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Superior Tribunal de Justiça

GMLFS07

RECURSO ESPECIAL Nº 1.305.183 - SP (2012/0008913-0)


RECORRENTE : CRISTIANE AMORIM DE OLIVEIRA
ADVOGADO : FERNANDA MASSAD DE AGUIAR E OUTRO(S)
RECORRIDO : AYMORÉ CRÉDITO FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO S/A
ADVOGADO : RICARDO PENACHIN NETTO E OUTRO(S) - SP031405

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO:

1. Aymoré Crédito Financiamento e Investimento S/A, ora recorrida, ajuizou


ação de busca e apreensão (fls. 4-6) em face de Cristiane Amorim de Oliveira, recorrente.
Esclareceu a autora que firmou com a ré contrato de financiamento vinculado à aquisição
de veículo e, em garantia ao integral cumprimento das obrigações assumidas, fora
alienado fiduciariamente o veículo Mercedez Bens, modelo ML 320 AB54. Informou que,
no curso do contrato, a devedora fiduciante deixou de pagar algumas parcelas,
provocando sua resolução antecipada.
O Juiz sentenciante acolheu o pedido, declarando rescindido o contrato e
consolidando nas mãos da autora o domínio e posse do bem, cuja apreensão,
liminarmente concedida, tornou definitiva (fl. 98).
A ré, devedora, interpôs embargos de declaração sob argumento, dentre
outros, de omissão do juízo quanto ao pedido de retirada dos aparelhos de adaptação
para necessidades especiais instalados no veículo apreendido, assim como do
dispositivo "Sem Parar", para pagamento automatizado de pedágios; os embargos foram
acolhidos.
Inconformada, a autora/credora interpôs apelação no que tange à retirada
dos equipamentos mencionados, sob o argumento de que a posse e a propriedade do
bem foram integralmente consolidadas em favor da apelante e, consequentemente,
também o foram os acessórios do bem.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deu parcial provimento ao
recurso, nos termos da ementa reproduzida abaixo (fl. 198):
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM. GARANTIA - AÇÃO DE BUSCA E
APREENSÃO COM PEDIDO LIMINAR - Apelação contra sentença que julgou
procedente o pedido inicial consolidando a propriedade do bem em posse do
credor, determinando a retirada de acessórios consistentes na adaptação do
veiculo para uso por portadores de deficiência física e pertença consistente
em instrumento de pagamento automatizado de pedágios - Acessórios que
seguem a sorte do bem principal, mantida no referente às pertenças.
Manutenção parcial da sentença por seus próprios fundamentos.

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APELAÇÃO. SENTENÇA QUE MERECE SER PARCIALMENTE


CONFIRMADA POR SEUS FUNDAMENTOS - SUPEDÂNEO NO ARTIGO
252 DO REGIMENTO INTERNO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO
PAULO - POSSIBILIDADE - PRECEDENTES DO COLENDO SUPERIOR DE
JUSTIÇA EM RESPALDO DA PROVIDENCIA, PRESTIGIANDO O CÉLERE
DESFECHO RECURSAL APELO IMPROVIDO. Disposição regimental que
prevê a possibilidade de confirmação da sentença recorrida por seus próprios
fundamentos, sem a necessidade de injustificada repetição da motivação
amplamente deduzida, como forma de se prestigiar a célebre prestação
jurisdicional. Preceito de aplicação possível, consoante pronunciamentos
reiterados do Superior Tribunal de Justiça.

Inconformada, a apelada, ré na ação principal, interpôs recurso especial (fls.


203-209), com fundamento na alínea "a" do permissivo constitucional e alegação de
violação aos arts. 92 e 96 e 884, parágrafo único do Código Civil.
Argumenta que os equipamentos colocados no bem, que viabilizaram a
condução do veículo por pessoa com deficiência física, não podem ser considerados
acessórios. Salienta que estes objetos podem ser adaptados em outro carro e não
dependem de um veículo específico para o regular funcionamento.
Defende que os aparelhos foram pagos pela recorrente e não faziam parte
do automóvel no momento da contratação.
Não foram apresentadas contrarrazões, conforme certidão de fl. 215.
O recurso especial recebeu crivo positivo de admissibilidade na origem (fl.
216).
É o relatório.

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.305.183 - SP (2012/0008913-0)


RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE : CRISTIANE AMORIM DE OLIVEIRA
ADVOGADO : FERNANDA MASSAD DE AGUIAR E OUTRO(S)
RECORRIDO : AYMORÉ CRÉDITO FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO S/A
ADVOGADO : RICARDO PENACHIN NETTO E OUTRO(S) - SP031405
EMENTA

VOTO

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):

2. A controvérsia consiste em definir se devem ser considerados acessórios


de veículo automotor os equipamentos viabilizadores de condução por deficiente físico,
instalados em automóvel objeto de contrato de financiamento com alienação fiduciária.
A sentença de piso acolheu os embargos de declaração da ora recorrente,
no que dizia respeito à alegação de omissão quanto ao pedido de retirada das
adaptações constantes do veículo, que possibilitavam a condução por deficiente físico,
porque por ele introduzidas. Confira-se a sentença integrativa (fl. 144):
No que tange à determinação de levantamento do valor depositado, e pedido
de retirada dos aparelhos instalados no veículo, houve contradição
realmente, devendo ser declarada a sentença.
Diante do exposto, declaro, pois, a sentença, cuja parte dispositiva passa a
ter a seguinte redação:
"Condeno o réu, ao pagamento das custas do processo, despesas
processuais e honorários advocaticios que arbitro em 10% sobre o valor da
causa.
P.R.I.C., e nada sendo requerido em cinco dias, arquivem-se.
Com o trânsito em julgado expeça-se ofício ao Detran autorizando a
transferência do veículo ao autor, bem como expeça-se guia de levantamento
à requerida referente ao valor depositado judicialmente, deferida a retirada
dos aparelhos de adaptação e do dispositivo "Sem Parar", instalados no
veículo e que são de propriedade da requerida."

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Ao examinar a apelação, no entanto, o Tribunal de Justiça do Estado de São


Paulo, em sucinto voto, modificou este entendimento (fls. 199):
Da respeitável sentença de fls. 72/73, declarada às fls. 111/112, que julgou a
ação de busca e apreensão movida por AYMORÉ S.A contra CRISTIANE
AMORIM DE OLIVEIRA, apela a financeira-autora (fls. 134-138), pretendendo
a exclusão da determinação de retirada das adaptações efetuadas no veículo
para uso por portadores de deficiência física, bem assim dos mecanismos
instalados para pagamento automatizado de pedágios, aduzindo constituírem
acessórios que seguem a sorte do bem principal.
(...)
Importa frisar que tais modificações constituem acessórios e como tais,
seguem a sorte do bem principal.
O mesmo, contudo, não pode ser dito sobre os dispositivos eletrônicos de
pagamento automatizado de pedágio, os quais se enquadram no conceito de
pertenças e, bem comprovada sua aquisição pela parte devedora (fls. 94), de
rigor sua devolução sob pena de enriquecimento ilícito da credora.

3. Impende, de início, estabelecer o conceito preciso e jurídico de bem.


Clóvis Bevilaqua preleciona que "para o direito, bens são os valores materiais ou
imateriais, que servem de objeto a uma relação jurídica". (Código civil dos estados unidos
do brasil comentado. v.1. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves. 1953, p. 214)
Dessarte, é possível perceber indiscutível interesse prático na classificação
desses objetos, tendo em vista a necessidade de identificação das disposições legais
responsáveis pela disciplina da matéria, mormente no tocante às relações negociais
patrimoniais.
Com efeito, a classificação mostra-se como operação lógica, tendente à
"facilitar a compreensão de uma instituição jurídica, agrupando as várias espécies de um
gênero, para aproximar as que apresentem um elemento comum, afastando as que não o
apresentem". (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito brasileiro. Teoria geral do direito civil.
v.1. 32. ed. São Paulo: Saraiva, p. 370).
O tema, em verdade, transcende a construção teórica de conceitos jurídicos,
porque apresenta implicações práticas relevantes.
Nessa toada, o Código Civil brasileiro adotou os seguintes critérios para
classificar os bens: - bens considerados em si mesmos; - bens reciprocamente
considerados e - bens considerados em relação ao sujeito. Os bens considerados em si
mesmos constituem a classe mais extensa, formada a partir de suas individualidades e
sem relação entre eles ou deles com as pessoas. São eles os bens móveis e imóveis,
fungíveis e infungíveis, consumíveis e inconsumíveis, divisíveis, singulares e coletivos. O

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diploma civil de 2002 tratou de discipliná-los dos arts. 79 ao 91.


Por sua vez, os bens reciprocamente considerados serão vistos em relação
a si mesmos, a partir de uma relação que se forma entre eles. Encontram-se nessa classe
os bens principais, os acessórios, as pertenças e as benfeitorias.
No ponto, o Código Civil de 2002, em seu art. 92, conceituou a coisa
principal e a acessória ao estabelecer:
Art. 92. Principal é o bem que existe sobre si, abstrata ou concretamente;
acessório, aquele cuja existência supõe a do principal.

Maria Helena Diniz, comentando o dispositivo, pondera que a "coisa principal


é a que existe por si, exercendo sua função e finalidade, independentemente de outra, p.
ex., o solo. E a acessória é a que supõe, para existir juridicamente, uma principal" (Op. cit.
p. 390).
Na trilha dessa conceituação, Arnaldo Rizzardo esclarece que no código civil
atual não há, e nem havia no anterior, uma classificação dos bens acessórios. Assim,
para fins de estudo, firmou-se uma divisão em três sub-classes: naturais, industriais e os
civis. Na classificação formulada por esse autor, são bens acessórios naturais os frutos,
as árvores, os minerais. Os acessórios industriais decorrem da atividade humana, como
as construções, as plantações, as benfeitorias e as máquinas. Já os bens civis acessórios
seriam os nascidos de uma relação jurídica, tais como os juros, os dividendos e os
aluguéis.
Para Fábio Ulhoa Coelho, os bens acessórios são gênero do qual são
espécies: os frutos e produtos, as benfeitorias e as pertenças (Curso de direito civil. 7.ed.
São Paulo: Saraiva, 2014, p. 298)
Importa destacar, de outra parte, que o diploma civil trouxe relevante
alteração ao regime dos bens reciprocamente considerados. Ao contrário do Código Civil
de 1916, no qual imperava a categoria do imóvel por destinação, no Código Civil em vigor,
além de expressamente restar consignada a existência das partes integrantes no sistema
jurídico, veio a ser regrada, nos arts. 93 e 94, a pertença.
Prescreve, com efeito, a art. 93:
Art. 93. São pertenças os bens que, não constituindo partes integrantes, se
destinam, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento de
outro.

Complementando a disciplina, o art. 94 estabelece uma distinção entre bem


principal e pertença, ao proclamar:

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Art. 94. Os negócios jurídicos que dizem respeito ao bem principal não
abrangem as pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação
de vontade, ou das circunstâncias do caso.

Como se percebe da leitura do art. 93, a parte geral do Código Civil em vigor
não apresentou um conceito de parte integrante, fazendo tão somente uma referência à
categoria para contrapor-se à definição de pertença. Por essa peculiaridade legal, a parte
integrante é conceito jurídico indeterminado.
4. Diante deste quadro, parece necessário classificar adequadamente os
instrumentos de adaptação para condução veicular por deficiente físico. O acórdão
recorrido, por considerá-los bens acessórios, prestigiando a máxima segundo a qual a
coisa acessória segue, logicamente, a principal, ante o princípio da gravitação jurídica,
impediu a retirada daqueles bens, declarando-os de propriedade do credor fiduciário.
No entanto, a meu ver, observada sempre a máxima vênia, a conclusão do
acórdão recorrido não foi precisa e acabou por reunir espécies com características
singulares, que, na verdade, ao serem consideradas, deveriam se afastar de um
regramento comum.
É que, ao afirmar que os instrumentos adaptados ao carro alienado
fiduciariamente, eram simplesmente bens acessórios, o Tribunal de origem desconsiderou
o fato de que, ainda que sejam acessórios, por vezes, as espécies desse gênero recebem
disciplina diametralmente oposta. Exemplo disso são os frutos e as pertenças. Por
expressa disciplina legal, seguirão os frutos a sorte do bem principal a que se vinculam.
Noutro ponto, as pertenças, em regra, serão autonomamente consideradas e, apenas
quando declarado, seguirão a sorte do principal. Ambos acessórios, porém, com destinos
diferentes.
Não bastasse o tratamento unitário e não distintivo conferido aos bens
acessórios pelo Tribunal paulista, houve outro equívoco ao deixar de referir-se às partes
integrantes de um bem, conceito que da mesma forma merecia ser considerado na
solução da contenda.
De fato, "a pertença (CC, art 93) é bem que se acresce, como acessório, à
coisa principal, daí ser res annexa (coisa anexada). Portanto, é coisa acessória sui
generis, destinada, de modo duradouro, a conservar ou facilitar o uso, ou prestar serviço,
ou, ainda, servir de adorno do bem principal, sem ser parte integrante" (DINIZ, Maria
Helena, Op. cit., p. 395)
Destinam-se as pertenças a dar alguma qualidade ou vantagem ao bem,
fator que lhes fornece o caráter de acessoriedade. Há vinculação com a coisa principal,

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pois são criadas para lhe imprimir maior serventia, ou a aumentar a utilização, ou a trazer
vantagens no desfrute. Todavia, adverte RIZZARDO, "mantêm essas coisas a sua
individualidade e autonomia, não se incorporando no bem principal, ou constituindo uma
unidade" (Op. cit., p. 345)
Marcelo Junqueira Calixto elucida que o Código Civil determina a ocorrência
de três situações jurídicas, uma para as partes integrantes, outra para as pertenças e
outra para os bens acessórios:
As primeiras (partes integrantes) estão irremediavelmente ligadas ao
bem, não sendo objeto de relações jurídicas próprias, salvo a exceção
do art. 95. As segundas (pertenças) podem ser destacadas do bem
principal, podendo, portanto, ser objeto de relações jurídicas próprias,
sendo que, como regra, não seguem a sorte do bem principal. Os bens
acessórios, entendidos como aqueles que não se enquadram no conceito de
partes integrantes nem no de pertença (exemplo é o fruto percebido e não
empregado na destinação econômica do principal), podem ser objeto de
negócios jurídicos autônomos, mas, como regra, seguem a sorte do bem
principal.
(Apud DE FARIAS, Cristiano e ROSENVALD, Nelson. Direito civil. Teoria
geral. 9. ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2011, p. 501).

Seguindo as ideias de Maria Helena Diniz, saliente-se que, conforme


antecipado por Calixto, a pertença, por não ser parte integrante do bem principal, não é
alcançada pelo negócio jurídico que o envolver, a não ser que haja imposição legal, ou
manifestação das partes, no sentido de fazer com que a pertença siga o destino do bem
negociado e, embora não sejam fundamentais para a utilização do bem, servem-no.
Nelson Rosenvald e Cristiano Faria, satisfatoriamente, esclarecem que em
que pese terem em comum o fato de haver relações de subordinação a um bem principal,
as pertenças e as partes integrantes não se confundem, pois enquanto aquelas estão a
serviço da finalidade econômica de outro bem, mantendo sua individualidade e
autonomia, estes se incorporam a uma coisa, completando-a e tornando-a possível o seu
uso. E exemplificam: "enquanto a lâmpada de uma abajur, os pneus de um automóvel e
as telhas de uma casa são partes integrantes, os tapetes de um prédio, o ar-condicionado
instalada e os maquinários agrícolas caracterizam-se como pertenças" (Op. cit., p. 500).
No rumo destes exemplos de pertenças antes invocados, estão os dispostos
na obra de Arnaldo Rizzardo. Confira-se: "pertenças agrícolas, máquinas, tratores,
instrumentos agrícolas, animais etc., utilizados no preparo, plantio e colheita da produção;
as urbanas, tudo o que se incorporar aos edifícios residenciais, como os elevadores, as
bombas de água, as instalações elétricas, as estátuas, os espelhos, os tapetes; as
industriais, máquinas e equipamentos utilizados no funcionamento da indústria. (Op. cit.,

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p. 346)
Uma vez mais, trago à baila lição de Maria Helena Diniz para auxiliar a
elucidação da matéria. É da professora paulista a lição segundo a qual as pertenças
constituem "bens acessórios sui generis, e por serem coisa ajudantes, mesmo que não
sejam propriedade do dono da principal, destinam-se a servir ao fim econômico ou técnico
do bem principal, a que se ligam", "ajuda, ou serve, a coisa principal, entrando de algum
modo no lugar que esta ocupa no espaço geográfico-econômico. Como relação de
pertinencialidade advém de um negócio jurídico, que sujeita uma coisa a serviço de outra,
ela só se estabelece se tal coisa, economicamente, se anexar à outra" (Op. cit., p. 397)
Acrescenta Gustavo Haical, em artigo denominado As partes integrantes e a
pertença do código civil, que, quanto às pertenças, "a relação de pertinencialidade surge
não por haver a conexão material entre duas coisas, como acontece na coisa composta,
mas por uma relação espacial, em que a coisa secundária, classificada como pertença,
atende a finalidade econômico-social da coisa principal". E continua:
A pertença, portanto, é coisa ajudante da coisa principal, por atender ao uso,
serviço ou aformoseamento da coisa principal. Muito embora a pertença
forme com a coisa principal uma unidade funcional, por não estar ligada
materialmente à coisa principal, conserva sua autonomia e identidade. Por
isso, os direitos relativos à coisa que passou a ser pertença não se
extinguem. A alienação da pertença conjuntamente com a coisa
principal não extingue o direito de propriedade nem outros direitos reais
sobre ela recaídos. A independência física da pertença permite que ela
seja livremente separada da coisa principal, sem que isso acarrete
alteração ou destruição material, mas apenas afetação à finalidade
econômico-social da coisa principal. Portanto, não há objeções à
separação da pertença para com a coisa principal, ao contrário do que
se dá com as partes integrantes essenciais.
(Revista dos Tribunais: RT, v. 102, n. 934, p. 49-135, ago. 2013)

Na mesma obra do autor, este preleciona que haverá o direito de retirada e,


por consectário, permanecerá o de propriedade, se a coisa, ainda que incorporada
permanentemente à principal, tenha a qualidade de parte integrante não essencial.
Anuncia, nessa esteira, apesar de com ela não concordar, julgado de tribunal estadual
que decidiu no sentido de que sendo alienado fiduciariamente um caminhão e se,
posteriormente, foram incorporados carroceria de madeira, climatizador de ar, aparelho de
rádio e jogo de pneus, que podem ser retirados sem danos, não estão essas coisas
abrangidas pela garantia do credor do caminhão, nem pela medida de busca e
apreensão, pois, em não se tornando parte integrante essencial, mas sim não essencial,
tem o devedor ius tollendi.

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Por fim, merecem destaque, pela especificidade da obra, os ensinamentos


de Alexandre Pimenta Batista Pereira, apresentados em tese de doutorado à
Universidade Federal de Minas Gerais, a respeito do grau de fixação dos bens, segundo o
qual:
em alguns casos observa-se uma ligação rígida, cujo rompimento possa gerar
destruição dos objetos ou ser ocasionado mediante custo elevado. Em
outros, porém, se enxerga uma vinculação de serviço, por meio da qual
se ateste um caráter de complementariedade, a contribuir para uma
atribuição finalística.
(...)
Ao passo que as partes integrantes servem à completude da coisa,
conservam as pertenças a independência, de sorte a estarem acrescidas à
coisa principal pela destinação serviçal.
No mesmo sentido encaminha-se a observação de Cunha Gonçalves: "a
pertinência não integra ou não completa uma coisa, não é uma parte desta,
mas sim uma coisa em dependência econômica doutra, porque é um meio
para utilização desta, tem por função servir ao fim a que a coisa
principal se destina".
Tanto em um quanto em outro caso, a consideração recíproca é mesmo
fundada no eventual prejuízo do afastamento. Se, nas partes integrantes, a
rigidez é forte, a importar uma aferição do prejuízo na ordem natural, em
relação às pertenças a ligação é conferida pela dinâmica fraca, já que o
prejuízo da separação é observado apenas em atenção à ótica
econômico-finalística e não em vista da desintegração dos objetos.
(Bens acessórios, partes integrantes e pertenças) Curitiba: Juruá Editora,
2010.

5. No caso dos autos, penso que há um bem principal, o automóvel


Mercedes Benz ML 320 AB54 e também as pertenças, os aparelhos de adaptação para
direção por deficiente físico (acelerador e freio manuais), a induzir a aplicação da regra
insculpida no art. 94 do CC, segundo a qual aquela espécie de acessórios, as pertenças,
não segue o destino do bem principal a que se vinculam.
É que o bem principal, o carro, tem "vida" absolutamente independente dos
aparelhos de aceleração e frenagem manuais, que a ele encontram-se acoplados tão
somente para viabilizar a direção por condutor com condições físicas especiais. Se
retirados esses aparelhos, o veículo mantem-se veículo, não perde sua função ou
utilidade, ao revés, recupera sua originalidade.
Situação diferente ocorre, por exemplo, aos pneus do referido carro, estes
partes integrantes, cuja separação promoveria sua destruição ou danificação, devendo,
portanto, seguir o destino do principal.
Assim, penso ser direito do devedor fiduciante, ora recorrente, a retirada das
pertenças consistentes nos aparelhos de adaptação para direção por deficiente físico, se

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anexados por ele ao bem principal e, por óbvio, se realizada a adaptação em momento
posterior à garantia fiduciária.
Destarte, é sabido que a alienação em garantia se dá no momento em que
aperfeiçoado o contrato de financiamento, porque, inclusive, no caso concreto, num
mesmo instrumento estão expressas as duas avenças (fls. 23-24). Seguindo essa linha,
ao que tudo indica, já que carente de detalhes os autos, é verdade, no momento da
contratação, o veículo alienado não continha os aparelhos de adaptação para condutores
com deficiência física, tanto que as especificações do objeto contratual não se referem a
eles.
Com efeito, diz o contrato de financiamento (fl. 23):
VI - Descrição da Garantia
Descrição
Marca MERC BENZ
Modelo ML 320 AB54
Ano 1999
Combustível GASOLINA
Chassi WDCAB54E5XA091069
Placa CF0008
Cor PRATA

Noutro ponto, quando já ajuizada a ação de busca e apreensão e deferida a


retomada do bem, consta do Auto de Busca e Apreensão e Depósito (fls. 34) a seguinte
descrição do bem:
- um veículo marca Mercedez Bens, Modelo ML 320 AB54, cor prata,
gasolina, ano/modelo 1999, placa CSF 0008, chassi WDCAB54E5XA091069;
- O paralama dianteiro direito possui um risco; o parachoque dianteiro
apresenta uma avaria do lado direito; os parachoques dianteiro e traseiro
apresentam riscos diversos; os retrovisores apresentam riscos;
- o veículo está adaptado para deficiente físico.

6. Cumpre observar - ainda que para o desenlace da controvérsia não


tenham sido utilizados princípios relevantes ao ordenamento jurídico, tais como a
dignidade da pessoa humana e a isonomia -, que a solução legislativa aqui invocada
acaba por servir à concretização dos mandamentos da Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência, destinada a assegurar e a promover o exercício dos direitos e
das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência.
De fato, a recente Lei n. 13.146 de 2015, em seu Título II, dedicou capítulo
específico ao direito ao transporte e à mobilidade da pessoa com deficiência ou com
mobilidade reduzida, e no Capítulo X recomendou ações para a promoção desses
direitos, tanto no que toca ao transporte coletivo de pessoas, quanto às formas de

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mobilidade particular, disciplinando, por exemplo, o dever do Poder Público incentivar a


fabricação de veículos adaptados, assim como os serviços de adaptação dos veículos
originalmente não adaptados (art. 50 e § 2º do art. 51), questão considerada fundamental
para a autonomia e independência da pessoa com deficiência.
Ressalte-se que a recente legislação é expressão da solidariedade social
apresentada na Constituição Brasileira de 1988, seguindo a mesma linha de outras
nações, abandonando a exclusiva visão assistencialista sobre grupos mais vulneráveis,
seja em razão da idade, condição física ou psíquica, privilegiando, ao revés, ações que
permitam aproximar a rotina desses cidadãos à rotina dos não vulneráveis, tais como a
independência de ir e vir, coroada pela possibilidade de condução de automóveis.
Nessa linha, interessante destacar uma de muitas matérias jornalísticas,
esta veiculada na Folha de São Paulo, em abril de 2005, ano em que assinado o contrato
de financiamento entre as partes deste recurso, em que se registrou que a solução de
milhares de deficientes físicos para driblar as dificuldades para usar transporte público,
vinha sendo a opção pela adaptação de veículo, ainda que para tanto devesse ser
realizado um alto investimento. Estimou-se, à época, que mais de 12 mil carros adaptados
rodavam no Brasil, número, inclusive, considerado ainda baixo, já que 24,5 milhões de
pessoas no país teriam algum tipo de deficiência
(http://carros.uol.com.br/noticias/redacao/2013/09/30/adaptar-carro-a-necessidade-do-mot
orista-pode-zerar-desconto.htm). No caso, ainda que não detalhados nos autos os
aparelhos utilizados para adaptação do veículo ou mesmo os valores por eles pagos,
numa busca descompromissada, servindo, aqui, apenas a título ilustrativo, é possível
perceber que um aparelho de comando manual especial (CME) é comercializado pela
maior empresa de adaptações do país, Cavenaghi Indústria e Comércio de Equipamentos
Especiais Ltda, por R$2.090,00 (dois mil e noventa reais), fora os custos da própria
adaptação em si, podendo este atingir patamares bem elevados no mercado.
Assim, se tomado o valor máximo estimado - em rápida pesquisa na internet
- para o serviço de adaptação, esse investimento significaria mais de 50% (cinquenta por
cento) do valor do veículo usado adquirido pela recorrente com o financiamento (R$
71.250,67), conforme fl. 23.
Não há dúvidas, pois, que a recuperação dos aparelhos adquiridos pela
recorrente para adaptação do veículo para direção do esposo com deficiência física é sim
um facilitador/promotor de novo investimento de adaptação veicular que a recorrente
necessitará realizar, uma vez que o condutor não possui mobilidade nas pernas,
conforme noticiado na peça de contestação (fl. 36-45), sendo a direção possível somente

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por meio dos aparelhos especiais.

7. Por fim, registro ainda que, da pesquisa realizada na jurisprudência desta


Casa, merece destaque a decisão monocrática de relatoria do eminente Ministro Antônio
de Pádua Ribeiro, proferida nos idos de 2007, pela similitude com os fatos agora
analisados, em que ficou assentado que "a procedência do pedido de busca e apreensão
não alcança senão o bem dado em garantia do empréstimo, excluídos eventuais
equipamentos instalados posteriormente pelo adquirente do veículo, especialmente em se
tratando de aparelhagem dedicada ao desempenho da sua atividade profissional, na
hipótese, de taxista".
Na oportunidade o preclaro relator, reproduzindo excerto do acórdão
recorrido, ponderou:
No que tange ao recurso da parte ré, a apreensão do veículo com todos os
acessórios nele incluídos não se afigura como medida correta,
principalmente, quando alguns deles se relacionam com o desempenho da
atividade profissional do autor, eis que somente encontrados nos veículos
utilizados como táxis.
Assim, as pertenças que se encontram nessa situação, isto é, que são
utilizadas pelo autor no exercício de sua atividade laboral, devem ser
devolvidas ao mesmo, sob pena de inviabilizar o desempenho da profissão de
taxista do demandante e importar em verdadeiro enriquecimento sem causa
do réu, eis que adquiridos e introduzidos no veículo pelo requerente após a
aquisição do veículo.
A jurisprudência de nosso Tribunal de Justiça vem se firmando no sentido de
reconhecer como indevida a apreensão dos bens incorporados ao veículo
após a aquisição do automóvel. In casu, o veículo objeto do contrato de
alienação não fora adquirido como táxi, razão pela qual deve se entender que
os objetos nele incorporados e que e destinam exclusivamente ao transporte
de passageiros, foram instalados após a efetivação da transação suso
referida." (fl. 263 - 264)

Concluiu, ao final, que "não prevalece o argumento do banco recorrente,


consistente em afirmar que o equipamento em questão deve ser considerado acessório
para efeito de permanecer instalado após a devolução do bem principal, invocando, para
tanto, os artigos 92, 93 e 94 do Código Civil. É que, no caso, tem primazia o preceito legal
que veda o enriquecimento sem causa" (AG n. 918.760 /RJ, Relator Ministro Antônio de
Pádua Ribeiro, 22/08/2007).
8. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para autorizar o
pedido de retirada das pertenças (adaptadores da condução veicular por deficiente físico),
mantido o acórdão quanto ao mais.

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É o voto.

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