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O hipertexto suspende a solidão1

Boa noite para todo mundo aqui presente. Agradeço o convite para estar aqui mais uma vez

nesta casa que sempre me acolhe com generosidade. Aqui foi e continua sendo a minha casa.

Agradeço ao professor André Faria e à minha querida amiga, professora Marivone Borges,

pelo carinho de sempre. Agradeço à coordenação da semana de Letras. Ao DCHL, na pessoa

de sua diretora, a professora Alessandra Bueno. Mais do que nunca, precisamos de

interação face a face neste mundo em que todos nos escondemos por trás de

computadores, smartfones e celulares. Ao lado do professor André Faria e da professora

Elisângela Gonçalves me sinto muito bem acompanhado.

Todo mundo que veio hoje aqui participar das discussões desta mesa, certamente, além de

motivados pelos debates em cena, se lança em uma atitude de construção de sentido e de

engajamento que eu poderia chamar de hipertextual, tanto do ponto de vista da condição

de ouvintes, quanto do ponto de vista da condição de produtores de sentido, mesmo

sabendo que os sentidos projetados pelo hipertexto embaralhem as fronteiras entre

produtores e receptores, falantes e ouvintes, leitores e autores de conteúdo.

Entender o nosso mundo, conviver com os nossos amigos, partilhar com eles interlocuções,

buscar formas mais produtivas de participar da vida pública, fabricar imagens de quem

somos e de quem são aqueles nos cercam, nada disso será mais possível se não for por

mediação de hipertextos, condição incontornável da própria construção de objetos

simbólicos hoje em dia, seja na interação face a face, seja por meio de ferramentas

virtuais, seja com a própria relação com formas tradicionais de leitura e produção de

textos.

Eu gostaria de propor algo bem básico, talvez aparentemente simplório, mas que será um

ponto de partida para que pensemos juntos possibilidades que a construção de sentido em

rede nos impõe nos dias de hoje: as redes hipertextuais de produção de conteúdo se

articulam como se fossem bibliotecas integradas, cujas prateleiras lado a lado aproximam

dos leitores conteúdos conflitantes, multilaterais, complementares, colaborativos,

multifuncionais, enfim; ao mesmo tempo impactando os alcances ideológicos da atuação no

debate público de forma inédita e sem precedentes.

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Braulino Pereira de Santana, Dr. em Linguística pela UFBA, professor Titular do Departamento de Educação da
UNEB, Salvador-Bahia.

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Que tal uma tentativa de aproximação do esgotamento das possibilidades de leitura crítica

de um filme, utilizando várias prateleiras de nossa biblioteca hipotética, por exemplo? Isso

feito de forma instantânea, como se variados especialistas atuassem ao mesmo tempo

elastecendo e aprofundando o máximo possível das multiplicidades sígnicas de que um filme

é capaz por em cena?

Vamos partir de uma questão levantada pelo crítico de cinema Pablo Villaça: todas as vezes

que assistimos um filme, nós perdemos 80% de possibilidades interpretativas e de

conteúdo que ele põe em cena. Ou seja, perdemos 80% dele. Podemos até nos lembrar de

sua história, contá-la para nossos amigos, ficar com ela na cabeça depois que a gente sai do

cinema. Mas, com forte intuição, não seremos capazes de retomá-la detalhadamente. Vamos

precisar de especialistas em várias áreas para poder desfrutar com verticalidade tudo o

que um filme pode nos oferecer. Vamos precisar de mediação. Eu volto a falar de mediação

logo mais. Tome-se um filme como “Corra!”, de 2017, classificado como comédia de terror.

Espero que todo mundo tenha assistido esse filme. Para usufruir de todas as suas

potencialidades, precisaríamos de bases para analisar sua fotografia, o figurino, a música,

os efeitos sonoros, as atuações, o roteiro; elementos pragmáticos como informações

históricas sobre temáticas que ele aborda, o potencial de mercado, enfim, não temos

condições de acionar todas essas ramificações para abordar esse filme em sua inteireza.

Mas temos como hipótese que uma biblioteca de informações instantânea seria capaz de

praticamente quase que esgotar variados aspectos de produção, fruição e conteúdo desse

filme.

Num bom site de crítica de cinema, além da resenha sobre o filme postada pelo crítico, os

possíveis variados comentários abaixo do texto podem nos trazer informações sobre

aspectos não abordados pelo crítico, assim como sobre os variados elementos inerentes à

própria arte do cinema disponibilizados em um filme. Ou seja, podemos ter diante de nossos

olhos, um designer de figurino para falar das roupas; um técnico de som para abordar o som

e a música do filme; um especialista em cinematografia para alcançar aspectos da

fotografia do filme; um professor de dramaturgia para comentar atuações e roteiro, e

assim por diante. Somente na era do hipertexto isso é possível ser feito de forma

instantânea.

Aparentemente caótica e fragmentada, a forma de construção de textos em rede, ao invés

de lançar leitores e produtores em abismos semióticos, exige deles que cresçam como

fonte e alvo de fazedores de sentido para o mundo que os cerca, um mundo que desafia o

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anonimato e a individualidade. A atuação consequente de leitores e produtores de conteúdo

exige deles que eles não sejam meros encaminhadores de mensagens que muitas vezes não

sabem de onde vem e não tem como averiguar ao certo para onde vão.

A visão do hipertexto como bibliotecas integradas se estende na voz de outros autores a

partir de algumas premissas.

I.A primeira delas que gostaríamos de pontuar, e que responde a interesses filosóficos, é

que o hipertexto não se trata simplesmente de um sistema de organização de dados, ou de

predisposição de elementos que articulam o processo de comunicação por meio de gadgets

(dispositivos eletrônicos portáteis) ou por meio da rede mundial de computadores: trata-se

de um novo modo de pensar, de uma forma de articular a linguagem com a ambição de

acionar uma totalidade multissemiótica. Nesses termos, podemos entender o hipertexto

como uma metáfora do pensamento, como se, para dizer algo, pudéssemos utilizar a

totalidade dos sentidos humanos. Isso já foi apontado pelo filósofo Theodor Nelson nos

anos sessenta, quando ele cunhou o termo hipertexto.

Aqui temos um contraste com formas de produção de textos tradicionais, geralmente

textos estáticos, tangenciais e paradigmáticos. Entende-se o termo ‘estáticos’ como uma

característica física do texto, porque, do ponto de vista simbólico, um texto nunca pode

ser visto como um produto em repouso, uma vez que ele sempre flutua na cabeça dos

leitores, levando-os para lugares conceituais, discursivos e cognitivos que eles nem

imaginavam ir.

Vamos nos lembrar bem rapidamente de alguns conceitos tradicionais que aprendemos nas

aulas dos cursos iniciais de linguística textual sobre o conceito de texto, e façamos um

paralelo com potencialidades de construção de sentidos que está na agenda do hipertexto.

A gente aprende em aulas introdutórias de produção textual que o texto é a forma de

comunicação humana básica; que não existe o ser humano fora do texto; que só podemos

entender os nossos interlocutores e ser entendidos por eles por intermédio de textos; que

os textos organizam variadas formas de dizer ao mesmo tempo.

Vamos jogar um pouco com essas idéias. Suponhamos que o nosso hipotético texto seja

algo como: “Em casa a gente conversa”. De algo aparentemente descompromissado e banal

como isso, podemos retirar algumas coisas. A primeira delas aciona os aspectos da própria

estrutura da língua: um lugar disposto logo no começo do texto (em casa) e uma ação

prometida (a gente conversa). Se isso é pronunciado por alguém num contexto de

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interlocução face a face, diríamos que captamos sons produzidos exclusivamente pela

espécie humana, ou seja, a fala, ou tecnicamente, a linguagem articulada. Temos outras

coisas retiradas desse nosso texto hipotético também, que corresponde ao próprio

conteúdo evidente pelo material linguístico em si: alguém promete conversar com alguém em

um lugar. E mais ainda: se dispusermos esse texto em um determinado contexto,

poderíamos pressupor que alguém ameaça alguém; algo prazeroso está sendo prometido a

alguém; uma intenção vai se realizar num futuro, enfim. Para complicar ainda mais, a

depender de nosso interlocutor, um valor discursivo pode ser agregado: se o ex-presidente

Lula enuncia esse texto, temos algo diferente de que se a atriz Taís Araújo ou um

desconhecido o enunciam. Vemos que as potencialidades simbólicas do hipertexto já vem

embutidas nos textos tradicionais: dizer várias coisas ao mesmo tempo a partir de

elementos os mais discretos possíveis.

Imagine isso agora sendo acionado por meio de áudio, de vídeo, sons, cores, emoticons,

numa verdadeira floresta de possibilidades de construção de saberes e sentidos todas

acionadas ao mesmo tempo. Teremos, no mínimo, uma expansão que Levy chamou de estelar:

um texto em estrela, apontando para muitas posições de sentido simultaneamente.

II.A segunda premissa que gostaríamos de pontuar hoje aqui trata-se de aspectos,

digamos, formais do próprio conceito de hipertexto. Vamos elencar alguns desses aspectos:

em primeiro lugar, o hipertexto se caracteriza por uma tecnologia de leitura e escrita não

sequenciais ou não lineares, na medida em que as fronteiras do começo e do fim do

conteúdo estejam embaçadas, não visivelmente evidentes, nubladas. Trata-se de um texto

aberto, em permanente construção. Imagine a interlocução em um grupo de whatsapp:

postagens ininterruptas, conteúdos simultâneos, encaminhamentos de mensagens

constantemente, múltiplas possibilidades de articulação de conteúdos, desvios de função

inicial do grupo, enfim, a dinamicidade e a incompletude são as marcas da interatividade. É

como se o trabalho de produção nunca se dê por vencido, nunca esteja acabado, esteja

sempre em um contínuo andamento, explorando lugares, formas e conteúdos que se agregam

naturalmente.

Segundo Bolter, além de constituir um texto aberto, nunca acabado, com um ponto final que

nunca chega, há alguns outros dois princípios basilares que caracterizam o hipertexto: o

multicentramento e a virtualidade.

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O multicentramento responde pelo deslocamento constante do “mérito das questões”. Você

alguma vez não ficou chateada ou ficou surpresa com aquela sua amiga que expande a sua

postagem no Facebook, colocando outras coisas não previstas inicialmente, num verdadeiro

desvio de conteúdo? Ou com aquele texto que você leu no site cujos comentários são mais

decisivos que o conteúdo do texto acima em si?

Já a virtualidade se impõe pela própria natureza do suporte, cujo conteúdo ou forma não se

realiza em si, mas como algo potencial, como uma possibilidade. Se uma imagem ou uma

informação são objeto de consumo em rede, ele tende a ser perene, a existir como latente

e contínuo, uma vez que não consegue ser destruído já que acionado pelos usuários, ao

mesmo tempo de vários lugares. O objeto em virtualidade se torna “o mesmo” para muitos

ao mesmo tempo. Desloca-se no tempo e no espaço para uma multidão simultaneamente em

uma velocidade que não respeita fronteiras.

Em segundo lugar, o trabalho ininterrupto do leitor/produtor, admite Bolter, será agora de

expansão de textos em outros textos, a partir de uma mobilização de conteúdos paralelos.

Estamos diante, portanto, de algo mais decisivo: aqui se impõe uma espécie de

desterritorialização do texto. O leitor é expulso do seu locus primordial, é retirado de seu

lugar inicialmente demarcado. E nesses termos, o leitor/produtor assume a função de

topógrafo.

A topografia corresponde a uma descrição minuciosa de uma localidade, representa a

configuração duma porção de terreno com todos os acidentes e objetos que se achem em

sua superfície, como também da dissecação anatômica e particularizada de qualquer parte

de um organismo humano, segundo o dicionário Aurélio. O leitor ambiciona algo nesses

termos: ele passa a agregar de um texto em plataforma hipertextual todos os seus

possíveis acidentes, suas curvas sinuosas, abrindo picadas, demarcando novas possibilidades

simbólicas, fincando piquetes discursivos durante o percurso.

Em terceiro lugar, o hipertexto suspende a solidão: o leitor passa a ser um coletivo de

leitores. Mesmo que a gente se imponha para a gente mesmo o isolamento, o afastamento, a

não identificação com algo ou alguém, isso vai ser impossível pois somos atirados num

turbilhão de possibilidades que nos arrastam para dentro. A solidão no hipertexto é

impossível.

O professor André Faria me enviou pelo whatsapp no domingo o tema da redação do ENEM

deste ano: “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”, e junto com o card com esse

tema, vários comentários que o seguiram nas redes sociais. Ele me enviou algo mais do que

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uma simples nota sobre o tema de uma redação: ele me enviou junto uma comunidade de

recepção, com suas múltiplas formas de recebimento e interpretação do tema proposto.

As tarefas do leitor, já complexas e intrincadas, ganham novas facetas: nunca o termo co-

produtor teve tanta força como agora. Pois ele passa a também ser responsável por

organizar, selecionar, associar e contextualizar as informações e os conteúdos, uma vez que

ele tem à mão ou muito perto de si ferramentas básicas para cumprir essas funções.

O descentramento discursivo antecipado por teóricos da análise de discurso dos anos

sessenta chega ao seu auge. Por exemplo, vivemos recentemente uma crise de queimadas na

Amazônia, e emplacar a narrativa das antigas agências de notícias ou do jornalismo baseado

em centros como Rio-São Paulo não foi mais tão fácil como antes, pois recebíamos on line

notícias dos acontecimentos que se passavam por lá, produzidas pelos próprios moradores

de lá.

Uma terceira premissa, ainda nos retendo aos chamados aspectos formais do hipertexto,

pode ser vista se analisarmos a sua estrutura: blocos de textos conectados por nexos ou

links eletrônicos constituem o hipertexto. A passagem de um bloco a outro, sem que o leitor

se perca diante de um emaranhado de possibilidades de descobertas, pode ser captada com

o conceito de oceanografia.

Caracterizada pelo estudo das características físicas e biológicas dos mares e dos oceanos,

um oceanógrafo navega por uma multiplicidade de ambientes marinhos em busca de

respostas para as suas inúmeras questões de pesquisa. Como um peixe que nada e que faz

manobras dentro d’água quase impossíveis para os outros animais, o leitor do hipertexto,

agora sem uma linha reta a seguir no seu processo de leitura, faz algo parecido: por tratar-

se de um espaço de leitura não hierarquizado, com limites indefinidos.

Num processo de remissão a outros textos e hipertextos, não é à toa que as primeiras

metáforas para lidar com o modo de leitura no hipertexto utilizam palavras como navegar

ou navegação. A elasticidade no ambiente aquático para o peixe pode ser simulada também

na elasticidade do leitor ao deslizar pelo hipertexto.

Antes de passar ao tópico que considero o mérito de minha fala hoje aqui nesta mesa, farei

um pequeno resumo do que propus até agora, levando em consideração aspectos formais do

hipertexto. O hipertexto pode ser estruturado a partir dos seguintes critérios:

✓ Trata-se de uma produção de conteúdo em blocos de informação caracterizada por

critérios não lineares ou não sequenciais.

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✓ São possibilidades de constituição textual plurilinearizada como também

plurimórficas, ao acionar elementos de várias conformidades que o constituem.

✓ Marcuschi considera a volatilidade um aspecto central do hipertexto. Tenho certa

reserva em considerar o hipertexto um tipo de estrutura volátil, uma vez que o

avanço tecnológico permite a preservação de dados e informações não previstas

quando o professor propôs essa possibilidade.

✓ A espacialidade pela qual desliza o hipertexto pode ser considerada topográfica,

por tratar-se de uma geografia textual não hierarquizada, assimétrica e acidentada

cujos limites não são tão bem definidos, como propusemos logo antes.

✓ A fragmentação de forma e de conteúdo determina o direcionamento do percurso

de leitura, como estivesse ausente do hipertexto um centro regulador.

✓ Central, de uma forma definidora de seu próprio DNA, a multissemiose potencializa

experiências sensoriais do hipertexto que se espalham por múltiplos aportes

sígnicos: tabelas tridimensionais, palavras, efeitos sonoros, vídeos, diagramas,

ícones, isso tudo numa mesma superfície de leitura, exigindo dos leitores o

acionamento de múltiplos de seus sentidos.

✓ O multicentramento ou descentramento responde pela mudança constante do

mérito do que se discute, originando uma possibilidade de deslocamento constante

de assunto e de tópico.

✓ O processo de interlocução pode ser capturado pelo jogo de interatividade,

possibilitando ao leitor/usuário interagir com inúmeros outros e com a própria

máquina porque nele contribui a virtualidade.

✓ Como um texto é impossível sem um outro que lhe anteceda, assim também o

hipertexto pode ser considerado: a intertextualidade de forma direta ou indireta,

e simultânea evidencia a força do hipertexto como múltiplo. O impacto da

verticalidade do conteúdo se estabelece, já que cerca determinado problema por

vários ângulos e remete sempre a outros textos que tratam de um mesmo tópico,

complementando-se, reafirmando-se ou mesmo contradizendo-se uns aos outros de

forma imediata ou instantânea.

✓ A conectividade também lhe proporciona ganhar forma.

✓ Por fim, o percurso de leitura, sempre mutante e acidentado, traz para o

hipertexto o seu aspecto labiríntico. Rotas alternativas de leitura, atalhos e

desvios transformam o leitor em agente autônomo em montanha russa, ejetado para

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fora do texto em busca de conteúdos e textos alternativos, não necessariamente

relacionados ao texto inicial.

A autonomia do leitor ganha corpo pois ele decide não somente a ordem de leitura, os

caminhos de leitura a ser seguidos como também os conteúdos a ser incorporados ou

descartados. Nesses termos, a versão final do texto é determinada de forma única e não

repetível, nem por ele mesmo, nem por outros leitores. O produtor do texto dispara o

processo, mas não é capaz de controlar o seu final, o fluxo de informação, o tamanho ou o

alcance de seu texto, uma vez que nada mais ali lhe pertence, como se ele desencadeasse

um processo e perdesse o controle de autoria.

Por fim, a leitura se transforma numa escritura: não mais sabemos quem é o leitor ou o

escritor quando uma produção hipertextual está em cena, causando uma impossibilidade de

antecipação de ordem de leitura ou intenções de produção.

Uma última premissa, uma vez que não quero me estender por mais tempo sobre esses

pontos, dá conta dos aspectos cognitivos de construção de sentido pelo hipertexto.

Vou arriscar algumas saídas superficiais para essa questão, uma vez que o especialista em

cognição, o professor André Faria, está aqui ao meu lado, e pode enriquecer esse debate

com mais propriedade.

O leitor aciona frames (imagem fixa de um produto audiovisual), scripts ou esquemas de

leitura, e os elementos tradicionais de coesão textual (pronomes, conjunções, termos de

adjunção etc.) são substituídos por links, nós e blocos. Você se lembra que um comentário

em um texto postado no Facebook pode ser feito com elementos não linguísticos, como

emoticons? As remissões podem ser feitas por critérios como esses.

Um outro aspecto relevante, que precisa ser pontuado, é que o hipertexto não é para ser

lido do começo ao fim, uma vez que, como já dissemos, a quebra de linearidade impede que a

fruição se dê de maneira não fragmentada. O percurso de leitura nunca vai ser o mesmo de

um leitor para outro, ou nunca vai ser o mesmo de um próprio leitor quando volta àquele

mesmo site ou página de internet pela segunda vez.

Ao abrir uma página de um site, os leitores caminham por percursos de leitura próprios, a

passagem de um bloco para outro é planejada de forma a cumprir distanciamentos e

aproximações de conteúdos que respondem a interesses instantâneos que brotam da

própria dinamicidade da interlocução por meio virtual.

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Por fim, gostaria de levantar uma rápida reflexão sobre as demandas ideológicas que se

impõem com o hipertexto. Logo acima, pus em suspeição os centros irradiadores de

conteúdos com suas vozes consagradas a partir da geografia e suas autoridades que se

impõem por meio de uma tradição duvidosa, enfim, hegemonias discursivas que estão sendo

sacudidas por um novo tipo de articulação de conteúdos amparados em plataformas de

hipertexto.

Retomando novamente a metáfora da biblioteca infinita, em que os conteúdos estejam

próximos do leitor de forma quase instantânea, facilitando a checagem desses conteúdos

em sua verticalidade, o que faz com que narrativas de submissão se imponham nessa

floresta de conteúdos que se cruzam? A ideologia inventou um antídoto contra a verdade

em rede, ou contra as possibilidades de checagem verticalizada das informações: as

chamadas fake news.

Embora se imponham como um enorme desafio, as notícias falsas correspondem à face mais

superficial e visível do modus operandi dos esquemas ideológicos que operacionalizam suas

verdades lacunares, suas naturalizações de narrativas, suas formas de transformar o que é

passageiro e provisório em estrutural e duradouro.

Os robôs que disseminam fake news não obteriam sucesso sozinhos se não houvesse uma

recepção calcada em comportamentos leitores que o filósofo Byung-Chul Han chama de

‘enxame’.

O acesso rápido e fácil a todo tipo de conteúdo em hipertexto transforma os leitores em

uma verdadeira praga, que atua de forma quase autômata e inconsciente, espalhando

rapidamente o veneno da incongruência sem medir suas consequências.

Num mundo de rapidez de circulação de conteúdos, a avidez por novidades é uma espécie de

síndrome de abstinência, sua contraparte, que pede uma nova dose de “algo” novo,

transformando leitores em consumidores de conteúdo, e os próprios conteúdos em si em

uma droga.

Han propõe que o tempo de espera que caracterizava as formas de produção e de usufruto

de informações quase que desapareceu, já que o mundo virtual, sua velocidade e sua

instantaneidade, se impõe como o próprio modo de ser de nossa era. Antes, um conteúdo

produzido demorava muito para sair de seu lugar de produção para chegar até ao leitor.

Hoje em dia, como leitor, produtor e produto atuam de forma praticamente simultânea, o

tempo de maturação entre produção e consumo de um produto cultural não existe mais

praticamente.

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Essas condições de produção criaram seres aberrantes como o enxame em rede, leitores

que engolem as notícias sem mastigá-las, já à espera de uma outra. Num comportamento

irracional, potencializado pela virtualidade, sem a responsabilidade da presença do

interlocutor.

Um outro fator que pode estar na base da aceitação de fake news como forma atual de

pensamento pode ser capturado pelo conceito de mediação, segundo ainda Han. As notícias,

pulverizadas, sem um centro difusor que se responsabilize pelo seu grau de veracidade, não

sofrem um processo de mediação. Agentes mediadores, dotados de experiência e

conhecimento, não mais fazem a ponte entre um conteúdo e um público. A autoridade de um

especialista em um determinado assunto ou conteúdo não mais é encarada como uma forma

de filtragem da verdade. A autoridade cai em descrédito. Qualquer um pode falar sobre

qualquer coisa de qualquer lugar. O caos se instala e a verdade, já frágil, cambaleante,

praticamente desaparece.

Mas há algo muito mais perigoso que a propagação de fake news nas redes sociais: as velhas

estratégias de naturalização de narrativas pelos centros que ainda teimam em se manter

hegemônicos, como uma espécie de nostalgia do lugar que ocupavam antes da consagração

do hipertexto ou da comunicação em rede. Essas estratégias correspondem a atividades de

universalização de conteúdos ou de linguagem, mas não contavam com algo novo,

instantâneo, até quase que simultâneo: o desmascaramento de seus métodos.

Dia desses, por exemplo, a Folha de S. Paulo divulgou o que tem sido publicado anualmente

como RUF-Ranking de Universidades da Folha. Estabeleceu seus critérios, e posicionou os

cursos de Pedagogia e Letras das quatro universidades estaduais baianas, respectivamente,

nos seguintes lugares: UEFS: 78,79; UESC: 79,62; UESB: 58,66; UNEB: 45,41. No cômputo

geral, posicionou a USP no 1º lugar dentre todas as universidades brasileiras, num critério

inventado por eles que leva em consideração ensino, pesquisa, extensão, mercado e

internacionalização. Somente uma atitude de docilidade colonizada aceitaria esse ranking

como algo legítimo.

Num ranking que leve em consideração elementos que importam, uma universidade como a

USP jamais ocuparia esse lugar. Há outros critérios que precisam ser levados em

consideração. Como uma universidade com apenas 2% de seus quadros docentes compostos

de pessoas pretas pode ser aceito por pessoas pretas como a melhor universidade do

Brasil? Como alguém racialmente marcado aceitaria colocar em primeiro lugar uma

universidade que exclui propositadamente membros de sua própria etnia? Como o

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conhecimento e a ciência, experiências humanas construídas de forma coletiva, podem ser

apropriados por pessoas de uma determinada etnia, que se considera melhor de que outras?

E a partir disso ocupar postos de singularidade, impondo-se como universal?

Essas questões são paralelas ao que alguns interlocutores polemizaram, questionando

lugares de obsolência que teimam em querer ser hegemônicos. Cunhei alguns comentários do

próprio site da Folha de S. Paulo comentando o ranking:

✓ “Marcos Teixeira de Souza: Quando a USP vai gerar um prêmio Nobel? É cansativo

ouvir que a USP é isso, é aquilo etc. Quanto dinheiro já foi investido na USP, e até

hoje nem indicação a Prêmio Nobel teve. Chega de balela.”

✓ “Wagner Ragi Curi Filho: Qual o orçamento da USP para pesquisa? Qual o

orçamento da UFAL, por exemplo. Só de posse desses números que podemos pensar

em produtividade (...).”

Trata-se de um círculo que remonta à época do Brasil colonial. Eles inventam o ranking

deles e impõem o ranking deles para servir de critério para a distribuição das verbas para a

Educação. Uma espécie de privatização étnica e geográfica dos cofres públicos. Duvido

muito que pretos considerem uma Universidade elitista e excludente como a USP um espaço

considerado “o melhor”. E não nos esqueçamos de que o estado brasileiro onde a USP se

hospeda foi palco de massacres como o do Carandiru. A internacionalização, critério

estabelecido pelo jornal para o ranqueamento, trouxe para cá coisas como o consenso de

Washington e suas privatizações do patrimônio do Estado brasileiro em massa. O

rompimento de barragens que fez Brumadinho e Mariana sucumbirem em lama, dizimando

milhares de pessoas, é consequência direta do neo liberalismo internacionalizado dos

economistas pensadores da USP que pautaram a agenda do governo Fernando Henrique

Cardoso, que privatizou a Vale do Rio Doce. O baixo clero mais conservador e elitista na

Câmara dos Deputados e do Senador Federal tem origem em São Paulo.

Enfim, ao mapearmos as idiossincrasias, as potencialidades e o perigo dos textos

construídos em rede, o hipertexto, quero finalizar com uma última palavra: o hipertexto,

apesar de seus limites, ainda é uma arena de liberdade. Muito obrigado.

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