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Darwin

Impactos
no conhecimento
e na cultura
FOTOS WIKIMEDIA COMMONS

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Entendendo Darwin
Mário de Pinna*

E
m 2009 celebramos 150 anos da publicação de A origem São as próprias características
das espécies, assim como os 200 anos do nascimento de seu dos organismos que evidenciam
autor, Charles Darwin. Todos já ouviram falar do nome de tal organização. Isso ocorre por-
Darwin, um dos cientistas mais biografados de toda a história. que as características dos seres
Até crianças são capazes de identificar a figura do ancião bar- vivos não estão distribuídas de
budo de olhar triste. Suas ideias, porém, permanecem menos forma aleatória, mas sim em um
conhecidas pelo público que o personagem. Esta situação é esquema claramente hierarqui-
indesejável, pois evolução biológica não é assunto de interesse zado. O sistema classificatório
apenas para especialistas. Pelo contrário, é talvez o tema cien- de Lineu, já bastante sofisticado
tífico que tenha maior importância para cidadãos de um modo e de cunho sintético, precede a
geral. Através do entendimento da evolução, podemos entender publicação da Origem em quase
o que é a vida, nosso papel e posição no mundo. exatamente cem anos. Quando
Darwin entendeu que a vida em nosso planeta está unida Darwin desenvolveu suas ideias,
por uma rede de relações genealógicas, criada por um processo portanto, alguns grandes padrões
de descendência com modificação. Assim, todos os seres vivos de classificação orgânica já esta-
são relacionados por descendência comum, em graus variados vam bem reconhecidos. O sinal
de parentesco. A diversidade da vida é uma função do tempo: os evidenciando tais padrões já era
seres vivos são diversos porque se tornaram diversos ao longo do tão claro que era reconhecido
tempo, e não porque foram criados diversos. É inegável mérito como um padrão da natureza, e
de Darwin ter conseguido reunir evidências além de qualquer não como um artifício humano.
dúvida demonstrando a realidade da evolução da vida. Isso o Grupos de organismos não são
distingue de vários notáveis predecessores que flertaram com inventados – eles são descobertos.
a ideia de evolução antes dele. Mas Darwin foi além. Também Darwin, que já tinha experiência
idealizou um mecanismo através do qual a evolução opera: de primeira mão com a taxono-
seleção natural. A ideia de que complexidade e design possam mia (estudo das classificações),
se formar por processos puramente naturais, sem planejamento, entendeu que uma tal organiza-
é o cerne da seleção natural. A ideia vai contra nossas percep- ção não poderia ser desprovida
ções triviais de como o mundo opera. Não por outra razão, de significado em sua teoria. Pa-
sua concepção demorou mais que todo o desenvolvimento da ra ele esta hierarquia certamente
física clássica. Mas esta força, sutil no campo das ideias, é po- significava algo, mas não rela-
derosa no mundo real e construiu a diversidade da vida que cionado à criação divina, e sim
conhecemos. Ela atua constantemente, em todas as espécies, ao processo de diversificação e
sem necessidade de uma força motriz externa ou implemen- ramificação da vida – resultado
tação consciente. Tanto em bactérias que se apressam em três do processo evolutivo. Imediata-
gerações por hora, como em sequoias que podem consumir mente, identificou uma tremenda
mais de mil anos entre uma geração e outra. Somente uma concordância entre os padrões
força tão generalizada, incansável e onipresente pode explicar o de classificações de seres vivos
refinamento extraordinário dos seres vivos em todos os níveis, e a evolução: os padrões eram o
onde quer que existam. É assim em nosso planeta e assim será resultado da história evolutiva.
em qualquer outro em que haja vida. Aliás, a importância dos padrões
A ideia de árvore da vida sempre atraiu a atenção dos pensa- filogenéticos para sua teoria era
dores. Muito antes do advento da evolução, já havia o reconhe- tamanha que um diagrama filo-
cimento de que a diversidade de seres vivos pode ser organizada genético é a única ilustração da
de forma hierárquica, como um vasto sistema de grupos dentro Origem das espécies.
de grupos. Isso é o que permite a classificação biológica. Mais Hoje o estudo das relações de
importante: o reconhecimento destes grupos não é arbitrário. parentesco entre os seres vivos

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constitui uma subdisciplina biológica chamada recons- os multifacetados caminhos da seleção natural na infeliz
trução filogenética, atualmente uma área particularmente colocação “sobrevivência do mais forte” é erro grosseiro.
dinâmica da biologia evolutiva. As ideias sobre parentesco No mundo seletivo real, os favorecidos frequentemente
são expressas em diagramas ramificados chamados clado- estão entre os mais “fracos”. De grande sutileza foi a sub-
gramas, ou árvores filogenéticas. A estrutura filogenética sequente concepção por Darwin de seleção sexual, capaz
é a pedra fundamental no entendimento da evolução. de explicar vários fenômenos do mundo vivo que simples
Ela nos permite compreender a ubiquidade da evolução seleção natural não poderia. A aceitação desta outra força
na estrutura da vida na Terra. Não existem organismos evolutiva foi demorada na comunidade científica. Pode-
mais ou menos evoluídos. A linhagem que chegou até nós -se especular quanto tempo teria se passado até a ideia
tem exatamente o mesmo tempo de evolução que a que de seleção sexual ser concebida por outro pensador, caso
gerou as bactérias em nosso intestino. Apenas ocorre que Darwin não o tivesse realizado.
algumas linhagens divergiram mais, outras menos. Umas Mesmo quando não evidentes, as forças que mol-
se tornaram mais complexas ou maiores, outras trilharam dam sistemas biológicos são incansáveis, ainda que sem
caminhos diferentes. Mas todas são produtos igualmente provocar mudança aparente. Sistemas com alto grau de
refinados pelos mesmos bilhões de anos de evolução. complexidade invariavelmente tendem à desorganização,
Este panorama é mais válido que nunca hoje, quando a menos que haja forças continuamente reparando os
se sabe que a mesma ordem hierárquica detectada já há defeitos e corrigindo os desvios. Isso ocorre especialmente
séculos na morfologia dos organismos também ocorre em quando estes sistemas produzem cópias de si mesmos, ou
outros planos, como sua estrutura de DNA, sua fisiologia, se reproduzem, como sistemas biológicos. Para manter o
seu comportamento e onde quer que se tenha investiga- nível de organização dos sistemas orgânicos, mecanismos
do. Esta ordem é resultado da história evolutiva. Seja ela ativos são necessários. Estes mecanismos nada mais são
na forma de uma árvore ou de uma teia, os métodos de que as mesmas forças clássicas da evolução. A seleção na-
análise filogenética já dispõem do arsenal necessário para tural atua constantemente na manutenção da organização
desvendar esta história. dos seres vivos ao longo do tempo, não somente na sua
Mas igualmente importante na contribuição de Dar- mudança. Ao contrário do que poderia se pensar, a própria
win foi a proposta de um mecanismo operacional que existência continuada dos seres vivos é evidência de for-
estaria por trás de alguns grandes padrões da história dos ças evolutivas em ação. A atuação da seleção é necessária
seres vivos. A seleção natural é uma ideia simples, de na- não apenas para construir complexidade biológica, mas
tureza algorítmica. Mas simplicidade não implica super- também para mantê-la.
ficialidade. A seleção natural é uma força profundamente A evolução rege todas as dimensões do universo vivo.
poderosa, tendo moldado a vida como a conhecemos. A É impossível entender qualquer fenômeno da vida sem a
compreensão que Darwin teve do assunto é de abrangência perspectiva evolutiva. Nós, como parte da grande teia da
surpreendente, considerando o quase nada que se sabia evolução, não somos exceção, nem no passado e nem hoje.
de genética na sua época. Darwin entendeu que a seleção O entendimento de nossa própria espécie, da natureza
natural não deve ser entendida como um processo abso- humana, passa pelo caminho da compreensão de nossa
luto ou invariante. Adaptação e reprodução diferencial evolução biológica. Devemos isso a Darwin. Pelo mesmo
são contexto-dependentes, de forma que as circunstâncias caminho devem passar nossos esforços para a construção
ambientais determinam quais variantes são favoráveis (e de uma moral e ética construtivas, tanto para nós mesmos
portanto positivamente selecionadas) e quais são desfavo- como para o planeta.
ráveis (e portanto negativamente selecionadas). Como o
ambiente muda, também pode mudar a direção de seleção.
Características favoráveis aos indivíduos em uma situação * Mário de Pinna é biólogo evolutivo, com especialidade em
podem ser desfavoráveis em outra e vice-versa. Hoje mui- zoologia. É atualmente professor titular e vice-diretor do Museu
tos fatos biológicos aparentemente contraditórios com a de Zoologia da USP, sendo também pesquisador associado
lógica de seleção são perfeitamente compreendidos, como do American Museum of Natural History e da Smithsonian
o comportamento altruísta, socialidade etc. Enquadrar Institution.

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Darwin e uma nova visão de ciência
Anna Carolina Regner*

origem das espécies, cuja primeira edição aparece em 1859,1 teve

A um impacto não somente no estudo da história natural e nas


disciplinas do que hoje chamamos de ciências biológicas, mas
no nosso próprio modo de ver e conceber a atividade científica. Na
Inglaterra, a história natural que Darwin encontrou confundia-se
com uma “teologia natural”, quando os naturalistas (muitas vezes
pacatos párocos) tomavam a aparente perfeição de adaptações e
coadaptações como evidências de desígnio divino, enfatizando a
harmonia de toda a natureza. O pano de fundo das indagações vinha
marcado por grandes polêmicas, a respeito das quais o pensamento
de Charles Darwin será decisivo. No plano dos debates geológicos
e paleontológicos, a grande polêmica era a do “catastrofismo versus
uniformitarismo”. Os uniformitaristas defendiam um “gradualis-
mo”, a ocorrência de mudanças lentas e graduais, segundo uma
uniformidade na operação das leis da natureza pela ação, através do
tempo, de causas observáveis e ainda hoje responsáveis pelo curso
fenomênico, sem recorrer a eventos incomuns ou poderes extraor-
dinários para explicá-las. Os catastrofistas admitiam a ocorrência de
catástrofes, cataclismos, que alteravam radicalmente a face da Terra
e suas condições de vida e requeriam a intervenção restauradora de
uma força extraordinária. Tal atitude casava perfeitamente com a
visão “criacionista”, no que tange à origem das espécies. A respeito
dessa última questão, a grande polêmica foi a do “criacionismo
versus evolucionismo”, exibindo fortes tons locais, marcados, na
Inglaterra, pela influência da “teologia natural”. Ambos os termos
sofreram diferentes determinações. No que concerne ao “evolucio-
nismo”, as diferenças foram, sobretudo, referentes ao mecanismo
da mudança. Quanto ao “criacionismo”, o termo comportou di-
ferentes níveis de comprometimento com a ideia de intervenção
divina para a explicação dos fenômenos naturais. O criacionismo
contra o qual Darwin claramente se coloca tem um sentido bem
técnico: trata-se da visão de que cada espécie seja fruto de um ato
especial de criação.
A grande contribuição de Darwin à questão da origem das espé-
cies foi o mecanismo de sua teoria da seleção natural (da preservação
e acúmulo na direção requerida das variações úteis a seu portador e
a eliminação das injuriosas), pela qual se dá a produção de novas e
“mais aperfeiçoadas” formas orgânicas. Darwin, em sua Introdução
à Origem, disse que à defesa do evolucionismo não basta admitir
a evolução sem mostrar seu mecanismo. (Por isso, em Darwin, é
discutível distinguir-se uma teoria da evolução de sua teoria da
seleção natural.) Esse novo modo de ver a questão-chave da Origem

1. Aqui serão utilizadas referências da 6ª edição inglesa (1872), a última revisada pelo
próprio Darwin (The origin of species by means of natural selection, or the preservation
of favoured races in the struggle for life. London: John Murray, 1872).

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refletirá decisivamente na pesquisa das várias áreas da da sua tarefa explicativa, Darwin está atento ao fato
história natural, com vários departamentos novos sendo de que “explicar” sempre depende de uma determi-
criados e reorganizados: nada visão teórica ou suposição e, em particular, da
comparação de visões diferentes, sobretudo em casos
“Quando as visões desenvolvidas por mim neste como o seu, quando, segundo suas palavras, não há um
volume e por Mr. Wallace, ou quando visões análogas único dos fatos arrolados que não possa ser visto de
sobre a origem das espécies forem geralmente admi- uma maneira diferente da sua. Comparar a acuidade e
tidas, podemos divisar que haverá uma considerável maior alcance de sua visão com a visão adversária será
revolução na história natural”. (1872, p. 425). uma das estratégias básicas de Darwin ao construir e
“Os outros e mais gerais departamentos da his- defender a sua própria teoria. Um resultado importante
tória natural crescerão em interesse enormemente. dessa estratégia é que “explicar” resulta em apresentar a
Os termos usados pelos naturalistas de afinidade, melhor alternativa explicativa possível – que acontece
relação, comunidade de tipo, paternidade, morfo- ser a teoria darwiniana – e que, mais adiante, se torna
logia, caracteres adaptativos, rudimentares e órgãos a única explicação (racional) possível. Ao comparar
abortados etc. cessarão de ser metafóricos e terão a sua teoria com a de seus oponentes, por meio da
plena significação. Quando não mais olharmos a resposta a objeções, Darwin normalmente faz uso de
um ser orgânico como um selvagem olha a um na- vários procedimentos reconhecidos como “científicos”:
vio, como algo totalmente fora de sua compreensão; observação sistemática, experimento, subsunção de
quando considerarmos cada produção da natureza fatos sob regras, estudo de casos exemplares, classifi-
como uma que teve uma longa história; quando cação, uso de diagramas, ilustrações, discussões, tábuas
contemplarmos cada estrutura complexa e instinto comparativas e analogias. Alguns outros procedimentos
como o somatório de muitas engenhosidades, ca- são bastante inovadores, como a rede de informações
da uma útil a seu possuidor, do mesmo modo que que criou em sua correspondência, o tratamento de
qualquer grande invenção mecânica é o somatório dificuldades e objeções à teoria, o jogo do atual (o que
do trabalho, experiência, razão e mesmo dos erros está dado) e do possível (do que pode ser dado, sem
de numerosos trabalhadores; quando assim virmos impossibilidade lógica ou fática) ao explicar e avaliar os
cada ser orgânico, quão mais interessante – falo de méritos de nossas explicações, sua solicitação de que seja
minha própria experiência – torna-se o estudo da considerado o poder explicativo da teoria “como um
história natural! todo”, o uso que ele faz de imaginação, metáforas, e seus
Um grande e quase impenetrado campo de in- apelos ao poder explicativo como um todo, à extensão
vestigação será aberto sobre as causas e leis da varia- de nossa ignorância apesar de nossos esforços, à auto-
ção, sobre correlação [...] O estudo das produções ridade da comunidade científica, seus valores e ideais,
domésticas aumentará de valor imensamente.” [...] às condições psicológicas de investigação científica e
– grifo nosso (1872, p. 426) ao avanço da pesquisa que uma teoria permita. Tais
procedimentos “inovadores” encontram eco em muitas
Além de responder à questão da evolução e respon- das recentes análises da atividade científica, que ressal-
der às objeções que lhe eram levantadas, o trabalho tam seja as relações entre teoria e “modelos”, atentas às
de Darwin trouxe-nos, entre outras mudanças, uma complexidades das relações entre a unidade teórica e
nova visão de padrões de procedimentos científicos. a testabilidade empírica, seja o papel substantivo das
A relação da “explicação” darwiniana com os crité- estratégias argumentativas.
rios e procedimentos “científicos” de sua época é tão
rica, multifacética e, por vezes, tão ambígua quanto
tais padrões de cientificidade o são. Mas as conotações * Anna Carolina Krebs Pereira Regner é professora
que Darwin empresta ao que seja a tarefa explicativa e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Filoso-
representam um dos mais fortes indicadores de sua fia da Unisinos, Rio Grande do Sul, com vários trabalhos
presente contemporaneidade. Em todos os momentos publicados sobre a teoria darwiniana.

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Darwinismo cerebral
Alysson R. Muotri*

A
credita-se que a complexidade do cérebro humano, ideia de que essas sequências
com milhares de tipos de neurônios diferentes, tenha seriam resquícios evolutivos,
permitido o surgimento de sofisticados repertórios acumulados ao longo de mi-
comportamentais, como a linguagem, uso de ferramentas, lhares de anos no genoma.
percepção do “eu”, pensamento simbólico, aprendizado Como uma garagem cheia de
cultural e consciência. Dessa complexidade emergiram tranqueira, o genoma parece
obras de extraordinário conteúdo tecnológico e artísti- lidar muito bem com o exces-
co numa, relativamente curta, história cultural de nossa so de sequências, mas parece
espécie. Isso parece indicar que a complexidade cerebral difícil compreender por que
tem um propósito criativo, ao contrário de outros siste- não se livra dele, economi-
mas amplamente mais complexos porém brutos, como as zando energia celular. Parte
galáxias e os milhares de estrelas que as compõem. Enten- desse DNA-lixo é composta
der como a complexidade neuronal é moldada durante o de elementos transponíveis,
desenvolvimento é mergulhar em questões fundamentais ou genes-saltadores, capazes
da origem da nossa espécie. de produzir cópias de si pró-
A formação do cérebro humano não é um processo prios, inserindo novas cópias
otimizado. Pelo contrário, a maioria das células gera- no genoma e, eventualmente,
das será descartada e apenas uma pequena fração será alterando a expressão de genes
usada. O mecanismo por trás dessa seleção é obscuro e próximos. A atividade desses
existem evidências sugerindo que fatores extrínsecos e elementos foi flagrada durante
intrínsecos contribuam para a sobrevivência ou morte a evolução e esses parasitas ge-
celular. Apenas as células precursoras com as proprie- nômicos ficaram conhecidos
dades corretas, no momento e local ideais, irão florescer como genes-egoístas, com a
e amadurecer em neurônios funcionais, contribuindo única finalidade de se man-
para a formação das redes nervosas. Nessa competição, terem vivos para as próximas
forças de variação e seleção atuam para esculpir cada gerações através da replica-
cérebro humano, cada rede neural, neurônio por neu- ção em células germinativas
rônio, gerando a verdadeira individualidade na forma dos indivíduos. A replicação
como cada um de nós recebe, processa e interage com em células não germinativas,
o mundo exterior. somáticas, que não formarão
Vale lembrar que a seleção natural precisa de varia- um novo indivíduo, não seria
ção para gerar os diferentes tipos neuronais no cérebro. uma estratégia de sobrevivên-
Inicialmente, cogitou-se que a variação estaria contida cia, pelo menos até agora...
nos genes codificantes para proteínas. No entanto, com Em 2003, durante meu pe-
o sequenciamento do genoma humano, ficou claro que ríodo de pós-doutoramento
a quantidade de genes não seria suficiente para justifi- no Instituto Salk de pesqui-
car tamanha complexidade neuronal. Com menos de sas na Califórnia, fizemos
2% de genes codificantes para proteínas no genoma, uma curiosa observação. Es-
fica difícil gerar informação suficiente para os milha- tudando como os genes eram
res de tipos celulares contidos no cérebro humano. regulados durante a especia-
Mesmo considerando eventos moleculares como o lização neuronal a partir de
processamento alternativo do RNA ou modificações células-tronco, notamos que
pós-traducionais, não existe variação suficiente. A va- havia uma ativação dos ele-
riação deve residir em outro lugar. mentos transponíveis tão logo
A falta de uma função óbvia para os outros 98% do a célula optasse pela diferen-
genoma inspirou o conceito de DNA-lixo, ilustrando a ciação neuronal. Ao induzir as

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células-tronco a se diferenciarem em outros tipos ce- Curiosamente, durante a evolução dos primatas,
lulares nada era detectado, indicando que o fenômeno observa-se uma impressionante correlação entre a
era específico dos neurônios. O achado confrontava adaptação humana e o surgimento de novas sequên-
tudo que sabíamos sobre o comportamento desses cias transponíveis. Evidências de alterações climáticas
elementos e sua “vontade” de passar para as futuras globais sugerem que ambientes mais frios, secos e
gerações. Afinal, o que estariam fazendo ao proliferar com maiores variações devem ter ocorrido cerca de 3
no cérebro? milhões de anos atrás. As alterações bruscas acabaram
Dois anos depois, após lutar contra a resistência por diminuir o suprimento de comida e água, pressio-
natural do paradigma vigente, conseguimos demons- nando fortemente a adaptação de nossos ancestrais a
trar que os neurônios possuíam genomas únicos. Ao novos ambientes. Interessantemente, novas famílias
contrário do atraente conceito de que todas as células de elementos transponíveis no genoma surgem na
do corpo possuem o mesmo genoma, e que as dife- mesma época em que os humanos adquirem o bipe-
renças seriam meras consequências da regulação gê- dalismo, apresentam um aumento da massa cerebral
nica, havíamos juntado evidências fortes o suficiente e apresentam as primeiras evidências de uso de ferra-
para demonstrar que isso não era o caso no cérebro. mentas, consciência ou motivação artística.
Cada neurônio parecia ser único, cada um apresen- Por outro lado, o fenômeno de inserções somáticas
tava novas inserções no genoma, impactando genes no cérebro pode não passar de um resquício evolutivo.
próximos. Essa atividade amplificaria o efeito da re- Tanto o cérebro como o sistema reprodutivo passa-
gulação gênica, gerando uma enorme variação celular ram por grandes modificações durante a evolução. A
e aumentando o repertório de tipos celulares capazes expressão genética desses dois órgãos é relativamente
de serem formados por um dado grupo de genes. Esse parecida e os dois possuem diversas vias de sinaliza-
mecanismo de variação e flexibilidade parece contri- ção em comum. Nesse contexto não parece novidade
buir para a originalidade de cada cérebro, explican- encontrar fenômenos moleculares presentes somente
do por que mesmo gêmeos geneticamente idênticos nesses órgãos. Se esse for realmente o caso, a atividade
apresentam personalidades características. dos elementos transponíveis no sistema nervoso é
Filosoficamente, os dados estariam apontando descartável e não possui contribuição alguma para
para uma parcela de “acaso” na formação de cada as redes neuronais, cognição ou comportamento. É
personalidade. Novos dados do nosso laboratório plausível, mas fica faltando responder por que o ge-
mostram que a atividade dos elementos transponí- noma ficaria carregando essa tranqueira toda a troco
veis está alterada no cérebro autista ou em síndromes de nada.
com o espectro autista. A visão de mundo é diferente Qualquer que seja a função do mosaicismo gené-
em pessoas portadoras de autismo, sugerindo uma tico dos neurônios, é preciso cautela no desenho dos
alteração nas redes neuronais. Ora, o aumento da experimentos que permitirão investigar o fenômeno.
variabilidade neuronal seria capaz de produzir indiví- Atualmente é impossível usar técnicas clássicas de
duos fora da curva normal, com qualidades diferentes. nocaute genético para eliminar os genes saltadores do
Organismos fora da curva teriam mais chances de se genoma. São vários deles que estão ativos no genoma.
adaptar a novos ambientes ou de reagir contra mu- Além disso, estão espalhados pelos cromossomos. Vai
danças drásticas no ambiente. Além disso, existiriam ser preciso bastante criatividade para buscar situações
eventuais indivíduos prodígios na população, com experimentais onde a hipótese possa ser testada. Qual-
uma capacidade cognitiva superior. E talvez sejam quer que seja o resultado encontrado, só vai ser real
indivíduos assim que aumentem a capacidade cria- se fizer sentido sob a ótica evolucionária.
tiva da espécie humana, favorecendo a dominação
de novos territórios, por exemplo. Nesse sentido, os
elementos transponíveis continuariam sendo genes- * Alysson Renato Muotri é neurocientista, professor
-egoístas, pois ao manipular a mente humana acabam da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia, San
por aumentar as chances reprodutivas da espécie. Diego (UCSD).

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Darwin, instinto e mente
César Ades*

J
á em 1837, no Caderno B, um caderno de notas onde re- no estudo do comportamento
gistrou ideias e observações diversas a respeito de evo- animal. Elas não eliminam o
lução, Darwin notava que “mesmo a mente e o instinto” princípio geral: o refinam e des-
são influenciados pela adaptação a novas circunstâncias. Sua vendam novas hipóteses. A teoria
correspondência da época e de mais tarde também indica seu darwiniana se apresenta como
interesse por questões psicológicas: numa carta de Edward um esquema aberto e versátil do
Blythe a Darwin (1855) encontramos longamente debatida a qual não é possível prever o de-
questão do instinto e da razão nos animais e nos seres humanos. senvolvimento, adaptado passo a
No final de A origem das espécies (1859), Darwin previu que a passo às evidências e refutado em
psicologia encontraria “uma base segura [...] no fundamento alguns de seus desdobramentos.
[...] da aquisição necessária de cada poder mental e de cada ca- Uma retomada importante
pacidade mental de forma gradativa” (isto é, através da seleção das ideias de Darwin foi a etolo-
natural). T. H. Huxley, numa palestra de 1863, afirmou que o gia, proposta por Konrad Lorenz
trabalho de Darwin “estava destinado a ser o guia da especu- e seu colega Niko Tinbergen, na
lação biológica e psicológica para as próximas três ou quatro década de 1930. Partiam ambos
gerações”. Huxley subestimou o impacto das ideias darwinianas: da ideia de que há elementos
elas continuam relevantes até hoje em várias áreas científicas e, comportamentais herdáveis de-
em particular, na área de estudo do comportamento. sencadeados automaticamente
Uma primeira, e notável, contribuição de Darwin reside na por estímulos do ambiente. Lo-
generalização dos princípios da seleção natural ao comporta- renz, levando adiante uma linha
mento instintivo. O princípio é simples: os traços comporta- implícita em Darwin, usou os
mentais, como os anatômicos e fisiológicos, variam entre in- comportamentos de espécies de
divíduos, transmitem-se por hereditariedade e tornam-se mais aves aquáticas, os anatídeos, pa-
frequentes na medida em que proporcionem aos indivíduos ra reconstituir o seu parentesco e
uma capacidade maior para enfrentar os desafios ambientais seu desenvolvimento filogenético.
e para se reproduzir. Darwin (1859) aplica a ideia a instintos Hoje está em plena efervescência
impressionantes como a tendência do cuco europeu em colocar a análise evolucionária compor-
seus ovos em ninhos alheios, o comportamento das formigas tamental, com aplicações impor-
que usam formigas de outras espécies como escravas para a tantes à compreensão da origem
realização das tarefas do ninho e a perfeição hexagonal dos do ser humano.
alvéolos nos favos de abelhas. Em cada caso, variantes indivi- Tinbergen inaugurou estudos
duais poderiam ter sido selecionadas, ao longo das gerações, de campo em que testava o valor
em função da vantagem reprodutiva, ganhando predominância adaptativo de padrões compor-
na população. Darwin não elimina do instinto a operação de tamentais. Por que será que, logo
fatores de cognição, sua concepção se aproxima bastante do após a eclosão de um ovo, a mãe
modo atual de considerar o comportamento animal como gaivota apanha e leva a casca para
produto de fatores de prontidão e de plasticidade. longe do ninho? A pergunta não
A ideia de situar o comportamento num quadro evolutivo tem resposta óbvia nem antropo-
permite que se comparem e classifiquem as espécies a partir mórfica e é esclarecedor descobrir
de sua interação viva com o ambiente, que se entenda me- o jogo evolutivo subjacente, feito
lhor as funções das estratégias comportamentais e também de custos e benefícios: ao jogar a
(uma ideia perigosa) que se tome o ser humano como mais casca, o adulto diminui a proba-
uma espécie, aparentada na maneira de ser a outros animais bilidade com a qual o ninho será
considerados inferiores. detectado por predadores.
A teoria da evolução começou com Darwin, mas não ter- Dessa linha toma seu ponto de
minou com ele. Houve mudanças marcantes, depois dele, partida uma abordagem vigorosa

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ao comportamento animal, a ecologia comportamental. não foi darwiniano
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Além de promover a inserção do comportamento na ma- uma versão daa hipótese d dee tr
transmissão
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raccteres
triz ecológica, formula hipóteses baseadas em mecanis- adquiridos, para
ra explicar a origem d daa expr
expressão
pressão humana
pr
mos diferenciais de transmissão genética. Contribuições das emoções.
importantes foram as de W. D. Hamilton a respeito da Os desenvolvimentos
olvimentos mais recentes da abordagem
aptidão abrangente – que parece solucionar a questão das evolucionista ao comportamento humano retornam aos
castas estéreis em insetos sociais, tão problemática para princípios do próprio Darwin: o da seleção natural e da
Darwin, e fornece uma base para entender por que a seleção sexual. Depois das propostas da etologia humana
entreajuda ocorre mais frequentemente e de forma prefe- e da sociobiologia, estamos hoje presenciando o desen-
rencial entre indivíduos aparentados; e de R. Trivers sobre volvimento da psicologia evolucionista que busca, de
investimento parental, que explica por que, em geral, as forma arrojada, uma síntese entre os aportes darwinia-
fêmeas são mais seletivas em relação aos seus parceiros nos e os propriamente psicológicos (Cosmides e Tooby,
reprodutivos e por que os machos são mais promíscuos. 1999). Essa abordagem coloca em conjunção cognição
O princípio envolvido é a seleção sexual, postulado por e processos pré-programados e descreve a mente hu-
Darwin, durante muito tempo negligenciada. mana, herdada de contextos evolutivos prévios, como
A segunda contribuição de Darwin às ciências do composta por um conjunto de competências naturais,
comportamento tem a ver com a compreensão do com- que são adaptações produzidas por seleção natural e
portamento humano. Ela é essencial. Não se trata, como sexual e que decorrem de interação entre genes e fatores
muitas vezes é alegado, de uma perspectiva reducionista, ambientais. A partir desse arcabouço, as abordagens
avessa a levar em conta as características de cognição biológicas ao comportamento humano proporcionam
e cultura que tornam o ser humano distinto. Darwin novas hipóteses e resultados não triviais a respeito de
(The descent of man, 1871) escreve, nesse sentido: “Um aspectos variados do comportamento humano, desde
macaco antropoide, se pudesse julgar a si próprio com as preferências sexuais até a competição, altruísmo e
imparcialidade, admitiria que [...], embora capaz de comportamento agressivo.
utilizar pedras para brigar ou para quebrar nozes, estaria A recepção imediata das ideias de Darwin no cam-
totalmente sem condições de ter a ideia de transformar po psicológico não foi sempre entusiástica. “Quantas
uma pedra para dela fazer uma ferramenta [...]. Também ideias obscuras, quantas ideias falsas!... que linguagem
reconheceria que não lhe está dado seguir um raciocí- pretensiosa e vazia!”, escreve em 1864 J. P. Flourens,
nio metafísico até o fim, ou de resolver um problema que tinha livros publicados sobre instinto animal, a
de matemática, ou de refletir a respeito de Deus, ou de respeito de A origem das espécies. Numa resenha de The
admirar uma paisagem grandiosa”. As diferenças entre descent of man, na revista The Lancet (1871), lemos:
homem e animal seriam contudo, segundo ele, de grau, “Aos que [...] exigem as provas as mais conclusivas [a
não de natureza. respeito] dos atributos mentais e morais do ser huma-
Darwin estudou, num contexto comparativo, a ex- no... o conjunto de fatos apresentado pelo Sr. Darwin
pressão das emoções humanas. Seu livro (A expressão deve parecer bastante inadequado e seu raciocínio a
das emoções no homem e nos animais), um best-seller na partir deles inconclusivo, senão totalmente falso”. Estas
época do lançamento, em 1872, não teve impacto sobre opiniões apressadas contrastam com a impressionante
a pesquisa. Sua proposta foi retomada pelo psicólogo vitalidade das ideias darwinianas na psicologia e nas
P. Ekman, quase um século depois. Ekman, como Dar- ciências do comportamento de hoje, não só em centros
win (com métodos bem mais sofisticados), descreveu tradicionais de pesquisa como no Brasil. São muitas as
como a face espelha a raiva, a alegria, o medo e outras promessas de avanço na compreensão tanto do instinto
emoções e demonstrou, como ele, o valor transcultural como da mente.
das expressões. São notáveis as descrições de Darwin.
Ele demonstra ser, antes de Desmond Morris, um man
watcher, um observador agudo do ser humano e sua mi- * César Ades é psicólogo, especialista em comportamento
núcia foi legada à perspectiva etológica. Paradoxalmente, animal e professor da Universidade de São Paulo.

PESQUISA FAPESP 157 ■


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