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Sobre as pernas dos pombos.

Caminham balbuciando seus passos: as pernas fora das armaduras, como a nobre
duquesa cheia dos panos e vestidos bufosos que levanta as saias monárquicas com medo
do rato burguês, as perninhas de porcelana peladas entre aquelas galáxias de vestidos.

Por baixo dos panos sempre existe pele.

A pomba ergue seu corpo cinza e gordo, duas perninhas laranjas surgem,
delicadas e assustadas, tremendo e palpitando suas rugas. Como vivem entre homens,
imitam os passos longos e trabalham suas pernocas estranhas. Os pombos são tão
humanos quanto nós, até mais. Rápido, percebe-se: eles não sabem pra onde vão. As
pernas avançam agitadas e duras, porque sabem que não são benvindas onde quer que
estejam. O mais rápido agem, o mais rápido não estão onde estavam antes. A única
fronteira são seus corpos, como se o mundo inteiro fosse um cão sensível a fazê-los
saltar de um lado para outro com chacoalhões cruéis. Sem tratados, mapas,
delimitações, seus tempos são o momento, seus mundos são o lugar. As pombas se
movimentam de medo, são eternas expulsas. De início, da natureza de onde os
ancestrais nasceram, depois, da própria cidade à qual se acostumaram. Não têm casa, só
possuem os corpos gordos e as pernas delicadas. Se voz tivessem, estariam
constantemente gritando. De fome, piedade, revolta. Só trazem fome e gordos olhos de
piedade. A pele escondida de parasitas abraçada, a pomba é um ecossistema, a pomba é
uma árvore de doenças.

Por de baixo das doenças sempre existe pele.

Os pombos vestem seus ternos e vão ao trabalho: analisar e registrar a maldade


humana. Um estudo sociológico de anos, extremamente detalhado. Batem o ponto,
tiram as calças cinzas e, de pernocas desengonçadas de fora, os pombos fingem. Os
pombos são fingidores, fingem tão completamente, etc.

Chegam perto das velhas adocicadas pela vida, percebem friamente como são
aceitos e alimentados. As velhas gordas, cinzas e solitárias e os pombos tão gordos,
cinzas e solitários quanto. Formam um culto, pombos e velhos, de eternos excluídos que
apenas gritariam fome e piedade se pudessem. Mas aos pombos é só mais um dia de
trabalho. Eis o paradoxo, as velhas são mais pombos que os pombos. Por debaixo das
saias mofadas, trazem também pernocas laranjas, por debaixo dos óculos, os olhos
grandes, perdidos, perdidos.

Por baixo das rugas sempre existe pele.

Os pombos se aproximam também dos engravatados, percebem os mesmos


ternos, o mesmo cinza e a mesma pressa de seus corpos. Sabem que por baixo das
calças dos homenzarrões se escondem também as perninhas. Patéticas, frágeis,
tremeluzentes. Os engravatados, diferente das velhas, chutam, gritam, batem nos
pombos. E os pombos anotam, analisam. Não são verdadeiramente maus, os homens
cinzas. Expulsam os pombos porque os pombos ao nada pertencem, porque vem sendo
assim desde seus ancestrais e sabem que a fronteira de um pombo é seu próprio bico.

Os homens cinzas enxotam os pombos porque trabalham com coisas exatas e


não cabe questionar o porquê da guerra entre engravatados e pombos tão cinzas quanto.
Os homens cinzas são jovens, não cabe ter empatia, não cabe ter solidão, não cabe ter a
ruga dos velhos, mesmo tendo tudo isso. Por debaixo das roupas apertadas e sérias, os
homens estão tão perdidos e instáveis quanto os pombos. Suas fronteiras são o bico de
seus sapatos, seus corpos seguem caminhos memorizados, não questionam, apenas
seguem. Vestem cinza, como os pombos, os peitos estufados, como os pombos, e todos
sabem que por dentro da calça as perninhas laranjas tremem de terror. Só os pombos
não são assim, os pombos estão apenas trabalhando, exercendo um papel de campo. No
fim, os homens engravatados são mais pombos que os pombos.

Por baixo dos ternos cinzas sempre existe pele.

Os pombos se aproximam das crianças. Gritos, pernas que correm, as crianças se


jogam loucas para todos os lugares, os braços alados beirando o voo. Não são ruins, as
crianças, nem um pouco. Se jogam entre os pombos provocando aquela revoada bonita
e caótica, aquele engarrafamento aéreo, só pela diversão. E os pombos gostam, retornam
ao solo, doidos para serem atropelados pelas crianças impossíveis.

Os pombos também são meio crianças, apesar de estarem trabalhando, tomam


esses momentos em parquinhos como a hora do santo recreio. Eles correm para todos os
lugares, as asas aladas realmente alçando voo, e perdem-se entre as velhas doces, os
homens cinzas e as crianças loucas. Só continuam a pesquisa porque não conseguem
encontrar a verdadeira maldade, os homens são grandes enigmas para os pesquisadores
sociais. De fato, não entendem, os pombos, que não enxergam os maus porque são bons
demais pra isso. São, sem dúvida, mais humanos que nós.

Os pombos passeiam com suas pernas feiosas e enrugadas por dó. “Olha,” dizem
os olhos míopes “nós temos sim asas, mas não fiquem tristes, nós te faremos
companhia.” Andam ao nosso lado, mostram que fazem parte da nossa sociedade.
Arriscam o mundo com suas pernas travadas, tateando com medo o degrau mais fundo.
Fazem isso por nós. Quando pressentem perigo, voam. E hoje voam tão pouco porque
sabem que o homem não é verdadeiramente mau.

Por baixo da maldade sempre existe pele, eles concluem.

E andam em nossa direção, pequenos e incompreendidos, as pernas laranjas e


rugosas contrastando contra o corpo, os olhos brilhosos e perdidos nas órbitas, os
colares furta-cor misteriosos, evidenciando a beleza do tudo no ser mais banal,
constelações presas ao pescoço. Seus olhos enxergam em nós também esse colar furta-
cor, esse peito estufado, e sabem que por baixo da pele também carregamos, inseguros e
solitários, as pernas dos pombos.

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