Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Na maior parte das línguas europeias, perdoar é, como no francês, uma composição
de dar com o preverbo intensivo, calcado no modelo do latim tardio perdonare:
assim, to forgive (inglês), vergeben (alemão), perdonar (espanhol), etc. O perdão,
como suplemento de dom, escapa ao cálculo rigoroso da falta e do castigo. Mas é
muito mais em termos de conhecimento que a Antiguidade exprime o perdão: o
grego suggignôskein [συγγιγνώσκειν], como o latim ignoscere, são composições de
um verbo que significa “aprender a conhecer” (gignôskein [γιγνώσϰειν], noscere);
no entanto, os dois paradigmas são antitéticos: o grego compreende o perdão como
um conhecimento compartilhado (sun, “com”), enquanto no latim ele sobrevém do
registro da ignorância e da recusa de saber (in-, privativo, sem dúvida). As
contrapartidas morais e políticas de cada uma dessas atitudes diferem
consideravelmente.
I. DOM E PERDÃO
Na maior parte das línguas modernas, tanto latinas quanto germânicas, perdoar é
uma transposição do latim tardio perdonare, além disso foi atestado uma única vez
(no Esopo de Romulo, em torno do século IV). O verbo não é uma composição
direta de dare (lat. “dar”), mas deriva, pelo substantivo donum, de donare (lat.
“fazer doação de” e, em particular, “isentar de, dar ganho de causa a”). O perdão,
como o indica o preverbo intensivo, tem a estrutura de uma consumação ou de um
excesso, de um excedente de dom. Ele faz exceção à compatibilidade da dívida e da
justiça, que proporciona o castigo à falta segundo uma estrita retribuição
proveniente da lei do talião.
“Dar”, por si só, implica já que partamos da igualdade e da reciprocidade:
segundo a definição do Petit Robert, é “abandonar” alguma coisa a alguém “sem
nada receber de volta” (1993). Do mesmo modo, a economia arcaica do dom,
realçada por Marcel Mauss, implica uma circulação “dom/contra-dom” que excede a
troca mercantil: “nas coisas trocadas no potlach, há uma virtude que força os dons a
circularem, a serem dados e a serem retribuídos” (“Essai sur le don” [1923-192], in
Sociologie et Anthropologie, 1990, p. 214). A munificência do contra-dom relança
incessantemente uma nova dívida que perpetua o processo de “despesa”, para
retomar a tematização de Georges Bataille.
Para dar conta da inadequação de todo modelo de troca, mesmo que seja
comercial, Paul Ricœur optou por sublinhar a “disparidade vertical, entre a
profundidade da falta e a altitude do perdão” (La Mémoire, l’Histoire, l’Obli, p. 594).
Essa disparidade vertical, que constitui para ele a autêntica singularidade do perdão,
sustenta a possibilidade de “desligar o agente de seu ato”: “tu vales mais que teus atos”
diria essa “fala libertadora” (p. 637 e 642; cf. Mateus 18, 18: “Todas as coisas que estão
ligadas [alligaveritis] na terra serão ligadas [ligata] também no céu, e todas as coisas
que estão desligadas [solveritis] na terra serão desligadas [soluta] também no céu”, onde
solvere, “desligar, dissolver, absolver”, traduz o grego luein [λύειν]).
• Ver quadro 1.
►1
1143a 19-24
BIBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES. Ethica Nicomachea, ed. I. Bywater, Oxford [1894], 13ª ed., 1962;
Ética a Nicômaco, trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. [Coleção Os Pensadores].
São Paulo: Victor Civita, 1984; Éthique de Nicomaque, trad. fr. J. Voilquin [1940],
Flammarion, “GF”, 1965; Éthique à Nicomaque, trad. fr. R.A. Gauthier e J.Y. Jolif,
LouvainParis, Publications universitaires-Béatrice Nauwelaerts, 2e ed., 1970; trad. fr. J.
Tricot, Vrin, 7e ed., 1990 ; trad. fr. J. Barthélémy-Saint-Hilaire. A. Gomez-Muller,
Librairie générale française, Le Livre de Poche, 1992.
Barbara CASSIN
BIBLIOGRAFIA
ARENDT, Hannah. The Human Condition, 1958. [A condição humana. Trad. Roberto
Raposo. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2008].
BATAILLE, Georges. La Part Maudite. Essai d’économie. Générale. Paris: Minuit,
1949, reed. 1967.
DERRIDA, Jacques. “Le siècle et le pardon”, entretien avec Michel Wieviorka, Le
Monde des débats, dezembro de 1999, reeditado em Foi et savoir, suivi de Le Siècle et
le Pardon. “Points Essais”. Paris: Seuil, 2000, p. 101-133.
JANKÉLÉVITCH, Vladimir. L’Imprescriptible. Paris: Seuil, 1986.
LACOSTE, Jean-Yves. Pardon, in M. CANTO-SPERBER (org.). Dictionnaire
d’éthique et de philosophie morale. Paris: PUF, 1996, p. 1069-1075.
MAUSS, Marcel. Sociologie et Anthropologie [1950]. 8ª ed. Paris: PUF, 1990.
RICŒUR, Paul. La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli. Paris: Seuil, 2000.
FERRAMENTAS