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Tradição 

e Modernidade em romances de Mia Couto ‐ Morais 

Tradição e modernidade em romances de Mia Couto


Tradition and modernity in Mia Couto’s novels

Carlos Francisco de Morais 1

RESUMO: Este artigo tem por objetivo investigar como,


nos romances Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra e
A varanda do frangipani, do escritor moçambicano Mia Couto, a
trajetória de vida de seus protagonistas está simbolicamente
ligada à uma necessidade de valorização das culturas tradicionais,
vistas como desprestigiadas no atual momento histórico da
sociedade de Moçambique.
PALAVRAS-CHAVE: Mia Couto; tradição, modernidade
ABSTRACT: This paper intends to investigate how, in
mozambican writer Mia Couto’s novels Um rio chamado tempo,
uma casa chamada terra and A varanda do frangipani, the life
story of the leading characters is symbolically linked to the a
need to give praise to the traditional cultures of the country, seem
as under-appreciated in the present historical moment of
Mozambique’s society.
KEYWORDS: Mia Couto; tradition; modernity.

Em palestra proferida na Faculdade de Letras da


Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1997, o escritor
moçambicano Mia Couto se referiu de maneira contundente em

                                                            
1
 Doutor em Literatura Portuguesa pela USP – Universidade de São Paulo. 
Professor Adjunto de Literaturas de Língua Portuguesa na UFTM – 
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. carfranmo@hotmail.com  
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relação ao que pode ser descrito como a desvalorização que


atualmente se faz em Moçambique da cultura tradicional e dos
valores do passado. Em A cosmovisão africana da morte: um
estudo a partir do saber sagrado em Mia Couto, sua dissertação
de mestrado sobre a literatura do autor, Ludmila Ribeiro assim
sintetiza a reflexão de Mia:
Nesta palestra, Mia Couto analisa a condição
atual de seu país e o considera uma nação sem memória,
sem passado, onde quase não mais se fala das guerras.
Ele fala de um país em transformação e em reconstrução,
voltado apenas para os investimentos modernos, para o
futuro (palavra que não existe em diversas línguas das
etnias moçambicanas), e completamente distanciado da
perspectiva tradicional, da qual o porvir se afigura como
um território sagrado, proibido de ser visitado. O autor
denunciou como perigosa essa atitude silenciosa do povo
e alertou para o fato de as feridas não cicatrizadas e os
fantasmas da história poderem ressurgir inesperadamente.
(RIBEIRO, 2010, p. 23).

No presente estudo, é fundamental levar-se em conta essa


reflexão, pois nosso propósito é justamente investigar como uma
das principais marcas da ficção de Mia Couto é a valorização do
passado cultural moçambicano, objetivando contribuir para que
ele continue sendo relevante na atualidade.
Em outro artigo sobre a escritura de Mia Couto, é registrada
a preponderância que outro escritor da terra, José Sousa Miguel
Lopes, atribui à escrita na sociedade moçambicana pós-colonial,
em contraste com a histórica preponderância da oralidade, em
termos de expressão, comunicação, registro do conhecimento e
das tradições.
Estes traços fortes da oralidade (presentes nas
línguas autóctones moçambicanas), contudo, não foram
levados em consideração na política lingüística adotada
pelo poder político no pós-independência de
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Moçambique, o que acabou influenciando o processo de


literacia. Às elevadas taxas de iliteracia herdadas do
período colonial, vieram somar-se, com o passar dos
anos, as preocupantes taxas de evasão e repetência,
sobretudo nas primeiras classes da escolarização formal e
no processo de erradicação da iliteracia no seio de jovens
e adultos. Uma das razões para o agravamento das taxas
de iliteracia está na adoção da língua portuguesa como
língua oficial e língua de ensino e na conseqüente
rejeição, por parte do poder político, do estudo,
sistematização e introdução das línguas autóctones
moçambicanas nas primeiras classes. Mas, mais do que
isso, a rejeição desse rico universo lingüístico, pode estar
contribuindo para perdas irreversíveis das tradições orais,
ao mesmo tempo que constitui um desrespeito e uma
desvalorização das várias culturas étnicas. (LOPES, 2002,
p. 178)

É nesse contexto que avulta o destaque merecido pela


literatura de Mia Couto, considerado um dos principais escritores
surgidos do continente africano nas últimas décadas, como o
comprovam as traduções de obras suas para as língua inglesa,
francesa, alemã, italiana e outras, bem como diversos prêmios
literários que tem recebido, como o Prêmio Nacional de Ficção
da Associação dos Escritores Moçambicanos, de 1995, o Prémio
Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora, pelo conjunto da
obra, de 1999, e o Prêmio União Latina de Literaturas
Românicas, de 2007, oferecido pela União Latina, organização
internacional que congrega os países cujos idiomas nacionais ou
oficiais são línguas românicas.
A par de suas evidentes habilidades de fabulista e artífice
da língua, que o ajudaram a conquistar reconhecimento público e
crítico na África, América e Europa, a obra de Mia se realça
muito por assumir e realizar uma missão de resgate e inserção da
cultura tradicional moçambicana na modernidade, aqui entendida
como a atualidade pós-independência, ou seja, posterior a 1975,
contexto epocal em que surge a literatura de Mia Couto e no qual
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os enredos de seus romances se localizam, como aponta Flávia


Maia:
podemos identificar que, em vários de seus
romances , está presente a complexidade que a situação
de pós-colonização impõe no presente ao Continente
africano, mais especificamente, às regiões de
Moçambique. Esse cenário histórico-cultural
particulariza-se na história de seus personagens. (MAIA,
2009, p. 50)

Em recente ensaio, Fernanda Cavacas (2006) argumenta


que interessa a Mia participar do processo de constituição, de
invenção, de registro escrito da identidade moçambicana, a qual,
segundo se pode ver em seus livros, não se faz nem se fará sem a
participação central da memória. É por isso que Cavacas usa, em
relação aos escritos de Mia e sua relação com a atualidade de seu
país, o conceito de “memória em construção”, articulado a partir
da maneira como a escritura do autor liga os temas e as
linguagens da vida tradicional moçambicana, notadamente o
prestígio que dá à oralidade, para intervir literariamente no
projeto de construção da vida nacional pós-independência:

Assim, se ‘a palavra falada’ tem um poder


misterioso e um caráter sagrado e traduz a recreação e a
grande escola da vida, é imperioso estabelecer relações
entre oratura e literatura para podermos aceder ao sentido
dos textos literários coutistas.

Mia Couto recorre sistematicamente à seiva


fecundadora da(s) cultura(s) da terra da infância,
procurando transmitir a constância, a unidade e o
reconhecimento característicos da identidade numa
intenção didática, iniciática e simbólica evidente. Trata-se
– no nosso entender – de contribuir para a memória em
construção, memória em comum que respeite o chão dos
antepassados, o solo sagrado da pátria moçambicana.

(...)
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Por isso, a leitura da ficção coutista é, na nossa


perspectiva, também um exercício de reconhecimento de
marcas de moçambicanidade do ponto de vista cultural.
Como o primeiro-ministro moçambicano, Dr. Pascoal
Mocumbi, afirmou no lançamento do romance O último
vôo do flamingo, de Mia Couto em Maputo, estamos
perante um escritor que é um ‘ensinador de
moçambicanidade’. Moçambicanidade que é uma
realidade em gestação (...). (CAVACAS, 2006, p. 69-70).

Diante do que sua literatura demonstra, não resta dúvida de


que Mia Couto é participante ativo desse projeto.
Já por várias vezes, em entrevistas a jornais ou televisão,
Mia se identificou primordialmente não como escritor, mas como
biólogo. Essa é sua área de formação, já que ele não chegou a se
formar em Medicina, seu primeiro curso universitário. É
conhecida sua frase segundo a qual ele “está” escritor, não “é”
escritor. Entretanto, há uma ligação intrínseca e importantíssima
entre o exercício de suas atividades como biólogo, com
pesquisador dessa área, e a literatura de Mia, pois suas pesquisas
in loco, levando-o a visitar praticamente todas as áreas do país,
principalmente as não-urbanizadas, lhe abrem constantemente a
oportunidade de entrar em contato com as parcelas rurais,
tradicionais, do povo moçambicano, aquelas que ainda aderem
aos costumes, crenças e ritos antigos, advindos da época anterior
à colonização portuguesa. Assim, o biólogo não se separa do
escritor, antes o auxilia em larga medida, como registra Cavacas:

Entretanto, embora esta tarefa lhe venha ocupando


parte significativa da vida, o escritor é biólogo e é nessa
condição que se sente profissionalmente. Aliás, é como
biólogo que ele contata populações e (re)aprende a
genuinidade de comunidades não urbanas que ainda
vivem segundo as tradições dos antepassados e delas lhe
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vão dando conta. É um movimento circular este: o


escritor “alimenta-se” das vivências do biólogo e o
biólogo prepara-se para novas vivências através da
imaginação do escritor. Esta aprendizagem das realidades
existentes no país autêntico é tanto mais enriquecedora
quanto diversificada é a composição étnica das nações
moçambicanas. (CAVACAS, 2006, p. 64)

Tradição e modernidade convivem intensamente em livros


de Mia Couto, mas, dada a intenção de realçar seu valor em
tempos modernos, a primeira talvez seja mais visível.
Dois dos mais importantes trabalhos do autor já partem de
uma premissa que possibilita ao leitor o contato com o registro e
a reinvenção artística do tradicional, o que tanto interessa ao
autor. Tanto em Um rio chamado tempo, uma casa chamada
Terra, publicado em 2002, como em A varanda do frangipani,
de 1996, o enredo parte de uma viagem que leva o protagonista
em direção ao antigo.
Em Um rio..., o narrador, de nome Mariano, habitante da
cidade grande, volta a sua ilha de origem por ocasião do enterro
de seu avô, que também se chamava Mariano; em A varanda..., o
investigador de polícia Izidine Naita vai a uma ilha para descobrir
as circunstâncias da morte do administrador de um asilo de
velhos, instalado numa antiga fortaleza dos tempos coloniais. Ou
seja, ambos viajam, deslocam-se no espaço em termos práticos,
para, em termos simbólicos, realiza uma viagem no tempo.
Mariano, o narrador de Um rio... reencontrará o pai, os tios, a
casa ancestral, a língua tradicional da terra, o espírito do avô. O
polícia Izidine, em A varanda..., encontrará os velhos do asilo,
suas memórias, suas estórias reais ou inventadas, o registro da
História, que o próprio prédio da fortaleza representa, e Marta,
enfermeira que cuida dos velhos e guarda a memória da tradição.
Desse ponto de partida em diante, a tradição pervade tudo
em Um rio chamado tempo, uma casa chamada Terra. Já no
barco que o leva para a ilha, o neto Mariano a encontra na figura

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do tio Abstinêncio, que, ao longo do livro, é sempre retratado


como o tio mais apegado às tradições da terra. É ele quem lembra
ao Narrador os ritos associados ao enterro do Avô Mariano; é ele
quem mais bem conhece a língua do lugar e, mais importante em
termos simbólicos, dos filhos de Mariano foi ele o único que fez
voluntariamente um voto de jamais abandonar a ilha, a casa
ancestral. Logo no primeiro dia de sua volta à terra natal, antes
mesmo de descer do barco que o transporta até lá, Marianinho já
percebe como o tio Abstinêncio lhe servirá como introdutor no
âmbito dos valores tradicionais, a serem, na sequência da
narrativa, corporificados na voz do avô:

As canoas e jangadas se aproximam para carregar


os passageiros para a praia. Alguns homens sobem para o
convés para ajudar no transbordo. Fico com Tio
Abstinêncio a ver a gente descer. Ele se guarda sempre
para último. Há-de morrer depois de todos, dizia o Avô.

A noite está mais espessa, a lancha que nos vem


buscar parece flutuar no escuro. Antes de entrarmos na
embarcação Abstinêncio me faz parar, mão posta sobre o
meu peito:

-- Agora que estamos a chegar, você prometa ter


cuidado.

-- Cuidado? Porquê, Tio?

-- Não esqueça: você recebeu o nome do velho


Mariano. Não esqueça.

O Tio se minguou no esclarecimento. Já não era


ele que falava. Uma voz infinita se esfumava em meus
ouvidos: não apenas eu continuava a vida do falecido. Eu
era a vida dele. (COUTO, 2003, p. 22)

Nos dias que se seguem à chegada, o narrador vive um


cotidiano em que se afirmam os valores tradicionais daquela
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sociedade, que, certamente, na economia interna da obra, não


pode estar localizada em uma ilha por obras do acaso: é esse,
literalmente, isolamento em relação à nova sociedade surgida
depois da independência, o que permite ainda a sobrevivência do
respeito aos mais velhos, da observância de rituais -- como a
exposição do corpo do falecido numa sala sem teto, o que,
segundo as crenças locais, permite a ligação direta entre a Terra e
o céu, propiciando a viagem do espírito – da afirmação do
patriarcado, da importância da oralidade, do culto aos
antepassados.
Outra figura do passado do narrador que lhe reafirma os
valores tradicionais, principalmente o das línguas da terra, é Juca
Sabão, seu antigo professor. Nos tempos da infância, Marianinho
aprendera dele lições valiosas, das lendas da terra à sabedoria que
o contato com a natureza desenvolve, como registra na passagem
em que se lembra da vida de Juca Sabão ao ser informado de sua
morte, ocorrida em circunstâncias violentas ligadas à vicissitudes
da vida moderna, nomeadamente o tráfico de drogas, cujos
agentes tinham sido os responsáveis por seu assassinato:

Juca Sabão era para mim uma espécie de primeiro


professor, para além da minha família. Foi ele que me
levou ao rio, me ensinou a nadar e a pescar, me encantou
de mil lendas. Como aquela em que, nas noites escuras,
as grandes árvores das margens se desenraizam e
caminham sobre as águas. Elas se banham como se
fossem bichos de guelra. Regressam de madrugada e se
reinstalam no devido chão. Juca jurava que era verdade.

As lembranças me surgem velozes como nuvens.


Recordo aquela vez em que Sabão se encomendou de
uma expedição: queria subir o rio até à nascente. Ele
desejava decifrar os primórdios da água, ali onde a gota
engravida e começa o missanguear do rio. Juca Sabão
muniu-se de mantimentos e encheu a canoa com os mais
estranhos e desnecessários acessórios, desde bandeiras a

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cornetas. Demorou umas tantas semanas. Regressou e fui


o primeiro a recebê-lo, nas escadas do cais. Olhou-me,
cansado, e disse:

-- O rio é como o tempo!

Nunca houve principio, concluía. O primeiro dia


surgiu quando o tempo já há muito se havia estreado. Do
mesmo modo, é mentira haver fonte do rio. A nascente é
já o vigente rio, a água em flagrante exercício.

-- O rio é uma cobra que tem a boca na chuva e a


cauda no mar.

Assim proferindo, Juca Sabão me pediu que me


aproximasse. Seus dedos me fecharam as pálpebras como
se faz aos falecidos. Certas coisas vemos melhor é com
os olhos fechados. Neste momento, é como se ainda
sentisse suas mãos sobre o meu rosto.

Meu pai, Fulano Malta, espera um momento para


que me recomponha da notícia. Ele sabe quanto eu ainda
estou ligado ao velho Sabão. (COUTO, 2003, p. 61,
grifos nossos.)

Em que pese a extensão dessa citação, é evidente sua


utilidade para documentar como no romance o presente está
ligado ao passado, já que é de se ver como, nessa passagem, os
trechos ligados aos ensinamentos antigos de Juca Sabão são
marcados pela utilização do tempo presente dos verbos, que
grifamos acima de modo a indicar que ainda são válidos no
presente da narrativa.
Contudo, nem Juca Sabão, nem ninguém, nem nada coloca
o neto Mariano em contato tão mais íntimo com a tradição do que
seu Avô Mariano, o “desfinado”, como é chamado a certa altura.
Morto, mas ainda insepulto seu corpo, o Avô Mariano ainda vive
em espírito e, por artes que lembram um pouco o estilo do
realismo mágico, na narrativa de Um rio... ele, com o interesse
explícito de possibilitar a persistência da tradição em tempos
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modernos, articula uma estratégia de comunicação com o neto,


por meio de cartas que, misteriosamente, chegam a ele, sem que
possa identificar sua autoria:

(...) Enquanto espalho as roupas que trazia


amarfanhadas na mochila, noto que há uma folha escrita
por cima da secretária. Leio, intrigado (...)

(...)

Quem escrevera aquilo? Quando tento reler uma


tontura me atravessa: aquela é a minha própria letra com
todos os tiques e retiques. Quem fora, então? Alguém
com letra igual à minha. Podia ser um, entre tantos
parentes. Caligrafia não é hereditária como o sangue?
(COUTO, 2003, p. 56)

É por intermédio dessas cartas psicografadas, diríamos, que


o Avô conduz o neto por um rito de passagem, uma viagem
iniciática pelos caminhos da vida, da cultura, da história familiar.
E, no fim desse percurso, é por meio desse contato com a “voz
infinita” do antigo que se faz a revelação essencial da obra: a da
verdadeira filiação do narrador, ou seja, de sua identidade. Desde
o início do romance, o narrador é identificado como neto de Dito
Mariano e filho de Fulano Mariano. Entretanto, é revelado afinal
que ele é, na verdade, o filho mais novo de Mariano, a quem
considerava seu avô. Sabendo agora quem realmente é, o
narrador pode, a partir dessa verdadeira anagnórise (edipiana,
mas positiva), reconhecer seu verdadeiro lugar no rio chamado
tempo, na casa chamada Terra: “não apenas continuava a vida do
falecido. Eu era a vida dele” (COUTO, 2003, p. 22). Guardião,
mesmo após a morte, da tradição, Dito Mariano transmite ao
narrador, pela semente, pelo sangue, pela escrita, a missão de
guardá-la, de observá-la, de registrá-la... e de levá-la aonde for, o
que, evidentemente, inclui a cidade grande, a capital, a sociedade
nova que está surgindo e na qual ele também se integra.
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Em A varanda do frangipani, o protagonista, inspetor


Izidine Naita, não apenas encontrará, também em uma ilha, a
memória dos tempos antigos e os valores tradicionais nas
conversas que terá – e registrará em seu caderno – com os
habitantes dela, como os velhos do asilo, que lhe contarão suas
vidas em pormenores, permitindo-lhe o acesso a uma visão de
mundo apegada às tradições da terra, ou como a enfermeira
Marta, que se apresenta, em cada palavra, em cada ação, como
defensora dos velhos não só contra a ação destruidora e corrupta
de Vasto Inocêncio, o administrador do asilo, que lhes ameaça a
sobrevivência física, mas, principalmente, como, à maneira de tio
Abstinêncio, Juca Sabão e Avô Mariano, uma guardiã da tradição
contra aquilo que ela chama no romance de “golpe contra o
antigamente”:
— Você nunca vai entender. O que se está a
passar aqui é um golpe de Estado.

— Um golpe de Estado?

— Sim, é isso que o deveria preocupar, senhor


polícia.

— Mas aqui na fortaleza, um golpe? Izidine se riu,


estupefeito. Francamente, Marta...

— Não é só aqui na fortaleza. É no país inteiro.


Sim, é um golpe contra o antigamente.

Uma vez mais, Marta Gimo o apanhava em


contra-mão. Desta vez, o polícia evitou milandear. Ela
que falasse. E, realmente, falou:

—Há que guardar este passado. Senão o país fica


sem chão. (COUTO, 2007, p. 98)

Não nos esqueçamos de que, em Marta, o inspetor


encontrará também um corpo de mulher, quente, maduro,
convidativo, erotizado, sem dúvida, mas em tudo reminiscente da
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imagem de um corpo materno, de um colo consolador como o da


mãe-Terra ou o de uma tradição quase relegada ao esquecimento,
mas ainda via e vibrante.
Contudo, para além desses exemplos, o que marca a
emergência da tradição de modo indelével em A varanda do
frangipani, é a incorporação do xipoco Ermelindo Mucanga em
Izidine Naita. Por artes do insondável, ou da intertextualidade,
ou, ainda, do projeto coutiano de valorizar a tradição, neste
romance, como no outro, o espírito de um morto não pode
abandonar de vez este mundo. Não tendo recebido os rituais
adequados, Ermelindo, morto às vésperas da independência, fica
ligado à fortaleza que ajudava a reformar, habitando sob a árvore
chamada frangipani (plumeria). É para poder se enterrado
condignamente que ele, no início do enredo, se incorpora em
Izidine, que, sabe Ermelindo, morrerá em poucos dias. É essa
uma imagem clara, eloqüente, da literatura de Mia Couto
valorizando o “antigamente”: no inspetor de polícia,
representante do Estado, da nova sociedade, se incorpora
justamente o espírito de um antigo que morreu na véspera da
independência, ficando, assim, ligado perpetuamente à vida e à
visão tradicionais.
Já a modernidade, nos dois livros, aparece com pelo menos
duas faces, uma ao nível do enredo, outra, ao nível da escritura.
No enredo de Um rio... e A varanda..., o que podemos
chamar de modernidade está associado à construção da sociedade
pós-colonial, o Moçambique independente. Seus símbolos são,
praticamente todos, negativos: primeiro, o afastamento das
tradições das tradições (marcado, por exemplo, pelo fato de as
personagens que voltam às ilhas – o narrador e seu tio Ultímio em
Um rio..., o inspetor Naita, em A varanda – não saberem a
língua falada nelas); segundo, a corrupção política e
administrativa ( seu melhor exemplo é Vasto Excelêncio, que
descuida dos velhos a seu cargo); terceiro, a preponderância dos
valores econômicos (é só isso o que interessa ao tio Ultímio, que
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pretende até mesmo vender a casa ancestral depois do enterro do


Avô Mariano); quarto, o tráfico de drogas em Um rio... e de
armas em A varanda...
Talvez a imagem mais representativa do desajuste dessa
modernidade que atropela e ameaça a tradição na literatura de
Mia Couto seja o episódio do carro de Ultímio em Um rio...
Veículo de último tipo (passe o trocadilho com o nome de seu
dono, que pensa, como todos, que é o último filho de Avô
Mariano, mas, como já foi observado acima, não é), ele é levado
à ilha como demonstração cabal do poderio econômico e político
de seu proprietário, expressando sua pretensa superioridade em
relação aos irmãos mais velhos, Abstinêncio e Fulano, e ao meio
em que eles ainda insistem em viver. Entretanto, o desfile triunfal
pretendido por Ultímio não pode acontecer, porque o carrão,
totalmente inadequado ao solo da ilha, nele atola e ali tem de ser
abandonado, sendo, em seguida, vandalizado por alguns
moradores:
Dói-me a ilha como está, a decadência das casas, a
miséria derramada pelas ruas. Mesmo a natureza parece
sofrer de mau-olhado. (...)

Cruzamo-nos com um luxuoso automóvel


enterrado no areal. Quem traria viatura da cidade para
uma ilha sem estrada?

-- Olha, é o Tio Últimio! – e acenam.

Meu Tio Últimio, todos sabem, é gente grande na


capital, despende negócios e vai politicando consoante as
conveniências. A política é a arte de mentir tão mal que
só pode ser desmentida por outros políticos. Últimio
sempre espalhou enganos e parece ter lucrado,
acumulando alianças e influências. No entanto, ele ali se
apresenta frágil, à mercê de uma pobre mão. (COUTO,
2003, p. 28)

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Em termos da escritura, marcam as obras de Mia, entre


outros índices, a constante invenção de neologismos e a
arquitetura polifônica das vozes narrativas.
Em obras voltadas tematicamente para o valor da tradição,
a língua portuguesa se mostra plástica, maleável, dócil nas mãos
de Mia. Escritor de seu tempo, leitor confesso de Guimarães
Rosa, nele o arcaico e o novo se encontram, produzindo termos
como estes, encontrados nos dois livros que vimos citando:
reviravirasse (o rio), inutensílios, terceiroidosos, desverdeado,
outonecido, desfinado, provoquentes. Note-se que os três últimos
se referem ou foram usados pelo velho Avô Mariano, mostrando
como, nas obras de Mia, tradição e modernidade se desconhecem,
se provocam, se digladia, mas também se encontram.
Mais ainda que Um rio..., A varanda... é um exercício
soberbo de polifonia narrativa. Se, desde Bakhtin, se sabe que o
romance não pode ser outra coisa se não um espaço dialogal, em
que as mais variadas vozes podem se manifestar livres do jugo de
um narrador ainda mais onipotente que onisciente, em A
varanda... esse espaço se abre para todas as personagens, por
meio do recurso de cada velho do asilo, ao ser entrevistado por
Izidine, como potencial testemunha do assassinato de Vasto
Excelêncio, contar sua história em primeira pessoa, em sua
própria voz, que chega ao leitor sem a mediação do narrador, que
também não tem o poder de corrigir as discrepâncias entre as
várias versões apresentadas para os mesmos fatos; o resultado
disso é a formação de um concerto a várias vozes, uma polifonia
que permite consonâncias e dissonâncias, postas à disposição dos
olhos, dos ouvidos e do julgamento do leitor, mais do que de
Izidine.
Em Mia Couto, essencialmente escritor, sim, como
testemunha a importância da própria escrita, indicada também
pelo fato de que em Um rio... tanto o Avô Mariano como seu
neto escrevem, assim como Izidine escreve o tempo todo em A
varanda..., tradição e modernidade, como dissemos, podem tanto
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se desconhecer como se encontrar. É por isso que em Um rio


chamado tempo, uma casa chamada terra, o narrador é, por
um lado, escolhido pelo Avô, contrariamente ao que reza a
tradição, para presidir suas exéquias, e, pelo outro, cortejado pelo
tio Ultímio, que o quer em seus negócios políticos e econômicos
na capital. Ao final de sua iniciação na cultura de seus
antepassados, aspecto essencial de sua volta à ilha natal, o neto
Mariano sabe que seu papel é propiciar a comunicação entre os
dois, entre os dois mundos, sendo a ponte entre eles, entre a
tradição e a modernidade, que não podem nem devem se excluir.
Mas isso foi o que disse o próprio Avô Mariano, ao explicar
porque lhe escrevia do além, em vez de utilizar os meios
tradicionais dos tempos antigos:

Estas cartas são o modo de lhe ensinar o que você


deve saber. Neste caso, não posso usar os métodos da
tradição: você já está longe dos Malilanes e seus
xicuembos. A escrita é a ponte entre os nossos e os seus
espíritos. Uma primeira ponte entre os Malilanes e os
Marianos. (COUTO, 2003, p. 125-126)

Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra,


Malilanes e Marianos são os dois nomes que identificam uma
mesma família, o primeiro na língua tradicional, o segundo, em
português. Pela escrita, pelo caminho traçado pelo neto Mariano
entre a tradição e a modernidade, a ligação entre o ontem e o hoje
da família é feita.

REFERÊNCIAS
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Tradição e Modernidade em romances de Mia Couto ‐ Morais 

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