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CIDADES

REVISTA CIENTÍFICA
VOLUME 11 - NÚMERO 19 - 2014

EQUIPE EDITORIAL

Coordenação Editorial
Silvana Maria Pintaudi - UNESP/RC

Editores deste número temático


Carlos Tapia
Manoel Rodrigues Alves

Comissão Editorial
Grupo de Estudos Urbanos (GEU)
Ana Fani Alessandri Carlos – USP
Jan Bitoun - UFPE
Marcelo Lopes de Souza - UFRJ
Maria Encarnação Beltrão Spodito - UNESP/PP
Mauricio de Almeida Abreu - UFRJ (in memoriam)
Pedro de Almeida Vasconcelos - UFBA
Roberto Lobato Corrêa - UFRJ
Silvana Maria Pintaudi - UNESP/RC

Conselho Científico
Amélia Luisa Damiani - USP
Ana Clara Torres Ribeiro - UFRJ (in memorian)
Arlete Moysés Rodrigues - UNICAMP
Carles Carreras - Universitat de Barcelona
Horacio Capel - Universitat de Barcelona
José Alberto Rio Fernandes - Universidade do Porto
José Aldemir de Oliveira - UFAM
José Borzachiello da Silva - UFC
Leila Christina Dias - UFSC
Maria Adélia Aparecida de Souza - USP
Odette Carvalho de Lima Seabra - USP
Paulo César da Costa Gomes - UFRJ
Suzana Pasternak - USP

Secretaria
Carlos Henrique Costa da Silva
César Simoni Santos
Isabel Pinto Alvarez

Apoio
André Felipe Vilas de Castro

Capa
Murilo Arruda

Revisão de língua portuguesa


Maria Inêz Fonseca

Revisão de língua espanhola


Carlos Tapia
Conferência da revisão
Caroline Christine
Laura Adami Nogueira
Luiana Cardozo
Maíra Cristo Daitx
Manoel Rodrigues Alves
Silvana Maria Pintaudi
Talita Heleodoro
Veruska Bichuette

Normalização bibliográfica
Laura Adami Nogueira
Luiana Cardozo

Sistema eletrônico de editoração de revistas


Paulo Fernando Jurado da Silva

Projeto gráfico e diagramação


Pró-Salas

Revisão
Talita Heleodoro
Veruska Bichuette

Impressão gráfica
Suprema Gráfica

Tiragem
300 exemplares

Publicação semestral sob responsabilidade do Grupo de Estudos Urbanos - GEU


Avenida Professor Lineo Prestes, 338
São Paulo, SP, Brasil. CEP: 05508-000
(Correspondência postal aos cuidados de Silvana Maria Pintaudi e-mail: smpintaudi@gmail.com)

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Informações e envio de textos: cidadesrevista@gmail.com

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CIDADES: Revista científica/ Grupo de Estudos Urbanos - Vol. 1, n. 1, 2004 -


São Paulo: Grupo de Estudos Urbanos, 2004 -
v. 11., n. 19; 21cm., il.

Semestral
2014, v. 11, n. 19
ISSN 1679-3625

I. Grupo de Estudos Urbanos

CDD (18.ed): 910.13


CDU: 911.3

Suprema Gráfica e Editora


São Carlos/SP. (16) 3368-3329
suprema@supremagrafica.com.br
S arlos M
Cilvana aria ePM
Tapia anoel Rodrigues Alves
intaudi

palavras do editor
06
silvana maria pintaudi

prólogo
10
carlos tapia e manoel rodrigues alves

texto 01
44 el fetichismo del espacio público: multitudes y ciudadanismo a principios del siglo xxi
manuel delgado

texto 02
80 aproximación a los procesos socioespaciales en las ciudades contemporáneas: espacio
público y vida política
mariano pérez humanes

texto 03
130 la producción contradictoria del espacio urbano y las luchas por derechos
ana fani alessandri carlos

texto 04
164 neoliberalismo y vida cotidiana en los márgenes urbanos
núria benach rovira

texto 05
196 urbanismo participativo o urbanismo democrático. crisis y crítica.
jorge minguet medina

texto 06
234 o programa minha casa minha vida entidades: provisão de moradia no avesso da
cidade?
cibele saliba rizek
procesos extremos na constituição da cidade

texto 07
266 a plasticidade da metrópole de são paulo: reprodução do espaço, financeirização
e propriedade de terra
isabel aparecida pinto alvarez

texto 08
296 crise urbana: a expropriação extrema dos citadinos nas políticas de espaço
fabiana valdoski ribeiro

Cidades Volume 11 Número 19


Pumário
Srólogo do Editor
alavras

texto 09
332 transformaciones del espacio urbano, consideraciones para una metodología de
aproximación
carmen guerra de hoyos

texto 10
382 contraespacios públicos. procesos y miradas desde oriente
marta lópez-marcos

texto 11
426 procesos extremos y emergentes: un marco descriptivo y visual de las ciudades
contemporáneas.
natália de carli, simona pecoraio e carolina prieto de la viesca

texto 12
470 transformações culturais e contradições urbanas do espaço público
contemporâneo
manoel rodrigues alves

texto 13
498 procesos extremos en las ciudades argentinas en las últimas décadas
julio arroyo

texto 14
550 relatos de lo extremo: acuerdos entre sueños y despertares de ciudad futura
carlos tapia
P

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Manoel Rodrigues Alves

Manoel Rodrigues Alves. Professor do Instituto de


Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
(IAU-USP). Professor convidado pós-graduação: ‘Ciudad y
Arquitectura Sostenibles’, ETSA-US, Espanha; ‘Ciudades,
Arquitectura y Espacios Públicos’, FADU-UNL, Argentina. Líder
de grupos de pesquisa e conferencista convidado em institu-
ições de ensino brasileiras e estrangeiras. Foco de pesquisa em
processos de conformação e configuração da cidade contem-
porânea, em particular na (re)significação da noção de espaço
público.
texto 12
Manoel Rodrigues Alves

TRANSFORMAÇÕES a relação de pertencimento


CULTURAIS E ao espaço urbano é reconfig-
CONTRADIÇÕES URBANAS urada, ao mesmo tempo em
DO ESPAÇO PÚBLICO que reconfigura a produção
CONTEMPORÂNEO do espaço público – trans-
formações essas que apon-
tam não apenas para a intru-
manoel rodrigues alves mentalização do espaço mas
(universidade de são paulo, também a redução de seu
são carlos, brasil) valor público. Num contexto
cada vez mais hegemônico de
mra@sc.usp.br
financeirização da cidade, este
artigo investiga transversali-
RESUMO dades e tangências do espaço
No momento em que público contemporâneo e,
a cidade conforma suas mu- tensionando seus referenciais
danças sob uma amplo es- teóricos, argumenta por práti-
pectro de forças econômicas, cas urbanas que superem lim-
políticas e sociais, quais as ites e tematizações propondo
procesos extremos na constituição da cidade

condições de produção do uma noção particular de hid-


espaço público? Em uma ci- ridação. No momento de uma
dade contemporânea situada sociedade que deseja “tudo
em período de transição e re- a todo o momento” nossa
definição de seus paradigmas, hipótese é de que ideologias

472

Cidades Volume 11 Número 19


Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

urbanas contemporâneas pro- ABSTRACT


movem progressivamente, Once a product and
na construção de formas ur- reproducer of the dynamics
banas, simulacros de espaços

12
that guide its time, cities are
públicos; nossa aposta, no es- prone to change under a mul-
paço público enquanto o locus, titude of forces ranging from
o contexto de mediação por economic, political and social
meio do qual as identidades
factors. In this context, under
sociais, práticas e as imagens
what conditions public space
socioespaciais podem ser cri-
is produced? The contempo-
adas e contestadas, como o
rary city points towards an era
espaço do estranhamento, o
of transition in which the rela-
outro espaço que, justaposto
tion of belonging (and/or ex-
ao espaço instituído, contém o
caráter do conflito, da ação, da periencing) to the urban space
contestação na construçãode (re)configures the production
formas urbanas. of public space – transforma-
tions that may lead not only
PALAVRAS CHAVES to the instrumentalization of
Espaço público. space but also to the reduc-
Cidade contemporânea. tion of its ‘public’ value. In this
Espacialidade urbana. context, we investigate trans-
Transversalidades. Processos versalities and tangencies
extremos. to the contemporary public

473

Cidades Volume 11 Número 19


Manoel Rodrigues Alves

space, aiming at forms of ap- No momento em que o


propriation that promote ur- espaço urbano se constitui em
ban practices beyond its ‘regu- chave do intercâmbio de bens,
lar’ limits, combining itself into pessoas e informações sobre
new hybrid patterns (hybrid o território, de uma socieda-
processes not only from the de contemporânea que deseja
point of view of its produc- “tudo a todo o momento”, e
tion, but also from the point of em que a esfera pública urba-
view of its reception and con- na responde mais a setores de
tinuous elaboration). In the ur- mercado e códigos da mídia
ban environment of a society que à complexa articulação
that “wants everything at all dos usos cotidianos da vida
times”, we bring the hypoth- urbana quais as possibilidades
esis that contemporary urban de produção do espaço públi-
ideologies are, in fact, progres- co contemporâneo?
sively promoting simulacra of Numa cidade que res-
public spaces in the social con- ponde a parâmetros próprios
struction of urban forms. de uma época de transição,
procesos extremos na constituição da cidade

para muitos em ‘crise’¹, de


KEYWORDS
uma cidade caracterizada
Public space. Contemporary
por um espaço entremeado
city. Urban spatiality.
de elementos textuais e não
Transversalities. Extreme pro-
textuais, morfológicos e não
cesses.
474

Cidades Volume 11 Número 19


Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

morfológicos, que interro- e espaciais do espaço urba-


gam as interpretações, os no, em particular do espaço
modos de produção, uso e público³, para além de associar
apropriação da paisagem ur- temporalmente a evolução da

12
bana, observa-se um urbano 2 Contemporâneo, ponto de inflex-
constituído por textualidades ão que instala uma relação especial
entre os tempos passado e futuro,
e morfologias inéditas que que recusa conceptualizações de
operam em um contexto so- tempo efêmero e cíclico do mun-
do antigo bem como ultrapassar o
ciocultural diferenciado, con- mundo moderno (Agamben, 2002).
formando microgeografias de O contemporâneo não se constitui
enquanto ideologia de época huma-
um cotidiano denso de novas na, ou de uma fase do conhecimen-
conformações e formas de to, por isso, e, no entanto, sempre
existiu. No contemporâneo perma-
apropriação. necemos em uma zona que não é
plenamente inteligível, pois bus-
Processos extre- camos luzes do seu entendimento
mos de produção da cidade ao mesmo tempo em que estamos
inseridos em seu sistema entrópico
contemporânea², ao contra- e rizomático, abertos a conectar de
porem dimensões políticas maneira contingente elementos que
se relacionam por sua diferença, e
não por sua similaridade, em pro-
1 A própria noção de cidade é hoje cessos híbridos (ver nota 10) que
questionada, interrogada, tensiona- produzem heterogeneidade, mul-
da em um momento de transição, de tiplicidade e rupturas. Para Morin,
um novo paradigma em construção. uma abordagem contemporânea
Crises ou emergências são, a nosso não deve ter raízes na tradição do
ver, conjunturas que nos servirão pensamento moderno, mas sim con-
para colocar à prova a relação da so- stituir-se enquanto forma distinta
ciedade e da cultura com o espaço de observar a vida social, dinâmica e
urbano contemporâneo. complexa (Morin, 2011).
475

Cidades Volume 11 Número 19


Manoel Rodrigues Alves

cidade3 a diferentes etapas do Cacciari4, há quase tantas de-


desenvolvimento da moderni- nominações para nomear a ci-
dade, desafiam e aportam no- dade contemporânea como as
vas interrogantes na relação que se buscam para descrever
entre morfologias urbanas, a época em que vivemos - so-
tecidos sociais, comportamen- bremodernidade, pósmoder-
tos e construções conceituais. nidade, hipermodernidade,
Da cidade a metrópolis, megá- modernidade líquida, entre
polis ou a pós-metrópole de outras. Pardo aponta que
“[…] a pluralida-
de desse tipo de fórmulas
3 Refiro-me a espaços públicos ur-
sucessivas e alternativas,
banos, construídos, concretos,
rapidamente sem dúvi-
compreendendo a reflexão sobre
os distintos processos que os condi-
da esgotadas (como as
cionam e conformam, como a noção `neo-´, as `post-´, as `mi-
de cyburg (Cuff, 2003) e as transfor- cro-´, as `ultra-´, as `intra-´,
mações decorrentes de impactos de as `trans-´, as `tele-´, as
tecnologias da informação, mas não 4 Para Cacciari, a pós-metropóle da
o cyberspace e os assim chamados identidade entre a cidade e o terri-
‘espaços virtuais’ na conformação tório, em que o território que habita-
de uma nova polis, de uma nova es- mos dissocia-se da noção espacial
fera pública de manifestação política de cidade. “O que habitamos hoje, se
procesos extremos na constituição da cidade

dos cidadãos. As tipologias urbanas, perguntam os teóricos mais perspica-


as normas e práticas do urbanismo zes. Habitamos cidades? Não, habita-
e do planejamento, as propostas de mos territórios [...] Habitamos terri-
distinção entre o público e o priva- tórios indefinidos em que as funções
do, não são mais suficientes para se distribuem em seu interior, mais
responder adequadamente aos além de qualquer lógica que as pro-
eventos de cidade(s) de paradigmas grame, mais além de qualquer urban-
instabilizados e territorialidades di- ismo”. (Cacciari, 2011:41). Tradução
fusas e indeterminadas. do autor.
476

Cidades Volume 11 Número 19


Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

`tardo-´, etc.), pode ter A consciência de nossa


que ver com uma certa
complexa relação com o pas-
impossibilidade e uma
certa impotencia dos tem- sado, inequivocamente ligada
pos modernos para pas- a experiência moderna, não é

12
sar, para deixar passar a
outros tempos que não apenas uma questão tempo-
sejam modernos. Isso é o ral,mas sim também um pro-
que significaria esse rápi-
do desgaste, esses inten-
blema espacial, posto que por
tos de passar. Mas, por detrás desse estranhamento,
outro lado, o fato de que que descreve Pardo, se entrin-
os intentos se multipli-
quem e os rótulos aflorem cheram diferenças sociais e
um após outro também locais. Além disso, a busca in-
deve expressar, de certo
modo, o angustiado dese- cessante de nomear de modo
jo dos homens modernos específico cada variação do
de assistir ao final de nos-
modelo no espaço e no tem-
sos tempos e de inaugurar
uma nova época em que, po, como também a incerteza
de certo modo, esses pre- sobre o destino para o qual
fixos buscam [....] criar
constantemente novos ró- nos encaminhamos são carac-
tulos com a esperançaa de terísticas inevitáveis da cons-
que dessa vez o novo ró-
tulo tenha exito e de ver- ciência moderna que tenta ra-
dade anticipe ou adiante cionalizar seu posicionamento
um tempo que já não seja em relação ao passado como
exatamente um tempo
moderno.”5 meio de certificar a distancia
com respeito ao mesmo.
5 (Pardo, 2011: 354-355). Tradução do
autor.
477

Cidades Volume 11 Número 19


Manoel Rodrigues Alves

Para Pardo, é o cresci- cidade possa fazer frente


mento incessante dessa dis- a seus desafios de futuro
e, sem dúvida, todavia
tancia entre passado e presen- não terminou de insta-
te o que nos produz a certeza lar-se o novo paradigma,
de nossa modernidade, e a esse que tornará a cidade
finalmente apta para uma
experiencia do passado como
supervivência ágil e eficaz
algo que não mais podemos em um mundo que estará
ressuscitar6. Em relação a ci- completamente transfor-
dade contemporânea afirma mado.”7

“Não poderia
ser que isso de estarmos DO ESPAÇO URBANO
transitando para um novo
Fala-se de uma outra
paradigma seja o emble-
ma genuíno de uma das cidade, de “novas” formas de
principais experiências da produção do urbano, de seu
modernidade, a experiên-
6 “Ao contrário: nossa experiência
cia da transição, a expe- do tempo moderno é constan-
riência da transformação temente a experiência de uns tempos
[....] porque, de alguma antigos que já não podemos recuper-
maneira, estamos instala- ar, que já não podemos restaurar, que
dos permanentemente na já não podemos ressuscitar, mas que
procesos extremos na constituição da cidade

enquanto tais, quer dizer, enquanto


transição? [....] O que nos
perdidos, enquanto irrecuperáveis,
está sucedendo é que o estão preservados em sua propia per-
paradigma em virtude do dição e em sua própria irrecuperabili-
qual se construiu a cidade dade e permanecen agarrados a nossa
em sua configuração ante- experiência do tempo”. (Pardo, 2011:
rior já é um paradigma an- 362). Tradução do autor.
7 (Pardo, 2011: 355-357). Tradução do
tiquado e inútil para que a
autor.
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Cidades Volume 11 Número 19


Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

empresariamento, mas em re- requalificam o espaço urbano


lação ao que? Que parâmetros e o tornam centro de disputas,
empíricos ou temporais, que tanto para a consolidação de
processos de urbanização, que identidades distintas quanto

12
mecanismos de cooptação e para a reivindicação da visibi-
que circuitos de circulação de lidade pública das diferenças
capital se inserem nesse “nova (do reconhecimento político
cidade, nesse novo urbano”? do diferente). Mas em que
O que de fato é novo? Trata-se
efetivamente de novas formas do ambiente público, por meio da
capacidade de intercâmbio e de
de produção da cidade, ou fa- comunicação imbuída no mesmo,
lamos do aprofundamento de como a experiência e prática que se
consubstancia em três dimensões:
práticas historicamente alicer- fenomenológica, o reconhecimento
çadas em nossa sociedade? do Outro a partir da sua presença
em nosso campo de percepção; co-
Urbanidades8 municativa, a cidade e seus espaços
como o loci do convívio urbano e
8 Urbano: fenômeno produzido por meio da comunicação; e ontológica,
uma sociedade urbana, processo produzida na relação entre práticas
inacabado e contínuo. Urbanidade, e espaços da cidade como dados
conceito múltiplo e complementar, estruturantes da realidade materi-
própria do contexto urbano e carac- al (Netto, 2012); para Alves, revela
terizada como fenômeno produzido características definidoras do espaço
na relação entre o social e o espacial urbano, uma vez que o deslizamen-
que se manifesta no modo como as to das atividades cívicas em direção
pessoas se relacionam com o espaço aos espaços privados coletivos pro-
e sua organização (Aguiar, 2012); movem, potencialmente, um espaço
qualificação vinculada à dinâmica urbano fragmentário e transformam
das experiências existenciais conferi- a relação público/privado. (Alves,
das às pessoas pelo uso que fazem 2010).
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Cidades Volume 11 Número 19


Manoel Rodrigues Alves

termos? Submetida, ou con- naturalização, uma vez que


dicionada, a que processos? naturalmente incorporados ao
A que extremos? Mesmo que imaginário urbano e, portan-
os atuais processos hegemô- to, não referentes a processos
nicos de produção do espaço que se vivenciem inadvertida-
urbano não sejam necessaria- mente na vida cotidiana.
mente novos, eles apresen- Além disso, no cenário
tam, ao menos, dois aspectos atual de dissolução de expe-
imediatamente passíveis de riências, espacialidades e terri-
serem caracterizadas como torialidades replicam-se como
extremos, como inéditos: sua acidentais, contingenciais,
extensão, tanto no sentido de híbridas10, relativas e sincréti-
sua amplitude quanto no do cas. É nesse mesmo cenário,
tensionamento de seus limites constituído por um conjunto
- por exemplo, em relação a de práticas urbanas que se ex-
processos de empresariamen- trapolam para além de seus
to da cidade e de governan- campos e limites, combinan-
ça do espaço urbano9; e sua do-se em novos padrões, que
procesos extremos na constituição da cidade

9 Para Laval e Dardot, uma nova se observa significativa trans-


“razão do mundo” de uma racion-
alidade neoliberal naturalizada, não formação da paisagem urbana
apenas como razão econômica da
10 Hibridações, hibridizações, na re-
cidade-empresa, mas também como
padrão do modo de vida em que se alidade processos híbridos enquanto
enuncia o empresariamento de to- questão a ser pensada não apenas
das as esferas – governos, institu- do ponto de vista de sua produção,
ições e relações sociais, e individuais mas do ponto de vista de sua re-
de si (Laval e Dardot, 2013). cepção e contínua elaboração.
480

Cidades Volume 11 Número 19


Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

em mercadoria para consumo o impacto de políticas neoli-


imediato. Assistimos aos ex- berais e de modelos mundia-
cessos, reduções e equívocos lizados de propostas urbanas.
de um urbanismo que, ainda Nela (cidade), é perceptível

12
que com uma nova roupagem, uma espacialidade do ócio e
permanece promovendo a do consumo, de modelos e
segregação funcional e so- padrões de produção de um
cioespacial, bem como pauta meio urbano para ser visitado
a “sustentabilidade” do meio intensivamente, produtora de
ambiente urbano na definição paisagens a-territoriais defini-
de uma nova mercadoria de das pela espacialização econô-
consumo: a cidade contempo- mica e funcional do território
rânea. – paisagens que não guardam
Nessa cidade – a pós-ci- relação com a geografia cultu-
dade da superabundância para ral local e com a permanência
Augè11 –, a noção de consumo do tecido urbano12.
é estrutural para a compreen- Constata-se uma rees-
são de sua própria lógica de truturação produtiva do es-
produção e não apenas de no- paço urbano que, no bojo do
vas espacialidades. Processos processo de mundialização,
de produção do espaço urba- se estende espacial e social-
no e de conformação de sua mente por meio de uma nova
paisagem constituem-se sob 12 As cidades ageográficas de Sorkin
(Sorkin, 1997) e as paisagens urba-
11 (Augè, 1994) nais de Muñoz (Muñoz, 2008).
481

Cidades Volume 11 Número 19


Manoel Rodrigues Alves

relação entre o poder político e no cotidiano. Esse fenômeno


e os setores financeiros. De representa uma radicalização
fato, o processo de reestru- do processo que transforma
turação produtiva das últimas a paisagem urbana como mer-
décadas vem promovendo, cadoria, representando, para
em escala mundial, novas for- Foster, a alteração do espaço
mas de articulação econômica conforme a imagem da com-
e política entre Estado e ca- modity; não só marca e com-
pital na produção do espaço modity aparecem unificados,
urbano, de tal modo que, em mas frequentemente o fazem
contradição com as necessi- commodity e espaço13, condi-
dades da reprodução da vida cionados pelo city branding e
urbana, visa essencialmente a city marketing, num contexto
ampliação da base social ne- cada vez mais hegemônico de
cessária ao processo de acu- financeirização da cidade14.
mulação, uma vez que a pro-
13 (Foster, 2002)
dução atual do espaço urbano 14 Financeirização, dimensão finan-
responde mais à necessidade ceirizada de práticas urbanas, pro-
cesso correlato a formas de empre-
procesos extremos na constituição da cidade

de manter vivo o circuito de sariamento da cidade. Intervenções


produção, circulação e con- urbanas nas áreas centrais históri-
cas de cidades brasileiras (como no
sumo de mercadorias, num Porto Maravilha, Pelourinho ou no
mundo altamente mercantili- Recife Antigo) são exemplos que
elucidam este processo, na medida
zado, do que às necessidades em que trabalham a componente
humanas no tempo, no espaço cultural como mercadoria poten-
cialmente destinada a promoção
482

Cidades Volume 11 Número 19


Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

Na cidade que emerge urbano e de segregação so-


desse processo, observamos cioespacial. Tal fato pode ser
a radicalização da transforma- apreendido, a partir do movi-
ção da estrutura urbana em mento de valorização, desva-

12
mercadoria que acaba por se lorização e revalorização, que
legitimar como um distinto implica tanto a redefinição de
sentido da urbanidade15, sob investimentos públicos e pri-
o impacto de políticas neoli- vados quanto a transformação
berais de modelos hegemôni- de usos, trajetos e condições
cos de privatização do espaço de permanência na cidade.
Num contexto de globalização
da economia e da informatiza-
das cidades no mercado mundial.
Intervenções que, pela forma como ção da sociedade, da urbaniza-
se estruturam, (exarcebação do Tu- ção planetária de Brenner, em
rismo Cultural e foco no consumo
de grupos de usuários específicos), que o espaço urbano compa-
podem levar à descaracterização rece como elemento estraté-
das especificidades locais, uma vez
que ignoram tanto o valor de uso do
Patrimônio Cultural (tratado como 15 Condicionada por, ao menos, três
mercadoria de fragmentos dispersos técnicas do capitalismo tardio - mu-
nos quais se reconhece a “memória tação, fluxo e desordem – em um
oficial” simplificada, tematizada), processo em que se observam no-
quanto a identidade cultural (fru- vas formas de relações sociais que
to da diversidade das formas de dão preferência a âmbitos priva-
apropriação e vínculos estabelecidos dos e mediações tecnológicas, que,
entre praticantes ou grupos de pra- além do aumento da mobilidade
ticantes e este mesmo território), física, econômica e informacional,
reconfigurando as atividades que se valorizam mais o fluxo do que a per-
dão no espaço urbano. manência.
483

Cidades Volume 11 Número 19


Manoel Rodrigues Alves

gico de reprodução do capi- produtivas, da estrutura eco-


tal – não apenas financeiro –, nômica e social, da organiza-
nossas cidades não escapam ção espacial e da configura-
a certas lógicas próprias do ção formal marcam, na cidade
fato urbano que caracterizam contemporânea, a produção
a condição contemporânea da de novas territorialidades, no-
vida. vas espacialidades e formas
As atuais transforma- de sociabilidades atreladas ao
ções do território urbano são, sistema econômico-produtivo,
via de regra, condicionadas de onde emergem novas situa-
por lógicas determinadas por ções urbanas e onde as rela-
um sistema capitalista tardio ções socioculturais e espaciais
de acumulação flexível que es- devem ser resignificadas e re-
trutura, de forma fortemente interpretadas. Além do que,
associada cultura, economia e a lógica neoliberal condiciona
sociedade, fazendo com que novos imaginários urbanos em
os diversos âmbitos da vida e que a mercadoria sublimada
da experiência em sociedade nas formas sedutoras da ima-
procesos extremos na constituição da cidade

sejam intermediados por ló- gem torna-se o princípio cons-


gicas atreladas ao consumo. titutivo da organização das
Sendo o espaço da cidade pro- relações e da prática social.
duto e reprodutor das dinâmi- Em decorrência, essa cidade
cas que regem o seu tempo, encontra nos fenômenos de
a transformação das forças tematização, estetização e
484

Cidades Volume 11 Número 19


Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

espetacularização um meca- produção de espaços onde a


nismo poderoso de controle vida pública cada vez mais é
simbólico da produção e da tematizada e ocorre segundo
ocupação de sua paisagem regras pré-determinadas.

12
socioespacial, de suas espa- Embora a relação de
cialidades e territorialidades. experiência e pertencimento
Conforme aponta Muñoz16, ao espaço urbano persista em
na espacialidade urbana con- meio a um conjunto de trans-
temporânea espaços tipoló- formações, de suas dimensões
gicos tradicionais, como ruas técnicas e tecnológicas e nos
e praças, são objetualizados aspectos sociais e ambientais
e tematicamente reduzidos a de sua produção, observa-se a
um conjunto de funções urba- fragilização do Estado e o em-
nas de um espaço controlado pobrecimento dos sistemas
de modo que as dimensões da simbólicos, bem como a pola-
vida, suas expressões objeti- rização social e a retração das
vas e disposições subjetivas, formas de vida coletiva e a ins-
são fortemente reduzidas uma trumentalização dos espaços
vez que encapsuladas pela de ação e a redução do valor
do público. Esses aspectos,
16 A cidade contemporânea, ‘urba-
nal’, caracteriza-se pela produção de essas transformações, enfra-
uma cidade cada vez mais desconec- quecem a identidade urbana
tada do ser-no-mundo, não mais en-
tendida como obra mas como obje- e secundarizam a dialética te-
to de valor monetário na sua troca cido urbano/tecido social, no
(Muñoz, 2008).
485

Cidades Volume 11 Número 19


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desenho de uma cidade de cidadã, para os temas de uma


fragmentos e domesticação cidadania incompleta, trunca-
do espaço e da esfera pública. da, dilacerada que busca se
Todavia, se por um lado, o pro- recompor pela e na luta pela
cesso contemporâneo de (re) redemocratização do direito
produção da cidade ilumina à cidade. Nesse sentido, reco-
a contradição entre a produ- locando a questão do espaço
ção socializada do espaço e público enquanto reinvindi-
sua apropriação privada, por cação da visibilidade pública
outro, aponta também para a das diferenças e do reconhe-
necessidade de compreensão cimento político do diferen-
dos conflitos e resistências te. Entretanto, numa era de
que daí emergem. posicionamento transnacional
de crescente generalização de
DO ESPAÇO PÚBLICO formas de consumo progra-
A cidade como espaço mado, de declínio dos papéis
público ou como lugar da es- tradicionais do Estado e de
fera pública – topos da política debilidade dos sistemas de re-
procesos extremos na constituição da cidade

enraizada nas formas de apro- presentação política e, em ge-


priação de espaços e tempos, ral, de ações convergentes de
de processos cotidianos, de lu- dispositivos de disciplinariza-
tas e conflitos – aparece como ção social constata-se um de-
uma das bases de reflexão clínio significativo do sentido
para a chamada elaboração de primazia do espaço urbano,
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Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

do espaço público em particu- individual, condicionam a re-


lar. dução e privatização da esfera
Em um mundo de pro- pública.
cessos globalizados aliados ao Numa sociedade que

12
capitalismo avançado, onde os deseja “tudo a todo momen-
aspectos de empresariamen- to”, em que prevalece o con-
to da cidade e, em particular, sumo e o tempo pode ser
do espaço público urbano, avaliado como a distância que
emergem com especial resso- separa o indivíduo de seu obje-
nância, importa (re)aprender tivo, os modos de reprodução
a captar as formas (e contra do capital por meio de estraté-
formas) sociais de adaptação gias de políticas de interven-
da cidade. Mudanças globais ção urbana condicionam o es-
da cidade contemporânea de- paço público enquanto mote
mandam uma nova atitude de de indução e do conceito das
compreensão do espaço urba- estratégias de promoção cria-
no, mas as condições coloca- das na base de sustentação
das pelo capitalismo avançado do empresariamento e da fi-
de um sistema formado por nanceirização da cidade17. O
diferentes relações coletivas
17 Para Delgado, o capitalismo en-
intermediadas por interesses controu no urbanismo uma nova
privados, da exacerbação de forma de reprodução do capital, em
particular por meio da ideologização
lógicas regidas pelo consumo, e tematização do espaço público
ato intensificador da esfera (Delgado, 2011). Em outro trabalho,
posiciona-se criticamente diante
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espaço público, lugar das rea- ato de consumir.


lizações humanas, da hetero- Projetos urbanos com
geneidade social, do primado ênfase no espaço público, cada
das experiências sociocultu- vez mais constituem estraté-
rais, das trocas subjetivas e da gias de acumulação de capital
livre manifestação vem sendo e um modo de reprodução do
gradativamente substituído capital subjacente às ações do
por espaços de urbanidades poder público e da iniciativa
distintas, mas, via de regra, va- privada, instituindo-se através
zios de identidade - transfor- da produção-consumo de es-
mando-se, por exemplo, em paços de práticas previstas, de
meros ‘corredores’ de rápido ações subordinadas à códigos
acesso para as finalidades do de conduta, vigilância e artifi-
cialidade. Na realidade, espa-
de processos que descaracterizam
os lugares urbanos em prol de uma ços da simulação dos lugares
cidade planejada sob um ideal de da vida urbana em diversas
consumo, destacando que não se
trata de denunciar como perversa escalas modificando a relação
toda transformação urbana, mas dos/com habitantes, uma vez
sim a quem favorecem, alertando
procesos extremos na constituição da cidade

também que a resignificação do que meros usuários, meros re-


espaço público não ocorre apenas ceptadores dos espaços da ci-
quando espaços privados tentam
cooptar o seu significado na tenta- dade, eliminando lentamente
tiva de simular um “lugar” coletiva- o sentido da cidade como obra
mente apropriado, mas também que
iniciativas públicas contribuem para e como espaço de criação. A
uma funcionalização comercial do realidade do espaço vivido
espaço público (Delgado, 2001)
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Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

e construído socialmente, o tempos definidos, resultando


significado de espaço público em uma fragmentação da vida
como mediador do encontro cotidiana. Mais do que nada,
e também do conflito, de mu- espaços públicos que, simula-

12
danças estruturais nas dimen- cros de lugares, reproduzem
sões do indivíduo e da noção uma realidade vazia de senti-
de cidade, se reduz a novas es- do (que nem mesmo se apro-
pacialidades, nem exatamente xima da realidade à qual simu-
públicas ou privadas, mas de la) em que, se por um lado se
um domínio público privatiza- pode argumentar pelo estra-
do em grau elevado. nhamento de formas sociais
Para Arroyo, a noção simmeliananas, por outro, se
de espaço público apresenta observa que, ideologias urba-
uma queda de seu valor sim- nas contemporâneas estão,
bólico, não mais se constituin- de fato, progressivamente,
do como a contraparte física promovendo simulacros de es-
substantiva de uma sociedade paços públicos na construção
civil entendida como sujeito da social de formas urbanas.
cidade no qual a cotidianidade A realização do espaço
é que determina a dinâmica público pressupõe dinâmicas
do espaço público18; em que de inclusão, notadamente a
se observa a separação dos provisão de meios para asse-
lugares da vida em espaços- gurar que possamos participar
da vida urbana como sujeitos
18 (Arroyo, 2011)
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sociais capazes. No entanto, diálogo, de lugar de formação


a realidade do espaço vivido política e reconhecimento hu-
e construído socialmente, o mano, de condensadores so-
significado de espaço público ciais e elementos da unidade
como mediador do encontro através das diferenças e sím-
e do conflito, se reconfigura bolos de mediação urbana da
em outras espacialidades, pú- vida cotidiana, à implementa-
blicas ou privadas, que respon- ção de espaços privados de
dem a mudanças nas formas domínio público que estabele-
de compreensão, nas dimen- cem o aumento de situações
sões simbólicas, na estrutu- de exclusão, insegurança e se-
ração das subjetividades e se gregação socioespacial.
desdobram na própria noção Nessas circunstâncias,
de cidade. O espaço público as cidades estão também se
como lugar da atividade políti- tornando ecologias de exce-
ca, individual e coletiva, âmbi- dentes que podem produzir
to do conflito e da interação, uma política do mais forte,
tende ao enfraquecimento e com o espaço público reduzi-
procesos extremos na constituição da cidade

esvaziamento ideológico. A do a jogos de apropriação do


crise de concepção, uso e sig- bem comum. Nesse contex-
nificação social dos espaços to, o espaço público se torna
públicos, reflete-se na altera- sinônimo de privatismo co-
ção e restrição da sua essên- letivo e antagonismo social,
cia, de locus do conflito e do mais do que agonismo social
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Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

e formação cívica. (pseudo) humana, contextos espaço-


Espaços públicos repletos de temporais sem identidade,
sinais visíveis e invisíveis de pri- destinados que são ao cliente,
vatização que, simulacros da não ao cidadão. Como concei-

12
cidade, criam uma cidade pri- tua Alves, a partir da noção
vada dentro da cidade pública de containerização do espaço
constituindo-se na contraface urbano de Muñoz20, pseudo
do esvaziamento da vida pú- espaços públicos para consu-
blica, potencialmente não-lu- midores de elite dos nossos
gares19 atópicos da alienação dias promovem a ideia de uma
19 Não-lugares que tentam estabe- multifuncionalidade do espa-
lecer para a cidade uma nova relação ço privado (enquanto distintas
com o espaço e o tempo, na qual é
celebrada a vitória do consumismo e lugar em um lugar, a objetividade
da desterritorialização. “Se um lugar extremada dos não-lugares influen-
pode se definir como identitário, cia na caracterização desses espaços
relacional e histórico, um espaço que reduzindo ao limite as relações
não pode se definir nem como iden- simbólicas entre as pessoas, descol-
titário, nem como relacional, nem ando-as da especificidade do sítio e
como histórico definirá um não-lugar promovendo uma alteração da fron-
(Augè, 1994: 72). Para Augè, o lugar teira entre o público e o privado.
é necessariamente histórico, com- 20 (Muñoz, 2008). Muñoz, referen-
binando identidade e relações, rela- ciando a noção de containers de
cionado à experiência e a memória Solà-Morales, equipamentos (es-
humana; enquanto que o não-lugar, paços), públicos ou privados, nos
projetado para a circulação e/ou quais se produz o intercâmbio, o
transporte rápido, não se parece ao contato que constituem o consumo
espaço público associativo, ao lugar múltiplo de uma sociedade ritualiza-
da identidade e das relações em que da, aponta para a expansão dessa
se acumula a memória. Embora seja lógica na produção de espaços ‘mul-
possível a ocorrência de um não- tiplex’ e ‘paisagens urbanais’.
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funcionalidades de um elenco de processos socioespaciais


de funções conhecidas) e a e a conformação social do es-
sociabilidade em espaços con- paço. Em um sistema formado
trolados e seletivos21. por diferentes relações cole-
A tendência de que os tivas intermediadas por inte-
espaços públicos sejam abor- resses privados, com as no-
dados de forma a responder vas condições colocadas pela
aos objetivos dos projetistas reestruturação produtiva do
urbanos, clientes e gestores capitalismo e a exacerbação
do espaço, minimiza o papel de lógicas regidas pelo consu-
21 (Alves, 2006:3). O espaço público mo, ato intensificador da esfe-
urbano tem sido estudado por difer- ra individual, observa-se a re-
entes disciplinas, todavia, muito do
que ainda se faz relaciona as práti- dução e privatização da esfera
cas e os comportamentos sociais às pública. Nesse contexto, uma
questões de identificação e da de-
scrição das características físicas e vez que a dinâmica do proces-
históricas do ambiente construído. so de produção do espaço ur-
O peso que as macros análises do
espaço urbano têm tido nas con- bano revela a possibilidade do
siderações que inferem a situação movimento da sociedade em
de crise, padronização, estetização
procesos extremos na constituição da cidade

e desestruturação dos espaços pú- sua totalidade, entende-se ser


blicos, impede uma melhor com- fundamental refletir sobre o
preensão da vida quotidiana, da
relação entre processos culturais e sentido do conceito da repro-
processos socioespaciais, por um dução social do espaço urba-
lado, e, por outro, mascara proces-
sos de produção do espaço urbano no, no intuito de compreender
pautados no empresariamento e fi- que aspectos da prática do
nanceirização da cidade.
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Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

urbano (urbanidade) dentro e privado desenvolvem no-


do momento contemporâneo vas sociabilidades, alterando
preservam e promovem o sen- também o modo como a visi-
tido humano. A aposta é na bilidade pública, a publicidade

12
pertinência e necessidade de se articula entre diferentes
afirmar o espaço público como espaços e domínios. A tensão
o lugar da realização concreta existente entre espaços públi-
da história individual como cos e privados está correlacio-
história coletiva, tendo por nada aos diferentes domínios,
mediação a apropriação dos uma vez que existe tanto uma
espaços de realização da vida alteração da vida pública pro-
como observado em recentes movida por interesses priva-
manifestações sociais de gran- dos23, como uma expansão da
de visibilidade em diferentes coletividade sobre espaços e
espaços públicos do mundo22. domínios privados. De fato, a
Vivemos um momento tensão entre o público e priva-
de (re)significação da relação do reside muito mais na noção
entre o público e privado, em de domínio e da pluralidade,
que não se sabe certamente intensidade e densidade dos
o grau de dependência, domi- espaços, do que da hierar-
nância e/ou cooperação que quia e dominância entre eles.
um tem sobre o outro. Tais Não importa tanto entender
“atualizações” entre o público “quem” possui maior ou me-

22 (Alves e Scheeren, 2014) 23 (Alves e Rizek, 2014)


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nor influência nesta relação, ambiente construído, a noção


mas sim “o que”e “como” se de espaço público deve buscar
estrutura essa tensão. superar a síntese manifesta
Numa cidade em que por um conjunto de índices e
a espacialidade do espaço pú- compreender a noção de hi-
blico não é necessariamente bridação, de mescla entre ele-
coincidente com as manifes- mentos e dimensões diversas
tações e apropriações do pú- que redefinem os termos das
blico, tensões e liminaridades, relações de espaços social-
domínios e intensidades, usos mente indeterminados, não se
e práticas urbanas, deman- constituindo apenas em cate-
dam novas interpretações gorias isoladas concebidas de
para além dos modelos e mar- forma únivoca de territórios
cos teóricos instituídos, assim politicamente ou socialmente
como requalificam o espaço determinados.
urbano e o tornam centro de Espaço público do do-
disputas para a consolida- mínio público do ‘entre’, da
ção de novas urbanidades de preponderância do público
do ‘entre lugares’, noção que
procesos extremos na constituição da cidade

reivindicação da visibilidade
pública das diferenças, do demanda revisão de seu con-
reconhecimento político do ceito, percepção, imagem
diferente. Contrapondo-se a e valoração. Na medida em
análises que reduzem a cida- que espaços associativos de
de a um quadro físico ou a um sociabilização e não espaços

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Transformações culturais e contradições urbanas do espaço público contemporâneo

dissociativos de agregação blico, espaço simbólico da


funcional, o espaço público ação política na contempora-
enquanto o locus, o contexto neidade que requer um tempo
de mediação por meio do qual para se formar enquanto lugar

12
as identidades sociais, práticas no reconhecimento mútuo de
e as imagens socioespaciais suas legitimidades; de suas
podem ser criadas e contesta- densidades, permanências,
das e, por outro lado, como o estruturação e registros; de
espaço do estranhamento, o suas intensidades, momentos,
outro espaço que, justaposto eventualidades e acumula-
ao espaço instituído, contém ções.
o caráter do conflito, da ação,
da contestação24. Espaço pú-
24 “Uma noção de espaço público
que não inclua as práticas intera-
tivas entre os agentes envolvidos
na construção social do seu espaço
seria apenas uma noção que se es-
taria referindo a um espaço urbano.
Inversamente, uma noção que pre-
scinda de uma referência espacial
para essas ações interativas pode
ser entendida como uma esfera pú-
blica. Quando, portanto, há uma
convergência entre as categorias es-
paço e ação podemos entender que
se tem um espaço público formado
da intersecção entre espaço urbano
e esfera pública, construtos dos categorias que lhe são constitutivas,
quais se retira, respectivamente, as espaço e ação”. (Leite, 2007: 287)
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