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EVOLUÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO POLIAFETIVA.

REGISTRO DE NASCIMENTO
HOMOPARENTAL E MULTIPARENTAL

Fernanda de Freitas Leitão*

Cumpre esclarecer, primeiramente, que este trabalho não teve o escopo


de se aprofundar em cada fase decorrida pelo nosso Direito de Família, mas,
tão somente, estabelecer de forma simples e cronológica toda a evolução por
nós vivida nos últimos anos.

Começarei falando sobre o conceito de família, partindo do Código Civil


de 1916, ou seja, do início do século XX. Esse Código, apesar de editado no
início do século XX, fora forjado em estudos e projetos de meados do século
XIX, com base numa sociedade patriarcal, patrimonialista, agrária e
extremamente conservadora.

Nesse período, somente a família decorrente do vínculo matrimonial


formal era considerada legítima, as demais uniões eram consideradas ilegítimas
e imorais, ficando totalmente desprovidas de proteção jurídica.

O casamento era indissolúvel, os filhos havidos fora do casamento eram


considerados ilegítimos, a chefia da sociedade conjugal cabia ao homem, e a
mulher casada era considerada relativamente incapaz (art. 6º, do CC, antes da
Lei nº 4.121/62).

Com o Código Eleitoral de 1932 surgiu um significativo avanço nos


direitos da mulher, esse Código permitiu o voto feminino a partir de 21 anos de
idade, tendo a Constituição de 1934 reduzido essa idade para 18 (dezoito)
anos.

Foi somente ao final dos anos 1940 que se observou uma tendência nos
tribunais da Capital Federal e de São Paulo ao reconhecimento do direito da
mulher a ser beneficiada com pensões relativas a seus companheiros, com os
quais tivessem formado família e mantido longa convivência marital.

Dessa forma, o instituto da união estável passou por quatro fases: a) 1ª


fase – negação dos direitos decorrentes do concubinato; b)2ª fase –
companheira fazia jus somente aos direitos previdenciários; c) 3ª fase – das
Súmulas 380 e 382, ambas do STF, equiparação à sociedade de fato; d) 4ª fase
– reconhecimento como entidade familiar.

*
Bacharel em Direito em 1991 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Exerceu a advocacia na iniciativa privada,
em seguida, admitida em concurso público, exerceu o cargo de Procuradora do Estado do Rio de Janeiro e, a partir de
1998, passou a atuar como quinta Tabeliã do 15º Ofício de Notas da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro.
Membro da UINL – União Internacional do Notariado Latino.
Em 1962 foi promulgada a Lei nº 4.121, que devolveu à mulher casada a
plena capacidade, dispensou a necessidade da autorização marital para o
trabalho e instituiu o bem reservado. Esse bem reservado era aquele
conquistado pela mulher casada, fruto do seu trabalho, que, por sua vez, não
respondia pelas dívidas do marido. Ressalte-se que o bem reservado, previsto
no Estatuto da Mulher Casada, não foi recepcionado pela Constituição da
República de 1988.

Mais adiante no tempo, no ano de 1964, foram editadas duas Súmulas, a


380 e a 382, ambas do STF, quando já era aceita a união estável entre homem
e mulher. De acordo com as supracitadas Súmulas, a união estável foi elevada
à esfera do Direito Obrigacional, criando, na jurisprudência, a teoria da
sociedade de fato e da proibição do enriquecimento sem causa.

Nessa esteira, comparava-se o concubinato às sociedades de fato do


Direito Comercial, eis que a sociedade que não realiza o seu registro funciona
de fato e não de direito, confundia-seaffectio societatis com affectio maritalis.

Além disso, as questões levadas ao Judiciário acerca dessas uniões eram


direcionadas para as Varas Cíveis.

E, para dificultar ainda mais a posição da companheira, os juízes


aplicavam, de acordo com o entendimento de cada um, a teoria da contribuição
direta ou indireta.

Em 1977 foi editada a Emenda Constitucional nº 9/77 – instituindo o


divórcio no Brasil, que causou na ocasião imensa polêmica e discussão. A
Constituição teve de ser alterada para que a Lei nº 6.515/77 fosse promulgada.

Com o advento da Lei nº 6.515/77, há a substituição da palavra


“desquite” (que quer dizer “não quites”, em débito para com a sociedade – que
rompia a sociedade conjugal, mas não dissolvia o casamento) pela expressão
“separação judicial”; a adoção do patronímico do marido passou a ser
facultativa, estendeu-se ao marido o direito a alimentos, e o regime da
comunhão parcial de bens passou a ser a regra geral.

A Lei nº 6.515/77 concedeu a possibilidade de um novo casamento, mas


somente por uma vez, sendo que essa determinação foi abolida pela Lei nº
7.841/89, possibilitando os divórcios sucessivos.

A Constituição da República de 1988, Carta Cidadã, provocou uma


profunda mudança de paradigma no Direito de Família. A instituição casamento
cede espaço ao afeto. O princípio da afetividade passa a figurar como pilar das
relações familiares, ao lado dos princípios da dignidade da pessoa humana e da
personalidade.
A Constituição da República fez com que passássemos de um modelo
hierárquico de família para um modelo democrático, da unicidade para a
pluralidade.

Além disso, a nossa Magna Carta estabeleceu a igualdade entre homem


e mulher (inciso I do art. 5º, §5º do art. 226, inc. IV do art. 2º), e a igualdade
entre os filhos (§6º doart. 227, arts. 1.596 e 1.834, ambos do Código Civil),
ampliando o conceito de família, que passou, como dito anteriormente, de um
modelo único e hierárquico para um modelo plural e aberto.

Em dezembro de 1994 foi editada a Lei nº 8.971, de 29/12/1994,


conferindo ao companheiro, ou à companheira, o direito a alimentos e à
sucessão; no entanto, estabeleceu no seu art. 1º a necessidade de
comprovação de 5 (cinco) anos de união ou da existência de prole da aludida
união, devendo o outro companheiro ser solteiro, separado, divorciado ou
viúvo.

Em maio de 1996 foi publicada a Lei nº 9.278, que estabeleceu o fim do


prazo de 5 (cinco) anos para comprovação da união estável, o fim da
obrigatoriedade de comprovação do estado civil do companheiro (ser solteiro,
desquitado, separado, divorciado ou viúvo), criou o direito real de habitação
para o companheiro ou para a companheira sobrevivente, determinou a
competência da Vara de Família para dirimir questões atinentes à união estável,
bem como estabeleceu a presunção legal de comunicação dos aquestos, em
relação aos bens adquiridos de forma onerosa, durante a união estável.

Vale lembrar que no ano de 2001, o INSS expediu a Instrução Normativa


nº 50, concedendo ao companheiro ou à companheira homossexual a
concessão da pensão por morte e o auxílio-reclusão.

No ano de 2002 nos deparamos com o Novo Código Civil, que, a meu
ver, provocou um enorme retrocesso em relação aos direitos dos companheiros,
ao não incluir o companheiro no rol dos herdeiros necessários, limitando o
direito sucessório, além de não conferir o direito real de habitação, distorção
corrigida pela Egrégia 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão da
lavra do Ministro Luis Felipe Salomão, no Resp. nº 132.993, quereconheceu e
devolveu ao companheiro o direito real de habitação.

Na contramão desse retrocesso, mais uma vez a Justiça brasileira, por


meio de uma corajosa decisão proferida pelo então juiz da 2ª Vara de Órfãos e
Sucessões, atualmente Desembargador da 25ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, Luiz Felipe Francisco, homologou acordo inédito ao
conceder à ex-companheira da cantora Cássia Eller, Maria Eugênia Vieira, a tutela
definitiva do menor Chicão, que estava sendo disputada pelo avô paterno, Altair
Eller.
No entanto, o fundamento daquele acordo, smj, para que a tutela fosse
concedida à ex-companheira da cantora Cássia Eller, foi a aplicação do princípio
do melhor interesse do menor, apesar de já ter sido introduzido no nosso mundo
jurídico, de forma ainda incipiente, desde o ano de 1992, o reconhecimento da
filiação socioafetiva, que, a meu ver, aplicar-se-ia de maneira muito mais
consentânea àquela situação.

Retornando ao nosso Código Civil, o §1º, do art. 1.723, estabelece, de


forma expressa e estreme de dúvidas, que a união estável poderá existir ainda
que o companheiro seja casado. Impõe, todavia, que o mencionado
companheiro esteja separado de fato.

Enfatize-se que o nosso direito rechaça veementemente as relações


concomitantes.

Para tanto, basta compulsarmos a vasta jurisprudência do STJ, que, por


sua vez, se fundamenta em julgado do STF, RE 397.762-8/BA, j. 03/06/2008,
que se baseou no art. 1.727, do nosso Código Civil.

Em relação ao divórcio e à separação, vale, igualmente, destacar a


edição da Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007, que permitiu a realização
desses atos pela via administrativa, desde que não haja interesse de menores
ou incapazes.

E, após a Emenda Constitucional nº 66/10, tornou-se desnecessária a


prévia separação judicial e o decurso do prazo de 2 (dois) anos para o divórcio
direto (o Novo CPC prevê expressamente a separação judicial – art. 693, pondo
fim a discussão se a separação judicial havia ou não sido abolida do nosso
sistema jurídico).

Outra importante evolução do nosso direito de família, desta vez, no


entanto, não decorrente de uma lei, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal
de maio de 2011, que reconheceu as uniões entre pessoas do mesmo sexo
como entidade familiar.

As uniões entre pessoas do mesmo sexo trilharam o mesmo caminho que


a união estável entre homem e mulher. A princípio houve a negação de
qualquer direito; passamos depois para uma segunda fase, em que somente
eram reconhecidos os direitos previdenciários; em seguida, essas uniões eram
tratadas pelo nosso Judiciário como sociedades de fato, a elas se aplicando o
princípio da vedação do enriquecimento sem causa, a Súmula nº 380, do STF e
com ações direcionadas às Varas Cíveis. Para finalmente, chegarmos à quarta e
última fase que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo
como entidade familiar.

A memorável decisão do STF, no julgamento da ADI nº 4.277 e na ADPC


nº 132, baseou-se nos seguintes princípios e fundamentos para reconhecer as
uniões entre pessoas do mesmo sexo, como união estável albergada pelo art.
226, da nossa Constituição da República.

a) proibição da discriminação (homem/mulher, orientação sexual);

b) direitos fundamentais do indivíduo, autonomia da vontade;

c) proibição do preconceito;

d) silêncio normativo – norma geral negativa – segundo o qual, o


que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está
juridicamente permitido;

e) princípio da dignidade da pessoa humana (direito à busca da


felicidade e direito à liberdade sexual);

f) interpretação não reducionista ou ortodoxa do conceito de


família;

g) interpretação do art. 1.723, do Código Civil, conforme a


Constituição da República.

Logo após a memorável decisão do STF, no dia 27 de junho de 2011, em


Jacareí, São Paulo, foi prolatada a sentença que converteu a união estável em
casamento, sendo este o primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo no
Brasil.

A mencionada sentença, proferida pelo douto Juiz da 2ª Vara de Família


de Jacareí, Fernando Henrique Pinto, valeu-se do seguinte raciocínio, se o STF
reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, como a união digna
de proteção do Estado; se a Constituição da República determina no seu § 3º,
do art. 226, que a lei deverá facilitar a conversão da união estável em
casamento, logo o casamento é consectário da união estável.

O silogismo foi inevitável.

Sem dúvida esse casamento causou um enorme frisson e resistência por


parte da nossa sociedade. Muitos se manifestaram: união estável tudo bem,
casamento já é demais!

A consequência disso tudo foi que alguns registradores, juízes e


promotores admitiam o casamento gay, outros não, gerando insegurança no
nosso sistema.

Em outubro de 2011, por ocasião do julgamento do REsp nº


1.183.378/RS, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua 4ª Turma,
considerou juridicamente possível o casamento entre duas mulheres do Rio
Grande do Sul que viviam em união estável há alguns anos.

Segundo o voto do Ministro Relator do caso, Luis F. Salomão: “a


igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito a
auto afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias.
Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é
garantido o direito à diferença”.

Não obstante, foi preciso que o CNJ interviesse, a meu ver, com a
necessária mão de ferro, nessa grande confusão para uniformizar os
entendimentos.

Nesse diapasão, o CNJ editou a Resolução nº 175, de 14 de maio de


2013, que diz o seguinte:

“Art. 1º - É vedada às autoridades competentes a recusa de


habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de
união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.”

Vale lembrarmos que não existe, até o presente momento, no Brasil,


uma lei que permita o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esse avanço
foi uma conquista do Poder Judiciário.

Só que os avanços não param por aqui!

Em agosto de 2012, foi noticiado na 1ª página do Jornal “O Globo”, que


a Tabeliã de Tupã, Claudia Domingues, lavrou uma escritura pública de união
poliafetiva, envolvendo um homem e duas mulheres.

Agora o frisson alcançava todos! Jovens, idosos, gays... Aí já é demais!

Por esse motivo, resolvi escrever um artigo sobre esse tema, com o
intuito de ser solidária com a minha colega de Tupã, que, pelo que soube,
estava sendo quase apedrejada!

O nome do artigo é União Poliafetiva. Por que não?

E eu lhes pergunto. Por que não? Já que estão presentes todos os


fundamentos e princípios da lendária decisão do STF. Vocês se lembram dos
fundamentos? Não é o AFETO o pilar do novo direito de família? O conceito de
família não é plural e aberto?

Então o que falta à união poliafetiva para que seja reconhecida como um
novo modelo de família? Já que ela ostenta todos os requisitos para que isso
ocorra, tais como partes capazes, relação pública, contínua e duradoura, com o
objetivo de constituir família e sem que haja qualquer impedimento legal,
previsto no art. 1.521, do Código Civil.
Entendo que o debate sobre a possibilidade ou não do reconhecimento
da união poliafetiva como um novo modelo de família reside fundamentalmente
na indagação se essas relações merecem o mesmo respeito e reconhecimento
que a sociedade outorga às demais uniões.

Ou seja, se essas uniões cumprem o propósito da instituição social do


casamento ou da união estável.

Melhor explicando, falta-lhes, nesse momento, RECONHECIMENTOSOCIAL.

Sem dúvida, nesse tipo de situação a questão moral e religiosa estará


implícita inevitavelmente.

E, na minha visão, não podemos impor a nossa moral a quem quer que
seja, mormente quando estamos na qualidade de um delegatário de um serviço
público.

O delegatário de um serviço público deve se restringir a dar forma legal


aos atos que lhes são submetidos, é o que determina o inciso II, do art. 6º, da
Lei nº 8.935/94.

Acredito que a grande dificuldade para que haja esse reconhecimento


social é que vivemos numa sociedade em que tanto o dever de fidelidade
presente no matrimônio (vide inciso I, do art. 1.566, do CC) quanto o dever de
lealdade da união estável (vide art. 1.724, do CC) têm ligação direta com o
princípio da monogamia.

Como já vimos anteriormente nesse trabalho, as uniões simultâneas são


fortemente rechaçadas pelo nosso ordenamento jurídico e tribunais.

Para muitos, a ruptura desses paradigmas é muito perigosa.

Outro ponto que entendo ser igualmente relevante para que essas
uniões poliafetivas não tenham maior visibilidade é o desconforto e o
constrangimento que, normalmente, as pessoas vivenciam quando assumem
esse tipo de relacionamento.

Lamentavelmente, hoje ao ler o jornal “O Globo”, deparei-me com o


renomado jurista Luiz Edson Fachin tendo que se defender das acusações de que
seria favorável à poligamia, perante o Senado, para que sua indicação a
ministro fosse aceita pelo STF.

Em que espécie de país nós vivemos onde um cidadão não pode


manifestar suas ideias? Será que retornamos à época de Galileu Galilei?

E caso ele seja realmente a favor da poligamia?


Esse fato o desmerece de alguma forma?

Agora, vamos falar de outra questão que, a meu ver, representa um


entrave ao reconhecimento da união poliafetiva, a questão financeira.

Pois alguém acreditaria que o INSS, a Receita Federal ou os planos de


saúde invocariam questões morais ou religiosas para negar o pagamento da
pensão previdenciária; negar a dedução de mais de um companheiro na
declaração de renda daquele contribuinte, que vive em regime de união
poliafetiva ou acrescer um dependente no seu plano de saúde?

Lembrem-se de que a Receita Federal somente admitiu a inclusão de


dependentes homoafetivos em 2010, por meio do Parecer PGFN nº 1.503.

Nessas três hipóteses, a questão, no meu entendimento, é puramente


financeira.

Prova disso é que, no ano de 2014, no apagar das luzes, foi publicada a
nefasta Medida Provisória nº 664, de 30/12/2014, convertida na Lei nº 13.135 de
17.06.2015, que, na minha ótica, ao arrepio da lei e representando inegável
retrocesso, determinou que o benefício da pensão por morte somente poderia
ser conferido após comprovação de 2 (dois) anos de casamento ou de união
estável.

Apenas a título de ilustração, entendo pertinente trazer à baila a


discussão que existe atualmente nos Estados Unidos da América do Norte,
sobre o reconhecimento ou não de determinados tipos de relações, que fogem
do modelo tradicional.

Nesse intuito, o analista político Michael Kinsley traz como solução


para essas tormentosas questões, que a ver dele trata-se de um conflito sem
perspectiva de solução, a ideia da “desestatização do casamento”, deixando,
portanto, de ser uma instituição sancionada pelo Estado.

Melhor explicando, o Estado não reconheceria nenhum tipo de


casamento ou união estável, deixando esse papel para as associações privadas.

Ainda segundo Kinsley, “se o casamento fosse uma questão apenas


privada” “todas as discussões sobre o casamento gay seriam irrelevantes”.

Entretanto, tanto os conservadores como os liberais não apoiaram a


proposta da “desestatização do casamento” de Kinsley, e, pela última notícia
que tivemos, apenas dois deputados do Congresso americano apoiam essa
ideia.
Agora, vamos enfrentar outra questão. O tabelião poderá lavrar uma escritura
de união poliafetiva?

A minha resposta é: claro que sim! Por que não poderia?

A escritura pública é um ato praticado perante o tabelião, que contém a


manifestação de vontade das partes em realizar um negócio jurídico ou declarar
uma situação juridicamente relevante.

Para que eu possa lavrar uma escritura, tenho que observar a “Escada
Ponteana”, ou seja, os requisitos de existência e validade, previstos no art. 104,
do nosso Código Civil.

Quanto à eficácia, o ato poderá ou não produzir efeitos.

Isso quer dizer que, uma vez lavrada a escritura de união poliafetiva,
esta poderá produzir ou não os efeitos pretendidos nos órgãos competentes.

Resumindo, o ato existe, é válido, porém ineficaz.

Aliás, o ato poderá ser ineficaz neste momento e não mais sê-lo num
futuro próximo.

Nós, tabeliães, praticamos inúmeros atos ineficazes no decorrer da nossa


vida profissional, como, por exemplo, o testamento, a venda de um bem
penhorado, a cessão de direitos hereditários, entre outros.

E, por fim, entendo e reitero que eu, na qualidade de delegatária de um


serviço público, tenho obrigação de atender ao público nas suas demandas,
observando-se única e exclusivamente a legalidade do ato a ser praticado.

Como diriam os administrativistas, eu tenho um poder-dever!

E quais os benefícios e a importância da realização dessa escritura neste


momento?

Entendo que os benefícios seriam os seguintes:

Sendo o notário dotado de fé pública, ele conferirá àquela escritura, a


condição de prova pré-constituída e todo o seu conteúdo é acatado como
verdadeiro, conferindo às partes maior segurança jurídica.

Além disso, podemos nessa escritura:

a) estabelecer direitos patrimoniais e pacto de convivência, se


for o caso;
b) determinar a data do início da relação, posto que, se
futuramente, esse tipo de relação for reconhecida, inúmeros
direitos já estariam naquele documento assegurados:
c) facilitar ao juiz, diante do caso concreto, o julgamento de
eventual lide;
d) pleitear pensão previdenciária;
e) pleitear admissão no plano de saúde;
f) pleitear que se faça declaração do IR conjunta junto à
Receita Federal.

Agora, gostaria que ficasse bem claro que a escritura pública de união
poliafetiva não tem o condão de transformar aquela união poliafetiva em união
estável, merecedora de proteção do Estado, nos moldes do art. 226, da
Constituição da República e do art. 1.723, do Código Civil.

A união existe independentemente da escritura, trata-se de uma


situação de fato preexistente que será ratificada em um documento público.
Quem dirá se esse tipo de relação merece ou não o status de união estável
digna de respeito, de reconhecimento e de proteção jurídica, será a própria
sociedade.

Poderá o tabelião lavrar escritura de instituição de bem de família, com


fundamento no art. 1.711, do Código Civil?

Nessa hipótese, entendo que não será possível, posto que, como
explanei anteriormente, na escritura declaratória, o tabelião simplesmente
ratificará por meio do instrumento público uma situação de fato preexistente,
não garantindo a eficácia do ato nos órgãos competentes.

Já, no caso da escritura de instituição de bem de família, o tabelião teria


que reconhecer a união entre três pessoas como entidade familiar, outorgando-
lhe eficácia, que a meu ver, escaparia da sua competência.

O Supremo Tribunal Federal (STF) fixou em julgamento ocorrido em


setembro de 2016, em ação com repercussão geral1, o entendimento de que
uma pessoa pode ter, em seu documento de identificação, o registro de seu pai
biológico e também o do pai socioafetivo.Na sessão, os ministros sustentaram
que "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não
impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na
origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".

1RE 898060 - RECURSO EXTRAORDINÁRIO (Segredo de Justiça)


FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO INDEPENDENTEMENTE DE AÇÃO
JUDICIAL. REGISTRO HOMOPARENTAL E MULTIPARENTAL.

Outra importante evolução do nosso direito de família diz respeito ao


reconhecimento da filiação socioafetiva.

Vale destacar que a filiação socioafetiva é modalidade de parentesco


recentemente introduzida no nosso ordenamento e nossa jurisprudência, pelo
jurista e atualmente ministro do STF, Luiz Edson Fachin, no ano de 1992.

A sua base jurídica está prevista no art. 1.593, do Código Civil (ver
também Enunciado nº 103 da CJF), que assim determina:

“O parentesco é natural ou civil, conforme resulte da


consanguinidade ou outra origem.”

Para Maria Berenice Dias, “o ponto essencial da relação de paternidade


não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho. Toda
paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou
não”.

O certo é que o reconhecimento da filiação socioafetiva e a sua


consequente equiparação ou mesmo superação em relação à filiação biológica
está ganhando cada dia mais adeptos nos nossos tribunais. Parece-me que esse
entendimento é um caminho irreversível.

Mas o que vamos discutir hoje é se é possível o reconhecimento da filiação


socioafetiva, independentemente de se recorrer à via judicial.

A resposta é sim!

Quanto aos filhos havidos na constância do casamento, presume-se a


filiação, art. 1.597, do Código Civil.

Para os filhos havidos fora do casamento, basta a declaração do pai


perante o registrador, para que seja averbada a paternidade no assento de
nascimento.

Ou seja, a lei não exige nenhuma outra prova, a não ser a declaração do
pai, para o reconhecimento da paternidade (§ 3º do art. 2º, da Lei nº
8.560/92).

Vale lembrar que a Lei nº 8.560/92 trata do reconhecimento de filhos


fora do casamento, sem discriminar o tipo de filiação: biológica ou socioafetiva.
Consequentemente, impedir o reconhecimento da filiação socioafetiva na
via administrativa seria uma inegável violação ao preceito constitucional
previsto no § 6º, do art. 227, da Constituição da República.

Os estados do Ceará, do Maranhão, de Pernambuco, de Santa Catarina e


Amazonas por meio das suas Corregedorias, editaram Provimentos (9, 21 e 15,
todos de 2013, e 11 e 234 de 2014) autorizando o reconhecimento da filiação
socioafetiva diretamente no Registro Civil competente.

Esses supracitados Provimentos se fundamentaram, basicamente, nos


seguintes argumentos:

a) CF ampliou o conceito de família, princípio da igualdade de


filiação, princípio da afetividade;
b) Instituto da paternidade socioafetiva tem a sua existência
ou coexistência reconhecidas no âmbito da realidade familiar;
c) Ausência de hierarquia entre filiação biológica e
socioafetiva;
d) Reconhecimento voluntário de paternidade deve ser
estendido às hipóteses de reconhecimento voluntário de
paternidade socioafetiva, princípio da igualdade jurídica (Lei nº
8.560/92);
e) A facilitação prevista no Provimento nº 12, que instituiu o
“Programa Pai Presente”, e os demais Provimentos de nºs 16 e 26,
do CNJ para o reconhecimento voluntário de paternidade biológica
devem ser aplicados no que forem compatíveis ao reconhecimento
voluntário da filiação socioafetiva;
f) Art. 10, inciso II, do Código Civil, registro público;
g) Enunciado Programático IBDFAM nº 06/2013, segundo o
qual “do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem
todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental”;
h) A existência de grande número de crianças e de adultos
sem paternidade registral estabelecida, embora tenham relação de
paternidade socioafetiva já consolidada;

FORMAS DO RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA PERANTE O TABELIÃO

Entendo que o reconhecimento da filiação socioafetiva poderá se efetivar


de duas formas: a) escritura declaratória de reconhecimento de filiação
socioafetiva; b) testamento (inc. III, do art. 1.609, do Código Civil).
Nas duas situações o reconhecimento será irrevogável, vide art. 1.610,
do Código Civil.

DO REGISTRO DE NASCIMENTO HOMOPARENTAL SEM INTERVENÇÃO JUDICIAL

Só que, mais uma vez, os avanços não param por aí.

Em julho de 2014, o Estado do Mato Grosso, de forma pioneira, por meio


da sua Corregedoria Geral de Justiça, publicou o Provimento nº 54, que
possibilitou o registro de nascimento homoparental, sem a necessidade da
intervenção judicial.

Logo após, em São Paulo, ainda no ano de 2014, a CGJ paulista, por
meio do Parecer 321/2014-E, de 22 de outubro de 2014, da lavra do ilustre juiz
assessor Gustavo Henrique Bretas Marzagão, igualmente permitiu o registro da
filiação homoparental perante o Registrador Civil diretamente, sem ter que se
recorrer à via judicial.

Em seguida, no mês de novembro, o Estado da Bahia, publicou o


Provimento Conjunto nº CGJ/CCI nº 008/2014, autorizando, também, o registro
homoparental diretamente no Registro Civil.

A discussão sobre a possibilidade de registro homoparental teve fim com


a publicação do Provimento nº 52 do CNJ.

DO REGISTRO HOMOPARENTAL E DOS FILHOS HAVIDOS POR REPRODUÇÃO ASSISTIDA


SEM INTERVENÇÃO JUDICIAL - PROVIMENTO CNJ Nº 52/2016

O CNJ, recentemente, em março de 2016, publicou o Provimento nº 52,


que regulamenta a emissão de certidão de nascimento dos filhos, cujos pais
optaram pela fertilização in vitro ou pela gestação por substituição, mais
conhecida como barriga de aluguel, tornando mais simples o registro de
crianças geradas por técnicas de reprodução assistida.

Até então, esse registro só era efetivado por meio de decisão judicial,
com exceção dos Estados do Mato Grosso, São Paulo e Bahia (no que tange ao
registro homoparental), já que não havia regras específicas para esses tipos de
casos.

Vale ressaltar, que o CNJ além de uniformizar as regras para a efetivação


do registro homoparental e da reprodução assistida, advertiu os oficiais de
Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN), que, caso viessem a recusar esses
pedidos seriam submetidos a processo disciplinar perante a Corregedoria dos
Tribunais de Justiça nos estados.
Merece destaque, ainda, a Resolução nº2.013/13, do CFM - Conselho
Federal de Medicina, segundo a qual a cessão temporária do útero não deve ter
finalidade lucrativa ou comercial e, ainda, que as doadoras temporárias devem
pertencer à família de um dos parceiros num parentesco consanguíneo até o
quarto grau, respeitando-se a idade limite de até 50 anos.

A MULTIPARENTALIDADE

Conforme podemos verificar, a coexistência da filiação biológica e da


socioafetiva é uma realidade, já exarada em diversas decisões judiciais, em que
foram realizados registros de nascimento apresentando duas mães e um pai ou
dois pais e uma mãe.

Sendo que o primeiro reconhecimento multiparental se deu no ano de


2012, em Rondônia.

Aproveito para reproduzir os dizeres da juíza Alda Maria Holanda Leite, da


3ª Vara de Infância e Juventude de Fortaleza, que assim se manifestou diante
de um pedido de registro de nascimento multiparental:

“Não se trata evidentemente de criar situações jurídicas


inovadoras, fora da abrangência dos princípios constitucionais e
legais. Trata-se de um fenômeno de nossos tempos, da
pluralidade de modelos familiares, das famílias reconstituídas, o
que precisa ser enfrentado, cedo ou tarde, também pelo Direito.”

Em junho de 2016, o juiz Márcio Quintes Gonçalves, da 4ª Vara de


Família do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, homologou o acordo feito por
duas mulheres e um homem em Ação de Divórcio Consensual cumulada com
Declaratória de Multiparentalidade. As mulheres estavam separadas de fato
desde fevereiro de 2015 e buscavam formalizar o divórcio e regularizar o
registro de nascimento do filho, que possui uma família formada por duas mães
e um pai. No acordo, foi reconhecida a filiação socioafetiva e confirmada a
guarda compartilhada.

O juiz afirmou que “sendo omisso o ordenamento jurídico, deve o juiz


decidir recorrendo à aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais
de direito” e destacou na sentença, a lição de Cristiano Chaves de Farias e
Nelson Rosenvald, diretores do Instituto Brasileiro de Direito de Família,
segundo a qual, “os valores do Direito não são criados abstratamente,
representam a expressão da vontade social. Logo, o Direito não está à
disposição de conceitos eternos, imutáveis. Ao revés, tem de se adaptar aos
avanços da sociedade”.

MUDANÇA NO MODELO DE CERTIDÃO DE NASCIMENTO

O CNJ, por meio dos Provimentos de nºs 2 e 3, de 27/04/2009 e


17/11/2009, respectivamente, procurou adequar a certidão de nascimento à
nova realidade da sociedade brasileira, visando esse objetivo, aboliu expressões
que, indubitavelmente, restringiam essa evolução ou representavam algum tipo
de discriminação.

Na minha ótica, as alterações mais expressivas são aquelas que


determinam a substituição das palavras “pai e mãe” para filiação, substituindo,
igualmente, os termos “avós maternos e paternos”, para simplesmente avós, bem
como a supressão da referência à cor do filho.

CONCLUSÃO

Agora, voltando ao assunto da união poliafetiva. Dentro dessa nova


realidade em que estamos vivendo, em que cada dia que se passa há o maior
reconhecimento da filiação socioafetiva, do registro homoparental diretamente
no Registro Civil, do registro multiparental, não vejo por que criarmos tanta
dificuldade em aceitar esse novo formato de família.

Qual seria a novidade? Ou melhor, qual seria a dificuldade?

Enfim, espero que essas atuais discussões sobre o reconhecimento ou


não da união poliafetiva, do registro homoparental (essa discussão teve fim
após a publicação do Provimento nº 52, do CNJ), do registro multiparental,
fiquem em pouco tempo obsoletas e, definitivamente, sedimentadas na estrada
do tempo, tal qual ocorreu com o divórcio, a chefia da sociedade conjugal, o
voto feminino, a própria discussão sobre a tutela do filho de Cássia Eller, entre
outras.

E que efetivamente possamos ser uma sociedade livre, justa e solidária,


que promova o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação e que sejamos todos felizes.

Pois a felicidade é, indubitavelmente, o maior bem perseguido por todos


nós seres humanos!

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