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Trimestral.
Continuação de: Revista da Universidade de São Paulo
Descrição baseada em: N. 93 (2012)
ISSN 0103-9989
5 Editorial
textos
61 A universidade além do espelho Eugênio Bucci
arte
106 Educação em arte, arte como educação Sylvia Werneck
livros
119 La vie en close: c’est une autre chose Gutemberg Medeiros
Conselho Editorial
Albérico Borges Ferreira da Silva
belmiro mendes de castro filho
cicero romão resende de araujo
eduardo victorio morettin
Luiz Roberto Serrano (membro nato)
Fernando luis medina mantelatto
Flávia Camargo Toni
franco maria lajolo
José Antonio Marin-Neto
oscar josé pinto éboli
Saindo do dossiê, nas páginas seguintes da revista, o leitor poderá pensar, com
Eugênio Bucci, o lugar da arte e da filosofia no âmbito da universidade; ou analisar,
com Jean Pierre Chauvin, um tipo de conversação marcada por falar demais e escutar
“de menos”; ou revisitar, com Antônio Maspoli, alguns estudos sobre as formas de
messianismo no Brasil; ou ainda, com Andrea Piccini, encantar-se com os antigos
citas e sua maneira peculiar de enterrar os mortos. E muito mais.
Jurandir Renovato
6 REVISTA USP • São Paulo • n.92 • p. xx-xx • dezembro/fevereiro 2011-2012
inteligência
artificial
Silvertiger/123RF
Apresentação
Comentários sobre inteligência artificial
A
ssim como o tempo para tipo de redução dimensional, não importando
Santo Agostinho, só sa- se os métodos de IA são baseados em lingua-
bemos o que é inteligên- gens lógicas formais de manipulação de regras
cia se não formos força- ou em aprendizado de máquinas, por exemplo.
dos a responder o que é. Que algo que pode ser considerado tão
Este conjunto de artigos humano como a inteligência possa ser im-
lida com alguns aspectos plementado fora do cérebro e, portanto, arti-
não exaustivos, mas im- ficializado, pode ser surpreendente. J. R. N.
portantes para desvendar Chiappin, da FEA-USP, e seus colaboradores,
um pouco o que é inteli- nos mostram que não seria assim para al-
gência artificial (IA). guém familiarizado com a história das ideias.
Fábio G. Cozman, A artificialização está na base da descrição
da Escola Politécnica científica por Descartes, Galileu e Hobbes,
da USP e diretor do Centro de Pesquisa em da construção de algoritmos de cálculo, da
Engenharia (CPE) em IA, nos apresenta uma dinâmica e da construção artificial do próprio
segmentação de IA em diferentes áreas a par- Estado e da pessoa jurídica. De certa forma,
tir de um ponto de vista temático. Mais que entender algo significa poder descrevê-lo e
uma classificação, apresenta sua visão sobre o até reproduzir suas propriedades e funciona-
futuro das áreas de pesquisa e suas aplicações. mento em outro meio, portanto tornando-o
Se a variedade das ramificações é impressio- artificial, novamente tocando no problema
nante, há um tema central que se repete em fundamental da representação.
cada subárea e será sempre o primeiro passo Sérgio F. Novaes, da Unesp, é idealizador
em cada estudo. Este é o problema de repre- e diretor do Advanced Institute for Artificial
sentação do conhecimento. Não há uma única Intelligence, uma entidade que busca colocar
forma e a escolha de um tipo de representação em contato os consideráveis recursos huma-
significa que haverá a necessidade de algum nos disponíveis na área acadêmica com as ne-
resumo abstract
figura 1
Representação de
{
Conhecimento e Raciocínio Linguagem
Natural
violarem a privacidade de cidadãos, com deste artigo, apontando três caminhos que
perdas causadas por decisões automáticas parecem particularmente auspiciosos.
incorretas, com os impactos no mercado de A pesquisa na área certamente deve
trabalho e nas relações humanas. Para além focar melhores técnicas de aprendizado
da reflexão sobre o futuro da sociedade, de máquina. Há várias frentes em que o
existe também a análise concreta sobre as avanço é importante. Em primeiro lugar,
relações sociais e de trabalho na presença é preciso aumentar a capacidade de arma-
de inteligências artificiais. zenar e processar dados, já que o ritmo de
Finalmente, existem várias outras tec- produção de dados da humanidade aumenta
nologias ligadas à IA que se destinam a sem cessar. Em segundo lugar, as técni-
permitir que máquinas consigam perceber cas de aprendizado de máquina devem se
o que ocorre em seu ambiente; a intera- tornar mais robustas: pequenas variações
gir com esse ambiente e agir de forma a nas entradas não podem causar desastres
modificá-lo. Assim temos a tecnologia de (como se observa às vezes com redes neu-
processamento de linguagem natural, que rais profundas). A robustez também deve
se ocupa de interpretar e gerar sequências ser perseguida em outra dimensão: algo-
de símbolos produzidos por seres humanos ritmos devem ser de fácil entendimento e
em suas variadas línguas. Temos também a aplicação, para que sejam usados de forma
visão computacional, que se ocupa de com- correta e livre de comportamento discri-
preender imagens, e a robótica, que envolve minatório. É preciso também ter melhor
máquinas com capacidade de interagir com entendimento sobre redes neurais profun-
o mundo físico. Neste breve artigo temos das: como funcionam, como falham. Além
menor preocupação com esses temas, não disso, resultados obtidos via aprendizado
por formarem campos sem importância – de máquina devem ser interpretáveis: o
ao contrário, por serem campos com tal usuário deve entender as razões que levam
dimensão e complexidade que requerem a particulares decisões, de forma a con-
uma análise em separado. fiar na máquina. Todas essas frentes de
trabalho devem receber atenção no futuro.
PENSANDO NO FUTURO Em segundo lugar, o simples avanço da
tecnologia de aprendizado de máquina não
DA PESQUISA EM IA
vai levar a IA a um novo nível de capaci-
dade. Uma previsão razoável é: o próximo
As inteligências artificiais provavelmente nível de operação de inteligências artifi-
se tornarão mais e mais capazes de cuidar ciais só será atingido através da integração
das tarefas ctidianas e de aprender com sua de aprendizado de máquina, tomada de
experiência; prever aonde isso nos levará em decisão e representação de conhecimento.
um grande espaço de tempo é quase impos- Por exemplo, um sistema de planejamento
sível. Considere um objetivo mais modesto: deve ser capaz de aprender a partir de
quais são alguns temas de pesquisa pro- experiências e também de instruções tex-
missores na área de inteligência artificial? tuais; um sistema de respostas deve ser
Vamos abordar essa questão no restante capaz de levar em conta conhecimento acu-
Bibliografia
Carolina Leister
Chairat Saengdamuk/123RF
resumo abstract
Defendem-se duas teses. A primeira, Two theories are defended. The first,
de que há duas tradições para a that there are two traditions for research
pesquisa sobre inteligência artificial. on artificial intelligence. One of them
Uma delas remonta à tradição milenar goes back to the millennial tradition of
das observações astronômicas com a astronomical observations with data
coleta e tratamento de dados. A outra collection and processing. The other is
é a ciência moderna A segunda tese é modern science. The second theory is that
de que a primeira e mais importante the first and most important contribution
co n t r i b u i ç ã o d a p e s q u i s a e m to the field of artificial intelligence is
inteligência artificial é a proposta, por Hobbes’ proposal to design the State as an
Hobbes, de desenhar o Estado como autonomous machine – take advantage
uma máquina autônoma – aproveitar of the benefits of precision machines – for
os benefícios das máquinas de precisão the industrialization of society and that
– para a industrialização da sociedade this State model is the main factor of the
e de que esse modelo de Estado é o Industrial Revolution.
principal fator da Revolução Industrial.
Keywords: State as machine; artificial
Palavras-chave: Estado como máquina; intelligence; data processing; computer.
inteligência artificial; tratamento de
dados; computador.
O
artigo se propõe a defen- explicação por meio de uma formulação
der duas teses, sendo formal e geométrica hierarquizada expressa
que a primeira consiste por relações funcionais causais. Com a
em que há duas tradi- abordagem da causa eficiente, pretende-se
ções para o que se pode reproduzir, controlar e conquistar, através
entender como pesquisa do desenho e da construção de tecnolo-
sobre a inteligência arti- gias, a natureza, colocando a serviço do
ficial. Uma delas, que bem-estar do homem, não mais meio, mas
remonta às primeiras fim. Propõe-se que essas causas geradoras
observações no mundo estão na forma de princípios de máximos e
grego, se caracteriza mínimos, com Fermat, ou de mecanismos
por uma abordagem de formados de massas e movimentos, com
natureza observacional Descartes, expressando as atividades de
e empírica relacionada com a coleta, trata- Kepler e Galileu.
mento e refinamento de dados, assim como A segunda tese defende que a principal
o desenvolvimento de técnicas para esse contribuição do programa de pesquisa sobre
fim. A outra, que, mais propriamente, se a ciência da inteligência artificial ocor-
denomina aqui ciência teórica como uma
ciência do artificial, consiste em estabele-
cer, para além da coleta e das tabelas de
dados, por meio de uma organização geo- JOSÉ R. N. CHIAPPIN
é professor do Departamento
métrica, relações, padrões e regularidades, de Economia da FEA-USP.
de preferência causais, entre esses dados.
JOJOMAR LUCENA é pesquisador do
Trata-se de uma nova forma de abordagem Departamento de Economia da FEA-USP.
dos dados, a qual surge no século XVII e
CAROLINA LEISTER é professora
requer, de modo artificial, que, para além da Escola Paulista de Política,
dos dados e observações, se organize sua Economia e Negócios da Unifesp.
reu, já nas suas origens, no século XVII, Os animais, assim como o corpo
com a proposta, por Hobbes, de produzir humano, são representados como máqui-
a mais importante e principal tecnologia nas formadas da combinação de máqui-
da ciência teórica, como ciência do artifi- nas básicas. O relógio não é apenas uma
cial, ao desenhar o Estado com modelo no metáfora, mas uma representação para esse
cogito de um homem mecânico autônomo, universo-máquina. Galileu e Descartes pro-
para resolver o problema da cooperação puseram, com outros, as primeiras teorias
e estabilidade entre indivíduos racionais das máquinas, as quais resolvem-nas em
e autointeressados interagentes, de acordo máquinas mais simples, como o parafuso,
com o novo pressuposto ontológico trazido a cunha, o plano inclinado, a roda, o eixo
pelo cogito de Descartes. e a polia (Galilei, 1960; Descartes, 1824).
Descartes consolida filosoficamente, em Se, por um lado, o corpo é reduzido a
suas obras, tanto a atividade científica da uma máquina, por outro, o espírito é redu-
mecanização do espaço, tempo, matéria, zido a um procedimento metódico, regular
como praticada por Galileu e ele mesmo, e, por conseguinte, também mecânico, no
quanto a mecanização do espírito, com sua caso de tomar decisões com o ideal de fun-
proposta, com o cogito, um agente racional, cionar como um algoritmo. A construção
de que o mundo é sua construção artificial. de máquinas autônomas, como o flautista,
A radicalidade dessa proposta de Descar- o leão de Da Vinci e, depois, as máquinas
tes é de que o cogito traz consigo, inerente- têxteis por cartões perfurados, com o for-
mente, uma separação entre a representação, mato de máquinas programadas, representa
a qual está na mente, e a coisa representada, uma espécie de racionalidade realizada.
que está no mundo (Descartes, 1983). Com A importância de afirmar a tese de que
o cogito, não há conhecimento direto das há dois programas de pesquisa sobre coleta
coisas, mas, apenas, de suas representações, e tratamento de dados é buscar entender
as ideias (Descartes, 1983). se há diferenças entre o que atualmente se
A representação, por Descartes, da geo- denomina ciência de dados (e a concepção
metria pela álgebra expressa o processo de inteligência artificial a ela associada)
de mecanização do espaço e do tempo e, e o que se convencionou chamar de ciên-
portanto, da natureza e da algoritmização cia moderna, ou ciência do artificial, com
do raciocínio. O modelo de racionalidade sua origem no século XVII, proveniente da
de Descartes é aquele de um algoritmo demanda em construir, para além da coleta
e, pois, criterial. As regras, no início de e construção de tabelas de dados, relações
sua geometria (Descartes, 1954, p. 298), de inferência, dedução e causalidade, na
onde busca essa representação para somar, organização geométrica desses dados e, por
subtrair, multiplicar e dividir segmentos, esse meio, transformar o processo de obser-
expressam essa ideia. O desenvolvimento vação e coleta de dados numa experimen-
da inteligência artificial, na corrente das tação, uma atividade dirigida e controlada.
redes neurais e da machine learning, abre A primeira das tradições sobre coleta
também a possibilidade de se remeter a e tratamento de dados se deu na remota
uma racionalidade não criterial. Babilônia, na Grécia e, depois, no Egito,
como um agente racional, o cogito, que é Se, num primeiro momento, essa abor-
quem constrói as representações mecânicas dagem da organização causal dos dados se
para a organização dos dados, por meio concentrou no estudo da natureza, com a
de relações funcionais causais, envolvendo construção da sua representação mecânica
espaço, tempo e massa, entre eles. e sua descrição através de relações funcio-
Ele promove a mecanização do espí- nais causais, num segundo, o sucesso desse
rito com uma arquitetura cognitiva com- empreendimento, particularmente quanto à
putacional (Descartes, 1983), formada de eficiência que proporcionou para a interven-
memória, processador de operações e infe- ção, levou a estendê-la, com Hobbes, para
rências, entrada e saída de dados, consti- a solução de problemas políticos e sociais,
tuindo um mecanismo tanto para calcu- com a construção da representação mecânica
lar quanto para fazer inferências lógicas e do sistema social e político com base nos
tomar decisões. Tal arquitetura cognitiva é modelos de indivíduos racionais em interação.
precursora daquela de Babbage e de Von Contudo, entendeu-se que a eficiência
Neumann, e da inteligência como um sis- das máquinas não poderia ser atingida por
tema programável de Simon (1969). um processo aleatório como o da tenta-
O cogito foi modelado sob a influência tiva e erro, como conduzido pelos artesãos,
dessas duas linhas de pesquisas que estão nem com os recursos de dados desconexos,
relacionadas com a aplicação da matemática mas deveria ser projetada e planejada teo-
na coleta e tratamento de dados, contudo ele ricamente, o que, em princípio, envolveria
representa propriamente uma dessas linhas, relações funcionais de causalidade. A tec-
que se denomina ciência, aquela que demanda nologia, para ser eficiente, deveria ser dese-
a organização geométrica como representante nhada, projetada e construída pela ciência.
do mecanismo gerador dos dados, constituído Galileu e Descartes desenvolveram
de relações funcionais causais. suas teorias das máquinas como aplica-
Um dos fatores principais da valoriza- ção de princípios físicos. Identificaram as
ção da aplicação da matemática no conhe- máquinas mais simples e as leis de sua
cimento da natureza é que se entendeu que composição. No entanto, essa atividade de
esse processo de representação da natureza representação do funcionamento do Uni-
por modelos transformou-os num laboratório, verso por mecanismos não se restringiu aos
permitindo a simulação e, assim, a repro- fenômenos físicos, que, como mencionado,
dução, com cada vez mais eficiência, da atingiu o próprio espírito, que passou a ser
própria natureza. Uma consequência dessa tratado como um procedimento mecânico
linha foi proporcionar desenhos e construções de tomar decisões, um algoritmo.
de máquinas de precisão e, pois, máquinas Esse radicalismo foi estendido ao campo
mais eficientes, para intervenção na natu- social e político, e o objetivo ao tratar
reza. Exemplo é a máquina desenhada por esse domínio também como mecânico está
Descartes (Burnett, 2005) para cortar vidro, associado ao ganho de eficiência que a
na forma geométrica de lente com uma pre- construção científica de máquinas tinha
cisão tal que lhe possibilitava eliminar o demonstrado. Por isso, Hobbes defendeu a
fenômeno da aberração cromática. construção do Estado como representado
2018) que Hobbes construiu artificialmente and in which the sovereignty is an artifi-
o problema da cooperação entre indivíduos cial soul as giving life and motion to the
interagentes a partir do modelo do homem- whole body. […] To describe the nature
-máquina de Descartes. Ele construiu o pro- of this artificial man, I will consider [...]”.
blema das condições da cooperação, com
base em um modelo do estado de natureza A descrição proposta por Hobbes é de
formado de agentes racionais, autointeres- uma tecnologia produzida pela ciência da
sados, livres e iguais, e, portanto, segundo inteligência artificial que se antecipa, nesse
ele, um estado de guerra. A solução se quesito da ciência do artificial, a Simon
dá, já que o indivíduo racional antecipa e sua proposta de um Physical Symbols
a tragédia, pelo desenho de um agente System (Simon, 1975, pp. 114-6; 1996) para
externo, o Estado como um homem autô- resolver problemas.
nomo artificial, um autômato. O Estado, Esse projeto de Estado como um autô-
com os recursos da construção artificial mato, para incorporar os benefícios da
de um ordenamento jurídico codificado, eficiência na área social e política, só é
a civil law, e enquanto detentor de um possível se for desenhado, planejado e
poder legal, legitimado por um sistema construído pela ciência. Ele afirma que é
representativo estabelecido por consenti- a ciência, e não o artesão, que desenha e
mento, é capaz de promover a cooperação constrói o Estado:
entre os agentes. Ele propôs essa solução
do Estado como um autômato, no Leviatã. “[…] the making and maintaining of com-
Hobbes (1999, p. IX) assevera: monwealth isn’t a mere matter of practice
[= ‘pratical know how’] like tennis; it is a
“Nature, the art whereby God hath made science with definite and infallible rules,
and governs the world, is by the art of like arithmetic and geometry” (Hobbes,
man, as in many other things, so in this 2010-2015, p. 95).
also imitate, that it can make an artificial
animal. For seeing life is but a motion of Temos também interpretado o traba-
limbs, the beginning whereof is in some lho de Hobbes em analogia com o modelo
principal part within; why may we not de Ising (Chiappin, 1979) de fenômenos
say, that all automata (engines that move cooperativos de desordem/ordem. A desor-
themselves by springs and wheels as doth dem ocorre no estado de natureza, pois os
a watch) have an artificial life? [...] Art interesses privados estão em permanente
goes yet further, imitating that rational conflito. A promoção da cooperação se dá
and most excellent work of Nature, man. com a construção do interesse comum, que
For by arts created that great LEVIATHAN serve de referência para, com o recurso do
called a COMMONWEALTH, or STATE ordenamento jurídico codificado, produzir
(in Latin, CIVITAS), which is but and o alinhamento dos interesses privados com
artificial man; though of greater stature o interesse comum. O mecanismo do con-
and strength than the natural, for whose trato, análogo àquele da criação de uma
protection and defence it was intended; corporação, concentra – do mesmo modo
learning e das redes neurais poderia ser como uma nação-Estado, e como modelo
associada à primeira. para o desenvolvimento e estabelecimento
Nesse contexto, defendemos a tese de de outras nações-Estado industrializadas.
que coube a Hobbes desenhar e construir a Assim, reivindicamos que foi essa tec-
mais importante máquina e tecnologia da nologia política e social da inteligência
inteligência artificial, o Estado moderno. artificial, modelada naquela da Inglaterra,
O Estado de Hobbes é uma versão de a responsável pela construção dos Esta-
uma máquina de propósito geral, como a dos Unidos como uma nação-Estado, que
generalização do desenho da máquina de a transformou, no final do século XIX,
cortar lentes de Descartes, construída para no maior potencial industrial, assim como
desenvolver e realizar o interesse público a França e, principalmente, a Alemanha,
sob as restrições da aplicação e execução depois de 1870, e em seguida a Rússia,
das leis e da civil law (Chiappin & Leister, depois de 1917 – um exemplo destacado
2017a, 2018). O objetivo de Hobbes era o da aplicação da ciência do artificial –, o
de aproveitar, com a representação mecâ- Japão e a Coreia do Sul moderna e prin-
nica, na área social e política, os benefícios cipalmente a China, outro exemplo da
da eficiência decorrentes do desenvolvi- ciência do artificial, todos resultados de
mento da matematização da natureza com uma economia política que tem por modelo
a representação mecânica desta. abstrato o Estado de Hobbes e, concreto,
Consideramos também que foi essa tec- aquele da Inglaterra e depois o dos Estados
nologia da inteligência artificial o fator Unidos, voltado para o desenvolvimento e
determinante da transformação da Ingla- a aplicação da ciência e tecnologia na pro-
terra de uma sociedade agrícola em indus- dução, transformando uma sociedade rural
trial, causando a Revolução Industrial, e, numa sociedade industrial. O passado foi
portanto, no seu estabelecimento, que iden- Hobbes e não Smith, mas, principalmente,
tificou o interesse comum com o nacional, o futuro é Hobbes e não Adam Smith.
resumo abstract
nho ruim nessa corrida pode gerar uma De um modo geral, algumas áreas são
desvantagem impossível de ser recuperada recorrentes na formulação das políticas apre-
no futuro, causando atraso que não apenas sentadas nos documentos. São elas: pesquisa
terá impacto no desenvolvimento econômico científica, desenvolvimento de talentos, desen-
como poderá inclusive comprometer nossa volvimento de habilidades, industrialização,
segurança e soberania. ética, infraestrutura digital e de dados, ser-
viços governamentais e inclusão. No entanto,
CASOS DE SUCESSO cabe destacar que cada estratégia possui ele-
mentos particulares. Assim, a análise trans-
DE IMPLANTAÇÃO
versal de todas as estratégias, ainda que dese-
DE POLÍTICAS ESTATAIS jável, implica a relativização de elementos
importantes a cada estratégia individualmente.
Nos últimos três anos, mais de 40 países Observa-se, porém, que a industrializa-
estabeleceram comitês e grupos de trabalho ção figura como prioridade estratégica para
ou elaboraram estudos para o desenvol- grande parte desses países. A Coreia do Sul,
vimento e definição de compromissos no por exemplo, já em março de 2016, publicou
campo da inteligência artificial, dos quais o documento Mid-to long-term master plan
mais da metade divulgou documentos ofi- in preparation for the intelligent informa-
ciais lançando suas estratégias nacionais. A tion society: managing the fourth industrial
União Europeia, por sua vez, busca definir revolution, no qual são definidos os pilares
uma abordagem supranacional para a IA. A da estratégia sul-coreana para o desenvolvi-
Tabela 1 lista os países e suas respectivas mento da chamada Intelligent IT, com foco
estratégias nacionais, indicando ainda as no fomento das tecnologias da Quarta Revo-
datas de anúncio e o orçamento previsto, lução Industrial, termo cunhado por Klaus
quando aplicável. Schwab, diretor do Fórum Econômico Mun-
Nesse conjunto de países que desperta- dial, que designa a revolução digital em curso
ram para a importância da IA, é possível desde a virada do século XXI.
identificar três estágios de formulação de A Quarta Revolução Industrial caracte-
estratégias nacionais: há países que defini- riza-se principalmente pela onipresença e
ram políticas específicas, em alguns casos mobilidade da internet, pelo uso de sensores
reservaram orçamento para financiar seu cada vez menores e mais potentes e pela
desenvolvimento; outros países iniciaram inteligência artificial. Essas tecnologias, ainda
estudos, publicaram guias e white papers, que não sejam exatamente novas, tornam-se
para orientar a formulação de políticas cada vez mais sofisticadas e integradas. Outra
públicas para a IA. Nesses casos, pode-se característica importante é a velocidade com
afirmar que tais documentos demonstram que as tecnologias emergentes se difundem.
uma movimentação no sentido da elabo- O conceito de indústria digital – ou indústria
ração de uma estratégia nacional. E um 4.0 – também não é recente. Remonta ao ano
terceiro caso, em que a IA é tratada como de 2011, durante a feira Hannover Messe, na
um tipo de tecnologia dentro de uma estra- Alemanha, quando o governo alemão lan-
tégia digital mais ampla. çou sua estratégia nacional de interconectar
tabela 2
De acordo com o Relatório Global de nacional. Nesse contexto, o Brasil não pode
Competitividade, produzido pelo Fórum se permitir perder essa oportunidade histó-
Econômico Mundial, o Brasil ocupa a 72a rica, sob o risco de comprometer seriamente
posição em um ranking com cerca de 140 seu futuro científico-tecnológico, com impor-
países. Esse índice é apenas uma ilustração tantes reflexos socioeconômicos, na segurança
da nossa situação como país, mas também e na própria soberania nacional.
é uma oportunidade para demonstrar como Para tanto, faz-se necessário que sejam
uma política pública estruturada e com subs- identificadas as prioridades estratégicas, no
tantiva governança na área de inteligência curto e no longo prazo, nas áreas em que
artificial pode conduzir o Brasil a um novo o Brasil tenha maior vantagem competitiva
patamar tecnológico. frente aos demais países. Isso certamente
A inteligência artificial tornou-se o novo passará pela necessidade de consolidação de
foco de competição por se tratar de uma um parque industrial qualificado às novas
tecnologia que liderará o futuro. Os prin- tecnologias, pela qualificação e formação de
cipais países desenvolvidos já tomaram o profissionais nas áreas da ciência, tecnolo-
desenvolvimento da inteligência artificial gia e inovação, e pela retenção de talentos,
como principal estratégia para o aumento como também deverá considerar questões
da competitividade e proteção da segurança éticas e normativas.
resumo abstract
O objetivo deste artigo é mostrar em The aim of this article is to show in simple
casos simples como funcionam as redes cases how neural networks function.
neurais. Nesse sentido, embora seja Although it is possible to describe the
possível descrever o funcionamento de functioning of a neural network of
uma rede neural de arquitetura profunda deep architecture in various ways, this
de várias formas, neste artigo optou-se article opted for the description in terms
pela descrição em termos da construção e of construction and reconstruction of
reconstrução de representações internas internal representations as the information
à medida que a informação se propaga propagates through the network.
pela rede.
Keywords: neural networks; artificial
Palavras- chave: redes neurais; intelligence.
inteligência artificial.
A
o longo da história da de muitos elementos simples pode gerar
humanidade os modelos resultados inesperados.
mecânicos para o cére- As primeiras ideias sobre redes neurais
bro e a mente mudaram apareceram logo depois do descobrimento
ao acompanhar o desen- dos neurônios por Santiago Ramon y Cajal,
volvimento tecnológico no fim do século XIX. William James e
da época. Se já descre- Sigmund Freud estão entre os primeiros
vemos o cérebro usando a sugerir a modelagem de processos cog-
relógios de água, moi- nitivos. A falta de ferramentas teóricas e
nhos de trigo, telégrafos experimentais daquela época levou ao aban-
e computadores digitais, dono de tais projetos, que voltaram a sur-
agora temos outras metá- gir com mais força depois de avanços em
foras. As redes neurais neurofisiologia e teoria de computação em
artificiais (RNA) ocupam hoje esse lugar meados do século XX. Hodgkin e Huxley,
privilegiado. Além de permitir modelos do lado biológico, introduziram o modelo
de cognição ou de sistemas neuronais matemático do neurônio que até hoje é a
biológicos, as RNA estão por trás da base para modelagem de sistemas neurais
revolução tecnológica em curso. O lugar- realistas. McCulloch e Pitts introduziram o
-comum é citar Arthur C. Clarke e dizer modelo matemático mais simples possível
que “Any sufficiently advanced technology de um neurônio. O perceptron introduzido
is indistinguishable from magic”. Porém, por Rosenblatt, no fim da década de 50,
o objetivo deste artigo é mostrar em casos
simples como funcionam as redes neurais,
essencialmente revelando os ases dentro
da manga, mas devemos conceder que as NESTOR CATICHA é professor titular
do Instituto de Física da Universidade
redes mais complexas ainda parecem magia de São Paulo e coordenador do Núcleo
até para seus criadores, pois a composição de Apoio à Pesquisa CNAIPS da USP.
usa os neurônios de McCulloch-Pitts como não haveria alternativa prática para treinar
peças de lego para construir máquinas muito uma rede de perceptrons multicamadas.
mais ricas e complexas. O perceptron mais Isso mostrou para alguns que o projeto de
simples tem somente uma peça de lego, redes neurais estava destinado ao fracasso.
unidades de entrada se comunicam com E o financiamento foi para outras áreas
uma única unidade de saída. A importância de IA baseadas em regras específicas e
dessa máquina é que não precisamos saber não em aprendizagem.
as regras que levam à resolução de um pro- A conjectura estava baseada “em parte
blema, tal como a classificação de objetos na experiência em encontrar falácias nos
em uma de duas categorias. Basta dispor métodos propostos” e, como quase toda
de exemplos, pares formados pelo objeto prova de impossibilidade de algo baseado
e sua classificação. O perceptron aprende no argumento “eu não consegui”, mostrou-
usando exemplos. Rosenblatt foi em frente e -se incorreta. Vários autores encontraram
mostrou que, se existe um perceptron sim- soluções para treinar redes com camadas
ples que resolve um problema de classifi- internas, mas de alguma forma a notícia não
cação, podemos usá-lo como professor de se difundiu, até que, em 1986, Rumelhart,
outro perceptron simples, o aluno. Rosen- Hinton e Williams popularizaram o método
blatt apresentou um algoritmo que leva o de retropropagação (backpropagation) para
aluno a aprender o conjunto de exemplos treinar perceptrons de multicamadas. As
em tempo finito e ainda pode classificar redes com algumas poucas camadas internas
exemplos nunca antes vistos, com habili- viraram o jogo da IA. O programa de estudo
dade que cresce com o número de exemplos e uso de redes neurais, com o novo nome
apresentados. O aluno pode generalizar a de coneccionismo, ganhou espaço. Começou
partir do que foi ensinado pelo professor. um novo ciclo de explosão de atividades,
O impacto intelectual foi grande, havia um resultados promissores e mais promessas.
caminho para construir máquinas que pode- Promessas não cumpridas, dificuldades de
riam resolver um problema sem que fosse implementação em razão de custos computa-
necessário que o programador soubesse cionais elevados e o aparecimento de méto-
como resolvê-lo. Promessas foram feitas. dos alternativos trouxeram um declínio nos
A inteligência artificial estava ao nosso anos 90. Neste milênio, o aparecimento da
alcance e o financiamento de pesquisas a GPU (Unidade de Processamento Gráfico, na
tornaria realidade. Porém Minsky e Papert sigla em inglês) e seu barateamento graças
mostraram que há problemas que não pode- ao enorme mercado de jogos de computador,
riam ser resolvidos pelo perceptron simples, além de avanços técnicos na implementação
mas sim por perceptrons feitos com mais de algoritmos, permitiram a solução para
peças de lego. Essas máquinas deveriam os problemas da década anterior. O novo
ter, além das unidades de entrada e de poder computacional possibilitou conside-
saída, também unidades internas formando rar redes com grande número de camadas
camadas escondidas dentro do que seria internas, as redes de arquitetura profunda.
a “caixa-preta”. Embora isso esteja cor- O perceptron de muitas camadas passou a
reto, eles lançaram a conjectura de que ser conhecido como máquina de aprendiza-
Acima, um problema linearmente separável. A nuvem de pontos pode ser separada por
um (hiper) plano nas classes branco e preto e, portanto, um perceptron simples, mostrado
à direita, é suficiente. As unidades de entrada em branco e a de saída em preto. Abaixo, padrões
em preto e cinza-escuro são da mesma classe. Branco e cinza-claro também pertencem à
outra classe. As duas classes não podem ser separadas por um plano. À direita, um perceptron
multicamada com uma camada escondida (cinza) pode realizar a tarefa. As saídas da camada
escondida formam a representação interna do objeto. A informação flui da esquerda para a direita.
Dinâmica de aprendizado e evolução das representações internas no XOR com a rede com
camada escondida da Figura 1. Em todas as figuras, os pontos iniciais (-1,-1), (-1,1), (1,-1) e (1,1) são
os mesmos, mas as representações internas finais são diferentes. Nas quatro figuras superiores
a rede pode separar corretamente os exemplos nas duas categorias: preto numa categoria
e cinza na outra. A separação é feita pela linha preta tracejada, é a borda entre as classes.
Na figura inferior, a RI de dois padrões de classes diferentes colidem em (-1,-1) e ficam sobre
a borda da dúvida. As diferenças entre as figuras decorrem da escolha aleatória dos pesos
iniciais da segunda camada. Em todos os casos há uma fase rápida de contração,
uma fase longa onde pouco acontece e finalmente um avanço rápido até as RI finais.
dessa saturação é que o sinal é muito mais rem ações muito repetitivas e geração de
claro que no regime linear. cenários como xadrez e outros jogos. Mas
isso não quer dizer muito mais que a cons-
DISCUSSÃO tatação de que o xadrez é em algum sen-
tido um jogo simples, além do fato de que
O exemplo acima pode ser considerado o centenas de pessoas trabalharam para cons-
caso mais simples possível e, portanto, não truir a máquina e esta incorpora um con-
conta toda a história de como as máquinas junto de informações que nenhuma máquina
de arquitetura profunda funcionam. Mas, ao pode selecionar ou curar no estágio atual.
entender como essa máquina funciona ao O cérebro humano tem muito menos cama-
mudar as representações internas, podemos das que as redes de arquitetura profunda,
começar a descrever processos muito mais mas sistemas de retroalimentação muito
complexos. Para objetos representados em mais complexos. A necessidade de grande
espaços de dimensionalidade muito mais alta, quantidade de dados para treinar uma rede,
para manter a dimensão das camadas inter- comparada ao pequeno número de exemplos
nas aproximadamente da mesma ordem que que uma criança precisa, também mostra
a de entrada, serão necessárias mais camadas que ainda não entendemos como reprodu-
internas. Cada uma representará os objetos zir o cérebro. A capacidade de se adaptar
de forma diferente; alguns se aproximarão rapidamente a ambientes que mudam é uma
e outros se afastarão, tornando a geometria área de pesquisa importante e que tem um
das nuvens mais perto daquela que pode ser longo caminho a percorrer.
resolvida no último passo por uma máquina Embora possamos descrever o funciona-
tão simples como o perceptron. mento de uma rede neural de arquitetura
Não cabe aqui descrever todas as aplicações, profunda de várias formas, escolhemos neste
nem sequer todos os tipos de uso que podem artigo a descrição em termos da construção
ter. Concluiremos com uma descrição de alguns e reconstrução de representações internas à
objetivos que uma teoria desse tipo de sistema medida que a informação se propaga pela
de processamento de informação pode ter. A rede. Um fato que sempre acho surpreen-
descrição de processamento de informação dente, embora seja natural do ponto de vista
por mudança de representação interna não dá matemático, é que podemos ter diferentes
conta do problema da explicabilidade. Quando RNA que respondem exatamente da mesma
não sabemos resolver um problema através forma às questões, mas que têm representa-
de regras específicas, não satisfazemos nem a ções internas muito diferentes. Se eu peço
curiosidade nem as demandas legais. É claro que olhem para um objeto, uma maçã talvez,
que muitas vezes a explicação da ação por um é possível conceber que muitos concordarão
humano é posterior à sua decisão e a mesma que tem cor vermelha, ou seja, responderão
ação pode ter diferentes explicações pós-fato. da mesma forma a certas perguntas. Além
Talvez estejamos pedindo mais explicações de disso, terão atividade no cérebro em regi-
uma rede neural que de um humano. ões análogas. Mas a representação interna,
As RNA têm tido algumas vitórias impor- aquela atividade que nos dá a sensação do
tantes sobre humanos em tarefas que reque- vermelho, será a mesma?
Eugênio Bucci
C
omo integrante do grupo encarregado de
pensar o futuro da USP, constituído no âm-
bito do Instituto de Estudos Avançados pelo
nosso diretor, Paulo Saldiva, pude conviver
com algumas das maiores inteligências da
universidade brasileira na atualidade: Luiz
Bevilacqua, ex-reitor da UFABC, Naomar
de Almeida Filho, ex-reitor da Universidade
Federal do Sul da Bahia, e os professores
da USP Henrique von Dreifus, Guilherme
Ary Plonski, Caio Dantas, Elizabeth Bal-
bachevsky, Arlindo Philippi Jr. e Roseli
de Deus Lopes. Nosso trabalho legou um
bom resultado. Agora, o relatório de con- que requer um fôlego maior. Não entrego
clusões do nosso grupo, “USP: proposta de aqui o aprofundamento por dois motivos:
uma agenda para o futuro”, cuja redação quanto à forma, o espaço de um artigo,
foi coordenada por Luiz Bevilacqua, foi ainda que mais alentado, não se presta a
apresentado e debatido num seminário que formulações mais longas; quanto ao conteú-
se estendeu por toda a tarde, no dia 10 de do propriamente, o limite vem da aridez do
outubro de 2018, no IEA. meu repertório teórico, isto é, eu, sozinho,
Numa das mesas – “Avaliação e excelên- não daria conta de um empreendimento
cia. Conexões com a sociedade” –, expus intelectual tão ambicioso. Dou conta, isto
um breve comentário sobre a necessidade sim, de alertar para a necessidade de pen-
de expandir e estimular o espaço dado à sarmos a respeito. Fora o que, deveríamos
filosofia e à arte dentro da universidade. contar com outras vozes, outras aborda-
Nessas duas esferas, a da filosofia e a da gens, outras colaborações. Fica lançada a
arte, teríamos um contraponto imprescin- sugestão: novas falas serão bem-vindas. De
dível ao discurso da ciência. Quando se que modo a filosofia e a arte existem – ou
trata de estabelecer diretrizes para as nos- devem existir – dentro da universidade?
sas atividades, para a nossa relação com a Como essas duas esferas comparecem ao
sociedade, com o mercado, com o Estado debate sobre avaliação e excelência?
e com a comunidade internacional, o con- O presente artigo se alinha com os pa-
traponto a que me refiro deveria ser, aos râmetros dados pelo relatório coordenado
meus olhos, obrigatório. Não é possível por Luiz Bevilacqua. Aqui, encaminho um
pensar o papel e o lugar da universidade, convite à comunidade, é certo, mas em
inclusive sobre a sua produção científica, sintonia com os diagnósticos e as propo-
se não incorporarmos as dimensões da fi- sições que constam do nosso relatório. A
losofia e da arte no interior mesmo daquilo elaboração ligeira, aqui contida, inscreve-
a que chamamos de “espírito da univer- -se como parte e como prolongamento das
sidade”. Então, na minha participação no ideias que o relatório tão bem encadeia.
dia 10, lancei uma pergunta: parâmetros Aliás, o texto final do nosso documen-
científicos bastariam para pensar sobre to menciona expressamente a necessária
produtividade ou para medir a excelência? presença da filosofia e das humanidades
Tratei dessa inquietação de modo um tan- no coração da universidade. Literalmen-
to apressado, dadas as limitações de tempo te: “Não é de forma alguma menor a im-
e de formato das mesas em um seminário portância da filosofia, da política e das
conciso. Só o que pude fazer foi pontuar artes no processo de transformação que
indagações. Ao final da minha apresentação, vivemos”. É nesse sentido que este breve
o superintendente de Comunicação Social artigo se irmana com as melhores ambi-
da USP, Luiz Roberto Serrano, me convidou ções do texto final que apresentamos no
para escrever este artigo, convite que aceitei dia 10 de outubro.
com alegria. Eis aqui o artigo solicitado. Ainda a esse propósito, cito uma vez
Aviso desde logo que, também neste tex- mais o nosso líder, Luiz Bevilacqua. Ele
to, não tenho como aprofundar a questão, costuma se valer de uma metáfora para
mos de algo que, mais do que observar ção de seu próprio perímetro, que tende
o ceticismo científico, ponha em xeque a expandir-se em saltos de dentro para
os postulados do ceticismo científico. Eu fora. A universidade – pois não há ou-
diria que, sem a possibilidade de nos ar- tra instituição capaz de tamanho arrojo
riscarmos para além do espelho, a uni- intelectual – olha para a ciência como o
versidade pode ser produtiva e até mesmo sujeito olha para o que lhe é inteiramente
“de ponta”, mas não terá graça nenhuma, outro. A ciência não pauta a universida-
pois dentro dela não teria lugar aquilo de plenamente, mas apenas a instrui por
que de imponderável existe para definir meio de interpelações conflituosas. Ou é
a humanidade – e as humanidades. assim ou não haverá a humanidade – ou
É certo que, sem as métricas da ci- as humanidades – na universidade.
ência – sem seu método, seus matemas, Claro que isso demanda uma nova ma-
seus discursos, seus critérios objetivos neira de ensinar a filosofia – que vá além
e seus padrões de certificação –, não há do ensino da história da filosofia, como diz
arquitetura de ensino superior, de pes- Renato Janine Ribeiro, para quem “a filo-
quisa acadêmica ou de universidade. Não sofia consiste em filosofar”, como ele me
obstante, será que as métricas da ciên- cochichou durante uma das mesas do dia
cia nos bastam? Creio que não. O dado 10. Ou a universidade “filosofa” ou se reduz,
incômodo é que, se quisermos divisar a na melhor das hipóteses, a uma usina de
massa de referenciais científicos pelo lado patentes. Patentes são úteis, mas é a filoso-
de fora, teremos não que nos expor aos fia que pensa sobre a natureza da utilidade.
nossos próprios olhos diante do espelho: Além da filosofia, convoquemos a arte.
teremos que nos desmaterializar do lado Nesse caso, falamos de uma centelha de
de cá e passar a existir do lado de lá da arte antimercado, anti-indústria e antienga-
lâmina que nos reflete. jamento. A arte que importa à universida-
Por aí podemos então contemplar a fi- de seria aquela que se realiza no instante
sionomia da ciência quando vista a partir da aparição de uma coisa distante, por
do exterior da própria ciência. E, aten- mais próxima que ela esteja (Benjamin),
ção, aqui o que é exterior à ciência não no grânulo infinitesimal de tempo em que
se confunde com religião ou política. É essa fagulha ainda não é matematizável.
justamente esse exterior e não outro que Arte como exceção à regra da cultura. Arte
não pode faltar à cartografia da universi- como desestabilização num flash, trepida-
dade – uma cartografia paradoxal, além ção do léxico, impedância imperceptível,
de complexa. Na universidade, postulo entropia vital. Arte como o deslizamento
eu, a ciência deve ser pensada como pro- criativo do significante no momento em
blema, ou como questão, jamais como a que se desprende do significado anterior e
matriz do pensar e muito menos como ainda não encontrou seu novo significado.
solução. Na universidade, a ciência não Que voo do espírito lograria criticar a
teria como fechar sobre si mesma o seu ciência, sem pretender reduzi-la a dogmas?
próprio círculo, ainda que se presuma que A filosofia, por certo – e a arte, também.
esse círculo contenha as vias de supera- É nesse sentido que, hoje, muito mais do
nalidade, mas ela carrega, mais do que 27 mil anuais, mas dá mais um passo na
racionalidade, um rasgo de ressentimento. direção da gratuidade do ensino.
Se você não acredita, lembre-se de que, Como interpretar esses sinais que vêm
há pouco tempo, uma operação desastrada de fora, quando debatemos aqui a avalia-
– ou mesmo maligna – da Polícia Federal ção e a excelência na USP – e no futuro
contra dirigentes de universidades públicas da USP? Parto da hipótese de que existe,
adotou o nome-senha de “Torre de Mar- nessa inflexão da universidade americana,
fim”. Isso mesmo: a Polícia Federal do um impulso de aspecto solidário, mas não
nosso país parece acreditar que a universi- creio que isso explique tudo. A questão
dade pública brasileira se assemelha a uma é antes de racionalidade que de fraterni-
“torre de marfim”, uma reserva intocável dade. Basta ponderarmos. Nenhuma uni-
de privilégios e confortos desmedidos. No versidade digna desse nome se sustenta
bojo dessa deterioração de imagem pública, com a cobrança de mensalidades. Mesmo
entende-se como um “privilégio” e, por- as instituições que cobram caro de seus
tanto, como um não direito, a condição de alunos, se são verdadeiramente institui-
que os estudantes frequentem os cursos ções que pesquisam e que desenvolvem
de graduação nas instituições públicas de conhecimento, precisam de recursos vul-
ensino superior sem ter que pagar. Temos tosos além dessa receita. Assim é que, de
um problema nesse ponto. É evidente que uma forma ou de outra, por um caminho
temos um problema aí. ou por outro, a sociedade não tem como
Agora vejamos. Enquanto recrudesce fugir da necessidade de bancar a pesquisa
a sanha para que se institua a cobrança e também a formação de novos quadros
de mensalidades nas faculdades públicas qualificados para o mercado de trabalho.
do Brasil, nos Estados Unidos nota-se um A questão, portanto, não é se se deve
movimento inverso. No MIT, Hashim Sa- adotar sistemas para ajudar os alunos a
rkis, dean da School of Architecture and custearem seus estudos. A questão é co-
Planning (onde está o curso de arquitetu- mo fazer isso.
ra e, entre outros órgãos, o Media Lab), As fórmulas socialmente consagradas
vem falando de um plano para diminuir ou para essa ajuda aos alunos do ensino su-
mesmo extinguir a combrança de mensali- perior são conhecidas. Podem-se oferecer
dades e anuidades. Harvard, por sua vez, financiamentos de longuíssimo prazo (aí,
oferece cada vez mais cursos a distância o custo para a sociedade aparece no prazo
gratuitos. Outro sinal interessante vem da alongado de retorno do dinheiro público
Universidade de Nova York (NYU). Re- investido), como se vê comumente nos Es-
centemente, em agosto de 2018, a NYU tados Unidos e no Fies, no caso brasilei-
surpreendeu seus 443 alunos de medicina ro. Outra alternativa é manejar políticas
ao anunciar o fim das cobranças de paga- de compensação tributária, como aconte-
mentos, o que representará uma economia ce com o Prouni, um programa em que,
de US$ 55 mil por ano a cada um deles. pelo disciplinamento da renúncia fiscal,
A medida não cobre alojamento e outras estabelecendo contrapartidas específicas, o
despesas, que totalizam em média US$ Estado banca o financiamento dos cursos
eu, pois representou uma insubordinação E tudo bem. Nesta hora em que gas-
à técnica encerrada no capitalismo extra- tamos nosso tempo pensando sobre a
tivista. Lembro ainda que, no aleph de universidade, um pouco de arte e até
Borges, a fissura que mostra o mistério mesmo de absurdo nos devolve um pou-
logo se esquiva. E é melhor assim, mas aí co de razão. O que é uma estratégia de
não me cabe discutir por quê. Quanto a país sem imaginação desregrada? E de
Alice, tudo aquilo que ela encontra além que serve uma universidade que não se
da “brilhante névoa prateada” se fabula rebela contra o discurso da ciência, prin-
como um brinquedo absurdo, algo que nem cipalmente naquilo que, nesse discurso,
rima nem é solução. é religião sem mistério?
D
“Assim zombara ele desta, zombara
assim de outras ninfas nas águas
ou nos montes nascidas, como havia
zombado de muitos jovens” (Ovídio).
FALA, CONVERSA
pêutico à fala. Em termos mais especí- fenômenos, e é neles que vai procurar o
ficos, determinados sintomas provocados inconsciente” (Lacan, 2008, p. 32).
por traumas, ou gatilhos mediados pela
psique, poderiam ser identificados e ana- Um pouco mais tarde, Michel Foucault
lisados com vistas à cura de síndromes sugeriu que a interdição da fala seria um
e transtornos recorrendo-se à linguagem dos modos de exclusão, do ponto de vista
externalizada. De posse do diagnóstico, o sociopolítico. Em nome de argumentos
psicanalista apresentaria ao falante uma pseudocientíficos ou normativos conven-
ou mais vias de tratamento, com ações cionados por determinado grupo, a acolhi-
e prazos estimados de duração. da do indivíduo cederia lugar ao boicote
de sua fala. Em acordo com a origem so-
“Nosso plano de cura se baseia nesses co- cial, a posição ocupada pelo sujeito e as
nhecimentos. O Eu está debilitado pelo suas características, ele receberia o aval
conflito interior, temos de correr em seu (ou o veto) dos pares ou superiores. Nesse
auxílio. É como numa guerra civil que sentido, a possibilidade de externalizar o
deve ser decidida pela assistência de um que pensava e sentia por intermédio da
aliado externo. O médico analítico e o Eu fala implicaria a aprovação (ou a coer-
debilitado do paciente devem, apoiados no ção) do outro.
mundo externo real, formar um partido
contra os inimigos, as exigências instin- “[...] o que os intelectuais descobriram re-
tuais do Id e as exigências de consciência centemente é que as massas não necessi-
do Supereu” (Freud, 2019, p. 226). tam deles para saber; elas sabem que são
perfeitamente, claramente, muito melhor do
O método terapêutico proposto por que eles; e elas o dizem muito bem. Mas
Sigmund Freud seria desdobrado por Ja- existe um sistema de poder que barra, pro-
cques Lacan, nas décadas seguintes à íbe, invalida esse discurso e esse saber”
morte do “pai” da psicanálise. Para o (Foucault, 2009, p. 71).
herdeiro francês, a fala não só partici-
pava do processo de superação do trau- Para além da discussão em torno dos
ma – ou localização do gatilho, descrito efeitos da fala e da sua caracterização co-
conscientemente, ou não, pelo paciente. mo sintoma, deve-se lembrar que, entre os
Além do caráter terapêutico, o ato da séculos XVI e XIX, a conversação cons-
fala relacionava-se à identidade e à (re) tituía uma das artes cultivadas nas cortes
constituição do indivíduo. europeias, quando a aristocracia passou a
se refinar com artes que ensinavam no-
“No sonho, no ato falho, no chiste – o vos modos ao cortesão, com vistas a sua
que é que chama atenção primeiro? É o distinção como nobre discreto, em relação
modo de tropeço pelo qual eles aparecem. aos homens vulgares ou sem representa-
Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa ção social (Burke, 1995). Para esses manu-
frase pronunciada, escrita, alguma coisa ais, a fala resultava de uma performance
se estatela. Freud fica siderado por esses codificada, eivada por regras que diziam
de ócio de seu colega, orientador ou pro- domínio psíquico sobre esse montante de li-
fessor – disponível dia e noite para as suas bido, ou seja, à introversão para as fantasias
dúvidas pontuais e agruras existenciais, sob encontrada nas neuroses de transferência”.
pena de parecer frio, distante e insensível.
Ela também se manifesta quando amigos Finalmente, ela pode estar nas ruas. Pa-
sobrevalorizam o que têm a expor, mas são rece ser o caso quando, em meio às gentes
incapazes de escutar o que o ouvinte teria numa galeria comercial repleta de pesso-
de importante a lhes comunicar. Ela está as, no bairro da Liberdade, em São Paulo,
na costumeira autorreferenciação, traduzida acontece um diálogo como o que segue:
pelo emprego recorrente de “minha tese”,
“meu artigo”, “minha aula”, “meu ponto “– Biluuuu! Biluuuu! [aos gritos]
de vista”, “minha ideia”, etc. Recorramos – O que é isso?! [assustado]
a Lacan (2008, p. 40), para atribuir maior – Isso é o meu estado de felicidade, que
consistência: incomoda muita gente [dito ruidosamente]”4.
Bibliografia
5 “For instance, nothing is more generally exploded than s/p) [“Por exemplo, em geral nada é mais disruptivo
the folly of talking too much; yet I rarely remember to que a loucura falando em demasia; contudo lembro-
have seen five people together where someone among -me de raramente haver cinco pessoas juntas, em que
them hath not been predominant in that kind, to the uma delas não tivesse predominância desse tipo, para
great constraint and disgust of all the rest” (Swift, 2014, grande constrangimento e desgosto de todo o resto”].
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Acesso em: 15/9/2019.
O
Antônio Maspoli de Araújo Gomes
nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Walnice Nogueira Galvão (2009, p. 52)
Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz” (Isaías aponta para a existência desses elementos
9:1-6). Os profetas não previram objetiva- do messianismo bíblico na obra Os sertões,
mente a vinda de Jesus. Eles anunciaram de Euclides da Cunha. Diz ela:
genericamente a vinda de um rei justo e
bom, um messias, da descendência de Da- “Isso se efetiva através da mimese do grande
vi. Já os autores e os intérpretes do Novo sintagma narrativo da Bíblia, por meio do
Testamento viram em Jesus a realização da qual é traçado o arco que vai da criação do
esperança messiânica. Essa interpretação é arraial de Canudos, o Gênese bíblico, até
negada pelo judaísmo e seguida pelo cris- seu aniquilamento pelo ‘fogo’, o Apocalipse,
tianismo em todas as suas vertentes. em conjunção com as profecias das sagradas
O Príncipe da Paz é a garantia do sha- escrituras”.
lom. O shalom é o resgate da ordem justa
do mundo criado por Deus. Na linguagem A hermenêutica sertaneja, fincada em
bíblica, essa nova ordem é conhecida também pressupostos do catolicismo popular e das
como Reino de Deus – o sonho do mundo crendices próprias do sertão, faz uma in-
bom, recuperado. O shalom é o conteúdo terpretação particular do sentido bíblico do
do reino messiânico, pois é ele, o Príncipe messias e dos termos messiânicos.
da Paz, quem estabelece o shalom. O sha-
lom está totalmente relacionado à justiça; “O Rio da Água da Vida que corre no Pa-
isto é, para alcançar o shalom é necessário raíso não é mais que o rio seco que passa
praticar a justiça. Nos dicionários de língua por Canudos, o Vaza-Barris. A Árvore da
portuguesa, a justiça aparece sempre muito Vida se transforma na árvore da morte. E
restrita à esfera do direito legal e com forte assim sucessivamente. Essa era a visão dos
ênfase nos direitos individuais. Percebe-se canudenses, que Euclides soube captar, in-
uma forte influência da concepção romana formar literariamente e expressar” (Galvão,
de justiça com base nas leis e na filosofia 2009, p. 53).
grega, que enfatizam os direitos do cidadão
(Van Groningen, 2003, pp. 497-591). Rodrigo Outro mito importante na construção do
Franklin de Sousa (2009, p. 10) oferece as messianismo brasileiro é aquele da crença
bases para uma exegese bíblica desse termo: indígena da Terra sem Males. O messianis-
mo indígena brasileiro autóctone ou fruto
“O termo ‘messias’ deriva do grego ‘mes- do choque com o cristianismo é por demais
sias’, que por sua vez deriva do aramaico conhecido. Esse messianismo mais antigo
‘mashiha’ e do hebraico ‘mashiach’ (‘ungi- se expressa pelo mito da Terra sem Males
do’). O termo grego aparece no Evangelho e mais recentemente pelo profetismo (Lan-
de João 1:42; 4:25 de forma a indicar que, ternari, 1974, pp. 187-9; Melatti, 2009). Os
no período da escrita do Novo Testamento, índios, pressionados pelo avanço da coloni-
já se inseria no contexto de um discurso com zação europeia, especialmente a população
o qual pelo menos uma parcela da popula- guarani que permaneceu fora das reduções
ção judaica já se encontrava familiarizada”. e do âmbito de ação de encomendeiros e
Belém, o povo nunca aceitou o fato, divul- Cristão, liderado pelo rei de Portugal, que
gando a lenda de que o rei encontrava-se converteria todos os povos do mundo e en-
ainda vivo, em missão celestial, preparan- caminharia a humanidade para um perío-
do umas miríades de anjos, num poderoso do de paz, antecessor do Juízo Final. Estes
exército, esperando apenas o momento certo elementos, apresentados tanto pelas Trovas
para volver ao trono e afastar o domínio quanto pela literatura do período, fizeram de
estrangeiro (Godoy, 2009). Bandarra profeta do sebastianismo e da Res-
Esse mito foi construído a partir das ne- tauração Portuguesa, atendendo às expectati-
cessidades da alma portuguesa de forjar seus vas de cristãos-novos e velhos, à medida que
heróis e da necessidade de autoafirmação de compartilhava a tradição profética lusitana
Portugal frente ao reino de Castela. O rei marcada por influências ibéricas, joaquimi-
desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir tas, judaicas e pelo chamado messianismo
vai ganhando novos contornos e assume uma português” (Magalhães, 2004, p. 319).
personalidade mítica no imaginário portu-
guês: Dom Sebastião estava predestinado a Em 1603, o nobre português Dom João
salvar Portugal de todos os seus males. de Castro, que lutava pela soberania do reino
de Portugal, comenta, imprime e publica as
“Apesar de ter sua imagem envolvida em trovas de Bandarra tornando, assim, públicas
casos embebidos em ações fraudulentas, Dom as crenças do profeta, poeta e sapateiro que
Sebastião ganhava maior potência no ima- acreditava na volta de Dom Sebastião como o
ginário português: cada vez mais era tido monarca prometido de Portugal, que voltaria
como um rei desaparecido capaz de retornar como o Desejado de Todas as Nações. Numa
a qualquer momento para trazer a salvação referência ao cumprimento da profecia bíblica
de Portugal” (Godoy, 2009, p. 24). de Ageu 2:7 – “E farei tremer todas as na-
ções, e virá o Desejado de todas as nações,
O maior divulgador dessa lenda foi o e encherei esta casa de glória, diz o Senhor
poeta popular Bandarra (Magalhães, 2004), dos Exércitos” –, Dom João de Castro foi en-
que produziu incansáveis versos clamando contrar, no discurso profético de Bandarra, a
pelo retorno do Desejado (Hermann, 1996). leitura que preenchia expectativas e crenças
Explorando as crendices populares, vários suas e do povo. A partir de sua interpretação,
oportunistas se apresentavam como o rei surge, enfim, um sebastianismo que ressalta
oculto na tentativa de obter benefícios pes- contornos milenaristas, utópicos e escatoló-
soais. O sebastianismo tornou-se uma febre, gicos, transformando este texto na bíblia do
até Fernando Pessoa adotou essa crença. O sebastianismo, como bem observou João Lúcio
maior intelectual católico a aderir a esse de Azevedo em seu conhecido livro A evolu-
movimento foi o padre Antônio Vieira. ção do sebastianismo (Godoy, 2009, p. 240).
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1977, pp.
“O discurso de Bandarra adquiriu caracterís- 217-8) e Marcio Honório de Godoy (2009,
ticas milenaristas à medida que apresentava p. 27) afirmam que as trovas de Bandarra
elementos que favoreceriam a leitura em fa- foram divulgadas no Brasil. Registram esses
vor da constituição de um Quinto Império autores que em 1591 Gregório Nunes foi
cuja cura todos esperavam! Cometera Vieira a sua Representação dos motivos que tive
a imprudência de prometer no púlpito as para me parecerem prováveis de que se tra-
consolações dadas à rainha – que o real en- ta, dividida em duas partes (Cidade, 1957,
fermo não morreria, enquanto não cumprisse p. 3; Vieira, 1957).
as profecias de Bandarra que o credenciavam
para a grande missão de, pela vitória sobre “Na presente representação procura Vieira
os turcos, resgatar os lugares santos e fundar fundamentar em promessas divinas a espe-
no mundo secular a Monarquia Universal rança em que comunga, de que tal restitui-
de Cristo. Em novembro de 1656, morre, ção se efectuará. Era esta a última das nove
porém, o rei sem ver cumpridas as profecias proposições que, enviadas ao Santo Ofício de
de Vieira. Diante do inesperado, Vieira logo Roma para que as qualificasse, vieram de lá
declara que o rei haveria de ressurgir dos todas reprovadas. A 1.ª, que afirma a futura
mortos. Suas afirmações estão estribadas nas existência do Quinto Império – estranha ao
profecias de Bandarra (Vieira, 1957, p. 212, consenso geral dos Católicos, que tomam tal
§ 335). Pois se Bandarra havia acertado em império como do Anticristo” (Cidade, 1957,
tudo o mais, não haveria de errar nas visões pp. XIX-XXX).
que lhe mostraram D. João IV investido da
divina missão de realizar na Terra as pro- O sebastianismo, por meio da tradição
fecias bíblicas de Isaías e Daniel. Vieira oral e da pregação de padre Antônio Viei-
prega tudo isso em São Luís do Maranhão ra, propagou-se pelo Nordeste brasileiro e
em 1655 e envia para a rainha viúva as su- influenciou as crenças sertanejas sobre o fim
as crenças em 1659 (Cidade, 1957; Vieira, do mundo e os movimentos messiânicos mi-
1957, p. 212, § 335). lenaristas como Canudos, Caldeirão e Pau
Vieira foi mandado a Roma. Em feve- de Colher. “Daí, entrando pelo século XIX
reiro de 1663, por ordem do Conselho Ge- e indo em frente, a figura de Dom Sebas-
ral do Santo Ofício, o Tribunal de Coimbra tião comparecerá em movimentos populares
recebe ordens para interrogar Vieira sobre rebeldes e religiosos do sertão nordestino
o conteúdo da carta profética “A esperan- (Cidade do Paraíso Terreal, PE; Pedra Bonita,
ça de Portugal”. Sofrendo de impaludismo, PE; Canudos, BA)” (Godoy, 2009, p. 30).
tuberculoso, alquebrado em seu corpo, não
em sua fé, Vieira é preso pela Inquisição em O MESSIANISMO SEBASTIANISTA
1665. O processo durou de 1663 a 1667. Na
prisão conta apenas com a sua memória e
NO SERTÃO BRASILEIRO
uma pena para escrever a sua defesa contra
os Autos sobre o papel que nesta cidade de Euclides da Cunha criou um retrato
Lisboa se divulgou no anno de 1160 sobre a sombrio do Conselheiro como personagem
ressurreição d’El Rey dom João 4º tocantes trágico, guiado por forças obscuras, que
ao Pe. Antônio Vieira religº da Companhia o levaram à loucura e ao conflito com a
de Jesus preso no Cárcere do Custódio em Igreja e o governo. Enfatizou o caráter
1.º de outbr.º de 1665. (sic) (Cidade, 1957, sebastianista e messiânico de Canudos,
p. XXIII). Em sua defesa, Vieira apresenta cujos habitantes acreditariam no retorno
tólica e uma exposição rústica da doutrina para a construção de uma escatologia rústi-
das últimas coisas, uma escatologia precária! ca do fim do mundo (Pompa, 2009, p. 73).
“Jesus Cristo (diz o Santo Evangelho), fa- “Um dos moradores do Pau de Colher, José
lando dos sinais que haverão de preceder Senhorinho, adquiriu certo status, devido a
ao grande dia do juízo final, diz: ‘Have- algumas características (as mesmas que, em
rá sinais no sol, na lua, nas estrelas, e na qualquer povoado ou lugarejo da caatinga,
terra opressão das gentes’. São horrorosos definem a posição de uma pessoa); tinha
meus irmãos, os sinais que hão de preceder boas roças de mandioca, feijão e milho, mas,
a segunda vinda de Jesus Cristo. Ele então sobretudo, plantava e comerciava algodão e
há de vir como Juiz rigoroso e o mais ter- mamona, produtos de valor de exportação
rível para castigar os pecadores que agora que, pelos padrões econômicos da região,
lhe negam o seu coração, nem cuidam na conferiam-lhe uma certa segurança financei-
emenda do pecado. Fazei que estes sinais ra. Único da família, Senhorinho sabia ler e
terríveis agora penetrem o vosso coração; gostava de ler a Bíblia, a Missão abreviada
deixai-vos dominar de um verdadeiro e san- e o Caminho recto; era também rezador,
to temor da divina justiça; porque estando conhecia rezas para curar dores e em sua
assim orientados, eu estou bem certo que casa havia festejos” (Pompa, 2009, pp. 72-3).
deixareis todo o pecado, aborrecereis todas
as vaidades do mundo e praticareis todas as O PADRE IBIAPINA
virtudes” (Couto, 1859, pp. 149-50).
variáveis semelhantes. Quais as fontes desse Isaura Pereira de Queiroz (1976), Facó ex-
messianismo no Brasil? Esta pesquisa bus- plica as origens dos movimentos religiosos
cou revistar essas fontes e acrescentar pelo brasileiros considerando apenas a variável
menos mais duas: a Missão abreviada e a econômica e as condições sociais dos seus
obra religiosa e social do padre Ibiapina. adeptos (Facó, 1976, p. 29).
O primeiro estudioso que delineou as Já o autor deste texto partiu da premissa
origens sociais da religiosidade de massa de que a variável econômica, embora rele-
no Brasil foi o sociólogo Rui Facó (1976). vante por si só, não é suficiente para expli-
Na obra Cangaceiros e fanáticos, ele traça car a complexidade desses movimentos que
a árvore genealógica da miséria no Brasil a têm suas raízes na alma religiosa e mítica
partir da libertação dos escravos em 1888, do povo português e brasileiro.
quando esses foram alforriados e ao mesmo A estrutura complexa do messianismo
tempo substituídos pelos imigrantes europeus. amplia o espaço caudal de fontes em que
A substituição dos escravos pela mão de se deve buscar suas origens. No Brasil, o
obra assalariada importada de outros pa- manancial de fontes messiânicas é igualmente
íses deixou os ex-escravos na situação da imenso: o judaísmo antigo, no Velho Tes-
mais absoluta miséria, pois receberam uma tamento; o cristianismo primitivo, no Novo
liberdade relativa e condicionada pelo aban- Testamento; o mito indígena da Terra sem
dono econômico e social, cujo desfecho foi Males; o catolicismo ultramontano com as
o empobrecimento. A liberdade do escravo contribuições de Joaquim de Flora e de Gon-
não incluía emprego, moradia ou mesmo çalo Annes, o Bandarra; o sebastianismo; o
o alimento para si e para a sua família. sonho escatológico do padre Antônio Vieira;
Rui Facó (1976) afirma que esses libertos o catolicismo popular da Missão abreviada;
ficavam, então, até mesmo sem os recursos a obra piedosa do padre Ibiapina, etc. A
básicos da economia necessários para uma partir dessas contribuições, este artigo ana-
subsistência precária. Vagavam pelos cam- lisou as fontes do messianismo brasileiro
pos, povoados, vilas e cidades onde quase e traçou a árvore genealógica mítica e
sempre eram considerados indesejáveis e religiosa desses movimentos, mormente
recebidos à bala. À semelhança de Maria no Nordeste do Brasil.
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O
Andrea Piccini
povo cita, cuja origem ancestral ocorreu no Pelos estudos de vários autores, as tri-
atual território da Sibéria do Sul, na Rússia. bos dessas regiões, nos últimos 10 mil anos,
O estudo in loco visa a apresentar e es- dedicaram-se a atividades pastoris, sempre
clarecer a trajetória desse povo nômade, de mantendo um modo de vida nômade ou se-
origem eurasiática, ao longo de vários séculos, minômade, introduzindo e alternando perí-
exclusivamente por meio de suas construções odos de atividades pastoris com agrícolas,
funerárias características, os kurgans. A palavra devido às estações, nas diferentes regiões.
kurgan pertence à língua dos povos prototurcos Desde o século V a.C., expandiram-se
da região do Lago Baikal, na atual Sibéria do pela Ásia Central ao longo de vários sécu-
Sul, com o significado de “colina funerária que los, ocupando espaços no comércio, na base
protege a tumba”. É um dos principais legados de trocas de produtos não encontrados nas
de um período de nomadismo e trajetórias estepes, principalmente nas rotas comerciais,
de assentamentos humanos temporários desse que colocavam em comunicação as regiões
povo caracterizado por uma rica cultura, ao do extremo norte do Ocidente, desde a Si-
longo dos séculos IX a.C. e II d.C. béria, além dos Montes Altai, pela Rota das
Os valores culturais, sociais e antropo- Estepes, e ao sul do atual território da Ín-
lógicos dos citas foram evidenciados por dia, por meio da Rota da Seda, que ligava
meio da tipologia usada para sepultar o a China ao Mediterrâneo Ocidental.
morto com todos os seus pertences sob uma Os nômades citas conviviam em um sis-
colina artificial. As atividades xamânicas tema intertribal de parentesco por meio de
estavam tanto na base da vida cotidiana casamentos mistos reunidos em uma confe-
quanto no kurgan, com todos os artefatos deração de tribos de mesma linhagem lin-
de pós-morte que o acompanhavam. guística e cultural, entre os séculos VIII
Compreender esses valores não foi uma a.C. e o último Império Cita do Cáucaso,
tarefa fácil, pois não existem relatos teste- no século II a.C.
munhais escritos sobre essa população no Trata-se de um povo que envolvia seus
período histórico pesquisado. Há relatos conhecimentos materiais e espírito-rituais
sobre os citas em períodos posteriores em numa continuidade visível na disseminação
locais fora desse território de origem, entre de suas práticas funerárias e mortuárias xa-
a região de Tuva, atual Kizil, Abakhan, na mânicas, sempre presentes nos kurgans. Foi
atual região da Khakassia, e o Lago Baikal. o único povo dessas regiões a sepultar seus
Até o século VIII a.C. a área de noma- mortos nesse tipo de estrutura arquitetônica
dismo desse povo compreendia as estepes e sem deixar relatos escritos.
eurasiáticas entre o Lago Baikal e os Montes
Altai. Depois do século VIII a.C. até o século KURGANS: TESTEMUNHOS
IV a.C., os citas superaram os Montes Altai e
então formaram-se duas áreas de nomadismo
ARQUEOLÓGICOS EM VIDA E NA MORTE
das estepes eurasiáticas; uma, mais ao norte,
entre os Montes Altai e os Montes Urais, e O kurgan constitui uma tipologia fu-
a outra, contemporaneamente, mais ao Sul, nerária de forma arquitetônica inovadora,
entre os Montes Altai e o Mar Cáspio. construído de maneira a ser visto de longe.
A cor azul tracejada limita o território ancestral da região; as marcações vermelhas mostram as
partes mais importantes ainda com presenças arqueológicas relevantes; e a cor verde define o
território central ainda marcado pela presença de sítios arqueológicos e de atividades xamânicas
Normalmente, nesses terrenos, encontram- estrutura, tanto das paredes quanto do teto,
-se presentes outras tumbas menores, com o que, ao longo de séculos, ia congelando
personagens de menor importância na socie- e a tornava impermeável, sem apodrecer.
dade, mas que faziam parte da família ou As construções do período cita dos sécu-
tinham alguma relação de parentesco com los VIII-VII a.C. eram cobertas por vários
o chefe, príncipe, rei ou guerreiro sepultado níveis de pedras vulcânicas locais, terra e
na tumba central. Atualmente ainda se pode grama, como podemos ver, por exemplo,
encontrar, nessa estrutura funerária, toda na Imagem 1.
a produção de ricos artefatos do período Essa tipologia, como podemos ver na ma-
da cultura cita. quete de Arzhaan 1, Museu de Abakhan,
A estrutura do kurgan, da tumba e do séculos IV-III a.C. (Imagem 2), possui co-
sarcófago, era feita da madeira de um tipo bertura e estrutura interna para proteção da
de pinheiro de montanha, e toda a estrutura câmara mortuária no centro da tumba, esca-
da área maior era sustentada de troncos de vada abaixo da terra, a qual, na sua maioria,
bétula. A cortiça dessa árvore era usada era exclusiva para personagens importantes
também para fechar a superfície interna da da comunidade.
Nos kurgans do Vale dos Reis são vi- bem maior e mais visível, destinada aos
síveis os pilares de pedras que fortalecem personagens mais importantes da comuni-
as grandes paredes dos muros externos de dade, e as outras menores ao redor, para
proteção, limitando a área sagrada e reco- familiares e serviçais.
brindo as tumbas de madeira. A única en- A Imagem 5 (à esquerda) mostra o sar-
trada da área sagrada também era protegida cófago de Arzhaan 1, Museu de Abakhan,
por grandes portais de pedras apoiados em com esqueleto acompanhado de quantida-
altos pilares, como no kurgan de Arzhaan de de elementos em ferro, como armas e
1, séculos IV-III a.C. (Imagem 3). outros de uso para cavalo; à direita (aci-
O complexo funerário de Anchil Choong ma), são visíveis os restos de esqueleto do
Arzahan, no Vale dos Reis, séculos V-II a.C. cavalo que acompanha o seu proprietário
(Imagem 4), comporta uma grande quan- na tumba; e, abaixo, múmia encontrada
tidade de tumbas, sendo a tumba central, nesse kurgan.
Fotos: Andrea Piccini
6
pouca profundidade da tumba, portanto,
devia-se ao fato de que os espíritos “vi-
viam” ainda no mundo entre os humanos,
podendo eventualmente viajar a mundos
paralelos, como se estivessem vivos numa
outra dimensão.
Dependendo da classe social, o grande
espaço interno dos kurgans funcionava como
um mausoléu, pois o morto era acompanha-
do de seus muitos serviçais, suas concubi-
nas e esposas. Em alguns kurgans foram
encontrados até 50 corpos dos dois sexos, O cavalo também era uma manifestação
além de um grande número de cavalos. da vitória de seu dono, provavelmente um
A embalsamação de corpos humanos príncipe guerreiro. Podia ser ornado com
e de animais de propriedade do morto grandes chifres, como os de um cabrito mon-
também fazia parte do ritual funerário. tês, símbolo de força e respeito, e, portanto,
Os corpos eram inteiramente lavados e, de poder, como se observa na Imagem 7
após receber uma camada de cera, eram (Museu de Khakassia). Já o príncipe guer-
abertos na parte do ventre, do qual eram reiro era sepultado com vestimenta bordada
retirados o intestino e outros órgãos para em ouro (Imagem 8).
impedir a putrefação. Em seguida, os va- O estudo do instrumental mítico é impor-
zios eram preenchidos com raízes especí- tante no sentido de reafirmar a simbologia
ficas de plantas, incenso e cera de abelha. de superioridade física e espiritual de uma
OS MUNDOS PARALELOS
9
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Educação em arte,
arte como educação
Sylvia Werneck
arte carmela gross
N
o Brasil, muitos artistas técnicas, e muitas concebidas para espaços
acabam trilhando o cami- de grande circulação, o que já deixa clara
nho acadêmico paralela- sua intenção de se comunicar com mui-
mente ao da atividade tos de uma só vez, estabelecendo diálogos
artística propriamente entre a obra, as pessoas e a cidade, vista
dita. Carmela Gross é um como organismo ativado pela ocupação
exemplo, um dos grandes dos cidadãos.
nomes da arte contempo- Em atividade desde a década de 1960,
rânea que compartilha uma de suas primeiras intervenções foi
sua experiência com os numa periferia de São Paulo. Escadas, de
alunos do curso de Artes 1968, era um desenho em um barranco, que
Visuais da Universidade de São Paulo. traçava degraus ao longo de uma parede
Carmela está firmemente plantada de terra já alterada pela ação humana. A
no panteão dos grandes artistas, tendo superfície, sulcada horizontalmente por
participado das mais importantes mos- maquinário de terraplenagem, já trazia
tras nacionais e internacionais, e é nome à mente a insinuação de uma escada. O
representado em coleções de peso, como desenho agregado pela artista reforçava
no Museu de Arte Contemporânea de São essa percepção e convidava à exploração
Paulo, no Museu de Arte Moderna Aloísio do território inóspito, praticamente um
Magalhães, em Recife, e no Museum of
Modern Art (MoMA), em Nova York. Tem
um histórico de obras de grande potência
educadora, no sentido de que provocam SYLVIA WERNECK é doutora em Comunicação
o espectador a pensar criticamente. Em e Cultura pelo Prolam-USP, membro da
Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA)
sua maioria, são peças em grande escala, e autora de De dentro para fora – a memória
feitas com os mais variados materiais e do local no mundo global (Zouk).
Nelson Kon
não lugar. Em 1999, Vão mudou toda a qualquer um que passasse nas imediações,
circulação do saguão da Oficina Cultural desde os frequentadores do Parque Ibira-
Oswald de Andrade, obstruindo a passa- puera (não necessariamente interessados na
gem com faixas de elástico negro presas Bienal), como também todo um contingente
às colunas do edifício, criando novas sub- populacional que trafegasse pela Avenida
divisões. Com seu livre trajeto obstruído, Pedro Álvares Cabral. A instalação também
as pessoas eram involuntariamente levadas pode ser interpretada como referência à
a observar com mais atenção a arquitetura transitoriedade da mostra, ou mesmo das
e a setorização do espaço. obras, temporariamente “hospedadas” num
Em vários projetos, a artista usa lâm- espaço que as legitimava com o “selo de
padas fluorescentes para, com palavras ou autenticidade” conferido pela curadoria e
frases, propor alguma reflexão. Na XXV pela instituição. O próprio uso do prédio
Bienal Internacional de São Paulo, em como espaço cultural tem caráter tempo-
2002, plantou na fachada do Pavilhão Cic- rário, uma vez que o local recebe eventos
cillo Matarazzo um letreiro luminoso onde dos mais variados, a maioria sem qualquer
se lia a palavra “Hotel”. Parte da exposição relação com o mundo da arte.
que se concentrava no interior do prédio, Carne (2006) é uma proposta que já
Hotel burlava a exclusividade do público- nasceu imbricada com a educação. A par-
-alvo, oferecendo-se para a apreciação de tir do convite para integrar o projeto Arte
João Nitsche
João Nitsche
Carne, 2006, ônibus-instalação, revestimento com vinil adesivo, pintura e tecido sobre
carroceria de ônibus. Projeto Arte passageira do Centro Universitário Maria Antonia, USP
Carmela Gross
considerava o desenho em sentido amplo, Artes Plásticas da USP, em 1972. Foi ali
não só como formação, mas também como também que fez seu mestrado e doutorado,
instrumento de emancipação social. Pergun- ainda vivenciando sua noção de porosidade
tada sobre por que decidiu ensinar, disse entre o ensino e a aprendizagem.
que “as atividades de aprender e ensinar Carmela acredita que a convivência
estavam implicadas uma na outra” e ela com os estudantes é benéfica para ambas
mesma não seria capaz de precisar onde as partes:
uma começava e a outra terminava.
Sua primeira experiência foi entre 1966 “As experiências compartilhadas numa
e 1971, dando aulas para crianças em sala de aula e em discussões e ativida-
praças públicas. A ideia partiu do grupo des fora dela com os alunos são quase
que ajudou a criar, o Arte na Praça. Em sempre muito ricas. Conversas, discussões,
seguida, para esse mesmo público, lecio- apontamentos, perguntas, respostas, colo-
nou numa escola no Bom Retiro diri- cação de problemas, dúvidas, pesquisas
gida por Fanny Abramovich, onde ficou em grupo, busca de soluções partilhadas…
de 1968 a 1973. Depois de ensinar nos tudo isto tem duas mãos”1.
cursos de Artes Plásticas e Arquitetura e
Urbanismo da Faculdade de Belas Artes
de São Paulo, aceitou o convite de Walter
1 Entrevista concedida a mim por e-mail em agosto de
Zanini e ingressou no Departamento de 2019.
Gutemberg Medeiros
T
omo de empréstimo primeiro e o terceiro com cinco sílabas
o título de uma e o do meio com sete em redondilhas. O
obra do poeta e que, evidentemente, os poemas de Sérgio
ensaísta Paulo Le- não apresentam. Porém, Leminski posi-
minski por motivos ciona como as “minúsculas pegadas” do
que vão se esclare- haikai são sentidas na poesia ocidental.
cer ao longo desta Ezra Pound, Federico García Lorca, An-
resenha à reunião tonio Machado, Guilherme de Almeida,
de fotos e poemas de Atílio Avancini (pro- Oswald de Andrade, Maiakóvski, Carlos
fessor da ECA/USP) e Sérgio Avancine. Drummond de Andrade, Jorge Luis Bor-
Contemplando imagens e poemas vem algo ges, Octavio Paz, até Millôr Fernandes.
à mente todo o tempo: haikai. Como jor- Os principais predicados – ou rastros
nalista e pesquisador, muitas vezes, sou as- – do haikai arrolados por Leminski são
solado pela máxima de Guimarães Rosa igualmente sentidos nas imagens e poemas
– “Eu quase que nada não sei. Mas des- deste livro. Informo que me norteio pela
confio de muita coisa...”. Como não posso noção enunciada, entre outros, pelo pen-
viver de desconfiança, peço ajuda a quem sador russo Iuri Lotman da amplitude de
sabe. No caso, um dos maiores conhece- texto – seja verbal ou não verbal. O haikai
dores dessa arte poética japonesa no Brasil de Bashô – e o melhor do gênero – se for-
e seu principal artífice entre nós: o poeta mou a partir do mais importante produzido
Paulo Leminski. Especialmente em seu es-
tudo de vida e obra Bashô: a lágrima do
peixe, sobre um dos principais poetas dessa
tradição nipônica.
GUTEMBERG MEDEIROS é jornalista,
Haikai tem determinante formal: poema colaborador de O Estado de S. Paulo
de 17 sílabas disposto em três versos, o e pós-doutorando na ECA-USP.
FARO
O poeta afirma que pouco conhece “Como recurso nada mais uso que as
haikai, mas gosta e muito de autores mais simples das ferramentas do Word bá-
brasileiros que praticam algo nesse gê- sico. Abro meu último livro com o poema
nero – a exemplo de Augusto e Haroldo intitulado ‘operador’, que perpetra: ‘o poeta
de Campos, Wally Salomão e, “sobre- é o cirurgião da língua’”. Sérgio lembra que
tudo”, Paulo Leminski. Ele mesmo afirma Atílio sugeriu a publicação conjunta, gostou
buscar a forma de expressão diminuta. da ideia e evoluiu ao aproveitar produtos que
“Tento sempre limpar o texto de desne- se encontravam nas respectivas prateleiras. Ou
cessárias bugigangas, deixá-lo enxuto, gavetas. O tema sugerido por Atílio estava
saudável e, na medida do possível, em predefinido, “Rastros”. “No chão da sala dele,
forma visual que se adeque ou agregue dispusemos os materiais e, em poucas horas,
algo à mensagem.” as duplas estavam formadas. Feliz sintonia.”
Perseverança, de Antonio Bivar, São Paulo, Humana Letra, 2019, 184 pp.
S
e uma autobiografia vida de Antonio Bivar é interessante o su-
deve ser cronológica, ficiente para dar tanto pano para mangas.
meticulosa e totaliza- Posso garantir que é. Nascido em 1939 e
dora, incluindo refle- crescido no interior de São Paulo (Ribei-
xões sobre a época em rão Preto), ele já foi de tudo um pouco,
que o autor viveu, e incluindo office- boy, pregador mórmon,
um livro de memó- ator, figurante em balé da dupla Fonteyn/
rias basta ser seletivo Nureyev, autor teatral premiado e proibido
e fluente narrando apenas o que o autor pela censura, editor de revistas, roman-
achou importante, então o que Antonio cista, desenhista e aquarelista de talento,
Bivar escreve há décadas sobre si mesmo globe-trotter, diretor de shows de rock e
está mais para memórias do que para au- sertanejos, roteirista de programas de rá-
tobiografia. Isso não implica critérios de dio e TV. Do glam ao punk, um lançador
valor. O médico Pedro Nava, o teatrólogo de modas e estilos.
Hermilo Borba Filho e a atriz Odete Lara Chegamos ao mais novo de seus livros
foram ótimos memorialistas, e outros mais. de memórias, todos publicados fora da or-
As memórias são frequentemente mais in- dem cronológica e por editoras diferentes.
teressantes do que as autobiografias, muitas Seguindo a ordem dos acontecimentos, são
destas escritas por ghost-writers profissio- eles Mundo adentro vida afora (1939-1970),
nais. Podem também enganar o leitor e ser Verdes vales do fim do mundo (1970-71),
tendenciosas, o que não se tolera numa
autobiografia. Aparentemente são menos
sérias, mas não menos representativas. E
sem dúvida bem mais divertidas.
JOÃO CARLOS RODRIGUES é escritor,
Antes de mais nada, para quem não pesquisador e autor de, entre outros, João do Rio:
sabe, é preciso explicar até que ponto a vida, paixão e obra (Civilização Brasileira).
Maria Della Costa, Enio Gonçalves e Christine Nazareth na peça Alice, que delícia, 1987
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A , publicação trimestral da Superintendência de Comunicação Social da USP,
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dos Dossiês aqui apresentada, temos as seções Textos, Livros e Arte. Abaixo, os números ainda disponíveis.
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Revista Cinquenta Pensando o Futuro: Marketing Político
100 110 120
Educação Ética e Sociedade Religião e
Ciências Exatas Modernidade