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Texto 3 FILMAT

Passemos, então, às considerações preliminares à apresentação de mais um exemplo de


definição contextual (conforme dito no texto 2, o exemplo que apresentaremos é muito
importante em filosofia da matemática). Vejamos.

Frege desejava mostrar que a aritmética se reduz à lógica. Essa doutrina é o chamado
logicismo de Frege. O que significa dizer que a aritmética se reduz à lógica? Bem, significa dizer
que podemos definir os números como objetos lógicos (adiante veremos mais sobre isso) e
estabelecer que as proposições da aritmética podem ser demonstradas com base apenas em
leis lógicas gerais e definições.

Observação: além do logicismo de Frege, temos também, por exemplo, o logicismo de


Russell, doutrina segundo a qual não apenas a aritmética, mas toda a matemática se reduz à
lógica (para Frege, a geometria não se reduz à lógica, pois, segundo ele, as demonstrações das
proposições da geometria requerem além de leis lógicas gerais e definições, também leis sobre
o espaço).

Para executar seu projeto logicista, Frege revolucionou a lógica, dando início, digamos assim,
ao desenvolvimento da lógica matemática contemporânea.

Para desenvolver seu projeto logicista propriamente dito, Frege começou analisando
enunciados de número. Enunciados de número são enunciados da forma “ O número de tais
coisas é tanto”, ou pondo de outra forma “ Há tantas de tais coisas”. Vejamos dois exemplos.

(a) Há exatamente uma árvore naquela praça.

(b) Há exatamente dois cachorros no quintal daquela casa.

Para Frege, enunciados de número são enunciados sobre conceitos. O exemplo (a) acima é
um enunciado sobre o conceito de “árvore naquela praça”, e o exemplo (b) acima é um
enunciado sobre o conceito de “cachorro no quintal daquela casa”. O que o enunciado do
exemplo (a) está dizendo sobre o conceito de “árvore naquela praça” é que: existe x que cai
sob esse conceito e qualquer que seja y, se y cai sob esse conceito, então y é igual a x.

Observação: dizemos que uma coisa cai sob um conceito quando tal coisa, digamos, se
enquadra nesse conceito; por exemplo, vocês caem sob o conceito de “estudante da UFMG” e
eu caio sob o conceito de “professor de filosofia da UFMG”.

Assim, podemos apresentar o enunciado do exemplo (a) da seguinte maneira.

Existe x tal que x é árvore naquela praça e qualquer que seja y, se y é árvore naquela praça,
então y é igual a x.

O que o enunciado do exemplo (b) está dizendo sobre o conceito de “cachorro no quintal
daquela casa” é que: existe x, existe y que caem sob esse conceito, e x é diferente de y, e
qualquer que seja z, se z cai sob esse conceito, então z é igual a x ou z é igual a y.

Observação: se não tivéssemos dito que x é diferente de y, poderíamos ter apenas um


cachorro no quintal daquela casa; não é isso que o enunciado do exemplo (b) diz.

Assim, podemos apresentar o enunciado do exemplo (b) da seguinte maneira.


Existe x, existe y, tais que x é cachorro no quintal daquela casa, e y é cachorro no quintal
daquela casa, e x é diferente de y e qualquer que seja z, se z é cachorro no quintal daquela
casa, então z é igual a x ou z é igual a y.

Notem que pudemos expressar os enunciados de número dos exemplos acima usando
apenas os recursos da lógica (quantificador existencial [existe], o operador de conjunção [e], o
operador de negação [não], o predicado de igualdade, quantificador universal [qualquer que
seja], o operador de implicação [se então], o operador de disjunção [ou] e variáveis [x, y, z]) e
os predicados “árvore naquela praça” e “cachorros no quintal daquela casa” (veremos, no
próximo texto, que esses predicados não são necessários quando trabalhamos com números
puros, isto é, sem falar de árvore ou de cachorros). O fato de as expressões apresentadas
serem mais longas do que os enunciados originais não é um problema no projeto logicista de
Frege, pois o objetivo desse projeto não é obter concisão na linguagem, mas fornecer um
fundamento (no sentido já exposto de fundamento) lógico para a aritmética.

Observação: o operador de negação foi usado, pois dissemos que x é diferente de y, isto é, x
não é igual a y.

Visto que um enunciado de número é um enunciado sobre um conceito, podemos falar em


número que convém a um conceito. Por exemplo, considerando os enunciados (a) e (b) acima,
temos que: o número que convém ao conceito “árvore naquela praça” é 1, e o número que
convém ao conceito “cachorro no quintal daquela casa” é 2.

No parágrafo 63 da obra Os Fundamentos da Aritmética , Frege apresenta um critério de


igualdade para números que convêm a conceitos. Ele faz isso (com um fraseado um pouco
diferente) por meio da seguinte definição contextual.

Sejam F e G conceitos.

O número que convém ao conceito F é igual ao número que convém ao conceito G.

se e somente se

Existe uma correspondência biunívoca entre a coleção das coisas que caem sob F e a coleção
das coisas que caem sob G.

Observações

Notem que foi dado o significado da sentença inteira “O número que convém ao conceito F é
igual ao número que convém ao conceito G” sem dar os significados das expressões “número
que convém ao conceito F” e “número que convém ao conceito G”. A sentença foi, assim, a
unidade básica de significado. Temos portanto, de fato, uma definição contextual (Frege só irá
apresentar a definição de número que convém a um conceito no parágrafo 68 de Os
Fundamentos da Aritmética; veremos essa definição no próximo texto).

Notem, ainda, que no âmbito do projeto logicista de Frege não podemos simplesmente dizer
que o número que convém ao conceito F é igual ao número que convém ao conceito G se e
somente se contamos as coisas que caem sob F, contamos as coisas que caem sob G e os
números que essas contagens revelam são iguais. Não, não podemos fazer isso pois não
dispomos, de início, dos números 0, 1, 2, etc para fazer essas contagens. Frege deseja mostrar
que a aritmética se reduz à lógica e isso inclui definir os números 0, 1, 2, etc como objetos
lógicos, isto é, dizer o que é o número 0, o que é o número 1, o que é o número 2, etc usando
apenas os recursos da lógica. Esses números não estão disponíveis, de início, para que
possamos fazer as contagens mencionadas acima (seria muito inconveniente, para dizer o
mínimo, definir, por exemplo, o número 1 como a quantidade de árvores naquela praça ou o
número 2 como a quantidade de cachorros no quintal daquela casa; isso faria a aritmética
depender da botânica e da zoologia dentre outras coisas; repetindo, Frege queria mostrar que
a aritmética depende apenas da lógica, ou seja, que a aritmética tem como fundamento
apenas a lógica). No próximo texto veremos como Frege definiu os números 0, 1, 2, etc como
objetos lógicos.

Devemos também destacar que a noção de correspondência biunívoca (também chamada de


função bijetora) não requer, para sua formulação, o uso do número 2, do número 1 ou de
qualquer outro número. De fato, dadas as coleções A e B, uma correspondência biunívoca f
entre A e B (ou seja, uma função bijetora de A em B) é uma associação de elementos de B a
elementos de A tal que:

- dado x elemento de A, existe y elemento de B tal que f associa y a x.

- dado x elemento de A, se y e z são elementos de B tais que f associa y a x e f associa z a x,


então y é igual a z.

- se u e v são elementos de A e t e w são elementos de B tais que f associa t a u e f associa w a


v, temos que: se u é diferente de v, então t é diferente de w.

- dado y elemento de B, existe x elemento de A tal que f associa y a x.

Observação: as duas primeiras condições dizem que f é uma função; a terceira condição diz
que f é uma função injetora e a quarta condição diz que f é uma função sobrejetora; a
conjunção de todas as condições diz que f é uma função bijetora.

No próximo texto faremos mais algumas considerações sobre o projeto logicista de Frege.

Por fim, abordo uma dúvida que surgiu com respeito ao exemplo de definição contextual
apresentado no texto 2.

As palavras “limite”, “tende” e “infinito” não têm significados quando consideradas


isoladamente enquanto constitutivas do enunciado matemático apresentado no exemplo de
definição contextual no texto 2. Essas palavras têm significados matemáticos intuitivos, mas
esses significados matemáticos intuitivos, embora muito importantes nas aplicações da
matemática ao longo de um certo período, por exemplo, durante o século XVIII, revelaram-se
inadequados para um tratamento rigoroso do cálculo diferencial e integral. Daí eu ter
observado, no texto 2, o papel que o uso da definição contextual teve no processo de conferir
rigor ao cálculo diferencial e integral.

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