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credenciamento e apoio financeiro:


programa de apoio Às publicações científicas periódicas da usp
comissão de credenciamento

Re v ista USP / Superintendência de Comunicação Social


da Universidade de São Paulo. – N. 1 (mar./maio 1989) -
- São Paulo, SP: Universidade de São Paulo, Superintendência
de Comunicação Social, 1989-

Trimestral.
Continuação de: Revista da Universidade de São Paulo
Descrição baseada em: N. 93 (2012)
ISSN 0103-9989

1. Ensaio acadêmico. I. Universidade de São Paulo.


Superintendência de Comunicação Social
CDD-080
ISSN 0103-9989 124 janeiro/fevereiro/março 2020

dossiê inteligência artificial

5 Editorial

9 Apresentação Nestor Caticha



11 O futuro da (pesquisa em) inteligência artificial: algumas direções Fabio G. Cozman

21 Inteligência artificial: da mecanização da matéria e do espírito ao desenho


e construção científica de máquinas e algoritmos, e do Estado moderno como máquina
José R. N. Chiappin, Jojomar Lucena e Carolina Leister

37 Rumo a uma política de Estado para inteligência artificial Raphael M. O. Cóbe,


Luiza G. Nonato, Sérgio F. Novaes e José A. Ziebarth

49 Representações internas e processamento de informação em redes neurais Nestor Caticha

textos
61 A universidade além do espelho Eugênio Bucci

69 Fala narcísica Jean Pierre Chauvin

79 Fontes do messianismo milenarista brasileiro Antônio Maspoli de Araújo Gomes


95 O contexto funerário do povo cita: um estudo arqueoetnológico Andrea Piccini

arte
106 Educação em arte, arte como educação Sylvia Werneck

livros
119 La vie en close: c’est une autre chose Gutemberg Medeiros

125 Bivar sobre si mesmo João Carlos Rodrigues


A é uma publicação trimestral da
Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP.
Os artigos encomendados pela revista têm prioridade
na publicação. Artigos enviados espontaneamente poderão
ser publicados caso sejam aprovados pelo Conselho Editorial.
As opiniões expressas nos artigos assinados
são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Universidade de São Paulo

Reitor Vahan Agopyan


Vice-reitor Antonio Carlos Hernandes

Superintendência de Comunicação Social

Superintendente Luiz Roberto Serrano

Editor Jurandir Renovato


Editora de arte LEONOR TESHIMA SHIROMA
Revisão MARIA ANGELA DE CONTI ORTEGA
SILVIA SANTOS VIEIRA
Secretária maria catarina lima duarte
Colaborador Marcos Santos (fotografia)

Conselho Editorial
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belmiro mendes de castro filho
cicero romão resende de araujo
eduardo victorio morettin
Luiz Roberto Serrano (membro nato)
Fernando luis medina mantelatto
Flávia Camargo Toni
franco maria lajolo
José Antonio Marin-Neto
oscar josé pinto éboli

Ctp, impressão e acabamento


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CEP 05508-050 – Cidade Universitária – Butantã – São Paulo/SP
Telefax: (11) 3091-4403
www.usp.br/revistausp
e-mail: revisusp@edu.usp.br
F
az tempo a inteligência artificial, ou IA, não é um tema
restrito aos cenários da ficção científica ou ao interesse de
nerds superdotados. Também deixou de ser apenas um item
entre tantos na pauta das curiosidades midiáticas – que nem
sempre desvelam a magnitude ou o real significado por
trás daquilo que mostram –, como aquela protagonizada
pelo enxadrista russo Gary Kasparov e o computador
Deep Blue na década de 90. Hoje suas aplicações (e
implicações) são inúmeras, e ainda que nem tão espetaculares, os avanços na área de
inteligência artificial estão cada dia mais presentes, seja na indústria, na educação, nas
finanças, na medicina. Sua importância é tanta que a Universidade de São Paulo acaba
de firmar uma parceria com a empresa IBM e a Fapesp para a criação de um centro de
excelência para pesquisa em IA.
E assim chegamos a este número da Revista USP, cujo dossiê é dedicado ao
assunto. Ele foi concebido, como adverte Nestor Caticha, do Instituto de Física da
USP, no intuito de “desvendar um pouco o que é inteligência artificial”. Ouso dizer
(e quero crer que o leitor concorde comigo) que, em se tratando de campo tão vasto
e com tão múltiplos e sutis desdobramentos, um pouco já é muito.


Saindo do dossiê, nas páginas seguintes da revista, o leitor poderá pensar, com
Eugênio Bucci, o lugar da arte e da filosofia no âmbito da universidade; ou analisar,
com Jean Pierre Chauvin, um tipo de conversação marcada por falar demais e escutar
“de menos”; ou revisitar, com Antônio Maspoli, alguns estudos sobre as formas de
messianismo no Brasil; ou ainda, com Andrea Piccini, encantar-se com os antigos
citas e sua maneira peculiar de enterrar os mortos. E muito mais.

Jurandir Renovato
6 REVISTA USP • São Paulo • n.92 • p. xx-xx • dezembro/fevereiro 2011-2012
inteligência
artificial
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Apresentação
Comentários sobre inteligência artificial

A
ssim como o tempo para tipo de redução dimensional, não importando
Santo Agostinho, só sa- se os métodos de IA são baseados em lingua-
bemos o que é inteligên- gens lógicas formais de manipulação de regras
cia se não formos força- ou em aprendizado de máquinas, por exemplo.
dos a responder o que é. Que algo que pode ser considerado tão
Este conjunto de artigos humano como a inteligência possa ser im-
lida com alguns aspectos plementado fora do cérebro e, portanto, arti-
não exaustivos, mas im- ficializado, pode ser surpreendente. J. R. N.
portantes para desvendar Chiappin, da FEA-USP, e seus colaboradores,
um pouco o que é inteli- nos mostram que não seria assim para al-
gência artificial (IA). guém familiarizado com a história das ideias.
Fábio G. Cozman, A artificialização está na base da descrição
da Escola Politécnica científica por Descartes, Galileu e Hobbes,
da USP e diretor do Centro de Pesquisa em da construção de algoritmos de cálculo, da
Engenharia (CPE) em IA, nos apresenta uma dinâmica e da construção artificial do próprio
segmentação de IA em diferentes áreas a par- Estado e da pessoa jurídica. De certa forma,
tir de um ponto de vista temático. Mais que entender algo significa poder descrevê-lo e
uma classificação, apresenta sua visão sobre o até reproduzir suas propriedades e funciona-
futuro das áreas de pesquisa e suas aplicações. mento em outro meio, portanto tornando-o
Se a variedade das ramificações é impressio- artificial, novamente tocando no problema
nante, há um tema central que se repete em fundamental da representação.
cada subárea e será sempre o primeiro passo Sérgio F. Novaes, da Unesp, é idealizador
em cada estudo. Este é o problema de repre- e diretor do Advanced Institute for Artificial
sentação do conhecimento. Não há uma única Intelligence, uma entidade que busca colocar
forma e a escolha de um tipo de representação em contato os consideráveis recursos huma-
significa que haverá a necessidade de algum nos disponíveis na área acadêmica com as ne-

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dossiê inteligência artificial

cessidades da sociedade na busca de soluções levam a um resultado. No artigo mostro como


de IA para problemas de alto impacto social uma rede neural – num caso de classificação
e econômico. Sendo a IA uma área de vital em categorias muito simples, mas de grande
importância estratégica, junto com seus cola- importância histórica – classifica situações
boradores, analisa o panorama mundial, mos- ao lidar com as representações matemáticas
trando de forma sucinta o que outros países e como, ao manipular as representações in-
têm feito para se preparar para um novo tipo ternas do mundo exterior, torna transparente
de ambiente de negócios e de meios de pro- a solução. Interessante que, para uma dada
dução. A nova revolução industrial demanda situação, sejam possíveis diferentes represen-
respostas rápidas e contundentes na forma de tações internas levando a idênticas respostas.
uma política de Estado, e fica a pergunta de O que significa isso para nós? A representação
quanto, como país, estamos dispostos a fazer. do vermelho no meu cérebro é igual à sua? O
Para eliminar a ideia de que máquinas interesse em inteligência artificial pode, além
inteligentes são um tipo de magia, a última de trazer soluções de mercado e competitivi-
contribuição trata de um caso extremamente dade econômica internacional, ajudar a olhar
simples de como funciona uma das máquinas para o que significa ser humano.
responsáveis por esta fase de extrema ativi- Enquanto escrevo não posso deixar de la-
dade em IA. As redes neurais, inspiradas mentar ter deixado de lidar com vários temas
ainda que fracamente em modelos biológicos por falta de espaço. Esperamos que alguns
de funcionamento do cérebro, aprendem por destes sejam tratados, no futuro, nesta revista.
exemplos. Conseguem implementar soluções
sem a necessidade de identificar as regras que Nestor Caticha

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O futuro da (pesquisa em)
inteligência artificial:
algumas direções
Fabio G. Cozman
Silvertiger/123RF
Chairat Saengdamuk/123RF

resumo abstract

A área de inteligência artificial, The field of artificial intelligence, occupied


ocupada com a criação de dispositivos with the creation of devices that are
que apresentem comportamento considered intelligent, has had explosive
identificado como inteligente, teve growth in recent years. This article seeks
explosivo crescimento nos últimos to classify the various subareas of artificial
anos. Este artigo procura classificar as intelligence and suggest some lines of
várias subáreas da inteligência artificial research that should lead to promising
e sugerir algumas linhas de pesquisa que results in the coming years.
devem levar a resultados promissores
nos próximos anos. Key words: research in artificial
intelligence; artificial intelligence and
P a l av r a s - c h ave : p e s q u i s a e m society; machine learning.
inteligência artificial; inteligência
artificial e sociedade; aprendizado de
máquina.
E
mbora o ser humano tenha um artificiais que controlam investimentos, que
interesse antigo em artefa- interagem com clientes fornecendo infor-
tos artificiais com inteligên- mações e sugerindo condutas, que detec-
cia, consciência, sagacidade, tam padrões em exames, que dirigem veí-
humor – e muitos outros culos. Esse sucesso está sendo seguido com
aspectos normalmente liga- atenção pela imprensa, por governos e pela
dos à cognição de alto nível sociedade em geral.
–, apenas na década de 50 Quais são as perspectivas futuras para
esse interesse se tornou um inteligências artificiais? Não é fácil pre-
programa científico concreto dizer como essa tecnologia irá evoluir a
(Turing, 1950). Durante cerca longo prazo; porém podemos examinar
de 50 anos a área de inteli- quais tendências são promissoras para a
gência artificial (IA) apre- pesquisa em IA nos próximos anos. Os
sentou uma evolução marcada por perío- artefatos que emergirem dessa pesquisa
dos de euforia e depressão. Por exemplo, a contribuirão para a real evolução da área
década de 60 viu grandes promessas sobre a através da ação de empreendedores que
iminente programação de mestres de xadrez conectem a fronteira de pesquisa com a
e especialistas em matemática, enquanto a prática, bem como através do debate social
década de 70 trouxe críticas aos resulta- que levará a formas de regulação e difusão.
dos obtidos na área, um período frequen- O objetivo deste artigo é examinar algu-
temente referido como o “inverno da IA” mas direções de pesquisa que podem levar
(Nilsson, 2009). Os últimos dez anos, por
outro lado, testemunharam um crescimento
explosivo das inteligências artificiais, em
muitos aspectos até mais rápido do que
FABIO G. COZMAN é professor titular do
pesquisadores da área previam na virada Departamento de Engenharia Mecatrônica da
do século. Hoje podemos observar artefatos Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

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dossiê inteligência artificial

figura 1

Subáreas de pesquisa em inteligência artificial

Representação de

{
Conhecimento e Raciocínio Linguagem
Natural

Tomada de Decisão Percepção


Interação Visão
Aprendizado Multiagentes Computacional
Ação
de Máquina
IA e Sociedade Robótica

a área de IA a um novo patamar. Com Um dos temas mais antigos em IA


certeza outras direções levarão a grandes é a necessidade de representar conheci-
conquistas; aqui o objetivo não é exaurir a mento. Uma inteligência artificial pode ser
lista de todas as ideias com significativo encarregada de avaliar resultados de um
potencial, nem identificar as ideias mais experimento biológico: esta inteligência
revolucionárias em gestação. O objetivo é precisa saber quais são os tipos de resul-
listar algumas direções que já estão sendo tados possíveis e quais são os possíveis
trilhadas e que quase com certeza gera- organismos envolvidos e suas caracterís-
rão ganhos expressivos em desempenho. ticas. Como estas informações são bas-
Para isso, o artigo apresenta um panorama tante especializadas, dizemos que consti-
abstrato da área de IA, classificando seus tuem um “conhecimento de especialista”.
vários temas e apresentando um conjunto Outras situações requerem a representação
de linhas de pesquisa. do “senso comum”: por exemplo, se uma
pessoa informa a outra que uma meda-
ENTENDENDO A ÁREA DE lha não coube em uma mala pois esta era
pequena, a pessoa que recebe esta infor-
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
mação em geral infere que a mala era
pequena (e não a medalha), levando em
Embora seja difícil traçar as fronteiras conta o conhecimento sobre como medalhas
exatas do que é a pesquisa em IA, é impor- e malas usualmente se apresentam. Além
tante começar esta discussão com algum de representar conhecimento, é preciso
esforço de classificação das subáreas e dos
temas centrais na IA, para permitir um
claro entendimento de quais técnicas são 1 Baseado em listas de tópicos anunciadas por confe-
rências de impacto na área de IA, como a International
de fato essenciais1. A Figura 1 apresenta Joint Conf. on AI (IJCAI) 2019 e a AAAI Conf. on Artifi-
uma classificação aproximada de subáreas, cial Intelligence 2019, em conjunto com o conteúdo do
livro de referência mais popular da área, de autoria de
explicada a seguir. Russell e Norvig (2009).

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raciocinar sobre o que é sabido e sobre o dades; linguagens têm sido propostas para
que é observado – por exemplo, para apli- adaptar a vetusta teoria de probabilidades
car regras em um jogo de damas ou para a situações que exigem recursos lógicos
entender os parceiros em uma negociação. (Getoor & Taskar, 2007).
O estudo do conhecimento e de sua Uma outra subárea importante da pes-
representação é um tema antigo na filoso- quisa em IA é aquela que lida com tomada
fia; em particular, é o foco da epistemologia de decisão, uma atividade corriqueira com
(Brachman & Levesque, 2004). É impor- um enorme número de variantes. Tomar
tante notar que o próprio termo “conhe- uma decisão envolve estabelecer metas e
cimento” tem sido objeto de debates há listar alternativas. Envolve também pro-
séculos. O que é conhecimento? A resposta curar uma solução dentre um conjunto de
mais aceita em filosofia toma conhecimento possíveis opções. Decisões também são
como crença verdadeira e justificada. Na tomadas para planejar uma sequência de
área de IA o conceito de conhecimento é ações com objetivo de atingir uma meta.
bem mais elástico. Frequentemente a repre- Note-se que boa parte dessas variantes de
sentação de conhecimento em IA se ocupa tomada de decisão é estudada por eco-
de representar crenças de um particular nomistas e administradores há décadas,
agente, sem necessariamente se preocupar enquanto aspectos humanos da tomada de
com a “verdade”. E, de forma geral, repre- decisão são objeto de estudo por psicólo-
sentação de conhecimento em IA se ocupa gos. Na área de IA usa-se o termo busca
não apenas de crenças que tenham caráter para lidar com o processo de encontrar
determinístico (por exemplo: se o rei for uma alternativa vencedora em meio a um
tomado em uma partida de xadrez, o seu grande número de alternativas. Outro termo
jogador perdeu), mas também crenças que comum em IA é planejamento, em que o
envolvam incerteza (por exemplo: o aumento foco está em encontrar uma sequência de
no desemprego provavelmente diminuirá a ações que leve a uma meta predefinida.
taxa de inflação). Aqui se tocam aspectos de tomada de deci-
Ao longo do tempo muitos diferentes são e representação de conhecimento, pois
formalismos têm sido usados para represen- para resolver um problema de planejamento
tar conhecimento em IA. Pode-se imaginar é preciso primeiro representá-lo. Por exem-
cada um desses formalismos como uma plo, um problema clássico em IA consiste
linguagem que permite expressar alguns em empilhar blocos que estão em uma
aspectos do mundo. A maior parte dos for- mesa para obter uma pilha com carac-
malismos para representação sem incerteza terísticas desejadas. É preciso descrever
usados em IA é baseada em linguagens os blocos: são diferenciados por cor? Por
formais ligadas a lógicas – por exemplo, tamanho? É também preciso descrever a
temos a lógica proposicional, a lógica de meta: blocos vermelhos embaixo, amarelos
predicados, as lógicas de descrição (Baader em cima? Ou alguma configuração espe-
et al., 2003). Por outro lado, a maior parte cial? Após a descrição do problema, é pre-
dos formalismos para representação com ciso procurar uma sequência de ações no
incerteza se baseia na teoria de probabili- (possivelmente enorme) espaço de soluções.

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dossiê inteligência artificial

Quando um número grande de agentes duções podem ser encontradas na literatura


interage na solução de problemas, temos especializada. Neste artigo usamos a pri-
um sistema multiagentes. O estudo de meira expressão, por uma razão simples:
tais sistemas é uma subárea importante embora o sucesso de machine learning
da IA, preocupada não só com decisões, seja de fato impressionante, ainda não
mas também com negociações e interações ocorre um processo de aprendizagem de
“sociais” entre agentes. computadores. O que temos no momento
Uma outra subárea fundamental da IA é o aprendizado de particulares tarefas,
é aquela que se ocupa de aprender com em geral a partir da análise de grandes
experiências – ou seja, realizar o aprendi- bases de dados. Talvez cheguemos a um
zado de máquina. A inteligência humana ponto em que discutiremos a didática para
é eminentemente ligada a processos de aprendizagem de máquinas adolescentes (!),
aprendizagem: ao nascer sabemos pouco mas sem dúvida não estamos perto disso.
do mundo, e ao interagir com a natureza Há cerca de 30 anos, a pesquisa em
e com a sociedade ao nosso redor adqui- aprendizado de máquina caminhava len-
rimos nossa capacidade de agir com inte- tamente. Havia interesse em muitos dife-
ligência. Essa interação ocorre de muitas rentes processos de aprendizado: aprender
maneiras. Frequentemente a interação se a partir de um professor explicando um
dá por uma experiência direta: ao quei- tópico, aprender a partir de uma sequên-
mar a mão, uma criança aprende que não cia de ações físicas, aprender a partir de
deve encostar em uma panela com água uma tabela contendo dados coletados por
fervendo. Em outras circunstâncias a inte- um sensor. Havia também uma diversi-
ração se dá por meio de um guia, que dade de técnicas, algumas com base esta-
pode ser uma mãe ou um amigo ou um tística, outras inspiradas pela biologia do
professor. Através de ensinamentos diretos cérebro. Desde então houve uma grande
aprendemos como cozinhar, como reali- mudança em toda a área de IA, causada
zar operações matemáticas, como dirigir pela abundância cada vez maior de dados,
veículos. Finalmente, podemos também pelo aumento da capacidade computacional
aprender observando dados coletados a e pelo desenvolvimento de melhores algo-
partir de sensores ou pesquisas de opinião. ritmos de processamento de dados: pas-
Por exemplo, ao notar que a maioria das samos a depender fundamentalmente da
pessoas que possuem mais de um veículo extração de padrões de grandes bases de
também possuem mais de uma televisão, dados. Considere, por exemplo, a tradução
aprendemos que existe uma relação entre automática de textos, da língua portuguesa
a posse de veículos e televisões. para a língua inglesa. Parece razoável supor
Note que a expressão machine learning que um tradutor humano leia o texto origi-
é usada na língua inglesa para se referir à nal em português e monte algum modelo
subárea da IA descrita no parágrafo ante- mental do assunto tratado, de forma a esco-
rior. Essa expressão pode ser traduzida lher as melhores palavras no texto a ser
como “aprendizado de máquina” ou como produzido. Esse tipo de estratégia era per-
“aprendizagem de máquina”. As duas tra- seguido vigorosamente até cerca de 1995:

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tentava-se fazer uma análise sintática do rede neural profunda; o estudo de métodos
texto de entrada, seguida de uma análise de aprendizado de redes neurais profun-
semântica sobre seu significado, e então das é o tema de aprendizado profundo
uma tradução apropriada. Essa estratégia (Goodfellow, Bengio & Courville, 2016).
não funciona tão bem quanto a que emer- O interesse em aprendizado profundo se
giu na década de 90 e que tem sido cada intensificou a partir de 2012, ano em que
vez mais refinada: coletamos um imenso redes neurais profundas mostraram exce-
conjunto de textos traduzidos do português lente desempenho em reconhecer objetos
para o inglês e construímos uma função em uma competição internacional – a
que emite palavras em inglês a partir de competição de reconhecimento de obje-
um conjunto de palavras em português. tos em imagens no conjunto de imagens
Essa solução não procura “entender” o denominado ImageNet. Enquanto em 2011
texto de entrada; procura apenas obedecer a taxa de acerto de objetos em imagens
a padrões estatísticos da relação entre as era menor que 75%, hoje essa taxa está
línguas de interesse. A vitória desse tipo próxima de 97%. Esse resultado se torna
de estratégia é, de certa forma, surpreen- mais impressionante quando sabemos que
dente: quão inteligente pode-se parecer sem o desempenho humano está por volta de
uma compreensão semântica das tarefas! 95% de acerto; ou seja, redes neurais pro-
Nas palavras de Halevy, Norvig e Pereira fundas atingem desempenho super-humano
(2009): o processamento de grandes quan- em classificação de imagens.
tidades de dados tem uma efetividade que Há cerca de 20 anos o interesse na rela-
não parece nem razoável. ção entre IA e sociedade basicamente se
No momento existe uma considerá- limitava a especulações sobre o futuro, fre-
vel superposição entre aprendizado de quentemente imersas em ficção científica,
máquina, estatística e ciência de dados, ocasionalmente fundamentada no debate
além de uma significativa superposição social e filosófico. O sucesso pragmático
com a área de mineração de dados e de atual da tecnologia de IA trouxe para o
big data. Todos esses campos lidam com centro do debate a relação entre IA e socie-
massas de dados a partir das quaisse dade, contrapondo visões otimistas e pessi-
extraem padrões, regras, fatos, possibi- mistas (Cozman, 2018). Por um lado, existe
lidades, palpites, expectativas. Em todos uma visão utópica sobre a IA: a esperança
eles hoje predominam métodos estatísti- que a tecnologia melhore a produtividade
cos e técnicas inspiradas no cérebro, como do ser humano, em particular tomando
as celebradas redes neurais, formadas por conta de tarefas enfadonhas e liberando-
conjuntos de operações que simulam “neu- -o para atividades mais recompensadoras
rônios” conectados em camadas. Cada um e para o lazer. Espera-se que essa utopia
desses neurônios artificiais executa uma permita aos seres humanos terem meios
tarefa simples: por exemplo, somando suas para garantir uma melhor distribuição das
entradas e emitindo uma função matemá- riquezas geradas por maior produtividade.
tica da soma. Uma rede neural com mui- Por outro lado, a visão distópica da IA se
tas camadas de neurônios é chamada uma preocupa com a possibilidade de máquinas

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violarem a privacidade de cidadãos, com deste artigo, apontando três caminhos que
perdas causadas por decisões automáticas parecem particularmente auspiciosos.
incorretas, com os impactos no mercado de A pesquisa na área certamente deve
trabalho e nas relações humanas. Para além focar melhores técnicas de aprendizado
da reflexão sobre o futuro da sociedade, de máquina. Há várias frentes em que o
existe também a análise concreta sobre as avanço é importante. Em primeiro lugar,
relações sociais e de trabalho na presença é preciso aumentar a capacidade de arma-
de inteligências artificiais. zenar e processar dados, já que o ritmo de
Finalmente, existem várias outras tec- produção de dados da humanidade aumenta
nologias ligadas à IA que se destinam a sem cessar. Em segundo lugar, as técni-
permitir que máquinas consigam perceber cas de aprendizado de máquina devem se
o que ocorre em seu ambiente; a intera- tornar mais robustas: pequenas variações
gir com esse ambiente e agir de forma a nas entradas não podem causar desastres
modificá-lo. Assim temos a tecnologia de (como se observa às vezes com redes neu-
processamento de linguagem natural, que rais profundas). A robustez também deve
se ocupa de interpretar e gerar sequências ser perseguida em outra dimensão: algo-
de símbolos produzidos por seres humanos ritmos devem ser de fácil entendimento e
em suas variadas línguas. Temos também a aplicação, para que sejam usados de forma
visão computacional, que se ocupa de com- correta e livre de comportamento discri-
preender imagens, e a robótica, que envolve minatório. É preciso também ter melhor
máquinas com capacidade de interagir com entendimento sobre redes neurais profun-
o mundo físico. Neste breve artigo temos das: como funcionam, como falham. Além
menor preocupação com esses temas, não disso, resultados obtidos via aprendizado
por formarem campos sem importância – de máquina devem ser interpretáveis: o
ao contrário, por serem campos com tal usuário deve entender as razões que levam
dimensão e complexidade que requerem a particulares decisões, de forma a con-
uma análise em separado. fiar na máquina. Todas essas frentes de
trabalho devem receber atenção no futuro.
PENSANDO NO FUTURO Em segundo lugar, o simples avanço da
tecnologia de aprendizado de máquina não
DA PESQUISA EM IA
vai levar a IA a um novo nível de capaci-
dade. Uma previsão razoável é: o próximo
As inteligências artificiais provavelmente nível de operação de inteligências artifi-
se tornarão mais e mais capazes de cuidar ciais só será atingido através da integração
das tarefas ctidianas e de aprender com sua de aprendizado de máquina, tomada de
experiência; prever aonde isso nos levará em decisão e representação de conhecimento.
um grande espaço de tempo é quase impos- Por exemplo, um sistema de planejamento
sível. Considere um objetivo mais modesto: deve ser capaz de aprender a partir de
quais são alguns temas de pesquisa pro- experiências e também de instruções tex-
missores na área de inteligência artificial? tuais; um sistema de respostas deve ser
Vamos abordar essa questão no restante capaz de levar em conta conhecimento acu-

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mulado em séculos de evolução científica. Devemos também saudar a oportuni-
Aprender a partir de mais e mais dados dade, como país, de dar um salto tecnoló-
não substitui de forma eficiente todo o gico investindo em uma área promissora e
conhecimento acumulado pela humanidade. de grande impacto – o desenvolvimento da
Em terceiro lugar, o estudo da rela- tecnologia de IA basicamente exige investi-
ção entre IA e sociedade merece atenção mentos em formação humana, algo que pre-
crescente. Preocupações relacionadas à cisamos fazer de qualquer maneira. Impedir
proteção de privacidade e proteção contra a tecnologia de prosperar por receio de
decisões automáticas incorretas devem ser possíveis contratempos fará apenas com
levadas para debate amplo, para que a que outros países obtenham um diferencial
legislação seja adaptada de acordo. Angús- nesta tecnologia – que precisaremos então
tias ligadas ao mercado de trabalho tam- comprar e adaptar às nossas necessidades.
bém devem ser discutidas: qual a melhor É importante reconhecer que o Brasil
forma de treinar pessoas? Como retreinar tem significativas vantagens no panorama
cidadãos se movimentando dentro desse internacional de IA. O país tem grande
novo mercado de trabalho? Que tipo de população, que fala uma única língua e
educação deve ser oferecido aos cidadãos? que compartilha sistemas governamentais
Em alguns casos será preciso regulamentar amplos (por exemplo, de saúde). Essas
setores para que trabalhadores e máqui- características fazem com que grandes
nas possam prosperar em harmonia. Aqui massas de dados estejam disponíveis para
existe um balanço delicado a ser perse- a criação de soluções para nossos proble-
guido: um controle exagerado sobre a IA mas. Além disso, à medida que máquinas
pode impedir grandes avanços de quali- substituem tarefas repetitivas, as tarefas
dade de vida que esta tecnologia pode nos que envolvem comunicação e empatia se
proporcionar. Devemos ter abertura para tornam mais valiosas – a chamada “eco-
o potencial de ganhos em diagnósticos nomia do sentimento” ( feeling economy)
médicos, assistências jurídicas, processos deve ter crescente impacto na riqueza das
industriais, reconhecendo que toda tecno- nações (Huang, Rust & Maksimov, 2019).
logia nova tem riscos e benefícios – os Nada mais apropriado do que liberar a
primeiros devem ser minimizados e os natural empatia da população brasileira
últimos devem ser maximizados. para explorar e liderar essa nova economia.

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dossiê inteligência artificial

Bibliografia

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20 Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 11-20 • janeiro/fevereiro/março 2020


Inteligência artificial:
da mecanização da matéria e do espírito
ao desenho e construção científica de
máquinas e algoritmos, e do Estado
moderno como máquina
José R. N. Chiappin
Jojomar Lucena
Illia Balla/123RF

Carolina Leister
Chairat Saengdamuk/123RF

resumo abstract

Defendem-se duas teses. A primeira, Two theories are defended. The first,
de que há duas tradições para a that there are two traditions for research
pesquisa sobre inteligência artificial. on artificial intelligence. One of them
Uma delas remonta à tradição milenar goes back to the millennial tradition of
das observações astronômicas com a astronomical observations with data
coleta e tratamento de dados. A outra collection and processing. The other is
é a ciência moderna A segunda tese é modern science. The second theory is that
de que a primeira e mais importante the first and most important contribution
co n t r i b u i ç ã o d a p e s q u i s a e m to the field of artificial intelligence is
inteligência artificial é a proposta, por Hobbes’ proposal to design the State as an
Hobbes, de desenhar o Estado como autonomous machine – take advantage
uma máquina autônoma – aproveitar of the benefits of precision machines – for
os benefícios das máquinas de precisão the industrialization of society and that
– para a industrialização da sociedade this State model is the main factor of the
e de que esse modelo de Estado é o Industrial Revolution.
principal fator da Revolução Industrial.
Keywords: State as machine; artificial
Palavras-chave: Estado como máquina; intelligence; data processing; computer.
inteligência artificial; tratamento de
dados; computador.
O
artigo se propõe a defen- explicação por meio de uma formulação
der duas teses, sendo formal e geométrica hierarquizada expressa
que a primeira consiste por relações funcionais causais. Com a
em que há duas tradi- abordagem da causa eficiente, pretende-se
ções para o que se pode reproduzir, controlar e conquistar, através
entender como pesquisa do desenho e da construção de tecnolo-
sobre a inteligência arti- gias, a natureza, colocando a serviço do
ficial. Uma delas, que bem-estar do homem, não mais meio, mas
remonta às primeiras fim. Propõe-se que essas causas geradoras
observações no mundo estão na forma de princípios de máximos e
grego, se caracteriza mínimos, com Fermat, ou de mecanismos
por uma abordagem de formados de massas e movimentos, com
natureza observacional Descartes, expressando as atividades de
e empírica relacionada com a coleta, trata- Kepler e Galileu.
mento e refinamento de dados, assim como A segunda tese defende que a principal
o desenvolvimento de técnicas para esse contribuição do programa de pesquisa sobre
fim. A outra, que, mais propriamente, se a ciência da inteligência artificial ocor-
denomina aqui ciência teórica como uma
ciência do artificial, consiste em estabele-
cer, para além da coleta e das tabelas de
dados, por meio de uma organização geo- JOSÉ R. N. CHIAPPIN
é professor do Departamento
métrica, relações, padrões e regularidades, de Economia da FEA-USP.
de preferência causais, entre esses dados.
JOJOMAR LUCENA é pesquisador do
Trata-se de uma nova forma de abordagem Departamento de Economia da FEA-USP.
dos dados, a qual surge no século XVII e
CAROLINA LEISTER é professora
requer, de modo artificial, que, para além da Escola Paulista de Política,
dos dados e observações, se organize sua Economia e Negócios da Unifesp.

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dossiê inteligência artificial

reu, já nas suas origens, no século XVII, Os animais, assim como o corpo
com a proposta, por Hobbes, de produzir humano, são representados como máqui-
a mais importante e principal tecnologia nas formadas da combinação de máqui-
da ciência teórica, como ciência do artifi- nas básicas. O relógio não é apenas uma
cial, ao desenhar o Estado com modelo no metáfora, mas uma representação para esse
cogito de um homem mecânico autônomo, universo-máquina. Galileu e Descartes pro-
para resolver o problema da cooperação puseram, com outros, as primeiras teorias
e estabilidade entre indivíduos racionais das máquinas, as quais resolvem-nas em
e autointeressados interagentes, de acordo máquinas mais simples, como o parafuso,
com o novo pressuposto ontológico trazido a cunha, o plano inclinado, a roda, o eixo
pelo cogito de Descartes. e a polia (Galilei, 1960; Descartes, 1824).
Descartes consolida filosoficamente, em Se, por um lado, o corpo é reduzido a
suas obras, tanto a atividade científica da uma máquina, por outro, o espírito é redu-
mecanização do espaço, tempo, matéria, zido a um procedimento metódico, regular
como praticada por Galileu e ele mesmo, e, por conseguinte, também mecânico, no
quanto a mecanização do espírito, com sua caso de tomar decisões com o ideal de fun-
proposta, com o cogito, um agente racional, cionar como um algoritmo. A construção
de que o mundo é sua construção artificial. de máquinas autônomas, como o flautista,
A radicalidade dessa proposta de Descar- o leão de Da Vinci e, depois, as máquinas
tes é de que o cogito traz consigo, inerente- têxteis por cartões perfurados, com o for-
mente, uma separação entre a representação, mato de máquinas programadas, representa
a qual está na mente, e a coisa representada, uma espécie de racionalidade realizada.
que está no mundo (Descartes, 1983). Com A importância de afirmar a tese de que
o cogito, não há conhecimento direto das há dois programas de pesquisa sobre coleta
coisas, mas, apenas, de suas representações, e tratamento de dados é buscar entender
as ideias (Descartes, 1983). se há diferenças entre o que atualmente se
A representação, por Descartes, da geo- denomina ciência de dados (e a concepção
metria pela álgebra expressa o processo de inteligência artificial a ela associada)
de mecanização do espaço e do tempo e, e o que se convencionou chamar de ciên-
portanto, da natureza e da algoritmização cia moderna, ou ciência do artificial, com
do raciocínio. O modelo de racionalidade sua origem no século XVII, proveniente da
de Descartes é aquele de um algoritmo demanda em construir, para além da coleta
e, pois, criterial. As regras, no início de e construção de tabelas de dados, relações
sua geometria (Descartes, 1954, p. 298), de inferência, dedução e causalidade, na
onde busca essa representação para somar, organização geométrica desses dados e, por
subtrair, multiplicar e dividir segmentos, esse meio, transformar o processo de obser-
expressam essa ideia. O desenvolvimento vação e coleta de dados numa experimen-
da inteligência artificial, na corrente das tação, uma atividade dirigida e controlada.
redes neurais e da machine learning, abre A primeira das tradições sobre coleta
também a possibilidade de se remeter a e tratamento de dados se deu na remota
uma racionalidade não criterial. Babilônia, na Grécia e, depois, no Egito,

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com o estudo da astronomia, com obser- dados com as técnicas de interpolação.
vações, coletas e construções de tabelas de Todos esses procedimentos funcionavam
dados descrevendo o movimento dos cor- como algoritmos formados de métodos com
pos celestes e, no caso dos babilônicos, o esquemas iterativos, introduzindo cada vez
movimento de cometas, dos eclipses lunar mais controle e precisão nos cálculos, apli-
e solar, as quais encontraram mais contri- cados no refinamento das tabelas de dados
buição, no século II, com Ptolomeu, exposta e na construção de tabelas que funcionavam
na sua obra Almagesto, com sua cosmologia como máquinas de calcular.
geocêntrica estacionária. Ptolomeu cooperou Essa linha de trabalho foi desafiada pela
também com o desenvolvimento de técnicas concepção desenvolvida nos trabalhos de
para fazer tais medidas e proporcionar um Copérnico, de Kepler, com suas leis das
maior refinamento desses dados, assim como órbitas, e de Galileu, com suas leis da queda
na construção de tabelas de dados artificiais, dos corpos e do pêndulo, para quem era
estabelecendo relações funcionais que ser- preciso encontrar o mecanismo gerador
viam como instrumentos para fazer cálculos desses dados e que esse mecanismo deve-
(Sidoli, 2014), como na relação entre a corda ria ser expresso por relações matemáticas
e o arco associado (Goldstine, 1977, p. 1). funcionais de causalidade. Essa abordagem
O desenvolvimento dessas técnicas permitiu dos dados trouxe, influenciada pela geome-
que as tabelas de Ptolomeu fossem corrigidas tria como modelo de ciência, a exigência
e usadas para fazer previsões. da organização e ordenamento matemático
Esse processo culminou na contribuição dos dados; introduziu, dessa forma, a expe-
de Tycho Brahe, no século XV, que dispu- rimentação e, com isso, a reprodução e o
tou as observações de Ptolomeu e produziu controle dos fenômenos da natureza.
novos e melhores instrumentos de medidas, A combinação da contribuição desses
usados em observatórios sob situações con- trabalhos com a das técnicas e da repre-
troladas, ainda que sem telescópios. E, com sentação, por Descartes, da geometria pela
estes, surge um novo conjunto de medi- álgebra, levou este último a considerar
das observacionais astronômicas, agora que se estava diante de nova ontologia do
com maior grau de precisão, que foram mundo e de que esta era matemática, o que
compiladas em outras inúmeras tabelas de fazia com que este operasse de modo efi-
dados. Culminou igualmente na contribui- ciente como uma máquina bem construída.
ção de Napier e Briggs, no mesmo período. A representação da geometria pela álgebra
Napier inovou com a invenção do logaritmo mostrou ainda a importância, juntamente
e a construção das tabelas de logaritmo, a com os métodos iterativos, da notação
fim de serem usadas como máquinas de matemática no processo de representação,
calcular (Goldstine, 1977, pp. 3-12). Briggs para mecanizar e, portanto, racionalizar o
inventou o cálculo de diferenças finitas, o processo de solução de problemas.
qual aplicou no cálculo de raízes quadradas, Descartes define a nova ontologia da
uma grande inovação e impulso para os natureza como uma máquina eficiente, for-
métodos de cálculos numéricos que eram mada de massas e movimento, funcionando
usados para o refinamento das tabelas de segundo leis de causalidade, e o indivíduo,

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como um agente racional, o cogito, que é Se, num primeiro momento, essa abor-
quem constrói as representações mecânicas dagem da organização causal dos dados se
para a organização dos dados, por meio concentrou no estudo da natureza, com a
de relações funcionais causais, envolvendo construção da sua representação mecânica
espaço, tempo e massa, entre eles. e sua descrição através de relações funcio-
Ele promove a mecanização do espí- nais causais, num segundo, o sucesso desse
rito com uma arquitetura cognitiva com- empreendimento, particularmente quanto à
putacional (Descartes, 1983), formada de eficiência que proporcionou para a interven-
memória, processador de operações e infe- ção, levou a estendê-la, com Hobbes, para
rências, entrada e saída de dados, consti- a solução de problemas políticos e sociais,
tuindo um mecanismo tanto para calcu- com a construção da representação mecânica
lar quanto para fazer inferências lógicas e do sistema social e político com base nos
tomar decisões. Tal arquitetura cognitiva é modelos de indivíduos racionais em interação.
precursora daquela de Babbage e de Von Contudo, entendeu-se que a eficiência
Neumann, e da inteligência como um sis- das máquinas não poderia ser atingida por
tema programável de Simon (1969). um processo aleatório como o da tenta-
O cogito foi modelado sob a influência tiva e erro, como conduzido pelos artesãos,
dessas duas linhas de pesquisas que estão nem com os recursos de dados desconexos,
relacionadas com a aplicação da matemática mas deveria ser projetada e planejada teo-
na coleta e tratamento de dados, contudo ele ricamente, o que, em princípio, envolveria
representa propriamente uma dessas linhas, relações funcionais de causalidade. A tec-
que se denomina ciência, aquela que demanda nologia, para ser eficiente, deveria ser dese-
a organização geométrica como representante nhada, projetada e construída pela ciência.
do mecanismo gerador dos dados, constituído Galileu e Descartes desenvolveram
de relações funcionais causais. suas teorias das máquinas como aplica-
Um dos fatores principais da valoriza- ção de princípios físicos. Identificaram as
ção da aplicação da matemática no conhe- máquinas mais simples e as leis de sua
cimento da natureza é que se entendeu que composição. No entanto, essa atividade de
esse processo de representação da natureza representação do funcionamento do Uni-
por modelos transformou-os num laboratório, verso por mecanismos não se restringiu aos
permitindo a simulação e, assim, a repro- fenômenos físicos, que, como mencionado,
dução, com cada vez mais eficiência, da atingiu o próprio espírito, que passou a ser
própria natureza. Uma consequência dessa tratado como um procedimento mecânico
linha foi proporcionar desenhos e construções de tomar decisões, um algoritmo.
de máquinas de precisão e, pois, máquinas Esse radicalismo foi estendido ao campo
mais eficientes, para intervenção na natu- social e político, e o objetivo ao tratar
reza. Exemplo é a máquina desenhada por esse domínio também como mecânico está
Descartes (Burnett, 2005) para cortar vidro, associado ao ganho de eficiência que a
na forma geométrica de lente com uma pre- construção científica de máquinas tinha
cisão tal que lhe possibilitava eliminar o demonstrado. Por isso, Hobbes defendeu a
fenômeno da aberração cromática. construção do Estado como representado

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por uma máquina, desenhada, projetada e o objetivo de construir as instituições como
construída pela ciência. Não é tarefa do mecanismos e trazer os benefícios de sua
artesão, mas do cientista. eficiência e de seu aperfeiçoamento para
Carlyle enfatiza, no século XIX, que a área da política e do social. O método
esse período, desde Descartes e Galileu, é dessa ciência é o utilitarista/econômico,
“the Age of Machinery” e que o processo introduzido por Hobbes, que opera pela
de mecanização não o é apenas do corpo, análise e escolha da ação cujo resultado
mas também da alma: produz o maior prazer líquido.
Se Galileu e Descartes geometrizaram
“We are required to characterize this age o tempo e o espaço físico, com sua fusão
of ours by any single epithet. [...] It is the com a geometria euclidiana, destruindo o
Age of Machinery, in every outward and Cosmos físico, o lugar natural e privile-
inward sense of that word; the age which, giado e as naturezas determinadas, Hob-
with its hole undivided might, forwards, bes geometriza o espaço social e político,
teaches and practices the great art of postulando que todos os homens são iguais
adapting means to ends. Nothing is now e livres, destruindo o Cosmos social, no
done directly, or by hand; all is by rule qual os homens eram inerente e determi-
and calculated contrivance. [...] Not the nadamente desiguais.
external and physical alone is now man- Hobbes considera o modelo do indivíduo
aged by machinery, but the internal and de Descartes como máquina autônoma com
spiritual also. Here too nothing follows o comando dado pelo cogito, agente racio-
its spontaneous course, nothing is left to nal, e acrescenta que este é autointeressado
be accomplished by old natural methods. e que age para, sob uma possível influência
Everything has its cunningly devised imple- de Fermat, minimizar dor e maximizar pra-
ments, its preestablished apparatus; it is zer. A razão é reduzida a uma atividade de
not done by hand, but by machinery. [...] calcular (Hobbes, 2010-2015, pp. 16-8). A
Men are grown mechanical in head and in filosofia civil defende que os corpos polí-
heart, as well as in hand” (Carlyle, 1829). ticos, como os geométricos, são artificiais
e devem ser desenhados e edificados pela
Hobbes espera obter os benefícios da descrição de seus mecanismos geradores
eficiência ligada à representação mecânica (Hobbes, 1839-1845a, p. 6). Essa relação de
da natureza para orientar o desenho e a representação causal surge inicialmente no
construção de tecnologias sociais e políti- indivíduo e depois no mundo, e, por isso, é
cas. Ele pensa, então, no sistema político ciência, porém, ciência do artificial (Hobbes,
e social como uma máquina de precisão, 2010-2015, p. 19). Sobre a natureza artificial
capaz de evitar, por um lado, o modelo de dos corpos políticos, salienta Hobbes: “For
Estado com “too great liberty” e, por outro, a body politic, as it is fictitious body, so
com “too much authority” (Hobbes, 1999). are the faculties and will thereof fictitious
Para esse desenho transforma a filosofia also” (Hobbes, 1839-1845b, p. 140).
civil numa ciência, na época, uma combi- Defendeu-se alhures (Leister & Chiappin,
nação de economia, política e direito, com 2010; Chiappin & Leister, 2017a, 2017b,

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dossiê inteligência artificial

2018) que Hobbes construiu artificialmente and in which the sovereignty is an artifi-
o problema da cooperação entre indivíduos cial soul as giving life and motion to the
interagentes a partir do modelo do homem- whole body. […] To describe the nature
-máquina de Descartes. Ele construiu o pro- of this artificial man, I will consider [...]”.
blema das condições da cooperação, com
base em um modelo do estado de natureza A descrição proposta por Hobbes é de
formado de agentes racionais, autointeres- uma tecnologia produzida pela ciência da
sados, livres e iguais, e, portanto, segundo inteligência artificial que se antecipa, nesse
ele, um estado de guerra. A solução se quesito da ciência do artificial, a Simon
dá, já que o indivíduo racional antecipa e sua proposta de um Physical Symbols
a tragédia, pelo desenho de um agente System (Simon, 1975, pp. 114-6; 1996) para
externo, o Estado como um homem autô- resolver problemas.
nomo artificial, um autômato. O Estado, Esse projeto de Estado como um autô-
com os recursos da construção artificial mato, para incorporar os benefícios da
de um ordenamento jurídico codificado, eficiência na área social e política, só é
a civil law, e enquanto detentor de um possível se for desenhado, planejado e
poder legal, legitimado por um sistema construído pela ciência. Ele afirma que é
representativo estabelecido por consenti- a ciência, e não o artesão, que desenha e
mento, é capaz de promover a cooperação constrói o Estado:
entre os agentes. Ele propôs essa solução
do Estado como um autômato, no Leviatã. “[…] the making and maintaining of com-
Hobbes (1999, p. IX) assevera: monwealth isn’t a mere matter of practice
[= ‘pratical know how’] like tennis; it is a
“Nature, the art whereby God hath made science with definite and infallible rules,
and governs the world, is by the art of like arithmetic and geometry” (Hobbes,
man, as in many other things, so in this 2010-2015, p. 95).
also imitate, that it can make an artificial
animal. For seeing life is but a motion of Temos também interpretado o traba-
limbs, the beginning whereof is in some lho de Hobbes em analogia com o modelo
principal part within; why may we not de Ising (Chiappin, 1979) de fenômenos
say, that all automata (engines that move cooperativos de desordem/ordem. A desor-
themselves by springs and wheels as doth dem ocorre no estado de natureza, pois os
a watch) have an artificial life? [...] Art interesses privados estão em permanente
goes yet further, imitating that rational conflito. A promoção da cooperação se dá
and most excellent work of Nature, man. com a construção do interesse comum, que
For by arts created that great LEVIATHAN serve de referência para, com o recurso do
called a COMMONWEALTH, or STATE ordenamento jurídico codificado, produzir
(in Latin, CIVITAS), which is but and o alinhamento dos interesses privados com
artificial man; though of greater stature o interesse comum. O mecanismo do con-
and strength than the natural, for whose trato, análogo àquele da criação de uma
protection and defence it was intended; corporação, concentra – do mesmo modo

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que uma lente faz – na pessoa do soberano
Illia Balla/123RF

as forças que se encontravam distribuídas


nas partes (Hobbes, 1999, pp. 73-4).
A distribuição dos direitos e obriga-
ções pelo Estado transforma o indivíduo
em pessoa, no caso, pessoa natural, seme-
lhante ao próprio Estado e às corporações,
como a Companhia das Índias Orientais,
em pessoas jurídicas, pessoas artificiais,
surgindo um regime de responsabilidade
(Chiappin & Leister, 2018) e criando os
instrumentos para alinhar os interesses pri-
vados com o interesse comum, evitando
ameaçar a existência do Estado.
Bentham retoma e aprofunda essa con-
cepção artificial de Estado de Hobbes e
dos direitos, já assumidos por Hobbes como
convenções, além de retomar a construção
do ordenamento jurídico codificado, que
usa para defender uma harmonia artificial
dos interesses, contrária à harmonia natural
dos interesses de Smith.
O desenho do Estado de Hobbes, com
o Leviatã, em 1650, se deu no contexto
do Tratado de Westphalia, de 1648, o
qual estabeleceu princípios de soberania
e abriu a competição entre os Estados.
Hobbes pretendeu desenhar um Estado para
transformar uma sociedade agrária numa
nação-Estado com um sistema representa-
cional e uma unidade jurídica territorial
e populacional de natureza industrial, que
se caracteriza pela aplicação da ciência e
tecnologia como forma de acumular poder
para competir no cenário internacional.
Denominamos esse Estado mercantilista
liberal (Chiappin & Leister, 2017b), que
rivaliza com aquele de Locke e Smith,
que classificamos de propriamente libe-
ral, e que prevalece na Inglaterra após
1840. Ambos são liberais, pois têm base

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dossiê inteligência artificial

no indivíduo, contudo, este último é defi- ao desenvolvimento naval e as tarifas para


nido como voltado apenas a promover e proteção da tecnologia –, com a Revolução
garantir os direitos dos indivíduos (Chia- Industrial, a França, a partir da Revolu-
ppin & Leister, 2017b). ção Francesa, os Estados Unidos, no século
Afirma-se, neste artigo, que o principal XIX, a Alemanha, depois de 1870, a Rússia,
fator para a Revolução Industrial na Ingla- desde 1917, e, mais recentemente, o Japão,
terra foi um modelo de Estado semelhante a Coreia do Sul e agora, principalmente, a
àquele desenhado por Hobbes. A caracterís- China, desde 1949.
tica da Inglaterra, nessa época, foi de iden- O programa racionalista se desenvolveu
tificar o interesse nacional com o interesse com a teoria mecânica de Newton, seguida
comum, fazendo uso intensivo e extensivo das mecânicas de Lagrange e Hamilton,
da aplicação da ciência e tecnologia na pro- e, então, suas aplicações por Boltzman e
dução, bem como da legislação e regula- Gibbs, no estudo de muitos corpos com a
mentação, particularmente de tarifas, para mecânica estatística e o desenvolvimento
o seu estímulo e proteção. Por exemplo, a da termodinâmica com Gibbs, com as
legislação inglesa proibiu a exportação de teorias de Einstein da relatividade geral,
máquinas até 1843 e, mesmo, restringia a assim como de Planck e Heisenberg. Para-
mobilidade dos seus técnicos. Para alguns, lelamente, continuaram se desenvolvendo
foi a adoção do modelo de Estado liberal as técnicas e métodos para refinamento
de Locke e Smith que transformou a Ingla- de dados e, mesmo, para solução de pro-
terra numa potência industrial, mas, para blemas, produzidos pela abordagem das
outros, é a adoção desse modelo que leva, relações funcionais causais, as quais não
no século XIX, ao seu declínio. comportavam soluções analíticas, como,
A aplicação do programa racionalista para citar apenas dois, o método de Euler
clássico e da ciência, na solução de pro- e o método das quadraturas de Newton.
blemas sociais e políticos, se deu com o Como mencionado, logo no início do
desenho e a construção das principais ins- século XVII, devido ao desenvolvimento de
tituições que ainda hoje regulam a socie- métodos iterativos das diferenças finitas e
dade, o Estado, a noção de pessoa como das reconhecidas falhas humanas nos cál-
representação de ação, a noção de sobe- culos, surgiram motivações para substituir
rano, o sistema representativo e o ordena- esses trabalhos repetitivos por máquinas
mento jurídico codificado, a civil law, que de calcular, como a Schickard, de 1623,
se constituíram no que denominamos uma e, logo depois, a máquina de Pascal, de
economia, política e direito institucional, 1642 (Goldstine, 1972, p. 121).
antecipando a nova e velha economia ins- O desdobramento dessa linha convergiu,
titucional do século XX, sendo o principal no início do século XIX, com o auxílio
instrumento para a construção das nações- de inovações na área dos métodos de dife-
-Estado, como a Inglaterra – apesar de o renças que reduziam os cálculos a somas
ordenamento ser a common law, ela passou e subtrações, para a proposta de Babbage
sistematicamente a adotar leis codificadas, (1832, 1864, p. 42), seguindo o princípio da
como aquelas regulamentando o incentivo divisão do trabalho, agora aplicado às ope-

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rações mentais, de construir, inicialmente, uma importante colaboração com o desenho
uma máquina de propósito específico, a e a construção do computador ENIAC e
difference engine, e, então, uma máquina com a proposta de Wiener sobre ciberné-
de propósito geral, a analytical engine, tica. O ENIAC foi concebido para resolver
ampliando e aprofundando o processo de o mesmo tipo de problemas que levaram
mecanização do espírito. Assinala Babbage Babbage (1864, pp. 41-3) a pensar na sua
(1832, pp. 93 e 153): calculating machine, agora, para fornecer
dados atinentes a trajetórias de mísseis
“Having now reviewed the mechanical com maior velocidade e precisão.
principles which regulate the success- No desenho e construção do ENIAC
ful application of mechanical science to convergiu muito das técnicas e métodos
great establishments for the production of já envolvidos desde o início do processo
manufactured goods, it remains for us to da mecanização do espírito. A arquite-
suggest a few inquiries (...that they) are tura computacional proposta por Von Neu-
founded on principles of deeper root than mann, a qual decompõe o computador nos
may have been supposed, and are capable recursos de In/Out, processador e memó-
of being usefully employed in paving the ria (Stallings, 2010, pp. 18-9), pode ser
road to some of the sublimest investiga- considerada semelhante à arquitetura de
tions of the human mind”. Descartes da estrutura cognitiva do cogito,
como indivíduo racional, e também àquela
A passagem da difference engine, de da máquina de Babbage. A entrada de
propósito específico, comportando apenas dados e do método de processamento era
um método, para aquela de propósito geral, alimentada por cartões perfurados, assim
analytical engine (Babbage, 1899, pp. 5-7), como eram as máquinas têxteis automáti-
em que os dados e os métodos de processa- cas de Vaucanson e Jacquard e, depois, a
mento são inseridos por cartões perfurados, máquina de propósito geral de Babbage.
se deu pela inspiração nas máquinas autôno- Sobre as características e motivações para
mas, com Jacques de Vaucanson, em 1745, o ENIAC, assinala Stallings (2010, p. 17):
com seu autômato programável, tocador de
flauta, e Joseph Jacquard, em 1801, que “The ENIAC, designed and constructed at the
aplicou essas ideias às máquinas de tece- University of Pennsylvania, was the world’s
lagem, transformando-as em automáticas, first general-purpose electronic digital
com base em cartões perfurados – máquinas computer. The project was a response to
que comportavam uma arquitetura compu- U.S. needs during World War II. The Army’s
tacional, antecipando, junto com Descartes, Ballistics Research Laboratory (BRL), an
a de Von Neumann (Nilsson, 2010, p. 60; agency responsible for developing range and
Stallings, 2010, pp. 18-9). trajectory tables for new weapons, was having
O subprograma de coleta e tratamento difficulty supplying these tables accurately
de dados sofre um hiato desde a contri- and within a reasonable time frame. Without
buição parcial de Babbage, para apenas, these firing tables, the new weapons and
na década de 40 do século XX, receber artillery were useless to gunners”.

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dossiê inteligência artificial

Embora a principal motivação para a Bernard A. Galler pretende, na apresen-


construção do computador ENIAC esteja tação dos dois autores ao prêmio, capturar
relacionada aos problemas do subprograma a natureza da proposta de ambos, quando
com foco na coleta e tratamento de dados, observa:
ele contribuiu para os dois programas,
constituindo-se num verdadeiro laboratório, “They were apparently the inventors of
com o desafio das formas de programação, list processing, and have been major
para pesquisa sobre inteligência artificial, contributors to both software technology
além de abrir uma nova fronteira para o and the development of the concept of
desenvolvimento do desenho e construção the computer as a system of manipulating
de computadores modernos, mais velozes symbolic structures and not just as a
e com maior capacidade de processamento processor of numerical data” (Simon &
(Stallings, 2010, p. 17), inclusive sendo Newell, 1975, p. 1).
orientados, por sua vez, pelas próprias
pesquisas sobre a inteligência artificial. Nessa linha de simular inteligência,
Ele auxiliou na evolução da ciência cog- Newell e Simon desenharam e constru-
nitiva e, por esse meio, para a da inteligên- íram, como seus primeiros protótipos,
cia artificial, como a de Simon e Newell, máquinas para jogar xadrez, promovendo
para os quais o cérebro e a inteligência as pesquisas mencionadas anteriormente
– esta considerada como um sistema pro- sobre sistemas especialistas.
gramável de manipulação de símbolos, a Apesar do esforço em determinar uma
General Problem Solver –, poderiam ser orientação para a inteligência artificial, na
mais bem estudados e compreendidos pela linha de uma máquina que processa infe-
analogia com o computador, e que sistemas rências lógicas e dedutivas, esse subpro-
dotados de inteligência poderiam ser cria- grama de pesquisa da inteligência artificial
dos com habilidade para se adaptar, através pode ser degenerado e suplantado por um
de procedimentos heurísticos, pressupondo novo subprograma que tem no seu núcleo
a aplicação da análise de meios a fins. a metodologia da ciência dos dados, com
Simon defende a ideia, na linha do a liderança das áreas de redes neurais
racionalismo, de que as máquinas podem (Caticha, 2019), machine learning e esta-
pensar, com regras do tipo “se, então”, na tística, fornecendo um novo enfoque para
medida em que são capazes de manipular trabalhar diretamente com processos que
estruturas simbólicas, proporcionando infe- simulam o funcionamento do cérebro, no
rências dedutivas e lógicas, na simulação seu processo evolutivo, interpretado como
dos processos cognitivos dos indivíduos. uma máquina que aprende a realizar tarefas
A pesquisa sobre sistemas especialistas com o recurso do processamento de dados.
partiu dessa ideia. Estes consistiam em Esse programa, herdeiro da construção das
desenvolver programas computacionais para tabelas de dados, tanto empíricos, ligados
simular o processo de tomada de decisão aos fenômenos naturais, quanto artificiais,
de indivíduos especializados, quando da para funcionarem como máquinas de calcu-
aplicação desse conhecimento. lar, e da constante elaboração de técnicas

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para proporcionar seus refinamentos – entre nomeação dos membros e objetos, enquanto
elas, a construção de máquinas de calcular o modo intensivo opera através das pro-
e computadores –, foi impulsionado pelo priedades ou condições do conceito. Dessa
enorme avanço na tecnologia computacional, forma, poderíamos nos atrever a argumentar
com computadores apresentando a cada vez que a abordagem de Simon corresponderia à
maiores velocidades e maiores capacidades definição intensiva da inteligência artificial,
para processar, estocar e acessar dados. enquanto a abordagem da ciência dos dados,
Essa nova direção para a pesquisa em representada pelas atividades da machine
inteligência artificial vem de atividades de learning e da rede neural, corresponderia
processamento de dados voltadas e carac- à definição extensiva.
terizadas por desenvolverem processos de
ajustes, refinamentos de dados ( fitting) e
CONCLUSÃO
descobertas de padrões, sem considera-
ção de causalidades. Por exemplo, uma das
linhas de redes neurais deixa de lado con- O objetivo deste artigo foi fazer uma
siderações sobre a natureza da inteligência, reconstrução racional das duas tradições
buscando reproduzir o funcionamento do do programa de pesquisa sobre inteligên-
próprio sistema físico, o cérebro, entendido cia artificial, sem conseguir, de fato, fixar
como formado de sinapses, por meio da critérios para uma nítida separação entre
construção de modelos de redes neurais elas, visto que, aparentemente, definições
capazes de criar processos de aprendiza- de inteligência artificial não conseguem se
gem para máquinas, sem se preocupar se distinguir como mais ou menos legítimas.
reproduzem ou não o processo de aprendi- As duas tradições se confundem também
zagem humana. Essa é a tendência domi- com o próprio desenvolvimento da ciência,
nante e mesmo hegemônica do programa no qual, por um lado, se enfatiza tanto a
de pesquisa sobre inteligência artificial. coleta e o tratamento dos dados, com a
Talvez, por isso, entre muitas defini- implementação de importantes métodos,
ções de inteligência artificial, a definição como o da interpolação polinomial e das
dada por McCarthy não discrimina entre diferenças finitas e divididas, quanto o
as duas propostas de inteligência artificial. desenvolvimento de máquinas de calcular.
Ela afirma: “Every aspect of learning or Por outro lado, ressalta-se o desenvolvi-
any other feature of intelligence can in mento de modelos e teorias científicas, com
principle be so precisely described that o modelo da geometria na organização dos
a machine can be made to simulate it” dados, com o qual se busca determinar leis
(Simon, 2017). da natureza capazes de expressar relações
Essa definição não contém um critério de causalidade entre os dados e, com estas
capaz de distinguir as diferentes concepções e outros dados, procedimentos dedutivos,
de inteligência artificial associadas aos dois levando do universal para o particular. A
subprogramas. Ela se ajusta a ambos, uma na abordagem de Simon da inteligência arti-
forma extensiva e outra na forma intensiva. ficial poderia ser enquadrada nesta última
O modo extensivo se dá pela indicação ou tradição, enquanto a abordagem da machine

Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 21-36 • janeiro/fevereiro/março 2020 33


dossiê inteligência artificial

learning e das redes neurais poderia ser como uma nação-Estado, e como modelo
associada à primeira. para o desenvolvimento e estabelecimento
Nesse contexto, defendemos a tese de de outras nações-Estado industrializadas.
que coube a Hobbes desenhar e construir a Assim, reivindicamos que foi essa tec-
mais importante máquina e tecnologia da nologia política e social da inteligência
inteligência artificial, o Estado moderno. artificial, modelada naquela da Inglaterra,
O Estado de Hobbes é uma versão de a responsável pela construção dos Esta-
uma máquina de propósito geral, como a dos Unidos como uma nação-Estado, que
generalização do desenho da máquina de a transformou, no final do século XIX,
cortar lentes de Descartes, construída para no maior potencial industrial, assim como
desenvolver e realizar o interesse público a França e, principalmente, a Alemanha,
sob as restrições da aplicação e execução depois de 1870, e em seguida a Rússia,
das leis e da civil law (Chiappin & Leister, depois de 1917 – um exemplo destacado
2017a, 2018). O objetivo de Hobbes era o da aplicação da ciência do artificial –, o
de aproveitar, com a representação mecâ- Japão e a Coreia do Sul moderna e prin-
nica, na área social e política, os benefícios cipalmente a China, outro exemplo da
da eficiência decorrentes do desenvolvi- ciência do artificial, todos resultados de
mento da matematização da natureza com uma economia política que tem por modelo
a representação mecânica desta. abstrato o Estado de Hobbes e, concreto,
Consideramos também que foi essa tec- aquele da Inglaterra e depois o dos Estados
nologia da inteligência artificial o fator Unidos, voltado para o desenvolvimento e
determinante da transformação da Ingla- a aplicação da ciência e tecnologia na pro-
terra de uma sociedade agrícola em indus- dução, transformando uma sociedade rural
trial, causando a Revolução Industrial, e, numa sociedade industrial. O passado foi
portanto, no seu estabelecimento, que iden- Hobbes e não Smith, mas, principalmente,
tificou o interesse comum com o nacional, o futuro é Hobbes e não Adam Smith.

34 Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 21-36 • janeiro/fevereiro/março 2020


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36 Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 21-36 • janeiro/fevereiro/março 2020


Rumo a uma política
de Estado para
inteligência artificial
Raphael M. O. Cóbe
Luiza G. Nonato
Sérgio F. Novaes
José A. Ziebarth
Silvertiger/123RF
Chairat Saengdamuk/123RF

resumo abstract

Após mais de 60 anos de evolução, After more than 60 years of evolution,


a inteligência artificial acelera seu artificial intelligence, driven by new
desenvolvimento, impulsionada por novas technologies, has accelerated its
tecnologias, devendo trazer grandes development and should bring great
possibilidades aos países que a adotarem possibilities to countries that adopt it
em larga escala. Este artigo apresenta on a large scale. This article presents
uma visão geral das estratégias nacionais an overview of the national strategies
lançadas nos últimos anos, com o objetivo launched recently, aiming to highlight
de ressaltar a importância de que o Brasil the importance for Brazil to define a
defina uma política pública para promover public policy to promote the adoption
a adoção da inteligência artificial. Estudos of artificial intelligence. Recent studies
recentes mostram que a disseminação show the spread of artificial intelligence
das técnicas de inteligência artificial irá techniques will further widen inequality
alargar ainda mais a desigualdade entre as among nations, making the delay in this
nações, fazendo com que o atraso nessa area a path without return.
área se torne um caminho sem volta.
Keywords: artificial intelligence; public
Palavras-chave: inteligência artificial; policy.
política pública.
O
s conceitos e ferramentas com uma ampla variedade de problemas,
de inteligência artificial trazendo melhorias socioeconômicas sig-
(IA) vêm conduzindo nificativas para a sociedade. Dada essa
mudanças críticas em importância, devemos estar preparados
nossa sociedade. A IA para induzir políticas públicas eficientes
atualmente compreende que contemplem aspectos técnicos, éticos
diferentes áreas que e de formação de recursos humanos para
incluem aprendizado de permitir que acompanhemos de perto o
máquina, visão computa- ritmo de países que atualmente lideram
cional, processamento de os desenvolvimentos das áreas.
linguagem natural, reco- Em pesquisa recente, a consultoria PwC
nhecimento de padrões entrevistou cerca de 1.400 CEOs de mais
em imagens, robótica,
entre outras. Os avanços recentes em IA têm
viabilizado a criação e o aperfeiçoamento de RAPHAEL M. O. CÓBE é pesquisador
aplicações que vão desde veículos autôno- do Núcleo de Computação Científica
da Unesp e membro fundador do Advanced
mos, diagnóstico médico, assistência física Institute for Artificial Intelligence (AI2).
a deficientes e idosos, à segurança pública
e indústria de entretenimento. As técnicas LUIZA G. NONATO é doutoranda
pelo Instituto de Relações Internacionais
de IA, associadas à abundante quantidade da Universidade de São Paulo (IRI-USP).
de dados digitais e ao onipresente poder
SÉRGIO F. NOVAES é professor titular
de processamento paralelo entregue pela da Unesp, diretor científico do Núcleo de
computação na nuvem, deverão, sem dúvida, Computação Científica-Unesp e cofundador
e superintendente geral do Advanced
suprir a alta demanda pública por serviços Institute for Artificial Intelligence (AI2).
digitais inovadores.
JOSÉ A. ZIEBARTH é diretor na Secretaria
O caráter transversal da IA possibilita Especial de Desburocratização, Gestão
construir soluções que permitam lidar e Governo Digital do Ministério da Economia.

Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 37-48 • janeiro/fevereiro/março 2020 39


dossiê inteligência artificial

de 90 territórios1. Ao serem perguntados se Vários países já reconheceram o papel


concordavam/discordavam que a IA terá um essencial que a IA terá no desenvolvimento
impacto maior no mundo do que a revolu- da sociedade nos próximos anos. Prova disso
ção da internet, em média 63% concorda- é que cerca de 43 países já abordam a IA
ram com a premissa. Em alguns casos, por sob a perspectiva de estratégia nacional e
exemplo, no Oriente Médio, esse número esse número segue crescendo. Parte deles
chegou a 78%. Oportuno lembrar que os elaborou planos específicos para o desen-
Emirados Árabes Unidos foram a primeira volvimento da IA, através do incentivo à
nação a implantar um Ministério da Inteli- pesquisa, desenvolvimento e inovação, bem
gência Artificial2, com o cargo de ministro como mitigação de seus efeitos políticos,
de Estado da Inteligência Artificial ocupado econômicos, sociais e éticos. Os outros ainda
por Omar Bin Sultan Al Olama, nomeado olham para a IA como uma das tecnologias
em outubro de 2017 pelo vice-presidente, da Quarta Revolução Industrial, ou associada
primeiro-ministro e governante de Dubai, a outras tecnologias disruptivas, caso em
Sheik Mohammed Bin Rashid Al Maktoum. que se enquadra o Brasil.
O impacto esperado nos negócios foi alvo Há também crescente preocupação com
de pesquisa do Boston Consulting Group a definição de limites éticos e padrões
(BCG)3 em um estudo em parceria com o internacionais que restrinjam o uso da IA
MIT Sloan Management Review junto a exe- para o benefício da humanidade. Em artigo
cutivos de 3.076 empresas. Nesse estudo, recente, B. Mittelstadt5 identificou 63 inicia-
mais de 50% dos executivos concordam tivas públicas e privadas voltadas à descrição
que a IA será responsável por mudanças de princípios e valores no campo da ética,
no modelo de negócios das empresas. É tam- para orientar o desenvolvimento, implantação
bém impressionante o número de empresas e governança da IA.
que enxergam as mudanças movidas pela IA O presente artigo tem por objetivo des-
como oportunidades: 50% exclusivamente tacar a importância da IA no atual pano-
como oportunidade e 35% como oportuni- rama de desenvolvimento mundial, tendo
dade com certo risco4. em vista a movimentação cada vez mais
intensa dos países na definição de uma
estratégia nacional e de políticas públicas
1 22nd Annual Global CEO Survey, PwC, 2019 (https:// para a sua implantação. Pretende-se ainda
www.pwc.com/gx/en/ceo-survey/2019/report/pwc- ressaltar a necessidade de que o Brasil ela-
-22nd-annual-global-ceo-survey.pdf).
bore uma política de Estado para a IA, para
2 UAE National Program for Artificial Intelligence
(https://ai.gov.ae). que não perca a janela de oportunidades
3 S. Ransbotham, P. Gerbert, M. Reeves, D. Kiron, M. Spi- que essa tecnologia potencialmente poderá
ra, Artificial Intelligence in business gets real: pioneering
companies aim for AI at scale, MIT Sloan Management, trazer ao país.
2018 (https://sloanreview.mit.edu/projects/artificial-
-intelligence-in-business-gets-real/).
4 S. Ransbotham, D. Kiron, P. Gerbert, M. Reeves,
Reshaping business with artificial intelligence: closing
the gap between ambition and action, MIT Sloan 5 “AI ethics – too principled to fail?”, in Social Science
Management, 2017 (https://sloanreview.mit.edu/pro- Research Network, 2019 (https://dx.doi.org/10.2139/
jects/reshaping-business-with-artificial-intelligence/). ssrn.3391293).

40 Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 37-48 • janeiro/fevereiro/março 2020


A URGÊNCIA DE UMA lacuna que hoje é de aproximadamente
10% entre os front-runners e os laggards,
POLÍTICA PÚBLICA
segundo a simulação irá atingir em 2030
por volta de 145%.
É provável que as tecnologias de IA pos- O interesse pela inteligência artificial
sam ampliar ainda mais a lacuna já exis- vem crescendo de forma acelerada nos
tente entre indivíduos, companhias e países. últimos cinco anos. Como resultado, diver-
Segundo estimativas da consultoria PwC, sos países lançaram estratégias nacionais
a inteligência artificial pode adicionar até para impulsionar seu desenvolvimento. Tim
US$ 15,7 trilhões à economia mundial até Dutton define como estratégia nacional em
2030, aumentando em 14% o PIB6. Calcula- IA o conjunto de políticas governamentais
-se ainda que, até 2025, cerca de um terço coordenadas, com o objetivo de maximizar
da mão de obra será substituída por robôs7. os benefícios e minimizar os custos eco-
Em estudo recente, o McKinsey Global nômicos e sociais de seu desenvolvimento.
Institute8 realizou a separação de empresas Para tanto, Estados buscam alavancar suas
em grupos que serão capazes de absorver potencialidades para emergir como impul-
as ferramentas de IA nos próximos cinco a sionadores da inovação na era da IA.
sete anos ( front-runners) e aquelas que não Por outro lado, além de considerarem
serão capazes de adotar essas tecnologias os benefícios trazidos pelo avanço da inte-
até 2030 (laggards). Quando se leva em ligência artificial, os Estados têm se pre-
consideração o fluxo de caixa (benefício ocupado também em mitigar seus efeitos
econômico obtido menos investimento asso- nocivos, como, por exemplo, as implicações
ciado e custos de transição), as empresas de uma sociedade cada vez mais automa-
que estiverem na vanguarda se beneficia- tizada na força de trabalho, a importância
rão de forma significativamente maior: até de ecossistemas de dados mais seguros
2030 seu fluxo de caixa deverá dobrar. Por e a necessidade de princípios éticos que
outro lado, os retardatários nessa corrida norteiem a pesquisa e o desenvolvimento
podem ter um declínio de 20% em seu de sistemas autônomos. Um exemplo desse
fluxo de caixa atual. Dessa forma, uma movimento está na iniciativa da Comis-
são Europeia9 que recentemente lançou um
conjunto de instruções que conta com sete
6 Sizing the prize: what’s the real value of AI for your bu- mecanismos éticos que devem ser implan-
siness and how can you capitalise?, PwC, 2017 (https:// tados para que o desenvolvimento da IA
www.pwc.com/gx/en/issues/analytics/assets/pwc- ai-
-analysis-sizing-the-prize-report.pdf). seja considerado justo.
7 Jobs lost, jobs gained: workforce transitions in a time of Portanto, a adoção de uma política
automation, McKinsey Global Institute, 2017 (https://
www.mckinsey.com/mgi/overview/2017-in-review/ pública para IA não é apenas essencial,
automation-and-the-future-of-work/jobs-lost-jobs-gai- mas também urgente. Ter um desempe-
ned-workforce-transitions-in-a-time-of-automation).
8 J. Bughin, J. Seong, J. Manyika, M. Chui, R. Joshi, Notes
from the AI frontier: modeling the impact of AI on the
the world economy, McKinsey Global Institute, 2018 9 Ethics guidelines for trustworthy AI, European Commis-
(https://www.mckinsey.com/featured-insights/artificial- sion Report, 2019 (https://ec.europa.eu/digital-single-
-intelligence). -market/en/news/ethics- guidelines-trustworthy-ai).

Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 37-48 • janeiro/fevereiro/março 2020 41


dossiê inteligência artificial

nho ruim nessa corrida pode gerar uma De um modo geral, algumas áreas são
desvantagem impossível de ser recuperada recorrentes na formulação das políticas apre-
no futuro, causando atraso que não apenas sentadas nos documentos. São elas: pesquisa
terá impacto no desenvolvimento econômico científica, desenvolvimento de talentos, desen-
como poderá inclusive comprometer nossa volvimento de habilidades, industrialização,
segurança e soberania. ética, infraestrutura digital e de dados, ser-
viços governamentais e inclusão. No entanto,
CASOS DE SUCESSO cabe destacar que cada estratégia possui ele-
mentos particulares. Assim, a análise trans-
DE IMPLANTAÇÃO
versal de todas as estratégias, ainda que dese-
DE POLÍTICAS ESTATAIS jável, implica a relativização de elementos
importantes a cada estratégia individualmente.
Nos últimos três anos, mais de 40 países Observa-se, porém, que a industrializa-
estabeleceram comitês e grupos de trabalho ção figura como prioridade estratégica para
ou elaboraram estudos para o desenvol- grande parte desses países. A Coreia do Sul,
vimento e definição de compromissos no por exemplo, já em março de 2016, publicou
campo da inteligência artificial, dos quais o documento Mid-to long-term master plan
mais da metade divulgou documentos ofi- in preparation for the intelligent informa-
ciais lançando suas estratégias nacionais. A tion society: managing the fourth industrial
União Europeia, por sua vez, busca definir revolution, no qual são definidos os pilares
uma abordagem supranacional para a IA. A da estratégia sul-coreana para o desenvolvi-
Tabela 1 lista os países e suas respectivas mento da chamada Intelligent IT, com foco
estratégias nacionais, indicando ainda as no fomento das tecnologias da Quarta Revo-
datas de anúncio e o orçamento previsto, lução Industrial, termo cunhado por Klaus
quando aplicável. Schwab, diretor do Fórum Econômico Mun-
Nesse conjunto de países que desperta- dial, que designa a revolução digital em curso
ram para a importância da IA, é possível desde a virada do século XXI.
identificar três estágios de formulação de A Quarta Revolução Industrial caracte-
estratégias nacionais: há países que defini- riza-se principalmente pela onipresença e
ram políticas específicas, em alguns casos mobilidade da internet, pelo uso de sensores
reservaram orçamento para financiar seu cada vez menores e mais potentes e pela
desenvolvimento; outros países iniciaram inteligência artificial. Essas tecnologias, ainda
estudos, publicaram guias e white papers, que não sejam exatamente novas, tornam-se
para orientar a formulação de políticas cada vez mais sofisticadas e integradas. Outra
públicas para a IA. Nesses casos, pode-se característica importante é a velocidade com
afirmar que tais documentos demonstram que as tecnologias emergentes se difundem.
uma movimentação no sentido da elabo- O conceito de indústria digital – ou indústria
ração de uma estratégia nacional. E um 4.0 – também não é recente. Remonta ao ano
terceiro caso, em que a IA é tratada como de 2011, durante a feira Hannover Messe, na
um tipo de tecnologia dentro de uma estra- Alemanha, quando o governo alemão lan-
tégia digital mais ampla. çou sua estratégia nacional de interconectar

42 Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 37-48 • janeiro/fevereiro/março 2020


tabela 1

Países que já lançaram estratégias nacionais para IA

País Estratégia Nacional Data Verba

Canadá Pan-Canadian artificial intelligence Strategy mar/17 CAD 125 M


Japão Artificial Intelligence Technology Strategy mar/17 —
Cingapura AI Singapore mai/17 S$ 150 M
China New Generation artificial intelligence Development Plan jul/17 —
Emirados Árabes EAU Strategy for AI out/17 —
Taiwan AI Action Plan jan/18 NT$ 10 B
França AI for Humanity mar/18 € 1,5 B
Reino Unido AI Sector Deal mar/18 £ 1,7 B
Itália Artificial Intelligence at the Service of the Citizen mar/18 —
União Europeia European AI Strategy abr/18 —
Suécia National Approach for Artificial Intelligence mai/18 —
Índia National Strategy for Artificial Intelligence #AIForAll jun/18 —
Alemanha AI Made in Germany nov/18 €3B
Holanda AI for the Netherlands (AINED) out/18 —
Portugal AI Portugal 2030 fev/19 —
Espanha Spanish RDI Strategy in Artificial Intelligence mar/19 4,251 M
Dinamarca National Strategy for Artificial Intelligence mar/18 —
Bélgica AI for Belgium mar/19 —
Lituânia Lithuanian Artificial Intelligence Strategy abr/19 —
Luxemburgo Artificial Intelligence : a strategic vision for Luxembourg mai/19 —
Estonian Artificial Intelligence: Report of the Expert Group
Estônia mai/19 —
on Deployment
Finlândia Artificial Intelligence Programme jun/19 —
República Checa National Artificial Intelligence Strategy of the Czech Republic jul/19 —

produtos, cadeias de valores e modelos de a Pan-Canadian Artificial Intelligence Stra-


negócios por meio da digitalização10. tegy em março de 2017, sendo a primeira
A pesquisa científica é a segunda prin- estratégia a prever orçamento específico
cipal preocupação dos países engajados no para o desenvolvimento da IA, de CAD 125
desenvolvimento da inteligência artificial, milhões e cujo foco é o fortalecimento da
como, por exemplo, o Canadá, que lançou pesquisa e o desenvolvimento de talentos.
A estratégia canadense busca incrementar o
número de pesquisadores no campo da IA, a
10 Germany: Industrie 4.0, European Commission report,
2017 (https://ec.europa.eu/growth/tools-databases/ partir do fomento a um ecossistema robusto
dem/monitor/sites/default/files/DTMIndustrie%20 e atrativo a novos talentos. Para tanto, criou
4.0.pdf).

Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 37-48 • janeiro/fevereiro/março 2020 43


dossiê inteligência artificial

clusters de excelência científica nas cidades e proteção da IA e das inovações decor-


de Edmonton, Montreal, Toronto e Waterloo. rentes de seu desenvolvimento, envolvendo
A estratégia canadense é apoiada pelo Cana- o governo, o setor privado, a academia e
dian Institute for Advanced Research (Cifar) parceiros internacionais.
através do AI & Society Program, respon- Para além de direcionar agências fede-
sável por conduzir pesquisas em políticas rais a adotarem múltiplas abordagens para
públicas, realizar workshops, grupos de tra- o avanço da inteligência artificial, como
balho e relatórios propositivos ao governo. promoção de investimentos em pesquisa e
O Canadá busca ainda tornar-se referência desenvolvimento (P&D), acesso qualificado a
e liderança no apontamento de questões infraestruturas cibernéticas e dados e remo-
relacionadas a fatores éticos, normativos, ção de barreiras regulatórias, a estratégia
sociais e econômicos do desenvolvimento dispõe como objetivo último que os Esta-
e uso crescente da IA. dos Unidos liderem o desenvolvimento de
Outras estratégias pesaram em diferentes padrões técnicos para a inteligência artificial
elementos, além de indústria e pesquisa e (standardization). Para tanto, foi instituído
desenvolvimento, como capacitação e edu- o National Science and Technology Council
cação, adoção da inteligência artificial pelo (NSTC) Select Committee on AI13, formado
setor público e privado, coleta e comparti- por CEOs de grandes empresas de tecnologia,
lhamento de dados, ética e regulamentação. ex-oficiais de segurança nacional e acadêmi-
Os EUA são o país que possui maior cos, para analisar o desenvolvimento interna-
número de documentos publicados sobre sua cional da IA e identificar de que maneira ela
estratégia nacional de desenvolvimento de IA. poderá afetar a segurança nacional. Por fim,
As primeiras iniciativas remontam ao ano o Departamento de Defesa norte-americano
de 2016, durante a administração de Barack criou o Joint AI Center (JAIC)14, que coor-
Obama, em que foram realizados diversos dena o desenvolvimento e a implantação de
workshops e instituiu-se o Subcomitê em políticas nos diferentes serviços e traz para a
Aprendizagem de Máquina e Inteligência realidade as sugestões do comitê. Discute-se
Artificial11. Mais recentemente, em fevereiro ainda o papel da qualificação profissional e
de 2019, o presidente Donald Trump editou da geração de oportunidades por meio do
ordem executiva lançando a American AI treinamento da força de trabalho para recep-
Initiative12. Trata-se de ação para promoção ção da tecnologia. Ademais, institui plano de
ação para proteção da vantagem tecnológica,
frente à disputa velada que se estabelece entre
as nações desenvolvidas.
11 Em decorrência disso, foram publicados três impor-
tantes relatórios: Preparing for the future of artificial
intelligence; The national artificial intelligence research
and development strategic plan; e artificial intelligence,
automation, and the economy.
13 National Science and Technology Council Select
12 Executive Order on Maintaining American Leadership Committee on Artificial Intelligence (https://epic.org/
in Artificial Intelligence (https://www.whitehouse.gov/ SelectCommitteeonAI.pdf).
presidential-actions/executive-order-maintaining-ame-
rican-leadership-artificial-intelligence/. Ver também: 14 Joint AI Center (JAIC), Department of Defense (https://
Artificial Intelligence for the American People (https:// dodcio.defense.gov/About-DoD-CIO/Organization/
www.whitehouse.gov/ai/). JAIC/).

44 Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 37-48 • janeiro/fevereiro/março 2020


No contraponto entre os gigantes da
Silvertiger/123RF

tecnologia destaca-se também a China. Na


visão do presidente chinês, Xi Jinping, e dos
demais líderes que despontam nessa corrida,
estar na vanguarda da inteligência artificial
será fundamental na competição pelo poder
global, tanto em termos econômicos quanto
militares. Assim, a China vem se destacando
na implementação de projetos de grande
escala, com o objetivo de se tornar a maior
nação engajada no campo da inteligência
artificial. O documento lançado em julho de
2017, New generation artificial intelligence
development15, em conjunto com o Made
in China 202516, de maio de 2015, forma o
núcleo central da estratégia chinesa para a
inteligência artificial. O gasto total público
para o fomento da tecnologia não é divulgado
oficialmente, mas estima-se que o governo
chinês construa um complexo industrial em
inteligência artificial de valor na casa de US$
150 bilhões nos próximos anos17.
Os países europeus, por sua vez, têm
buscado influenciar o desenvolvimento da
inteligência artificial tanto na esfera domés-
tica, com destaque para França, Alemanha e
Reino Unido, quanto na esfera supranacional,
no âmbito da Comissão Europeia. Pesam,
sobretudo, a questão ética e os aspectos de
sustentabilidade, segurança e inclusão18. Ade-

15 New generation of artificial intelligence development


plan (https://flia.org/notice-state-council-issuing-new-
-generation-artificial-intelligence-development-plan/).
16 Made in China 2025 (http://isdp.eu/content/uploa-
ds/2018/06/Made-in-China-Backgrounder.pdf).
17 “China’s Brave New World of AI”, Forbes, 2018 (https://
www.forbes.com/ sites/arthurherman/2018/08/30/
chinas-brave-new-world-of-ai/ #5c3a51e28e96).
18 Artificial intelligence, European Commission Report,
2019 (https://ec.europa.eu/ digital-single-market/en/
artificial-intelligence).

Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 37-48 • janeiro/fevereiro/março 2020 45


dossiê inteligência artificial

tabela 2

Países em fase de elaboração de estratégia nacional em IA

País Iniciativa Data

Áustria Austrian Council on Robotics and Artificial Intelligence ago/17

Arábia Saudita Concedeu cidadania à robô Sophia; ”Vision 2030” out/17


Mid to Long-Term Master Plan In Preparation for
Coreia do Sul dez/16
Intelligent Information Society
Quênia Força-tarefa para elaboracç ão de estratégia nacional em blockchain e IA fev/18

Brasil Estratégia Brasileira para a Transformacç ão Digital (E-Digital) mar/18


Digital Economy of the Russian Federation;
Rússia mar/18
desenvolvendo “AI R&D national strategy”
Tunísia National AI Strategy Task Force abr/18

Nova Zelândia Artificial Intelligence: Shaping a Future New Zealand mai/18

Polônia Map of the Polish AI jul/19


Towards an AI Strategy: Harnessing the AI Revolution,
México jun/18
com governo britânico
Sri Lanka Estabeleceu comitê para elaboracç ão de estratégia nacional em IA ago/18

Irlanda Workshops sobre IA e lançou um programa nacional de formacç ão em IA set/18

Malta Malta AI mar/19

Israel Estabeleceu comitês para elaborar estratégia nacional jul/19


2019
Malásia National Artificial Intelligence Framework
(prev.)
Austrália Prosperity Through Innovation (em desenvolvimento) 2018–19

Argentina Governo planeja lançar estratégia de dez anos para a IA jul/19

Hungria “AI Coalition”para formular a estratégia nacional de IA out/18


“Digital Agenda for Norway”e ”Long-term Plan for
Noruega —
Research and Higher Education”
Turquia Turkey’s Industrial Digital Transformation Platform —

mais, o tema regulatório é bastante recorrente inteligência artificial é tratada em conjunto


no debate europeu, com destaque para os com outras tecnologias disruptivas. Soma-
desafios impostos pela inteligência artificial -se às 23 estratégias nacionais, os 20 países
às sociedades e seus sistemas jurídicos. listados que já entenderam a importância da
Na Tabela 2 apresentamos os países que inteligência artificial, mas até o momento
estão em fase de elaboração de suas estra- não lançaram estratégias específicas para
tégias nacionais, além dos casos em que a o desenvolvimento dessa tecnologia. No

46 Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 37-48 • janeiro/fevereiro/março 2020


entanto, servem como parâmetro de moni- car e melhorar essas primeiras iniciativas,
toramento, já que é provável que em breve mas também implementar alguma forma de
novas estratégias sejam divulgadas e deverão coordenação e governança. Essa coordena-
ser matéria para análise futura. ção possibilitaria uma troca de experiências
mais regular e fluida. A construção de uma
ROTEIRO PARA A IMPLANTAÇÃO política nacional própria também produziria
maior grau de transparência e prestação de
DE UMA POLÍTICA DE IA
contas do dinheiro público.
Importante assinalar ainda que tais refle-
O Brasil é um dos países que não pos- xões são urgentes porque elas impactam não
suem estratégia específica para a inteligência apenas políticas econômicas e tecnológicas,
artificial. O tema é abordado na Estraté- mas também políticas educacionais. O avanço
gia Brasileira para a Transformação Digital de aplicações de IA tenderá a produzir pro-
(E-Digital)19, lançada em 2018 pelo governo fundas alterações no mercado de trabalho
federal, a qual oferece um conjunto de ações e, portanto, os órgãos governamentais pre-
estratégicas para o futuro das políticas públi- cisarão avaliar as políticas de emprego e de
cas brasileiras no campo digital. Salienta-se educação. Trata-se, portanto, de uma seara
o incentivo à pesquisa, desenvolvimento e complexa que necessitará de avaliações téc-
inovação (PD&I) e modernização da estru- nicas de diferentes áreas do governo federal.
tura produtiva, com destaque para a micro- A intensidade competitiva em torno da
eletrônica, sensores, automação e robótica, inteligência artificial sugere que não tratá-
inteligência artificial, big data e analytics, -la com a devida relevância pode implicar
redes de alto desempenho, criptografia, rede anos de atraso. Segundo o McKinsey Global
5G e computação em nuvem. Além disso, Institute20, é preciso que as empresas adotem
aborda a necessidade de formação de profis- a inteligência artificial em escala nos pró-
sionais no setor de tecnologia da informação ximos três anos, caso queiram se beneficiar
e comunicação e destaca a necessidade de de parcela do US$ 1 trilhão gerado pela IA
se avaliar os impactos sociais e econômicos até 2030. Mais do que a utilização pontual
das tecnologias disruptivas, como a inteli- de soluções baseadas em IA, as empresas
gência artificial. precisam aderir ao que o BCG chamou de
Estudos preliminares indicam a existên- AI at scale21, ou seja, tornar a IA parte do
cia de aplicações e soluções de inteligência processo produtivo.
artificial com diferentes níveis de maturi-
dade no governo federal brasileiro. Nesse
contexto, esse debate parece ainda mais
relevante, de modo não apenas a identifi-
20 J. Bughin, E. Hazan, Five Management Strategies for
Getting the Most from AI, McKinsey.com and MIT Sloan
Management Review, 2017 (https: //www.mckinsey.
com/mgi/overview/in-the-news/five-management-
-strategies-for-getting-the-most-from-ai).
19 Estratégia Brasileira para a Transformacção Digital, 21 P. Gerbert, S. Ramachandran, J-H. Mohr, M. Spira, The
Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comu- big leap toward AI at scale, BCG Henderson Institute,
nicações, Brasil, 2018 (http://www.mctic.gov.br/mctic/ 2018 (https://www.bcg.com/de-de/publications/ 2018/
export/sites/institucional/estrategiadigital.pdf). big-leap-toward-ai-scale.aspx).

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dossiê inteligência artificial

De acordo com o Relatório Global de nacional. Nesse contexto, o Brasil não pode
Competitividade, produzido pelo Fórum se permitir perder essa oportunidade histó-
Econômico Mundial, o Brasil ocupa a 72a rica, sob o risco de comprometer seriamente
posição em um ranking com cerca de 140 seu futuro científico-tecnológico, com impor-
países. Esse índice é apenas uma ilustração tantes reflexos socioeconômicos, na segurança
da nossa situação como país, mas também e na própria soberania nacional.
é uma oportunidade para demonstrar como Para tanto, faz-se necessário que sejam
uma política pública estruturada e com subs- identificadas as prioridades estratégicas, no
tantiva governança na área de inteligência curto e no longo prazo, nas áreas em que
artificial pode conduzir o Brasil a um novo o Brasil tenha maior vantagem competitiva
patamar tecnológico. frente aos demais países. Isso certamente
A inteligência artificial tornou-se o novo passará pela necessidade de consolidação de
foco de competição por se tratar de uma um parque industrial qualificado às novas
tecnologia que liderará o futuro. Os prin- tecnologias, pela qualificação e formação de
cipais países desenvolvidos já tomaram o profissionais nas áreas da ciência, tecnolo-
desenvolvimento da inteligência artificial gia e inovação, e pela retenção de talentos,
como principal estratégia para o aumento como também deverá considerar questões
da competitividade e proteção da segurança éticas e normativas.

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Silvertiger/123RF

Representações internas e processamento


de informação em redes neurais
Nestor Caticha
Chairat Saengdamuk/123RF

resumo abstract

O objetivo deste artigo é mostrar em The aim of this article is to show in simple
casos simples como funcionam as redes cases how neural networks function.
neurais. Nesse sentido, embora seja Although it is possible to describe the
possível descrever o funcionamento de functioning of a neural network of
uma rede neural de arquitetura profunda deep architecture in various ways, this
de várias formas, neste artigo optou-se article opted for the description in terms
pela descrição em termos da construção e of construction and reconstruction of
reconstrução de representações internas internal representations as the information
à medida que a informação se propaga propagates through the network.
pela rede.
Keywords: neural networks; artificial
Palavras- chave: redes neurais; intelligence.
inteligência artificial.
A
o longo da história da de muitos elementos simples pode gerar
humanidade os modelos resultados inesperados.
mecânicos para o cére- As primeiras ideias sobre redes neurais
bro e a mente mudaram apareceram logo depois do descobrimento
ao acompanhar o desen- dos neurônios por Santiago Ramon y Cajal,
volvimento tecnológico no fim do século XIX. William James e
da época. Se já descre- Sigmund Freud estão entre os primeiros
vemos o cérebro usando a sugerir a modelagem de processos cog-
relógios de água, moi- nitivos. A falta de ferramentas teóricas e
nhos de trigo, telégrafos experimentais daquela época levou ao aban-
e computadores digitais, dono de tais projetos, que voltaram a sur-
agora temos outras metá- gir com mais força depois de avanços em
foras. As redes neurais neurofisiologia e teoria de computação em
artificiais (RNA) ocupam hoje esse lugar meados do século XX. Hodgkin e Huxley,
privilegiado. Além de permitir modelos do lado biológico, introduziram o modelo
de cognição ou de sistemas neuronais matemático do neurônio que até hoje é a
biológicos, as RNA estão por trás da base para modelagem de sistemas neurais
revolução tecnológica em curso. O lugar- realistas. McCulloch e Pitts introduziram o
-comum é citar Arthur C. Clarke e dizer modelo matemático mais simples possível
que “Any sufficiently advanced technology de um neurônio. O perceptron introduzido
is indistinguishable from magic”. Porém, por Rosenblatt, no fim da década de 50,
o objetivo deste artigo é mostrar em casos
simples como funcionam as redes neurais,
essencialmente revelando os ases dentro
da manga, mas devemos conceder que as NESTOR CATICHA é professor titular
do Instituto de Física da Universidade
redes mais complexas ainda parecem magia de São Paulo e coordenador do Núcleo
até para seus criadores, pois a composição de Apoio à Pesquisa CNAIPS da USP.

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dossiê inteligência artificial

usa os neurônios de McCulloch-Pitts como não haveria alternativa prática para treinar
peças de lego para construir máquinas muito uma rede de perceptrons multicamadas.
mais ricas e complexas. O perceptron mais Isso mostrou para alguns que o projeto de
simples tem somente uma peça de lego, redes neurais estava destinado ao fracasso.
unidades de entrada se comunicam com E o financiamento foi para outras áreas
uma única unidade de saída. A importância de IA baseadas em regras específicas e
dessa máquina é que não precisamos saber não em aprendizagem.
as regras que levam à resolução de um pro- A conjectura estava baseada “em parte
blema, tal como a classificação de objetos na experiência em encontrar falácias nos
em uma de duas categorias. Basta dispor métodos propostos” e, como quase toda
de exemplos, pares formados pelo objeto prova de impossibilidade de algo baseado
e sua classificação. O perceptron aprende no argumento “eu não consegui”, mostrou-
usando exemplos. Rosenblatt foi em frente e -se incorreta. Vários autores encontraram
mostrou que, se existe um perceptron sim- soluções para treinar redes com camadas
ples que resolve um problema de classifi- internas, mas de alguma forma a notícia não
cação, podemos usá-lo como professor de se difundiu, até que, em 1986, Rumelhart,
outro perceptron simples, o aluno. Rosen- Hinton e Williams popularizaram o método
blatt apresentou um algoritmo que leva o de retropropagação (backpropagation) para
aluno a aprender o conjunto de exemplos treinar perceptrons de multicamadas. As
em tempo finito e ainda pode classificar redes com algumas poucas camadas internas
exemplos nunca antes vistos, com habili- viraram o jogo da IA. O programa de estudo
dade que cresce com o número de exemplos e uso de redes neurais, com o novo nome
apresentados. O aluno pode generalizar a de coneccionismo, ganhou espaço. Começou
partir do que foi ensinado pelo professor. um novo ciclo de explosão de atividades,
O impacto intelectual foi grande, havia um resultados promissores e mais promessas.
caminho para construir máquinas que pode- Promessas não cumpridas, dificuldades de
riam resolver um problema sem que fosse implementação em razão de custos computa-
necessário que o programador soubesse cionais elevados e o aparecimento de méto-
como resolvê-lo. Promessas foram feitas. dos alternativos trouxeram um declínio nos
A inteligência artificial estava ao nosso anos 90. Neste milênio, o aparecimento da
alcance e o financiamento de pesquisas a GPU (Unidade de Processamento Gráfico, na
tornaria realidade. Porém Minsky e Papert sigla em inglês) e seu barateamento graças
mostraram que há problemas que não pode- ao enorme mercado de jogos de computador,
riam ser resolvidos pelo perceptron simples, além de avanços técnicos na implementação
mas sim por perceptrons feitos com mais de algoritmos, permitiram a solução para
peças de lego. Essas máquinas deveriam os problemas da década anterior. O novo
ter, além das unidades de entrada e de poder computacional possibilitou conside-
saída, também unidades internas formando rar redes com grande número de camadas
camadas escondidas dentro do que seria internas, as redes de arquitetura profunda.
a “caixa-preta”. Embora isso esteja cor- O perceptron de muitas camadas passou a
reto, eles lançaram a conjectura de que ser conhecido como máquina de aprendiza-

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gem profunda ou deep learning. Com isso a dimensão dessa representação constituem
vieram resultados impressionantes e grande uma área de intensa atividade de pesquisa.
atividade de pesquisa e aplicações. Nesta Um problema associado à representação
nova fase, grandes empresas de tecnologia é saber a importância das características.
apostam alto e investem em pesquisa que Queremos determinar as características de
antes era feita em universidades. As notícias um cliente que deveriam mudar para que
inundam os jornais, o jargão invade a lingua- seu crédito seja aprovado, ou identificar os
gem dos responsáveis por marketing e novas pixels de uma imagem que foram mais úteis
promessas caracterizam esta nova etapa. O na sua classificação. Que genes expressos de
avanço foi impressionante, e isso leva a um uma célula mostram que é cancerosa? Ou
novo exagero nas promessas. Quanto tempo seja, como explicar por que esta categoria
passará até a próxima inversão do ciclo? e não aquela. Queremos satisfazer a curio-
Obviamente o estado atual não será eterno sidade e dizer por quê.
e grandes mudanças ocorrerão. Assim, cada objeto a ser classificado pode
ser representado por um ponto no espaço de
REPRESENTAÇÕES alta dimensão, Xµ = (χµ1, χµ2...χµ2). Uma ima-
gem de 1000 x 1000 pixels será um simples
E EXPLICABILIDADE
ponto num espaço de K = 106 um milhão
de dimensões, onde as coordenadas iχµi são
Suponhamos que imagens, ou pacientes, os valores numéricos das características. É
ou clientes, devam ser classificados em cate- natural introduzir a ideia de similaridade,
gorias. A imagem pode ser de paisagens talvez distância, nesse espaço, e é natural
ou de objetos artificiais, o paciente, doente que objetos da mesma categoria estejam tipi-
ou sadio; se doente, podemos perguntar se camente mais próximos entre si do que em
vai ou não se beneficiar de um tratamento relação a objetos de outra categoria. Vemos
agressivo. Um cliente pode representar um que nessa linguagem há um tipo de pro-
risco de crédito ou não. Queremos classificar blema onde IA pode ser descrita em termos
para tomar decisões. Gostei ou não gostei? de espaços de alta dimensionalidade e sua
Vou em frente ou paro? E, como essas tare- geometria. A rede neural treinada para um
fas podem ser muito repetitivas e cansativas problema de classificação divide o espaço
ou talvez porque precisem de humanos com num número de regiões igual ao de cate-
muita experiência, queremos uma máquina gorias. A fronteira entre classes vai sendo
para resolver o problema. mudada dinamicamente durante o processo
A representação matemática de um objeto de aprendizado, à medida que a informação
é a primeira questão a ser analisada. Em contida nos exemplos for usada. Mas a rede
geral podemos atribuir um conjunto de núme- pode receber objetos que não foram usados
ros descrevendo as características que podem para construir essa fronteira e que também
representar o objeto. Não há alternativa a são pontos nesse espaço de alta dimensio-
usar um conjunto de números para represen- nalidade. A classificação prevista para esse
tar dois objetos a ser classificados. Mas como novo objeto é dada em função da posição
escolher essas características e conhecer qual relativa à fronteira. A rede está pronta para

Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 49-58 • janeiro/fevereiro/março 2020 53


dossiê inteligência artificial

generalizar, fazer previsões para padrões não DINÂMICA DO PROCESSAMENTO


vistos a partir do seu estado atingido pelo
DE INFORMAÇÃO
processo de treinamento.

ARQUITETURAS PROFUNDAS As nuvens de pontos mostrados na Figura


1 (superior, esquerda) podem ser separadas
E ALGORITMOS DE APRENDIZADO
por planos em regiões que têm pontos de
uma só categoria. O perceptron simples gera
A primeira peça do lego, o perceptron uma superfície de separação e é suficiente
sem camada escondida ou o perceptron de para a primeira nuvem, mas não para a
uma camada (de pesos) tem K unidades de segunda. Para resolver esse problema um
entrada e uma de saída. A entrada i está pouco mais complicado é necessário jun-
conectada à saída j, e nessa ligação reside tar mais perceptrons para formar a máquina
um valor numérico wij, chamado peso sináp- mostrada na Figura 1 (abaixo, direita). Agora
tico por sua analogia biológica. Estes medem temos três tipos de unidades: as da primeira
a influência de cada característica (χµi) da camada (brancas) que recebem os valores
representação χµ do objeto µ. A soma pon- usados para a representação original de cada
derada hµj = Σwij χµi chega à unidade de saída um dos objetos na nuvem; a de saída (preto),
que emite um número, função de hµj, tipica- que terá um valor interpretado como a cate-
mente um sigmoide, que satura para valo- goria na qual um objeto é classificado; e
res muito maiores que um limiar bj em 1 e o novo elemento, as unidades escondidas
valores muito menores em –1, sendo linear (cinza). Este problema é da classe de fun-
na região intermediária aproximadamente bj. ções booleanas de duas variáveis conhecida
Aprender significa encontrar valores adequa- como XOR, ou OU-Exclusivo. Imagine uma
dos dos pesos wij e do limiar bj. situação mais simples que envolve duas vari-
Há uma vasta fauna de algoritmos de áveis, cada uma pode tomar dois valores, +1
aprendizado. Grosso modo, o processo consiste ou –1 que devem ser classificados em duas
em encontrar mínimos de funções custo não classes, que podemos representar por 1 e -1.
negativas que se anulam somente se a saída Portanto há quatro objetos possíveis neste
para cada exemplo usado no treinamento é a exemplo. O XOR é definido ao dizer que a
correta. Parece simples encontrar o mínimo, classificação correta de (–1,–1) e (1,1) é 1
mas na prática a força bruta não funciona e e a de (1,–1) e (–1,1) é -1.
métodos sofisticados são necessários. Isso – O que fazem as unidades escondidas?
que explica a impressão inicial de que redes Os seus valores servem como entrada do
de arquitetura profunda seriam impossíveis último perceptron de saída. Portanto, se a
de treinar – se deve ao fato de que há mui- máquina inteira funciona é porque os valores
tos mínimos e só alguns são os desejáveis. que tomam, como saída da primeira camada,
Após o aprendizado a rede pode ser usada formam uma nuvem linearmente separável.
para classificar um novo objeto. Vamos ten- Esses valores, para cada objeto da nuvem, são
tar entender num caso simples como essa chamados de representação interna. Voltamos
máquina processa a informação. ao problema de representação dos objetos.

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figura 1

Acima, um problema linearmente separável. A nuvem de pontos pode ser separada por
um (hiper) plano nas classes branco e preto e, portanto, um perceptron simples, mostrado
à direita, é suficiente. As unidades de entrada em branco e a de saída em preto. Abaixo, padrões
em preto e cinza-escuro são da mesma classe. Branco e cinza-claro também pertencem à
outra classe. As duas classes não podem ser separadas por um plano. À direita, um perceptron
multicamada com uma camada escondida (cinza) pode realizar a tarefa. As saídas da camada
escondida formam a representação interna do objeto. A informação flui da esquerda para a direita.

Se pudéssemos escolher uma representação para representar os objetos em espaços de


dos objetos que levasse a uma nuvem line- dimensão que podem variar.
armente separável, o problema estaria solu- A pergunta que na década de 1960 quase
cionado. Não sendo isso possível, em geral, levou as redes neurais à extinção continua
usamos um conjunto de perceptrons para sendo central. Como determinar os pesos
gerar uma representação nova, na primeira que levam às representações internas suces-
camada escondida. Se for linearmente sepa- sivas? Mas agora há vários métodos, e todos
rável, acabamos. Se não for, outra camada procedem pela minimização iterativa de
levará a uma nova representação interna. uma função custo. Por exemplo, fazendo
O número de unidades em cada camada mudanças sucessivas nos pesos e limiares na
interna pode variar, o que significa que a direção de eliminar ou pelo menos reduzir
informação, ao se propagar pela rede, é usada os erros de classificação.

Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 49-58 • janeiro/fevereiro/março 2020 55


dossiê inteligência artificial

Agora descreveremos o processo de quatro cantos. Os membros da outra classe


aprendizado usando backpropagation no migram para outros cantos, opostos entre si,
problema XOR1. À medida que ocorre o e se afastam o máximo possível. A colisão
aprendizado, há uma mudança de todos das representações internas torna o problema
os parâmetros: os pesos e os limiares das linearmente separável, porque três pontos,
duas camadas. Isso é um problema em oito em posições gerais, podem ser separados
dimensões e não temos muita esperança de com probabilidade 1 por uma reta, mostrada
poder representá-lo graficamente de forma em preto. Na Figura 2 ainda mostramos, na
clara seguindo os valores ao longo do tempo. quinta figura, um caso em que o algoritmo
Mais fácil é seguir as representações inter- de aprendizado falhou: a colisão se dá entre
nas de cada um dos objetos. Apresentamos membros de classes diferentes e a máquina
o resultado para várias condições iniciais minimiza o erro colocando a borda de sepa-
na Figura 2. Os quatro objetos devem ser ração justo em cima desse par. A máquina
classificados em duas categorias: em preto está em dúvida. Tecnicamente o que ocorre
e em cinza. Nas figuras vemos a evolução é que no espaço de oito dimensões há várias
ao longo do aprendizado das representações regiões diferentes que resolvem o problema.
internas. Inicialmente, ou seja, nos primeiros Os quatro casos mostrados são apenas um
passos para minimizar o erro de saída da subconjunto de 16 classes possíveis de solu-
máquina usando backpropagation, há uma ções. O último caso mostra que há outros
grande mudança na representação interna. mínimos onde a dinâmica pode ficar presa.
Os quatro casos são rapidamente levados As diferenças entre estes casos são devidas
a uma região central e depois lentamente a pequenas mudanças das condições iniciais.
permanecem durante um grande número de Todo o resto é idêntico.
iterações quase no mesmo lugar. Mas depois Na primeira fase da dinâmica, as repre-
ocorre uma mudança bastante brusca nos sentações internas são levadas a uma região
pesos e as representações internas começam em que as funções de transferências são
a se mover. Tipicamente, depois de vários essencialmente lineares. Há uma longa
passos do algoritmo, as representações fase em que os dois perceptrons escondi-
internas de dois membros de uma classe dos são bastante parecidos, isto é, há uma
colidem, se juntam e migram até um dos simetria entre eles e o problema não pode
ser separado linearmente. Mas depois de um
longo platô em que parece que nada acontece,
uma súbita quebra da simetria leva ao que
1 Nota técnica: A função de transferência das uni-
dades é σ(h) = (1 + e –βh) –1 com hi = Σ wij χi , com tem sido chamado de aha. Antropomorfi-
χ3 = 1 para todos os exemplos. Os vetores são
apresentados simultaneamente e a as mudanças
zando a máquina, podemos descrever esse
dos pesos w(t + 1) = w(t) – ɳ∇wE, onde E é o erro momento como aquele em que ela enten-
quadrático somado sobre todos os exemplos, β =
0.2 e ɳ = 0.15. O algoritmo é iterado 2104 vezes. deu o problema. Os perceptrons internos se
As condições iniciais para a primeira camada especializam, o problema fica linearmente
de pesos foram w11 = w22 = w 31 = w 32 = 1 e w12
= w21 = 0 . Os dois pesos e o limiar da segunda separável e agora as representações migram
camada foram escolhidos aleatoriamente de forma
independente de uma distribuição uniforme entre
para as regiões onde a máquina é saturada
1 e –1. e o processamento, não linear. O resultado

56 Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 49-58 • janeiro/fevereiro/março 2020


figura 2

Dinâmica de aprendizado e evolução das representações internas no XOR com a rede com
camada escondida da Figura 1. Em todas as figuras, os pontos iniciais (-1,-1), (-1,1), (1,-1) e (1,1) são
os mesmos, mas as representações internas finais são diferentes. Nas quatro figuras superiores
a rede pode separar corretamente os exemplos nas duas categorias: preto numa categoria
e cinza na outra. A separação é feita pela linha preta tracejada, é a borda entre as classes.
Na figura inferior, a RI de dois padrões de classes diferentes colidem em (-1,-1) e ficam sobre
a borda da dúvida. As diferenças entre as figuras decorrem da escolha aleatória dos pesos
iniciais da segunda camada. Em todos os casos há uma fase rápida de contração,
uma fase longa onde pouco acontece e finalmente um avanço rápido até as RI finais.

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dossiê inteligência artificial

dessa saturação é que o sinal é muito mais rem ações muito repetitivas e geração de
claro que no regime linear. cenários como xadrez e outros jogos. Mas
isso não quer dizer muito mais que a cons-
DISCUSSÃO tatação de que o xadrez é em algum sen-
tido um jogo simples, além do fato de que
O exemplo acima pode ser considerado o centenas de pessoas trabalharam para cons-
caso mais simples possível e, portanto, não truir a máquina e esta incorpora um con-
conta toda a história de como as máquinas junto de informações que nenhuma máquina
de arquitetura profunda funcionam. Mas, ao pode selecionar ou curar no estágio atual.
entender como essa máquina funciona ao O cérebro humano tem muito menos cama-
mudar as representações internas, podemos das que as redes de arquitetura profunda,
começar a descrever processos muito mais mas sistemas de retroalimentação muito
complexos. Para objetos representados em mais complexos. A necessidade de grande
espaços de dimensionalidade muito mais alta, quantidade de dados para treinar uma rede,
para manter a dimensão das camadas inter- comparada ao pequeno número de exemplos
nas aproximadamente da mesma ordem que que uma criança precisa, também mostra
a de entrada, serão necessárias mais camadas que ainda não entendemos como reprodu-
internas. Cada uma representará os objetos zir o cérebro. A capacidade de se adaptar
de forma diferente; alguns se aproximarão rapidamente a ambientes que mudam é uma
e outros se afastarão, tornando a geometria área de pesquisa importante e que tem um
das nuvens mais perto daquela que pode ser longo caminho a percorrer.
resolvida no último passo por uma máquina Embora possamos descrever o funciona-
tão simples como o perceptron. mento de uma rede neural de arquitetura
Não cabe aqui descrever todas as aplicações, profunda de várias formas, escolhemos neste
nem sequer todos os tipos de uso que podem artigo a descrição em termos da construção
ter. Concluiremos com uma descrição de alguns e reconstrução de representações internas à
objetivos que uma teoria desse tipo de sistema medida que a informação se propaga pela
de processamento de informação pode ter. A rede. Um fato que sempre acho surpreen-
descrição de processamento de informação dente, embora seja natural do ponto de vista
por mudança de representação interna não dá matemático, é que podemos ter diferentes
conta do problema da explicabilidade. Quando RNA que respondem exatamente da mesma
não sabemos resolver um problema através forma às questões, mas que têm representa-
de regras específicas, não satisfazemos nem a ções internas muito diferentes. Se eu peço
curiosidade nem as demandas legais. É claro que olhem para um objeto, uma maçã talvez,
que muitas vezes a explicação da ação por um é possível conceber que muitos concordarão
humano é posterior à sua decisão e a mesma que tem cor vermelha, ou seja, responderão
ação pode ter diferentes explicações pós-fato. da mesma forma a certas perguntas. Além
Talvez estejamos pedindo mais explicações de disso, terão atividade no cérebro em regi-
uma rede neural que de um humano. ões análogas. Mas a representação interna,
As RNA têm tido algumas vitórias impor- aquela atividade que nos dá a sensação do
tantes sobre humanos em tarefas que reque- vermelho, será a mesma?

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textos
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A universidade além do espelho

Eugênio Bucci

C
omo integrante do grupo encarregado de
pensar o futuro da USP, constituído no âm-
bito do Instituto de Estudos Avançados pelo
nosso diretor, Paulo Saldiva, pude conviver
com algumas das maiores inteligências da
universidade brasileira na atualidade: Luiz
Bevilacqua, ex-reitor da UFABC, Naomar
de Almeida Filho, ex-reitor da Universidade
Federal do Sul da Bahia, e os professores
da USP Henrique von Dreifus, Guilherme
Ary Plonski, Caio Dantas, Elizabeth Bal-
bachevsky, Arlindo Philippi Jr. e Roseli
de Deus Lopes. Nosso trabalho legou um

EUGÊNIO BUCCI é professor titular da


ECA-USP e autor de, entre outros, A forma
bruta dos protestos (Companhia das Letras).

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textos / Homenagem

bom resultado. Agora, o relatório de con- que requer um fôlego maior. Não entrego
clusões do nosso grupo, “USP: proposta de aqui o aprofundamento por dois motivos:
uma agenda para o futuro”, cuja redação quanto à forma, o espaço de um artigo,
foi coordenada por Luiz Bevilacqua, foi ainda que mais alentado, não se presta a
apresentado e debatido num seminário que formulações mais longas; quanto ao conteú-
se estendeu por toda a tarde, no dia 10 de do propriamente, o limite vem da aridez do
outubro de 2018, no IEA. meu repertório teórico, isto é, eu, sozinho,
Numa das mesas – “Avaliação e excelên- não daria conta de um empreendimento
cia. Conexões com a sociedade” –, expus intelectual tão ambicioso. Dou conta, isto
um breve comentário sobre a necessidade sim, de alertar para a necessidade de pen-
de expandir e estimular o espaço dado à sarmos a respeito. Fora o que, deveríamos
filosofia e à arte dentro da universidade. contar com outras vozes, outras aborda-
Nessas duas esferas, a da filosofia e a da gens, outras colaborações. Fica lançada a
arte, teríamos um contraponto imprescin- sugestão: novas falas serão bem-vindas. De
dível ao discurso da ciência. Quando se que modo a filosofia e a arte existem – ou
trata de estabelecer diretrizes para as nos- devem existir – dentro da universidade?
sas atividades, para a nossa relação com a Como essas duas esferas comparecem ao
sociedade, com o mercado, com o Estado debate sobre avaliação e excelência?
e com a comunidade internacional, o con- O presente artigo se alinha com os pa-
traponto a que me refiro deveria ser, aos râmetros dados pelo relatório coordenado
meus olhos, obrigatório. Não é possível por Luiz Bevilacqua. Aqui, encaminho um
pensar o papel e o lugar da universidade, convite à comunidade, é certo, mas em
inclusive sobre a sua produção científica, sintonia com os diagnósticos e as propo-
se não incorporarmos as dimensões da fi- sições que constam do nosso relatório. A
losofia e da arte no interior mesmo daquilo elaboração ligeira, aqui contida, inscreve-
a que chamamos de “espírito da univer- -se como parte e como prolongamento das
sidade”. Então, na minha participação no ideias que o relatório tão bem encadeia.
dia 10, lancei uma pergunta: parâmetros Aliás, o texto final do nosso documen-
científicos bastariam para pensar sobre to menciona expressamente a necessária
produtividade ou para medir a excelência? presença da filosofia e das humanidades
Tratei dessa inquietação de modo um tan- no coração da universidade. Literalmen-
to apressado, dadas as limitações de tempo te: “Não é de forma alguma menor a im-
e de formato das mesas em um seminário portância da filosofia, da política e das
conciso. Só o que pude fazer foi pontuar artes no processo de transformação que
indagações. Ao final da minha apresentação, vivemos”. É nesse sentido que este breve
o superintendente de Comunicação Social artigo se irmana com as melhores ambi-
da USP, Luiz Roberto Serrano, me convidou ções do texto final que apresentamos no
para escrever este artigo, convite que aceitei dia 10 de outubro.
com alegria. Eis aqui o artigo solicitado. Ainda a esse propósito, cito uma vez
Aviso desde logo que, também neste tex- mais o nosso líder, Luiz Bevilacqua. Ele
to, não tenho como aprofundar a questão, costuma se valer de uma metáfora para

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ilustrar a missão do nosso grupo. Seria nos- névoa prateada”, ingressa em – para usar
so papel, ele provoca, pôr “a universidade uma expressão em voga – outra dimensão,
diante do espelho”. Aproveitando a boa onde os vetores de sentido parecem não ter
deixa, é por aí que começo, pelo espelho. sentido algum, pois desmontam qualquer
Quando olhamos para a filosofia ou expectativa de plausibilidade.
para as artes, eu diria que, uma vez postos O segundo, Borges, imaginou o seu
diante do espelho, não devemos nos con- aleph como um orifício, ou um portal,
tentar com o que os olhos nos informam. que se abriu de repente sobre a epiderme
Devemos nos atrever a atravessá-lo. Mais do visível para revelar, num instante má-
do que explorar os ângulos possíveis e as gico, o avesso de todos os enigmas que
distorções de imagem que o espelho nos intrigam a mente humana. No aleph, um
proporciona, devemos transpassá-lo. Pode ponto minúsculo, estariam concentrados
parecer uma meta absurda, mas peço cal- todo o tempo e todo o espaço; todos os
ma ao leitor. Em alguns momentos, posso livros jamais escritos caberiam lá numa
assegurar, as tarefas acadêmicas requerem clareza nunca atingida antes.
de nós que vislumbremos o que seria a Carlos Drummond de Andrade propôs
universidade para além do espelho. a fórmula que sugere uma porta de ilu-
Pergunto, pois: como olhar as coisas do minação equivalente, embora radicalmente
nosso universo mergulhando em lógicas que diversa. Um dia, enquanto o poeta palmi-
não fazem parte das ilusões especulares lhava uma estrada pedregosa de Minas, “a
daquilo a que nos habituamos a chamar máquina do mundo” se abriu e se ofereceu
de realidade? De um lado, a prudência e a para ele, com uma promessa de descorti-
imprudência nos impeliriam a nos socorrer nar nada menos que “essa ciência/ sublime
na arte. De outro, precisaríamos invocar o e formidável, mas hermética,/ essa total
pensamento crítico, aquele não vinculado explicação da vida,/ esse nexo primeiro
à razão técnica, aquele que não é contido e singular”. Aquela “máquina do mundo”
pela ciência e que, em lugar da ciência, prometia iluminar muito mais. Dentro dela
inscreve-se na esfera da filosofia. Filoso- se esconderia “o que pensado foi e logo
fia, como bem sabemos, não é ciência – o atinge/ distância superior ao pensamento”.
estudo filosófico que se baliza pelas leis A esses mundos impossíveis que a arte
da ciência se amofina. cria, mundos não científicos (embora nunca
Passemos agora ao auxílio luxuoso desse anticientíficos), a universidade confere visto
pandeiro chamado arte. Ela guarda soluções de residência permanente. A partir daí, po-
que nos conduzem para além do espelho. demos matutar sobre a universidade e seu
Valho-me de três dessas soluções. Vou tempo futuro num plano paradoxal – posto
encontrá-las na literatura. Falo de Lewis que não é plano – situado além da “brilhante
Carroll, de Borges e de Drummond. O névoa prateada”, além do aleph e além do
primeiro tratou da transposição do espelho limiar entreaberto da “máquina do mundo”.
materialmente, ao imaginar uma situação O exercício pleiteia imaginação livre
insólita em que sua personagem, Alice, cru- e perguntas desconcertantes, com apeti-
zando a lâmina de vidro, aquela “brilhante te crítico. Nesse deslocamento, precisa-

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textos / Homenagem

mos de algo que, mais do que observar ção de seu próprio perímetro, que tende
o ceticismo científico, ponha em xeque a expandir-se em saltos de dentro para
os postulados do ceticismo científico. Eu fora. A universidade – pois não há ou-
diria que, sem a possibilidade de nos ar- tra instituição capaz de tamanho arrojo
riscarmos para além do espelho, a uni- intelectual – olha para a ciência como o
versidade pode ser produtiva e até mesmo sujeito olha para o que lhe é inteiramente
“de ponta”, mas não terá graça nenhuma, outro. A ciência não pauta a universida-
pois dentro dela não teria lugar aquilo de plenamente, mas apenas a instrui por
que de imponderável existe para definir meio de interpelações conflituosas. Ou é
a humanidade – e as humanidades. assim ou não haverá a humanidade – ou
É certo que, sem as métricas da ci- as humanidades – na universidade.
ência – sem seu método, seus matemas, Claro que isso demanda uma nova ma-
seus discursos, seus critérios objetivos neira de ensinar a filosofia – que vá além
e seus padrões de certificação –, não há do ensino da história da filosofia, como diz
arquitetura de ensino superior, de pes- Renato Janine Ribeiro, para quem “a filo-
quisa acadêmica ou de universidade. Não sofia consiste em filosofar”, como ele me
obstante, será que as métricas da ciên- cochichou durante uma das mesas do dia
cia nos bastam? Creio que não. O dado 10. Ou a universidade “filosofa” ou se reduz,
incômodo é que, se quisermos divisar a na melhor das hipóteses, a uma usina de
massa de referenciais científicos pelo lado patentes. Patentes são úteis, mas é a filoso-
de fora, teremos não que nos expor aos fia que pensa sobre a natureza da utilidade.
nossos próprios olhos diante do espelho: Além da filosofia, convoquemos a arte.
teremos que nos desmaterializar do lado Nesse caso, falamos de uma centelha de
de cá e passar a existir do lado de lá da arte antimercado, anti-indústria e antienga-
lâmina que nos reflete. jamento. A arte que importa à universida-
Por aí podemos então contemplar a fi- de seria aquela que se realiza no instante
sionomia da ciência quando vista a partir da aparição de uma coisa distante, por
do exterior da própria ciência. E, aten- mais próxima que ela esteja (Benjamin),
ção, aqui o que é exterior à ciência não no grânulo infinitesimal de tempo em que
se confunde com religião ou política. É essa fagulha ainda não é matematizável.
justamente esse exterior e não outro que Arte como exceção à regra da cultura. Arte
não pode faltar à cartografia da universi- como desestabilização num flash, trepida-
dade – uma cartografia paradoxal, além ção do léxico, impedância imperceptível,
de complexa. Na universidade, postulo entropia vital. Arte como o deslizamento
eu, a ciência deve ser pensada como pro- criativo do significante no momento em
blema, ou como questão, jamais como a que se desprende do significado anterior e
matriz do pensar e muito menos como ainda não encontrou seu novo significado.
solução. Na universidade, a ciência não Que voo do espírito lograria criticar a
teria como fechar sobre si mesma o seu ciência, sem pretender reduzi-la a dogmas?
próprio círculo, ainda que se presuma que A filosofia, por certo – e a arte, também.
esse círculo contenha as vias de supera- É nesse sentido que, hoje, muito mais do

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que em 1934, não é mais pensável a uni- de uma ordem de exclusão, ordem que trava
versidade longe da filosofia e da arte. Ci- o desenvolvimento humano. Mesmo assim,
ência é conhecimento em experiência, mas há quem diga que a universidade dita “de
nem toda experiência de conhecimento é massa” não se conciliaria com o projeto
ciência. Ou sabemos disso – e disso só se de uma universidade dita “de ponta”, mais
sabe quando disso se desconfia – ou não ou menos como antigamente se dizia que
teremos o expediente de opor resistência partido “de vanguarda” não era partido
ao imperativo da técnica que nos ordena “de massa”. Se o projeto é ter qualidade
seguir a ciência como se ela fosse religião, “científica”, deve-se desistir de ampliar a
ao mesmo tempo em que nos proíbe de população universitária e contentar-se com
chamar de religião a ciência. Também por uma instituição “de elite”.
isso, sigamos para além do espelho. Seria então essa a forma de equacionar
As chaves tão em voga quanto a ex- o dilema? Seria uma questão de “A” ou
celência ou a avaliação não deveriam se “B”? Ou será que há outros encaminha-
reduzir às métricas científicas. Nem quando mentos? Ou haveria aí um falso dilema?
discutimos a missão da instituição da uni- Será que justamente no reforço do caráter
versidade, nem quando discutimos decisões inclusivo da universidade numa sociedade
de ordem prática, política ou estratégica desigual não pode se encontrar a trilha
dessa mesma instituição. Sobre as questões na direção da excelência de longo prazo?
de ordem prática, quero dar dois exemplos. Pensemos a respeito – pensemos do lado
Consideremos, no primeiro exemplo, o de lá do espelho. Núcleos “de ponta”, de-
aparente impasse que se instaura entre duas dicados à pesquisa que desbrava fronteiras
diretrizes possíveis: de uma parte, a ne- da ciência, não poderiam conviver, dentro
cessidade de ampliar a oferta de vagas em da instituição universitária, sobretudo num
boas universidades para um número maior país como o Brasil, com a meta de incluir
de jovens brasileiros e, de outra parte, a mais e mais gente? Só atravessando o es-
busca de uma universidade de pesquisa pelho para descobrir.
avançada, com altos padrões de desempe- Partamos agora para o segundo exem-
nho científico. Normalmente, o que se diz plo. Trata-se de um segundo dilema, que
é que a escolha estratégica não pode se já comparece aos nossos debates e se tor-
dar simultaneamente pelas duas diretrizes. nará um tópico ainda mais rumoroso. Esse
Ou bem se elege uma, ou bem se elege a segundo dilema tem a ver com os modos
outra. Será assim mesmo? de financiamento do ensino superior no
De um lado, sabemos que o Brasil, para Brasil. Não tenhamos dúvidas: a agenda de
se desenvolver e se civilizar, precisa ter tornar pagos os cursos de graduação nas
mais gente com formação universitária, nossas escolas públicas vai se intensificar.
como quem abre as portas de acesso à A imagem pública da nossa universidade
cultura e ao conhecimento. Se a universi- pública se desgastou demais e a grita-
dade não é mais acessível numa sociedade ria para que sejam instituídas cobranças
desumana como a brasileira, ela é uma de mensalidades tem a ver com isso. A
universidade desumanizada e reprodutora gritaria se reveste de uma suposta racio-

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textos / Homenagem

nalidade, mas ela carrega, mais do que 27 mil anuais, mas dá mais um passo na
racionalidade, um rasgo de ressentimento. direção da gratuidade do ensino.
Se você não acredita, lembre-se de que, Como interpretar esses sinais que vêm
há pouco tempo, uma operação desastrada de fora, quando debatemos aqui a avalia-
– ou mesmo maligna – da Polícia Federal ção e a excelência na USP – e no futuro
contra dirigentes de universidades públicas da USP? Parto da hipótese de que existe,
adotou o nome-senha de “Torre de Mar- nessa inflexão da universidade americana,
fim”. Isso mesmo: a Polícia Federal do um impulso de aspecto solidário, mas não
nosso país parece acreditar que a universi- creio que isso explique tudo. A questão
dade pública brasileira se assemelha a uma é antes de racionalidade que de fraterni-
“torre de marfim”, uma reserva intocável dade. Basta ponderarmos. Nenhuma uni-
de privilégios e confortos desmedidos. No versidade digna desse nome se sustenta
bojo dessa deterioração de imagem pública, com a cobrança de mensalidades. Mesmo
entende-se como um “privilégio” e, por- as instituições que cobram caro de seus
tanto, como um não direito, a condição de alunos, se são verdadeiramente institui-
que os estudantes frequentem os cursos ções que pesquisam e que desenvolvem
de graduação nas instituições públicas de conhecimento, precisam de recursos vul-
ensino superior sem ter que pagar. Temos tosos além dessa receita. Assim é que, de
um problema nesse ponto. É evidente que uma forma ou de outra, por um caminho
temos um problema aí. ou por outro, a sociedade não tem como
Agora vejamos. Enquanto recrudesce fugir da necessidade de bancar a pesquisa
a sanha para que se institua a cobrança e também a formação de novos quadros
de mensalidades nas faculdades públicas qualificados para o mercado de trabalho.
do Brasil, nos Estados Unidos nota-se um A questão, portanto, não é se se deve
movimento inverso. No MIT, Hashim Sa- adotar sistemas para ajudar os alunos a
rkis, dean da School of Architecture and custearem seus estudos. A questão é co-
Planning (onde está o curso de arquitetu- mo fazer isso.
ra e, entre outros órgãos, o Media Lab), As fórmulas socialmente consagradas
vem falando de um plano para diminuir ou para essa ajuda aos alunos do ensino su-
mesmo extinguir a combrança de mensali- perior são conhecidas. Podem-se oferecer
dades e anuidades. Harvard, por sua vez, financiamentos de longuíssimo prazo (aí,
oferece cada vez mais cursos a distância o custo para a sociedade aparece no prazo
gratuitos. Outro sinal interessante vem da alongado de retorno do dinheiro público
Universidade de Nova York (NYU). Re- investido), como se vê comumente nos Es-
centemente, em agosto de 2018, a NYU tados Unidos e no Fies, no caso brasilei-
surpreendeu seus 443 alunos de medicina ro. Outra alternativa é manejar políticas
ao anunciar o fim das cobranças de paga- de compensação tributária, como aconte-
mentos, o que representará uma economia ce com o Prouni, um programa em que,
de US$ 55 mil por ano a cada um deles. pelo disciplinamento da renúncia fiscal,
A medida não cobre alojamento e outras estabelecendo contrapartidas específicas, o
despesas, que totalizam em média US$ Estado banca o financiamento dos cursos

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de graduação de milhões de estudantes. afirma-se como prioritário na tomada de
Podem-se ainda oferecer cursos gratuitos, decisão. A maneira como se estrutura o
simplesmente. De uma maneira ou de outra, ensino público na universidade pública
porém, recursos públicos sempre afluem constitui uma prática que tem, em si mes-
para apoiar a formação de novas gerações ma, função formativa, não apenas para os
de profissionais qualificados. alunos mas para toda a comunidade no
Qual o caminho mais racional para or- entorno. A gratuidade, contrabalançada
ganizar esse financiamento necessário? Que por sistemas regulares de prestação de
tipos de variáveis deve-se levar em conta contas e de transparência, enfatiza o ca-
numa decisão dessa ordem? Mais do que ráter público da universidade pública e
uma medida de justiça social (dimensão que fortalece a percepção de que o ensino é,
não pode ser esquecida), a melhor solução sim, um direito. É sempre um direito que
para o modo de financiamento do ensino corresponde às necessidades que aquela
superior passa por encontrar a maneira mais sociedade tem de pôr e repor profissionais
simples e mais eficiente – com menos custos em sua economia – e de se desenvolver
administrativos – com o fim de se atingir o e desenvolver as pessoas.
melhor objetivo, qual seja, entregar à socie- Ora, isso só se pode ver e entender se
dade profissionais bem formados, em prazos não nos acomodamos às planilhas de con-
razoáveis, de acordo com as necessidades tabilidade burocráticas, desconectadas dos
do país. A sociedade não tem como evitar sentidos sociais e humanos. É preciso, tanto
subsidiar, direta ou indiretamente, o ensino para analisar os detalhes da vida universi-
superior dos seus jovens. Isso posto, a gra- tária, como para analisar o seu conjunto,
tuidade pode ser uma solução, antes de tudo, um olhar que não se acomode à razão téc-
mais prática – que nada tem de privilégio nica. Mesmo quando lidamos com questões
ou de “torre de marfim”. comezinhas como aumentar o número de
Note-se bem: a universidade gratuita vagas, como financiá-las ou como sustentar
não é mais cara que uma universidade em pesquisas avançadas, as métricas aparente-
que o aluno conta com um financiamento mente impessoais – apenas aparentemente
de longuíssimo prazo, ou que uma outra impessoais – não nos proporcionam a visão
financiada na base da renúncia fiscal. Em crítica. Os reflexos do espelho são insufi-
todas elas o investimento social (bancado cientes. É preciso duvidar do espelho.
pelo dinheiro público) seguirá existindo. Só Tudo isso me leva a dizer, enfim, que
o que muda é a maneira de se equacionar a universidade mora além da ciência. Há
o investimento público. É aí que, talvez, a uma poética na universidade, e eu só não
gratuidade seja a solução mais racional, o gostaria que perdêssemos a oportunidade de
que poderia explicar a iniciativa recente encontrá-la, de ultrapassar o jogo de espe-
das universidades americanas. lhos pelo qual ela se furta ao nosso olhar.
Não é só. A solução para o dilema do Para terminar, lembro que o poeta mi-
financiamento precisa levar em conta o neiro, nas estrofes finais, recusou o convite
caráter público das universidades públi- que lhe foi insinuado pela “máquina do
cas – tópico que, no meu modo de ver, mundo”. Sua recusa foi um acerto, penso

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textos / Homenagem

eu, pois representou uma insubordinação E tudo bem. Nesta hora em que gas-
à técnica encerrada no capitalismo extra- tamos nosso tempo pensando sobre a
tivista. Lembro ainda que, no aleph de universidade, um pouco de arte e até
Borges, a fissura que mostra o mistério mesmo de absurdo nos devolve um pou-
logo se esquiva. E é melhor assim, mas aí co de razão. O que é uma estratégia de
não me cabe discutir por quê. Quanto a país sem imaginação desregrada? E de
Alice, tudo aquilo que ela encontra além que serve uma universidade que não se
da “brilhante névoa prateada” se fabula rebela contra o discurso da ciência, prin-
como um brinquedo absurdo, algo que nem cipalmente naquilo que, nesse discurso,
rima nem é solução. é religião sem mistério?

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Fala narcísica

Jean Pierre Chauvin

D
“Assim zombara ele desta, zombara
assim de outras ninfas nas águas
ou nos montes nascidas, como havia
zombado de muitos jovens” (Ovídio).

“Foi então que os bustos pintados nas


paredes entraram a falar-me e a dizer-me
que, uma vez que eles não alcançavam
reconstituir-me os tempos idos, pegasse da
pena e contasse alguns” (Machado de Assis).

“[...] a conversação está sempre


em excesso, com relação a criar”
(Gilles Deleuze & Félix Guattari).

Em memória de Joaquim Alves de Aguiar

FALA, CONVERSA

esde a descoberta (para alguns, invenção)


da psicanálise, ao final do século XIX,
passou-se a creditar maior quinhão tera-

JEAN PIERRE CHAUVIN é professor de


Cultura e Literatura Brasileira da Escola de
Comunicações e Artes da USP e pesquisador
credenciado do Programa de Pós-Graduação
Estudos Comparados de Literaturas de
Língua Portuguesa da FFLCH-USP.

Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 69-78 • janeiro/fevereiro/março 2020 69


textos / Homenagem

pêutico à fala. Em termos mais especí- fenômenos, e é neles que vai procurar o
ficos, determinados sintomas provocados inconsciente” (Lacan, 2008, p. 32).
por traumas, ou gatilhos mediados pela
psique, poderiam ser identificados e ana- Um pouco mais tarde, Michel Foucault
lisados com vistas à cura de síndromes sugeriu que a interdição da fala seria um
e transtornos recorrendo-se à linguagem dos modos de exclusão, do ponto de vista
externalizada. De posse do diagnóstico, o sociopolítico. Em nome de argumentos
psicanalista apresentaria ao falante uma pseudocientíficos ou normativos conven-
ou mais vias de tratamento, com ações cionados por determinado grupo, a acolhi-
e prazos estimados de duração. da do indivíduo cederia lugar ao boicote
de sua fala. Em acordo com a origem so-
“Nosso plano de cura se baseia nesses co- cial, a posição ocupada pelo sujeito e as
nhecimentos. O Eu está debilitado pelo suas características, ele receberia o aval
conflito interior, temos de correr em seu (ou o veto) dos pares ou superiores. Nesse
auxílio. É como numa guerra civil que sentido, a possibilidade de externalizar o
deve ser decidida pela assistência de um que pensava e sentia por intermédio da
aliado externo. O médico analítico e o Eu fala implicaria a aprovação (ou a coer-
debilitado do paciente devem, apoiados no ção) do outro.
mundo externo real, formar um partido
contra os inimigos, as exigências instin- “[...] o que os intelectuais descobriram re-
tuais do Id e as exigências de consciência centemente é que as massas não necessi-
do Supereu” (Freud, 2019, p. 226). tam deles para saber; elas sabem que são
perfeitamente, claramente, muito melhor do
O método terapêutico proposto por que eles; e elas o dizem muito bem. Mas
Sigmund Freud seria desdobrado por Ja- existe um sistema de poder que barra, pro-
cques Lacan, nas décadas seguintes à íbe, invalida esse discurso e esse saber”
morte do “pai” da psicanálise. Para o (Foucault, 2009, p. 71).
herdeiro francês, a fala não só partici-
pava do processo de superação do trau- Para além da discussão em torno dos
ma – ou localização do gatilho, descrito efeitos da fala e da sua caracterização co-
conscientemente, ou não, pelo paciente. mo sintoma, deve-se lembrar que, entre os
Além do caráter terapêutico, o ato da séculos XVI e XIX, a conversação cons-
fala relacionava-se à identidade e à (re) tituía uma das artes cultivadas nas cortes
constituição do indivíduo. europeias, quando a aristocracia passou a
se refinar com artes que ensinavam no-
“No sonho, no ato falho, no chiste – o vos modos ao cortesão, com vistas a sua
que é que chama atenção primeiro? É o distinção como nobre discreto, em relação
modo de tropeço pelo qual eles aparecem. aos homens vulgares ou sem representa-
Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa ção social (Burke, 1995). Para esses manu-
frase pronunciada, escrita, alguma coisa ais, a fala resultava de uma performance
se estatela. Freud fica siderado por esses codificada, eivada por regras que diziam

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respeito à matéria do discurso (inventio), Talvez seja útil lembrar que a análise
à disposição de suas partes (dispositio), da conversação1 é uma área da linguística
modos de dizer (elocutio) e à (im)postura que tem, por objeto de estudo, colóquios
atrelada à linguagem (actio). De acordo (mais ou menos espontâneos) que, transcri-
com Alcir Pécora (2001, pp. VIII-IX): tos, constituem um corpus de investigação
relacionado às características e artimanhas
“No salão dos hôtels parisienses, con- do discurso e dos atores, a partir de re-
versar revela-se um ‘ofício’, como diz corrências lexicais; da estrutura, extensão
Hellegouarc’h, que faz o indivíduo tornar-se e ordenação das frases; do emprego de
interessante e informado, sem ser pesada- dispositivos que favorecem, ou não, a ar-
mente erudito, e cultivar cuidadosamente ticulação do discurso, etc.
a aparência de ‘natural’, obtida menos à A transcrição e análise de diálogos, tanto
custa dos conteúdos das conversas, do que no âmbito da arte (cinema, dramaturgia,
do perfeito domínio da voz, da pronúncia, música, literatura), quanto em contextos
da expressão, do gesto, do porte, enfim, de comunicacionais (entrevistas, bate-papos,
tudo que compõe a actio retórica”. consultas médicas, audiências, exposição
de trabalhos em eventos, etc.), ajudariam a
Poderíamos aventar que a fala tanto é detectar uma modalidade discursiva oral que
performativa, quanto diagnosticável; tan- poderíamos denominar fala narcísica. Ora,
to envolve artifício, quanto sinaliza para estamos habituados a supor que o narcisismo
brechas espontâneas do discurso; tanto dis- seja um conjunto de ações indicativas de
simula sentimentos quanto afeta paixões postura autocentrada e autorreferencial do
inexistentes. Nesse sentido, seria razoável indivíduo. Como se sabe, nas letras antigas,
questionarmos os limites da terapêutica, o comportamento de Narciso tornou-se um
levando em conta que podemos interpretar paradigma desse modo de agir, especial-
como sintoma o que pode estar relacionado mente depois que a psicanálise aludiu ao
a artifícios postos em ação pelo sujeito que episódio do afogamento da personagem, se-
fala sobre algo, para alguém, em algum quiosa de ultrapassar o nível superficial,
lugar, durante algum tempo. retratado como reflexo de sua imagem:

“Admira tudo o que o torna a ele digno


TURNO [de admiração.
Sem saber, a si se deseja; é aquele que
Provisoriamente, consideremos o truísmo [ama, é ele o amado.
de que conversar e falar não sejam neces-
sariamente sinônimos. O primeiro ato, em
geral, pressupõe o diálogo, seja ele codifica- 1 “A Análise da Conversação deriva, segundo Heritage
do ou mais espontâneo. Quanto à fala, pode (1999), da Etnometodologia, uma corrente da socio-
logia inaugurada a partir da publicação de Studies
resultar da inexistência de ouvintes, quan- in Ethnomethodology, de Harold Garfinkel, em 1967,
do é monólogo; ou é assimétrica, quando que sugeria a investigação da organização social por
meio de um paradigma interpretativo” (Carvalho &
aquele que discorre mais fala do que ouve. Acioli, 2017, p. 158).

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textos / Homenagem

Ao cortejar, a si se corteja. Arde no fogo cionados à pretensão de buscar ou afirmar


[que acende. [...] verdades: “Os filósofos, com efeito, não têm
Ingênuo! Por que buscas em vão agarrar noção das leis que regem o Estado, nem da
[uma fugitiva imagem? linguagem que devemos empregar ao falar
O que desejas não existe! O que amas, com as pessoas nos negócios particulares e
[retirando-te, perdê-lo-ás! públicos, nem dos prazeres e paixões hu-
Essa sombra que vês é o reflexo da tua manas” (Platão, 1970, p. 117).
[imagem!” Desde a Antiguidade, a poesia lírica
(Ovídio, 2019, p. 195). deu voz a Eros, contraparte de Tanatos. A
despeito de as convenções retórico-poéticas
O mergulho fatal de Narciso compor- terem se transformado, ao longo das eras,
taria simbolismos variados, dentre eles a o caráter egocêntrico do amor permaneceu
incapacidade de distinguir entre reflexo como pressuposto dos versos produzidos.
(da imagem) e reflexão (do Eu), já que Com o advento do Romantismo europeu, no
exprimem coisas bem diferentes. Uma diz final do século XVIII, o acento individual
respeito à adoração não do ser, mas da nos versos redobrou em força e apelo. A
imagem que projeta (ou é projetada) sobre título de ilustração, consideremos os versos
si mesmo; outra sugere que o mergulho de “Olhos verdes”, de Antônio Gonçalves
em busca da essência implica ultrapassar Dias, que estabelece diálogo temático, estru-
o âmbito da superfície e lidar com áre- tural e formal com uma rima de Camões2:
as recônditas, e até então inacessíveis, do
próprio ser. “São uns olhos verdes, verdes,
Aparência versus essência: tópico re- Uns olhos de verde-mar,
corrente na filosofia e nas artes desde a Quando o tempo vai bonança;
Antiguidade. Dicotomia quase sempre re- Uns olhos cor de esperança,
lacionada ao caráter ambivalente do que se Uns olhos por que morri;
vê, a sugerir o descompasso entre a imagem Que ai de mim! Nem já sei qual fiquei sendo
emitida e a sua percepção por parte daquele Depois que os vi!”
que a enxerga. Subjacente a essa discussão, (Gonçalves Dias, 2001, p. 339).
havia a controvérsia sobre o caráter artificial
da retórica, arte da persuasão. Platão via A título de ilustração, recuemos até 1705,
nela uma técnica descomprometida com o para redescobrirmos os olhos de Anarda,
bem e a verdade: “[...] se o orador utilizar que ora sugerem afeição, ora produzem o
a oratória para fins iníquos, não é o caso afastamento do enamorado: “É meu peito
de censurar, nem de censurar, nem de en- navio,/ São teus olhos o Norte” (Oliveira,
xotar da cidade o seu mestre, mas sim o 2005, p. 11). Ou a um soneto de Camões
faltoso, que utilizou a oratória de maneira
indevida?” (Platão, 1970, p. 73).
A ele se contrapunham Górgias e Polo, 2 “Eles verdes são:/ E têm por usança,/ na cor esperan-
sofistas que defendiam o caráter técnico ça,/ E nas obras não” (versos de Camões que servem
como epígrafe ao poema “Olhos verdes”, de Gonçalves
da arte e problematizavam os limites rela- Dias, publicado em Últimos cantos, de 1851).

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(2008, p. 280): “Fermosos olhos, que na Grande foi a estupefação de Capitu, e não
idade nossa/ Mostrais do Céu certíssimos menos a indignação que lhe sucedeu, tão
sinais,/ Se quereis conhecer quanto possais,/ naturais ambas que fariam duvidar as pri-
Olhai-me a mim, que sou feitura vossa”. meiras testemunhas de vista do nosso fo-
Eventualmente, se o leitor preferir, ro. Já ouvi que as há para vários casos,
consideremos um poema de Petrarca, que questão de preço; eu não creio, tanto mais
descreve os efeitos avassaladores do rosto que a pessoa que me contou isto acabava
sobre o estado de alma da persona poética: de perder uma demanda. Mas, haja ou não
“Quando entre as outras damas se demo- testemunhas alugadas, a minha era verda-
ra,/ Amor brilha é no belo rosto dela;/ deira: a própria natureza jurava por si, e
e vendo que nenhuma lhe é mais bela/ eu não queria duvidar dela” (Machado de
cresce em mim o desejo que enamora” Assis, 2014, p. 353).
(Petrarca, 2014, p. 51). Ou ainda, evoque-
mos uma ode de Horácio, que referencia Lembro que, no tempo da enunciação
a posição superior de quem é observado de suas memórias, Bento – filho da es-
em relação à de quem vê: “Ó filha mais cravista D. Glória; escudado pelo pai de
formosa que a formosa/ mãe, atira os meus empréstimo, José Dias; e confrontado pela
jambos criminosos/ aonde quiseres, ou ao régua de prima Justina – afeta inocência, o
fogo ardente,/ ou às ondas do Adriático que, em tese, condiria com a sua suspeita
[...]” (Horácio, 2003, p. 49). de que a esposa Capitu estivesse dentro
Naturalmente, a tópica do olhar ambíguo de Capitolina, a menina pobre com que a
não se restringe ao verso, nem se confunde casa abastada dos Santiago fizera muro e
com o movimento romântico. Avancemos até arrimo. Joaquim Alves de Aguiar notara,
1899, para contrapor os olhos dissimulados a esse respeito, que:
de Capitu ao comportamento supostamen-
te bom e espontâneo de Bento Santiago. “O muro, como sabemos, contém uma aber-
Façamos pouso nas páginas de Dom Cas- tura (a portinhola) por onde transitavam
murro, especialmente aquelas que sugerem Bentinho e Capitu, no vaivém das brinca-
a derrota do olhar (descrito como ambíguo) deiras infantis e, depois, do namoro adoles-
que arrastava o protagonista em meio às cente. Tomando a história em seu todo, a
vagas, diante do seu falar (assertivo) que abertura ganha um valor simbólico notável,
tudo devora em nome do paternalismo, da pois ela acaba funcionando como detalhe
subserviência aos dogmas e ao autoenve- da passagem de classe de Capitu, que sobe
nenamento por suspeita da consorte. A ce- os degraus da casa ao lado quando ingressa
na a seguir descreve a suspeita de Bento na outra família, ao casar-se com Bentinho.
Santiago sobre a infidelidade de esposa e A passagem de Capitu permite ver que a
a paternidade do filho: roda grande absorve a pequena, como uma
metrópole que engole um subúrbio. Quan-
“– O quê? perguntou ela como se ouvira do se casa, Capitu vai viver na Glória, um
mal. bairro com o mesmo nome da mãe de seu
– Que não é meu filho. marido” (Aguiar, 1998, p. 159).

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textos / Homenagem

ESCUTA veis da mulher; e a crítica, que vislumbra


Dom Casmurro como elucidativo intertexto
Como se sabe, a crítica brasileira gas-
shakespeariano. Isso porque, durante mais
tou mais de 60 anos até admitir a eventual
de meio século, tratou-se de desprezar a
inocência de Capitu (Dom Casmurro). Vale
tarefa de ler a obra a que o próprio Bento
lembrar que isso só passou a acontecer a
Santiago, narrador da peça de acusação fa-
partir de 1960, provavelmente em respos-
vorável a si mesmo, fizera diversas alusões,
ta ao agudo estudo de Helen Caldwell, O
ao longo do romance:
Otelo brasileiro de Machado de Assis3. Se-
ria ocioso retomar os ensaios da estudiosa
“A instalação do tribunal doméstico, o réu
norte-americana, bem como as hipóteses
diante do promotor e do juiz, sem direito a
formuladas por Eugênio Gomes ou Silviano
júri e advogado de defesa, é, entre outras
Santiago, nos anos que se seguiram. Por
coisas, mais um elemento que confirma uma
isso, em lugar de nos estendermos sobre as
certeza cultivada pelo leitor desde o início
(des)razões da crítica brasileira para conde-
do livro: Dom Casmurro é um ‘romance de
nar ou inocentar Capitu, interessa-nos mais
família’. A educação de Bentinho é mais
avaliar os pressupostos, meios e objetivos
sentimental do que escolar, e todo o seu
mal encobertos pelo discurso teoricamente
drama decorre da crise e da dissolução do
franco de Bento Santiago, sombra e sobra
seu casamento” (Aguiar, 1998, p. 153).
da esposa.

Corremos o risco de repetir obviedades,


“Se o narrador noticia as etapas fundamen-
decorridos 120 anos da publicação do ro-
tais do processo educativo do protagonista
mance machadiano. Vale lembrar que Dom
(que é ele mesmo, na infância, adolescência
Casmurro é narrativa escrita em primeira
e mocidade), pouco ou nada ficamos sa-
pessoa por um ex-seminarista e advogado,
bendo sobre suas experiências escolares. É
costurado à saia da mãe, forjado no dog-
que, nesse período da vida, ganha vulto a
matismo moral da igreja e cultivador da
figura de Capitu, que o inicia nos caminhos
retórica – correspondente aos bustos dos
do amor e que, com isto, desempenha um
oradores que enfeitam a sala de visitas,
papel educador mais importante na trama
em seu velho-novo lar, à imitação da casa
romanesca que os papéis desempenhados
onde viveu com a mãe em Matacavalos.
pelo padre e pelos professores do Seminá-
Porventura, o que mais chama atenção
rio e da Faculdade” (Aguiar, 1998, p. 152).
no plano diegético é que – afora tratar-se
do relato unilateral de um cinquentão ou
Poderíamos diagnosticar duas concep-
sexagenário, a recontar os lances da sua
ções: a patriarcal, surda aos apelos razoá-
vida, quando era garoto mimado e egocên-
trico e cioso das vantagens de sua classe
social – Bento Santiago mais e melhor fala
3 “Sem demora [Bento Santiago] aparenta ser um do que escuta. Com o passar dos anos, não
homem sutil e, além de tudo, um advogado, cujas
lhe bastou vingar-se de esposa e filho; ele
palavras convém ao leitor pesar cuidadosamente”
(Caldwell, 2002, p. 20). sentiu necessidade de escrever uma nar-

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rativa autocentrada, em que a perspectiva Claro está que não se trata de narrativa
alheia quase não contava. Nesse sentido, isenta. Quem se daria ao trabalho de re-
haveria uma duplicação do Eu, que ganha contar décadas de uma existência conser-
forma à medida que o narrador/promotor/ vadora, pequena e solitária, se não fosse
advogado enuncia a sua versão dos episó- para criar (ou mudar) a imagem produzida
dios que vivenciou. por outrem?
Lembre-se do episódio que abre o seu
diário, em que ele diminui a importância do FALA CONTRA ESCUTA
“poeta do trem”, chama seus versos de “não
inteiramente maus” e concede ao jovem, Não seria difícil estender essas obser-
que só “conhecia de vista e de chapéu”, o vações em torno da ficção à realidade que
título dado ao romance. Repare-se na des- nos cerca e, por vezes, coíbe. A fala narcí-
crição cega que faz de sua mãe, no capítulo sica está na intervenção de um aluno que
que leva seu nome (D. Glória), ao ver ne- julga colaborar com a aula, acrescentando
la uma “boa criatura”, apesar dos hábitos dados ou corrigindo informações, mediante
escravocratas e da postura autoritária com consulta prévia (ou imediata) a provedores
que criara o filho e tratava a parentada em de busca, na internet. Por vezes, isso acon-
nome de Deus, da moral e dos bons modos. tece porque a sala de aula é confundida
Note-se a acusação, sem provas nem direito com fórum para a superação do indivíduo,
à escuta, de sua esposa – embora dissesse esteja ele no papel de professor ou aluno.
amá-la desde a infância. Em termos de ar- Aceita essa hipótese, poder-se-ia recorrer a
rogância e de autorreferência, ele está bem Jacques Lacan (2005, p. 27), que examinava
próximo do defunto-autor Brás Cubas, ou
de Cristiano Palha – o especulador maior “[...] o que se estabelece quando o neuró-
e dissimulado de Quincas Borba. tico chega à experiência analítica. É que
Advirta-se que os pequenos e grandes ele também começa a dizer coisas. Ele diz
lances da vida de Bento resultam de uma coisas, e nessas coisas que ele diz não há
seleção ativada pelos afetos e pela memória muito com que se espantar se, no come-
(ambos capazes de enganar). Quer dizer, a ço, não são outra coisa senão essas falas
distribuição de capítulos, no livro, obedece de pouco peso [...] Contudo, algo é funda-
a uma dispositio, ordenada com o fito de mentalmente diferente, é que ele não vem
persuadir o leitor de que o narrador é hones- ao analista para dizer ninharias e banali-
to e se atém à verdade embutida nos fatos. dades. Desde então envolveu na situação
Até mesmo o aparente esquecimento de algo que não é nada, já que, em suma, é
mencionar determinados episódios (inter- seu próprio sentido que ele vem mais ou
calados na sequência) colabora na persua- menos procurar”.
são do leitor: tais lapsos sugerem estarmos
diante de um narrador que se assume como A fala narcísica reside na suposição,
ser falível, a justificar a sua incapacidade por parte de parceiros de ofício, além de
em preencher as lacunas de sua existência orientandos e estudantes, de que o tempo
casmurra, solitária e saudosista. de que dispõem coincide com os momentos

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textos / Homenagem

de ócio de seu colega, orientador ou pro- domínio psíquico sobre esse montante de li-
fessor – disponível dia e noite para as suas bido, ou seja, à introversão para as fantasias
dúvidas pontuais e agruras existenciais, sob encontrada nas neuroses de transferência”.
pena de parecer frio, distante e insensível.
Ela também se manifesta quando amigos Finalmente, ela pode estar nas ruas. Pa-
sobrevalorizam o que têm a expor, mas são rece ser o caso quando, em meio às gentes
incapazes de escutar o que o ouvinte teria numa galeria comercial repleta de pesso-
de importante a lhes comunicar. Ela está as, no bairro da Liberdade, em São Paulo,
na costumeira autorreferenciação, traduzida acontece um diálogo como o que segue:
pelo emprego recorrente de “minha tese”,
“meu artigo”, “minha aula”, “meu ponto “– Biluuuu! Biluuuu! [aos gritos]
de vista”, “minha ideia”, etc. Recorramos – O que é isso?! [assustado]
a Lacan (2008, p. 40), para atribuir maior – Isso é o meu estado de felicidade, que
consistência: incomoda muita gente [dito ruidosamente]”4.

“A relação narcísica com o semelhante é Infelizmente, este interlocutor não teve


a experiência fundamental do desenvolvi- oportunidade de responder à criatura, que
mento imaginário do ser humano. Enquanto talvez padecesse de um excesso de felici-
experiência do eu, tem uma função deci- dade. Não fosse esse o caso, e porventura
siva na constituição do sujeito. O que é o ter-lhe-ia dito que ela estava a confundir
eu, senão uma coisa que o sujeito primei- um sintoma de histeria (relacionado à sen-
ro experimenta como estranha no interior sação de plenitude comerciária, ou mero
dele mesmo? É primeiro num outro, mais cabotinismo consumista) com alegria, por
avançado, mais perfeito que ele, que o su- definição, passageira.
jeito se vê. Vê, em particular, sua própria Essa percepção não é nem se pretende
imagem no espelho [...]”. original. Aliás, poderia ser parcialmente
irmanada ao que disse Byung-Chul Han
A fala narcísica está nas mensagens ele- (2017, p. 9): “Estamos constantemente com-
trônicas enviadas por e-mail ou através de parando tudo com tudo, e com isso nive-
aplicativos para celular, em que, atendido lamos tudo ao igual, porque perdemos de
o interesse, ou fornecido o material dese- vista justamente a experiência de atopia
jado pelo solicitante, este não se recorda, do outro. A negatividade do outro atópico
sequer, de retribuir o gesto. Está no ques- se retrai frente ao consumismo”.
tionamento, quase sempre por achismo, da A essa altura, seria o caso de perguntar:
nota atribuída (e não obtida), da frequência “Qual a vantagem do Eu em falar demasia-
inventada (e não calculada). Para Sigmund damente sobre si, sem escutar nem a objeção,
Freud (2017, p. 30): nem o elogio do outro?”. Nonada. Talvez seja

“[...] a libido liberada pelo fracasso não


fica em objetos na fantasia, mas retorna ao
4 Testemunhado por este autor em 14 de setembro de
Eu; a megalomania corresponde, então, ao 2019.

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o caso de consultarmos atentamente Hints séculos de persistência, em que o escritor
towards an essay on conversation, de Jo- irlandês detectava sinais de loucura em de-
nathan Swift5 – capítulo precioso, com dois terminadas situações de fala. Ponto final.

Bibliografia

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Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2019, pp. 189-273.
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HORÁCIO. Odes e Epodos. Trad. Bento Prado de Almeida Ferraz. São Paulo, Martins
Fontes, 2003.

5 “For instance, nothing is more generally exploded than s/p) [“Por exemplo, em geral nada é mais disruptivo
the folly of talking too much; yet I rarely remember to que a loucura falando em demasia; contudo lembro-
have seen five people together where someone among -me de raramente haver cinco pessoas juntas, em que
them hath not been predominant in that kind, to the uma delas não tivesse predominância desse tipo, para
great constraint and disgust of all the rest” (Swift, 2014, grande constrangimento e desgosto de todo o resto”].

Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 69-78 • janeiro/fevereiro/março 2020 77


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Rio de Janeiro, Zahar, 2008.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Dom Casmurro. 2ª ed. Apresentação de Paulo
Franchetti; notas e comentários de Leila Guenther. Cotia, Ateliê, 2014.
OLIVEIRA, Manuel Botelho de. “Madrigal I”, in Música do Parnaso. Organização e estudo
crítico de Ivan Teixeira. Cotia, Ateliê, 2005, p. 11.
OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. Domingos Lucas Dias. São Paulo, Ed. 34, 2019.
PÉCORA, Alcir. “Variações para conversas entre espécies de salão”, in André Morellet
et al. A arte de conversar. Organização, seleção e prefácio de Alcir Pécora. São Paulo,
Martins Fontes, 2001, pp. VII-XX.
PETRARCA, Francesco. “Soneto 12”, in Cancioneiro. Trad. José Clemente Pozenato. Cotia/
Campinas, Ateliê/Editora Unicamp, 2014, p. 51.
SWIFT, Jonathan. Hints towards an essay on conversation. Adelaide, The University of
Adelaide, 2014. Disponível em: https://ebooks.adelaide.edu.au/s/swift/jonathan/s97h.
Acesso em: 15/9/2019.

78 Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 69-78 • janeiro/fevereiro/março 2020


Fontes do messianismo
milenarista brasileiro

O
Antônio Maspoli de Araújo Gomes

ESTUDOS SOBRE O MESSIANISMO


MILENARISTA NO BRASIL

fenômeno religioso messiânico-milenarista


vem sendo pesquisado no Brasil desde me-
ados do século XIX. Inicialmente explicado
a partir de interpretações biopsicológicas e
ambientalistas com Nina Rodrigues (2006),
Euclides da Cunha (1966), Josué de Castro
(1965, s/d), dentre outros, posteriormente pas-
sou a ser interpretado a partir de variáveis

Pesquisa realizada sob a orientação do prof. dr. João Bap-


tista Borges Pereira no Programa de Pós-Doutorado em
Antropologia da Religião da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, com bolsa do Mackpesquisa.

ANTÔNIO MASPOLI DE ARAÚJO GOMES é


professor do Programa de Ciências da Religião
da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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textos / Homenagem

sociológicas, em uma concepção do mate- messianismos e milenarismos brasileiros”.


rialismo dialético, mormente com Rui Facó Walnice Nogueira Galvão (2009) revisitou
(1976), na obra Cangaceiros e fanáticos, e o messianismo euclidiano no texto “Eucli-
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976), que des da Cunha, precursor”. Antonio Máspoli
elaborou uma tipologia desses movimentos. de Araújo Gomes (2009) contribui para a
Importante também tem sido a contribuição compreensão do conflito religioso do Cal-
de Renato Queiroz (1995) para compreen- deirão de Santa Cruz do Deserto com o
der o fenômeno milenarista contemporâneo, relato de uma pesquisa de campo sobre o
como, por exemplo, o fenômeno de Catulé. tema. Cristina Pompa (2009) lançou novas
Diversos autores escreveram sobre os mes- luzes sobre o Pau de Colher. Celso Vian-
sianismos. Aqui citaremos apenas alguns. na Bezerra de Menezes (2009) esclareceu
José Lins do Rego (1939) e Rubim Santos novos aspectos sobre a religião de Con-
Leão de Aquino (2006), dentre outros, con- testado, no artigo “Rituais de devoção: os
taram a história de Pedra Bonita; Douglas herdeiros do milenarismo de Contestado”.
Teixeira Monteiro (1974) e Paulo Pinheiro Renato da Silva Queiroz (2009) faz novas
Machado (2006) estudaram o Contestado; incursões sobre o messianismo de Catulé
Euclides da Cunha (1966) descreveu Canu- no texto “O demônio e o messias: notas
dos; Lopes (1991) pesquisou o Caldeirão; sobre o surto sociorreligioso do Catulé”.
Monteiro (1977) estudou Juazeiro do Norte; Heloísa Mara Luchesi Módulo (2009) faz
Renato Silva Queiroz (1995) pesquisou o Ca- uma leitura psicológica dos Muckers. Julio
tulé; Eleonora Zicari Costa de Brito (2006) Cezar Melatti (2009) apresenta uma pes-
escreveu Santa Dica, a santa ressuscitada quisa sobre o messianismo entre os craôs
de Goiás; e Cláudia Mentz Martins (2006) do norte de Goiás.
escreveu Os Muckers, os fiéis armados de Esses movimentos messiânico-milenaris-
Jacobina. Mais recentemente, foi publicada tas foram pesquisados a partir das variáveis
a obra Os Aves de Jesus em Juazeiro do histórico-sociais sem, contudo, considerar a
Norte (Carneiro & Martins, 2006). importância da religião, dos símbolos, mitos
O messianismo milenarista brasileiro e ritos, para a consecução da construção
foi revisitado recentemente por outros au- do imaginário dessas comunidades em tais
tores em um importante dossiê publicado eventos. Maria Isaura Pereira de Queiroz
nesta Revista USP. Rodrigo Franklin de (1976) destaca-se no Brasil pelas pesquisas
Sousa (2009) escreveu sobre “O desenvol- no campo do fenômeno do messianismo. A
vimento histórico do messianismo judai- autora, contudo, deixa claro na introdução
co antigo: diversidade e coerência”. Már- da sua obra que a esfera do seu trabalho
cio Honório de Godoy (2009) demonstrou será o conflito social como base para os
novas nuances do sebastianismo no texto movimentos messiânicos milenaristas. Para
“O desejado e o encoberto: potências de ela, o conflito social é entendido como o
movimento de um mito andarilho”. Lísias choque entre o latifúndio e as populações
Nogueira Negrão (2009) contribui para a sem terra, marginalizadas e empobrecidas.
reinvenção dos messianismos e milenaris- O sagrado apontado como um dos fatores
mos brasileiros com seu ensaio “Sobre os preexistentes para a ocorrência desse fe-

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nômeno não é considerado. Essa pesquisa, no imaginário religioso de quase todos os
portanto, busca analisar as contribuições povos. Nos povos ocidentais, cujas raízes
da religião para a construção daquilo que mergulham nas próprias origens do pensa-
se convencionou chamar de o messianismo mento judaico-cristão, a esperança messiânica
milenarista brasileiro. concretiza-se na espera de entes messiâni-
Fenômenos como Canudos, Contestado, cos, um messias, na vivência de um tempo
Pedra Bonita e Caldeirão foram pesquisados messiânico, o kairós do messias (no tempo
sob diversos aspectos: político, militar, social, messiânico) e na delimitação de um espaço
econômico, etc. No entanto, esses fatos ainda messiânico, a terra prometida.
não foram considerados sob a perspectiva da
variável religiosa. A questão religiosa quase “Os mestres da suspeita – Marx e Nietzs-
sempre foi deixada de lado nas pesquisas, che particularmente – esforçaram-se para
como algo de somenos importância, seja pela desmascarar as ciladas da alienação. Será
falta de espaço na academia para pesqui- a esperança – como a religião – a atitude
sas dessa natureza, seja pela exiguidade de do homem que ainda não se encontrou ou
pesquisadores interessados nesse tema. “O então já se perdeu novamente?” (Desroche,
único ponto talvez que comportaria ainda 1985, p. 40.)
desenvolvimento seria o aspecto religioso
do messianismo (que a autora não abordou, FONTES LUSITANAS DO MESSIANISMO
pois preferiu se colocar na perspectiva socio-
lógica que o trabalho apresenta)” (Bastide,
E MILENARISMO BRASILEIRO
1976, p. XX).
A análise desses fenômenos, sob a pers- A religião de Israel é uma religião mes-
pectiva da religião, pode contribuir para com- siânica. O Antigo Testamento transborda de
preender importantes movimentos sociais esperança messiânica. A esperança messiâ-
ocorridos no Brasil em meados do século nica aponta para o horizonte escatológico do
XIX e na primeira metade do século XX, reino messiânico de Deus, o reino escatoló-
como, por exemplo, a relação entre o êxodo gico do shalom, no qual reinará o Príncipe
rural e o novo messianismo. da Paz. Esse reino deveria ser decorrência
natural de um mundo ordenado por Deus,
“O imaginário religioso pregresso, sua exa- em uma terra prometida, cujo resultado é
cerbação ou superação por uma nova reve- a prática da justiça entre os homens. Nesse
lação profética, está sempre presente, inter- reino, as promessas escatológicas deveriam
pretando a realidade, postulando objetivos e se transformar em esperança criativa visto
indicando os meios pelos quais estes serão que somos mais que intérpretes do futuro;
alcançados” (Negrão, 2009, p. 34). somos colaboradores com Deus na criação do
futuro (Van Groningen, 2003, pp. 497-591).
A esperança messiânica, a espera de um Essa afirmação encontra seu fundamento na
messias, a ânsia por uma terra prometida, profecia messiânica de Isaías: “Porque um
por um paraíso perdido, é uma matriz mí- menino nos nasceu, um filho se nos deu; e o
tica de conteúdo arquetípico que aparece governo estará sobre os seus ombros; e o seu

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nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Walnice Nogueira Galvão (2009, p. 52)
Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz” (Isaías aponta para a existência desses elementos
9:1-6). Os profetas não previram objetiva- do messianismo bíblico na obra Os sertões,
mente a vinda de Jesus. Eles anunciaram de Euclides da Cunha. Diz ela:
genericamente a vinda de um rei justo e
bom, um messias, da descendência de Da- “Isso se efetiva através da mimese do grande
vi. Já os autores e os intérpretes do Novo sintagma narrativo da Bíblia, por meio do
Testamento viram em Jesus a realização da qual é traçado o arco que vai da criação do
esperança messiânica. Essa interpretação é arraial de Canudos, o Gênese bíblico, até
negada pelo judaísmo e seguida pelo cris- seu aniquilamento pelo ‘fogo’, o Apocalipse,
tianismo em todas as suas vertentes. em conjunção com as profecias das sagradas
O Príncipe da Paz é a garantia do sha- escrituras”.
lom. O shalom é o resgate da ordem justa
do mundo criado por Deus. Na linguagem A hermenêutica sertaneja, fincada em
bíblica, essa nova ordem é conhecida também pressupostos do catolicismo popular e das
como Reino de Deus – o sonho do mundo crendices próprias do sertão, faz uma in-
bom, recuperado. O shalom é o conteúdo terpretação particular do sentido bíblico do
do reino messiânico, pois é ele, o Príncipe messias e dos termos messiânicos.
da Paz, quem estabelece o shalom. O sha-
lom está totalmente relacionado à justiça; “O Rio da Água da Vida que corre no Pa-
isto é, para alcançar o shalom é necessário raíso não é mais que o rio seco que passa
praticar a justiça. Nos dicionários de língua por Canudos, o Vaza-Barris. A Árvore da
portuguesa, a justiça aparece sempre muito Vida se transforma na árvore da morte. E
restrita à esfera do direito legal e com forte assim sucessivamente. Essa era a visão dos
ênfase nos direitos individuais. Percebe-se canudenses, que Euclides soube captar, in-
uma forte influência da concepção romana formar literariamente e expressar” (Galvão,
de justiça com base nas leis e na filosofia 2009, p. 53).
grega, que enfatizam os direitos do cidadão
(Van Groningen, 2003, pp. 497-591). Rodrigo Outro mito importante na construção do
Franklin de Sousa (2009, p. 10) oferece as messianismo brasileiro é aquele da crença
bases para uma exegese bíblica desse termo: indígena da Terra sem Males. O messianis-
mo indígena brasileiro autóctone ou fruto
“O termo ‘messias’ deriva do grego ‘mes- do choque com o cristianismo é por demais
sias’, que por sua vez deriva do aramaico conhecido. Esse messianismo mais antigo
‘mashiha’ e do hebraico ‘mashiach’ (‘ungi- se expressa pelo mito da Terra sem Males
do’). O termo grego aparece no Evangelho e mais recentemente pelo profetismo (Lan-
de João 1:42; 4:25 de forma a indicar que, ternari, 1974, pp. 187-9; Melatti, 2009). Os
no período da escrita do Novo Testamento, índios, pressionados pelo avanço da coloni-
já se inseria no contexto de um discurso com zação europeia, especialmente a população
o qual pelo menos uma parcela da popula- guarani que permaneceu fora das reduções
ção judaica já se encontrava familiarizada”. e do âmbito de ação de encomendeiros e

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bandeirantes, foram sendo paulatinamente Brasil, em meados do século XIX e primeira
empurrados para as matas adjacentes ao Rio metade do século XX, remonta suas origens
Paraná. Outros se deslocaram em direção às pregações em Influência de Joaquim de
ao centro do país e do litoral atlântico em Flora em Portugal e na Europa (Franco &
busca da Terra sem Males. Mourão, 2005). Joaquim de Flora (1130/35-
1202), teólogo contemplativo da Ordem de
“Segundo notícias dadas por Curt Nimuen- Cluny, foi um dos mais influentes espíritos
dajú, a migração dos tupis para o oriente do século que marcou o nascimento da figura
devia-se ao objetivo que eles perseguiam de do intelectual e das universidades. A origi-
encontrar uma terra sem males, pela qual os nalidade dos seus escritos deve-se, sobretudo,
nativos teriam abandonado as regiões ori- à preeminência que dá, no livro Concórdia
ginárias do interior antes da chegada dos nova, ao Espírito Santo, relativamente ao
portugueses” (Lanternari, 1974, p. 190). Pai (Idade dos Anciãos) e a Jesus Cristo
(Idade dos Jovens). As duas primeiras idades
A Terra sem Males, a versão indígena do correspondiam aos tempos primordiais da
Paraíso Perdido, era um lugar destinado ao humanidade e à era de Cristo. Esse ponto
herói fundador da tribo, ao pagé, ao xamã, ao de vista transgredia a concepção comumente
guerreiro e ao homem simples que havia bem aceita de que o Gênesis bíblico correspondia
servido ao seu povo. Um lugar de fartura, a um Paraíso terrestre em que o homem e a
de abundância, de paz. Aquele lugar onde mulher (Adão e Eva) tinham sido perfeitos
o sofrimento encontra o seu fim e a felici- e, por isso, felizes, até a queda pecaminosa
dade toma conta. Lá os inimigos fugirão, a que os fizera perder a pureza que era pró-
velhice será transformada em juventude e a pria da sua grande espiritualidade (Franco
morte dará lugar à vida (Lanternari, 1974, & Mourão, 2005).
p. 191). O paralelo da Terra sem Males com Joaquim de Flora assim acreditava que
a narrativa do Apocalipse é perfeito. o Antigo Testamento subsistia no Novo
Testamento especialmente quanto à lite-
“E ali não haverá mais noite, e não neces- ratura apocalíptica. Ele acreditava que o
sitarão de luz de lâmpada nem de luz do Novo Testamento já subsistia em germe no
sol, porque o Senhor Deus os alumiará; e Velho Testamento e que esse existia como
reinarão pelos séculos dos séculos. E disse- fruto no Novo Testamento. Seu pensamento
-me: Estas palavras são fiéis e verdadeiras; interpretava de forma alegórica o Apoca-
e o Senhor, o Deus dos espíritos dos pro- lipse de João; suas profecias propalavam
fetas, enviou o seu anjo, para mostrar aos a abertura do Sétimo Selo desse livro, o
seus servos as coisas que em breve hão de que se concretizava na manifestação visível
acontecer” (Apocalipse 22:1- 6). do reino de Deus (Apocalipse 7:1; 9:21).
A chave para a interpretação do Livro do
Além do mito da Terra sem Males temos Apocalipse lhe fora concedida por meio
a influência de Joaquim de Flora na constru- de uma visão celestial (Franco & Mourão,
ção do messianismo milenarista brasileiro. O 2005, p. 16; Löwith, 1991, pp. 140-50). “A
surto messiânico milenarista que eclodiu no partir dessa concepção exegética Joaquim

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de Flora constrói uma teologia da história “A história da salvação inserida na história


e formula a utopia da Idade do Espírito da humanidade confere ao Homem um sen-
Santo, além de reconstituir a crítica socio- tido completo: eis a grande contribuição de
eclesial que esta figura sofreu” (Baltazar, Joaquim de Flora. Também os movimentos
2006, pp. 1-3). religiosos reformistas modernos ou os teori-
No entanto, a influência mais importante zadores das utopias universalistas descendem
de Joaquim de Flora na cultura portugue- do abade calabrês” (Baltazar, 2006, pp. 1-3).
sa será na criação e estabelecimento das
Festas do Divino, precursoras do estabe- No Brasil, o pensamento de Joaquim de
lecimento do Império do Divino, império Flora deu origem à Folia do Divino, um
este baseado nas idades escatológicas do conjunto de festas dedicadas ao Império do
mundo que, no joaquinismo, é a base para Divino Espírito Santo. Essas festas e baila-
a construção do pensamento escatológico dos foram transplantados de Portugal para o
milenarista dispensacionalista que tomou Brasil e aqui ganharam a simpatia e adesão
conta do protestantismo fundamentalista das populações mais pobres e marginaliza-
norte-americano e de seus descendentes das. O Império do Divino seria para essas
no mundo moderno. populações a manifestação visível do reino
de Deus na terra (Saint-Hilaire apud Cas-
“Em síntese, podemos dizer que a doutri- cudo, 1927, pp. 83-4).
na joaquimita condensa em seu interior Joaquim de Flora foi seguido por Gon-
muitos aspectos básicos da reflexão esca- çalo Annes, o Bandarra, (Magalhães, 2004).
tológica judaico-cristã, em especial no que Bandarra nasceu em torno de 1500 na ci-
se refere aos períodos e cifras nos quais se dade de Trancoso. Desenvolve a profissão
pode dividir a história” (Dobroruka, 2009). de lambedor de sola, como era conhecido o
sapateiro. É um trovador nato. Compõe trovas
A importância da sucessão dessas idades é messiânico-milenaristas, nas quais apresenta
que, de uma era à outra, a visão da Trindade o rei de Portugal como o messias, o Desejado
ia se esclarecendo. Daí a imagem famosa de Todas as Nações. A Igreja o persegue,
de suas três idades do mundo representadas o acusa de heresia em 1541. É julgado pelo
analogamente às horas do dia: a primeira, Tribunal do Santo Ofício e condenado a uma
identificada com o Antigo Testamento e a lei pena leve. Retorna a Trancoso, onde vem a
mosaica, sob a luz das estrelas; a segunda, falecer em 1556.
análoga ao Novo Testamento e encarnada Em 1603, as “trovas do Bandarra”, co-
pela Igreja de Roma, como a aurora; e a mo ficaram conhecidos seus escritos, são
vindoura, que seria definida por uma nova impressas pela primeira vez, em Paris, por
“Igreja espiritual”, como sendo o dia claro. obra de D. João de Castro (com o título
As três idades do mundo estão ainda iden- pomposo de Paráfrase e concordância de
tificadas com as três pessoas da Trindade, algumas profecias de Bandarra, sapateiro de
sendo a primeira do Pai, a segunda do Filho Trancoso). Em 1644 as trovas são publicadas
e a terceira do Espírito Santo (Dobroruka, pela segunda vez, em Nantes. Em 1809, são
2009, pp. 14-6). reeditadas em Barcelona, por ocasião das

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invasões francesas. As trovas de Bandarra no espírito popular, com a diluição moura,
não só atualizaram as profecias de Joaquim manteria a feição fatalista, astrológica, per-
de Flora como lançaram as bases para o cebida nos lampejos proféticos, vizinhança
sebastianismo (Magalhães, 2004). Hermann de Deus, onde tudo era milagre” (Cascudo,
(1996, p. 12) vincula as trovas de Bandarra 2002, p. 459).
às origens do sebastianismo:
Essa tradição parece ter sido dissemina-
“Assim como os demais autores citados, da pelo sertão, seja pelos cantadores, por
Hermann trata as trovas como elemento de intermédio dos pregadores, por meio dos
explicação do sebastianismo, seguindo os profetas, seja pelas ladainhas dos beatos e
passos dados até então, ao tratar as reapro- santos, que até hoje povoam o imaginário
priações e releituras das trovas de Bandarra sertanejo conforme documentado por Luís
e sua importância para a constituição do da Câmara Cascudo (2004, pp. 527-56).
messianismo sebástico” (Magalhães, 2004,
pp. 15-6). “Bandarra aliou-se, desta forma, a uma tra-
dição apocalíptica messiânica, presente no
O catolicismo popular português tem suas reino desde pelo menos a Lenda de Ourique,
peculiaridades. Se, por um lado, é marcado que perpassou autores como Fernão Lopes,
por um afastamento de Roma, por outro, é Gil Vicente, Luís de Camões e Antônio Viei-
marcado pela crença na iluminação direta. ra, chegando até Fernando Pessoa. É por
Deus fala diretamente com o seu povo sem esse motivo que encontramos referências, nas
a mediação da Igreja e sem a necessidade Trovas, a elementos do Antigo Testamento,
da revelação especial, a Bíblia Sagrada. em especial aos profetas Isaías, Jeremias e
Essa iluminação direta é a responsável pe- Daniel, além de Esdras, presente apenas nas
lo surto de profetismo que tomou conta de versões em vulgar da Bíblia” (Magalhães,
Portugal com as profecias de Joaquim de 2004, p. 319).
Flora e Gonçalo Annes, o Bandarra, que
se encontram na gênese do sebastianismo O sebastianismo foi um movimento mís-
(Leonard, 1973). No Brasil, esse profetis- tico-secular que ocorreu em Portugal, na
mo disseminou-se pelo sertão e fecundou segunda metade do século XVI, como con-
a alma sertaneja. sequência da morte do rei D. Sebastião na
batalha de Alcácer-Quibir, em 1578 (Valen-
“O Brasil povoou-se no século XVI, plantio si, 1994). Em 4 de agosto daquele ano, na
das sementes humanas, seiva das primeiras famosa batalha de Alcácer-Quibir, Portugal
raízes genealógicas. É o século de Bandarra, perdera seu rei de apenas 24 anos de ida-
de D. Sebastião, nova floresta das profecias de, Dom Sebastião, morto sem deixar her-
que haviam moldurado a eclosão do Mestre deiros, na maior catástrofe militar de sua
de Avis, início da eclíptica messiânica dos história colonial. Por falta de herdeiros, o
reis assinalados pelo Destino, desde Cruz de trono português terminou nas mãos do rei
Ourique. Tempo do Povo de Gil Vicente e espanhol Felipe II. Apesar de o corpo do
dos heróis de Luís de Camões. A religião rei Dom Sebastião ter sido removido para

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Belém, o povo nunca aceitou o fato, divul- Cristão, liderado pelo rei de Portugal, que
gando a lenda de que o rei encontrava-se converteria todos os povos do mundo e en-
ainda vivo, em missão celestial, preparan- caminharia a humanidade para um perío-
do umas miríades de anjos, num poderoso do de paz, antecessor do Juízo Final. Estes
exército, esperando apenas o momento certo elementos, apresentados tanto pelas Trovas
para volver ao trono e afastar o domínio quanto pela literatura do período, fizeram de
estrangeiro (Godoy, 2009). Bandarra profeta do sebastianismo e da Res-
Esse mito foi construído a partir das ne- tauração Portuguesa, atendendo às expectati-
cessidades da alma portuguesa de forjar seus vas de cristãos-novos e velhos, à medida que
heróis e da necessidade de autoafirmação de compartilhava a tradição profética lusitana
Portugal frente ao reino de Castela. O rei marcada por influências ibéricas, joaquimi-
desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir tas, judaicas e pelo chamado messianismo
vai ganhando novos contornos e assume uma português” (Magalhães, 2004, p. 319).
personalidade mítica no imaginário portu-
guês: Dom Sebastião estava predestinado a Em 1603, o nobre português Dom João
salvar Portugal de todos os seus males. de Castro, que lutava pela soberania do reino
de Portugal, comenta, imprime e publica as
“Apesar de ter sua imagem envolvida em trovas de Bandarra tornando, assim, públicas
casos embebidos em ações fraudulentas, Dom as crenças do profeta, poeta e sapateiro que
Sebastião ganhava maior potência no ima- acreditava na volta de Dom Sebastião como o
ginário português: cada vez mais era tido monarca prometido de Portugal, que voltaria
como um rei desaparecido capaz de retornar como o Desejado de Todas as Nações. Numa
a qualquer momento para trazer a salvação referência ao cumprimento da profecia bíblica
de Portugal” (Godoy, 2009, p. 24). de Ageu 2:7 – “E farei tremer todas as na-
ções, e virá o Desejado de todas as nações,
O maior divulgador dessa lenda foi o e encherei esta casa de glória, diz o Senhor
poeta popular Bandarra (Magalhães, 2004), dos Exércitos” –, Dom João de Castro foi en-
que produziu incansáveis versos clamando contrar, no discurso profético de Bandarra, a
pelo retorno do Desejado (Hermann, 1996). leitura que preenchia expectativas e crenças
Explorando as crendices populares, vários suas e do povo. A partir de sua interpretação,
oportunistas se apresentavam como o rei surge, enfim, um sebastianismo que ressalta
oculto na tentativa de obter benefícios pes- contornos milenaristas, utópicos e escatoló-
soais. O sebastianismo tornou-se uma febre, gicos, transformando este texto na bíblia do
até Fernando Pessoa adotou essa crença. O sebastianismo, como bem observou João Lúcio
maior intelectual católico a aderir a esse de Azevedo em seu conhecido livro A evolu-
movimento foi o padre Antônio Vieira. ção do sebastianismo (Godoy, 2009, p. 240).
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1977, pp.
“O discurso de Bandarra adquiriu caracterís- 217-8) e Marcio Honório de Godoy (2009,
ticas milenaristas à medida que apresentava p. 27) afirmam que as trovas de Bandarra
elementos que favoreceriam a leitura em fa- foram divulgadas no Brasil. Registram esses
vor da constituição de um Quinto Império autores que em 1591 Gregório Nunes foi

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denunciado pelo Tribunal do Santo Oficio de 1694, na História do futuro, de 1718,
na Bahia por esperar a vinda do messias e na Defesa perante o Tribunal do Santo
prefigurado na pessoa do rei Dom Sebastião. Oficio. Vieira busca fundamentos bíblicos e
Essas crenças influenciaram profundamente teológicos para uma escatologia portuguesa.
os movimentos messiânico-milenaristas brasi- Em seus sermões proféticos, o império por-
leiros como Canudos, Contestado, Caldeirão tuguês é o reino escolhido por Deus para
e Pau de Colher (Queiroz, 1976; Galvão, a manifestação do reino messiânico e o rei
2009; Gomes, 2009; Menezes, 2009). So- de Portugal, o messias escolhido.
bre a influência de Bandarra em Canudos,
Euclides da Cunha escreveu: “Os Sermões de Xavier dormindo foram
frutos de uma reflexão mais consistente
“Esta justaposição histórica calca-se sobre sobre o Quinto Império e também sobre a
três séculos. Mas é exata, completa, sem própria produção de Vieira, que compilava
dobras. Imóvel o tempo sobre a rústica so- os seus escritos um tanto à margem dos
ciedade sertaneja, despeada do movimento acontecimentos metropolitanos. Ao contrário
geral da evolução humana, ela respira ainda do Sermão do esposo, restringido à coroa
na mesma atmosfera moral dos iluminados portuguesa pelo passo restauracionista, po-
que encalçavam doidos, o Miguelinho ou demos ver nos sermões sobre o ‘Apóstolo
Bandarra. Nem lhe falta para completar o do Oriente’, espelho de um projeto profético
símile, o misticismo político do sebastianis- bem delineado de alcance universal católico,
mo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, liderado pela nação portuguesa, encabeçado
hoje, de modo singularmente impressionador, pelo monarca, não mais necessariamente, D.
nos sertões do norte” (Cunha, 1979, p. 109). João IV. Mais que isso, um futuro que de-
penderia da Companhia de Jesus, por meio
Joaquim de Flora, por meio dos versos de sua ação missionária e evangelizadora,
de Bandarra, influenciou o padre Antônio reafirmando que esse Quinto Império, apesar
Vieira, especialmente em sua defesa peran- de possuir dupla coroa temporal e espiritu-
te o Tribunal do Santo Oficio. Essa defesa al, era o Reino de Cristo na Terra” (Lima,
encontra-se publicada em dois volumes pela 2004, pp. 104-5).
Universidade Federal da Bahia. Vieira in-
fluenciou, com seu pensamento, a construção Em 1662, Vieira fora expulso do Mara-
do sonho messiânico brasileiro, como será nhão sob a acusação de proteger os índios.
demonstrado mais adiante. Foi desterrado para o Porto. O escrito, contu-
do, que lhe instaurou o processo inquisitorial,
O SEBASTIANISMO DO é a carta à rainha viúva D. Luisa, enviada
por intermédio do professor dela, seu irmão
PADRE ANTÔNIO VIEIRA em religião, padre André Fernandes, bispo do
Japão. Vieira, já no Sermão de São Roque,
O sebastianismo do padre Antônio Vieira prometera a D. João IV o cetro do Quinto
aparece de modo claro nos Sermões de Xa- Império; pregando em Salvaterra em 1654,
vier dormindo e Xavier acordado, datados quando o rei já se encontrava adoecido de

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cuja cura todos esperavam! Cometera Vieira a sua Representação dos motivos que tive
a imprudência de prometer no púlpito as para me parecerem prováveis de que se tra-
consolações dadas à rainha – que o real en- ta, dividida em duas partes (Cidade, 1957,
fermo não morreria, enquanto não cumprisse p. 3; Vieira, 1957).
as profecias de Bandarra que o credenciavam
para a grande missão de, pela vitória sobre “Na presente representação procura Vieira
os turcos, resgatar os lugares santos e fundar fundamentar em promessas divinas a espe-
no mundo secular a Monarquia Universal rança em que comunga, de que tal restitui-
de Cristo. Em novembro de 1656, morre, ção se efectuará. Era esta a última das nove
porém, o rei sem ver cumpridas as profecias proposições que, enviadas ao Santo Ofício de
de Vieira. Diante do inesperado, Vieira logo Roma para que as qualificasse, vieram de lá
declara que o rei haveria de ressurgir dos todas reprovadas. A 1.ª, que afirma a futura
mortos. Suas afirmações estão estribadas nas existência do Quinto Império – estranha ao
profecias de Bandarra (Vieira, 1957, p. 212, consenso geral dos Católicos, que tomam tal
§ 335). Pois se Bandarra havia acertado em império como do Anticristo” (Cidade, 1957,
tudo o mais, não haveria de errar nas visões pp. XIX-XXX).
que lhe mostraram D. João IV investido da
divina missão de realizar na Terra as pro- O sebastianismo, por meio da tradição
fecias bíblicas de Isaías e Daniel. Vieira oral e da pregação de padre Antônio Viei-
prega tudo isso em São Luís do Maranhão ra, propagou-se pelo Nordeste brasileiro e
em 1655 e envia para a rainha viúva as su- influenciou as crenças sertanejas sobre o fim
as crenças em 1659 (Cidade, 1957; Vieira, do mundo e os movimentos messiânicos mi-
1957, p. 212, § 335). lenaristas como Canudos, Caldeirão e Pau
Vieira foi mandado a Roma. Em feve- de Colher. “Daí, entrando pelo século XIX
reiro de 1663, por ordem do Conselho Ge- e indo em frente, a figura de Dom Sebas-
ral do Santo Ofício, o Tribunal de Coimbra tião comparecerá em movimentos populares
recebe ordens para interrogar Vieira sobre rebeldes e religiosos do sertão nordestino
o conteúdo da carta profética “A esperan- (Cidade do Paraíso Terreal, PE; Pedra Bonita,
ça de Portugal”. Sofrendo de impaludismo, PE; Canudos, BA)” (Godoy, 2009, p. 30).
tuberculoso, alquebrado em seu corpo, não
em sua fé, Vieira é preso pela Inquisição em O MESSIANISMO SEBASTIANISTA
1665. O processo durou de 1663 a 1667. Na
prisão conta apenas com a sua memória e
NO SERTÃO BRASILEIRO
uma pena para escrever a sua defesa contra
os Autos sobre o papel que nesta cidade de Euclides da Cunha criou um retrato
Lisboa se divulgou no anno de 1160 sobre a sombrio do Conselheiro como personagem
ressurreição d’El Rey dom João 4º tocantes trágico, guiado por forças obscuras, que
ao Pe. Antônio Vieira religº da Companhia o levaram à loucura e ao conflito com a
de Jesus preso no Cárcere do Custódio em Igreja e o governo. Enfatizou o caráter
1.º de outbr.º de 1665. (sic) (Cidade, 1957, sebastianista e messiânico de Canudos,
p. XXIII). Em sua defesa, Vieira apresenta cujos habitantes acreditariam no retorno

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mágico do rei português D. Sebastião, nifestação da parousia do seu messias, uma
desaparecido no século XVI, que volta- beata, paramentada, prostra-se à porta da
ria para derrotar as forças da República igreja e canta uma música em que aparece
e restaurar a monarquia eterna. Baseou claramente o messianismo sebastianista. “O
sua prédica nos poemas populares e nas padre Cícero não morreu, ele está no céu
profecias apocalípticas, encontrados nas juntando uma legião de anjos para salvar
ruínas da cidade, que julgou refletirem a o sofrido povo do sertão nordestino” (Lira
pregação de Conselheiro. Explicou, assim, Neto, 2009). Essa esperança messiânica na
alguns dos aspectos misteriosos da guerra, volta do padre Cícero Romão Batista revive
como a luta quase suicida dos conselhei- na Igreja do Horto até os dias presentâne-
ristas, ou a migração para Canudos em os. Na construção dessa igreja, os romei-
pleno conflito. Sobre as relações entre o ros subiam a ladeira do Horto de joelhos
sebastianismo e as crenças da cidade de e com uma pedra na cabeça. Acreditava-se
Canudos, Euclides da Cunha descreveu: que quando a construção da igreja estives-
se construída, no ato da sua inauguração,
“Relataram-na depois, ingenuamente, os o “Meu Padim Padi Ciço” voltaria do céu
vencidos: Antônio Conselheiro seguira em coberto de glória. Essa crença foi eterniza-
viagem para o céu. Ao ver mortos os seus da na voz de Luiz Gonzaga: “Olha lá, no
principais ajudantes e maior o número de alto do Horto, ele tá vivo, o Padim não está
soldados, resolvera dirigir-se diretamente à morto”. O sebastianismo também serviu de
Providência. O Fantástico embaixador esta- substrato para o messianismo do Contestado
va àquela hora junto de Deus. Deixara tudo (Menezes, 2009, p. 94).
prevenido. Assim é que os soldados, ainda Do século XV ao XVIII, Portugal as-
quando caíssem nas maiores aperturas, não siste ao renascimento da literatura apoca-
podiam sair do lugar em que se achavam. líptica, com a pregação do iminente fim do
Nem mesmo para se irem embora, como das mundo (Oliveira, 1997, pp. 103-11). Nessa
outras vezes. Estavam chumbados às trinchei- pregação, a Missão abreviada assume um
ras. Fazia-se mister que ali permanecessem papel preponderante. Missão abreviada pa-
para a expiação suprema, no próprio local ra despertar os pecadores e sustentar os
dos seus crimes. Porque o profeta volveria fructos das missões, e destinado este livro
em breve, entre milhões de arcanjos des- para fazer oração e instrucções do povo,
cendo – gládios flamívomos coruscando na particularmente povo d’ aldeia é o título de
altura numa revoada olímpica, caindo sobre um livro do padre Manuel José Gonçalves
os sitiantes, fulminando-os e começando o Couto, editado em Portugal em 1859. Foi o
Dia do Juízo” (Cunha, 2002, pp. 711-2). livro mais editado no país durante o sécu-
lo XIX. É superior a 140 mil o número de
Esse sebastianismo de Canudos correu exemplares que atingiu a tiragem das suas
célere pelo sertão. Ainda hoje, em Juazeiro 16 edições, entre 1859 (1ª edição) e 1904
do Norte, quando um visitante chega à Igreja (16ª edição). A Missão abreviada, além de
do Horto, local sagrado onde os romeiros uma tecnologia do misticismo, um manual
do “Meu Padim Padi Ciço” esperam a ma- de culto, é também uma apologia da fé ca-

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textos / Homenagem

tólica e uma exposição rústica da doutrina para a construção de uma escatologia rústi-
das últimas coisas, uma escatologia precária! ca do fim do mundo (Pompa, 2009, p. 73).

“Jesus Cristo (diz o Santo Evangelho), fa- “Um dos moradores do Pau de Colher, José
lando dos sinais que haverão de preceder Senhorinho, adquiriu certo status, devido a
ao grande dia do juízo final, diz: ‘Have- algumas características (as mesmas que, em
rá sinais no sol, na lua, nas estrelas, e na qualquer povoado ou lugarejo da caatinga,
terra opressão das gentes’. São horrorosos definem a posição de uma pessoa); tinha
meus irmãos, os sinais que hão de preceder boas roças de mandioca, feijão e milho, mas,
a segunda vinda de Jesus Cristo. Ele então sobretudo, plantava e comerciava algodão e
há de vir como Juiz rigoroso e o mais ter- mamona, produtos de valor de exportação
rível para castigar os pecadores que agora que, pelos padrões econômicos da região,
lhe negam o seu coração, nem cuidam na conferiam-lhe uma certa segurança financei-
emenda do pecado. Fazei que estes sinais ra. Único da família, Senhorinho sabia ler e
terríveis agora penetrem o vosso coração; gostava de ler a Bíblia, a Missão abreviada
deixai-vos dominar de um verdadeiro e san- e o Caminho recto; era também rezador,
to temor da divina justiça; porque estando conhecia rezas para curar dores e em sua
assim orientados, eu estou bem certo que casa havia festejos” (Pompa, 2009, pp. 72-3).
deixareis todo o pecado, aborrecereis todas
as vaidades do mundo e praticareis todas as O PADRE IBIAPINA
virtudes” (Couto, 1859, pp. 149-50).

Na Missão abreviada, o paraíso é colori- No século XIX, padre Ibiapina foi o


do, o inferno é dantesco. O castigo dos infi- mestre dos sertanejos do Nordeste. Padre
éis é descrito com cores negras do terror da e Mestre eram o seu nome. Quando ainda
Santa Inquisição. Aqueles que não aceitarem não havia caminhos, nem cidades, nem or-
a pregação do padre Couto serão torturados ganização social ou política no interior do
por toda a eternidade no fogo do inferno pelo Nordeste, padre Ibiapi­na foi capaz de trans-
diabo e seus anjos. Os que tiverem melhor mitir uma sabedoria simples, rude, exigente
sorte irão para o purgatório, onde sofrerão e adaptada às necessidades dessa população.
padecimento igualmente terrível. Os que se Em muitos lugares do Nordeste ainda se
converterem gozarão das delícias celestiais. conservam fervorosamente práticas e devo-
A apologética escatológica não deixava es- ções apregoadas há mais de cem anos pelo
colhas para os camponeses: ou o céu, ou o grande missionário (Comblin, 1984).
inferno. Não havia meio-termo. José Antônio Pereira Ibiapina, natural
Depois que esses camponeses escolheram da Vila de Sobral, nasceu em 5 de agosto
o céu, pelo estreito caminho da Missão abre- de 1806, o terceiro filho do casal Teresa
viada, a Igreja deu-lhes as costas. Seja em Maria de Jesus e Francisco Miguel Perei-
Canudos, no Contestado, no Caldeirão, no ra. Sua família se transfere para a vila de
Pau de Colher, a Missão abreviada forneceu Icó e Ibiapina em 1816. Nesse mesmo ano
o substrato religioso por meio da cultura oral matricula-se na escola do professor José Fe-

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lipe. Em 1817, seu pai o envia para a Vila Cearense, de 4/8/1868: “Suas missões foram
do Jardim a fim de estudar latim com o fecundas em resultados benéficos. Conseguiu
latinista Joaquim Teotônio Sobreira de Me- que inimigos se reconciliassem, fez chegar
lo. Sua família finalmente se transfere para ao tribunal da penitência muitas ovelhas que
Fortaleza em 1823. Esse ano marcará a vida viviam desgarradas do rebanho, vários casa-
de Ibiapina, posto que morre sua mãe e in- mentos se fizeram de pessoas que persistiam
gressa no Seminário de Olinda, onde estuda no pecado da incontinência”. Correspondên-
por um período (Comblin, 1984). cia do Crato, publicada em Cearense, em
Após três anos de meditação e reflexão, 1869, comparava o missionário ao Anjo da
Ibiapina decide-se pelo sacerdócio. Nesse Providência na casa de Ló. Não são poucos
sentido, em 12 de julho de 1853, aos 47 anos os milagres do padre Ibiapina narrados por
de idade, ele se torna padre Ibiapina. Logo Montenegro (1959, pp. 16-21).
após sua ordenação, o bispo Dom João da A influência do padre Ibiapina correrá
Purificação o nomeia vigário geral e prove- também na ordenação de beatos e beatas,
dor do Bispado e professor de Eloquência na organização das ordens dos penitentes
do Seminário de Olinda; contudo, opta pela e na manutenção das casas de caridade,
vida missionária. onde esses santos populares iriam viver
A paixão missionária do padre Ibiapina futuramente. Esses beatos e as ordens de
é a compaixão pelos pobres. Padre Ibiapi- penitentes serão a base hierárquica do mes-
na angariava donativos. Dinheiro, cereais, sianismo de Canudos, Caldeirão e Pau de
animais, tijolo e madeira eram oferecidos Colher, dentre outros.
espontaneamente. Tudo para minorar o sofri-
mento dos mais despossuídos. Sua dedicação CONSIDERAÇÕES FINAIS
e consagração pessoal aos pobres atraíram
a simpatia de muita gente que trabalhava
sem remuneração nas obras de caridade. Na Os termos “messias” e “messianismo”
década de 1860, o padre Ibiapina realizava a encontram-se incorporados a diversas lin-
construção de casas de caridade na Paraíba, guagens: jornalística, científica, religiosa e
Rio Grande do Norte e Ceará. Em outubro mesmo coloquial. São termos utilizados na
de 1862, passava por Acaraú, onde granjeava fala da vida cotidiana. Messias é empregado
fama de santo. Em 1865, inaugurava a casa quase sempre para se referir aos eventos
de caridade de Missão Velha. Em 1868 e que têm como base da metáfora a figura de
1869, fundava cemitérios, capelas, igrejas e um personagem carismático e vitorioso. Já
construía açudes em Barbalha e Milagres. messianismo consiste num fenômeno recor-
Nas cidades, vilas e povoados do sertão era rente, complexo e multifacetado cuja origem
sempre recebido debaixo de aclamações e é, sem dúvida, o messias. No judaísmo e
flores, ao som de música e ao pipocar dos no cristianismo, a raiz desse evento prende-
rojões. Entrava sempre acompanhado de -se ao messias; no mundo greco-romano, ao
cavaleiros que iam esperá-lo às portas das mito do herói. Seja o messias ou o herói, o
localidades. A respeito das missões do pa- processo histórico-sociológico e psicológi-
dre Ibiapina, assim se expressava o jornal co desencadeado apresenta-se com algumas

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textos / Homenagem

variáveis semelhantes. Quais as fontes desse Isaura Pereira de Queiroz (1976), Facó ex-
messianismo no Brasil? Esta pesquisa bus- plica as origens dos movimentos religiosos
cou revistar essas fontes e acrescentar pelo brasileiros considerando apenas a variável
menos mais duas: a Missão abreviada e a econômica e as condições sociais dos seus
obra religiosa e social do padre Ibiapina. adeptos (Facó, 1976, p. 29).
O primeiro estudioso que delineou as Já o autor deste texto partiu da premissa
origens sociais da religiosidade de massa de que a variável econômica, embora rele-
no Brasil foi o sociólogo Rui Facó (1976). vante por si só, não é suficiente para expli-
Na obra Cangaceiros e fanáticos, ele traça car a complexidade desses movimentos que
a árvore genealógica da miséria no Brasil a têm suas raízes na alma religiosa e mítica
partir da libertação dos escravos em 1888, do povo português e brasileiro.
quando esses foram alforriados e ao mesmo A estrutura complexa do messianismo
tempo substituídos pelos imigrantes europeus. amplia o espaço caudal de fontes em que
A substituição dos escravos pela mão de se deve buscar suas origens. No Brasil, o
obra assalariada importada de outros pa- manancial de fontes messiânicas é igualmente
íses deixou os ex-escravos na situação da imenso: o judaísmo antigo, no Velho Tes-
mais absoluta miséria, pois receberam uma tamento; o cristianismo primitivo, no Novo
liberdade relativa e condicionada pelo aban- Testamento; o mito indígena da Terra sem
dono econômico e social, cujo desfecho foi Males; o catolicismo ultramontano com as
o empobrecimento. A liberdade do escravo contribuições de Joaquim de Flora e de Gon-
não incluía emprego, moradia ou mesmo çalo Annes, o Bandarra; o sebastianismo; o
o alimento para si e para a sua família. sonho escatológico do padre Antônio Vieira;
Rui Facó (1976) afirma que esses libertos o catolicismo popular da Missão abreviada;
ficavam, então, até mesmo sem os recursos a obra piedosa do padre Ibiapina, etc. A
básicos da economia necessários para uma partir dessas contribuições, este artigo ana-
subsistência precária. Vagavam pelos cam- lisou as fontes do messianismo brasileiro
pos, povoados, vilas e cidades onde quase e traçou a árvore genealógica mítica e
sempre eram considerados indesejáveis e religiosa desses movimentos, mormente
recebidos à bala. À semelhança de Maria no Nordeste do Brasil.

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O contexto funerário
do povo cita:
um estudo arqueoetnológico

O
Andrea Piccini

ORIGEM DO POVO CITA

s estudos abordados neste texto inserem-se


na área da arqueologia e da etnologia, tendo
como objeto os diversos processos envolvidos
na manufatura do material artesanal funerário
e sua expressão simbólica no contexto do

Este texto é resultado de atividade de pesquisa para


o pós-doutorado no Laboratório de Arqueologia Ro-
mana Provincial (Larp) do Museu de Arqueologia e
Etnologia (MAE) da USP, sob orientação de Mabel Isabel
D’Agostino Fleming.
Agradecimentos: Maria Bekk, do Departament Littéraire
de la Republique de Khakassie, Sibéria do Sul, Rússia; e
Leonid Eremin, arqueólogo do Musée National de Khakas-
sie, Sibéria do Sul, Rússia.

ANDREA PICCINI é pesquisador


associado do Larp/MAE-USP e autor
de A influência da arquitetura islâmico-árabe
na Ásia Central (Annablume).

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textos / Homenagem

povo cita, cuja origem ancestral ocorreu no Pelos estudos de vários autores, as tri-
atual território da Sibéria do Sul, na Rússia. bos dessas regiões, nos últimos 10 mil anos,
O estudo in loco visa a apresentar e es- dedicaram-se a atividades pastoris, sempre
clarecer a trajetória desse povo nômade, de mantendo um modo de vida nômade ou se-
origem eurasiática, ao longo de vários séculos, minômade, introduzindo e alternando perí-
exclusivamente por meio de suas construções odos de atividades pastoris com agrícolas,
funerárias características, os kurgans. A palavra devido às estações, nas diferentes regiões.
kurgan pertence à língua dos povos prototurcos Desde o século V a.C., expandiram-se
da região do Lago Baikal, na atual Sibéria do pela Ásia Central ao longo de vários sécu-
Sul, com o significado de “colina funerária que los, ocupando espaços no comércio, na base
protege a tumba”. É um dos principais legados de trocas de produtos não encontrados nas
de um período de nomadismo e trajetórias estepes, principalmente nas rotas comerciais,
de assentamentos humanos temporários desse que colocavam em comunicação as regiões
povo caracterizado por uma rica cultura, ao do extremo norte do Ocidente, desde a Si-
longo dos séculos IX a.C. e II d.C. béria, além dos Montes Altai, pela Rota das
Os valores culturais, sociais e antropo- Estepes, e ao sul do atual território da Ín-
lógicos dos citas foram evidenciados por dia, por meio da Rota da Seda, que ligava
meio da tipologia usada para sepultar o a China ao Mediterrâneo Ocidental.
morto com todos os seus pertences sob uma Os nômades citas conviviam em um sis-
colina artificial. As atividades xamânicas tema intertribal de parentesco por meio de
estavam tanto na base da vida cotidiana casamentos mistos reunidos em uma confe-
quanto no kurgan, com todos os artefatos deração de tribos de mesma linhagem lin-
de pós-morte que o acompanhavam. guística e cultural, entre os séculos VIII
Compreender esses valores não foi uma a.C. e o último Império Cita do Cáucaso,
tarefa fácil, pois não existem relatos teste- no século II a.C.
munhais escritos sobre essa população no Trata-se de um povo que envolvia seus
período histórico pesquisado. Há relatos conhecimentos materiais e espírito-rituais
sobre os citas em períodos posteriores em numa continuidade visível na disseminação
locais fora desse território de origem, entre de suas práticas funerárias e mortuárias xa-
a região de Tuva, atual Kizil, Abakhan, na mânicas, sempre presentes nos kurgans. Foi
atual região da Khakassia, e o Lago Baikal. o único povo dessas regiões a sepultar seus
Até o século VIII a.C. a área de noma- mortos nesse tipo de estrutura arquitetônica
dismo desse povo compreendia as estepes e sem deixar relatos escritos.
eurasiáticas entre o Lago Baikal e os Montes
Altai. Depois do século VIII a.C. até o século KURGANS: TESTEMUNHOS
IV a.C., os citas superaram os Montes Altai e
então formaram-se duas áreas de nomadismo
ARQUEOLÓGICOS EM VIDA E NA MORTE
das estepes eurasiáticas; uma, mais ao norte,
entre os Montes Altai e os Montes Urais, e O kurgan constitui uma tipologia fu-
a outra, contemporaneamente, mais ao Sul, nerária de forma arquitetônica inovadora,
entre os Montes Altai e o Mar Cáspio. construído de maneira a ser visto de longe.

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MAPA 1

Antigos e atuais territórios xamânicos

A cor azul tracejada limita o território ancestral da região; as marcações vermelhas mostram as
partes mais importantes ainda com presenças arqueológicas relevantes; e a cor verde define o
território central ainda marcado pela presença de sítios arqueológicos e de atividades xamânicas

Normalmente, nesses terrenos, encontram- estrutura, tanto das paredes quanto do teto,
-se presentes outras tumbas menores, com o que, ao longo de séculos, ia congelando
personagens de menor importância na socie- e a tornava impermeável, sem apodrecer.
dade, mas que faziam parte da família ou As construções do período cita dos sécu-
tinham alguma relação de parentesco com los VIII-VII a.C. eram cobertas por vários
o chefe, príncipe, rei ou guerreiro sepultado níveis de pedras vulcânicas locais, terra e
na tumba central. Atualmente ainda se pode grama, como podemos ver, por exemplo,
encontrar, nessa estrutura funerária, toda na Imagem 1.
a produção de ricos artefatos do período Essa tipologia, como podemos ver na ma-
da cultura cita. quete de Arzhaan 1, Museu de Abakhan,
A estrutura do kurgan, da tumba e do séculos IV-III a.C. (Imagem 2), possui co-
sarcófago, era feita da madeira de um tipo bertura e estrutura interna para proteção da
de pinheiro de montanha, e toda a estrutura câmara mortuária no centro da tumba, esca-
da área maior era sustentada de troncos de vada abaixo da terra, a qual, na sua maioria,
bétula. A cortiça dessa árvore era usada era exclusiva para personagens importantes
também para fechar a superfície interna da da comunidade.

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textos / Homenagem

Nos kurgans do Vale dos Reis são vi- bem maior e mais visível, destinada aos
síveis os pilares de pedras que fortalecem personagens mais importantes da comuni-
as grandes paredes dos muros externos de dade, e as outras menores ao redor, para
proteção, limitando a área sagrada e reco- familiares e serviçais.
brindo as tumbas de madeira. A única en- A Imagem 5 (à esquerda) mostra o sar-
trada da área sagrada também era protegida cófago de Arzhaan 1, Museu de Abakhan,
por grandes portais de pedras apoiados em com esqueleto acompanhado de quantida-
altos pilares, como no kurgan de Arzhaan de de elementos em ferro, como armas e
1, séculos IV-III a.C. (Imagem 3). outros de uso para cavalo; à direita (aci-
O complexo funerário de Anchil Choong ma), são visíveis os restos de esqueleto do
Arzahan, no Vale dos Reis, séculos V-II a.C. cavalo que acompanha o seu proprietário
(Imagem 4), comporta uma grande quan- na tumba; e, abaixo, múmia encontrada
tidade de tumbas, sendo a tumba central, nesse kurgan.
Fotos: Andrea Piccini

98 Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 95-104 • janeiro/fevereiro/março 2020


Fotos: Andrea Piccini

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textos / Homenagem

CULTURA XAMÂNICA E MUNDOS O corpo era aquecido para que a cera


pudesse recobri-lo inteiramente num proces-
PARALELOS: SIMBOLISMOS E RITUAIS
so de impermeabilização. Eram queimados
PARA VIAGENS EXTRACORPÓREAS incensos e ervas perfumadas para preservar
o lugar do eventual mau cheiro, lembrando
O levantamento em campo nos permite assim os bosques da paisagem siberiana.
estudar a relação das práticas e cultura O cavalo, considerado um animal mítico
xamânicas no cotidiano do povo cita por e nobre, era adornado com todos os seus
meio dos mais antigos testemunhos ar- arreios, sela e montaria recobertas de ouro
queológicos, a partir de 7 mil anos a.C. e peles preciosas desenhadas com símbolos
Os citas praticavam rituais funerários xamânicos relacionados à continuação da
complexos, com uma técnica de conser- vida no outro mundo paralelo. Na Imagem
vação dos corpos mumificados por con- 6 vê-se a reconstrução de uma sepultura do
gelamento embaixo da terra, cuja organi- século III a.C., que apresenta cavalos sacri-
zação servia, segundo a crença xamânica, ficados e embalsamados junto aos corpos do
para manter o morto entre os vivos e casal no interior do kurgan.
ainda possibilitar que ele viajasse para o
mundo superior ou mundos paralelos. A
Andrea Piccini

6
pouca profundidade da tumba, portanto,
devia-se ao fato de que os espíritos “vi-
viam” ainda no mundo entre os humanos,
podendo eventualmente viajar a mundos
paralelos, como se estivessem vivos numa
outra dimensão.
Dependendo da classe social, o grande
espaço interno dos kurgans funcionava como
um mausoléu, pois o morto era acompanha-
do de seus muitos serviçais, suas concubi-
nas e esposas. Em alguns kurgans foram
encontrados até 50 corpos dos dois sexos, O cavalo também era uma manifestação
além de um grande número de cavalos. da vitória de seu dono, provavelmente um
A embalsamação de corpos humanos príncipe guerreiro. Podia ser ornado com
e de animais de propriedade do morto grandes chifres, como os de um cabrito mon-
também fazia parte do ritual funerário. tês, símbolo de força e respeito, e, portanto,
Os corpos eram inteiramente lavados e, de poder, como se observa na Imagem 7
após receber uma camada de cera, eram (Museu de Khakassia). Já o príncipe guer-
abertos na parte do ventre, do qual eram reiro era sepultado com vestimenta bordada
retirados o intestino e outros órgãos para em ouro (Imagem 8).
impedir a putrefação. Em seguida, os va- O estudo do instrumental mítico é impor-
zios eram preenchidos com raízes especí- tante no sentido de reafirmar a simbologia
ficas de plantas, incenso e cera de abelha. de superioridade física e espiritual de uma

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Fotos: Andrea Piccini
8
7

linhagem de guerreiros, como claras mani-


festações de domínio, tanto sobre adversários
quanto sobre povos aliados. Tais demonstra-
ções pelo exercício de atividades exclusivas
de poder eram relacionadas às manifestações
do xamanismo por meio de um mergulho no
mundo paralelo e nas expressões de origens
míticas, inscritas nas tatuagens ou ainda nos
rituais sangrentos de vitória.

OS MUNDOS PARALELOS
9

A Imagem 9 (século VI a.C.) é uma


representação do mais antigo ideal xamã:
o Mundo Superior, na parte de cima da
figura, tem o dia com o Sol no centro do um arco vazio representa o Mundo Infe-
céu, e a noite, com as estrelas. Em seguida rior. Nessa simbologia o homem está no
vem o Mundo Mediano, que corresponde centro da circunferência com orientação
às árvores com as folhas, os animais, como pela seta dirigida ao Sol.
cavalos e cabritos monteses, e também os Nas tradições xamânicas e tengristas dos
homens. Na parte mais baixa do desenho, citas, os elementos naturais da terra são

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textos / Homenagem

considerados divindades. O pico da mon-

Fotos: Andrea Piccini


tanha mais alta da região, por exemplo, 10
era o deus Tengri, que governava todo o
universo ou os céus e os mundos paralelos
que compõem a Terra.
O xamanismo siberiano nasceu como uma
soma de práticas ancestrais para dialogar
com os deuses e os espíritos presentes no
mundo dos humanos, numa ligação espiritual
por meio do transe, sempre relacionado com
eventos naturais, e na qual se estabeleciam
os poderes mágicos, proféticos e de cura.
Na faixa mais baixa da Imagem 10, por
exemplo, está esculpida uma face com uma
boca estilizada, para pedir ajuda das sombras,
e onde também poderiam ser colocadas ofe-
rendas com folhagens queimadas. Na parte
central, o Mundo Superior é representado
pelo espaço do céu com as posições do mo-
vimento solar ao longo do dia e, acima, os
raios do Sol. A maioria desses totens ou
monólitos em pedra representa uma visão 11
do espaço em três faixas, nas quais a Terra
circular com o céu e a parte dos vivos são
ao mesmo tempo a vista da circunferência
da Terra na visão do horizonte.
Nos petróglifos da Imagem 11 (séculos
XV-XII a.C., Museu Martyanov, Minusinsk)
estão presentes várias simbologias que re-
gulavam a vida terrena. Na parte superior
acima do arco da Terra são representados
os movimentos do ciclo do Sol com as três
pequenas circunferências, enquanto a linha no alto, à direita, uma representação mais
horizontal no centro divide os dois mundos, estilizada da Terra com os símbolos da po-
Superior e Inferior. Os três pequenos dese- sição do Sol e, mais abaixo, à esquerda, o
nhos cônicos acima do Sol são uma estili- símbolo da direção estelar.
zação dos raios solares. À esquerda, a figura Os menires em pedras eram esculpidos
no alto possui uma boca para oferendas aos com representações importantes da vida
deuses, a qual, nos períodos anteriores, con- do morto. Na Imagem 12, por exemplo, o
sistia simplesmente numa fissura escavada grande cervo, com chifres que simbolizam
nas rochas, sem desenhos da Terra. Mais potência e sobem em direção ao céu, possui

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funerária originária que ainda é considerada
Andrea Piccini

12 pela série de manifestações religiosas locais.


Esse debate abrange, nesse caso pesquisado,
definições, sociedades, épocas e períodos
históricos, sobretudo pelos testemunhos das
práticas funerárias dos kurgans.
Heródoto foi o primeiro autor a relatar a
história do povo cita do Império do Cáucaso.
Na sua História, ele afirma que o uso das
práticas xamânicas, por ele definidas como
“práticas religiosas exóticas e bárbaras”, era
comum entre esse povo desde a sua origem,
em um território desconhecido e bem mais
tarde chamado de Sibéria.
a mesma simbologia, em forma de circun- Por outro lado, acreditamos que o xama-
ferência, para levar o morto à vida futura nismo era e ainda pode ser uma forma de
no Mundo Superior. religião arcaica, misturando crenças, mitos,
fenômenos naturais e tipos de sensibilida-
des psíquicas eventualmente exacerbadas por
POR UMA CONCLUSÃO PARCIAL
plantas estimulantes.
Nesse contexto, achamos muito interes-
Parece interessante o fato de que os tes- sante a afirmação de Mircea Eliade (2001, p.
temunhos arqueológicos no vasto território 81) mencionando a ideia do homem no cen-
de origem do povo cita, por nós visitado e tro do mundo, e em direção ao alto do céu,
levantado, fazem parte de uma história forte- posição esta claramente visível nos desenhos
mente nômade, mas como registro arqueológi- e rituais xamânicos esculpidos nos totens.
co comprovado nos territórios das migrações Segundo o autor, “viver perto do centro do
(Hodder apud Ribeiro, 2007). A riqueza desses mundo equivale, em suma, a viver o mais
testemunhos encontrados nos kurgans é im- próximo possível dos deuses”, e assim “a
portante também para uma leitura etnológica intencionalidade decifrada na experiência do
e antropológica, pois, ao longo da pesquisa, espaço e do tempo sagrados revela o desejo
concluiu-se que o xamanismo foi parte central de reintegrar uma situação primordial: aquela
no contexto das práticas funerárias. em que os deuses e os antepassados míticos
O xamanismo na área em estudo é estavam presentes”.
considerado um fenômeno de crenças e Para este nosso estudo, na área de corre-
práticas religiosas mais antigas nascidas lação entre arqueologia, cultura, antropologia
na Sibéria, também difundidas atualmente e etnografia, também foram fundamentais os
em diferentes territórios tribais-ancestrais. estudos de Childe (2004), sobretudo quan-
Por meio de pesquisa bibliográfica e, do afirma que “uma importante tarefa da
sobretudo, de campo, consideramos o xa- antropologia é estabelecer direções ou ten-
manismo siberiano basicamente uma prática dências gerais de forma a poder determinar

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textos / Homenagem

quais são os progressos da cultura de um tante processo de trocas culturais ao longo


povo para averiguar se as mudanças foram do nomadismo dos citas. É clara a influ-
progressivas ou regressivas”. ência da cultura desse povo sobre outros
Por fim, queríamos destacar que as só- e mesmo sobre comunidades menores, ao
lidas provas desses restos arqueológicos, longo de um período em que o conjunto de
pesquisados e estudados no período entre os mitos e práticas funerárias foi retransmitido
anos 1300 a 200 a.C., mostram um impor- e adaptado por meio de grandes migrações.

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arte
Arte sobre foto deCarmela Gross

Educação em arte,
arte como educação

Sylvia Werneck
arte carmela gross

N
o Brasil, muitos artistas técnicas, e muitas concebidas para espaços
acabam trilhando o cami- de grande circulação, o que já deixa clara
nho acadêmico paralela- sua intenção de se comunicar com mui-
mente ao da atividade tos de uma só vez, estabelecendo diálogos
artística propriamente entre a obra, as pessoas e a cidade, vista
dita. Carmela Gross é um como organismo ativado pela ocupação
exemplo, um dos grandes dos cidadãos.
nomes da arte contempo- Em atividade desde a década de 1960,
rânea que compartilha uma de suas primeiras intervenções foi
sua experiência com os numa periferia de São Paulo. Escadas, de
alunos do curso de Artes 1968, era um desenho em um barranco, que
Visuais da Universidade de São Paulo. traçava degraus ao longo de uma parede
Carmela está firmemente plantada de terra já alterada pela ação humana. A
no panteão dos grandes artistas, tendo superfície, sulcada horizontalmente por
participado das mais importantes mos- maquinário de terraplenagem, já trazia
tras nacionais e internacionais, e é nome à mente a insinuação de uma escada. O
representado em coleções de peso, como desenho agregado pela artista reforçava
no Museu de Arte Contemporânea de São essa percepção e convidava à exploração
Paulo, no Museu de Arte Moderna Aloísio do território inóspito, praticamente um
Magalhães, em Recife, e no Museum of
Modern Art (MoMA), em Nova York. Tem
um histórico de obras de grande potência
educadora, no sentido de que provocam SYLVIA WERNECK é doutora em Comunicação
o espectador a pensar criticamente. Em e Cultura pelo Prolam-USP, membro da
Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA)
sua maioria, são peças em grande escala, e autora de De dentro para fora – a memória
feitas com os mais variados materiais e do local no mundo global (Zouk).

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Marcello Nitsche

Escada, 1968, desenho em esmalte sobre terra.


Interferência na paisagem da periferia de São Paulo

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arte carmela gross

Nelson Kon

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Nelson Kon

Em Vão, 1999, elástico e presilha metálica.


Oficina Cultural Oswald de Andrade

não lugar. Em 1999, Vão mudou toda a qualquer um que passasse nas imediações,
circulação do saguão da Oficina Cultural desde os frequentadores do Parque Ibira-
Oswald de Andrade, obstruindo a passa- puera (não necessariamente interessados na
gem com faixas de elástico negro presas Bienal), como também todo um contingente
às colunas do edifício, criando novas sub- populacional que trafegasse pela Avenida
divisões. Com seu livre trajeto obstruído, Pedro Álvares Cabral. A instalação também
as pessoas eram involuntariamente levadas pode ser interpretada como referência à
a observar com mais atenção a arquitetura transitoriedade da mostra, ou mesmo das
e a setorização do espaço. obras, temporariamente “hospedadas” num
Em vários projetos, a artista usa lâm- espaço que as legitimava com o “selo de
padas fluorescentes para, com palavras ou autenticidade” conferido pela curadoria e
frases, propor alguma reflexão. Na XXV pela instituição. O próprio uso do prédio
Bienal Internacional de São Paulo, em como espaço cultural tem caráter tempo-
2002, plantou na fachada do Pavilhão Cic- rário, uma vez que o local recebe eventos
cillo Matarazzo um letreiro luminoso onde dos mais variados, a maioria sem qualquer
se lia a palavra “Hotel”. Parte da exposição relação com o mundo da arte.
que se concentrava no interior do prédio, Carne (2006) é uma proposta que já
Hotel burlava a exclusividade do público- nasceu imbricada com a educação. A par-
-alvo, oferecendo-se para a apreciação de tir do convite para integrar o projeto Arte

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arte carmela gross

João Nitsche
João Nitsche

Hotel, 2002, lâmpadas fluorescentes e estrutura metálica. Obra instalada na fachada


do edifício da Bienal de São Paulo, durante a XXV Bienal Internacional de São Paulo

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passageira, do setor educativo do Centro – o choque entre as paletas cromáticas do
Universitário Maria Antonia, já foi conce- interior e do exterior; o fato de o suporte
bida para o suporte e modo de exposição ser um veículo que perdeu sua função e,
escolhidos pela equipe – um ônibus que como objeto de arte, são as pessoas que
circularia por escolas e centros culturais circulam dentro dele; o jogo entre a obra
da capital paulistana ao longo de um ano. no espaço público, mas que só é ativada
A artista, então, com a ajuda dos esta- de fato quando se entra dentro dela. Colo-
giários do educativo, chegou à ideia de cam-se em operação várias maneiras de
revestir internamente o veículo (um ônibus aguçar a percepção do espectador.
abandonado da USP) com plástico ade- Como educadora propriamente dita, a
sivo em tons de rosa, vermelho e roxo. A trajetória de Carmela Gross começou muito
sensação provocada pelas cores quentes é antes, em 1966, quando ainda era aluna
oposta à costumeira frieza dos verdes e do Curso de Arte da Fundação Armando
azuis típicos dos coletivos. Uma máquina Álvares Penteado, onde se formou três anos
de metal fora de operação batizada de depois. Segundo ela relata, o nome origi-
“Carne” convertia-se em uma experiência nal da graduação era Curso para Forma-
orgânica de relacionar-se com a obra por ção de Professores de Desenho, conforme
dentro. Alguns contrastes ficam evidentes tinha sido idealizado por Flávio Motta, que
João Nitsche

Carne, 2006, ônibus-instalação, revestimento com vinil adesivo, pintura e tecido sobre
carroceria de ônibus. Projeto Arte passageira do Centro Universitário Maria Antonia, USP

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arte carmela gross

Carmela Gross

considerava o desenho em sentido amplo, Artes Plásticas da USP, em 1972. Foi ali
não só como formação, mas também como também que fez seu mestrado e doutorado,
instrumento de emancipação social. Pergun- ainda vivenciando sua noção de porosidade
tada sobre por que decidiu ensinar, disse entre o ensino e a aprendizagem.
que “as atividades de aprender e ensinar Carmela acredita que a convivência
estavam implicadas uma na outra” e ela com os estudantes é benéfica para ambas
mesma não seria capaz de precisar onde as partes:
uma começava e a outra terminava.
Sua primeira experiência foi entre 1966 “As experiências compartilhadas numa
e 1971, dando aulas para crianças em sala de aula e em discussões e ativida-
praças públicas. A ideia partiu do grupo des fora dela com os alunos são quase
que ajudou a criar, o Arte na Praça. Em sempre muito ricas. Conversas, discussões,
seguida, para esse mesmo público, lecio- apontamentos, perguntas, respostas, colo-
nou numa escola no Bom Retiro diri- cação de problemas, dúvidas, pesquisas
gida por Fanny Abramovich, onde ficou em grupo, busca de soluções partilhadas…
de 1968 a 1973. Depois de ensinar nos tudo isto tem duas mãos”1.
cursos de Artes Plásticas e Arquitetura e
Urbanismo da Faculdade de Belas Artes
de São Paulo, aceitou o convite de Walter
1 Entrevista concedida a mim por e-mail em agosto de
Zanini e ingressou no Departamento de 2019.

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Sobre a possibilidade de a prática do escolas. Até poucas gerações atrás, tornar-
ensino interferir em sua produção artís- -se artista não dependia necessariamente
tica, ela diz ver as trocas efetuadas como de treinamento institucionalizado. O que
positivas. A única coisa que afeta seu tra- uma faculdade de artes faz é organizar
balho de ateliê é o tempo dispendido com os conhecimentos que estão disponíveis
a preparação e realização das aulas na uni- e apresentá-los ao estudante, facilitando
versidade. Como já é um fator introjetado, sua tomada de contato com essa área do
acredita que tudo é questão de organiza- conhecimento. Em um curso estabelecido,
ção e planejamento. Ao final, tudo acaba estão à disposição equipamentos específicos
sendo juntado num grande corpo de pos- para a produção de obras em diferentes
sibilidades abertas, ou, como descreve a técnicas, assim como professores especia-
artista, “num grande caldeirão – um caldo lizados em cada aspecto que se entende
concentrado com ingredientes coletivos” 2. ser de interesse do aluno conhecer.
Ensinar, portanto, foi algo que aconte- Mais ainda, a universidade tem como
ceu na vida de Carmela Gross quase como razão de existir o fomento, difusão e publi-
num movimento natural. E talvez assim cação dos conhecimentos produzidos em
fosse o direcionamento da formação em sua estrutura. A pesquisa, especialmente
artes que o pensamento da época via como nas instituições públicas, é o maior patri-
principal. Se pensarmos em Luis Camnit- mônio construído pelo sistema. Também
zer, que concebe a arte e a educação como é papel da universidade promover eventos
uma só coisa, talvez não devesse nunca ter acadêmicos como congressos, seminários e
deixado de sê-lo, mas cabe expandir esta jornadas, com o fim de possibilitar a troca
premissa – a arte sempre ensina, direta ou de saberes entre estudantes de diferentes
indiretamente. Trata-se de uma maneira de escolas e a divulgação de trabalhos de pro-
expressar visões de mundo que, ao serem fessores e pesquisadores. Trata-se de um
expostas publicamente, reverberarão em organismo em constante transformação, que
cada espectador de maneira particular. acompanha os movimentos da sociedade
Uma obra não se restringe a uma ideia e incorpora novas demandas por saberes
original criada por determinado artista. que se apresentam como necessários para
Ao contrário, carrega em si infinitas pos- a formação de cidadãos aptos a contribu-
sibilidades de leitura, e encontra caminhos írem com suas comunidades. A academia
que se relacionam com a bagagem de cada é a principal incubadora de conhecimento
pessoa que se depara com ela. É aberta, e e sua guardiã por vocação. No sistema de
se modifica ao longo do tempo, ganhando arte, especificamente, é na faculdade que
significados que passam a fazer parte de são produzidas as principais pesquisas que
seu potencial de transformar a vida. servirão de referência para a edificação
Artistas existem desde que existe a do corpo de conhecimento, sempre em
humanidade, e muito antes de existirem transformação, em que a arte é gestada.
Na opinião de Carmela Gross, não há
dúvidas de que a formação universitária
2 Idem. amplifica o repertório dos aspirantes a

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arte carmela gross

artistas. As trocas com outros, a tomada se torne um observador e experimentador.


de contato com diferentes saberes possibi- É preciso que se coloque no mundo de
litam a multiplicação e prática consciente maneira aberta às contradições, desejos e
de fazeres. É claro que, sendo uma forma sonhos, não apenas próprios, mas da socie-
de fazer filosofia, a escola não basta para dade à qual pertence. É preciso estudar,
preparar o artista. É necessário que este mas também é preciso viver.

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livros
La vie en close:
c’est une autre chose

Gutemberg Medeiros

Rastros, de Atílio Avancini e Sérgio Avancine,


São Paulo, Com-Arte, 2019, 136 pp.

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livros / Homenagem

T
omo de empréstimo primeiro e o terceiro com cinco sílabas
o título de uma e o do meio com sete em redondilhas. O
obra do poeta e que, evidentemente, os poemas de Sérgio
ensaísta Paulo Le- não apresentam. Porém, Leminski posi-
minski por motivos ciona como as “minúsculas pegadas” do
que vão se esclare- haikai são sentidas na poesia ocidental.
cer ao longo desta Ezra Pound, Federico García Lorca, An-
resenha à reunião tonio Machado, Guilherme de Almeida,
de fotos e poemas de Atílio Avancini (pro- Oswald de Andrade, Maiakóvski, Carlos
fessor da ECA/USP) e Sérgio Avancine. Drummond de Andrade, Jorge Luis Bor-
Contemplando imagens e poemas vem algo ges, Octavio Paz, até Millôr Fernandes.
à mente todo o tempo: haikai. Como jor- Os principais predicados – ou rastros
nalista e pesquisador, muitas vezes, sou as- – do haikai arrolados por Leminski são
solado pela máxima de Guimarães Rosa igualmente sentidos nas imagens e poemas
– “Eu quase que nada não sei. Mas des- deste livro. Informo que me norteio pela
confio de muita coisa...”. Como não posso noção enunciada, entre outros, pelo pen-
viver de desconfiança, peço ajuda a quem sador russo Iuri Lotman da amplitude de
sabe. No caso, um dos maiores conhece- texto – seja verbal ou não verbal. O haikai
dores dessa arte poética japonesa no Brasil de Bashô – e o melhor do gênero – se for-
e seu principal artífice entre nós: o poeta mou a partir do mais importante produzido
Paulo Leminski. Especialmente em seu es-
tudo de vida e obra Bashô: a lágrima do
peixe, sobre um dos principais poetas dessa
tradição nipônica.
GUTEMBERG MEDEIROS é jornalista,
Haikai tem determinante formal: poema colaborador de O Estado de S. Paulo
de 17 sílabas disposto em três versos, o e pós-doutorando na ECA-USP.

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pelo Extremo Oriente: transcendentalismo sobrepostos, os poemas em paralelo às
indiano, realismo e simplicidade japonesa. imagens retomam, em certo sentido, essa
Leminski lembra a síntese do pensador fran- ambiência do haikai.
cês Émile Bréhier, de ser este poema “um Volto à ascese. Um dos pilares do haikai
ato, falado com propriedade, que não se está na filosofia, e não religião, zen – uma
ensina, e se chega a ele através do obrar fé de artistas, como destaca Leminski. “Uma
(áskesis = ascese) mediante o exercício da fé que valoriza, absolutamente, a experiên-
exemplaridade”. As imagens aqui presentes cia imediata. A intuição. O aqui e agora.
são derivadas de muito trabalhar fotos e A superfície das coisas. O instantâneo. O
poemas – tanto em leituras de antecesso- pré ou post-racional.” Pois reassumo aqui o
res quanto muito rascunho e lata do lixo, detalhe e a plasticidade também presentes
descartando o que não interessa até chegar nessa coletânea. Pois é, agora podemos re-
à síntese do que se espera. tomar o título deste texto. A vida de perto
Assim como o haikai, esses textos ver- sempre é outra coisa. Nelson Rodrigues bem
bais e não verbais (poemas e imagens) sabia disso. Atílio e Sérgio também.
primam pela síntese, por buscar o detalhe,
o traço diminuto, o close ou o plano fe- ENCONTRO DE GAVETAS
chado. No detalhe irrelevante e desprezado
do cotidiano mora a epifania, as pequenas/
grandes iluminações plausíveis do humano, Um pouco do entorno dos trabalhos que
demasiadamente humano. Por outro lado, compõem esse livro ajuda ao leitor com-
não podemos deixar de lembrar como o preendê-los melhor. Foi o encontro feliz de
Ocidente teve duas grandes formas pri- duas gavetas de amigos de longa data, além
mevas de registro de sentidos e pensares. de Atílio e Sérgio serem também primos.
Primeiro, o hieroglifo egípcio, ou “ima- Rastros foi o primeiro ensaio fotográfico
gem sagrada”, secundado pelo gramma- de Atílio, iniciado nos anos de 1980. Ele
tas, a “escrita sagrada” grega a partir da conta que o argumento temático surgiu a
abstração absoluta do abecedário. partir da foto n. 15, a do dançarino ale-
Pois aqui o leitor tem o diálogo in- mão e professor da UFBA Rolf Gelewski,
tenso de uma foto em relação a cada po- na Praia dos Artistas, em Salvador.
ema, como se irmanasse essa dualidade “Ensaio produzido de cabo a rabo, ou
ocidental perdida. Mas jamais esquecida seja, fotografação, revelação do filme p&b,
no extremo Oriente. Pois o haikai não é ampliação manual.” Todas as 36 fotos fo-
apenas mero conjunto de 17 sílabas soltas ram clicadas com filme de 36 poses 35 mm
no papel, mas imerso em compor poema- Kodak Tri-X, 400 ASA. O trabalho foi se-
-pintura nas tradicionais gravuras japone- lecionado para exposição na parede de fo-
sas, cuja admiração explode a partir do tografia do Centro Cultural São Paulo, em
final do século XIX com os impressio- 1986, sendo recebido em críticas de João
nistas franceses e contagia tudo o que se Farkas (IstoÉ) e Stefania Bril (O Estado
seguiu em arte moderna – seja em textos de S. Paulo). Agora ganha formato em li-
verbais e/ou não verbais. Apesar de não vro com os poemas de Sérgio.

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livros / Homenagem

FARO

ver nas entrelinhas


ler nas entrevistas

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METRÔ

pra volta dos longos exílios


é o que me põe nos trilhos

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livros / Homenagem

O poeta afirma que pouco conhece “Como recurso nada mais uso que as
haikai, mas gosta e muito de autores mais simples das ferramentas do Word bá-
brasileiros que praticam algo nesse gê- sico. Abro meu último livro com o poema
nero – a exemplo de Augusto e Haroldo intitulado ‘operador’, que perpetra: ‘o poeta
de Campos,  Wally Salomão e, “sobre- é o cirurgião da língua’”. Sérgio lembra que
tudo”, Paulo Leminski. Ele mesmo afirma Atílio sugeriu a publicação conjunta, gostou
buscar a forma de expressão diminuta. da ideia e evoluiu ao aproveitar produtos que
“Tento sempre limpar o texto de desne- se encontravam nas respectivas prateleiras. Ou
cessárias bugigangas, deixá-lo enxuto, gavetas. O tema sugerido por Atílio estava
saudável e, na medida do possível, em predefinido, “Rastros”. “No chão da sala dele,
forma visual que se adeque ou agregue dispusemos os materiais e, em poucas horas,
algo à mensagem.” as duplas estavam formadas. Feliz sintonia.”

124 Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 119-124 • janeiro/fevereiro/março 2020


Bivar sobre si mesmo

João Carlos Rodrigues

Perseverança, de Antonio Bivar, São Paulo, Humana Letra, 2019, 184 pp.

Revista USP • São Paulo • n. 124 • p. 125-129 • janeiro/fevereiro/março 2020 125


livros / Homenagem

S
e uma autobiografia vida de Antonio Bivar é interessante o su-
deve ser cronológica, ficiente para dar tanto pano para mangas.
meticulosa e totaliza- Posso garantir que é. Nascido em 1939 e
dora, incluindo refle- crescido no interior de São Paulo (Ribei-
xões sobre a época em rão Preto), ele já foi de tudo um pouco,
que o autor viveu, e incluindo office- boy, pregador mórmon,
um livro de memó- ator, figurante em balé da dupla Fonteyn/
rias basta ser seletivo Nureyev, autor teatral premiado e proibido
e fluente narrando apenas o que o autor pela censura, editor de revistas, roman-
achou importante, então o que Antonio cista, desenhista e aquarelista de talento,
Bivar escreve há décadas sobre si mesmo globe-trotter, diretor de shows de rock e
está mais para memórias do que para au- sertanejos, roteirista de programas de rá-
tobiografia. Isso não implica critérios de dio e TV. Do glam ao punk, um lançador
valor. O médico Pedro Nava, o teatrólogo de modas e estilos.
Hermilo Borba Filho e a atriz Odete Lara Chegamos ao mais novo de seus livros
foram ótimos memorialistas, e outros mais. de memórias, todos publicados fora da or-
As memórias são frequentemente mais in- dem cronológica e por editoras diferentes.
teressantes do que as autobiografias, muitas Seguindo a ordem dos acontecimentos, são
destas escritas por ghost-writers profissio- eles Mundo adentro vida afora (1939-1970),
nais. Podem também enganar o leitor e ser Verdes vales do fim do mundo (1970-71),
tendenciosas, o que não se tolera numa
autobiografia. Aparentemente são menos
sérias, mas não menos representativas. E
sem dúvida bem mais divertidas.
JOÃO CARLOS RODRIGUES é escritor,
Antes de mais nada, para quem não pesquisador e autor de, entre outros, João do Rio:
sabe, é preciso explicar até que ponto a vida, paixão e obra (Civilização Brasileira).

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Longe daqui aqui mesmo (1971-73), Aos também na forma de um diário. Assim o
quatro ventos (1973-82), Perseverança autor em algumas páginas observa a si
(1982-1993) e Bivar na corte de Blooms- próprio, em outras narra os acontecimen-
bury (1993-2004). Alguns são encontrados tos, em outras faz anotações informais. E
hoje apenas em sebos, mas o segundo foi ainda temos, no final, uma entrevista ao
best-seller e continua em catálogo. editor José Carlos Honório.
Entretanto a ordem da publicação foi
bem diferente: Verdes vales (2002), Bivar “JCH – Você escreve para quem?
na corte de Bloomsbury (2005), Longe Bivar – Escrevo primeiro para mim mesmo,
daqui (2006), Mundo adentro (2014), Aos para meu bel-prazer, digamos. E para os
quatro ventos (2016) e Perseverança (2019). outros, como quem escreve carta aberta aos
Podemos perceber um interesse crescente leitores. Tem quem goste. Também tenho
do autor por eles, depois de um intervalo tanta coisa para contar, só faltava não gos-
de oito anos entre o terceiro e o quarto. tarem. E sempre gostei de escrever cartas.
Um dia, quem sabe, os teremos na ordem Tenho um baú de cartas; são respostas às
cronológica dos fatos em um só volume. cartas que escrevi. Pena o correio ter ca-
Com bela aquarela do próprio autor na ído em desuso. O hábito de escrever cartas
capa, eis que Perseverança, o quinto vo- virou coisa do passado. Hoje é tudo on-
lume na cronologia (e o sexto editado), é -line. E-mail, whatsapp, twiter, messenger,
tão delicioso como os anteriores e também facebook, instagram. E tudo acaba no lixo
muito informativo, mas apresenta novida- virtual. E não adianta chorar sobre o leite
des no formato. Parte é na terceira pes- derramado. Rimbaud já mandava a gente
soa, parte na primeira, esta se desdobrando ser absolutamente moderno.”
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Maria Della Costa, Enio Gonçalves e Christine Nazareth na peça Alice, que delícia, 1987

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Aparentemente fácil, aparentemente fútil,


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mas não se enganem.


Em primeiro lugar, tire o eventual leitor
de sua cabecinha que vai encontrar con-
fissões sexuais, fofocas análogas, maldades
ofídicas e outras baixarias do mundo dos
famosos. Nada de sexo, o autor mantém sua
privacidade, não é da conta de ninguém.
E também a dos outros. Bivar é quase pu-
Rita Lee, Bivar, Sandro Polloni e Maria Della dico na sua escrita, embora as entrelinhas
Costa, em foto de Vania Toledo, 1987 sugiram, vez por outra, atividades mais pi-
carescas, geralmente de terceiros. Um livro
da maturidade, escrito aos 80 anos, sobre
Antonio Bivar escreve de um modo que fatos de quando o protagonista tinha metade
ele mesmo define como singelo. Isso sig- dessa idade, não é coisa que surja a toda
nifica fluência, discrição, elegância, leveza hora na nossa literatura vinda de alguém
e outras qualidades. No tempo do regime que não seja um retumbante medalhão.
militar, o dramaturgo Plínio Marcos defi- Aqui temos a surpreendente saga dos
niu seu (do Bivar) teatro como “sobremesa”, nove anos de gestação das quatro peças
enquanto o dele (Plínio) seria o “arroz e sobre a história do Brasil, escritas em coau-
feijão”. Ele adorou, com ironia. Realmente toria com Celso Luiz Paulini e inacabadas
seu texto é um biscoito fino para as massas. pela morte deste. As primeiras são Enfim,
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Ernani Moraes, Noemi Marinho e elenco do grupo


Tapa em As raposas do café, de Bivar e Celso Paulini, 1990

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rão de Charleston, organizada por eles e
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com a participação, entre outros, de Ha-


rold Pinter e Susan Sontag. Coisa séria.
Há também efemérides inesquecíveis.
A festa grã-fina da revista Around, em
que era um dos editores, anarquizada pe-
los punks seus amigos. Outra das melhores
foi conseguir convencer a dupla sertaneja
Antonio Bivar com o amigo Andrew Lovelock Leandro e Leonardo a cantar “Luar do ser-
tão” acompanhando a gravação de Mar-
lene Dietrich e diante de foto dela. Quem
o paraíso, Uma coroa nos trópicos e As não arrisca não petisca. Também merecem
raposas do café, e abrangem de 1500 a destaque sua amizade e colaboração com
1930. Fica evidente o apreço de Bivar por Rita Lee no rádio e na TV em programas
elas, que parecem interessantíssimas, porém muito bons e que infelizmente não circu-
quase inéditas, salvo a última. lam. Um cruzeiro no Caribe em navio no-
O Brasil é cruel. Outro momento alto é rueguês e seu jovem tripulante português,
o seu encontro em Nova York com o es- acompanhante profissional de passageiras
critor e dândi inglês Quentin Crisp (1908- solitárias. Temos ainda as esfuziantes Maria
1999), um descendente artístico de Oscar Della Costa e Eloina Ferraz. E sua mãe,
Wilde, cujo perfil é tão bem traçado em dona Guilhermina, é claro.
poucas páginas. Percebemos uma particu- Perseverança é tão interessante quanto
lar simpatia pela Inglaterra entre todas as os outros volumes, embora mais reflexivo
partes do mundo, o que nos leva ao pres- por abranger a época pós-desbunde. Uma
tigioso Grupo de Bloomsbury (Virginia de suas maiores qualidades é a total ausên-
Woolf, Maynard Keynes e outros), cujos cia de revanchismo e/ou autocomplacência.
descendentes meio que adotam Bivar em Hoje diverte, mas no futuro será sem dú-
1993, quando participou da Escola de Ve- vida um ótimo testemunho da nossa época.

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Europa Central Brasil Rural Balanço da Crise


95Desafios
105 115
Universidade Politicamente
Mundial do Pré-sal em Movimento Correto

Tecnologias 20 Anos de Cibercultura


96
Alcoolismo
106 116
Crise Hídrica Pós-Verdade
Redemocratização e Jornalismo

Aids Ano Internacional Música Brasileira


97
Computação
107 117
Saúde Urbana Copas do Mundo
da Física em Nuvem

Rumos da Ar/Fogo Humor na Mídia


98Memória
108 118
Jogos Olímpicos 100 anos de
Universidade Antonio Candido

Alternativas para Financiamento da Ciência, Tecnologia


99 109 119
Futebol Democracia na Direitos Humanos
o Século XXI Pesquisa no Brasil e Inovação América Latina

50
Revista Cinquenta Pensando o Futuro: Marketing Político
100 110 120
Educação Ética e Sociedade Religião e
Ciências Exatas Modernidade

Saúde Gestão e Política na Catástrofes


101 111
Justiça Brasileira Música Popular
121
Artes & Letras
Universidade Pública Brasileira na USP

Os Sertões: Bibliotecas Digitais/ Redes Sociais


102 112
Metrópoles Americanistas
122
Feminismos
Cem Anos Bibliotecas Virtuais

Revolução Virtual Nabuco


93
Caminhos do
103 113
Clima Amazônia Azul
123
Histórias Culturais
e a República Desenvolvimento Transatlânticas

Cosmologia Vinte Anos da


94
Semana de
104 114
Energia Elétrica Interculturalidades
Queda do Muro Arte Moderna

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