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RESUMO
Depois de percorrer as discussões sobre o estado das ciências e o paradigma de
Kelsen e Hart para a hermenêutica jurídica, discute-se a tese dworkiana da
«única resposta correta » e as reformulações de autores posteriores, defenden-
do-se, ao fim, a busca da « melhor resposta possível».
Palavras-chave: Filosofia do direito, Hermenêutica, Dworkin.
ABSTRACT
After going through the discussions on the state of sciences and Kelsen’s and
Hart’s paradigm to the legal hermeneutics, the author discusses Dworkin’s thesis
of ‘the only correct answer’ and the reformulations by subsequent authors,
defending, as a conclusion, the search for the ‘best possible answer’.
Key words: Legal philosophy, hermeneutics, Dworkin.
1
O presente texto foi apresentado como relatório à disciplina “Interpretação Constitucional e os Fundamentos
do Direito Público e do Direito Privado I (Temas Avançados de Interpretação Constitucional)”, no âmbito do
Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Direito da PUC/RS, Coordenador Professor Doutor Juarez
Freitas.
Direito
vol.5, e Democracia
n.1, 2004 Canoas
Direito e vol.5, n.1
Democracia 1º sem. 2004 p.85-120 85
(...) ver assim diferente, querer ver assim diferente, é uma grande disciplina
e preparação do intelecto para a sua futura “objetividade” – a qual não é
entendida como “observação desinteressada” (um absurdo sem sentido), mas
como a faculdade de ter seu pró e seu contra sob controle e deles poder
dispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de
perspectivas e interpretações afetivas. De agora em diante, senhores filósofos,
guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece
um “puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tem-
po”, guardemo-nos dos tentáculos dos conceitos contraditórios como “razão
pura”, “espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si”; – tudo isso pede que
se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho volta-
do para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as que
fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes. Existe
apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto
mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes
olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “con-
ceito” dela, nossa “objetividade”. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspen-
der os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? – não
seria castrar o intelecto?... (NIETZSCHE, Genealogia da Moral, Terceira
dissertação: o que significam ideais ascéticos?, aforismo 12);
(...) E aqui toco outra vez em meu problema, em nosso problema, meus
caros, desconhecidos amigos ( – pois ainda não sei de nenhum amigo!): que
sentido teria nosso ser, senão o de que em nós essa vontade de verdade toma
consciência de si mesma como problema? (idem, ibidem, aforismo 27).2
1. INTRODUÇÃO
Em sua célebre “Oração de Sapiência” proferida na abertura solene
das aulas na Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1985/86, Boa-
ventura de Sousa Santos, depois de apresentar as fissuras no paradigma
dominante, procurou caracterizar a mundivisão emergente (o paradigma
de um conhecimento prudente para uma vida decente), tendo destacado
quatro teses, postulando a terceira que todo o conhecimento é auto-conhe-
2
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, 3ª reimpressão,
2001, pp. 108-9 e 148, respectivamente.
3
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 11ª ed. Porto: Edições Afrontamento, 1999, pp.
50-5. “A ciência moderna consagrou o homem enquanto sujeito epistémico mas expulsou-o, tal como a
Deus, enquanto sujeito empírico.” (...) Assim ressubjectivado, o conhecimento científico ensina a viver e
traduz-se num saber prático.”
4
WEINGARTNER NETO, Jayme. Honra, privacidade e liberdade de imprensa: uma pauta de justificação penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2002. Item 5.5.2 – o caso Lula-Pelotas, pp. 313-8.
5
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy Editora 2000, pp. 21-6.
6
SANTOS, Boaventura, Um discurso sobre as ciências, p. 35.
2. RAZÕES PARADIGMÁTICAS
Nosso lugar, hoje, é ambíguo, em “sociedades que são simultaneamen-
te autoritárias e libertárias”, é “multicultural, um lugar que exerce uma
constante hermenêutica de suspeição contra supostos universalismos ou
totalidades”. 7
2.1. Negativas
No início do século XIX, a ciência moderna já se convertera numa
espécie de religião (Copérnico, Kepler, Galileu, Newton, Bacon, Descar-
tes estabeleceram seus fundamentos). Sua profissão de fé foi a racionali-
dade que emergiu a partir da revolução científica do século XVI e desen-
volveu-se nos séculos seguintes basicamente segundo o modelo das ciên-
cias naturais, que servem, portanto, de padrão para as incipientes ciênci-
as sociais. Um modelo totalitário, “na medida em que nega o caráter
racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos
seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas”. Só existe
uma forma de conhecimento verdadeiro e é com indisfarçada arrogância
que os cientistas se medem com seus contemporâneos. Kepler, numa úni-
ca ilustração, Harmonia do Mundo (1619, sobre as órbitas dos corpos ce-
lestes): “Perdoai-me, mas estou feliz; se vos zangardes eu perseverei; (...)
O meu livro pode esperar muitos séculos pelo seu leitor. Mas mesmo Deus
teve de esperar seis mil anos por aqueles que pudessem contemplar o seu
trabalho.”.8
Os grandes avanços técnicos baseiam-se na observação e na experi-
7
SANTOS, Boaventura. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência (Para um novo senso comum.
A ciência, o Direito e a Política na transição paradigmática, v. I). Porto: Afrontamento, 2000, p. 26.
8
SANTOS, Boaventura, A Crítica da razão indolente, p. 58, donde extraiu-se a citação de Kepler.
9
Idem, ibidem, p. 61.
10
SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial,
2000, pp. 53 e 56-7. “O projeto da modernidade começa com a disposição de rejeitar tudo que é excessivo
e fantasioso. Mas mesmo a fantasia mais excessiva não teria podido imaginar, naquele tempo, as coisas
incríveis que o espírito da sobriedade positivista ainda produziria.” (p. 57).
11
A literatura neste sentido é farta. Veja-se, para ilustrar, SANTOS, Boaventura, Um discurso sobre as ciências,
pp. 23-35; A crítica da razão indolente, pp. 65-70.
2.2. Positivas
Explicar tal realidade, intui-se, significa simplificar, o que é inexorá-
vel, desde que se atente para o fato de que a análise da complexidade
não elimina a tessitura complexa, embora possa elaborar modelos aproxi-
mativos de padrões simplificados da dinâmica. Podem-se elencar algumas
características do emergente paradigma da complexidade:14
a) ela é dinâmica (campo de forças contrárias, em que eventual
estabilidade é sempre rearranjo provisório);
b) não-linear (um modo de ser em que pulsa a relação própria entre
o todo e as partes, “feitas ao mesmo tempo de relativa autono-
mia e profunda dependência” – para continuar existindo é mis-
ter mudar não linearmente, de modo previsível e controlável,
“mas criativo, surpreendente, arriscado”);
c) reconstrutiva (é devir intrinsecamente marcado pela flecha do
tempo, irreversível, não se passa do depois para o antes, nem o
12
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Editora da UNESP, 1996, p.
12.
13
Desenvolveu-se a metáfora em Honra, privacidade e liberdade de imprensa, pp. 93 a 101, propondo que a pintura
renascentista (e sua conquista da perspectiva tridimensional) está para os movimentos artísticos contem-
porâneos (o horizonte estético foi a obra de Miró) na mesma relação que se estabeleceu entre a centralidade
legal cristalizada na codificação burguesa e o atual estágio de reflexão jurídica. Confiram-se, ainda, a
dinâmica da elipse barroca no centro da Praça de São Pedro em Roma, e os plúrimos pontos de vista da
pintura de Cézanne e dos cubistas (pp. 97 e 100, respectivamente).
14
Segue-se DEMO, Pedro. Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não linear do conhecimento. São Paulo: Atlas,
2002, pp. 13 a 31.
15
“Na realidade, não há fundo último, porque se dilui ou expande em novas dimensões cada vez mais complexas,
para cima (astronomia) e para baixo (microfísica), não parecendo haver algum ponto final. Na explicação,
não há fundo último, pois toda explicação não começa do começo, é cultural e hermeneuticamente
contextuada, bem como não acaba, porque já não existiria último questionamento já inquestionável.”
(DEMO, op. cit., pp. 33-4).
16
“Por isso, prefere-se hoje como critério de cientificidade a discutibilidade, formal e política (...) ele reconhece [o
critério] que a ciência não vive só de formalização, mas igualmente de consensos políticos, como a
problemática dos paradigmas fartamente documenta.” (DEMO, op. cit., p. 40).
17
Confira-se PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretação siste-
mática do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. “Nessa moldura lábil, uma vez que todo o
significado faz sentido, qualquer leitura assume, automaticamente, um topos privilegiado e exclusi-
vo, tornando inútil o trabalho hermenêutico. Quando o relativismo serve de disfarce à astúcia da
vontade, a conveniência do intérprete ganha o status de sentido inquestionável. Numa frase, conce-
de-se ao impulso a licença para legitimar a força do arbítrio.” (pp. 28-9) “(...) os desconstrutivistas
cometem a inominável soberba de serrar o galho onde se acham acomodados. Usam a razão para
destruir (desconstituir) o próprio horizonte de racionalidade em que, desde o início, se movimen-
tam.” (p. 30 e ss.).
18
DEMO, op. cit., pp. 45-6. “Como não podemos ver a realidade de fora ou de cima o que vemos de dentro nunca
será suficiente para exararmos qualquer palavra final.” (p. 47).
19
FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Verdade. Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 23 e 17, respectivamente.
20
REALE, Miguel. Verdade e Conjectura. 2ª ed. rev. e actual. Lisboa, Fundação Lusíada, 1996, pp. 13-4.
21
REALE, Verdade e Conjectura, no prefácio à edição portuguesa, onde cita (da 3ª ed. alemã da obra de Karl
Popper “A lógica da pesquisa científica”) velho escrito de mais de 2.500 anos, de Xenófanes: “No
início, os deuses não revelaram tudo aos mortais; / com o correr do tempo, todavia, procurando,
encontramos o melhor. / Verdades indubitáveis, o homem não alcança e nenhuma virá a alcançá-las,
acerca dos deuses e das coisas a que me refiro. / E se alguém viesse a proclamar a Verdade, em toda
a sua perfeição ele próprio não saberia disso: tudo é uma teia de suposições.” (pp. 11-2). Preciosa
síntese da original abordagem de Reale forneceu o próprio autor, em conferência intitulada “A
semiótica e o pensamento conjetural” e proferida na abertura do XIII Colóquio Internacional de
Semiótica Jurídica (São Paulo, agosto de 1997). Os estudos semióticos redundaram no abandono da
rígida separação entre asserções dotadas de sentido ou sem sentido (meaningless) – sequer na mate-
mática há linguagem plenamente segura (há proposições plausíveis mas indemonstráveis), a par da
lógica paraconsistente que abstrai do princípio da não-contradição (a respeito das limitações da lógica
aristotélica, vide também FERNÁNDEZ-ARMESTO, Verdade, pp. 123-30) – donde “a atenção dis-
pensada à ‘vaguidade’ ou à ‘indeterminação’, como algo de insuperável na cognição científica”. Assim, ao
invés de ignorar essa realidade, a semiótica “se esmera em dar-lhes estatuto próprio na teoria da
linguagem, apurando-lhes cuidadosamente o sentido, para que, não obstante sua indeterminação,
sejam objeto de rigorosas cautelas lógico-lingüísticas em sua aplicação”. Neste contexto, “não há
como confundir conjeturar com mero devaneio ou uma suposição gratuita”, pois na conjetura “a razão,
aliada à imaginação criadora, visa a ir além da experiência, formulando suposições plausíveis porque
fundadas na experiência, e jamais em contradição com ela, a fim de responder a perguntas que
emergem necessariamente da experiência mesma, o que faz parecer, em relação a esta, um pensamen-
to paralelo e metafórico”. Enfim, trata-se “de uma forma de pensar que, sem abandono do rigor
plausível, nos liberta das retortas do que é certo ou certificável, reconhecendo-se o valor também do
verossímil” (REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da História. 3ª ed. rev. e aum., São Paulo: Saraiva,
2000, pp. 173-9).
3. O ESPAÇO JURÍDICO
Quid juris, neste embate de paradigmas?
22
Em linha de rápida resenha, segue-se STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração
hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1999. Parte, o autor, do “Crátilo”
Platônico (388 a.C.), que defendia o naturalismo (cada coisa tem seu nome por natureza, o logos está na
phisys) contra a posição sofística do convencionalismo (tal ligação é arbitrária, pp. 97-102). Em Aristóteles,
a questão está na adequatio (conformidade entre a linguagem e o ser), a pressupor uma ontologia –
acreditava “que as palavras só possuíam um sentido definido porque as coisas possuíam uma essência” (p.
103). Assim, tanto no idealismo platônico quanto no essencialismo realista aristotélico, a verdade está
preservada da corrupção e da mudança: o absoluto preside o esforço filosófico da metafísica, do século IV
a.C. ao século XIX de nossa era (p. 105). O embate prossegue, com a continuidade da tradição metafísica
e com reações à busca da essência e da coisa em si – cabível referir, ao menos, a originalidade da concepção
de Santo Agostinho das palavras como signos (p. 107), do nominalismo de Ockham (para quem só há
individuais particulares, não passando os universais de palavras (p. 108). Locke, no seu Ensaio sobre o
entendimento humano, oferece uma classificação tripartida para as ciências: física, prática e semiótica
(signos, palavras e idéias, como instrumentos de outras ciências) - pp. 110-11. Também o nominalismo de
Berkeley insere-se nas relevantes contribuições para a discussão da linguagem. Hume iria desferir outro
golpe na metafísica, ao negar a realidade objetiva da causalidade, do mundo e do sujeito (p. 113). Kant
continua a conferir um caráter auxiliar/subsidiário à linguagem (p. 115). Com Nietzche haveria uma
ruptura do paradigma metafísico-essencialista (numa de suas célebres frases, “fatos é o que não há: há
apenas interpretações” (p. 117), uma ruptura entre o conhecimento e as coisas. O “primeiro” giro lingüístico
ocorreria com os trabalhos de Hamann-Herder- Humboldt, precursores do “rompimento com o paradigma
instituído pela filosofia da consciência” (p. 119), ao reconhecer que a linguagem tem um papel constitutivo
em nossa relação com o mundo – a linguagem como abertura e acesso ao mundo (fontes gadamerianas).
Seguir-se-iam a semiologia de Saussure (a inaugurar a lingüística moderna, pp. 125-9) e a semiótica de
Peirce com sua “ideoscopia”: primeiridade, secundidade e terceiridade (o signo como mediação de suas
redes de classificações triádicas, pp. 130-6). A “viragem lingüística” passa pelo rompimento com as concep-
ções metafísico-ontológicas, de modo que a linguagem não é mais vista como uma “terceira coisa que se
interpõe entre o sujeito e o objeto, formando uma barreira que dificulta o conhecimento humano de como
são as coisas em si mesmas” (pp. 137-8). Na segunda metade do século XX, a passagem da filosofia da
consciência para a filosofia da linguagem traz vantagem objetiva, segundo Habermas: romper o círculo
aporético em que o pensamento metafísico choca-se com o antimetafísico (p. 140). Dentre as principais
correntes, o autor destaca o neopositivismo lógico do Círculo de Viena; Wittgenstein, para quem não
existe um mundo em si, independente da linguagem, “somente temos o mundo na linguagem” (p. 144); e
a filosofia da linguagem ordinária (comum). O giro lingüístico generaliza-se, sendo a linguagem tema
comum de reflexão das diversas abordagens filosóficas contemporâneas: a hermenêutica de Heidegger; a
pré-compreensão de Gadamer; a teoria da ação comunicativa de Habermas. Liberta da ontologia (já que
não se acredita possa o mundo ser identificado com independência da linguagem), a hermenêutica é
concebida como “uma incômoda verdade”, que nem é uma verdade empírica, nem uma verdade absoluta,
mas “uma verdade que se estabelece dentro das condições humanas do discurso e da linguagem” (p. 153).
Inexorável, pois, a mediação lingüística, “onde a hermenêutica e a pragmática passam a ocupar o centro do
palco” (a feliz expressão é de Manuel Maria Carrilho).
23
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 391 e 396, respectivamente.
24
KELSEN, op. cit., p. 388.
25
KELSEN, op. cit., p. 390.
26
KELSEN, op. cit., pp. XII e XIII. Interessante seria verificar o quanto tal assertiva contraria a idéia da
interpretação como ato cognoscitivo (obtida por uma operação de conhecimento) e ato de vontade, em que
o aplicador escolhe dentre as possibilidades reveladas, esclarecido, de todo modo, que o juiz é “um criador
de Direito e também ele é, nesta função, relativamente livre.” (p. 393).
27
KELSEN, op. cit., p. 393. Repare-se na pista que segue: não seria assim, o aplicador não seria livre, se o próprio
“Direito positivo delegasse em certas normas metajurídicas como a Moral, a Justiça, etc. Mas, neste caso,
estas transformar-se-iam em normas de Direito positivo.” (p. 394). Seria possível aventar que, em face da
constitucionalização e positivação da moral (fenômeno da substancialização do direito), Kelsen repensaria
o “non liquet” jurídico? Diante, por exemplo, da redação do caput do artigo 37 da Constituição brasileira?
A hipótese é aceita por Hart (infra). Alexy refere que as teorias positivistas, por diversos motivos, concebem
o sistema jurídico sempre como um sistema aberto. Parece-nos, todavia, que o conceito mais adequado
seria o de indeterminação. Visto que fora do direito positivo não se põe mais a questão jurídica, vale dizer,
não há resposta estritamente jurídica, tratar-se-ia, pois, de um sistema fechado, que nega aos fatores
“externos” (morais, políticos) a possibilidade de conhecimento jurídico. Vide ALEXY, Robert. “Sistema
jurídico, principios jurídicos y razón práctica”, Doxa 5 (1988), p. 139.
32
HART, pp. 313-5. O autor, além de afirmar que a diferença entre regras e princípios é apenas de grau
(quantidade de generalidade e abstração), sustenta a tese fundamental da separação entre direito e moral
(p. 331 – “daí que possam ter validade, enquanto regras ou princípios jurídicos, disposições moralmente
iníquas”). Justamente a “one right answer” de Dworkin considera tal poder discricionário antidemocrático
e injusto (pp. 336-8). Hart encara tal poder como “o preço necessário que se tem de pagar para evitar o
inconveniente de métodos alternativos de regulamentação desses litígios”, por exemplo o reenvio da
questão ao órgão legislativo; por fim, o injusto fraudar das expectativas daqueles que agiram em confiança
de que “as conseqüências jurídicas de seus actos seriam determinadas pelo estado conhecido do direito
estabelecido, ao tempo dos seus actos” (problema da criação jurídica ex post facto), parece bastante
irrelevante nos casos difíceis – em que não haveria tal confiança justificada (p. 339).
33
DWORKIN, Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Há diferenças qualitativas (lógicas)
entre regras e princípios, os conflitos entre as primeiras resolvendo-se pela lógica do “tudo ou nada” (pp.
39-40), a par da dimensão de peso, presente nos segundos – embora apresentem-se sem hierarquia
estabelecida (pp. 42-3)
34
Seguiu-se ALEXY, “Sistema jurídico, principios juridicos y razón práctica”, Doxa 5 (1988), pp. 139-40.
35
DWORKIN, op. cit., pp. 165-203. Repare-se que, mesmo nos casos difíceis, “os juízes são injustos quando
cometem erros sobre os direitos jurídicos. (...) cometerão tais erros em algumas ocasiões, pois são falíveis
e, de qualquer modo, divergem entre si.” (p. 202) – o que não configura, por si, “argumento contra a
técnica de decisão judicial de Hércules, ainda que sem dúvida sirva, a qualquer juiz, como um poderoso
lembrete de que ele pode muito bem errar nos juízos políticos que emite, e que deve, portanto, decidir os
casos difíceis com humildade.” (p. 203)
36
Cf. ALEXY, Doxa, pp. 141-4.
37
ALEXY, Doxa, p. 147.
38
ALEXY, Doxa, pp. 148-9.
39
ALEXY, Doxa, p. 149.
40
ALEXY, Doxa, p. 150.
41
Deixa sem resposta se, mesmo no quadro ideal, as diferenças antropológicas entre os participantes do discurso
poderiam redundar em casos sem uma única resposta correta (ALEXY, op. cit., p. 151).
42
Vislumbram-se traços do “idealismo do como-se, cultivado pelos neokantianos nas cátedras alemãs” no início
do século XX (SAFRANSKI, op. cit., p. 77).
43
ALEXY, Doxa, p. 151.
44
AARNIO, Aulis. “La tesis de la única respuesta correcta y el principio regulativo del razonamiento jurídico”,
Doxa 8 (1990), pp. 23-38.
45
AARNIO, op. cit., p. 27.
46
AARNIO, op. cit., p. 28.
47
AARNIO, op. cit., p. 29.
48
AARNIO, op. cit., p. 30.
49
AARNIO, op. cit., p. 31.
50
AARNIO, op. cit., p. 32.
51
AARNIO, op. cit., p. 34. A comunidade jurídica ideal, por conseguinte, não é um “auditório universal” no
sentido de Perelman, salvo na pressuposição da racionalidade do discurso, o que não elide a presença de
códigos valoarativos diversos.
52
AARNIO, op. cit., p. 35. Violar-se-ia, com isso, o direito das minorias? Não para o autor, visto que na
comunidade ideal o uso do poder (discriminatório) não é um problema; o discurso racional leva em conta
todas as razões (inclusive a opinião minoritária); mesmo a minoria, “a priori”, aceitou o princípio majoritá-
rio, fora do qual só poderia cogitar-se do sorteio.
53
AARNIO, op. cit., p. 36.
54
AARNIO, op. cit., p. 37, sem prejuízo de que a opinião minoritária, dada a dinâmica social, acabe alçando-
se à condição de “melhor solução possível”.
55
AARNIO, op. cit., p. 37.
56
AARNIO, op. cit., p. 38. Pressupor “uma resposta correta” não ajuda a “servir melhor à sociedade”, pois do
que realmente necessita-se é de “justificação racional”. Fica por demonstrar que o recurso ao auditório
ideal garante o máximo de certeza possível, pois a solução majoritária não virá com “selo de garantia” aposto
por juristas angelicais, o que significaria uma nova ordem de problemas: depois de alcançada a melhor
solução possível, reabre-se o campo discursivo para estabelecer que tal resposta seria a mais adequada no
diapasão da comunidade jurídica ideal. Ainda que com as vestes da razão, permanece um quê de
sacerdotal nesta intermediação entre as comunidades.
57
ATIENZA, op. cit., p. 314. Ademais, a teoria padrão ocupa-se quase exclusivamente de questões normativas,
ao passo que a argumentação jurídica calca-se em grande parte “sobre fatos” (p. 315). Ignora, ainda, o
âmbito da produção da lei (para Alexy, é o respeito a lei que o torna o discurso jurídico um caso especial,
em relação ao discurso prático em geral), seria preciso “partir de alguma teoria da legislação” (p. 316).
Salienta o autor, em terceiro lugar, que a teoria padrão descura da “racionalidade estratégica”, que deve
ser combinada com a racionaldade discursiva num modelo complexo de racionalidade prática, já que “a
resolução de problemas jurídicos é, com muita freqüência, resultado de uma mediação ou de uma
negociação” (p. 318 – pense-se nos termos de ajustamento de conduta celebrados pelo Ministério Público
no âmbito da legislação brasileira). Por quarto, uma teoria “há de ser também descritiva (...) capaz de dar
conta dos argumentos que ocorrem de fato na vida jurídica”, seria importante que se estendesse também
ao contexto da descoberta (pp. 318-9).
58
ATIENZA, op. cit., p. 320.
59
“Quando as premissas contêm toda a informação necessária e suficiente para chegar à conclusão, argumentar
é um processo de tipo dedutivo. Mas normalmente precisamos argumentar naquelas situações em que a
informação das premissas é deficiente ou, então, excessiva”, no sentido de contraditória (ATIENZA, op.
cit., p. 326).
60
ATIENZA, op. cit., p. 329.
61
ATIENZA, op. cit., pp. 330-1.
62
ATIENZA, op. cit., p. 333. Outra finalidade prática refere-se ao encino jurídico, que teria como objetivo
central “o de aprender a pensar ou a raciocinar ‘como um jurista’, não se limitando a conhecer os
conteúdos do direito positivo” (p. 334).
63
ATIENZA, op. cit., p. 334.
64
ATIENZA, op. cit., p. 335. Argumentar, aqui, implica elementos trágicos.
65
Aliás, no prefácio, Eros Roberto Grau, pp. 17-8, assinala que “a alusão, no texto, a uma melhor significação possível
entre as várias possíveis não significa adesão, dele [Juarez Freitas], à concepção dworkiana da one right answer.
Essa melhor significação, no texto de JUAREZ, é aquela alcançada no campo da prudência, no sentido aristotélico,
que a interpretação é.” – FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
66
FREITAS, op. cit., pp. 32-3, o que implica rejeitar as teorias auto-suficientes que postulam sistemas fechados
(nota 8).
67
Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2ª ed. Lisboa:
Fundação Calouste-Gulbenkian, 1996, pp. 101-26. Abertura entendida como “incompleitude, a capacida-
de de evolução e a modificabilidade do sistema” (p. 104), vinculada diretamente à “incompleitude e a
provisoriedade do conhecimento científico” (p. 106) bem como à “modificabilidade da própria ordem jurídica” (p. 109)
– o “Direito positivo como um fenómeno colocado no processo da História e, como tal, mutável” (p. 110),
sendo a formulação do sistema jurídico “um processo infindável” (p. 111).
68
FREITAS, op. cit., pp. 49 e 50. “A Dialética, por outro lado, não peca contra a lógica formal. Simplesmente a
supera, dado que é uma lógica da vida real. É a concepção da análise como parte integrante do processo
social analisado, como sua consciência crítica possível, na certeza de que as coisas, em si mesmas, são
contraditórias.” (p. 169).
69
FREITAS, op. cit., p. 51.
70
FREITAS, op. cit., pp. 159-60.
71
FREITAS, op. cit., p. 165.
72
FREITAS, op. cit., p. 170.
73
FREITAS, op. cit., pp. 187-9.
74
FREITAS, op. cit., p. 194. O terceiro preceito também refere-se “a maior tutela jurisdicional possível” (p. 196)
e o quarto “a maior otimização possível do discurso normativo” (p. 197).
75
FREITAS, op. cit., p. 200.
76
FREITAS, op. cit., p. 206.
77
FREITAS, op. cit., p. 273. Mesmo porque “jamais haverá um conflito de regras que não se resolva à luz dos
princípios” (p. 272).
78
FREITAS, op. cit., p. 274.
79
FREITAS, op. cit., p. 275.
80
FREITAS, op. cit., p. 276. A hieraquização axiológica nunca será somente jurídica, pois a “interpretação opera
como ‘descoberta’ e, ao mesmo tempo, como uma construção intersubjetiva da própria sistematicidade”.
81
FREITAS, op. cit., p. 277.
82
FREITAS, op. cit., pp. 282-3.
83
FREITAS, op. cit., p. 290. Na mesma linha da melhor interpretação, também PASQUALINI, op. cit., p. 24,
o vôo hermenêutico como a “perene e intersubjetiva procura do melhor sentido da lei ou, em termos mais
concretos, da melhor solução sistemática para os conflitos jurídico-sociais.”. A procura das melhores
exegeses é meta fiadora e inarredável da hermenêutica (p. 51).
84
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. 3ª ed. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 131. Não escapa ao autor
a contradição entre concepção e prática positivistas, assente no lema paradoxal da “lei mais perspicaz que
o legislador”, pelo qual pretendiam a “objetivação” do direito legislado (uma ficção sem fundamento
teórico), em que pese a “visão objetivista” da vontade da lei ter-se revelado um véu debilíssimo para quem
quisesse rasgá-lo.
85
ZAGREBELSKY, pp. 132-3.
86
ZAGREBELSKY, pp. 134-5.
87
ZAGREBELSKY, pp. 136-7. Interessante que, aproximando-se de Atienza, o autor, adiante (ao descrever o
caso Serena, um caso difícil), fale de outros casos “iguais ou mais trágicos”. De toda sorte, o direito por
princípios mostra sua dimensão concreta e à ineludível chamada à “prudência” do intérprete (p. 144).
88
ZAGREBELSKY, pp. 146-7. A relação de tensão entre o caso e a regra “introduz inevitavelmente um
elemento de eqüidade na vida do direito” (p. 148).
89
VOGLIOTTI, Massimo. “La ‘rhapsodie’: fecondité d’une métaphore littéraire pour repenser l’écriture juridique
contemporaine. Une hypothèse de travail pour le champ pénal”. Revue Interdisciplinaire d’Études Juridiques,
2001, nº 46, pp. 1-47.
90
VOGLIOTTI, op. cit., pp. 12-5. Preconiza o autor que a reação da comunidade jurídica deve ultrapassar a
hipótese “ad hoc” (interpretando a crise como deformações contingentes, passível de superação pelo ajuste
do paradigma da modernidade – certo que identicado na vertente positivista) e investir numa “rupture
épistémologique”. Ao revés, para Ferrajoli, o Poder Judiciário está legitimado na medida em que exerça
somente função cognitiva (p. 21, nota 47).
91
VOGLIOTTI, op. cit., pp. 18-9. É conhecida a imagem do “romance em cadeia” ou elos de Dworkin.
92
VOGLIOTTI, op. cit., p. 29.
93
VOGLIOTTI, op. cit., p. 32. O limite resultará de relações recursivas entre o horizonte do passado (tradição)
e o do futuro (a representação, pelo intérprete, de uma decisão “justa”, que possa ser aceita pela comuni-
dade interpretativa como uma prossecução legítima da rapsódia jurídica, sempre em conformidade com os
cânones constitucionais) – p. 33.
94
VOGLIOTTI, op. cit., pp. 36-8.
95
VOGLIOTTI, op. cit., pp. 41-2.
96
VOGLIOTTI, op. cit., pp. 42-9.
97
Não a virtude dos fracos, pois que se não confunde com submissão, mas como oposta às virtudes “fortes” dos
estadistas, do homem de governo. Antes, com valores próprios de um homem privado, “insignificante”.
Trata-se de uma distinção analítica, não axiológica. Bobbio assume que o fundamento de uma república,
mais até do que as boas leis, é a virtude dos cidadãos (BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros
escritos morais. São Paulo: Editora Unesp, 2002, pp. 9 e 37).
98
BOBBIO, op. cit., p. 34, considera uma categoria inusitada e, expresamente em relação à obra de Zagrebelsky,
aponta que caberia uma questão preliminar: Mite, por quê?
99
BOBBIO, op. cit., p. 35.
100
BOBBIO, op. cit., p. 39. A política não é tudo, afirma Bobbio. A serenidade é o contrário da arrogância (a
opinião exagerada sobre os próprios méritos, que justifica a prepotência), não porque se desestime, mas por
ser mais propensa a acreditar nas misérias que na grandeza do homem – o sereno se vê como um homem
igual aos demais. Implicações interessantes podem derivar daí, a solução jurídica demarcando-se, pela
serenidade, das decisões políticas. De toda sorte, resvala-se, aqui, para o território da tolerância e do
respeito pelas idéias e modos dos outros (p. 42).
101
BOBBIO, op. cit., pp. 43-6.
102
O próprio Habermas, todavia, perguntado sobre se a sua teoria crítica do capitalismo avançado teria
utilidade para as forças socialistas do terceiro mundo e se essas forças poderiam ser úteis às lutas pelo
socialismo democrático nos países desenvolvidos, respondeu ter consciência “do fato de que esta é uma
visão limitada e eurocêntrica” – apud SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., p. 341.
103
SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., pp. 90-1.
104
SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., pp. 97. Há de se privilegiar o convencimento em lugar da
persuasão, “acentuar as boas razões em detrimento da produção de resultados” (p. 98), sendo a dimensão
dialógica entre orador e auditório um princípio regulador da prática argumentativa (p. 99).
105
SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., p. 99. Entretanto, o “potencial emancipatório da retórica
assenta na criação de processos analíticos que permitam descobrir por que é que, em determinadas
circunstâncias, certos motivos parecem ser melhores e certos argumentos mais poderosos do que outros”
(p. 100).
106
SANTOS, A crítica da razão indolente, op. cit., p. 319. A exploração das possibilidades emancipatórias deve ser
guiada por três grandes topoi: a fronteira, o barroco e o Sul (pp. 321-54).