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HERANÇA CULTURAL E LINGUAGEM EM “VIDA MARIA”1

MASIERO, Cláudia Gisele (Especialista)2


SILVA, Cristina Ennes da (Doutora)3
Universidade Feevale, RS.

RESUMO: Este estudo tem por objetivo analisar o curta intitulado “Vida Maria”, compreendido como
produto cultural, quanto às questões de herança cultural e linguagem, recorrendo principalmente a autores
como Laraia (2001) e Cavalli – Sforza (2003). Pretende-se verificar de que modo se dá o processo de
transmissão cultural mostrado na narrativa fílmica e a importância da linguagem para esse processo.
Também se procura refletir sobre o próprio filme enquanto prática social, crítico e propagador de uma
cultura brasileira. Percebe-se por fim que a herança cultural que se recebe dos antepassados é importante
e eficiente para a nossa vida em sociedade e é graças a ela que se consegue viver no coletivo e que o
conhecimento de mantém a salvo.

PALAVRAS-CHAVE: Herança Cultural; Linguagem; Cinema.

Introdução

O curta-metragem de animação “Vida Maria” (2006), o qual se pretende analisar


nesse estudo, é uma produção cearense de Joelma Ramos e Marcio Ramos, que também
foi o seu diretor, editor e roteirista. Foi patrocinado pelo 3º Prêmio Ceará de Cinema e
Vídeo, Governo do Estado do Ceará e Secretaria da Cultura. Feito em computação
gráfica 3D, colorido e finalizado em 35mm, tem aproximadamente nove minutos de
duração. Recebeu mais de quarenta prêmios em festivais de cinemas no país e no
exterior, segundo informações do site Porta Curtas4.

1
Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e Visual, integrante do 9º Encontro
Nacional de História da Mídia, 2013.
2
Especialista em História Comunicação e Memória do Brasil Contemporâneo. Mestranda em Processos e
Manifestações Culturais, Universidade Feevale, RS, Bolsista PROSUP/CAPES
(claudiamasiero@feevale.br).
3
Doutora em História – PUCRS. Professora no Programa de Pós-Graduação em Processos e
Manifestações Culturais da Universidade Feevale, RS (crisennes@feevale.br).
4
Porta Curtas Petrobrás, disponível em http://portacurtas.org.br/filme/?name=vida_maria. Acesso em 12
de jun. de 2012.
O filme se passa no sertão nordestino e retrata a vida de Maria José, uma menina
de cinco anos a quem lhe é negado o direito de ter infância, tendo ela que deixar os
estudos e trabalhar para ajudar a família. A história começa com a menina ajoelhada em
uma cadeira, apoiando um caderno sobre o parapeito da janela, no qual está escrevendo.
Em seguida sua mãe, Maria Aparecida, a impede de continuar fazendo aquela tarefa que
lhe parecia tão prazerosa, obrigando-a a ajudá-la nos afazeres. Seguindo sua difícil
trajetória a menina cresce, casa, tem vários filhos, executa sua rotina de múltiplas
tarefas, envelhece e em meio a isso vai se tornando uma pessoa mais rude. O último de
seus filhos é uma menina, a quem dá o nome de Maria de Lurdes. Ao final do filme,
quando Maria José vê a filha escrevendo no caderno, vai ao seu encontro e repete para
ela o que ouvira de sua mãe quando criança, que ela não deve perder tempo
“desenhando o seu nome” e exige que a menina a ajude nas tarefas, perpetuando a sina
das Marias da família. Na última cena, o vento sopra e folheia ao contrário o caderno no
qual Maria de Lurdes escrevia e assim percebe-se que as personagens usavam o mesmo
caderno ao longo da história, pois em cada velha folha que ressurge há um outro nome
escrito, Maria de Lurdes, Maria José, Maria Aparecida, Maria de Fátima e Maria do
Carmo, reforçando a ideia de que a história foi se repetindo ao longo do tempo.
Culturalmente inserida em um meio bastante humilde e sofrido, ao menos é o
que o filme deixa transparecer, Maria José segue os passos da mãe e guia a filha na
mesma direção. O tema central da narrativa fílmica é justamente essa transmissão, não
somente de um modo de vida, mas também de valores e hábitos, processo que se
denomina herança cultural5, e, assim, se tem o tema desse estudo. Pretende-se refletir
sobre tal processo e nele analisar a importância da linguagem na transmissão da cultura,
com ajuda do curta-metragem, ao mesmo tempo em que se busca dialogar com o filme e
aprofundar o entendimento de sua mensagem. Entende-se, assim, que o curta-metragem
é um produto cultural que merece ser analisado devido ao seu considerável alcance e a
relevante questão que aborda, sendo um crítico propagador da cultura brasileira.

1. Cultura, Herança Cultural e Linguagem

5
Não se pode confundir herança cultural com difusão cultural. O segundo Ortiz (2007), a difusão cultural
é a transmissão de conteúdos culturais de uma população para outra, e não de uma geração para outra,
operando essencialmente em termos de espaço e não de tempo.
Entender o cinema, e também o curta-metragem que faz parte dessa arte, como
prática social, como acredita Turner (1997), é ir além da análise estética e estudá-lo
como entretenimento, narrativa e evento cultural, como se tem por objetivo nesse
estudo. Ou seja, é considerar, que por meio de sua narrativa, se pode encontrar
evidências do modo como nossa cultura dá sentido a si própria. Além de se entender
“Vida Maria” com um produto cultural, exemplo material da produção cinematográfica
brasileira do início do século XXI, se entende que ele traz, de maneira implícita em sua
narrativa, questões relativas à cultura e como essa é transmitida, considerando que “o
cinema desempenha uma função cultural que vai além do prazer da história” (TURNER,
1997, p. 69). Por isso se acredita ser possível analisar tais questões por meio de sua
narrativa. Pensando nessa estrutura de análise se inicia com o conceito de cultura.
É preciso, em primeiro lugar, abandonar o conceito clássico de cultura, que por
muito tempo perdurou, pensando que essa se refere a um processo de desenvolvimento
intelectual, quando se tornavam cultos os que entravam em contato com as artes e as
ciências. Caso essa ideia perdurasse, poder-se-ia dizer que as personagens do filme são
desprovidas de cultura, devido à simplicidade do contexto em que vivem e de suas
ações, o que seria um grande equívoco. O amadurecimento desse conceito, que passou
por várias etapas, que não cabe descrever aqui6, permite dizer em linhas gerais que
“cultura é o conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que devem
transmitir às novas gerações para garantir a reprodução de um estado de coexistência
social” (BOSI, 1992, p. 16). Com outras palavras Turner (1997) diz que a cultura é um
processo dinâmico que produz os comportamentos, as práticas, as instituições e
significados que constituem a nossa existência. Assim, a cultura pode ser entendida
como uma teia de significados, tecida pelo próprio homem, segundo a definição de
Geertz (1989). O fato é que todos essas definições seguem uma linha de pensamento e
mostram a centralidade exercida pela cultura, do seu papel constituinte em todos os
aspectos da vida social, como mostra Hall (1997), afirmando que toda a ação social é
cultural e que no último século vem ocorrendo o que chama de “revolução cutural”,
quando a cultura tem assumido uma centralidade, não no sentido de ocupar o centro,
mas de indicar a forma como penetra em cada recanto da vida social contemporânea,
mediando tudo.

6
Para entender a evolução do conceito de cultura pode-se recorrer a Laraia (2001) ou Bosi (1992).
Assim, se a cultura, é como se viu, mais ampla, sendo o elemento chave do
modo como nos relacionamos e vivemos, não cabe classificar os que têm ou não
cultura, mas é preciso ver, o outro como um eu sujeito também, como sugere Todorov
(2003), portador de cultura, devendo-se respeitar a já reconhecida diversidade cultural
existente. Ou como diz Geertz (2008), se deve aprender o caráter essencial não apenas
das várias culturas, mas também dos vários tipos de indivíduos dentro de cada cultura.
Pode-se também dizer que “cultura é aquilo que aprendemos com os outros e,
em especial, com os antepassados” (CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 226). Fato que leva
a refletir sobre como ela é transmitida e como se dá esse processo. O homem é o único
ser possuidor de cultura, como escreve Laraia (2001), porque tem ao seu dispor a
comunicação oral e a capacidade de fabricação de instrumentos, capazes de tornar mais
eficiente o seu aparato biológico7. Dessa forma, ainda segundo o autor, os
comportamentos humanos não são biologicamente determinados, tantos os seus
pensamentos quanto as suas ações dependem de um processo de aprendizagem. O
âmbito cultural, então, “é o único que permite que o conhecimento sobre o mundo se
acumule ao longo das gerações. Com isso elimina o limite de uma só existência para o
acúmulo de informações” (CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 227). Sabe-se que “o homem
é o resultado do meio cultural em que foi socializado, ele é o herdeiro de um grande
processo acumulativo que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas
numerosas gerações que o antecederam” (LARAIA, 2001, p. 45).
Esse processo é exatamente o que vemos representado em “Vida Maria”, ou
seja, a cultura como uma herança recebida dos antepassados e o modo como ela é
novamente transmitida. A ideia de não ser importante o contato com o mundo escrito e
de que a criança deve ajudar nas tarefas e não precisa brincar, foi assimilada por Maria
José porque a ela também não foi dado o direito de estudar e nem de brincar e, em
decorrência disso, é assim que ela age com sua filha. É dessa forma que acredita que
deva agir enquanto mãe, sua referência é a sua mãe, que agiu assim com ela, é a forma
como vê a situação, o que por sua vez retoma a ideia de uma herança cultural, pois, o
modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes

7
Tornar mais eficiente o aparato biológico humano, segundo Laraia (2001) é obter a capacidade de voar,
que o homem naturalmente não tem, assim como aumentou sua força, velocidade e capacidade auditiva e
visual com ajuda da tecnologia que foi capaz de inventar, sem ser preciso mutações genética, como em
alguns animais para fins de adaptação.
comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma
herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura
(LARAIA, 2001, p.68).
Esse é o ponto crucial da narrativa, pois, depois de mostrar Maria José tendo que
abandonar a infância para trabalhar e ter crescido executando as mesmas tarefas, no
mesmo lugar, sem perspectivas de mudança, tendo assim uma vida sofrida,
caracterizada não somente pela aridez e pobreza do lugar onde vivia, mas pelos muitos
filhos que teve, espera-se que ela aja de maneira diferente com sua filha, para que essa
tenha um destino diferente. Porém, não é o que acontece. Acontece a repetição e isso é
capaz de chocar o espectador. Sabe-se que a cultura é dinâmica e o sistema cultural está
num contínuo processo de mudança, ou seja, a conservação é sempre algo relativo,
depende da dimensão de tempo e do sistema cultural a ser considerado, como explica
Laraia (2001). Assim, se fica esperando que naquele contexto cultural a inovação
também ocorra. E não ocorre porque o sistema de transmissão cultural em questão não
favorece a mudança, como veremos adiante. Justamente porque a mudança não ocorre é
que o curta-metragem é tão significativo e reflexivo, pois tem a coragem de mostrar
uma realidade dura, que se perpetua por gerações e que, como ele mesmo sugere,
nomeando as personagens por “Marias” e não lhes dando sobrenome, pode ser mais
comum do que se imagina.
Segundo explica Cavalli-Sforza (2003) a transmissão cultural, entendida aqui
como o processo que faz com que a herança cultural seja transmitida para as gerações
futuras, pode se dar de duas maneiras; de forma tradicional, como no curta-metragem,
ou seja, pela observação, ensino, conversação ou pode ocorrer também por meio de
livros, computadores e quaisquer outros meios desenvolvidos pela tecnologia moderna.
Talvez a opção do filme em mostrar esse modelo tradicional de transmissão cultural
ajude a dar a ideia de isolamento das personagens, que estão à margem da sociedade.
Em volta da casa e do pátio que é o único cenário para toda a narrativa, há um cercado
que os envolve por todos os lados, feito de tábuas de madeira, que também parece
querer mostrar o quanto estavam fechados enquanto grupo. Normalmente quando se
retrata o cenário do sertão nordestino faz-se com que se perca de vista a paisagem. Já no
filme, o cercado impede de ver o horizonte, como que simbolizando que para aquelas
personagens não há horizontes, não há perspectivas.
Quanto as rotas de transmissão cultural, segundo Cavalli-Sforza at al. (1982),
existem três principais rotas: vertical, horizontal e oblíqua. A vertical é a passagem de
informações de pai para filho, de uma geração para a seguinte, a exemplo do curta. A
horizontal abrange todos os outros percursos entre indivíduos não aparentados, entre
membros da mesma geração. Ainda há a oblíqua quando se dá entre não parentes de
gerações diferentes. Essa definição é importante para que se possa entender a certa
imobilidade da transmissão cultural que é mostrada no curta, uma vez que se sabe que
no regime de transmissão vertical a evolução é lenta, segundo afirma Cavalli-Sforza
(2003).
Não somente a rota de transmissão cultural, sendo ela vertical, contribuiu para a
permanência do modo de vida que levam as personagens, mas também não se pode
deixar de analisar a conjuntura, pois “qualquer transmissão cultural só pode ocorrer
dentro de um contexto social” (PONTES & MAGALHÃES, 2003, p.120). Nesse caso,
considerando o contexto no qual estão vivendo, talvez seja mais importante para a vida
em grupo que todos ajudem na execução das tarefas, inclusive as crianças, não sobrando
tempo para os estudos. E a escola também não é entendida como capaz de melhorar as
condições de vida. As necessidades pela qual passam os sertanejos nordestinos
implicam em que primeiro lugar sejam elas supridas e as outras questões só podem
mesmo ficar em segundo plano. Como pensar em ir para a escola, por exemplo, se não
se tem comida e nem água.
Parece não restar dúvidas de que a herança cultural foi aceita e possibilita que as
características do grupo se perpetuem na situação trazida pela narrativa fílmica.
Considerando que “a transmissão cultural ocorre necessariamente em duas etapas:
primeiro, uma ideia tem de ser comunicada, depois precisa ser aceita” (CAVALLI-
SFORZA, 2003, p. 229), num primeiro momento isso é percebido no curta-metragem
quando a mãe (Maria José) tem convicção da ideia que está passando, de que a menina
está perdendo tempo desenhando o seu nome, é a ideia sendo comunicada, e quando a
menina balança positivamente a cabeça, deixa o caderno e o lápis e corre para o pátio,
iniciando a tarefa de levar água aos animais, é a ideia sendo aceita. Posteriormente se
tem realmente a verificação de que a ideia fora aceita quando ela decide transmiti-la
para sua filha anos depois.
Não se pode negar a importância e eficiência dessa herança cultural que se
recebe dos antepassados para a nossa vida em sociedade, é graças a ela que se consegue
viver no coletivo e que o conhecimento de mantém a salvo. Aceitá-la é inevitável, faz
parte da condição humana. Porém isso não significa que se deva preservá-la e transmiti-
la sem alterações, como acontece no filme, pois a inovação também faz parte da
condição humana e é o que possibilita as melhorias sociais e tecnológicas. É sempre
necessário que se reflita sobre essa herança. Ainda é preciso dizer que mesmo se Maria
José tivesse pensado em dar um destino diferente para sua filha e tivesse permitido que
ela estudasse e tivesse os momentos de brincadeira, ainda assim teria agido segundo a
herança cultural que recebera, seria uma tomada de consciência baseada na sua vivência
e no que lhe ensinaram. Hall (1997) explica que é quase impossível para o cidadão
comum ter uma imagem precisa do passado histórico sem tê-lo tematizado, no interior
de uma “cultura herdada”, que inclui panoramas e costumes de época.
Através da narrativa fílmica em questão, também se vê a importância da
linguagem nesse processo de transmissão da cultura, pois foi por esse meio que Maria
Aparecida expressou8 o seu desejo à filha de que ela lhe ajude nos afazeres. Pode-se
dizer ainda que “através da comunicação oral a criança vai recebendo informações sobre
todo o conhecimento acumulado pela cultura em que vive” (LARAIA, 2001, p.).
Entende-se linguagem na perspectiva de Bakhtin (1988), ou seja, sociointeracionista.
Afirma que é o fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou
das enunciações, que constitui a realidade fundamental da linguagem, compreendida
pelo princípio dialógico, sendo que a palavra constitui justamente o produto da
interação do locutor e do ouvinte. Dessa forma, o ser humano usa a linguagem para agir
no contexto social9.
Maria José repete para sua filha pequena exatamente as mesmas palavras que
ouvira de sua mãe, muitos anos antes, quando também era uma criança. Também seus
gestos e feições são imitados. Em sua fala também está presente a fala de sua mãe, que,
ao que tudo indica, foi a ela bastante significativa. Esse processo de significação pode

8
Bakhtin (1988) conceitua expressão, no que caracteriza como simples e grosseira definição, como sendo
tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma maneira no psiquismo do indivíduo,
exterioriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores.
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Convém destacar que a linguagem é mais abrangente que a língua e a fala. Bakhtin (1988) apoiado em
Sauserre, diz que a linguagem pode ser entendida como a totalidade das manifestações físicas,
fisiológicas e psíquicas que entram em jogo na comunicação linguística. Pode ser ela verbal e não verbal.
ser melhor entendido quando Bakhtin (1988, p.95) escreve que “a palavra está sempre
carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que
compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós
ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”. O autor ainda afirma que a palavra é
o modo mais puro e sensível nas relações sociais.
É possível dizer, então, que além da capacidade de observação, a capacidade de
comunicação é a grande facilitadora desse processo de aquisição da chamada herança
cultural, ou seja, permite que a cultura seja transmitida às futuras gerações, como
explica Laraia, “a comunicação é um processo cultural”. Mais explicitamente, a
linguagem humana é um produto da cultura, mas não existiria cultura se o homem não
tivesse a possibilidade de desenvolver um sistema articulado de comunicação oral”
(2001, p.52). Assim, a linguagem pode ser entendida como um mecanismo para a
transmissão da cultura, no qual
há sempre, no mínimo10, um emissor, um receptor e a informação que é
transmitida de um a outro. A linguagem aumenta enormemente a eficiência
do processo e constitui a própria base da cultura humana. Mais do que
qualquer outro fator, ela permite que os seres humanos se adaptem e
dominem a circunvizinhança num espaço de tempo bastante curto
(CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 227).

A questão da linguagem é bastante destacada no curta e, apesar de comportar


apenas três diálogos, eles são cruciais para o entendimento da história e implicitamente
para entender o modo como a linguagem é um elemento essencial no processo de
transmissão cultural, mas também que é ao mesmo tempo fruto da cultura. Nesse
sentido, pode-se dizer que a linguagem é também parte dessa herança cultural que se
recebe ao longo da vida em sociedade, mas que é o pilar sobre o qual se apoia toda a
transmissão cultural.
Por fim, o filme traz consigo uma herança cultural muito mais profunda, a de um
país que ainda não conseguiu suprimir a enorme desigualdade social existente. O fato de
não se ter escolaridade e não proporcioná-la aos filhos é uma realidade de muitos
brasileiros, por isso se diz que o filme é um crítico propagador da cultura brasileira.
Primeiro porque é um produto cultural que dela emana e consequentemente como é
dirigido ao público em geral, ele a propaga. Mas, fundamentalmente, é preciso que se
destaque o caráter crítico a que o curta-metragem se propõe, mostrando uma triste

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Grifo nosso, para destacar que os processos comunicacionais podem ser bem mais complexos.
realidade que acaba por não se solucionar ao final da narrativa, levando o espectador à
reflexão. A herança cultural que está implícita, a qual pode-se dizer que culmina no
modo de vida da personagem Maria José, é a de um povo colonizado e que, por essa
condição, não se viu nutrido de investimentos suficientes em educação e cultura, por
exemplo. Aliada a sua história de exploração se tem a expansão moderna do capital
comercial, que “assanha com a oportunidade de ganhar novos espaços, brutaliza e faz
retroceder a formas cruentas o cotidiano vivido pelos dominados” (BOSI, 1992, p.21).
Ou seja, dentro dessa lógica continua-se a produzir excluídos, muitas “Marias” que não
poderão se inserir no grupo de consumo. Quanto a isso é preciso considerar as palavras
de
O homem não pode viver fora da cultura, mas ela não é o seu destino, e sim
um meio para sua liberdade. Levar a sério a cultura não significa sacralizá-la
e sim permitir que a exigência de problematização inerente à comunicação
que se dá na cultura se desenvolva até o telos do descentramento. Não somos
humanos fora da cultura, mas não seremos homens libres se não pudermos
sempre que necessário assumir uma posição de exterioridade com relação ao
mundo social (1990, 133).

Desde o Brasil-Colônia, segundo Bosi (1992), que o domínio do alfabeto, ou


seja saber ler escrever, era um privilégio de poucos e isso era um divisor de águas entre
a cultura oficial e a vida popular. Pode-se dizer que hoje ser alfabetizado não é mais
privilégio de poucos, mas ainda não o é de todos. A exemplo do curta, muitas crianças
brasileiras ainda estão fora da escola e novamente o próprio filme é exemplo crítico das
consequências que isso pode acarretar.

Considerações Finais

Por meio do curta-metragem, como se viu, pode-se refletir sobre a questão da


herança cultural, concluindo que é através dela que o sujeito se conecta à sociedade,
sendo a linguagem grande facilitadora desse processo. Sabe-se que, ao mesmo tempo
em que vai se inserindo em uma cultura, o sujeito tem também tem a oportunidade de
modificá-la, porém, tal mudança propositalmente não é mostrada no filme, que retrata a
continuidade de uma triste realidade que se estende por gerações. É justamente isso que
faz com que se assuma uma postura crítica em relação a transmissão dessa herança. É
ela fundamental para que a cultura e o conhecimento não se esvaiam no tempo, mas sem
um equilíbrio entre conservação e inovação, corre-se o risco de se fazer apenas uma
repetição.
A escolha do nome “Maria” para todas as personagens do curta-metragem, um
dos nomes femininos mais comuns, juntamente com o fato de não lhes ser atribuído
sobrenome, possivelmente indica quão ordinária também é a história vivida por elas, ou
seja, que pode ser vivida por outros personagens em outros contextos, em situações
reais, como já se disse. A crítica trazida pelo curta não é quanto à perpetuação de
hábitos e valores, mas acerca do quanto esse processo pode significar também a
perpetuação de uma realidade em que os indivíduos que nela se inserem não conseguem
melhorar a sua condição de vida e muitas vezes ficam à margem da sociedade. É assim
uma severa crítica ao próprio país que retrata e do qual é um produto cultural, que não
consegue garantir, por exemplo, o direito a educação a todos e também ao modelo
consumista de sociedade na qual se vive, insustentável, inatingível para muitos e por
isso excludente.
O elemento cultural chave, que se vê transmitido na narrativa é o descrédito das
personagens quanto aos estudos, mas, como já se concluiu, talvez naquele contexto
fosse mais importante para a sobrevivência do grupo, que todos ajudassem nas tarefas.
Assim, de maneira nenhuma se quer fazer um julgamento das personagens, nem mesmo
o filme parece querer fazer, mas sim uma crítica ao sistema maior da qual fazem parte,
porém que não lhes acolhe de fato. “Vida Maria” é um filme sensível, sua beleza não
está somente na riqueza dos detalhes e do projeto gráfico em si, mas na sua mensagem
de reflexão, que faz com que pensemos sobre a sociedade da qual fazemos parte.

Referências

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