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DÉCIO FREITAS HISTORIADOR

Retorno ao futuro
Por que não consegue a América Latina livrar-se da sua velha síndrome salvacionista?
Sempre que passam por crise grave, buscam os latino-americanos um salvador que tudo resolva
por passe de mágica. No passado, os salvadores foram ditadores, civis ou militares. Como
ditaduras estão fora de moda, os salvadores são governantes eleitos que delegam poderes
abusivos a tecnocratas da economia. O povo elege o governo, mas tecnocratas governam o
governo.
O ministro Domingo Cavallo é caso singular de salvador que, apesar de fracasso em pretérita
experiência, não perdeu a aura salvacionista. Cerca de 10 anos atrás, propôs-se extinguir uma
inflação descontrolada, e o fez mediante lei que estabelecia paridade entre o peso e o dólar. O
simples bom senso dizia que a moeda dum país subdesenvolvido não podia valer o mesmo que
a do país economicamente mais rico do mundo. O salvador adotou outras medidas salvadoras,
privatizando tudo que podia ser privatizado, escancarando o país a todo tipo de importações,
arrochando salários e implantando dura política fiscal. Houve por um tempo avanço econômico,
mas também regressão social. O modelo dividiu o país em ganhadores e perdedores,
participantes e excluídos. Em 1991, o desemprego orçava por 7%; hoje, está em 15%. Queda do
padrão de vida e dos preços ocasionaram uma recessão que já dura três anos.
Pois bem, para superar o ominoso fracasso, chamou-se ninguém menos do que o autor do
próprio fracasso. Recebeu superpoderes inconstitucionais, pois praticamente pode legislar.
Adotará medidas keynesianas para reanimar a economia, como dinheiro mais barato e maiores
investimentos públicos? Não, pois é professo juramentado dum liberalismo extremista. Adotou,
porém, medidas francamente iliberais, como aumento de impostos, de juros e de tarifas de
importação. Seu Plano de Competitividade inibe, pois, a competitividade. Os iniciados nos
arcanos da economia prevêem que tudo isso desembocará em três saídas igualmente
desastrosas: desvalorização, dolarização ou moratória.
Aliás, a situação é hoje em toda a América Latina pior do que poucos anos atrás. O começo
dos 90 foi de grande otimismo: restaurara-se a democracia, reduzia-se a inflação, retomava-se o
crescimento. Estabilidade monetária e expansão econômica deviam-se às privatizações, à
desregulação da economia, à liberalização do comércio externo, à redução do tamanho do
Estado. Prometia-se e esperava-se que isso se traduzisse em salários mais altos, em mais
emprego, em declínio da pobreza, em melhores serviços públicos. Os males do histórico
subdesenvolvimento deviam-se à interferência do Estado na economia, cerceando a iniciativa
privada. O mercado completamente livre seria capaz de resolver, de forma automática, todos os
problemas. Então, entre a primeira e a segunda metade da década, o crescimento decaiu em
40%. Desemprego e pobreza aumentaram. Viu-se a fragilidade da construção no final da década,
quando da crise do Sudeste Asiático. Na crise reflexa, os latino-americanos não foram
resgatados por mecanismos automáticos do mercado, mas por intervenções de instituições
internacionais ou governamentais. Hoje, multiplicam-se as dúvidas sobre os benefícios do falado
livre-comércio, bem como do ritmo e do fôlego das reformas econômicas. Multiplicam-se também
crises político-institucionais: na Argentina (renúncia do vice-presidente), na Bolívia (estado de
sítio), na Colômbia (Estado sem soberania em um terço do território), no Equador (primeiro golpe
militar bem-sucedido em 24 anos), no Peru (autogolpe e renúncia do presidente), na Venezuela
(poder concentrado num presidente desdenhoso da democracia representativa). Em graus
variáveis, a democracia cambaleia no Haiti, na Guatemala, na Nicarágua, no Paraguai.
Democracia, de todo modo, não basta para assegurar à população vida digna. Não haverá
chance enquanto persistir a desigual riqueza das nações. Nos últimos 200 anos, a renda média
dos países pobres tem crescido, mas muito mais cresceu a desigualdade entre países ricos e
países pobres. Com apenas 15% da população mundial, os países ricos têm 60% da riqueza.
Por interesse ou ignorância histórica, proclamam-se algumas inverdades. Assim, a de que foi
com empréstimos externos que se fez o desenvolvimento, quando a história atesta que se
financiou o desenvolvimento com a poupança interna. Outra abusão é a de que o
desenvolvimento resultou do livre-comércio. A Inglaterra só o adotou a partir de meados do
século 19, quando já se firmara como primeira potência industrial do mundo. O mesmo sucedeu
com os EUA no final do século 19, depois com o Japão, e assim por diante. Todos se valeram, e
ainda se valem, do protecionismo. É certo que a iniciativa privada forjou o desenvolvimento, mas
isso graças às condições criadas e garantidas por um Estado-nação forte, ou seja, proficiente,
probo, clarividente. A América Latina sempre primou em Estados autoritários, não em Estados
fortes.
Vigora na AL uma malsã descrença no futuro. Um projeto de nação, não a recorrente
síndrome salvacionista, permitirá o retorno à esperança no futuro. (ZH 15/04/2201)
VOLTAIRE SCHILLING
HISTORIADOR
Uma estranha Páscoa
“Nenhuma culpa encontro nele. É costume entre vós que eu solte um preso na Páscoa. Quereis
que vos solte o rei dos judeus? Esse não, gritaram de novo, clamando: esse não, mas Barrabás!”
Pilatos ao povo (João, 18)

Supõe-se que Jesus Cristo não tenha resistido muito tempo ao suplício da cruz. Estimou-se
que um homem forte era capaz de suportá-lo por uns três dias no máximo. O nazareno entregou-
se depois de três horas, ou um pouco mais. Parece ter sido fantasia dos gravuristas e pintores
terem-no desenhado, pelos séculos seguintes, preso a uma cruz bem alta, como se seu corpo
fosse uma bandeira ensangüentada hasteada nos altos de um mastro. A morte do condenado
era horrível, anunciando-se por gritos pavorosos de dor e gemidos lancinantes, entremeados de
apelos desesperados para que o matassem de vez. Jesus fora pregado às 8h da manhã ou ao
meio-dia de uma sexta-feira, no dia 14 ou 15 de Nisa. Seja o que for, seguramente já estava
morto à tarde. No alto da haste haviam colocado um cartaz “Rei dos Judeus”. Era uma ironia
maldosa dos romanos, pois o executaram junto com dois delinqüentes.
Pensavam estar livrando-se de um problema porque durante um bom tempo ninguém sabia
que destino dar ao pregador que viera da Galiléia. Os sacerdotes do tempo de Jerusalém, como
Caifás, consideravam-no um herético, alguém que estava jogando o povo local contra o Sinédrio
e a tradição. Outros viam-no um divisionista que, ao invés de somar-se a eles no repúdio aos
romanos, minimizara a ocupação da Palestina com a promessa da chegada de um novo reino, o
Reino dos Céus.
O procurador romano enviara-o preso para Herodes Antipas, o rei da Judéia, um monarca
colaboracionista, que o devolvera sem saber o que exatamente fazer com ele. Matá-lo por dizer-
se o Messias? Quantos deles não apareciam pelas ruas sagradas de Jerusalém julgando-se
isso, um enviado de Deus? O único tumulto em que ele se envolvera dera-se quando Jesus, o
mais pacífico dos homens, foi assaltado pela fúria quando deparou-se em Jerusalém com os
“vendilhões do templo”, aquela massa de cambistas e ambulantes que ofertavam de tudo nas
proximidades do edifício sagrado. Nada mais impressionante do que isso.
Na época do processo contra Jesus, Pôncio Pilatos já estava na região havia algum tempo,
uns seis anos (teria assumido no ano 26), mas continuava sem entender as incríveis dissensões
dos hebreus em torno da religião. Fora indicado para o cargo de procurador da Palestina por
Sejano, um favorito de Tibério. O imperador, por sua vez, enojado das intrigas políticas de Roma,
retira-se no ano de 27 para a maravilhosa ilha de Capri, nas proximidades de Nápoles, a fim de
levar uma vida dos deuses, entregue inteiramente aos prazeres. Quem algum dia poderia supor
que enquanto Tibério se banhava com seus garotos, chamados por ele de “meus peixinhos”, na
imensa piscina tépida da sua mansão, o crime que cometiam em seu nome nas longínquas
terras da Judéia contra um pregador desconhecido iria um dia abalar o poder de Roma?
Provavelmente já passava das 3h da tarde daquele sexta-feira fatídica quando um guarda
enfiou sua lança no abdômen de Jesus para ver se ele já havia morrido. José de Arimatéia, um
homem de posses, reclamou o corpo junto às autoridades e como já estavam em vésperas do
shabbath, consentiram que ele desse o fim apropriado ao cadáver. O local das execuções era
tétrico, até o nome Gólgota (caveira em hebraico, calvarius em latim), que descrevia com acerto
o descarnado do monte onde expunham os supliciados, contribuía para aumentar a desolação do
quadro.
Impedido pela estreiteza do tempo de inumá-lo decentemente, Arimatéia, auxiliado por
Nicodemos, carregou o pobre morto para um sepulcro num jardim próximo. Ao sair daquela
tumba improvisada bloqueara a entrada com uma enorme pedra, indo então juntar-se aos seus.
Na madrugada de domingo, no dia da Páscoa, querendo adiantar-se a todos, talvez com a
intenção de renovar os aromas do morto, Maria Madalena, uma das seguidoras, ao chegar à
caverna encontrou a rocha afastada. Espantou-se. O interior estava vazio. Ao lamentar em
prantos o desaparecido, uma voz se lhe apresentou, era Jesus! Disse-lhe que ainda não havia
subido ao reino dos céus. À tarde, expondo os braços dilacerados, ele mostrou-se aos
discípulos. Ressuscitara (João, 20-21). Repetia-se na Palestina o assombroso destino de Osíris,
o deus egípcio morto que retornara à vida. O nazareno, pensaram seus seguidores, negara-se a
morrer, vencera a rotina imposta aos demais humanos. Dali em diante estaria sempre com eles.
Enquanto isso em Capri, o imperador Tibério preparava-se para mais umas vigorosas braçadas
sem que o alertassem para o que ocorria naquela estranha e inusitada Páscoa na longínqua
Jerusalém.
(ZH 15/04/2201)

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