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Vozes da Literatura

Brasileira
Um Diálogo Essencial
Material Teórico
Contemporaneidade - Intérpretes do Brasil I

Responsável pelo Conteúdo:


Profa. Dra. Vivian Steinberg

Revisão Técnica:
Profa. Dra. Geovana Gentili

Revisão Textual:
Profa. Ms. Silvia Augusta Barros Albert
Contemporaneidade - Intérpretes do Brasil

• Introdução

• O autor Milton Hatoum

• Sua Obra: Dois irmãos (2000)

• Considerações Finais

Nesta unidade, vamos estudar o romance Dois Irmãos, de


Milton Hatoum. A leitura da obra completa é importante. É
interessante assistir às entrevistas que Milton Hatoum deu para
“Mais um papo” apresentado no Sesc Vila Mariana, além de
outras entrevistas com o autor.

Lembramos a você da importância de realizar todas as leituras e as atividades propostas


dentro do prazo estabelecido para cada unidade, no cronograma da disciplina. Para isso,
organize uma rotina de trabalho e evite acumular conteúdos e realizar atividades no último
minuto. Em caso de dúvidas, utilize a ferramenta “Mensagens” ou “Fórum de dúvidas” para
entrar em contato com o tutor.
É muito importante que você exerça a sua autonomia de estudante para construir
novos conhecimentos.

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Unidade: Contemporaneidade - Intérpretes do Brasil

Contextualização

Há muito material sobre Milton Hatoum, muitas entrevistas. Seus livros estão sendo filmados.
Dois irmãos será uma série transmitida pela TV Globo, e assim, com certeza, atingirá um
público leitor considerável.

Explore

Para entrar no espaço de Milton Hatoum é importante acessar entrevistas e palestras que ele deu.
Ressalto a entrevista: “Na outra margem do rio”, por Kátia Mello, com fotos de Renato Parada,
disponível em:
• https://goo.gl/4EYcHD
Nesse link, há um ensaio fotográfico que nos aproximará do contexto desse escritor.
Leia também a entrevista que deu para a TV Estadão: “Raio X: Milton Hatoum, disponível em:
• https://goo.gl/WxUGSd
No site oficial do escritor, há a biografia dele, notícias e entrevistas, livros e teses, vale a pena visitá-lo em:
• https://goo.gl/nJ1k6T

Lembre-se de que essas sugestões são um material essencial para você aproveitar mais a
leitura do material teórico e a obra do escritor. E com certeza, acompanhar com mais propriedade
as discussões que faremos nessa unidade.

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Introdução

Nosso percurso, nesta unidade, ocorre no século XX e início do XXI, após o primeiro
modernismo, marcado pela “Semana de arte moderna”, e o período de duas ditaduras: da Era
Vargas e da Militar (1964). Falaremos da literatura pós década de 1960. Estudaremos, pois,
a prosa pós-ditadura, que denominaremos de prosa contemporânea brasileira. O foco será o
romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, lançado em 2000.
A produção brasileira de prosa contemporânea é bastante diversificada, revelando uma
multiplicidade de autores e narrativas, tanto em relação à quantidade quanto às formas e aos
temas das narrativas. Por isso, podemos dizer que a literatura brasileira contemporânea é plural,
formada por diversas tendências. Isso multiplica-se se pensarmos na proliferação de pequenas
editoras que publicam autores estreantes. Há, ainda, escritores que divulgam seus textos na web
para só depois publicarem-nos em papel por alguma editora.
A revista Cult, edição 145, publicou uma entrevista de Wilker Sousa com o crítico literário e
professor da PUC-Rio Karl Erik Schøllhammer, autor da Ficção Brasileira Contemporânea,
da editora Civilização Brasileira, obra esclarecedora para pensarmos nos aspectos dessa literatura.
O professor, embora concorde com a diversidade da nossa literatura, vislumbra caminhos:
por um lado, ele diz que houve “uma certa canonização, a partir da década de 1960, em torno
de uma narrativa urbana com fortes inclinações realistas” e, por outro, uma tendência para
“encenações da subjetividade nas escritas de si e de propostas metaficcionais questionando
as fronteiras dos gêneros”. Portanto, do ponto de vista de Karl Erik Schøllhammer, a literatura
contemporânea brasileira aponta para duas vertentes, uma de cunho urbano e mais realista,
citou, como exemplos, os autores Luiz Ruffato, Marcelino Freire e Marçal Aquino. E, outra, mais
subjetiva, com propostas metaficcionais - ou seja, propostas que discutem o fazer literário, a
ficção - alargando as fronteiras dos gêneros literários. Essa vertente intimista ganha repercussão
em autores como, por exemplo, João Gilberto Noll, herdeiro de uma literatura existencial a qual
tem Clarice Lispector como grande expoente na literatura brasileira.
Karl Erik sugere que, atualmente, na literatura brasileira há uma diversidade de histórias; em
contrapartida, abandonou-se as grandes narrativas (da Nação e da formação das identidades).
Quanto à proliferação das feiras e dos eventos literários, o crítico ressalta que, por um lado,
intensificam o culto ao livro e ao autor, que se torna uma celebridade, fato esse que contribui para
a sociedade dita do espetáculo; por outro, contribuem para a democratização do acesso à leitura.
Sobre a geração que chamaram 00, início do século XXI, disse que há nos escritores uma forte
vontade de narrar uma história, “ou voltada para os pequenos eventos do cotidiano ou para a
grande História, ou ainda em criações livres de referências históricas ou sociológicas”. E conclui:
A expressão dessa vontade ficcional se dá tanto em formatos literários
tradicionais (o romance de formação, o realismo naturalista e regionalista, o
romance histórico) como em gêneros não necessariamente literários (a crônica,
o blog, o diário, a carta, relatos de viagem, a notícia sensacionalista) ou em
escritas inspiradas em outras linguagens (fotografia, cinema, artes plásticas,
performance, arquivo, etc). A ficção também surge na exploração criativa da
própria escrita. Confio e, de certo modo, espero que seja essa vontade de criação
ficcional que venha a determinar os autores mais desafiadores do século 21.

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Unidade: Contemporaneidade - Intérpretes do Brasil

Para conhecer na íntegra a entrevista: “Contemporâneos” que saiu na revista Cult nº


145, abril de 2010, acessar: https://goo.gl/yRWyQp
O professor e crítico literário Karl Erik Schøllhammer escreveu sobre as possíveis
tendências praticadas por ficcionistas brasileiros contemporâneos em Ficção brasileira
contemporânea. Editora: Civilização Brasileira.

Metanarrativa ou metaficção:
Forma textual de autoconsciência que ocorre no processo narrativo e que nos
textos de ficção também toma o nome de metaficção. Na prática textual, uma
metanarrativa é todo o discurso que se vira para si mesmo, questionando a
forma como se está a produzir uma narrativa. A técnica de construção de uma
metanarrativa obriga o autor a uma preocupação particular com os mecanismos
da linguagem e da gramática do texto, (...)
Carlos Ceia. Disponível em: https://goo.gl/hfp4cS

Luiz Ruffato, num artigo que escreveu para “Conexões” do Itaú Cultural, em 27/05/2013,
intitulado: “Alguns apontamentos sobre a literatura brasileira contemporânea”, fez extenso
panorama sobre a literatura brasileira, desde os primórdios até a geração atual, com foco
especialmente na geração 90 e no século XXI. Vamos ler alguns trechos:

Você Sabia ?
Luiz Ruffato (Cataguases, MG, 1961) é escritor e jornalista. Publicou, em 2001, Eles eram muitos
cavalos, romance lançado na Itália, França, Portugal, Argentina, Colômbia, Alemanha e Espanha (e parte
substancial na Polônia); Estive em Lisboa e lembrei de você, em 2009, também lançado em
Portugal, Itália e Argentina; e a série Inferno Provisório, composta por cinco volumes: Mamma, son
tanto felice (também lançado na França e México), O mundo inimigo (também lançado na França
e México), Vista parcial da noite, O livro das impossibilidades e Domingos sem Deus
(no prelo, em Cuba). Tem histórias publicadas em antologias e revistas na Argentina, Uruguai, Colômbia,
México, Cuba, Estados Unidos, Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha, Croácia, Suécia, Polônia,
Hungria, Líbano e Angola.

Ditadura Militar
Decorridos, no entanto, menos de duas décadas do fim da ditadura de Getúlio Vargas, outro golpe
militar sufoca a nascente democracia. O ritmo de crescimento acelerado do governo Juscelino
Kubitschek (“cinqüenta anos em cinco”) põe em marcha um dos maiores movimentos migratórios
internos do país (principalmente de mão-de-obra do Nordeste e Minas Gerais para a nascente
indústria de São Paulo). A mudança da capital para Brasília provocou um esvaziamento abrupto
da importância econômica do Rio de Janeiro e causou um desequilíbrio brutal no orçamento do
estado. No começo dos anos 1960, descontentes, os trabalhadores tomam as ruas, apoiados por
estudantes, professores e intelectuais, reivindicando amplas mudanças estruturais – no campo, a
luta é pela reforma agrária. Em 1964, amparados por setores conservadores da sociedade civil, e
patrocinados pelos Estados Unidos, os militares tomam à força o poder, instaurando um governo
autoritário, cujo saldo é a morte e desaparecimento de milhares de pessoas, a desorganização da
economia, o desmantelamento dos setores de saúde e educação, o aprofundamento do abismo
social, a corrupção.
(...)

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Geração 70
A partir de 1974, entusiasmados com os sinais de uma “abertura lenta, gradual e segura”, surgem
inúmeros jornais alternativos de circulação nacional (Opinião, Pasquim, Versus, Coojornal,
Movimento, Em Tempo), alguns dedicados a nichos específicos, como a afirmação homossexual
(Lampião da esquina, Chana com chana) ou racial (Jornegro), além de revistas dedicadas
exclusivamente à literatura (Ficção, José, Escrita, Inéditos, O Saco). A ficção vive, então, o chamado
“boom da década de 70”: uma enorme e diversificada produção de qualidade.
(...)
A ‘Década Perdida’
No final dos anos de 1970, a ditadura militar entra em agonia. Em 1978, o governo Geisel decreta
o fim do estado de exceção, abrindo caminho para a redemocratização. No ano seguinte, são
aprovadas as leis que instituem a anistia e o pluripartidarismo. Em 1984, o país inteiro se mobiliza
na campanha pelas Diretas-Já, mas a emenda não passa no Congresso Nacional. Tancredo Neves, o
candidato da oposição, vence a eleição indireta, mas morre antes de tomar posse, assumindo seu vice,
José Sarney. Os anos 1980 ficarão conhecidos como a “década perdida”: inflação descontrolada,
retração industrial, estagnação econômica, desemprego alto, aumento da dívida externa, déficit
fiscal. O movimento sindical, que renascera em fins da década de 1970, se fortalece e dá origem a
uma agremiação política, o Partido dos Trabalhadores, que será fundamental para os rumos que o
país tomará duas década depois.
No âmbito da literatura, apesar de a crise econômica ter quase inviabilizado o mercado editorial
(muitas editoras faliram) e gerado uma estagnação do cenário cultural, alguns importantes nomes
foram revelados. E se os anos 1970 foram domínio dos contistas, nos anos 1980 os romancistas
reinarão absolutos.
(...)
Os Anos 90
Ninguém imaginaria, no começo dos anos 1990, que aquela seria a década de transição de um
país assolado por crises institucionais (o presidente Fernando Collor, na iminência de sofrer um
impeachment, renuncia ao cargo em 1992) e econômicas (hiperinflação, confisco) para um país
democrático, com uma economia estável, diversificada e dinâmica. O mercado editorial, devagar,
retoma as apostas em autores nacionais, que voltam a atrair, ainda que timidamente, a simpatia
do público. E o conto, pouco a pouco, ganha espaço, dividindo eqüitativamente com o romance a
preferência de escritores e leitores.
A publicação da antologia Geração 90 – Manuscritos de computador, organizada por Nelson de
Oliveira, se tornará um marco não só do lançamento de uma jovem geração de escritores, mas
talvez principalmente de uma nova postura dos autores em relação ao mercado editorial. Acentua-
se uma tendência que vinha da década de 1970, de ausência de movimentos, correntes ou filiações
estéticas: cada um é sua própria escola. A paisagem urbana torna-se hegemônica e abarca agora
quase todas as regiões do país, embora Rio de Janeiro e São Paulo ainda se sobreponham como
cenário privilegiado. Evidencia-se ainda a ampliação do espaço das mulheres no campo literário,
não só como escritoras, mas também como profissionais nas casas editoriais.
(...)
In: Ruffato, Luiz. “Alguns apontamentos sobre a literatura brasileira contemporânea”. In: Conexões Itaú Cultural. 27/05/2013.
Disponível em: https://goo.gl/QkBDUc

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Unidade: Contemporaneidade - Intérpretes do Brasil

Nesse artigo, o autor dá continuidade a seu texto citando autores e obras de todas as épocas,
escrevendo um completo panorama literário brasileiro do século XXI. Vale a pena ler na íntegra
esse artigo.
Como exercício de análise literária e para nos aproximarmos e nos apropriarmos dessa prosa
contemporânea brasileira vamos conhecer um de seus expoentes: o escritor Milton Hatoum.

O autor Milton Hatoum


Milton Hatoum (1952) nasceu em Manaus, morou em Brasília, São Paulo, Madri, Barcelona
escreveu os romances Relato de um certo oriente (1989), Dois irmãos publicado em 2000,
Cinzas do norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008). Ganhou, com os dois primeiros livros
e com o último, o prêmio Jabuti e com o terceiro foi o vencedor do Prêmio Portugal Telecom,
entre outros. Publicou ainda A cidade ilhada (2009), um livro de contos, e Um solitário à
espreita (2013), um de crônicas.

Para saber mais sobre o autor, consultar a enciclopédia do Itaú Cultural, disponível em:
• https://goo.gl/XHGcEV
Ver: (entrevista sobre seu livro de crônicas: Um solitário à espreita e sobre a
palestra que ele falou sobre Graciliano Ramos).
Entrevista com Milton Hatoum, em Paraty, para Shin Oliva Suzuki: “Vídeo: na Flip,
Milton Hatoum (04/07/2013)”
• https://goo.gl/GqMYVq
Numa realização do Sesc SP, o projeto Sempre um Papo apresenta o escritor Milton
Hatoum para o debate e o lançamento do livro “Um Solitário à Espreita” (Cia das Letras).
• https://youtu.be/TnOZuLZbntI

Ler as entrevistas:
Milton Hatoum, um cronista à espreita
O escritor fala sobre seu novo livro com Mariana Marinho para a revista Cult
• https://goo.gl/BLcS7p
Milton Hatoum “O Amazonas preservou a floresta e destruiu a cidade”
6/5/2009 - Revista de História - uma entrevista esclarecedora sobre as experiências
do autor.
• https://goo.gl/QFeSF8
Consultar a página de Milton Hatoum na internet, principalmente o item notícias/ entrevistas.
• https://goo.gl/7C8qE1

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Sua Obra: Dois irmãos (2000)

A casa foi vendida com todas as lembranças


todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em vias de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis [...]
Carlos Drummond de Andrade
Hatoum, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.9.

Com essa epígrafe, percebemos que o autor anuncia uma tragédia, embora não saibamos
ainda qual. Há a sugestão de um fim de uma casa, com todas as histórias que ela traz e guarda.
O tom do romance é dado por essa epígrafe.

No capítulo inicial, ainda não o primeiro, a narrativa foca em Zana, uma personagem feminina
que está morrendo. Assim como a epígrafe, ela teve que deixar tudo. A casa é descrita com seus
cheiros, cores e pessoas que porventura um dia a habitaram. O espaço é denominado:

Zana teve que deixar tudo: o bairro portuário de Manaus, a rua em declive
sombreada por mangueiras centenárias, o lugar que para ela era quase tão vital
quanto a Biblos de sua infância: a pequena cidade no Líbano que ela recordava
em voz alta, vagando pelos aposentos empoeirados até se perder no quintal,
onde a copa da velha seringueira sombreava as palmeiras e o pomar cultivados
por mais de meio século. (HATOUM, 2000, p.11)

Nesse trecho, há confluências culturais: Manaus, Biblos - Brasil e Líbano, dois lugares
específicos: uma cidade portuária do norte do país, com suas mangueiras e seringais, e uma
pequena cidade no Líbano, de onde Zana veio. A memória é o fio condutor da narrativa,
entrecortada por segredos e por silêncios.

Na página seguinte, o narrador anuncia-SE: “Eu não a vi morrer, eu não quis vê-la morrer”.
Nesse trecho, percebemos que o narrador é próximo da personagem que está morrendo, a
matriarca, Zana; ao mesmo tempo, ele se distancia dela num momento íntimo, no momento
mais grave da existência humana: o momento da morte.

Nessa situação, vemos o narrador como alguém que conhecia e convivia com Zana, mas não
chegava a ser íntimo, ao menos não se sentiu confortável, nem responsável, em acompanhá-la
nesse momento da existência. Sendo assim, no “prólogo”, além de tomarmos consciência da
morte de Zana e da casa onde viveu, também é abarcada uma questão da existência dessa
personagem e da narrativa, não a única, porém fundadora de lastros, quando ela diz, “em
árabe para que só a filha e a amiga quase centenária entendessem (e para que ela mesma não
se traísse): ‘Meus filhos já fizeram as pazes?’” (HATOUM: 2000, p.12).

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Unidade: Contemporaneidade - Intérpretes do Brasil

Anuncia-se um dos nós do enredo: a rivalidade entre os


irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, o caçula. Com essa trama,
sociado
n o m e está as
o autor invoca a história ancestral de Esaú e Jacó, os irmãos
Rebec a : o íblica, e
r s o nagem b
bíblicos gêmeos. De acordo com a tradição judaica da época, a ess a p e mulher
a s ig nificar “ ativa
passo u que c
a beleza
apenas o irmão varão e mais velho tinha direito à herança
com um ns. Assim
paterna, portanto Esaú era o filho herdeiro, mesmo que por e ) os ho e
m
(ou p r e n d ou seu
n a , que cativ e
poucas horas antecedera a Jacó. Porém, o mais novo, assim como Z a esde qu
id o , H alim, d z , n o
mar ve
como o enredo da nossa história, era o preferido da mãe,
p e la primeira ib lo s ”,
Rebeca, na antiga história e Zana, em Dois irmãos. Para a viu do pai
“B
u r a n t e
resta ulo 2.
no capít
passar a perna no primogênito, Rebeca enganou seu marido, narrado
Isaque, que abençoou Jacó pensando que era Esaú, com
isso a rivalidade dos irmãos aumentou.

Outra coincidência, que comprova a intertextualidade mesmo que imbricada entre as duas
histórias, é em relação ao nome Yaqub, em árabe, é a tradução de Jacó, hebraico. Enquanto
Omar refere-se à personagem bíblica, filho de Elifaz, neto de Esaú. Portanto há uma inversão:
Jacó, o preferido de Rebeca e Omar, o preferido de Zana. Yaqub é o gêmeo mais velho e traz o
nome do mais novo na história bíblica, enquanto o nome, Omar, faz referência à descendência
do filho primogênito de Isaque, Esaú.

Podemos citar também o romance de Machado de Assis, Esaú e Jacó, como outra relação
literária. História de dois irmãos gêmeos, Pedro e Paulo, marcados pela rivalidade: dividiram
o amor da mesma mulher, além de discordarem na política, enquanto um era republicano, o
outro era monarquista. A intertextualidade provoca uma leitura mais abrangente, inserimos
essas outras histórias e interpretações delas na mais contemporânea, sabendo que o autor leva
em consideração essas outras narrativas mais antigas.

A partir dessa constatação, podemos ler Dois irmãos pelo viés da tragédia, destino anun-
ciado e preconizado, cujos homens são sacrificados ao tentar se rebelar contra as forças de seu
destino. Por outro lado, o autor atualiza o mito dos gêmeos rivais. De acordo com estudos sobre
a tragédia, a partir dela, surgem novos caminhos para uma nova sociedade, com nova dimen-
são individual. Ou seja, tanto Yaqub quanto Omar estavam presos a seu destino, assim como
toda a família, porque não havia nenhuma consciência e aceitação deles mesmos. São, pois,
personagens que pertencem ao mito anunciado.

No primeiro capítulo, encontramos Yaqub voltando do Líbano, quando seu pai foi buscá-lo
no Rio de Janeiro:

Yaqub partiu para o Líbano com os amigos do pai e regressou a Manaus cinco
anos depois. Sozinho. “Um rude, um pastor, um ra’í. Olha como o meu filho
come”, lamentava-se Zana.
Ela tentou esquecer a cicatriz do filho, mas a distância trazia para mais perto
ainda o rosto de Yakub.
(HATOUM, 2000. p.29)

Yaqub tinha sido mandado para o Líbano por causa de uma briga entre os irmãos que
resultou na cicatriz no rosto do mais velho.

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As narrativas no livro não seguem uma ordem linear, os acontecimentos são permeados por
flashbacks. A história da cicatriz é retomada, assim como cada um dos gêmeos é caracterizado:

Quando chovia, os dois trepavam na seringueira do quintal da casa, e o Caçula


trepava mais alto, se arriscava, mangava do irmão, que se equilibrava no meio
da árvore, escondido na folhagem, agarrado ao galho mais grosso, tremendo de
medo, temendo perder o equilíbrio. A voz de Omar, o Caçula: “Daqui de cima
eu posso enxergar tudo, sobe, sobe”. Yakub não se mexia, nem olhava para
o alto: descia com gestos meticulosos e esperava o irmão, sempre o esperava,
não gostava de ser repreendido sozinho. Detestava os ralhos de Zana quando
fugiam nas manhãs de chuva torrencial e o Caçula, só de calção, enlameado, se
atirava no igarapé perto do presídio. (...)
(HATOUM, 2000, p.17)

O narrador apresenta os dois irmãos através das atitudes deles na infância, antes da cicatriz,
antes da decisão de mandarem Yaqub para o Líbano. Enquanto o Caçula parecia mais
destemido, ousado, Yaqub era mais introspectivo, ou menos audacioso, mas a tensão começa
a ser delineada.
O centro da discórdia acontece no último baile no casarão dos Benemou e foi por causa
de Lívia. Yaqub queria ficar no primeiro baile de Carnaval, na festa dos adultos, quando Zana
lhe ordenou para acompanhar Rânia, sua irmã, até a casa. Quando ele volta, vê seu irmão
dançando com Lívia num canto da sala. “Yaqub ensombreceu”, foi embora, não conseguiu
dormir naquela noite. Ele contou a Domingas, uma cunhantã órfã que chegou ainda pequena
para trabalhar na casa de Zana e de Halim. Era batizada, segundo a religião cristã - marca da
influência dos povos colonizadores da região - e alfabetizada.
No capítulo 4, o narrador conta a versão de Domingas da sua “adoção” por parte de Zana,
de como ficou órfã e entregue às freiras.
Uns dias depois daquela noite de Carnaval, aconteceu a briga que resultou na cicatriz de Yakub:

Uma pane no gerador apagou as imagens, alguém abriu uma janela e


a plateia viu os lábios de Lívia grudados no rosto de Yakub. Depois,
o barulho de cadeiras atiradas no chão e o estouro de uma garrafa
estilhaçada, e a estocada certeira, rápida e furiosa do Caçula. (...). O
Caçula, apoiado na parede branca, ofegava, o caco de vidro escuro na
mão direita, o olhar aceso no rosto ensanguentado do irmão.
(HATOUM, 2000, p.28)

Depois disso, Halim decidiu pela viagem, a separação. Queria que os dois viajassem para o
Líbano, mas Zana o convenceu a mandar só Yakub.
O narrador continua a sua história, mistura das várias vozes que lhe falavam. Assim se delineia
outro drama, quem é esse narrador? Participa, mas está meio alheio, parece que vislumbra pelas
frestas, e ele tem retalhos de sua própria história, pois não sabe quem é seu pai.

Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi,
porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às vezes
distante. Mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o
lance final. (HATOUM, 2000, p.29)

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Unidade: Contemporaneidade - Intérpretes do Brasil

Domingas é a mãe do narrador Nael que é nomeado apenas no capítulo 9, já no final do


livro. Ele sempre se refere a ela como Domingas. Só a citava como mãe quando se envolvia
emocionalmente com o acontecimento. Halim foi quem deu a Nael o mesmo nome de seu pai.
Só nesse momento o leitor compreende que a história é transmitida por um narrador que
olha de viés para os acontecimentos, com uma visão privilegiada. De certa maneira, ele não
está envolvido diretamente, embora seja o herdeiro do nome e o único neto. Essas são questões
fundamentais para a tragédia anunciada no início da narrativa.

“Quando tu nasceste”, ela disse, “seu Halim me ajudou, não quis me tirar da
casa...Me prometeu que ias estudar. Tu eras neto dele, não ia te deixar na rua.
Ele foi ao teu batismo, só ele me acompanhou. E ainda me pediu para escolher
teu nome. Nael, ele me disse, o nome do pai dele. Eu achava um nome estranho,
mas ele queria muito, eu deixei... Seu Halim. (HATOUM, 2000, p.241)

(...) Rânia significava muito mais do que eu, porém menos do que os gêmeos.
Por exemplo: eu dormia num quartinho construído no quintal, fora dos limites
da casa. Rânia dormia num pequeno aposento, só que no andar superior. Os
gêmeos dormiam em quartos semelhantes e contíguos, com a mesma mobília,
e ambos estudavam no colégio dos padres. Era um privilégio; era também um
transtorno. (HATOUM, 2000, p.30).

Na casa, o lugar de Nael, o narrador, era o quarto no quintal, estava fora da casa, o que o
possibilitou a ter essa visão privilegiada e conseguir sair da tragédia anunciada, porque assim ele
quis e não compactuou mais com o destino de ser “filho de não sei que pai”. Rânia, a terceira
filha, tinha um lugar menor, menos privilegiado do que os gêmeos. Mas foi ela quem levou e
manteve os negócios familiares.

Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A
origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos
meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal
de origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto,
até que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos
era meu pai. Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me
cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade.
Eu sofria com o silêncio dela; (...). Quando eu fazia a pergunta, seu olhar logo
me silenciava, e eram olhos tristes. (HATOUM, 2000, p.73).

A imagem do barco nos remete a Moisés, aquele que foi encontrado nas águas, que
desconhecia sua origem. Nael renunciou, abdicou da filiação, construiu sua identidade a partir
das duas pessoas que se tornaram referências para ele: o avô e a mãe. “Me distanciei do mundo
das mercadorias, que não era o meu, nunca tinha sido”. (HATOUM, 2000, p.262). “Mas bem
antes de sua morte [de Yakub], há uns cinco ou seis anos, a vontade de me distanciar dos dois
irmãos foi muito mais forte do que essas lembranças”. (Idem p.263). É o que leva o narrador a
assumir sua identidade, sua própria narrativa.
Nael recebe como herança um quadrado no quintal, é o único que mantém a história e a
escreve, porém livre da tragédia que engoliu a todos, inclusive a casa: “Zelar por essa natureza
significava uma submissão ao passado, a um tempo que morria dentro de mim”. (HATOUM,
2000, p.265). Por um lado, ele deixa a casa, vai viver sua vida, se liberta dessa história, e, por
outro, é o herdeiro - o que permanece e escreve, narra a tragédia familiar.

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Juliane Vargas Welter, em A terceira margem (ou a vingança de Nael): aspectos do
romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, conclui:

Além de fruto de confluências culturais, o bastardo que vem a romper a


linearidade, vejo Noel como um sobrevivente daquela família. (...). Nael é
aquele que sobreviveu à derrocada da família, o filho sem origem, que funda
uma nova era: ele é a continuação genética da família. É o que sobra daquele
mundo. A figura do sobrevivente costuma aparecer no período de mudanças, na
superação das adversidades. Pensando em Nael como encontro de duas culturas
majoritárias no seu habitat, a ideia de sobrevivente vem a calhar na medida em
que sendo ele alguém sem identidade, e com várias culturas à disposição, ele
sobrevive aos percalços da vida, e forma a sua identidade, associando o que
de melhor encontra nos dois mundos: Domingas e Halim [indígena e árabe],
sobrevivendo à degradação da família.
Disponível em: https://goo.gl/QEp4xT (p.39)

Nael é aquele que sobreviveu à tragédia porque se destacou daquela família, escolhendo o
afastamento e a escrita, que só conseguiu começar depois de passado muito tempo da morte
da mãe, juntando os pedaços das narrativas que recolhia.

Considerações Finais
Nessa unidade, percorremos a romance contemporâneo Dois irmãos de Milton Hatoum.
Em nossa análise, notamos a complexidade de uma história que se quer tragédia no sentido
clássico desse termo. Além da rivalidade entre os irmãos, o romance elabora o drama do
narrador em querer saber suas origens e que, ao se desprender dessa problemática, conquista
a palavra, a narrativa.
Esse narrador, que só é nomeado no capítulo 9, quase ao final do livro, passa a contar a
história da família. Para isso, ele recorre a suas lembranças e às vozes principalmente de Halim
e de Domingas, seu ave e sua mãe, o árabe e a indígena, intercalando escolhas, e montando
a colcha de retalhos a partir de fiapos narrados por ela. Nael sempre esteve à escuta, como
se esperasse a oportunidade de as palavras aparecerem, de saírem de seu estado latente e
incendiarem o desejo de contar passagens que o tempo dissipou.
A intertextualidade presente no texto recupera tanto o mito bíblico, de Esaú e Jacó, quanto o
romance homônimo de Machado de Assis.
A literatura contemporânea brasileira traz essa diversidade de narrativas e de estilos. A
cada nova história irrompemos em um universo inesperado, a escrita passa a ser a principal
protagonista de cada obra. Tivemos, nessa unidade, a oportunidade de vasculhar uma das
grandes obras desse universo contemporâneo da literatura brasileira em prosa.

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Unidade: Contemporaneidade - Intérpretes do Brasil

Material Complementar

Para complementar seu conhecimento sobre o assunto, além da insistência para que leia
Dois irmãos na íntegra, ressaltamos a importância de conhecer o material disponibilizado
sobre o autor no site do autor. Estão previstas tanto a estreia de filmes baseados em obras de
Milton Hatoum quanto uma série que será transmitida pela TV Globo do livro Dois irmãos.
No site do autor, há inúmeras sugestões, entrevistas e teses sobre obras dele. Recomendamos
uma entrevista que o autor concedeu para o Sesc Vila Mariana para o programa “Sempre um
papo”. Disponível em:
• https://youtu.be/TnOZuLZbntI
E não deixe de acessar o site de Milton Hatoum em:
• https://goo.gl/nJ1k6T

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Referências

HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

PEREIRA, Helena Bonito; LOPONDO, Lilian. Apresentação. In: PEREIRA, Helena Bonito (org.).
Novas leituras da ficção brasileira no século XXI. São Paulo: Universidade Presbiteriana
Mackenzie, 2011. p. 17-30.

PEREIRA, Helena Bonito. Breves apontamentos para a história literária brasileira. In: ______.
Novas leituras da ficção brasileira no século XXI. São Paulo: Universidade Presbiteriana
Mackenzie, 2011. p. 31-47.

RESENDE, Beatriz. A literatura brasileira na era da multiplicidade. In: ______. Contemporâneos:


expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra:
Biblioteca Nacional, 2008. p. 15-40

RUFFATO, Luiz. Alguns apontamentos sobre a literatura brasileira contemporânea.


Disponível em: http://conexoesitaucultural.org.br/biblioteca/alguns-apontamentos-sobre-a-
literatura-brasileira-contemporanea/

SCHØLLHAMMER, Karl Eric. Que significa literatura contemporânea? In: ______. Ficção
brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 9-51.

SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária - polêmicas, diários & retratos. Belo
Horizonte: UFMG, 2004.

WELTER, Juliane Vargas. A terceira margem (ou a vingança de Nael): aspectos do


romance Dois irmãos, de Milton Hatoum. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/
bitstream/handle/10183/17523/000714985.pdf?sequence=1

Referências Bibliográficas (disponível para consulta)


Alves, Cristiane da Silva. Algumas (breves) considerações sobre literatura brasileira
contemporânea. Disponível em: http://www.wwlivros.com.br/IIjornadaestlit/artigos/port_bras/
ALVESCristiane.pdf

E-Dicionário de Termos Literários, Carlos Ceia: http://www.edtl.com.pt.

http://www.miltonhatoum.com.br/categoria/sobre-autor/noticias-entrevistas/page/3

Site da revista Cult - http://revistacult.uol.com.br/home/2013/07/milton-hatoum-um-


cronista-a-espreita/

Site da revista de História - http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/milton-hatoum

Site do Itaú Cultural – http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa7721/milton-hatoum

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Unidade: Contemporaneidade - Intérpretes do Brasil

Anotações

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