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Resumo: Tecnologias jurídicas disruptivas são capazes de otimizar rotinas de tribunais, escritórios de advocacia e departamentos
jurídicos. Inteligência Artificial, Jurimetria e Big Data promoverão mudanças inevitáveis e exigirão dos profissionais de carreiras
jurídicas verdadeira quebra de paradigmas. Esse meio, notável pela tradição, tem superado a resistência a tais mudanças e se
adequado às tecnologias disponíveis. Ao considerar suas potencialidades e os riscos provenientes de seus usos, depara-se com
questões éticas, discutidas e decididas pelo Poder Judiciário. O próprio futuro da advocacia se torna temerário diante da existência
de máquinas velozes e eficientes, capazes de executar com excelência as rotinas forenses. O artigo consiste em pesquisa qualitati-
va, com teor bibliográfico e documental, respaldada em doutrinas, artigos e sites governamentais, com a finalidade de evidenciar
a relação “Direito, Tecnologia e Disrupção”.
Palavras-chave: Inovações disruptivas. Questões éticas. Inteligência artificial. Jurimetria. Big data.
Abstract: Disruptive legal technologies are able to optimize the routines of courts, law firms and legal departments. Artificial In-
telligence, Jurimetrics and Big Data will promote inevitable changes and will require legal professionals to truly break paradigms.
This medium, notable for tradition, has overcome the resistance to such changes and is adapted to the available technologies.
When considering its potentialities and the risks arising from its uses, it is faced with ethical issues, discussed and decided by the
Judiciary. The own future of law becomes daring in the face of the existence of fast and efficient machines, capable of executing fo-
rensic routines with excellence. The article consists of qualitative research, with bibliographic and documentary content, supported
by government doctrines, articles and websites, to highlight the relationship “Law, Technology and Disruption”.
Keywords: Disruptive Innovations. Ethical Issues. Artificial Intelligence. Jurimetrics. Big data.
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Martins e Santos (2013), ao pesquisa- um sistema existente. Mais uma situação de
rem o questionamento “Podem as máquinas inovação disruptiva é a Netflix, inicialmente
pensar?”, afirmam que a resposta de Turing criada como empresa de remessa de DVDs
é positiva, as máquina podem vir a pensar, por correio, acabou por expulsar a Blockbus-
uma vez que não há objeções insuperáveis à ter do mercado concorrente e alterou para
reprodução artificial da inteligência huma- sempre o negócio de aluguel de vídeos.
na. Tal hipótese não é pacífica, aliás bastante
criticada no meio científico, pois não permi- Inovações disruptivas possuem pa-
te diferenciação entre “inteligência real” e drões que foram observados e enumerados
“inteligência simulada”, ou seja, entre “ser por Christensen (2013), com a finalidade de
inteligente” e “parecer inteligente”. Os resul- ajudar a prever os efeitos de inovação em
tados do teste possuem validade limitada, indústrias diversas, do segmento automo-
já que dependem também da “inteligência” bilístico, energia, cuidados com a saúde,
do interrogador, que é variável. Por último, entre outros. A princípio, atingem usuários
o teste não avalia efetivamente a “inteligên- que não têm outra alternativa, senão o uso
cia” de uma máquina, mas tão somente a da nova tecnologia, que, uma vez bem-su-
sua capacidade de parecer humana. cedida, melhora ao longo do tempo, até se
tornar boa o bastante para atender às ne-
Não será objetivo deste estudo abor- cessidades dos usuários tradicionais.
dar a capacidade de pensamento da má-
quina, mas as tecnologias nela inseridas no Samit (2019) alerta que o ritmo da dis-
sentido de melhorar sobremaneira o funcio- rupção cresce exponencialmente graças à
namento da justiça, nos tribunais, escritó- confluência de tecnologias disruptivas que
rios de advocacia e departamentos jurídicos alteram, de forma dinâmica, o modo de se
de empresas. trabalhar, comunicar, viajar, aprender e en-
velhecer. Cada negócio que passou pelo
processo da disrupção traz consigo uma
3 Tecnologias Disruptivas
oportunidade massiva em virtude de mu-
O Dicionário Houaiss da Língua Portu- danças criadas. A disrupção cria oportuni-
guesa (2009) classifica ‘disrupção’, do latim dades. No século XXI, indústrias tradicionais
‘disruptio’, como ‘fratura’, ‘ruptura’, ‘dirup- bilionárias podem sentir os seus efeitos e
ção’ ou ‘a interrupção do curso normal de serem surpreendidas praticamente da noite
um processo’. Em pesquisas, infere-se que para o dia. Nenhum setor de comércio ou de
o termo ‘disruptivo’ foi usado pela primei- governo está imune a essa ‘ameaça’.
ra vez pelo professor de Administração da
Charlene Li afirma que muitas em-
Harvard Business School, Clayton M. Chris-
presas consagradas têm a disrupção como
tensen (2018), para se referir às novas tec-
meta e dela esperam seu crescimento. Po-
nologias que substituem as anteriores. Tec-
rém, a disrupção não cria crescimento, mas
nologia disruptiva, ou inovação disruptiva, é
o crescimento, este sim, cria a disrupção. As-
um termo que descreve a inovação tecnoló-
sim, aponta a autora:
gica, produto ou serviço, com características
«disruptivas» que provocam uma ruptura Crescer sempre é difícil. Crescer de modo
com os padrões, modelos ou tecnologias já inovador é ainda mais. É disruptivo exata-
estabelecidas no mercado. mente por alterar o equilíbrio de poder das
relações estabelecidas – entre clientes e
Samit (2019) explica que, para ser dis- empresas, participantes do setor, pessoas
ruptiva, a tecnologia ou produto deve criar e departamentos de uma organização. O
uma base de consumo, ou de usuários, com- crescimento desafia nossa ligação como
pletamente novos, de modo que destrua fontes de receita e clientes comprovados,
ou desloque o mercado da tecnologia a ser ao mesmo tempo em que estimula nossas
ambições de descobrir clientes e fluxos de
substituída. São exemplos, o e-mail — cau-
receita novos. (LI, 2019)
sou a disrupção dos correios; a Wikipédia —
foi disruptiva com a tradicional enciclopédia À luz da conclusão de Charlene Li
de vários volumes. (2019), pode-se afirmar que mudanças de
poder são inquietantes, não apenas do pon-
Armstrong (2019) cita como estudo
to de vista empresarial, mas também psi-
de caso de inovação disruptiva a empresa
cológico. Exige, contudo, a não acomoda-
de serviços de transportes Uber que, ape-
ção com um presente já estruturado, mas
sar de ter desalojado vários serviços de táxi
a aceitação do compromisso de se buscar
enraizados mundo afora, não criou nada
sempre um futuro diferente e melhor.
novo, apenas rompeu com as práticas de
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napses das conexões neurais humanas. Ao tecnologias baseadas em IA produziu siste-
lidar com grande quantidade de dados (Big mas capazes de analisar documentos con-
Data), estruturados ou não, determinam-se tratuais, consultores jurídicos habilitados a
padrões e preveem eventos futuros desco- emitir pareceres e indicar resultados preci-
nhecidos, por meio de análise preditiva, que sos para processos, sistemas de previsão de
ajuda na identificação da probabilidade dos decisões judiciais que atingem índices de
resultados. Entre as técnicas de aprendiza- acertos em torno de 80% dos casos. Souza e
do de máquina destacam-se: Oliveira (2019, p. 73) reconhecem sua impor-
tância de auxiliar o “raciocínio casuístico, das
Machine Learning: é o chamado aprendi- construções teóricas e da dialética formal,
zado de máquina, que é tipo de aprendi-
melhorando a performance argumentativa,
zado em que o computador utiliza dados,
para aprender com apenas o mínimo de
associativa e discricionária de magistrados”.
programação. Em vez de programar os
O Supremo Tribunal Federal (STF),
preceitos e regras na máquina e esperar o
em parceria com a Universidade de Brasília
resultado, com machine learning, conse-
guimos deixar que a máquina aprenda por (UnB), desenvolveu o “Projeto Victor”. Trata-
conta própria a partir dos dados alimenta- -se de ferramenta auxiliar do Poder Judiciá-
dos, chegando ao resultado de forma au- rio, que utiliza técnicas de aprendizado de
tônoma, como, por exemplo, as recomen- máquina (machine learning) e análise de
dações personalizadas na Netflix e outros padrões (processamento de linguagem na-
sites de busca. tural – PNL) para sistemas de tribunais:
Deep Learning: é o que chamamos de
aprendizado profundo, pois utiliza algorít- VICTOR não se limitará ao seu objetivo ini-
mos complexos para imitar a rede neural cial. Como toda tecnologia, seu crescimen-
do cérebro e aprender uma área do conhe- to pode se tornar exponencial e já foram
cimento com pouca ou nenhuma supervi- colocadas em discussão diversas ideias
são. para a ampliação de suas habilidades. O
objetivo inicial é aumentar a velocidade de
Processamento de Linguagem Natural tramitação dos processos por meio da uti-
(PLN): utiliza técnicas de Machine Learning lização da tecnologia para auxiliar o traba-
com o objetivo de encontrar padrões e rea- lho do Supremo Tribunal. A máquina não
lizar análises preditivas, por meio de um decide, não julga, isso é atividade humana.
grande conjunto de dados e a partir disso Está sendo treinado para atuar em cama-
reconhecer o que seria uma linguagem das de organização dos processos para au-
natural, ou seja, que são naturais da comu- mentar a eficiência e velocidade de avalia-
nicação, tais como a interpretação de texto ção judicial. (STF, 2018)
e de sons. (COSTA, 2019 apud NORVIG e
RUSSEL, 2004). Igualmente, outros projetos que auxi-
liam o Poder Judiciário se destacam: “Pro-
Ao impactar o comportamento social,
gramas do CNJ, como o Processo Judicial
a IA promove ampla interação entre ho-
Eletrônico (PJe), o Sistema Eletrônico de
mem e máquina, o que coloca em discussão
Execução Unificado, o portal do Consumi-
a questão da sua singularidade. Doravante,
dor, a automatização de atos processuais
Silva (2019) propõe uma reflexão quanto à
nas execuções fiscais, o Laboratório de Ino-
autonomia da máquina em detrimento do
vação para o PJe e o Centro de Inteligência
ser humano, ou seria a IA, apenas grande
Artificial” (STF, 2018).
aliada para facilitação das atividades huma-
nas? Ainda nesse seguimento, outros ques- A IA trouxe benefícios, mas também
tionamentos são suscitados: introduziu riscos. Uma vez que superou o
homem em eficiência e velocidade de ra-
As tecnologias do futuro tomarão deci-
sões enviesadas? Os empregos humanos ciocínio, por isso, um questionamento vem
estão mesmo ameaçados pela automati- à tona: a capacidade de raciocínio inteligen-
zação inteligente? Um assistente jurídico te pela máquina deve ser limitada por meio
virtual poderia substituir um advogado? O de regulação?
carro autônomo poderá decidir entre pou-
par a integridade física do motorista em Polido (2019) entende que a tecnologia
detrimento da de outrem? Mais do que transita entre o rigor científico e a necessi-
respostas, estes são alguns dos eventuais dade de solucionar problemas técnicos. Difi-
fascínios e desilusões trazidos ao cotidiano culdades conceituais, políticas e regulatórias
humano por invenções pautadas em Inte- se deparam com as funções das instituições.
ligência Artificial. (SOUZA; OLIVEIRA, 2019, Peck e Rocha (2018) alertam que alguns paí-
p. 66). ses que adotam regulamentações específi-
cas de proteção de dados pessoais buscam
No Poder Judiciário, a utilização de
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Na realidade, os Estados comparti- namento jurídico vigente. Já as máquinas
lham, mas também concorrem com objeti- terão suas decisões intocadas, dada a falta
vos de alavancagem e desenvolvimento do de transparência sobre o que a motivou a
segmento de IA. As estratégias nacionais tomar esta ou aquela decisão. Mais uma si-
englobam parte de políticas públicas nos tuação para ratificar a importância de uma
ambientes domésticos, espécie de ‘corrida legislação específica que regulamente os
tecnológica’. Ao propor leis e regulamen- procedimentos de inteligência artificial.
tos nacionais, alternam entre a cautela e a
abstenção. Ademais, “a escolha política de 5.2 Jurimetria
como regular e qual o alcance pretendido
da regulação normativa em temas concer- A princípio, o homem buscava nas
nentes à tecnologia é inevitável.” (POLIDO, Ciências verdades absolutas, previsões ra-
2019, p. 200). cionais de eventos futuros, leis naturais, de-
terminísticas. Hoje, admite-se que o conhe-
O homem, criador da máquina, é pas- cimento é dinâmico, complexo, incompleto;
sível de erro. Se a falibilidade é inerente ao e, ao contrário de respostas certeiras, o ob-
homem, o mesmo ocorre com a máquina. jetivo dos pesquisadores é errar menos, va-
No que concerne a sistemas de IA, Stein lorizando os modelos probabilísticos. Nunes
(2019) destaca que a qualidade dos dados (2019) conclui que a comunidade científica
nos processos de aprendizagem (machine deixou de buscar a certeza e passou a bus-
learning e deep learning) é determinante car o controle da incerteza.
para sua transparência e para identificar
seus erros. A utilização de dados pautados Em 1899, nasceu na Dinamarca Alf
em critérios do pensamento preconceituo- Ross, filósofo e jurista, considerado criador
so dos seus criadores e treinadores fará com do realismo jurídico na Escandinávia. Hei-
que a máquina adote decisões preconcei- nen e Rodrigues (2016) explicam que Ross
tuosas. Essa condição denomina-se ‘viés era racionalista e não aceitava que as rela-
algorítmico’ e afeta sistemas e plataformas, ções de Direito pudessem ser explicadas por
em detrimento de destinatários finais, que meio da metafísica, mas sim de forma em-
são seres humanos. Um exemplo que ocor- pírica, pelo plano das experiências. As nor-
reu no sistema criminal americano: mas e os fenômenos jurídicos são dirigidos
a um juiz que as interpretará e as aplicará,
Nos EUA há o sistema COMPAS que é utili- com a finalidade de solucionar o caso con-
zado pelo sistema de justiça criminal para
creto. Ao entender que existe uma ideolo-
verificar o risco de reincidência dos acusa-
dos. Pesquisa encaminhada pela entidade
gia normativa que governa e motiva o juiz,
ProPública relevou que o sistema pen- é possível encontrar previsibilidade a partir
dia para classificar negros como maiores de seu comportamento verbal. E ao consta-
reincidente de crimes, do que brancos. A tar uma regra jurídica vigente, em determi-
questão que se coloca não se restringe a nado tempo histórico e espaço geografico,
um simples prognóstico equivocado, e sim implica prever que tal regra servirá de base
aponta para algo sério, potencialmente in- a futuras decisões jurídicas. Percebe-se aqui
justo e lesivo. É que as informações presta- uma ‘ideia’ do que viria a se tornar a Jurime-
das pelo sistema no sentido de classificar tria.
negros com maior propensão à reinci-
dência criminal sem critério definido, ba- Na segunda metade do século XIX,
seando-se exclusivamente na visão social métodos estatísticos passaram a ser utili-
deturpada dos seus criadores, acredite se zados, auxiliando os demais campos do co-
quiser, eram tomadas como relevantes à
nhecimento a controlar incertezas, mensu-
fixação da pena pelos magistrados.
rar variabilidades e a estudar não mais um
Estados como Arizona, Colorado, Delaware, único indivíduo, mas populações inteiras. A
Kentucky, Louisiana, Oklahoma, Virgínia, estatística, como metodologia de análise,
Washington e Wisconsin têm essa política afetou não apenas o meio científico, mas
criminal através do COMPAS. (STEIN, 2019). o artístico, econômico, social, estatal, entre
No Brasil, a situação supramenciona- outros. Nesse sentido, destaca-se:
da por Stein (2019) não é diferente em plata- Hoje, a estatística é um conjunto de mé-
formas de sistemas jurídicos. Mais um caso todos utilizado em praticamente todos os
a refletir quando se cogita dar às máquinas aspectos de nossas vidas, do público (rea-
a tão expressiva responsabilidade de julgar lização de pesquisas de opinião) ao priva-
seres humanos, notadamente na seara ju- do (exame de DNA); do governamental
rídica. Para o autor, os pronunciamentos (implementação de políticas públicas de
dos juízes são impugnáveis à luz do orde- vacinação) ao particular (desenvolvimento
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Em que pese sua importância como meristas na Justiça Estadual, estudar as
auxiliar de governos e dos operadores do características desses litigantes e de seus
Direito, apresenta sua face polêmica. Aná- litígios, avaliar os meios alternativos ao li-
lises preditivas podem levar um inocente à tígio e investigar como grandes empresas
do setor privado veem o problema das
prisão. A divulgação de dados estatísticos
ações consumeristas. (ABJ, 2020).
pode se deparar com a questão da proteção
de dados e do próprio Poder Judiciário. Ana- Justiça Pesquisa: realização de pesquisas
lisar e publicar dados que correm em segre- de interesse do Poder Judiciário brasileiro,
do de justiça pode ser necessário em uma por meio da contratação de instituições
pesquisa estatística. Uma forma de estraté- sem fins lucrativos, incumbidas estatu-
gia de litigância implica pesquisar o perfil tariamente da realização de pesquisas e
de atuação do magistrado, mas tal ato pode projetos de desenvolvimento institucional.
distorcer a atuação do advogado e até mes- (CNJ, 2020).
mo o funcionamento da justiça. Outra curiosidade remete à pesquisa
As situações supramencionadas ain- denominada “Estudiosos querem mapear
da não foram tipificadas, mas são passíveis o Direito”, na qual Magro (2011) refere-se
de discussão pelo Poder Judiciário. Em 23 ao aproveitamento de dados de pesquisa
de março de 2019, a Assembleia Nacional jurimétrica pelo Senado Federal para ela-
da França promulgou a Lei n. 2019-222, que boração de um ‘substitutivo’ ao projeto de
dispõe acerca da programação judiciária lei do novo Código de Processo Civil (CPC)
do país até o ano de 2022. O artigo 33 dessa que tramitava em 2011. O tema que concer-
lei estabelece que “dados disponibilizados ne à dissolução de sociedades ganhou um
a respeito da identidade dos magistrados dispositivo que elenca pontos a serem obri-
não podem ser utilizados para avaliar, ana- gatoriamente mencionados na sentença —
lisar, comparar ou prever as práticas reais entre eles, o método de avaliação das cotas
ou supostas destes profissionais.” (MAR- de quem deixa a sociedade. Já a Secretaria
SHALLOWITZ, 2019). de Assuntos Legislativos do Ministério da
Justiça, em projeto denominado “Pensando
Na Europa continental e, em países o Direito”, que financia pesquisas empíri-
anglo-saxões, segundo Leal (2013), a maioria cas em áreas como execução penal, crimes
das reformas legais de grande repercussão de cartel e reparação de danos no Judiciá-
é discutida com base em pesquisas estatís- rio, busca estudar, por meio de jurimetria,
ticas e estudos de impacto legislativo dos o comportamento dos juízes que decidem
fatos que se pretende regular. É feita análi- com respaldo na lei. Entender se foi possí-
se do perfil dos conflitos hiperregulados ou vel ou não alcançar o resultado almejado
hiporregulados, que auxilia os legisladores a e identificar os obstáculos tornará possível
promulgar diplomas legais que atendam às criar condições para a propositura de nor-
disputas judiciais. mas capazes de corrigir ou aperfeiçoar pro-
cedimentos.
No Brasil, a Jurimetria juntamente
com outras tecnologias são valorosos instru- O Direito deve se adaptar à sociedade
mentos utilizados pelos Poderes Legislativo e vice-versa. A necessidade de atualização
e Judiciário. O reconhecimento de seu po- e adequação constante encontra na Juri-
tencial como ferramenta para descrever ce- metria um instrumento de auxílio eficiente,
nários jurisprudenciais e ajudar na tomada que permite a padronização em aplicação
de decisões, desde a formulação de políticas de normas jurídicas a casos concretos. As-
públicas até a construção de estratégias pro- sim, confere maior celeridade, segurança ju-
cessuais, mostra-se frutífera. Coelho e Lima rídica e confiabilidade às decisões do Poder
(2012) mencionam o exemplo do Conselho Judiciário. “Quanto mais próximo o com-
Nacional de Justiça (CNJ), que criou progra- portamento das pessoas ficar do compor-
mas como o “Justiça em Números”, os “Cem tamento esperado, mais orgarnizada será a
Maiores Litigantes” e o “Justiça Pesquisa”. sociedade e mais bem sucedida será a lei.”
(NUNES, 2019, p. 111).
Justiça em Números: visa à ampliação do
processo de conhecimento do Poder Judi-
ciário por meio da coleta, da sistematiza- 5.3 Big Data Jurídico
ção de dados estatísticos e do cálculo de
indicadores capazes de retratar o desem-
Em argumentação anterior, restou pa-
penho dos tribunais. (CNJ, 2020). tente que a Inteligência Artificial e Jurime-
tria são ferramentas que lidam diretamente
Os Cem Maiores Litigantes: mapear quem com dados. A maneira pela qual dados bru-
são os maiores litigantes em ações consu-
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zar, modular e até determinar quem somos, A pesquisa denominada “Tecnologia,
sem que possamos opinar. Profissões e o Ensino Jurídico”, realizada
pelo Centro de Ensino e Pesquisa em Ino-
Uma vez criadas para solucionar “anti- vação – CEPI/FGV (2018), relata que os ope-
gos problemas” inerentes ao meio jurídico, radores do Direito já percebem o impacto
as ferramentas IA e Big Data criam ambien- de novas tecnologias. Em princípio, como
tes disruptivos. Para Lucena (2018), trata-se objeto de análise em demandas judiciais.
de uma nova maneira de trabalhar, de tratar Mas também, na esfera administrativa re-
de problemas. Cabe ao operador do Direito gulatória/sancionadora, com a incorporação
entender que, diante das novas tecnologias, no ordenamento jurídico de normas como
a defesa dos direitos fundamentais deve ser a Regulação da Internet (Lei n. 12.965/2014)
feita com prudência, considerando os novos , da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n.
direitos existentes e os que ainda surgirão, 13.709/2018) e da Internet das Coisas (Decre-
no passo da evolução humana. to n. 9.854, de 25 de junho de 2019 – Plano
Nacional da Internet das Coisas, lançado em
6 O advogado do futuro 2018 pelo Ministério da Ciência, Tecnologia,
Inovação e Comunicações). (BRASIL, 2014,
6.1 A automatização inteligente ameaça a 2018, 2019).
profissão de advogado?
A pesquisa citada vai de encontro às
A transformação pela tecnologia de
previsões mencionadas. Na seara jurídica é
rotinas realizadas por operadores do Direito,
admissível que atividades de menor com-
quais sejam, advogados, juízes, promotores,
plexidade, de caráter repetitivo e que não
entre outros, bem como de organizações,
exigem domínio profundo de conhecimen-
sejam essas escritórios, departamentos jurí-
tos jurídicos sejam desempenhadas pela
dicos, tribunais, entre outras repartições pú-
máquina. O colaborador da organização, no
blicas, divide opiniões quanto ao futuro da
entanto, poderá manter seu posto de traba-
profissão jurídica. A produção automatizada
lho se for capaz de desempenhar tarefas de
de documentos jurídicos (contratos, peti-
maior complexidade, ou que exija contato
ções, cartas e outros), as plataformas digitais
interpessoal. A mudança se dará no perfil de
de resolução de conflitos (ODR – Online Dis-
profissionais das organizações jurídicas, não
pute Resolution) e o uso de estatísticas para
nos postos de trabalho.
predição de decisões judiciais (Jurimetria)
são identificados como ameaças à profissão Profissionais no início de suas carreiras se-
do advogado. rão afetados não apenas pela mudança no
tipo de atividades que terão que realizar,
Para Souza e Oliveira (2019), a Inteli- mas também pelo conjunto de habilida-
gência Artificial proporciona velocidade e des que lhes serão exigidos. Nas respos-
eficiência ao setor produtivo, além de cria- tas coletadas fica claro o interesse pela
tividade, autonomia e melhoramento es- contratação de profissionais que estejam
pontâneo e contínuo de rotinas profissio- mais à vontade com o contexto tecnológi-
nais. Tais atributos ameaçam o emprego de co e compreendam que as suas atividades
dependem de ferramentas computacio-
trabalhadores pouco capacitados, visto que
nais para serem realizadas. Há inclusive
teriam dificuldades em se adaptar ao mer-
movimento de realocação interna em es-
cado que, certamente, demandará conheci- critórios e departamentos jurídicos de pro-
mento de sistemas inteligentes. fissionais que tiveram suas atividades im-
pactadas por ferramentas computacionais
Outro argumento favorável à redução [...] (CEPI/FGV, 2018).
da empregabilidade, não só na profissão do
advogado, mas em sentido mais amplo, foi A redução de postos de trabalho virá
assim abordado: acompanhada pela criação de novas fun-
ções em organizações jurídicas. Os profis-
(...) robôs e criações incorporadas com In-
sionais que ingressarão na carreira jurídica
teligência Artificial possuem vantagens
intrínsecas em detrimento da força de tra- deverão ter familiaridade com ferramentas
balho humana, uma vez que não dispõem tecnológicas. O domínio das tecnologias e
de direitos humanos a serem observados, dos sistemas utilizados pela organização
desconhecem limites físicos dos corpos jurídica à qual pertencem será valorizado,
biológicos, não cometem suicídio e sequer principalmente, se o profissional estiver
demandam salários e outros benefícios apto a desenvolvê-los ou auxiliar profissio-
pecuniários, revelando-se ótimos investi- nais de Tecnologia da Informação (TI).
mentos financeiros a longo prazo.” (SOU-
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