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II Colóquio da Pós-Graduação em Letras

UNESP – Campus de Assis


ISSN: 2178-3683
www.assis.unesp.br/coloquioletras
coloquiletras@yahoo.com.br

A POESIA CLÁSSICA JAPONESA E SEUS RECURSOS ESTILÍSTICOS

Olivia Yumi Nakaema


(Mestranda – FFLCH-USP)

RESUMO: Por meio da análise de poemas da obra Kokinwakashû (Coletânea de poemas waka
de outrora e de hoje), primeira compilação oficial elaborada por ordem do imperador Daigo, em
905, no Japão, este trabalho visa investigar os recursos estilísticos poéticos mais utilizados.
Dentre os recursos estilísticos analisados estão: makurakotoba (palavra-travesseiro),
kakekotoba, jokotoba e engo. Desse modo, a partir da definição bakhtiniana de gênero e estilo,
procuramos definir o gênero poético waka (poema clássico japonês) e os recursos estilísticos
encontrados na Coletânea de poemas waka de outrora e de hoje, de autoria do poeta Kino
Tsurayuki.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura japonesa; poesia clássica, waka.

Introdução

A poesia clássica japonesa distingue-se em muitos pontos da poesia


ocidental, a começar pela sua forma escrita. Além de formas poéticas diferentes, como
o conhecido haiku ou haikai e o tanka, há também o uso de recursos estilísticos
inexistentes na poesia do Ocidente.
O presente trabalho procura definir o que é a poesia clássica japonesa de
acordo com os períodos de elaboração e apresentar alguns dos principais recursos
estilísticos utilizados.
Os poemas que serão apresentados são de autoria do poeta Kino Tsurayuki
(870-945 ou 946) e fazem parte da antologia Kokinwakashû ou Kokinshû (Coletânea
de poemas waka de outrora e de hoje).

1. A poesia clássica japonesa

Os períodos da literatura clássica japonesa são comumente divididos em três


grandes momentos. O primeiro é a Antiguidade, que pode ser também dividida em alta
antiguidade, que abrange a Era Nara (710-794), e em média antiguidade, que abrange
a Era Heian (794-1192). O segundo período da literatura japonesa é a Idade Média,
que abrange as Eras Kamakura (1192-1333) e Muromachi (1333-1573). E por último,

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temos o período Pré-Moderno, constituído pelas Eras Azuchi-Momoyama (1573-1603)
e Edo (1603-1867).
Na Era Nara, surgem os primeiros textos literários considerados como
literatura japonesa, mas ainda escritos em escrita chinesa. Entre eles estão as obras
Kojiki e o Nihonshoki, organizadas com textos que visavam legitimar a criação do
Estado japonês. Nesse sentido, Wakisaka (1992, p.15) explica:

É baixada a ordem imperial para a elaboração de uma história do


Japão, organizando o kyûji (levantamento dos eventos antigos,
lendas e mitologias), e o teiki (pesquisa da genealogia da família
imperial) com a finalidade de justificar internamente e perante a China
e a Coreia a supremacia da coroa, na consolidação do Estado
japonês. Esses dois registros serão mais tarde retomados no Kojiki e
Nihonshoki, organizados no século VIII.

No entanto, é apenas na Era Heian que surgem os primeiros poemas escritos


em língua japonesa.
A primeira obra da poesia clássica japonesa de que se tem registro é
intitulada Man’yôshû, compilada por volta de 760. Nela há os primeiros registros da
escrita de estilo japonês, denominado wabun. Anteriormente a essa obra, os
japoneses utilizavam o estilo de escrita chinês, o qual continuou a ser usado
concomitantemente em alguns gêneros textuais, como documentos oficiais.
A Era Heian é marcada por uma vasta produção artística. Na literatura,
passa-se a produzir inúmeras obras em língua japonesa, como as elaboradas por
mulheres: Genji Monogatari, de Murasaki Shikibu, e Makurano Sôshi, de Sei
Shonagon. Na poesia, destaca-se a produção dos poemas do gênero tanka (poema de
31 sílabas), cuja produção representativa do período encontra-se reunida na obra
Kokinwakashû (Coletânea de poemas waka de outrora e de hoje), a qual será objeto
de análise a seguir.

2. A antologia Kokinwakashû (Coletânea de poemas waka de outrora e de hoje)

Sua compilação ocorreu por ordem do imperador Daigo, no ano 905, com
objetivo de reunir poemas do gênero waka1 não incluídos na Antologia Man’yôshû.
O período de elaboração da antologia é considerado de grande paz e
consequente vasta produção artística.

1
Waka é a denominação para os poemas japoneses, cuja forma poética pode ser variada, isto é, o
waka abrange os gêneros poéticos chamados de chôka (poemas longos), tanka (poema de 31 sílabas),
sedôka (poema de seis métricas), entre outros (WAKISAKA, 1988, p.30). O tanka é composto por 31
sílabas poéticas divididas em versos de 5, 7, 5, 7, 7 sílabas em cada verso (WAKISAKA, 1997, p.66).

889
Com relação à ordem política, a Era Heian é marcada pelo domínio do poder
nas mãos da família imperial e de uma aristocracia palaciana. O marco inicial do
período é a mudança da capital de Nara para Heian (atual Kyoto), onde permaneceu
até 1185, quando os shoguns a transferiram novamente para Kamakura. Durante essa
época, a aristocracia servia aos interesses da família imperial, constituindo uma rede
de funcionários públicos, que possuíam conhecimentos e tempo livre para a prática
literária. Também vigorava na época o sistema político Ritsuryô, inspirado no governo
chinês da Dinastia Tang (618-907). Essa forma de governo era baseada na
centralização do poder pela aristocracia, que recolhia os impostos e fazia valer o
código penal (ritsu) e administrativo (ryô) (DUTHIE, 2008, p.17).
A sociedade da época era fundamentalmente dividida em níveis e havia
poucas possibilidades de ascensão social. Os casamentos podiam ser poligâmicos por
parte do homem e a troca de poemas era uma prática comum para as conquistas
amorosas. A habilidade na composição de poemas era considerada um traço de
elegância e refinamento.
No início da Era Heian ainda se fazia presente a produção de poemas e
textos em prosa por japoneses em língua chinesa. No entanto, com a criação da forma
de escrita japonesa, isto é, a criação nos dois sistemas silábicos Kanã – o hiragana e
o katakana –, o poema do gênero tanka passou a adquirir grande importância literária,
por ser considerado o verdadeiro poema japonês. Por isso, há estudiosos que
defendem que um dos objetivos da elaboração da obra Kokinwakashû tenha sido a
valorização da poesia em língua japonesa a fim de elevá-la em relação à poesia em
língua chinesa.
Seus compiladores, os poetas Kino Tsurayuki (870-945), Kino Tomonori (856-
907), Ôshikôchino Mitsune (sem dados) e Mibuno Tadamine (sem dados), compilaram
os poemas waka elaborados entre os séculos IX e X, selecionando os elaborados por
diversos poetas, entre eles alguns anônimos e membros da nobreza. Há também
muitos poemas dos próprios compiladores.
Devido às dificuldades de reunir os manuscritos antigos da obra, há algumas
diferenças de contagem dos tomos e do número total de poemas. No entanto, há um
consenso entre os estudiosos de que Kokinwakashû contenha 1100 poemas. Integram
também a obra dois prefácios: um em letra japonesa, kanajo, escrito por Kino
Tsurayuki, e outro escrito em letra chinesa, manajo, da autoria de Kino Yoshimochi.
Ambos são considerados os primeiros tratados de arte poética da literatura japonesa.
O compilador Kino Tsurayuki representa, além de um grande poeta e

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responsável pela conservação dos acervos da corte, é o principal crítico literário de
sua época. Ao elaborar o prefácio em kanajo, Tsurayuki consagrou-se como um
teórico da poética japonesa e apresentou definições dos conceitos estéticos da Era
Heian. Além de destacar-se na poesia, tornou-se célebre pela elaboração da obra
Tosa Nikki (Diário de Tosa), a qual representa a primeira obra escrita no gênero nikki
bungaku (literatura de diário). Neste diário, relata-se, de forma inovadora, uma viagem
realizada entre os anos 934 e 935. O autor utiliza o "eu-lírico" feminino e a forma de
escrita kana em diário, o que não havia sido feito ainda até essa época. Ademais, os
poemas de Kino Tsurayuki também foram reunidos em outras compilações oficiais
posteriores e na sua coleção particular, intitulada Tsurayuki shû (Antologia de
Tsurayuki).
De acordo com o seu prefácio em Kokinwakashû, Kino Tsurayuki
esquematiza seis estilos de Yamato Uta (poesia do Japão): o soeuta (poema que
comporta um segundo significado), o kazoeuta (poema que comporta vários
significados), o nazuraeuta (poema em que há comparação), o tatoeuta (poema em
que há exemplificação), o tadagotouta (poema que trata de situações de tranquilidade
corretas) e o iwaiuta (poema de cunho comemorativo), ainda seguindo os moldes
estéticos da poética chinesa (WAKISAKA, 1997, p.59-60). Entretanto, deixa claro que
pode haver poemas que não se encaixem nesses seis tipos. O compilador ainda
atribui a origem do poema do gênero tanka às divindades, também apresenta sua
evolução histórica e tece críticas ao estilo poético dos seis imortais da poesia, isto é,
os seis poetas mais consagrados da época.
Sem dúvida, a maior contribuição desse prefácio para a literatura japonesa
reside na definição de padrões estéticos para a poesia da época. Para o plano da
expressão do poema, Kino Tsurayuki define como adequados a forma correta, o não
exagero no uso de recursos estilísticos poéticos e o uso de expressões de sentido
preciso. Quanto ao plano do conteúdo, o poeta valoriza a emotividade e critica
negativamente a fraqueza de atitude do autor e o estilo provinciano.
Deve-se ressaltar, ainda, que a obra Kokinwakashû serviu de modelo para
outras vinte e uma compilações de poemas, como Shin Kokinshû (Nova coletânea de
poemas waka de outrora e de hoje), de 1205, e foi referência para as gerações
seguintes de poetas. Exemplos de sua enorme importância são as citações de seus
poemas em obras de diversas épocas (KEENE, 1993, p. 270), que vão desde Genji
monogatari (Narrativa de Genji) a romances da atualidade.
Os temas da antologia Kokinwakashû são variados e não há uma distribuição

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igual da quantidade dos poemas em cada livro. A organização geral dos poemas não é
em ordem cronológica, mas sim por assunto. Sabe-se que, na sociedade da Era
Heian, os poemas eram utilizados para realizar convites, agradecimentos,
condolências, conquista amorosa, entre muitas outras situações (McCULLOUGH, H.
C., 1999, p.432). Por essa razão, os poemas compilados possuem temas diversos,
que tratam das estações do ano, do amor, da natureza, entre outros temas.

3. Os recursos estilísticos utilizados na poesia clássica de Kokinwakashû

Nos poemas da Era Heian, era comum o uso de alguns recursos estilísticos
poéticos, também chamados de recursos retóricos, entre os quais estão o kakekotoba,
o makurakotoba, o jokotoba e o engo2.
Ao longo da história, estilo passou a ter diferentes acepções. Para Aristóteles,
na Arte poética, por exemplo, o estilo corresponde ao ethos de justa medida, que faz
oposição ao ethos de exageros. De acordo com essa definição de ethos de justa
medida, "deve haver uma coerência interna num conjunto de discursos, uma
permanência de modos, objetos e meios, estes, que constituem critérios distintivos da
própria mímese aristotélica" (DISCINI, 2004, p. 18).
Segundo Bakhtin (FIORIN, 2006-a, p.46), estilo pode ser definido como o
"conjunto de procedimentos de acabamento de um enunciado", isto é, são "os
recursos empregados para elaborá-lo, que resultam de uma seleção dos recursos
linguísticos à disposição do enunciador".
Deve-se ressaltar também que, para Bakhtin, o estilo é um dos três
componentes do gênero textual. Junto com o conteúdo temático e a construção
composicional, o estilo caracteriza um enunciado relativamente estável, o que o torna
um gênero (FIORIN, 2006-a, p. 61).
Adotaremos essas definições bakhtinianas de gênero e de estilo, uma vez
que podem ser eficientes para o estudo do gênero poético tanka e dos recursos
estilísticos dos poemas da obra Kokinwakashû. Outro conceito a partir do qual
realizamos nossa análise é a intertextualidade ou dialogismo.
O dialogismo para Bakhtin possui diferentes acepções. A primeira refere-se
ao dialogismo constitutivo, que é definido por Fiorin (2006-b, p.167) como sendo o
"modo de funcionamento real da linguagem". Por esse conceito, "todo enunciado
constitui-se a partir de outro enunciado", ou seja, "é uma réplica a outro enunciado".
2
Preferimos não traduzir os nomes dos recursos estilísticos para a língua japonesa, uma vez que ainda
não encontramos termos de significado equivalente, cujo uso seja satisfatório.

892
Em uma segunda definição, Bakhtin atribui o termo dialogismo à forma de composição
do discurso. Por essa segunda definição, chamada de dialogismo composicional,
Bakhtin define o dialogismo como uma maneira de incorporar no discurso uma ou mais
vozes de um outro enunciado (FIORIN, 2006-a, p.32). Essas vozes podem estar
citadas claramente no discurso, como no uso de aspas e no discurso indireto; ou
podem ser utilizadas sem uma separação evidente entre o enunciado e a citação. A
essa primeira maneira de apresentar as vozes no discurso Koch e Elias (KOCH e
ELIAS, 2007, p.86) atribuem o nome de intertextualidade explícita; à segunda maneira,
de intertextualidade implícita.
Semelhante definição apresentada por Barros (2002) para a análise do
contexto do discurso é a intertextualidade contextual. De acordo com Barros, para
compreender o sentido de um texto, faz-se necessário, em alguns casos, analisar
outros textos que compõem o contexto de um discurso que se pretende analisar, pois
esse exame pode permitir o alcance a fatores sócio-históricos constitutivos da
enunciação (BARROS, 2002, p. 143).
O já referido conceito de dialogismo, tomado como sinônimo de
intertextualidade implícita é muito utilizado nos poemas clássicos de Kokinwakashû.
Os recursos estilísticos poéticos referem-se indiretamente a um enunciado já
produzido anteriormente em outros contextos. E com o uso dessa intertextualidade
implícita, procura-se gerar um efeito de sentido que abrange mais que o texto
propriamente dito.
No poema que se segue, por exemplo, podemos verificar a existência dos
recursos estilísticos kakekotoba e jokotoba. Vejamos:

雪の降りけるを詠める
霞立ち木の芽もはる
霞立ち木の芽もはるの雪触れば花なき里も花ぞ散りける
はるの雪触れば花なき里も花ぞ散りける 3

kasumi tachi / ko no me mo haru no / yuki fureba / hana naki sato mo /


4
hana zo chirikeru.

A seguir, nossa tradução para o poema:


5
Composto ao cair da neve.

3
Os poemas apresentados em língua japonesa foram extraídos da versão organizada por Masao Ozawa,
publicada pela editora Shôgakukan, em 1971.
4
Os poemas originários da língua japonesa são transcritos aqui utilizando o sistema de transliteração
Hepburn, o qual transcreve o sistema de escrita japonês para o alfabeto latino, de acordo com a
pronúncia inglesa (Fonte: Michaelis: Dicionário Prático Japonês-Português, Ed. Melhoramentos e Aliança
Cultural Brasil-Japão, Coord. Katsunori Wakisaka, SP, 2003.).
5
Esse trecho traduzido não integra o poema, mas é uma explicação sobre as circunstâncias da criação
do poema.

893
Paira o nevoeiro
E crescem os brotos nas árvores, na primavera,
Ao nevar,
No vilarejo, onde não floresce,
Pétalas caem

No poema, a intertextualidade está presente no uso dos recursos estilísticos


do kakekotoba e jokotoba. O primeiro recurso poético kakekotoba é concretizado com
o uso da palavra haru, cujo uso é padronizado historicamente. Esta possui o
significado de primavera e o de crescer, presentes em outros enunciados
anteriormente elaborados. A segunda acepção de haru pode ser lida como o
predicado vinculado ao sujeito ko no me (brotos, botões das árvores). Assim, devido
ao uso em enunciados anteriores do kakekotoba e do jokotoba presentes no poema
analisado, é possível acrescentar novo significado ao poema por meio da
intertextualidade presente no emprego do termo haru. Vejamos uma análise mais
atenta desses recursos estilísticos:
Na versão organizada por Kubota Utsubo (1960, p.118-119), esse autor, em
nota ao poema, afirma que a palavra haru possuía dois sentidos. O primeiro é o de
primavera, semelhante à acepção existente na língua japonesa moderna. E o segundo
corresponde a um significado, cujo uso é apenas arcaico, de florescer.
Tanto o sentido de primavera quanto o de florescer, gerados pelo uso do
termo homófono haru, são aceitáveis na leitura do poema, ainda que pertencentes a
classes morfológicas diferentes. No sentido de primavera, haru é classificado como
meishi (equivalente ao substantivo da gramática da língua portuguesa), enquanto que,
no sentido de crescer, florescer, encontra-se na classe morfológica dos dôshi
(equivalente aos verbos da língua portuguesa). Apesar dessa diferença morfológica e
da diferente posição sintática assumida pelo termo haru, no poema, subsistem os dois
significados.
Assim, de acordo com Miner, Odagiri e Morrell (1988, p.281), kakekotoba é o
uso de uma série de sons que possui dois significados. Ou seja, no kakekotoba, há
uso de um termo homófono, que possui dois significados diferentes e possíveis de
serem compreendidos no poema, o que causa certa dificuldade na tradução do poema
para línguas em que não há o mesmo termo homófono. Uma solução para esse
problema tradutológico encontrada por Duthie (2008, p.27-28) é ler a palavra
homófona com dois sentidos e inseri-los na tradução, sem utilizar um termo homófono.
Ainda que se perca o efeito poético gerado pelo kakekotoba, essa forma de tradução
não negligencia o plano do conteúdo do poema.
Seguindo essa orientação de Duthie para a tradução, optamos por inserir em

894
um mesmo verso as expressões crescem os brotos e primavera, ainda que na versão
original em língua japonesa ambas sejam manifestadas no plano da expressão apenas
pelo termo haru.
Com o uso do kakekotoba foi possível representar uma "confusão" da
percepção visual, denominada mitate, 6 sobrepondo imagens diversas ao poema
(DUTHIE, 2008, p.29). O sujeito enunciador possui a percepção da neve que se
confunde com a do florescer.
Kubota (1960, p.118-119) também esclarece que os dois primeiros versos
formam o recurso poético jokotoba. Este funciona como um prefácio do poema e
contém o termo que atribui dois sentidos diferentes aos versos. Frédéric (2008, p.548)
define jokotoba como sendo um “'prefácio' constituído por uma frase mais ou menos
longa colocada no início de um poema e que tem uma relação metafórica com ele”.
Desse modo, de acordo com a ocorrência do jokotoba em poemas anteriores,
estabelece-se, por meio do dialogismo, um outro significado que se atualiza no poema.
Pode-se observar que o uso do kakekotoba na palavra haru acrescenta ao
poema a informação de que é primavera e de que brotam e florescem as árvores. Por
essa razão, é importante notar que não há alternância entre os dois sentidos do termo
homófono, mas há uma soma que contribui para o sentido do poema todo.
Com relação ao jokotoba presente nos dois primeiros versos, nele evidencia-
se a metáfora do florescer das flores, ponto central do poema. Com o emprego da
palavra haru, na sua acepção arcaica de florescer, pode-se notar um indicativo da
imagem poética do cair das pétalas, que está presente nos versos finais do poema.
Saika Keiti (1957, p.47-48), em nota ao poema, explica que o sentido do
presente waka está indiretamente apresentado ao reunir a impressão do enunciador e
a paisagem descrita. Ele apresenta a seguinte versão em língua japonesa moderna:

(霞が立ち木の芽も萌えだす)春になっての雪が降るので、花
の咲いていない里にも花が散っている。(ように見えるよ)
(Quando paira o nevoeiro e crescem brotos nas árvores) como
cai a neve de primavera, mesmo nos campos em que ainda não
7
floresce, as pétalas, (com essa aparência) podem ser vistas.

Desse modo, o enunciador, envolto em névoa e visualizando o brotar de


folhagens e botões típicos da primavera nas árvores, percebe, na tardia neve, a
imagem das pétalas de flores pairando. O uso do termo haru, por ter seu uso como
6
Para Duthie, mitate pode ser ilustrado pela expressão "ver una cosa como otra". Esse autor define esse
conceito estético como sendo uma "confusión visual entre dos cosas diferentes que se asemejan"
(DUTHIE, 2008, p.29).
7
Nossa tradução para o poema transcrito em língua japonesa moderna.

895
termo homófono em enunciados anteriores, carrega consigo, por meio da
intertextualidade, a referência aos dois sentidos, fazendo com que estes se atualizem
também nos enunciados posteriores.
O makurakotoba (pillow word ou palavra travesseiro), segundo Wakisaka
(1982, p.23), era uma técnica que consistia em "conferir às palavras um certo poder de
espiritualidade/ misticidade (kotodama), ao mesmo tempo que se faz transparecer nela
a consciência de respeitabilidade do homem de então com o não eu", por meio do
emprego de um breve epíteto. Esse recurso poético possuía um caráter coletivo, pois
se tornava recorrente utilizar sempre o mesmo epíteto para se referir a um termo
determinado. Portanto, constitui uma marca de intertextualidade implícita no discurso.
Por exemplo, o poema 59 a seguir, de Kino Tsurayuki, conta com o
makurakotoba ashihiki no para o termo yama (montanha). Vejamos:

「歌奉れ」 とおほせられしとき、よみて奉れる
桜花咲きにけらしなあしひきの山の峡より見ゆる白雲
Sakurabana/sakinikerashi na/ ashihiki no/ yama no kai yori/ miyuru
shirakumo

Nossa tradução:

Composto por ordem de Sua Majestade para apresentar poemas.

As flores de cerejeira
Parecem florescer!
É o que vejo,
entre as montanhas imponentes,
as nuvens brancas.

Como se pode observar, de acordo com a recorrência à intertextualidade,


pode-se criar um efeito de sentido para a expressão ashihiki no, que assume um
caráter de uso coletivo. Massui Gen (apud WAKISAKA, 1992, p.126) esclarece que
esse recurso estilístico originou-se da tradição de “louvar os nomes próprios das
divindades anunciados em ocasiões especiais”. Por essa razão, a tradução do
makurakotoba é extremamente difícil nos dias atuais, pois o seu significado original,
muitas vezes, perdeu-se com o passar dos anos.
No poema analisado, o termo que funciona como makurakotoba enaltece o
termo yama (montanha). Segundo Wakisaka (1992, p.127), esse termo tem o
significado de “o arrastar dos pés, ou o prolongamento das linhas da encosta da
montanha na sua base”. Devido à imprecisão do seu significado, a expressão ashihiki
no presente no poema não pode ser traduzida pelo seu sentido literal. No entanto,

896
optamos por utilizar o adjetivo imponentes, uma vez que o makurakotoba exerce
função adjetiva no poema e tem a função de enaltecer o termo montanhas.
Jokotoba é um recurso muito semelhante ao makurakotoba, por apresentar
também o uso de um epíteto, mas diferencia-se por ser mais longo e por não
corresponder a uma forma fixa, mas sim ser específico de um poema em particular
(DUTHIE, 2008, p.26). Todavia, os dois recursos estilísticos são de uso coletivo, uma
vez que, somente por meio da intertextualidade, pode-se perceber a sua existência no
poema.
Engo ou palavras associadas, outro recurso estilístico poético, consiste no
uso no poema de palavras com associação semântica e convencional, a fim de criar o
sentido principal do poema com base no sentido gerado pela junção de imagens
(DUTHIE, 2008, p.28). Essa associação de imagens só se torna possível se analisada
conforme o contexto da obra, uma vez que se trata de uma recorrência à convenção
baseada na percepção do homem na Era Heian. No poema 170, de Kino Tsurayuki,
que se segue, temos a associação do termo tatsu (levantar-se; começar) com nami
(onda) e aki (outono):

秋立つ日、うへの男ども、賀茂の河原に川逍遙しけるとものまかり
てよめる
川風のすずしくもあるかうちよする波とともにや秋は立つらむ
kawa kaze no/ suzushiku mo aru ka/ uchiyosuru/ nami to tomo ni ya/
aki wa tatsu ran

A seguir, nossa tradução:

Composto no primeiro dia de outono, na companhia de um superior


da corte, em uma excursão ao Rio Kamo.

A brisa do rio
com o seu frescor
aproxima-se.
Com o levantar das ondas,
o início do outono.

No poema, os termos nami (onda) e aki (outono) estão associados pelo


conector tatsu (levantar-se; começar). Portanto, no poema, há uma ampliação do
sentido, de acordo com a combinação dos três termos, conforme esquematizamos a
seguir:

1. O outono começa, aproxima-se.


2. A onda levanta-se.

897
Portanto, assim como a onda levanta, o outono aproxima-se.
Com a associação feita pelo recurso poético engo, cria-se uma ênfase sobre
a relação entre os termos associados, o que é possível observar somente sob o
prisma da intertextualidade, já que a associação das imagens só ocorre em função de
uma convenção já estabelecida em enunciados anteriores.

Considerações finais

Por meio da análise dos poemas do gênero tanka e seus recursos estilísticos
kakekotoba, makurakotoba, engo e jokotoba, pudemos notar que é devido ao
dialogismo que o sentido do poema é atualizado. Para a compreensão dos
significados dos recursos estilísticos, é necessário considerar a produção poética
anterior e as relações que o poema estabelece com esta.
Acreditamos que o estudo desses recursos poéticos nos poemas de Kino
Tsurayuki, poeta, autor do prefácio em língua japonesa e principal compilador da
antologia Kokinwakashû, possa contribuir para uma maior compreensão do estilo
presente nos poemas do gênero tanka e, de maneira mais ampla, para uma maior
compreensão do sentido utilizado nos poemas registrados nessa obra.

Referências bibliográficas

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