda- a uma nova organização para superar aquela
des (que todas essas políticas assistencialistas pirâmide hierarquizada e fatiada da estru-
jamais pretenderam resolver) e, portanto, tura governamental. Há muitos modelos
com a reversão da exclusão social. disponíveis. A reforma administrativa iso-
lada pode não significar absolutamente
PLANEJAMENTO E nada. Pode ser aquela política “de toalha”,
AVALIAÇÃO PARTICIPATIVOS E de enxugamento. Pode ser simplesmente
COM BASE REGIONAL uma leitura do modelo liberal, uma forma
de reduzir o Estado, ou o contrário. Mas
O terceiro aspecto atinge a organização ela, por si só, não promove mudança. A
interna do governo, pois diz respeito ao pla- nosso ver, a reforma administrativa se inte-
nejamento. A proposta de intersetorialidade gra àquelas outras partes do quebra-cabe-
tem conseqüências tanto no planejamento ça. E está aí como uma parte necessária
como no orçamento (que deveria ser um para viabilizar esse novo olhar transetorial.
produto do planejamento, mas não é). Se for acolhido um novo paradigma,
Atualmente, é o orçamento que determina uma outra perspectiva de política pública,
o planejamento, a partir de embates entre com o banimento do assistencialismo e a
grupos de interesse que definem a distribui- adoção do planejamento como processo
ção no orçamento, assim como definem, de- participativo, ficará de fato intolerável o
pois, a liberação dos recursos. modelo piramidal e setorializado do apa-
A perspectiva intersetorial implica o pla- rato do Estado, que já se mostra insusten-
nejamento com base regional. Implica uma tável, dada a sua incapacidade de promo-
lógica de planejamento não como a pro- ver mudanças substantivas. Então, torna-
dução de um plano, como hoje existe – em se indispensável que tal modelo seja
determinado momento do ano, um grupo reexaminado. Isso poderia significar ape-
de pessoas examina o velho orçamento e nas uma reforma administrativa, mas pode
faz o que chama de planejamento, que não e deve ser mais que isso.
passa de um “requentamento” do orçamen- Nesse sentido, a atuação em rede de
to do ano anterior. Mas a perspectiva compromisso social pode ser uma parte
intersetorial precisa de um processo de pla- dessa solução, pois significa que o Estado
nejamento diferente, em que o plano faz vai permeabilizando-se e abrindo-se à so-
parte de um processo permanente, que co- ciedade, trabalhando não em setores, não
meça com a análise de situação, passa por em clausuras, mas com outros parceiros que
escolhas estratégicas e faz acordos. também estavam fazendo o provimento de
E é preciso que o planejamento seja necessidades e expectativas da sociedade
participativo? Sim, pois não dá mais para também com uma lógica disciplinar isola-
atuar de modo isolado. O planejamento da, setorial.
participativo tem de agregar outros atores, A rede de compromisso social – expres-
que vão ter outros enfoques dos segmentos são usada para distinguir a natureza da rede
da população, das regiões. Dentro desse pro- – permite que esses atores independentes,
cesso, o plano é um grande acordo feito a ligados ao aparato governamental e à soci-
partir da avaliação de resultados, com o pres- edade, sejam atraídos e se mobilizem para,
suposto de ser refeito dinamicamente. O juntos, trabalharem determinado problema
planejamento regional e participativo deve, da sociedade.
portanto, determinar uma mudança impor- É preciso trabalhar com a idéia de re-
tante na lógica do orçamento do Estado. des, agregando novos atores. Não se trata

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de um grupo de trabalho preocupado ape- A princípio, a regional de Saúde da área
nas em fazer uma proposta ou avaliação. convidou 25 prefeitos para discutir uma pro-
Trata-se de uma verdadeira rede de com- posta de planejamento inter-setorial.2 Os
promisso, na qual instituições, organizações prefeitos articularam suas áreas de Educa-
e pessoas se articulam em torno de uma ção, Saúde e Assistência Social. A partir desse
questão da sociedade, programam e reali- ponto, atores do governo do Estado e dos
zam ações integradas e articuladas, avali- governos municipais se reuniram para dis-
am juntos os resultados e reorientam a ação. cutir problemas que ocorriam nos vários
O governo é parte dessa rede, que será municípios e que eram comuns à região.
capaz de fazer propostas de planejamento Na seqüência, escolheram um ponto
com base regional e assumir a co-respon- que, naquele momento, estava mobilizan-
sabilidade. Atualmente, isso não acontece, do mais as pessoas: o problema do aumen-
e as pessoas ou os grupos se dispersam, to da drogadição entre a população ado-
mesmo que, às vezes, tenham propostas lescente. E a partir da discussão desse pro-
muito parecidas. Mas o plano é entregue blema, com sua peculiaridade regional, os
ao governo e o aparato governamental, atores governamentais perceberam que pre-
sozinho, é incapaz de realizá-lo. Enquanto cisavam de outros atores para começar a
isso, as mesmas instituições que ajudaram formular uma proposta e poder intervir.
a produzir as propostas continuam agindo Decidiu-se fazer, então, um amplo chama-
muitas vezes de forma coerente com suas do às sociedades de cada município, e co-
próprias propostas, mas de maneira isola- meçou a ser tecida a Rede Adolescente.
da e desarticulada. Na realidade, essa rede ocorre em dois
A Cartografia de uma Rede, que o Pro- níveis. Cada município tece sua própria rede
jeto Quixote da Universidade Federal de com os atores governamentais e não-go-
São Paulo (Unifesp) publicou, mostra vernamentais daquele município. E as re-
como os meninos de rua trafegam por vá- des municipais se articulam em uma rede
rias organizações, cujos esforços não lo- regional.
gram mudar os condicionantes que resul- Mas não se trata de uma rede formal,
tam na exclusão dessas crianças. uma vez que cada instituição continua au-
Resumindo: além da base regional e da tônoma e independente, preservando seus
rede, o planejamento e a ação articulados propósitos e sua própria ação. Mas, dadas
requerem liderança. Mas as lideranças tam- as necessidades de resolver um problema
bém continuam muito setorializadas, tan- comum e se energizar, fazendo com que a
to dentro dessa estrutura da ação governa- ação das várias organizações se potenciali-
mental quanto nas organizações não-go- zem para a obtenção de resultados comuns,
vernamentais. E é imprescindível que elas a partir de uma visão compartilhada de fu-
tenham uma visão mais ampla. turo, tais organizações se articularam em
redes municipais. Assim, passaram a existir
EXEMPLO DE PROGRAMA EM ações de âmbito municipal, nas quais os
SÃO JOÃO DA BOA VISTA vários atores dividem as responsabilidades.
As redes municipais se articulam em
A Rede Adolescente – InterAções pela uma rede regional, que se ocupa não só do
Vida é uma rede de compromisso social, processo de comunicação entre as diversas
mobilizada em torno de uma questão so- redes, mas também de questões que
cial. Seu trabalho é regional e focaliza o extrapolam o âmbito do município.
segmento jovem da população. Nasceu na Há outros exemplos. A área de desen-
2 Proposta articulada pelo Prof.
Dr. Luciano A. Prates Junqueira, região de São João da Boa Vista, a partir volvimento e assistência social em São Paulo
no processo de assessoria da
Fundap à Direção Regional de de uma discussão com diversos atores, não busca estruturar um trabalho com as redes
Saúde XX da Secretaria de Estado
da Saúde de São Paulo. apenas governamentais, da região. regionais. Com essa mesma lógica, aten-

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dem-se pessoas que estão numa determi- dança de sistemática; porém, em outros lo-
nada região do Estado e que têm um perfil cais, talvez possa ajudar projetos políticos que
específico. Mas, obviamente, as condições hoje se vêem reféns da velha sistemática.
da região interferem em outras condições, Finalmente, convém observar que qual-
que acabam determinando-se mutuamen- quer mudança pode ser uma mera mudan-
te. Portanto, exigem soluções e ações que ça de sistemática ou pode ser uma mudan-
têm de se ajustar a cada região. Assim, a ça política real. Nesse sentido, ela depen-
proposta em rede dá conta de uma ação derá da existência, em cada município, em
muito mais focalizada. cada Estado e na União, de um projeto
Também há muitos municípios que já tra- político de participação, que seja transpa-
balham com a lógica do orçamento parti- rente e novo, caso contrário ela irá se esgo-
cipativo, para o qual os problemas são iden- tar como sistemática nova. Trata-se, por-
tificados com base local, regional, com a par- tanto, do desenvolvimento de um olhar e
ticipação de atores. Isso faz parte de um de um fazer transetoriais, em que dialo-
projeto político, de uma mudança de enfoque guem as várias dimensões da mudança,
político, já que não se trata de uma mera orientados, sempre, pelas necessidades in-
mudança de sistemática de trabalho. É evi- tegradas da população e por uma perspec-
dente que, dependendo da situação específi- tiva política de desenvolvimento social e de
ca de cada local, não passará de mera mu- superação da exclusão.

Referências bibliográficas

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Documentos arquivísticos

FUNDAP – Fundação do Desenvolvimento Administrativo


1997 Processo de mudança organizacional da Prefeitura Municipal de Fortaleza (CE),
Relatório Final. São Paulo. jul.

1998 Relatório Final à Direção Regional de Saúde de São João da Boa Vista DIR XX,
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. São Paulo. jul.

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