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RELLÍS - REVISTA DE ESTUDOS DE LIBRAS E LÍNGUAS DE SINAIS

Núcleo de Ensino e Pesquisas em Libras On-line


http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/469857
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)

Resenha Critica do livro: Libras, que língua é essa? Crenças e preconceitos

Alexandra Ayach Anache


Karine albuquerque de Negreiros

GESSER, Audrei. Libras? Que língua é essa? Crenças e preconceitos em torno da língua de sinais
e da realidade surda. 1ªEd. Parábola Editorial, São Paulo. 2009. 87p.

Audrei Gesser é graduada em Letras - Inglês/Português pela Universidade Regional de


Blumenau - FURB, mestrado em Letras/Inglês e Literatura Correspondente pela Universidade Federal
de Santa Catarina - UFSC, e doutorado em Linguística Aplicada com área de concentração em
Educação Bilíngue pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Estágio na Gallaudet
University, Estados Unidos. Publicou entre outras obras o ouvinte e a Surdez: sobre ensinar e aprender
Libras, pela editora parábola.

O livro é escrito com o objetivo de criar um espaço de discussão e reflexão a respeito de alguns
questionamentos relativos à surdez, a língua de sinais e os surdos mais propriamente às relações, dos
ouvintes com esse tema, considerando o momento político favorável para as minorias linguísticas no
Brasil.

A obra foi organizada em três capítulos: a língua de sinais, o surdo e a surdez, na forma de
perguntas ou afirmações registradas pela autora, em diversas situações do ensino de Libras para
ouvintes, coletadas nas conversas informais com os aprendizes. A autora busca ressignificar alguns
conceitos, que durante muito tempo equivocados, a respeito do tema proposto.

Gesser inicia o livro ressaltando, no primeiro capítulo, a legitimidade da Língua Brasileira de


Sinais como língua natural do povo surdo, fundamentadas nos estudos do linguista americano William

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Stokoe em 1960, que descreveu os níveis fonológicos, morfológicos e sintáticos da Língua americana
de sinais.

Neste capítulo fazem-se explicações científicas de conceitos equivocados sobre a Libras, tais
como: a língua de sinais ser universal, ser mímica, não ter gramática, ser exclusivamente icônica, ser
uma versão sinalizada da língua oral, é uma língua ágrafa, e alguns outros pensamentos.

As questões apontadas transitam por crenças como a universalidade, a artificialidade e


agramaticalidade da Libras. Esclareceu que em línguas de sinais podem-se exprimir ideias abstratas
e apresentam todas as propriedades linguísticas presentes nas línguas orais. Aponta ainda que o
alfabeto manual é usado apenas como uma pequena parcela de expressão, está sujeita às variações
regionais e há pesquisas avançadas sobre a escrita de sinais. Trata-se então de uma língua autônoma
e não tem suas origens nas línguas orais e tão pouco depende delas para existir, porém utiliza de
empréstimos linguísticos em seu repertório discursivo de uso.

Ao fim do capítulo o leitor pode perceber a real constituição social da Libras, percebendo que
se trata de um sistema linguístico legitimo, portando não deve ser tratado por gestos, mímicas ou
inferiorizada pelas línguas orais. Quanto às diferenças entre as línguas orais Gesser afirma que
“diferem quanto à forma como as combinações das unidades que são construídas” (p. 19, grifos da
autora).

No segundo capítulo dedica-se às explanações a respeito do Surdo, quem são esses


indivíduos? Qual a constituição do sujeito com comum a todos os surdos? Trata também da relação
com a língua portuguesa, com a sociedade e define cultura surda.

A autora inicia essa parte do livro dizendo que por desconhecerem a carga semântica dos
termos mudo, surdo-mudo e deficiente auditivo se equivocam. O uso de qualquer terminologia acima
remete a ideologia dominante vinculada ao poder e o saber clínico, portanto o uso correto para
denominarmos tais sujeitos é surdos. Essa talvez seja a principal definição do livro uma vez que todas
relações com as pessoas surdas passam pelo emprego da terminologia.

Infelizmente, o povo surdo tem sido encarado em uma perspectiva exclusivamente fisiológica
(déficit de audição), dentro de um discurso de normalização e medicalização (46). Contrário a esse
tipo de pensamento, considerando que a oralização deixou marcas profundas na história dos surdos,

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surge o discurso social de cultura surda, definida no livro como cultura própria que sugere a ideia de
um grupo que precisa se diferenciar da maioria ouvinte e obter maior visibilidade.

Outra questão respondida diz respeito ao uso da língua de sinais atrapalhar a aprendizagem da
língua oral que foi, e ainda é muito disseminada pelos adeptos da corrente oralista, e o que não é
verdade. O desinteresse dos surdos em aprender a língua oral está relacionado, entre outras muitas
coisas, pela forma agressiva que durante anos ela foi ensinada e imposta. O uso da língua de sinais é
para o surdo a valorização de sua identidade e cultura, o que não acontece quando eles usam a língua
oral, porém, não há uma relação de que o uso de uma língua atrapalhe o aprendizado da outra,
até porque o que se defende hoje é o sujeito surdo bilíngue, isto é, fluentes em Libras e em Língua
Portuguesa.

Assim encerra o segundo capítulo do livro esclarecendo as principais questões relacionadas as


pessoas com surdez, ressaltando a importância do tradutor intérprete de Libras como mediador da
comunicação, ressaltando que a língua de Sinais dá ao surdo a possibilidade de ser “completo” e não
mais deficiente mesmo com as cicatrizes deixadas pela oralização.

O terceiro capítulo trata da surdez e suas formas de concepção: patológica ou cultural, sendo
que o livro assume uma postura contrária a medicalização, “concepção segundo a qual o surdo é visto
como portador de uma deficiência física, que precisa de recursos ou intervenções cirúrgicas para se
tornar “norma” e fazer parte do grupo majoritário na sociedade que vive” ( p. 63) .
Nesse momento Gesser busca elucidar a visão negativa da sociedade sobre a surdez. O
discurso médico com toda força e prestígio corrobora para que a surdez seja encarada como uma
anormalidade, onde o normal é ouvir e o que diverge desse padrão é anormal, deficiente. Dessa forma
fica difícil conceber a surdez sob outro prisma, ou seja, pensar a surdez como uma diferença.

Outra questão discutida na busca da normalização é o implante coclear como instrumento de


recuperação da audição do surdo. Não é tão simples quanto se prega, deve-se considerar que os
resultados dependerão de diversos fatores: idade, tempo de surdez, condições do nervo auditivo,
situação da cóclea bem como o acompanhamento de terapêutico pós-cirúrgico. Para muitos esses
fatores são considerados irrelevantes, considerando que se possa conseguir um ideal de indivíduo que
fala e ouve.

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Uma crença muito séria retratada é que a surdez comprometeria o desenvolvimento cognitivo-
linguístico do indivíduo, crença que está intimamente ligada à hegemonia do discurso médico. “O
surdo pode desenvolver suas capacidades cognitivas e linguísticas (se não tiver outro impedimento)
ao lhe ser assegurado o uso da língua de sinais em todos os âmbitos sociais em que transita. Não é a
surdez que compromete o desenvolvimento do surdo, e sim a falta de acesso a uma língua” (p. 76).

A autora encerra o capítulo e consequentemente o livro situando o momento histórico em que


vivemos, que em uma visão otimista qualifica de profícuo e ímpar. Fato é que nos últimos anos foram
alcançadas muitas vitórias: a oficialização da Libras, o direito ao intérprete, a disciplina de Libras
como grade curricular no ensino superior são exemplos de boas novas que ainda precisam se sobrepor
às velhas práticas. Assim vivemos em um momento de transição, híbrido entre conquistas e busca da
desconstrução de estereótipos.

De um modo geral a obra discute as principais questões que permeiam a vida dos surdos,
muitas de crenças e preconceitos ainda permanecem fortes em nossa sociedade. Ao discutir a língua,
o sujeito e a condição leva à reflexão das áreas ligadas ao tema com a intenção de desmistificar as
mais comuns e reconstruir conceitos a esse respeito.

A autora conclui que a surdez é historicamente um problema para os ouvintes, sem perceber
que o problema se inicia quanto à sociedade tenta “normalizar” os surdos, isto é, torná-los usuários
da língua oral majoritária. Lidar com a diferença não é uma coisa fácil, pois requer que se saia da zona
de conforto e mudança de nossas práticas sociais. É relevante mencionar que os direitos linguísticos
dos surdos já foram outorgados pelo Estado brasileiro, e as questões tratadas pelo livro contribui para
que a sociedade ouvinte se aproprie de conhecimentos que leve a respeitar o direito, de uma pessoa
que não ouve, de ser surda e cidadã.

A obra apresenta subsídios para pesquisa científica, pois está pautada em uma referência
bibliográfica consistente, com os principais autores que discutem o tema proposto fundamentando
todas as informações, e usando de citações pertinentes quando necessário, trazendo as mais recentes
pesquisas sem perder as referências tradicionais da área da surdez.

Trata-se de uma obra completa sobre as crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e
da realidade surda. Com sua oportuna disposição em forma de perguntas e respostas incita a leitura
na ânsia de ver esclarecidas as dúvidas, que de forma geral, são comuns as pessoas que não tenham

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um conhecimento profundo do tema. Não é uma leitura que exija conhecimentos prévios do tema,
pelo contrário, o texto busca exatamente subsidiar os leitores de conhecimentos básicos sobre a surdez
e a língua de sinais, trata-se de uma obra pensada para ouvintes em contato com o mundo da surdez.

Com estilo singular e com uma linguagem acessível à autora faz esclarecimentos sobre a
Libras e seus usuários de forma objetiva sem perder o teor científico fundamentando-se em linguistas,
educadores e pesquisadores surdos. O que contribui de forma expressiva para a reflexão de universo
pouco conhecido que é a surdez. As respostas dadas às perguntas recorrentes sobre a língua de sinais
possibilitam o leitor repensar algumas crenças, práticas e posturas a fim de acompanhar as
transformações que marcam a área da surdez. Sendo assim lançar um novo olhar, construir uma nova
narrativa para a realidade surda.

Finalmente a leitura dessa obra contribui muito para a apropriação de conhecimentos bem
como desconstrução de conceitos equivocados, dada a amplitude das preocupações delineadas no
decorrer de seu texto. Por ter como objetivo criar um espaço de discussão para o tema proposto o livro
pode alcançar diferentes: surdos, ouvintes, profissionais da surdez, estudantes, professores e qualquer
pessoa que se interesse pela área debatida, conforme a indicação da autora. Apesar de não ser um
manual, é uma obra que pode ser usada como base de leitura para a disciplina obrigatória de Libras
nos cursos de formação de professores e fonoaudiólogos, uma vez que traz conhecimentos iniciais e
pertinentes para o desenvolvimento de um conceito real da língua de sinais e dos sujeitos surdos.

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