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Relatório final

Estudos Etnográficos
sobre o Programa
Bolsa Família entre
Povos Indígenas

Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação


Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário
Publicação cujo objetivo é divulgar resultados de estudos etnográficos sobre os
efeitos das transferências monetárias do Programa Bolsa Família (PBF) sobre povos
indígenas residentes em sete Terras Indígenas (T.I.), a saber: Alto Rio Negro (AM),
Barra Velha (BA), Dourados (MS), Jaraguá (SP), Parabubure (MT), Porquinhos (MA) e
Takuaraty/Yvykuarusu (MS).

FICHA TÉCNICA
EXECUÇÃO DO RELATÓRIO FINAL
RICARDO VERDUM

ORGÃO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA


ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A
EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO).

PROJETO
UNESCO - 914BRZ3002 - AVALIAR A IMPLE-
MENTAÇÃO, OS RESULTADOS E OS IMPACTOS
DAS POLÍTICAS, PROGRAMAS, AÇÕES, PROJE-
TOS, BENEFÍCIOS E SERVIÇOS SOB RESPON-
SABILIDADE DO MDS OU QUE CONSTITUAM
O PLANO PARA SUPERAÇÃO DA EXTREMA
POBREZA

PERÍODO DE REALIZAÇÃO DA PESQUISA


AGOSTO DE 2013 A JULHO DE 2014

DIAGRAMAÇÃO E PROJETO GRÁFICO


TARCÍSIO SILVA

© 2016 MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E AGRÁRIO


TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
SECRETARIA DE AVALIAÇÃO E GESTÃO DE INFORMAÇÃO
ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS | BLOCA A | SALA 323
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bilidade do consultor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do
Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário. É permitida a reprodução
deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodu-
ções para fins comerciais são proibidas.
SUMÁRIO
SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS 05
APRESENTAÇÃO 06

1. INTRODUÇÃO AO TRABALHO ETNOGRÁFICO 10

2. CONTEXTUALIZAÇÃO E METODOLOGIA NO ESTUDOS DE CASO 16


2.1 A experiência etnográfica 21
2.1.1 Terra Iindígena Barra Velha 21
2.1.2 Terra Iindígena Porquinhos 23
2.1.3 Terra Iindígena Takuaraty/Yvykuarusu 26
2.1.4 Terra Indígena Dourados 27
2.1.5 Terra Indígena Alto Rio Negro 28
2.1.6 Terra Indígena Parabubure 30
2.1.7 Terra Indígena Jaraguá 31

3. RESULTADOS DE CADA ESTUDO DE CASO 33


3.1 Terra Indígena Barra Velha 33
3.2 Terra Indígena Porquinhos 38
3.3 Terra Indígena Takuaraty/Yvykuarusu (ou Aldeia Paraguasu) 47
3.4 Terra Indígena Dourados 54
3.5 Terra Indígena Alto Rio Negro 69
3.6 Terra Indígena Parabubure 82
3.7 Terra Indígena Jaraguá 90

4. ANALISANDO OS ACHADOS POR BLOCO TEMÁTICO 95


4.1 Percepções e significados acerca do PBF 95
4.2 Cadastro Único 97
4.3 Condicionalidades 100
4.4 Logística de pagamento/recebimento do benefício 103
4.5 Utilização do benefício financeiro 107
4.6 Formas de relação dos indígenas com o poder público, comércio e a
sociedade local 109
4.7 Acesso dos indígenas às unidades do SUAS (CRAS, CREAS) 112
4.8 Atividades produtivas e comerciais locais e Segurança Alimentar 114
4.9 Questões de gênero 117

5. CONSIDERAÇÕES GERAIS 120


6. RECOMENDAÇÕES À GESTÃO DO PROGRAMA 126
6.1 Percepções e significados acerca do PBF 126
6.2 Cadastro Único 126
6.3 Condicionalidades 128
6.4 Logística de pagamento/recebimento do benefício 129
6.5 Utilização do benefício financeiro 131
6.6 Formas de relação dos indígenas com o poder público e a sociedade local 131
6.7 Acesso dos indígenas às unidades do SUAS (CRAS, CREAS) 132
6.8 Atividades produtivas e comerciais locais e Segurança Alimentar 132

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 134

ANEXO 1 138
Roteiro Básico Comum (RBC) 138
Parte 1: Percepções e visões sobre o PBF e sobre Pobreza 138
Parte 2: Cadastro Único 139
Parte 3: Condicionalidades 140
Parte 4: Aspectos do pagamento/recebimento dos benefícios/logística de
pagamento 142
Parte 5: Utilização do benefício/usos do PBF 144
Parte 6: Parte 6: Relações com o poder público local/comércio/
sociedade local 144
Parte 7: PBF na perspectiva de gênero 145
Parte 8: Produção e segurança alimentar e nutricional 145
Parte 9: Acesso aos serviços e benefícios sócioassitenciais 146

ANEXO 2 147
Roteiro Básico Elaborado por Bruno Nogueira Guimarães 147
Parte 1: Composição familiar 147
Parte 2: Cadastro Único 147
Parte 3: Condicionalidades 148
Parte 4: Estratégias de apropriação do benefício 148
Parte 5: Patronato 149

QUADROS E MAPAS
Quadro 1: Terras Indígenas incluídas no estudo 8
Quadro 2: Dados gerais das Terras Indígenas e do trabalho de campo 17
Mapa 1: Localização das sete Terras Indígenas 20
Siglas e Abreviaturas Utilizadas
AB Atenção Básica Movimento dos Trabalhadores Sem
MST
ACS Agentes Comunitários de Saúde Terra
ADA Ação de Distribuição de Alimentos Oportuni- Programa de Desarrollo Humano
AIS Agentes Indígenas de Saúde dades Oportunidades

AISAN Agente indígena de saneamento PAA Programa de Aquisição de Alimentos


ARN Alto Rio Negro PAC Programa de Agentes Comunitários
BF Programa Bolsa Família PBF Programa Bolsa Família
BPC Benefício de Prestação Continuada Plano Nacional de Segurança Alimen-
PLANSAN
BSM Plano Brasil Sem Miséria tar e Nutricional

Cadastro Único de Programas Sociais do Programa Nacional de Alimentação


CadÚnico PNAE
Governo Federal Escolar
Câmara Interministerial de Segurança PPA Plano Plurianual
CAISAN
Alimentar e Nutricional Programa de Educación, Salud y
Progresa
CECI Centro de Educação e Cultura Indígena Alimentación
CEF Caixa Econômica Federal Programa Nacional de Fortalecimento
PRONAF
Conselho Nacional de Segurança Alimen- da Agricultura Familiar
CONSEA
tar e Nutricional Programa Nacional de Acesso ao
PRONATEC
Centros de Referência de Assistência Ensino Técnico e Emprego
CRAS
Social Registro Administrativo de Nascimen-
RANI
Centros de Referência Especializados de to do Indígena
CREAS
Assistência Social RBC Roteiro Básico Comum
CTL Coordenação Técnica Local Secretária de Avaliação e Gestão da
SAGI
CVK Comunidade Vida Kaiowá Informação
DA Departamento de Avaliação Subsistema de Atenção à Saúde
SASISUS
DIASI Divisão de Atenção à Saúde Indígena Indígena
DSEI Distrito Sanitário Especial Indígena Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e
SEBRAE
Equipe Multidisciplinar de Saúde Pequenas Empresas
EMSI
Indígena Secretaria Municipal de Educação e
SEMEC
Fundo Nacional de Desenvolvimento Cultura
FNDE
da Educação SENARC Secretaria Nacional de Renda de Cida
Federação das Organizações Indíge- SESAI Secretaria de Saúde Indígena
FOIRN
nas do Alto Rio Negro Secretaria Nacional de Segurança
SESAN
FUNAI Fundação Nacional do Índio Alimentar e Nutricional
Instituto Brasileiro de Geografia e SGC São Gabriel da Cachoeira
IBGE
Estatística SIASI Sistema de Atenção à Saúde Indígena
ICS Instância de Controle Social Sistema de Vigilância Alimentar e
SISVAN
IGD Índice de Gestão Descentralizada Nutricional

ISA Instituto Socioambiental Secretária Nacional de Assistência


SNAS
Social
Ministério do Desenvolvimento
MDA SPI Serviço de Proteção ao Índio
Agrário
Ministério do Desenvolvimento SUAS Sistema Único de Assistência Social
MDS
Social e Combate à Fome TdR Termo de Referência
MEC Ministério da Educação TI Terra Indígena
MPF Ministério Público Federal TRC Transferência de renda condicionada
MS Ministério da Saúde UBS Unidades básicas de saúde
5
Apresentação
O Programa Bolsa Família (PBF) foi criado em da então existentes no país, criados a partir
20 de outubro de 2003, por meio da Medida de meados da década anterior, como os pro-
Provisória no 132, posteriormente converti- gramas Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação e
da na Lei no 10.386/2004, ficando sua gestão Auxilio-Gás. O principal instrumento de unifi-
a cargo da Secretaria Nacional de Renda de cação dessas ações é o denominado Cadastro
Cidadania (SENARC), do Ministério do Desen- Único de Programas Sociais do Governo Fe-
volvimento Social e Combate à Fome (MDS). deral (a partir daqui referido como Cadastro
Ele se baseia no modelo de transferência de Único ou, ainda, CadÚnico), por meio do qual
renda com condicionalidades (TRC). Esse mo- as famílias têm acesso tanto ao PBF quanto a
delo de intervenção social surgiu nos anos outros programas do governo federal3.
1990, sendo implantado em diversos países
da América Latina1. As condicionalidades do A Caixa Econômica Federal (CEF) é o órgão ope-
PBF são nas áreas de saúde, educação e as- rador e pagador do benefício. Ao que consta,
sistência social: para receber o benefício, as cabe à Caixa o fornecimento de infraestrutura
famílias devem manter seus filhos de 6 a 17 para organização e manutenção do Cadastro
anos matriculados na escola e, com relação à Único; processamento do banco de dados, de-
saúde, as gestantes devem fazer exame pré- senvolvimento e fornecimento dos aplicativos
-natal e acompanhamento nutricional e de de entrada e transmissão de dados; identifica-
saúde da mãe e da criança, além de manter ção de pessoas cadastradas com um Número
as vacinas das crianças em dia segundo o de Identificação Social – NIS; atendimento aos
calendário mínimo de vacinas recomenda- beneficiários e cadastramento de senha; efe-
do pelo Ministério da Saúde no Brasil- o que tivação e processamento dos benefícios e dis-
lhe dá um caráter intersetorial e exige uma ponibilização de informações gerenciais. Cabe
estreita articulação federativa, envolvendo
diferentes ministérios, secretarias de Estado
e secretarias municipais, e a participação da
1. O México foi o primeiro país a adotar e implantar o
sociedade civil organizada. Na visão dos pro- modelo PTRC na América Latina e Caribe, com o Programa de
motores do programa, o cumprimento de con- Educación, Salud y Alimentación (Progresa), de 2000, que em
2002 passou a ser chamado Programa de Desarrollo Humano
dicionalidades é entendido como um compro-
Oportunidades (Oportunidades). Sobre o contexto de criação
misso pela garantia de direitos básicos cuja de diferentes programas de transferências condicionadas na
efetivação deve ser compartilhada pelas famí- América Latina e noutras partes do mundo cf. GONZÁLES DE
LA ROCHA & ESCOBAR LATAPÍ, 2012.
lias e pelo poder público. Entre os direitos so-
ciais, o PBF priorizou além do acesso a renda, 2. Sobre o Programa Bolsa Família cf. CAMPELLO & NERI,
2013; CASTRO & MODESTO, 2010; BRASIL/MDS, 2013.
o acesso a serviços de saúde e de educação
como condição estratégica para a interrupção 3. Em 2008, após quatro anos de criação do PBF e sem
que houvesse qualquer normatização a respeito da inclu-
do ciclo intergeracional da pobreza .2
são de famílias indígenas nesse Programa, foi constatada a
existência de 53.513 famílias, residentes em 392 municípios

A criação do PBF possibilitou unificar vários (CARVALHO, 2010). No caso de famílias indígenas, a Certidão
do RANI (Registro Administrativo de Nascimento do Indígena)
procedimentos de gestão e execução das normativamente é aceito como documento válido para o ca-
ações de transferência condicionada de ren- dastramento. Cf. MDS, 2011.
à Caixa, também, emitir os cartões magnéticos bancários ou unidades lotéricas para a restitui-
para o recebimento do pagamento, assim como ção dos prejuízos causados, ou, caso necessário,
o pagamento do benefício devido mensalmen- poderá proceder ao cancelamento da concessão
te a cada família contemplada. A SENARC é res- do serviço” (Art. 9, XI, § 2º).4
ponsável por mensalmente deliberar as quotas
de concessão de benefícios, segundo os tipos A participação social do PBF está prevista, so-
de famílias habilitadas e a meta física mensal bretudo, por meio de um conselho formalmente
necessária ao equilíbrio orçamentário e finan- constituído no ato de adesão do município ao
ceiro do Programa, e enviar à Caixa os respecti- Programa, denominado Instância de Controle
vos arquivos eletrônicos para execução da fase Social (ICS) do Programa Bolsa Família5. A cria-
de concessão. ção ou designação desse Conselho é obrigatória
e visa garantir os princípios de transparência da
A Portaria MDS nº 204 de 08/07/2011, publica- política pública e da gestão compartilhada que
da no Diário Oficial da União em 12/07/2011, devem reger o PBF (Decreto nº 5.209/2004).
disciplina procedimentos relativos ao paga- Ainda, espera-se que a ICS tenha em sua com-
mento e aos cartões de benefícios do Programa posição, além dos representantes do governo
Bolsa Família (PBF), incluindo aqueles contrata- local, no mínimo, metade dos seus membros in-
dos junto à Caixa Econômica Federal. Aí fica-se dicados por entidades da comunidade.
sabendo que o “MDS poderá solicitar ampliação
dos canais de pagamento existentes numa loca- Em junho de 2011, foi instituído o Plano Bra-
lidade, no intuito de melhoria da qualidade dos sil Sem Miséria (BSM), com o objetivo de su-
serviços necessários ao pagamento de famílias perar a situação de extrema pobreza no país,
beneficiárias, cabendo ao Agente Operador [a por meio de ação integrada, tanto do ponto
Caixa] analisar aspectos legais pertinentes e de vista intersetorial, quanto do ponto de
a viabilidade operacional e econômica do em- vista federativo. O BSM conta, para isso, com
preendimento, encaminhando sua decisão ao basicamente três eixos de ação, que são: a
MDS” (Art. 8º, § 2º). Também, que no caso de garantia de renda, o acesso a serviços e a in-
ocorrerem irregularidades nos canais de paga- clusão social produtiva. Nesse sentido, o Bol-
mento (a saber, estabelecimentos bancários do sa Família tem um lugar de destaque como
Agente Operador; unidades lotéricas; estabele- estratégia de proteção e promoção social.6
cimentos habilitados pela Caixa; e terminais de
autoatendimento), o Agente Operador “realiza-
rá apurações preliminares, auditoria, sindicância
ou inquérito administrativo nos canais de paga-
4. Disponível em http://www.diariodasleis.com.br/busca/
mento, sempre que necessário, informando ao exibelink.php?numlink=217696
MDS sobre as irregularidades identificadas, no
5. Conforme a Portaria GM/MDS 246/2005 a presença de
que se refere ao pagamento de famílias bene- uma Instância de Controle Social (ICS) é pré-requisito para a
ficiárias” (Art. 9, XI, § 1º); e que “dentre outras adesão dos municípios ao PBF.

medidas possíveis, o Agente Operador poderá


realizar a notificação dos correspondentes não
6. Sobre o PBF e sua relevância para o conceito de “piso
de proteção social”, cf. SCHWAZER, 2013.
7
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e de um enfoque de reconhecimento étnico
Estatística (IBGE), um total de 896.917 pes- mais integral, acolhendo no seu desenho e
soas se autodeclararam “indígena” no Censo operacionalização as necessidades e direi-
2010. Isso corresponde, aproximadamente, tos específicos destes povos, bem como sua
a 0,47% da população total do país à época. participação informada nos processos de
Deste total, 324.834 pessoas foram registra- concepção, monitoramento e avaliação nas
das pelo Instituto como vivendo em “cida- mudanças que se mostram necessárias, e ur-
des”, e 572.083 em “áreas rurais”. Segundo gentes.
dados do MDS, em fevereiro de 2014 exis-
tiam 100.614 famílias indígenas cadastradas Registre-se que, em todos os casos, em con-
como beneficiárias do Programa Bolsa Famí- sideração à ratificação da Convenção 169 da
lia, distribuídas pelas cinco grandes regiões OIT pelo Brasil e o que ela determina, o tra-
do país. Em uma estimativa, poderíamos di- balho de campo foi antecedido de visitas re-
zer então que, se consideramos um número alizadas por técnicos do MDS em cada TI, que
médio de quatro pessoas por família, algo se reuniram com os representantes indíge-
como 44,9% famílias indígenas estariam nas de cada uma delas, explicando os obje-
“aptas” e recebendo o “benefício” do PBF em tivos da pesquisa e a metodologia que seria
fevereiro de 2014. utilizada. Na ocasião dessas reuniões, foram
assinados termos de anuência prévia e in-
O quadro que segue informa quais foram as formada, pelos quais os indígenas concorda-
Terras Indígenas estudadas e os respectivos ram em responder às pesquisas, suscitando
antropólogos responsáveis pelo desenvolvi- ou reforçando as expectativas por um aper-
mento de cada investigação: feiçoamento do PBF. A essas expectativas,
acrescente-se a motivação das pessoas que
responderam à pesquisa, seguida pela dos
quADRO 1: TERRAS INDÍGENAS INCLuÍDAS
pesquisadores que foram a campo, para que
NO ESTuDO
esse propósito seja atingido efetivamente.7
TERRA INDÍGENA (UF) PESQUISADOR
Alto Rio Negro (AM) Adriana Romano Áthila
Barra Velha (BA) Joceny de Deus Pinheiro
O trabalho de análise incorpora os resulta-
Dourados (MS) Spensy Kmitta Pimentel dos do estudo realizado pela empresa NC
Jaraguá (SP) Danielli Jatobá França Pinheiro, contratada pelo MDS para verificar
Parabubure (MT)
Othília Maria Baptista de o desenho, a gestão, a implementação e os
Carvalho
fluxos de acompanhamento das condicio-
Porquinhos (MA) Bruno Nogueira Guimarães
nalidades de saúde associadas ao Programa
Takuaraty/Yvykuarusu (MS) Lydie Oiara Bonilla Jacobs

A pesquisa teve por objetivo geral identificar


e analisar os possíveis efeitos do Programa 7. No final da década passada, Colômbia e Panamá são
Bolsa Família (PBF) na população indígena considerados os países onde mais houve avanços no enfoque
étnico, com a criação de programas específicos para povos in-
nessas sete TIs. A expectativa é de que os
dígenas. No México, optou-se por fortalecer a linha da focali-
resultados globais e locais da pesquisa pos- zação do Programa Oportunidades em localidades indígenas.

sam contribuir para a revisão e adaptação Brasil e Chile são também países aonde foi dada uma atenção
explícita os povos indígenas como sujeitos de direito nos res-
do programa, tanto em nível nacional como pectivos PTC (Programa de Transferência Condicionada) - cf.
no nível municipal, possibilitando a adoção HERNÁNDEZ ÁVILA & RUBIO, 2011; ROBLES, 2009.
Bolsa Família (PBF) para Povos Indígenas. O de posse do cartão e sacam mensalmente
trabalho de campo desta referida pesquisa os benefícios das famílias indígenas. Em um
foi realizado entre fevereiro e dezembro de município da região Norte e outro da região
2013, utilizando as técnicas de entrevista fo- Nordeste, a maioria, se não a totalidade dos
calizada e análise documental. As entrevistas beneficiários indígenas têm seus cartões
envolveram 55 pessoas, entre gestores mu- retidos; há casos também na região Centro-
nicipais do BF, coordenadores do PBF na saú- -Oeste. Isso foi confirmado com detalhes nos
de, Secretários Municipais de Saúde e repre- estudos etnográficos realizados, só não sen-
sentantes do Subsistema de Atenção à Saúde do registrada situação semelhante na TI Jara-
Indígena no âmbito de 06 Distritos Sanitários guá (SP).
Especiais Indígenas (DSEI). Além disso, foram
realizadas entrevistas com gestores federais Por fim, agradecemos a todos os colegas con-
dos ministérios da Saúde e Desenvolvimen- sultores, pela leitura e comentários feitos às
to Social e Combate à Fome. A pesquisa foi versões anteriores deste documento. Este
realizada em seis DSEI, contemplando dois documento não seria possível sem o compro-
municípios em cada distrito8. misso e o profissionalismo de Adriana Roma-
no Áthila, Bruno Nogueira Guimarães, Danielli
Causa preocupação a principal conclusão Jatobá França, Joceny de Deus Pinheiro, Othí-
desse trabalho, ou seja, que ficou evidencia- lia Maria Baptista de Carvalho, Lydie Oiara
da a fragilidade do Estado no cumprimento Bonilla Jacobs e Spensy Kmitta Pimentel. Um
do seu compromisso. Segundo as autoras do agradecimento especial vai também aos co-
estudo: “As estruturas físicas da maioria dos legas Alba Lucy Giraldo Figueroa, Pedro Stoe-
postos de saúde, em todos os DSEI do estudo, ckli, Júlio César Borges, Kátia Cristina Favilla,
estavam em precário estado de conservação, Lea Rocchi Sales, Celiana Nogueira Cabral dos
muitas vezes não permitindo ali a permanên- Santos e Luciana Monteiro Vasconcelos Sar-
cia das equipes de saúde. Em alguns distritos dinha, do MDS que contribuíram com leituras
as equipes de saúde também não são sufi- cuidadosas do material gerado nestes quase
cientes para o atendimento da população. nove meses de trabalho.
Em vários DSEI pesquisados existe uma alta
rotatividade de profissionais, sejam médicos, Ricardo Verdum
enfermeiros ou técnicos. Segundo as coorde- Canto Sul DO ROSA, MAIO DE 2014.
nações de equipe, esta rotatividade é impul-
sionada pelos baixos salários” (NC PINHEIRO,
2013: 134). Ainda, que “em nenhum dos mu-
nicípios estudados existia retorno dos dados
de saúde dos beneficiários do PBF às equipes 8. Foram incluídos para compor a amostra os seguintes
de saúde para que se faça um efetivo acom- DSEI e respectivos municípios: Alto Rio Negro (São Gabriel da
Cachoeira e Barcelos); Bahia (Salvador e Porto Seguro); Mara-
panhamento nutricional junto às crianças e nhão (São Luís e Grajaú); Mato Grosso do Sul (Campo Grande
gestantes” (NC PINHEIRO, 2013: 158).9 Nas e Dourados); Litoral Sul (Curitiba e São Paulo) e Xavante (Barra
do Garças e Campinápolis). A pesquisa foi executada por Nei-
entrevistas com os gestores municipais tam-
da Cortes Pinheiro (coord.) e Sara Berardi.
bém se observou que, em decorrência das
distâncias da maioria das aldeias em relação 9. Por “retorno” entenda-se uma análise, por profissional

aos pontos de saque, e/ ou do endividamen-


nutricionista, dos dados coletados, de modo a servirem de
orientação para o acompanhamento de crianças e mulheres 9
to das famílias, os comerciantes locais ficam gestantes e nutrizes em situação de vulnerabilidade.
1
Introdução ao Trabalho
Etnográfico
Todos os consultores contratados caso seria do tipo qualitativa, ou
para a realização do trabalho Etno- seja: os dados seriam produzidos
gráfico tinham um objetivo comum, por meio de entrevistas semies-
a saber: produzir um relato etnográ- truturadas, do diálogo informal
fico sobre os efeitos do Programa e, principalmente, da observação
Bolsa Família (PBF) na população do dia a dia das pessoas (técnica
indígena, em sete Terras Indígenas. conhecida como observação par-
Seus esforços deviam estar orien- ticipante), tendo por complemen-
tados fundamentalmente para re- tos o registro fotográfico e em áu-
alizar uma caracterização compre- dio e a análise documental.10
ensiva do processo de inserção das
famílias indígenas no PBF, o que Na medida em que o Termo de
significava conhecer o ponto de Referência (TdR) indicava que o
vista deste ator social, levando em
consideração as circunstâncias po-
líticas, econômicas, sociais e cultu-
10. A observação participante é a principal
rais em que isso estava ocorrendo. técnica de campo do processo etnográfico e

Para isso, a cada consultor foram da produção de conhecimento na Antropolo-


gia. Inclui observação e participação. Requer
proporcionadas as condições de do investigador(a) disposição de mergulhar
permanência em campo na TI num na subjetividade das vidas cotidianas na bus-
ca de sentido, como meio para compreender
tempo mínimo de oitenta dias,
o que move e orienta as práticas sociais e a
estabelecidos em contrato com o cotidianidade das pessoas. Requer sua fa-
MDS, para que os mesmos intera- miliarização com os significados culturais,
valores, costumes e a estrutura social com
gissem prioritariamente com os
quem convivem, buscando averiguar a racio-
indivíduos e famílias indígenas be- nalidade específica dos atos de indivíduos
neficiárias do Programa. Buscou-se e de redes de indivíduos. Ainda, considera o
jogo de espelhos que naturalmente é gerado
com isso estabelecer um processo
na relação entre o investigador e os sujeitos
de investigação onde a ação do Es- estudados, e que o conhecimento é algo desi-

tado fosse vista desde abaixo, onde gualmente distribuído entre as pessoas, algo
relacionado à estrutura social e aos papéis
o fazer etnográfico estaria centrado dos indivíduos. Por fim, a metodologia leva
nos sujeitos alvo da política públi- em consideração que nem todas as portas
estarão ou serão abertas ao diálogo, e que
ca e seus processos.
nem todas as pessoas manifestarão igual dis-
ponibilidade de expor suas ideias e opiniões,

10
Coerente com esta perspectiva foi principalmente quando for uma entrevista
gravada. A etnografia é uma técnica de campo
definido que a metodologia ado- que exige períodos mais longos que outras
10 tada nos diferentes estudos de técnicas de pesquisa.
trabalho dos consultores devesse priorizar (a etnografia como produto). A etnografia
as “percepções indígena” sobre o Progra- como produto traz mais do que os dados
ma, praticamente todos eles/elas busca- produzidos em campo. Também conheci-
ram adentrar a esfera ou universo concei- da com descrição etnográfica, ela contém a
tual dos seus interlocutores, almejando interpretação desses dados e sofre a influ-
com isso produzir uma visão mais rica das ência da confrontação entre os postulados
perspectivas dos sujeitos com os quais teóricos e as “evidencias empíricas” obti-
interagiram no processo de investigação das no processo etnográfico. A etnografia
etnográfica. Para além de entrevistas pon- – seja como olhar, processo ou produto
tuais, conversas e observações acerca dos – é mais do que um procedimento técni-
temas previstos no Roteiro Básico Comum co ou acadêmico, é uma atividade funda-
(RBC), as rotinas de pesquisa dos antro- mentalmente política, pois dela emergem
pólogos incluíram múltiplos espaços e significados que podem gerar e suportar
modalidades de acompanhamento e par- e, eventualmente, desconstruir analitica-
ticipação. A própria natureza das questões mente, por exemplo, ações de instâncias
para investigação colocadas pelo MDS exi- ou dispositivos de poder que entram em
gia dos pesquisadores a realização de um jogo nos arranjos sociais– governamentais
estudo multisituado, ou seja, que fossem ou não governamentais. Os antropólogos
incluídas outras unidades de observação sabem possivelmente melhor que outros
dentro da área ou campo de análise que cientistas sociais a estreita relação entre
não só a comunidade indígena local com a conhecer e dominar.11
qual tinham por meta interagir.
A etnografia constitui um dos elementos do
Neste documento o termo etnografia será chamado triângulo antropológico, junto com
usado com três significados, a saber: a) a contextualização e a comparação. Como
para indicar uma maneira particular de veremos, os pesquisadores de campo fo-
olhar a diversidade social e cultural (o
olhar etnográfico); b) para indicar o conjun-
to das técnicas e procedimento que cons-
11. Sobre essas e outras questões relativas ao fazer
tituem o chamado processo etnográfico etnográfico, cf. ASAD, 1973; STOCKING, 1991; GUBER,
(ou, a etnografia como prática de campo); e 2012; KAWULICH, 2005; LAPLANTINE, 2004; MARCUS
& CUSHMAN, 2003; NADER, 1969; PUJADAS I MUÑOZ,
c) para indicar os diferentes estilos ou gê- 2010; RAPPAPORT, 2000; SCHWARTZMAN, 1993; TEIXEI-
neros de escrita ou narrativa etnográfica RA & SOUZA LIMA, 2010; VELHO, 1994.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Introdução ao Trabalho Etnográfico 11


ram bem além da realização de uma simples de observação distintas, com diferentes
“coleta de percepções”. Buscaram sustentar povos indígenas em distintas situações de
as suas interpretações numa rigorosa con- interação sociocultural com a sociedade
textualização histórica, sociológica, política, regional e por somente um pesquisador(a).
econômica e, em alguns casos, geográfica e Considerando que mais além das avaliações
ambiental. Afinal, a complexidade ou a sim- individuais e específicas está o objetivo de
plicidade dos objetos de estudo está mais discutir e comparar os achados das pesqui-
implícita no modelo de análise que na pró- sas etnográficas, de forma a alcançar níveis
pria natureza da realidade analisada. de generalização que permitam promover
os ajustes julgados necessários no Progra-
A ideia de estabelecer um Roteiro Básico ma, ou nos seus componentes e logística
Comum (RBC) que orientasse o processo
12 quando se trata de “beneficiários” perten-
etnográfico dos sete estudos de caso sur- centes a povos indígenas, era evidente a
giu em decorrência de vários fatores. Em necessidade de haver um roteiro básico de
primeiro lugar, a expectativa que há em questões orientadoras do observar, escutar
relação ao resultado global da pesquisa, e escrever que contemplasse as questões
ou seja, que os estudos etnográficos ofe- sobre as quais as diferentes Secretarias do
reçam informações qualitativas capazes MDS demandavam respostas.
de orientar possíveis ajustes no Programa
Bolsa Família (PBF) direcionados a povos Por fim, considerou-se que além das especifi-
indígenas; que a partir deles possam ser cidades em formação e experiência de vida e
gerados elementos teóricos, metodológi- de pesquisa, cada um dos pesquisadores (as)
cos e operacionais que permitam adequar iria confrontar-se em campo com realidades
o funcionamento do Programa às carac- em vários aspectos bastante diversas. Na hi-
terísticas próprias dos sujeitos de direito pótese de que isso pudesse gerar diferentes
que ele pretende promover. Durante ofi-
cina realizada no MDS em Brasília, no mês
12 de setembro de 2013, aventou-se tam- 12. O RBC foi estruturado em nove tópicos, quais sejam,
“Percepções e significados acerca do PBF”; “Atividades
bém que os resultados da pesquisa qua-
produtivas e comerciais locais e sua relação com segu-
litativa pudessem subsidiar a formulação rança alimentar”; “Acesso dos indígenas às unidades do
de uma pesquisa quantitativa, extensiva a Sistema Único de Assistência Social - SUAS (CRAS e CRE-
AS)”; “Logística de pagamento e recebimento do benefício
um número maior de Terras Indígenas.
financeiro”; “Utilização do benefício financeiro”; “Cadastro
Único”; “Condicionalidades”; “PBF e questões de gênero”;
“Formas de relacionamento dos indígenas com represen-
Outro fator indutor desta ideia deriva da
tantes do poder público, comerciantes, e com demais pes-
constatação de que são sete estudos de soas e setores da sociedade local”. Foi elaborado a partir
caso, que não obstante terem em comum das questões elaboradas pelas diferentes secretarias e co-
ordenações do MDS envolvidas com a implementação e a
como tema e como problema concreto os
avaliação do PBF, tendo sido validado durante a oficina de
efeitos das transferências monetárias do trabalho realizada em setembro de 2013, em Brasília/DF,

Programa Bolsa Família, cada qual foi realiza- com a participação dos sete consultores contratados para
realizar os estudos de caso. No Anexo 1 o leitor encontrará
do em uma Terra Indígena com suas próprias as questões que foram efetivamente colocadas no início
especificidades. Ou seja, em sete unidades da pesquisa em cada um dos nove tópicos.
priorizações ou ênfases na geração de dados, Supunha-se ainda a necessidade de uma
o que poderia dificultar o objetivo de discu- ampliação do horizonte ou do campo so-
tir, comparar e generalizar os achados das ciológico de análise para além das fron-
pesquisas etnográficas, em consenso com o teiras familiares e da comunidade local.
Departamento de Avaliação da Secretaria de Isso para poder alcançar a diversidade de
Avaliação e Gestão da Informação - DA/SAGI espaços, estruturas, sujeitos, significados
pareceu ser mais seguro adotar o instrumen- e práticas sociais (e políticas) envolvidos
to chamado de Roteiro Básico Comum (RBC). no (aparentemente simples ato de) rece-
ber/gastar o dinheiro, e como condição
Na elaboração deste roteiro, com as questões para entender certos efeitos e limitações
orientadoras do processo investigativo para da ação do Programa na população priori-
os sete estudos etnográficos, a principal re- tária do estudo. Como será visto mais para
ferência foi o rol de questões fornecidas pelo frente, e com detalhes em alguns relatos
MDS, estabelecidas em diálogos entre suas etnográficos, a noção de redes sociais se
diferentes Secretarias (Senarc, SNAS, Sesep, mostrou como uma boa ferramenta de
Sesan, Sagi). Por outro lado, confiou-se que trabalho. Auxiliou na produção e na inter-
cada investigador tivesse ao longo da sua pretação de dados e informações, ilumi-
investigação a capacidade e a sensibilidade nou vínculos entre pessoas e grupos de
necessárias para identificar e superar os pos- pessoas, sejam elas/eles indígenas ou não
síveis limites que estas questões pudessem indígenas, o papel de indivíduos e gru-
apresentar; e que buscassem olhar para além pos mediadores. Colocou em evidencia
delas, dos limites cognitivos e epistemológi- relações de poder e hierarquia, relações
cos que inevitavelmente qualquer conjunto de tipo compadrio (relação social similar
de questões cria, incorporando outras que à relação de parentesco, mediante a qual
avaliassem serem geradoras de dados e co- o padrinho tem uma série de obrigações
nhecimento para melhor avaliar os efeitos in e privilégios em relação ao afiliado, como
loco do Programa Bolsa Família. Como será também com seus pais) e patrão-cliente
apresentado a seguir, e com mais detalhe em (patronagem-clientelismo), e relações en-
seções específicas, praticamente em todos tre o sistema institucional e estruturas não
os processos etnográficos houve a neces- institucionais e intersticiais. A noção de
sidade de adequações. Isso porque muitas assimetrias (ou de relações assimétricas)
questões exigiam do interlocutor domínio surgiu como um complemento necessário
(ou alguma familiaridade) de conteúdos des- à anterior, por revelar e ajudar na carac-
conhecidos ou até estranhos ao universo da terização de determinadas situações ou
vida nas aldeias. Como por exemplo, o estra- processos socioculturais. Isso exigiu dos
nhamento produzido por alguns termos de pesquisadores colocar muita atenção aos
uso comum no Programa, como o de “condi- relatos sobre a vida e o destino concreto
cionalidades”, “elegibilidade”, entre outros. de pessoas, famílias e grupos familiares,

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Introdução ao Trabalho Etnográfico 13


além da observação empírica de relações Verificou-se que chegar a campo com uma
e processos sociais .13
definição mais flexível ajudaria a perceber
se o PBF, e o acesso ao recurso monetário
Olhar criticamente o conceito de família em particular, estava tendo efeitos no mun-
do PBF, verificar sua aderência aos contex- do indígena para além da fronteira circuns-
tos locais de significado, especialmente no crita da unidade familiar básica (mulher,
campo das relações de parentesco, e que marido e filhos e filhas) e sua parentela
efeitos gera no acesso dos indígenas ao re- próxima (“grupo de aliança local”). Supu-
curso financeiro, se constituiu num ponto nha-se que em alguns casos os efeitos po-
importante a ser considerado . O conceito
14 deriam estar ocorrendo numa região mais
de residência é outro utilizado de maneira ampla do que a da aldeia ou mesmo da Ter-
universalizante pelo programa, nem sempre ra Indígena, ou ainda se manifestando para
se ajustando ao modo de vida e perspectiva além da fronteira nacional brasileira.
cultural dos indígenas. É possível dizer-se
que isso é de interesse não somente da ins- Na elaboração do roteiro foi mantida a
tituição responsável pela implementação do proposta original do MDS de nove blocos
Programa, o MDS, mas também dos seus be- temáticos, cada qual relacionado a um as-
neficiários, os indígenas. Por fim, em se veri- pecto do Programa. Também foi levado em
ficando haver um descompasso, entendia-se consideração que o foco dos sete estudos
ser importante identificar como esta situação
era manejada social e culturalmente pelos in-
dígenas, que artifícios eram empregados por 13. Com a utilização da noção de redes sociais quere-
eles nas situações concretas, visando garan- mos nos referir, ainda, às relações e intercâmbios diretos
e indiretos (interpessoais, inter-organizacionais e socio-
tir o acesso e a continuidade do recebimento
técnicos), interfamiliares e interétnicos, por meio dos
do recurso financeiro. A noção de adaptação quais fluem - no espaço e no tempo - objetos, informa-
criativa apareceu como bem útil para enten- ções, conhecimentos, além de ideias, conceitos e noções.
A história da noção de rede nas Ciências Sociais remonta
der os processos. Ela é utilizada aqui para
aos escritos de Saint-Simon no século XIX (SCHERER-
referir-se aos processos por intermédio dos -WARREN, 2005), ganha projeção em meados do século

14 quais atores específicos e redes de atores XX com os estudos desenvolvidos no âmbito da tradi-
ção da antropologia social britânica (FELDMAN-BIANCO,
produzem ou coproduzem seus mundos so- 1987), e alcança um desenvolvimento bem interessante
ciais interpessoais e coletivos, retrabalhando com o antropólogo norte-americano Eric Wolf, ao eviden-
ciar as relações entre o âmbito local e as instâncias regio-
repertórios culturais existentes ou por con-
nais, nacionais e internacionais e seus múltiplos efeitos
duta aprendida, ou ainda mediante as muitas (WOLF, 2001, 2005; FELDMAN-BIANCO & RIBEIRO, 2003).
maneiras pelas quais as pessoas improvisam
14. A família é definida no PBF como: “unidade nuclear,
e experimentam, com velhos e novos conhe- eventualmente ampliada por outros indivíduos que com
cimentos e experiências, reagindo segundo a ela possuam laços de parentesco ou de afinidade, que
forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto
situação e com imaginação, às circunstâncias
e que se mantém pela contribuição de seus membros”
que encontram (LONG, 2007). Refere-se à re- (Lei no 10.836).
lação ativa e criadora da ação humana com
15. Aos interessados em aprofundar o tema, relacio-
o mundo (BOURDIEU & WACQUANT, 2005)15. nando adaptação criativa – entendida como capacidade
de inovação e com adaptabilidade estratégica às novas
exigências históricas – com processos de etnogênese, re-
Disposição semelhante teve de ser adota- comendamos BARTOLOMÉ, 2006; HERZFELD, 2008; HILL,
da em relação ao conceito de comunidade. 1996; PACHECO DE OLIVEIRA, 2004.
devia estar em como o Programa é opera- ção de pesquisa. Tanto isso é verdade que
cionalizado, percebido e utilizado pelos/as alguns consultores relataram resistências
indígenas; e nos efeitos sociais, culturais, político-culturais tanto da parte de indí-
políticos e econômicos gerados ou desen- genas quanto de agentes sociais não in-
cadeados pelo recebimento (e não recebi- dígenas, inclusive de pessoas localmente
mento) das transferências monetárias do envolvidas na implementação do Progra-
Programa Bolsa Família. Como veremos, o ma, influenciando a obtenção dos “dados
dinheiro que chega às famílias indígenas almejados”. Noutros casos, o pesquisador
adquire múltiplos significados, escapando foi bem acolhido e obteve a colaboração
da lógica da visão puramente economicis- dos entrevistados, por ele mesmo ser visto,
ta. A origem, sua utilidade e finalidades, os inclusive, como uma oportunidade ou qua-
riscos, as dificuldades que traz, as possibi- se promessa de resolução dos problemas
lidades que abre, entre outras questões, ou dificuldades por eles vivenciados em
irão aparecer na existência cotidiana, em relação com o PBF. Além das dificuldades
discursos e nas práticas sociais dos sujei- de comunicação decorrentes do não domí-
tos, algumas mostrando compreensões nio do idioma indígena por parte de alguns
provavelmente suscetíveis de não serem pesquisadores, no caso da TI Barra Velha
pensadas nos gabinetes da burocracia e (BA) a pesquisadora se deparou com a re-
das ciências sociais acadêmicas . 16
sistência dos seus interlocutores indígenas
para falar na presença do gravador ligado.
Vários fatores intervieram na rotina de in- É sempre bom lembrar que a relação in-
vestigação inicialmente estabelecida, in- terpessoal em uma pesquisa é fundamen-
fluindo tanto no processo de investigação talmente, e apesar de tudo, uma relação
dos consultores em campo quanto na orga- social e intersubjetiva que exerce efeitos
nização, análise e interpretação dos dados. sobre o processo e o produto etnográfico.
Cito, como exemplo, os estilos pessoais e
a diferente formação acadêmica dos pes- Na sequência iremos tratar mais especifica-
quisadores; sua experiência com pesqui- mente do como o trabalho etnográfico se
sas de avaliação de políticas públicas; e o efetivou em campo, ou seja, nos sete campos
contexto sociocultural e político que cada em que empiricamente se processou o estu-
um encontrou e enfrentou no campo para do sobre os efeitos do Programa Bolsa Famí-
efetivar os objetivos da pesquisa. Também lia, em particular no que se refere ao repasse
contribuíram para isso as diferentes es- monetário às famílias indígenas cadastradas
tratégias dos pesquisadores para aplicar e aptas ao recebimento do benefício.
as técnicas qualitativas de investigação,
diante da situação inevitável de dissime-
16. Sobre a relação entre dinheiro e cultura, reco-
tria (BOURDIEU, 2011) ligada à distância mendamos a leitura do interessante trabalho de ZELIZER,
sociocultural que perpassa e marca a rela- 2011.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Introdução ao Trabalho Etnográfico 15


2
CONTEXTUALIZAÇÃO
E METODOLOGIA NOS
ESTUDOS DE CASO
Saber como cada um dos consul- res ao exercício que ora vai che-
tores desenvolveu seu trabalho de gando ao seu final, relacionadas à
campo é importante para compre- observação crítica (os estudos) dos
ender os resultados alcançados. Es- processos das políticas públicas
pecialmente ao leitor não familiari- voltadas para os povos indígenas.
zado com o método etnográfico e
as técnicas de campo, isso permite Antes dos consultores irem “ao
conhecer e aprender aspectos do campo”, houve uma fase prepara-
processo de produção dos dados. tória, na qual cada consultor reali-
Permite, ainda, conhecer algo das zou estudos de gabinete sobre os
condições em que se realizou cada povos indígenas e o contexto em
etnografia. Nesse sentido, nesta que estão inseridos. Houve tam-
seção iremos colocar em relevo bém uma apropriação individual
o como cada um dos consultores de aspectos do PBF, por meio da
produziu os seus dados. leitura de manuais, cartilhas, arti-
gos e outros documentos forneci-
No que segue, nos baseamos no dos pelo MDS, sobre o PBF e ou-
que cada um apresentou nos seus tros programas de transferência
respectivos relatos sobre as técni- de renda condicionada.
cas, estratégias e procedimentos
de investigação adotados. Isso é O trabalho de campo dos consul-
feito a partir de uma perspectiva tores teve início no dia 14 de se-
particular: a de um sujeito a quem tembro de 2013, com o desloca-
coube a tarefa de acompanhar o mento de Bruno Guimarães à Terra
processo de investigação à distân- Indígena Porquinhos, no estado do
cia, contribuindo com a produção Maranhão. A ele seguiram Spensy
de dados de pesquisa, e que ao Pimentel, para a TI Dourados (iní-
final deveria sistematizar os re- cio dia 17/09); Lydie Oiara Bonilla
sultados e conclusões alcançadas Jacobs, para a TI Takuaraty/Yvykua-
pelos sete estudos de caso, tiran- rusu (início dia 17/09), Othília Car-
do disso conclusões e recomenda- valho, para a TI Parabubure (início
ções ao MDS. Um sujeito que traz dia 19/09), e Adriana Áthila no dia

16 16 consigo ao processo inquietações


específicas, muitas delas anterio-
30/09, para a Terra Indígena Alto
Rio Negro. No mês seguinte (outu-
bro) as duas outras consultoras contratadas Para situar o leitor a respeito dos locais
para os estudos etnográficos seguiram para onde se realizaram o estudo, na sequên-
os seus respectivos campos de pesquisa: cia apresentamos um quadro com dados
Danielli França no dia 23/10, para a Terra de cada uma das Terras Indígenas sob
Indígena Jaraguá; e Joceny Pinheiro no dia investigação, acrescido da indicação do
30/10, para a Terra Indígena Barra Velha. Esta pesquisador responsável pelo estudo de
última foi contratada pelo MDS para substi- caso e o período em que cada um reali-
tuir Palloma Cavalcanti Rezende Braga, que zou a sua prática de campo - o processo
se afastou do trabalho por motivo particular. etnográfico.

QUADRO2: DADOS GERAIS DAS TERRAS INDÍGENAS E DO TRABALHO DE CAMPO


PESQUISADOR/ PERÍODO DE
TERRAS INDÍGENAS (TIs)
PESQUISADORA CAMPO
Alto Rio Negro (AM) - Localizada na porção
noroeste do estado do Amazonas; faz frontei-
ra com a Colômbia. É acessível por via aérea e
fluvial, nesse último caso, por intermédio do
Rio Negro e seus afluentes da margem direita.
A TI está localizada nos municípios de São Ga-
briel da Cachoeira e Japurá. A região do Noro-
De 30 de outubro a
este Amazônico é habitada tradicionalmente Adriana Romano
19 de dezembro de
há pelo menos dois mil anos, por etnias que Áthila
2013.
falam idiomas pertencentes a três famílias
linguísticas: Aruak, Maku e Tukano. São vinte
e um povos originários (Tukano, Baniwa, Maku,
Arapaso, Desana, Barasana, Baré entre outros).
Segundo o IBGE, 14.556 pessoas vivendo no
interior da TI se declararam indígenas no Cen-
so de 2010, e outras 627 que se consideram.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Contextualização e Metodologia nos Estudos de Caso 17


Barra Velha(BA) - Localizada no sul do esta-
do da Bahia, no município de Porto Seguro, é
acessível por via terrestre a partir da BR 101.
A TI está homologada com 8.627 ha e foi in-
cluída, juntamente com a TI Águas Belas (tam-
bém homologada com cerca de 1.200 ha), na
TI Barra Velha do Monte Pascoal, identificada De 30 de outubro a
pela FUNAI com uma área 52.748 ha. Contigua 30 de novembro de
a essa está a TI Cahy-Pequi (ou Comexatiba), Joceny de Deus 2013; de 7 a 27 de
em processo de identificação (cerca de 18 mil Pinheiro dezembro de 2013;
hectares) e nas redondezas está TI Imbiriba, e de 7 a 27 de
com menos de 400 ha. As quatro Tissão habi- janeiro de 2014.
tadas por indígenas Pataxó, linguisticamente
classificados na família linguística Maxacali.
O IBGE identificou na TI Barra Velha, no Censo
2010, uma população de 2.402 pessoas que
se declararam indígenas, mais 587 que se con-
sideram.
Dourados (MS) - Localizada no município de
Dourados, vizinha à área urbana da cidade,
tem 3.475 hectares. Ao sul dela passa hoje o
anel viário do município, concluído em 2012.
Além disso, há décadas, a TI é cortada, no senti-
do sul-norte, por uma via asfaltada, a MS-156,
que liga Dourados a Itaporã, e por uma linha
de alta tensão. Na TI há três povos indígenas:
Guarani-Kaiowá, Guarani-Ñandeva e Terena.
Os dois primeiros falam idioma pertencente à
família linguística Tupi-Guarani, o segundo da De 17 de setembro
família Aruak – em realidade, poucas dezenas a 16 de outubro de
Spensy Kmitta
de pessoas ainda falam o terena em Dourados, 2013; e de 1º de
Pimentel
numa população de quase 3 mil indígenas que novembro a 28 de
se identificam com esse grupo. O IBGE recen- dezembro de 2013.
seou a população vivendo nesta terra com um
total de 10.720 pessoas pertencentes a estes
dois povos, mais 418 que se consideraram
indígenas. Há também um grande número de
indígenas que integram as redes sociais da TI,
18 mas vivem na periferia da cidade de Doura-
dos ou em diversos acampamentos ao redor
da área. Dourados tem aeroporto com voos
comerciais diários e a TI é cortada por estrada
asfaltada, a MS 156.
TERRA INDÍGENA (TIs) PESQUISADOR PERÍODO DE CAMPO
Jaraguá (SP) - Os Guarani possuem três TIs na cidade de São Paulo:
TI Tenondé Porã, TI Krukutu e TI Jaraguá e todas passam, hoje, por
processo de revisão dos limites demarcatórios. A TI Jaraguá (zona
oeste) pode ser acessada por terra, a partir da SP-330, Rodovia
Anhanguera. Ela está localizada na bacia do rio Tietê, no Planalto
Atlântico. A região é considerada Zona Núcleo do Cinturão Verde
da Cidade de São Paulo. Na TI há duas aldeias: Tekoa Pyau e Tekoa
Itu. A TI foi demarcada aos Guaranis Mbya e Tupi-Guarani, cujo
idioma pertence á família linguística Tupi-Guarani. Possui 1,7ha, De 23 de outubro a 21
mas passou por um processo de revisão de limites que a ampliou Danielli Jatobá de dezembro de 2013; e
para 532 ha em2013. No Censo 2010, o IBGE identificou 88 pes- França de 06 de janeiro a 01 de
soas autodeclaradas pertencentes a este povo, mais 10 pessoas fevereiro de 2014.
que se consideram indígena- o número do IBGE possivelmente
não leva em conta os moradores da Tekoa Pyau (são duas aldeias
no local, uma está fora do perímetro atual da TI, num terreno ocu-
pado contíguo à área atual). Neste mesmo ano, a FUNAI informa
que a população guarani na TI soma 265 pessoas. No relatório de
identificação da TI, assinado por Spensy Pimentel e publicado no
D.O., em 2013, consta que viviam na TI Jaraguá 583 pessoas em
dezembro de 2009.
Parabubure (MT) - Localizada nos municípios de Campinápolis e
Nova Xavantina, na porção leste do Estado de Mato Grosso. Faz De 19 de setembro a 15
fronteira com as TIs Chão Preto e Ubawawe, totalizando uma área de outubro e de 11- 24
Othília Maria Baptis-
contígua de 289.421 hectares sob o domínio xavante. A área está de dezembro de 2013; e
ta de Carvalho
inserida no bioma Cerrado. A TI é habitada pelo povo Xavante. O de 08 de janeiro a 15 de
IBGE identificou em 2010 uma população autodeclarada indígena fevereiro de 2014.
de 7.732 pessoas, mais 660 que se consideravam indígenas.
Porquinhos (MA) - Localizada na porção centro-sul do Estado do
Maranhão, sobrepondo-se a área dos municípios de Barra do
Corda, Fernando Falcão e Grajaú. Pode ser acessada por terra a
partir da BR 226. Faz fronteira com duas outras TIs: Bacurizinho
e Porquinhos dos Canela-Apanyekra (área ampliada); e tem nas
proximidades as TIs Cana Brava e Canela. A aldeia principal está
acerca de 80 Km a sudoeste do município de Barra do Corda e 45
Km a oeste da aldeia Ramkokamekrá de Escalvado. Está a leste do Bruno Nogueira De 14 de setembro a 21
município de Grajaú, separada por 75 km de área de cerrado. A Guimarães de dezembro de 2013.
TI Porquinhos é cortada pelo rio Corda em seu alto curso e sofre
fortemente com a ação ilegal de caçadores, madeireiros e, eventu-
almente, carvoarias. Nela vive o povo originário Canela Apanyekra,
falante da língua Timbira, pertencente à Família Linguística Jê. Da-
dos demográficos da TI: 587 pessoas (IBGE, 2010); 711 pessoas
(FUNASA, 2010); 690 pessoas (Bruno N. Guimarães, 2012); cerca
de 700 pessoas (Bruno N. Guimarães, 2013).

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Contextualização e Metodologia nos Estudos de Caso 19


TERRA INDÍGENA (TIs) PESQUISADOR PERÍODO DE CAMPO
Takuaraty/Yvykuarusu (MS) - Localizada no município de Para-
nhos, no Sul do Estado do Mato Grosso do Sul. Também conhecida
como TI Paraguasu. Distante aproximadamente 465 km da capital
do estado, Campo Grande, o município ainda possui (dez/2011)
cinco terras indígenas reconhecidas, Yvykuarusu/Takuaraty, Ar- Lydie Oiara Bonilla De 19 de setembro a 09
royo Corá, Potrero Guasu, Pirajuí, Sete Cerros e ainda, um acampa- Jacobs de dezembro de 2013.
mento indígena, denominado Y´poi. A TI é destinada aos Guarani-
-Kaiowá. Segundo o IBGE, 591 pessoas vivendo no interior da TI
se declararam indígenas no Censo de 2010. A língua falada pela
população está classificada no tronco linguístico Tupi-Guarani.

Na sequência, apresentamos um mapa Takuaraty/Yvykuarusu, nas proximidades


com a localização das sete Terras Indíge- da fronteira do Brasil com o Paraguai. As
nas incluídas no estudo. O povo indígena TIs Porquinhos e Parabubure, a primeira
Guarani foi contemplado com três estudos no estado do Maranhão e a segunda no
de caso, sendo dois no Mato Grosso do Sul estado do Mato Grosso, estão localizadas
e um em São Paulo. Duas TIs estão locali- no bioma Cerrado. Por fim, a TI Barra Velha,
zadas em regiões de fronteira com outros localizada no litoral sul da Bahia, está em
Estados-nacionais: a TI Alto Rio Negro, uma região com remanescentes da Flores-
que faz fronteira com a Colômbia; e a TI ta de Mata Atlântica.

MAPA : LOCALIZAÇÃO DAS SETE TERRAS INDÍGENAS

20
Embora com extensões diferentes e situ- 2.1.1 - Terra Indígena Barra Velha
adas em diferentes biomas, todas as TIs
A pesquisadora visitou todas as aldeias
sofrem igual pressão externa de não indí-
Pataxó que compõem a TI Barra Velha. En-
genas interessados em ocupar e explorar
tretanto, foi no conjunto de Barra Velha, e
os recursos naturais ali disponíveis. A TI
especialmente em seu núcleo central, que
Jaraguá (SP) é extremamente reduzida em
sua pesquisa se desenvolveu de forma
extensão, a ponto de ser insuficiente para
mais demorada e detalhada. Fora dos limi-
a abertura de roçados familiares – além
tes da TI, já no perímetro do que constitui
disso, paira sobre a população o risco de
a TI Barra Velha do Monte Pascoal, foram
não mais poder acessar a área do Parque
visitadas, adicionalmente, as aldeias Bu-
Estadual do Jaraguá, localizado próximo
gigão e Pé do Monte. Na medida em que
da TI, como efeito da privatização da ges-
inúmeras famílias Pataxó vivem nas vilas
tão dessa área de proteção.
vizinhas de Caraíva e Corumbau, num mo-
vimento contínuo entre a terra indígena e
Na próxima seção passamos a dar conhe- seu entorno, ambas foram consideradas
cimento ao como cada um dos consultores unidades de análise da sua pesquisa.
desenvolveu o seu trabalho de campo.
Além de observar a dinâmica do dia-a-
-dia das pessoas em cada uma dessas
2.1 A experiência
localidades, a pesquisadora se dedicou a
etnográfica acompanhar o dia-a-dia das famílias Pata-
Nesta seção incluímos as informações, da- xó, observando a circulação dos bens que
dos e reflexões dos autores dos estudos produzem, dos produtos que consomem
etnográficos nas sete TIs pesquisadas a res- e da renda de que dispõem. Considerou
peito do processo de pesquisa. Contempla e incluiu no seu trabalho de campo alguns
aspectos da metodologia de trabalho ado- aspectos a serem investigados como o in-
tada e implementada em campo, as entre- tercâmbio entre as aldeias, bem como as
vistas realizadas, bem como outros dados e articulações existentes entre o território
esclarecimentos fornecidos pelos pesquisa- indígena e seus arredores (os povoados, as
dores. Os pesquisadores utilizaram as prin- vilas turísticas e as cidades mais próximas).
cipais técnicas de entrevistas características
do método etnográfico de investigação, que O trabalho de campo inicialmente este-
são: entrevistas informais; entrevistas não ve orientado pelo objetivo de conhecer
estruturadas ou não dirigidas; entrevistas a realidade desta população da forma
semiestruturadas, dirigidas ou focalizadas; mais ampla e inclusiva possível, a fim de
e entrevistas em grupo. Houve também possibilitar uma caracterização geral de
quem trabalhasse com histórias de vida. seu contexto de vida, indo desde os as-

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Contextualização e Metodologia nos Estudos de Caso 21


pectos mais técnicos da ocupação atual oportunidades de imergir nas histórias
de seu território, até os elementos mais de vida de sujeitos específicos, ora sen-
etnográficos do universo político, cultural do direcionada para as especificidades da
e religioso do conjunto das aldeias como trajetória de vida desses indivíduos, ora
um todo. Em alternância com as visitas sendo trazida de volta para o tema central
domiciliares para saber dos efeitos do das conversas – os efeitos, as percepções
PBF, procurou conhecer vários pontos de e a atuação dos Pataxó em relação ao PBF.
referência dentro da TI Barra Velha, como As interações incluíram, também, profes-
as extremas do território, homologado em sores das várias escolas indígenas, agen-
1991, e algumas das áreas incluídas na tes de saneamento indígenas, agentes de
proposta de revisão de seus limites. saúde, auxiliares de limpeza, merendeiras,
agricultores, pescadores, comerciantes,
A pesquisadora voltou a sua atenção para funcionários públicos e, sobretudo, arte-
diversos temas a fim de traçar o perfil das sãos. Uma parte da interação se deu em
aldeias em foco e esboçar um apanhado função das visitas domiciliares e visitas às
geral acerca de sua história, memória e or- escolas e postos de saúde, no intuito de
ganização social. Por meio principalmente observação a respeito das condicionalida-
das visitas domiciliares e das caminhadas des. Outra foi decorrente do próprio ato
pela comunidade, foi reunindo elementos de permanecer na aldeia. Ou, ainda, nos
que permitiam ir formando um quadro deslocamentos diariamente, por cerca de
com a história de cada lugar, as formas 2km, até o único telefone público de Barra
de ocupação do território, bem como os Velha, e 1km até a CTL/Funai. Essas cami-
nomes e descrições de cada paisagem. nhadas em si abriram espaço para a ob-
Ela relata ter acompanhado algumas das servação participante, momento em que o
atividades culturais de importância para dito durante as entrevistas nos domicílios
as famílias de Barra Velha, em especial foi sendo maturado, contrastado e confir-
as famílias católicas. Ao se aproximar do mado com o que se podia perceber duran-
22 repertório de referências das pessoas, foi te o trajeto até o centro da aldeia.
construindo as bases do trabalho de in-
vestigação objeto da sua estada em Barra As considerações que integram o seu rela-
Velha naquele momento - aquilo que no to etnográfico nasceram de “entrevistas in-
jargão antropológico é chamado de con- formais” - de conversas ou simplesmente
textualização, um dos elementos do cha- de diálogos. Isso devido ao caráter casual
mado triângulo antropológico, juntamente e circunstancial de muitas das entrevistas
com a etnografia e a comparação. que realizou em Barra Velha. Ao longo dos
três meses de trabalho de campo, observa
A pesquisadora teve de conviver com que esses diálogos passaram progressi-
suspeitas e minimizar a desconfiança dos vamente a ser mais espontâneos e simul-
moradores em relação a sua presença ou taneamente mais elucidativos de como
aos objetivos da pesquisa que realizava. as famílias Pataxó percebem o Programa
Mas nem tudo foram dificuldades, teve Bolsa Família e os efeitos que ele propor-
ciona nas suas vidas e da dinâmica social ridades públicas da administração local e
e econômica local. Na dinâmica inicial de regional. Assim, ela fez uso de anotações,
interação com beneficiários das aldeias na maior parte das vezes realizadas de
Barra Velha, Pará, Porto do Boi e Campo do forma concomitante às conversas e/ou
Boi, ela se deparou com situações de apa- interações em campo, tomando o cuida-
rente medo de falar sobre o PBF em entre- do de reproduzir de modo literal algumas
vistas formais. Indagações feitas por seus das frases e exclamações proferidas pelos
interlocutores sobre a possibilidade de interlocutores. Na maior parte dos casos,
que as informações prestadas durante as tais anotações foram feitas com o consen-
conversas pudessem resultar em redução timento de seus interlocutores, diante da
do valor, bloqueio ou cancelamento do explicação de que as anotações operariam
PBF, foram direcionando a compreensão como um recurso de auxílio a sua própria
da consultora de como o acesso ao benefí- memória. Se no início do trabalho de cam-
cio financeiro é vivenciado pelas pessoas po as anotações da consultora acerca dos
- como um elemento de segurança econô- efeitos do PBF na TI Barra Velha estavam
mica - e de como o mais improvável risco, atreladas ao discurso dos beneficiários
ou rumor, de se ter o benefício cessado entrevistados, com o passar dos dias tais
é experimentado como ameaça ao bem- reflexões foram acrescidas pela experi-
-estar individual e da família. Esse receio ência da observação e da participação
muitas vezes se fazia notar na brevidade propriamente ditas, indo além das repre-
das respostas dadas às questões trazidas sentações discursivas para se chegar às
pelo Roteiro Básico Comum, e no caráter práticas mais corriqueiras: as estratégias
evasivo de comentários feitos acerca dos para viabilizar o recebimento do recurso
vários temas de destaque do roteiro, tais financeiro, o relacionamento com agentes
como o significado do PBF, as noções vi- públicos e comerciantes que integram a
gentes de pobreza, as condicionalidades, rede social que opera localmente o PBF, a
a logística de recebimento, a utilização do forma como o benefício é gasto, o cumpri-
benefício e a questão da segurança ali- mento das condicionalidades, e a questão
mentar e nutricional na comunidade. da segurança alimentar e nutricional.

De todo o conjunto de indivíduos com


2.1.2 - Terra Indígena Porquinhos
quem dialogou ao longo dos meses de
novembro, dezembro e janeiro, somen- O trabalho de campo consistiu no acom-
te duas pessoas demonstraram se sentir panhamento dos índios Canela Apanyekra,
realmente à vontade em entrevistas for- da aldeia de Porquinhos (Terra Indígena
mais: duas lideranças com trânsito pelos Porquinhos, Maranhão), ao longo do perí-
grandes eventos do movimento indígena odo de 14 de setembro a 21 de dezembro
regional e em contato contínuo com auto- de 2013. O pesquisador informa que a

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Contextualização e Metodologia nos Estudos de Caso 23


maior parte do tempo foi passada direta- vos Timbira. Também foram entrevistadas
mente na aldeia, buscando atualizar seus “lideranças” da aldeia. Por “liderança”, os
dados relativos à rede social que constitui Canela entendem os homens adultos com
a comunidade de Porquinhos, sua dinâ- filhos já crescidos, principalmente se casa-
mica cotidiana, e apreender as distintas dos, mas que ainda não são considerados
perspectivas nativas no que se refere ao “mais-velhos” (embora os “mais-velhos”
rol de questões colocadas para investiga- sejam também “lideranças”, são “lideran-
ção (leia-se, no Roteiro Básico Comum). Ele ças” honorárias, uma vez que frequentam
também acompanhou a ida dos indígenas menos as reuniões que os demais adultos,
às cidades vizinhas (em Barra do Corda, além do que não ocupam os cargos “po-
cinco vezes, em Formosa da Serra Negra e líticos”): são os homens que falam no pá-
em Fortaleza dos Nogueiras, uma vez cada) tio e possuem destaque nestas situações;
e esteve em São Luis a partir de um convi- são também as pessoas que naturalmente
te feito pelos Canela, onde pôde presen- mediam a relação dos Apanyekra (mehin,
ciar reuniões dos indígenas com pessoas na autodenominação, que significa “mes-
de órgãos governamentais situados nos ma carne”, “mesma substância” ou ainda
níveis municipal, estadual e federal. Estas “mesma forma”), com os kupen (os não-in-
viagens permitiram ao consultor analisar dígenas). O contato com os jovens (men-
um dos pontos principais da pesquisa, a tuwajê) se deu em momentos diferentes e
relação dos Canela “com a sociedade local foi menos presente do que o com os adul-
e regional”. Assim procedendo, foi possí- tos; sua participação foi fundamental no
vel extrapolar o âmbito comunitário e re- aprofundamento do domínio linguístico
conhecer o contexto das relações sociais e com pequenas traduções. O acesso aos
criadas, transformadas e atualizadas com “mais-velhos”, por outro lado, foi muito
a inclusão das famílias no Programa. Vale mais fácil, posto que estes, tanto homens
salientar que a investigação realizada se quanto mulheres, não possuem gran-
beneficia de uma experiência de pesquisa des restrições aos seus comportamentos
24 anterior pelo autor entre os Canela. (como dizem, mepaham hamnaré, i.e., “a
vergonha deles acabou”, implicando que
Foram estabelecidas relações de pesqui- fazem o que lhes dá vontade) e tanto o vi-
sa com outras pessoas (indígenas) além sitavam ao longo do dia como o recebiam
daquelas que eram mais próximas (o cír- em casa para conversar. Com as mulheres
culo familiar adotivo do pesquisador), de adultas foram realizadas tanto entrevistas
modo a minorar o viés dos dados. Para informais, na forma de conversas sem ro-
verificar outras perspectivas acerca do teiro, como entrevistas formais, seguindo
PBF e de seus efeitos entre os Apanyekra, questões previamente definidas. Mas a
foram reunidos dados com homens e mu- entrevista não constituiu o único método
lheres, bem como com membros de di- de coleta de dados; foi realizado além das
ferentes classes de idade - o gênero e o entrevistas formais o acompanhamento
pertencimento a “classes de idade” são de suas atividades cotidianas no âmbito
as principais clivagens sociais para os po- comunitário e com agentes externos em
decorrência do acesso ao recurso finan- vista informal”, entende-se as conversas
ceiro repassado às famílias pelo PBF - a direcionadas especificamente ao tema da
denominada observação direta. pesquisa, que por sua natureza são mais
difíceis de contabilizar uma vez que, para
Os Apanyekra manifestaram grande in- tal, seria preciso registrar diariamente
teresse na pesquisa sobre o PBF. Auxilia- o número de pessoas com as quais teve
ram não apenas respondendo entrevistas, contato e tratou de questões relacionadas
como também indicando os espaços que com a pesquisa; seus dados (não-quanti-
ele deveria conhecer e as atividades que tativos) foram anotados em caderno em
deveria acompanhar para compreender a momentos livres após a coleta, o que ge-
dinâmica do funcionamento do Programa ralmente ocorria pela noite.
Bolsa Família entre eles. Como contraparti-
da, ele comprometeu-se a “levar ao MDS as As gravações foram prejudicadas pela
demandas e questionamentos dos Canela”. chegada da equipe demarcadora da TI
Porquinhos na região na tarde do dia 8
Foram realizadas entrevistas com pessoas de novembro, exacerbando a tensão exis-
de variados perfis (etários, econômicos e tente entre os não-indígenas (kupen) e os
políticos), todas elas indígenas residentes indígenas (mehin) e levando os primeiros
da aldeia de Porquinhos. As entrevistas a ameaçarem a integridade dos últimos.
formais foram focadas na população femi- Como a TI Porquinhos se encontra atual-
nina e quase sempre foram acompanha- mente no estágio de delimitação física
das por membros das famílias das interlo- de seus domínios, a equipe demarcadora
cutoras, frequentemente o marido; estas passou em áreas de posseiros da região
entrevistas foram realizadas nas suas ca- colocando os marcos da nova fronteira
sas, em ocasiões em que as visitou. Estas indígena, fazendo com que velhas ani-
entrevistas focadas no público feminino mosidades dos ruralistas em relação aos
adulto e deveu a que este segmento da autóctones voltassem à tona. Embora este
população é o alvo imediato do PBF, sob a período de grande tensão trouxesse difi-
condição de beneficiárias. culdades, possibilitou ao consultor per-
ceber como a alteração da relação com
No total foram realizadas 30 entrevistas os kupen pode afetar a vida cotidiana da
formais. As entrevistas foram realizadas aldeia e, por conseguinte, a dinâmica do
sempre na aldeia; os dados coletados du- PBF entre os mehin; também ajudou a per-
rante as estadias nas cidades junto aos ceber o quanto o estado das relações inte-
Apanyekra foram registrados em caderno. rétnicas conjunturalmente influenciam no
As entrevistas informais foram mais abun- conteúdo e na forma de relatar e se po-
dantes, porém não seguiram roteiro fixo sicionar diante de determinadas questões
nem foram registradas no ato. Por “entre- postas pela investigação.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Contextualização e Metodologia nos Estudos de Caso 25


Para o desenvolvimento da investigação, No final da estadia, a consultora marcou
foi elaborado a partir do RBC um roteiro uma reunião com a responsável do CRAS,
de questões próprio, que, por sua vez, foi assim como com o gestor anterior do PBF.
sendo adaptado ao longo do período de Essas entrevistas confirmaram alguns dos
campo. Nele foram identificadas as ques- pontos indicados pelos indígenas em re-
tões que precisavam ser enunciadas e que lação ao CRAS.
pudessem ser respondidas sem grandes
constrangimentos pelas mulheres. Além A grande maioria dos beneficiários nesta TI
disso, buscou não realizar questionários são mulheres e, de maneira geral, elas es-
longos por perceber a dificuldade dos in- tão menos expostas à interlocução direta
terlocutores em se ausentar de suas ativi- com não indígenas (ou se mantêm relati-
dades cotidianas, especialmente no caso vamente mais afastadas dessas relações),
das mães, que precisam se dividir entre mesmo em se tratando de uma mulher.
os afazeres domésticos e o cuidado dos Em segundo lugar, é fundamental consi-
filhos (muitos deles ainda bebês). As en- derar que a grande maioria das mulheres
trevistas formais começaram um mês após da aldeia é monolíngue (língua guarani) e
seu ingresso no campo. Adiar o início foi não domina a língua portuguesa apesar de
uma estratégia para evitar que o consultor compreendê-la por vezes razoavelmente
fosse confundido com algum tipo de fiscal bem. A consultora também não tinha co-
ou auditor do Programa, e para que pudes- nhecimento prévio do idioma Guarani, o
se reunir subsídios ao aprimoramento do que tornou o trabalho em alguns aspec-
roteiro e para a formulação do que cha- tos dificultoso, especialmente quando
mou de conjunto de questões iniciais das se fazia necessário estabelecer um nível
entrevistas. O roteiro que foi produzido de interação e diálogo mais exigente em
(como poderá ser visto no Anexo 2) tem termos de profundidade e detalhe. Mas
menos questões que o RBC porém, ganha isso foi (em muitos casos) compensado
em qualidade ao estar mais ajustado ao pela familiaridade que a professora indi-
26 universo sociocultural local. cada como ponto focal pela comunidade
(quando da consulta prévia) tinha com as
mulheres, ficando restrito aos casos em
2.1.3 – Terra Indígena Takuaraty/
que não havia familiaridade entre essa e
Yvykuarusu
a entrevistada17. Considerando a dificul-
O trabalho de campo consistiu no acom- dade de gravação de entrevistas, os en-
panhamento dos Guarani e Kaiowá na contros e conversas com os beneficiários
Terra Indígena Takuaraty/Yvykuarusu nas foram todos sistematicamente registrados
suas atividades rotineiras e as relaciona- em caderno de campo.
das com o recebimento do benefício do
Programa Bolsa Família no período de
19/09 a 09/12/2013. Não frequentou o 17. Todas as entrevistas, inclusive com falantes do
português, foram realizadas com o auxílio da professora,
CRAS e o CREAS em Paranhos por ques- que teve um papel fundamental (como tradutora e inter-
tões logísticas e por “escolha estratégica”. locutora) ao longo de todo o trabalho.
Algumas conversas informais foram tam- buscando identificar, justamente, as recor-
bém registradas, mas na medida em que rências em termos de usos, desusos, elo-
seu conteúdo não está pautado pelo Ro- gios, reclamações, dificuldades etc. Vale
teiro Básico, não as relacionou como “en- observar que, segundo os dados forneci-
trevistas”. Nem todas as temáticas do RBC dos pelo MDS, estavam cadastradas em
foram abordadas de maneira sistemática 2013, 2.128 famílias da TI Dourados no
com todas as entrevistadas, mas todos os Cadastro Único, constando como benefi-
pontos foram contemplados por meio do ciadas pelo Programa Bolsa Família 1.842
conjunto das entrevistas realizadas. (86,6%) delas – sendo 1.046 Kaiowá, 391,
Guarani, e 389 Terena - outras 14 famílias
beneficiadas pelo PBF declararam perten-
2.1.4– Terra Indígena Dourados
cer a outros grupos étnicos.
A presença do pesquisador em campo en-
volveu duas fases: entre 17 de setembro e Foram realizadas visitas também aos
16 de outubro; e de 1º de novembro a 28 acampamentos Kaiowá/Guarani de Nhu
de dezembro de 2013. Vale salientar que Porã, Apyka’i e Boquerón, que ficam próxi-
a investigação realizada se beneficia de mo a TI Dourados. Seus habitantes perten-
uma experiência de pesquisa acumulada cem à rede social da TI; de lá saíram, ou lá
pelo autor entre os Kaiowá e Guarani ini- se recusaram a ficar, contrapondo-se à po-
ciada em 2000, tendo resultado em disser- lítica estatal de confinamento imposta aos
tação de mestrado (2006) e tese de dou- indígenas de MS ao longo do século XX18.
torado (2012), ambas defendidas junto ao Nesses lugares, além de conversas com as
Programa de Pós-Graduação em Antropo- lideranças locais, o pesquisador realizou
logia Social da Universidade de São Paulo. entrevistas com alguns potenciais benefi-
ciários do programa, onde pôde observar
Além da observação participante, acom- a ausência do Programa Bolsa Família em
panhando eventos realizados na TI (em várias situações de grande carência.
escolas, no CRAS Bororó etc.) e as ativi-
dades cotidianas de algumas famílias, a
investigação envolveu, ainda, uma série 18. Segundo COLMAN e BRAND (2008: 163-164), entre
os anos de 1915 e 1928 o Serviço de Proteção aos Índios
de visitas à residência de beneficiários
(SPI) criou oito “reservas de terra” para aí acomodar os
do PBF para entrevistas semiestruturadas, Kaiowá e Guarani, entre elas a reserva de Dourados. O
guiadas pelo Roteiro Básico Comum ofere- confinamento a eles imposto, em áreas restritas e que
não permitem mais a prática de uma agricultura itine-
cido pela coordenação da pesquisa. Num
rante, aliada à superpopulação, provocaram grave com-
primeiro momento, a atenção do pesqui- prometimento dos recursos naturais, com consequências

sador esteve orientada para entender o sobre a sustentabilidade alimentar das famílias ali assen-
tadas. Sobre a política implementada pelo SPI desde a
quadro geral do PBF na TI Dourados. Nessa sua criação em 1910, até ser extinto em 1967, cf. SOUZA
fase foram privilegiadas conversas curtas, LIMA (1995, 2010).

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Contextualização e Metodologia nos Estudos de Caso 27


A atividade de pesquisa também incluiu Em decorrência da grande quantidade de
a participação em uma série de eventos beneficiários existente na TI, a pesquisa
que aconteceram na TI Dourados, como foi orientada para o que poderia ser cha-
reuniões no CRAS Bororó, na Escola Ten- mado de características mais comuns ou
gatuí Marangatu, na sede da Coordenado- representativas ou típicas da(s) situação(s)
ria Especial de Assuntos Indígenas, órgão enfrentada(s) pelos moradores da TI quan-
recém-criado pela prefeitura do município do inseridos no Programa. Procurou retra-
e que tem sede dentro da TI, ou na chama- tar também alguns casos considerados
da Casa do Conselho, no Jaguapiru, onde o extremos, ou seja, de famílias em situação
chamado Conselho de Lideranças costuma de maior risco social e como essas perce-
organizar reuniões comunitárias. Também biam e se comportavam na relação com
esteve presente na reunião do Conselho o PBF, e vice-versa. Foram entrevistadas
da Aty Guasu realizada na TI Dourados no 72 pessoas, assim distribuídas: Jaguapiru
início de novembro. No período da pes- (26); Bororó (43); Acampamento Boquerón
quisa, ocorreram eleições para cacique, (2); e Acampamento Apyka’i (1). Além des-
ou capitão nas duas aldeias, Jaguapiru e sas, foram entrevistados 12 indígenas que
Bororó. O consultor acompanhou a vota- não são beneficiários do PBF, mas partici-
ção, a apuração e posteriores reuniões re- pam ativamente do debate envolvendo o
lacionadas ao pleito. No Bororó, a eleição, programa e questões correlatas.
que ocorre a cada quatro anos, aconteceu
no dia 15 de dezembro; no Jaguapiru, foi
2.1.5 - Terra Indígena Alto Rio
no dia 22 de dezembro.
Negro
Em resumo, as interações mais rápidas O trabalho de campo da pesquisadora
com beneficiários ocorreram em lugares teve lugar entre grupos e comunidades
públicos, como no CRAS Bororó - aonde há das principais calhas de rios da TI Alto Rio
uma forte presença de indígenas atuando Negro, como entre famílias indígenas em
28 na sua gestão e para onde aflui diariamen- contextos “urbanos”. Foram 80 dias corri-
te um número significativo de indígenas dos e sem interrupção, entre os meses de
beneficiários - e na casa de lideranças outubro e dezembro de 2013. Conforme
indígenas. O pesquisador também con- a exigência local de se proceder a uma
tou com o apoio de pessoas designadas construção conjunta do estudo, o campo
pelas lideranças indígenas para auxiliá-lo de pesquisa alcançou uma configuração
nos contatos e para o desenvolvimento ampla de amostragem. De uma ou duas
da pesquisa. Já os diálogos que buscaram “aldeias” a serem pesquisada pelo perío-
maior profundidade e detalhe, foram fei- do de campo disponível, como aconteceu
tos em visitas às residências das famílias nas outras seis regiões-alvo da pesquisa,
e/ou nas caminhadas com os informantes no caso da investigação desenvolvida por
no percurso entre a casa e algum equipa- Adriana Áthila, adotou-se a organização
mento público, como o escritório do PBF do trabalho pelas calhas de rios da região
na cidade, ou supermercados etc. e seus diferentes povos, bem como foram
incluídas famílias indígenas no contexto no que diz respeito a concepções nativas
da cidade de São Gabriel da Cachoeira. sobre o PBF. O estudo acabou por assumir
Desta forma, o plano que orientou o traba- uma configuração caracterizada pela con-
lho de campo foi fruto de uma construção sultora como bastante harmônica com a
conjunta que se deu com a Diretoria da “dinâmica e translocalizada cosmosocio-
Federação das Organizações Indígenas do logia dos povos indígenas do sistema re-
alto Rio Negro (FOIRN) e em interlocução gional do alto rio Negro”.
com integrantes de outras instituições,
suas parceiras locais, como o Instituto Foram 80 dias de trabalho intensivo e
Socioambiental (ISA), a Fundação Nacio- ininterrupto, longas viagens fluviais, po-
nal do Índio (FUNAI), o Distrito Sanitário vos e línguas diferentes, negociações, di-
Especial Indígena do Alto Rio Negro (DSEI ferentes protocolos e “tempos” de aceita-
ARN) e também com alguns antropólogos ção e construção de condições para uma
que atuam na região. A pesquisa de cam- pesquisa de cunho antropológico. Como
po aconteceu, sobretudo, como resultado resultado, a consultora informou que fo-
de um esforço conjunto que envolveu as ram constituídos quatro diários de campo
comunidades e sua disposição ou não em contendo registros de atividades, conver-
participar da pesquisa e, evidentemente, sas e reflexões diárias sobre a pesquisa.
dentro das condições logísticas regionais
para este tipo de pesquisa etnográfica. A pesquisadora informa que não foram
poucas as situações em que foi vista e re-
A investigação aconteceu na cidade de ferida como alguém que representava o Es-
São Gabriel da Cachoeira; comunidade de tado, dito como o “governo”, “Brasília” ou
Vila Nova (calha do rio Xié); comunidades mesmo a “Dilma”. Isso fazia com que seus
de Tunuí-Cachoeira, Canadá, Vila Nova e interlocutores trouxessem outros temas
Ucuqui (calhas dos rios Içana, Aiari e iga- para as conversas. Por exemplo, a aposen-
rapé Uaraná); comunidade de Iauaretê, co- tadoria e o salário maternidade, na medida
munidade de Vila Fátima e Taracuá (calha em que eles são concebidos pelos indíge-
do rio Uaupés) e comunidade Barreira Alta nas como tendo natureza semelhante ou
(rio Tiquié). Em comunidades ou no con- tem alguma relação entre si, por serem pro-
texto urbano, a movimentação constante venientes ou dizendo respeito ao Estado.
de pessoas e famílias dos múltiplos povos,
incluindo seus intercasamentos, permitiu Durante o trabalho de campo nas comuni-
traçar um diagnóstico bastante amplo e dades, muitos informantes, principalmen-
que expressa razoavelmente, dentro da te mulheres, mesmo diante da presença
metodologia adotada e das condições de de parentes que falavam suas línguas e
sua implementação, as diferentes realida- atuavam como tradutores, sentiram-se
des como também aspectos recorrentes envergonhados de se expressar na lín-

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Contextualização e Metodologia nos Estudos de Caso 29


gua original na presença da pesquisado- tares foram colhidas em mais quatro aldeias
ra. Ocorrências deste tipo aconteceram relacionadas à aldeia São Pedro: Onça Preta,
por todas as comunidades pesquisadas, Parinai’a, Podzénho’u e São Paulo. Resul-
com destaque para as mulheres Baniwa e tado da dinâmica cultural xavante, essas
Hupd’äh, como também para as famílias quatro aldeias apresentaram dados etno-
Cubeo, que têm laços de parentesco com gráficos similares aos encontrados em São
os Baniwa do rio Aiari e do igarapé Uaraná. Pedro. Isso se deveu ao fato de que para
além de serem partes integrantes da mes-
Em São Gabriel da Cachoeira, foram entre- ma microárea, essas aldeias estão ligadas
vistados indivíduos e grupos de benefici- por relações de parentesco estabelecidas
ários procedentes de diversas comunida- em período anterior aos processos de cisão
des do interior da Terra Indígena. Foram interna ocorridos em São Pedro. Vale salien-
realizadas entrevistas formais com pesso- tar que a investigação realizada se benefi-
as de diferentes categorias, como lideran- cia de uma experiência de pesquisa acumu-
ça indígena; coordenador de instituição/ lada pela consultora entre os Xavante.
liderança indígena; mãe indígena bene-
ficiária; mulheres indígenas beneficiárias A estratégia da observação participante re-
e não beneficiárias vivendo na cidade de velou-se bastante eficaz, pois tornou pos-
São Gabriel da Cachoeira (SGC); liderança sível o registro das formas de atendimento
indígena cuja família é beneficiária; mães e dos encaminhamentos (inclusive as recu-
beneficiárias vivendo em comunidades; sas aos encaminhamentos) dos problemas
professor, agente de saúde, entre outras. referentes ao PBF junto à rede de atores
De modo geral, os indígenas demandaram envolvidos na operacionalização desse
da pesquisadora explicações sobre as- programa. A pesquisadora também pôde
pectos do Programa - por exemplo, como acompanhar a movimentação de homens
é feito o cálculo do benefício ou o moti- e mulheres nas aldeias, devido ao preparo
vo pelo qual a transferência do benefício das novas roças e das primeiras colheitas
30 está bloqueada. Muito embora a resolução que são possíveis nessa época do ano. De
estivesse completamente fora das suas outro lado, o ritmo da vida nas aldeias, a
qualificações e funções em campo, e me- disposição dos Xavante conversarem sobre
nos ainda tivesse ela capacidades para tal, determinados assuntos e, sobretudo, a bar-
essas conversas foram a porta de entrada reira da língua, são algumas das variáveis
às percepções dos interlocutores sobre o que devem ser consideradas quando da
Programa e os seus efeitos. análise do resultado da investigação. Elas
influenciaram tanto na sequência da cole-
ta de informações quanto na compreensão
2.1.6 - Terra Indígena
de determinadas manifestações e práticas
Parabubure sociais em relação ao programa.
A investigação foi realizada nas aldeias
Campinas, Estrela e São Pedro. Por solicita- Em todas as aldeias visitadas o trabalho
ção dos Xavante, informações complemen- foi precedido de comunicação prévia com
as lideranças locais, que informavam aos expressão e o desconhecimento de ter-
demais a respeito do início dos trabalhos mos e conceitos utilizados no PBF torna-
durante os encontros da Warã, lugar de ram as notas de campo (referentes a um
reuniões onde são discutidos, pelos anci- total geral de 76 habitações visitadas) o
ãos e homens maduros, os temas de inte- principal instrumento de registro e fonte
resse dos diferentes grupos de uma mes- fundamental de construção de uma com-
ma aldeia. Em relação à barreira da língua, preensão da lógica do discurso xavante,
durante esses encontros iniciais foram das suas percepções e dos significados
escolhidos intérpretes responsáveis pela embutidos nesse discurso.
tradução simultânea dos relatos colhidos
durante as visitas às habitações, sendo Foram realizadas entrevistas formais, to-
fundamental esse apoio para a compreen- das utilizando basicamente o idioma bra-
são dos depoimentos na língua Xavante. sileiro (português brasileiro), em alguns
casos com a ajuda de tradutor/intérprete.
Já ao final da estada do trabalho de cam-
po, a pesquisadora começou a perceber
manifestações de irritação por parte dos
2.1.7 - Terra Indígena Jaraguá
Xavante. Isso porque vários problemas A TI Jaraguá é parte de uma rede de al-
relatados a ela em semanas anteriores, e deias Guarani M’bya nas regiões Sul e
que integraram comunicados ao longo da Sudeste do país. Seus moradores mais
pesquisa de campo, permaneciam sem so- velhos vieram do Paraná (Pinhal, Palmeiri-
lução, alguns necessitando de uma “inter- nha do Iguaçu), Santa Catarina, de aldeias
venção imediata” do MDS. situadas no Vale do Ribeira/SP (Sete Bar-
ras), de aldeias mais próximas ao litoral do
A pesquisa incluiu também agentes públi- estado de São Paulo, como as localizadas
cos pertencentes à Secretaria Municipal em Itanhém (Rio Branco) e da parte sul da
de Assistência Social e ao DSEI Xavante; própria cidade de São Paulo (região de Pa-
funcionários da Lotérica e das agências lo- relheiros, aldeias Tenondé Porá e Krukutu/
cais do Banco do Brasil e do Banco Brades- Barragem).
co; e comerciantes. Esses depoimentos,
mesmo não sendo exaustivos, formaram O relato etnográfico proporcionado pela
um interessante contraponto aos depoi- pesquisadora indica um período de cam-
mentos recolhidos dos Xavantes. po de 84 dias. Na primeira etapa do tra-
balho de campo (de 23 de outubro a 21
A coleta de depoimentos revelou a pouca de dezembro de 2013), a pesquisadora
fluência dos Xavante entrevistados com deixou, nas suas palavras, “as conversas
a língua portuguesa. Essa dificuldade de acontecessem com maior liberdade”. Por-

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Contextualização e Metodologia nos Estudos de Caso 31


tava o caderno de campo, onde realizava chimbo petygua, “esvazia” tudo que eles
suas anotações, mas não encaminhava vão acumulando nas agendas diárias de
perguntas diretas com um roteiro. Conver- contato com os não-Guarani. As atividades
sas informais sobre a vida na aldeia foram noturnas na Opy (“casa de reza”) são, ide-
registradas em diário de campo. Foi só na almente, proporcionais ao contato diário
segunda etapa, mais para o fim do traba- com não-índios.
lho de campo (de 06 de janeiro a 01 de
fevereiro de 2014), que a consultora pas- Além de entrevistas, a pesquisadora bus-
sou a utilizar de forma mais sistemática o cou acompanhar os Guarani da TI Jaraguá
Roteiro Básico Comum. Quando chegou nos seus afazeres diários, semana após
pela primeira vez, a pesquisadora foi re- semana. Isso inclui acompanhar reuniões
cebida pelas lideranças da comunidade, com agentes do Estado na comunidade;
que a introduziram junto ao restante da acompanhar o mutirão para documenta-
comunidade e indicaram as pessoas que ção no Poupa Tempo do Jaraguá; acompa-
teriam a atribuição de acompanhá-la du- nhar a participação na feira de artesanato
rante os trabalhos. Como a consultora não do Ibirapuera; acompanhar a representan-
entendia e nem fala o idioma nativo, es- te da cooperativa no comércio da cidade
sas pessoas apontadas pelas lideranças para a compra de material e expositor de
foram de fundamental importância para artesanato; transitar no espaço da escola
sua busca de sentido e levantamento de de educação infantil para tentar obser-
dados sobre os efeitos do PBF junto à var o cotidiano das crianças, assim como
população a ser estudada. Outro desafio perguntar sobre o acompanhamento da
que a pesquisadora teve de enfrentar na condicionalidade de educação; acompa-
realização do seu trabalho de campo, que nhar a reunião pedagógica de avaliação e
se mostrou um complicador no estabe- encerramento do ano letivo; acompanhar
lecimento de uma relação mais próxima reunião com representantes do Parque
32 com as pessoas, foi a visão que elas têm do Jaraguá sobre a sobreposição de parte
sobre saúde física e espiritual. A proximi- do território; visitar a Unidade Básica de
dade física com os não Guarani (os juruá) Saúde para verificar como se dá o cumpri-
é motivo de enfraquecimento. A dinâmica mento da condicionalidade de saúde; e
das rezas cotidianas com a fumaça do ca- participar na reza da Opy.
3
RESULTADOS DE CADA
ESTUDO DE CASO
Nesta seção foram reunidos de te, que a sua economia é, desde
maneira seletiva, dados, infor- há muito tempo, monetarizada, e
mações, argumentos e reflexões que as atividades que mais prati-
produzidas em cada uma das in- cam para sobreviver, tais como a
vestigações, agrupadas conforme agricultura, a pesca e o artesana-
a sua relação com cada um dos to, são de subsistência, além de
blocos temáticos do Roteiro Bási- essencialmente sazonais. Além
co Comum (RBC). de periódica, essa renda é incerta,
pois não há qualquer garantia de
que a colheita, a pesca ou a venda
3.1 Terra Indígena do artesanato será boa.
Barra Velha
a) Percepções e conhecimento do b) Cadastro Único – Com raras ex-
PBF – O Programa Bolsa Família ceções, os Pataxó de Barra Velha
é comumente associado a aqui- desconhecem a existência e a
sições de bens de efeito positivo função do Cadastro Único. Tudo
na vida das famílias Pataxó. Dado o que eles sabem é que de ano
o seu caráter ‘certo’ e ‘contínuo’, em ano uma equipe da Assistên-
o PBF possibilita o pagamento cia Social da Prefeitura de Porto
efetuado por meio das chamadas Seguro vai até a aldeia para atu-
‘prestações’, ou seja, permite a fa- alizar os dados de cada família
mília planejar e projetar possibili- beneficiária, além de realizar a
dades de consumo e de conquista inclusão de novas famílias.
de bens para além das necessi-
dades do dia-a-dia. É também a c) Condicionalidades – Os Pataxó
certeza e a continuidade do aces- entrevistados demonstram estar
so a essa renda que leva muitos bastante cientes dos compromis-
beneficiários a se referirem a este sos que devem ser cumpridos pela
dinheiro como “meu salário do família, na área de educação e
Bolsa Família” ou, simplesmen- saúde, para que possam permane-
te, “o salário Bolsa Família”. Para cer recebendo o benefício do PBF.
compreender o porquê desses
dois fatores (certeza e continui- d) Aspectos do pagamento e recebi-

33
dade) serem considerados tão mento do benefício e sua logística –
importantes para os Pataxó, é Os entrevistados na sua totalidade
preciso entender, primeiramen- consideram que o PBF faz com que
os beneficiários tenham que sair mais vezes de toda a pesquisa foi observado o fluxo
da aldeia. Embora manifestem preferir não regular de caminhões-baú e pickups de
ter que ir até a cidade para efetuar o recebi- vendedores, tanto na extremidade orien-
mento do benefício, algumas beneficiárias tal quanto ocidental da TI Barra Velha. A
disseram que esse deslocamento da a elas insurgência de algumas mulheres contra
a chance de sair de casa. Ou seja, sob esse esse sistema se deu em função de uma
angulo, é visto como algo positivo. sequência de casos em que os titulares
do cartão foram lesados, sendo obrigados,
Pesam contra o ter de ir à cidade o alto após meses sem contato com os vendedo-
custo com o deslocamento e o tempo de res, a cancelar e fazer nova solicitação de
permanência fora da aldeia (em média seu cartão PBF.
12-16 horas). A pesquisa realizada pela
NC Pinheiro (2013) confirma isso, ou seja, De um modo geral, os Pataxó não consi-
que a principal dificuldade que as famílias deram que sejam alvo de alguma forma
enfrentam em relação ao recebimento do de tratamento diferenciado nas lotéricas
benefício é o custo para se deslocarem onde sacam seu benefício do PBF. A ex-
das aldeias mais distantes até o centro da ceção a essa afirmação parece repousar
cidade para sacar os valores monetários. A no caso de Meio da Mata, onde o discurso
alternativa que as famílias têm encontra- dos entrevistados apontou para a existên-
do para enfrentar os custos elevados do cia de comentários intimidadores e, até
deslocamento é deixar acumular por dois mesmo, para suspeita de irregularidades
ou três meses os valores do benefício na e fraudes por parte de funcionários de
conta, para sacar o valor total em uma só alguns terminais ativos de pagamento do
vez, com isso realizando apenas um des- Agente Operador (casas lotéricas).
locamento.
Outro dado relevante a ser considerado,
Em todas as aldeias foi verificada a exis- inclusive para ações futuras do CRAS,
34 tência de outra forma de ‘acesso’ à renda por exemplo, é o fato de que uma grande
do PBF, sem que seja necessário sair de parte dos beneficiários não sabe ler nem
casa e se deslocar até a cidade. Essa al- reconhecer números, não sabendo, por-
ternativa só foi revelada ao final do traba- tanto, utilizar o dispositivo de digitação
lho de campo, por algumas mulheres que de senha do cartão. Até a conversa com os
afirmaram se sentirem “revoltadas” com a moradores dessa aldeia, nenhum benefici-
existência de um esquema em que “mui- ário havia mencionado o fato de que para
ta gente” entrega seus cartões do PBF a receber seu benefício do PBF era necessá-
vendedores ambulantes que visitam as al- rio levar o número de sua senha anotado
deias periodicamente, oferecendo cestas num pedaço de papel (entregue ao caixa
básicas, roupas, móveis e uma infinidade na casa lotérica). A consciência de que não
de outros produtos. Após esta revelação, sabem ler nem escrever e de que por isso
uma nova compreensão da dinâmica de não possuem controle total do mecanis-
recebimento do PBF se formou. Ao longo mo de saque de seu benefício gera inse-
gurança em alguns Pataxó. Ao receberem Segundo a NC Pinheiro (2013: 106), não
o comprovante, muitos não têm condições existe um Comitê Gestor Intersetorial do
de decifrar o que lá está escrito, sendo im- PBF instituído no município de Porto Segu-
prescindível a presença de membros mais ro, porém existem reuniões periódicas entre
jovens, escolarizados, da própria família as áreas de assistência social, saúde e edu-
ou de famílias vizinhas, para decodificar cação, com participação de profissionais da
a mensagem do comprovante. Ainda no saúde indígena, para acompanhar os resulta-
que se refere à dinâmica de recebimento dos e traçar ações conjuntas para o acompa-
do PBF nas lotéricas, em todas as aldeias nhamento das condicionalidades. O controle
houve pelo menos um registro de benefi- social é exercido pelo Conselho Municipal
ciário que recebeu, a contragosto, dois re- de Assistência Social. Por outro lado, de acor-
ais de raspadinha, sob a alegação de que do com a gestora do Programa, não há fluxo
não havia “trocado”. No decorrer da pes- de informações especificamente sobre o
quisa também se tornaram frequentes os acompanhamento das condicionalidades de
relatos de funcionários entregando uma saúde das famílias indígenas entre a gestão
quantia menor que o valor total do bene- municipal e a estadual ou a federal.
fício, ou, no dizer de alguns, “aplicando o
golpe” de dizer que o benefício foi reduzi- Os Pataxó parecem ter uma relação de vi-
do ou que já foi sacado naquele mês. zinhança amigável com pescadores da vila
de Corumbau e moradores e povoados pró-
e) Relações com o poder público, comér- ximos como Monte Pascoal, São Geraldo e
cio e sociedade local – Quando há algum Montinho. No entanto, são extremamente
problema com o PBF, os beneficiários sa- tensas e conflituosas as relações com os
bem que a única forma de solucionar esse moradores da vila de Caraíva, onde episó-
problema é por meio do contato com a dios de violência emergem com certa re-
Assistência Social da Prefeitura de Porto gularidade, vitimizando canoeiros, artesãs
Seguro . No entanto, como a viagem é
19
e indivíduos adictos ao álcool que peram-
cara e demorada, requerendo que a pes- bulam pela vila quando estão alcoolizados.
soa pernoite na sede do município ou em
alguma outra aldeia Pataxó mais próxima f) PBF na perspectiva de Gênero - O PBF
da cidade, muitos acabam por não bus- é percebido como um Programa voltado
car a resolução do problema na cidade, principalmente para as mulheres “mães
aguardando a vinda da equipe volante da
Prefeitura, ao final de cada ano, quando da
atualização dos dados cadastrais e inclu- 19. A gestão do PBF está situada na Secretaria Munici-
são de novas famílias no CadÚnico. pal de Desenvolvimento Social de Porto Seguro

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 35


de família”. Nesse sentido, algumas pes- verno, algumas famílias se voltam para a
soas mencionaram que homens, titulares agricultura, num intervalo que se estende
do cartão, tendem a ficar constrangidos por cerca de 8-9 meses, quando chove
quando reunidos em meio a uma maioria bastante no Extremo Sul da Bahia. A pesca
de mulheres, no dia da atualização de da- e a pecuária (de corte) ocorrem paralela-
dos (cadastramento) na aldeia. Ao conver- mente, ao longo de todo o ano, não repre-
sar com esses homens, é comum ouvir, de sentando, contudo, uma atividade produ-
imediato, que eles são titulares do cartão tiva de alcance tão abrangente quanto o
somente porque suas esposas não possuí- artesanato de sementes. Os Pataxó tam-
am a documentação necessária quando da bém se valem da captura de mariscos nos
solicitação do benefício. Nas entrevistas/ arrecifes e no mangue, e do extrativismo
conversas, tanto mulheres quanto homens de frutas e sementes.
titulares do cartão BF expressaram sua
preferência pela continuidade do benefí- Esse cenário se modifica bastante uma vez
cio atrelado ao nome da mulher. “É a mu- que se considera a parte mais ocidental do
lher quem sabe o que é que tá faltando território, nas aldeias Meio da Mata, Boca
dentro de casa”, disse uma senhora, numa da Mata e Cassiana, onde as atividades
das aldeias, resumindo para a consultora produtivas são menos variadas, em decor-
a opinião de muitos. Por outro lado, e ten- rência da distância dessas aldeias da faixa
do por referência vários relatos recolhidos litorânea, do mangue e dos pontos de tu-
nos três meses de pesquisa, a pesquisa- rismo. Nesse caso, nota-se a inexistência
dora arrisca afirmar que a desigualdade de da pesca marítima e da mariscagem, assim
gênero persiste, com força, entre os Pata- como uma redução considerável na con-
xó. Muito embora o PBF tenha promovido fecção de artesanato de semente, e uma
efeitos positivos sobre essa configuração, presença maior da agricultura, da pecuária
com algumas mulheres dependendo cada e do artesanato mecanizado voltado para
vez menos de seus maridos, a consultora a produção de gamelas. Outra grande fon-
36 conclui que as experiências de empodera- te de renda em toda a terra indígena ad-
mento das mulheres é algo ainda bastante vém do setor de serviços, saúde e educa-
pontual e específico.20 ção, com ocupação formal de pelo menos
duas centenas de pessoas, em sua maioria
g) Produção e segurança alimentar e nutri- pagas pela Prefeitura de Porto Seguro. Por
cional – Na aldeia Barra Velha e todas as fim, há de se ressaltar a existência cres-
suas extensões, situada na porção oriental cente de estabelecimentos comerciais
da TI, embora o artesanato represente a propriamente ditos - para revenda de ali-
principal fonte de renda para muitas famí- mento industrializado, produtos de limpe-
lias Pataxó, esta atividade está restrita ao za, peças de vestuário e bebida.
que localmente se identifica como o perío-
do do verão – tempo de turismo na região,
durando cerca de apenas três meses. No 20. Ver a frente o item “Acesso aos serviços e benefí-
restante do ano, durante o chamado in- cios socioassistenciais”.
Em relação à segurança alimentar, a situ- As conversas e observações sobre me-
ação das famílias na TI Barra Velha é ex- renda escolar revelaram uma situação no
tremamente heterogênea. No núcleo de mínimo preocupante, pois foi constatado
Barra Velha, por exemplo, percebe-se que que em toda a TI Barra Velha sua oferta é
a comunidade consegue fazer uso contí- insuficiente. Em praticamente todas as al-
nuo dos recursos naturais de que dispõe, deias se relatou que o alimento enviado
principalmente através da agricultura, da pela Prefeitura de Porto Seguro não che-
pesca, da mariscagem e do extrativismo ga a durar uma quinzena, destinando-se
de frutas. Cenas de pescadores carregan- apenas às crianças e estudantes do en-
do sacolas contendo peixes de pequeno sino básico. Em conversas com crianças,
porte, ou de crianças com varas carrega- adolescentes e seus pais, ficou claro que a
das de caranguejo, alternam-se com as maior parte dos estudantes matriculados
de agricultores empurrando carrinhos de nas escolas de Barra Velha (e extensões),
mão abarrotados de abacaxi, melancia ou Meio da Mata e Boca da Mata não tem
mandioca, e crianças catando mangabas e acesso a essa merenda para além da se-
retirando coco. Além do alimento produ- gunda semana do mês. Segundo foi cons-
zido nas próprias aldeias, sabe-se que as tatado pela consultora Joceny, para as fa-
famílias Pataxó empregam boa parte da mílias em maior dificuldade, geralmente
renda que obtêm com artesanato e ser- as mais numerosas, a merenda escolar é
viços ligados ao turismo na aquisição de vista como uma das poucas garantias de
produtos alimentícios. Mas, a relativa fa- alimentação diária para as crianças.
cilidade com que se obtém alimento nu-
tritivo, ou o dinheiro para comprá-lo, ao h) Utilização do benefício e usos do PBF –
menos durante três meses, numa parte do Como muitos beneficiários enxergam no
território não é encontrada em sua porção PBF uma continuidade do Programa Bolsa
mais ocidental, onde as únicas formas de Escola, há uma tendência, por parte des-
garantir o alimento se dão, como já indi- tes, a enfatizar que o dinheiro é gasto in-
cado, por meio da agricultura de subsis- teiramente com material escolar, sandália
tência, da venda do artesanato em madei- e vestimentas para os filhos irem à escola.
ra e da renda advinda do PBF. Mesmo na Entretanto, conversando mais demorada-
faixa litorânea, em aldeias como Xandó, mente com alguns desses beneficiários,
imediatamente vizinha à vila de Caraíva e observando as casas que habitam e os
(onde circulam altos valores monetários bens que ali abrigam, a consultora diz que
e de onde provém o sustento de muitos o PBF é utilizado para tornar acessível um
Pataxó), há famílias em situação de extre- universo muito mais amplo de bens que
ma pobreza que ainda não se livraram do material escolar, vestimenta e sandálias
“medo de passar fome”. para as crianças. Buscando estabelecer

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 37


um “padrão de utilização mais geral dessa lar do trabalho de campo, a pesquisadora
renda”, a pesquisa indica que o dinheiro, soube de histórias de homens que agredi-
em primeiro lugar, é utilizado na compra ram continuamente suas esposas, até que
de alimentos que se consome em casa; em as mesmas, após darem queixa de seus
segundo lugar, ele serve para adquirir ves- agressores, lograram se separar. Outra
timentas, calçados e produtos de higiene questão recorrente no discurso dos Pata-
e limpeza; e em último lugar serve para xó de Barra Velha diz respeito à dificulda-
garantir algum bem mais permanente, de que os indígenas mais velhos têm em
como uma cama, um fogão ou uma gela- garantir sua aposentadoria, mesmo após
deira. Alternativamente a esses gastos, o uma vida de trabalho. Na maioria dos ca-
PBF pode também pagar a conta de ener- sos isso se deveu à ausência de documen-
gia elétrica e o gás de cozinha da família, tos (como o registro civil). Por essas razões,
cujo custo é bastante elevado. a implementação e esclarecimento sobre
as ações ofertadas pelo CRAS poderia be-
i) Acesso aos serviços e benefícios socio- neficiar a população local, especialmente
assistenciais – Em Barra Velha, afora o os idosos, mulheres e crianças. Cabe des-
principal cacique da TI, e o ex-cacique do tacar, ainda, que a população não tem o
núcleo de Barra Velha, apenas duas be- mínimo conhecimento acerca de outras
neficiárias, das mais de 100 pessoas com ações e programas sociais que porventura
quem a pesquisadora conversou, afirma- possam ter o direito de acessar.
ram saber o que é um CRAS ou CREAS. A
maioria nunca ouviu falar desses centros
3.2 Terra Indígena
nem faz ideia das ações que os mesmos
promovem. A consultora sugere que, de
Porquinhos
forma o mais rápida possível, seria impor- a) Percepções e conhecimento do PBF – Nas
tante encontrar uma maneira de garantir a conversas com os homens jovens (não
presença da equipe da própria Assistência casados e sem filhos) acerca dos temas
38 Social da Prefeitura de Porto Seguro, para presentes no rol de questões do RBC, o
esclarecimento das muitas dúvidas refe- consultor constatou haver entre eles um
rentes ao PBF, e de profissionais ligados baixo conhecimento do Programa Bolsa
às unidades do CRAS/CREAS, com a oferta, Família. Mas todas as pessoas na aldeia
in loco, de serviços específicos para essa acreditam que o Programa Bolsa Família
população. A consultora ouviu vários re- não apenas é positivo, como é um direito
latos e presenciou situações de abuso da dos mehin receberem o benefício finan-
ingestão de bebida alcoólica; também re- ceiro mensalmente repassado às famílias.
latos de violência doméstica, por homens Na sua visão, orientada pelos princípios
alcoolizados, cujas vítimas têm sido, qua- de reciprocidade e simetria entre as partes
se sempre, as mulheres. Aliás, as situações em relação, o recurso financeiro funciona
relatadas de violência contra a mulher como o principal meio para se relaciona-
não se restringiram apenas aos contextos rem com os kupen (os não indígenas) e
com alto consumo de álcool. No desenro- para adquirir os bens feitos por eles (que
em realidade também deveriam ser dados tante do tempo é dedicado a outras ativi-
ao mehin). Quando questionados sobre se dades, como a criação dos filhos, visita aos
sabiam o porquê recebiam o PBF, enten- parentes, reuniões no pátio ou festas.
da-se “benefício”, a resposta mais comum
obtida dos interlocutores foi à suposição Não há palavra na língua dos Apanyekra
de que lhes mandavam dinheiro porque Canela que tenha equivalência imediata
sabiam que eles não o tinham, assim para o termo “pobreza” em português. Por
como não tinham os produtos dos kupen outro lado, o consultor observou que uma
(que podiam ser alimentos, como açúcar, família pode passar por momentos de es-
sal, café e biscoitos, ou outros itens, como cassez, em que não tem carne suficiente
roupas e chinelos). Dentro desta compre- para comer, ou não ter produzido o bas-
ensão, o PBF ampliou as possibilidades de tante em seu roçado por motivos variados.
aquisição dos bens dos kupen e a estadia Neste caso, esta família receberá alimen-
na cidade, algo antes restrita apenas às tos de outras pessoas próximas, mas não
famílias daqueles que recebiam aposen- será considerada “pobre” em relação às
tadoria ou que possuíam emprego. demais. Outra forma de escassez, porém
não material, é a escassez de festas, quan-
b) Pobreza e escassez – Entre os Canela, do a comunidade não consegue realizar os
predomina a percepção de que não é pos- seus amekin (“festa” ou “ritual”; amekin:
sível haver escassez de recursos, incluído “alegria coletiva”). A ideia de “pobreza”,
os alimentares, desde que alguém, saiba nos termos como mais comumente apare-
como obtê-los e que estejam ao seu al- ce entre nós, foi encontrada pelo consultor
cance, bastando ir até eles (colher, caçar quando nas conversas com os Apanyekra
ou pescar) para adquiri-los. O consultor esses se diziam comparativamente mais
não identificou entre eles o desejo de pro- “pobres” que os brancos pelo motivo de
duzir grandes excedentes ou conquistar não produzirem as invenções dos não in-
grande riqueza material; a economia dos dígenas - uma pobreza relacional.
mehin é uma economia de suficiência, em
que os recursos não são escassos e aten- Em relação ao dinheiro, o consultor Bruno
dem às necessidades da população. Neste constatou que para os Apanyekra soa es-
modelo econômico, o labor físico se limita tranho ouvir dos brancos a frase “o dinhei-
a poucas horas diárias (e não é necessário ro acabou”. Isso decorre, em parte, da ma-
ser executado todos os dias), dedicadas à neira como eles interpretam a relação dos
aquisição de alimentos, coleta de lenha, kupen com o dinheiro, que traduziu como
preparo da comida e outras atividades sendo “dissimulada e mesquinha”. E vai
mais esporádicas (como obter palha de mais fundo: como se ouve com frequência
buriti para refazer a casa, algo necessário pessoas na aldeia dizendo “se acabou o
apenas a cada três ou quatro anos). O res- dinheiro do kupen, ele vai ao banco e pega

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 39


mais, para ter dinheiro de novo”, não lhe c) Cadastro Único – O termo “Cadastro Úni-
é discrepante aventar a hipótese de que, co” se mostrou desconhecido por pratica-
para os Canela de Porquinhos, os bancos mente todos os Canela e parte considerá-
(em relação ao dinheiro) ocupariam logi- vel da aldeia não tem noção precisa dos
camente um lugar análogo ao que a mata mecanismos institucionais pelos quais o
ocupa (em relação ao alimento) – “é só ir Programa Bolsa Família é concedido ao
lá e pegar”. De outro lado, também pode beneficiário. Nas conversas informais que
constatar que entre os mehin há uma com- manteve com as beneficiárias, nenhuma
preensão limitada a respeito de algumas respondeu positivamente à questão “você
ideias que organizam a vida econômica (e sabe o que é o Cadastro Único”. Ao adap-
social) dos não indígenas, como é o caso tá-la para a entrevista formal - “Como você
das ideias de “escassez de recursos e fez o cadastro do Programa Bolsa Família?
bens”, “necessidade de racionamento do E como você ficou sabendo dele?” - ainda
dinheiro” e “necessidade de se trabalhar assim, foi respondida sem segurança para
para obtê-lo”. a maioria das entrevistadas mulheres e
com um pouco mais de domínio para os
Ao serem questionados sobre qual valor entrevistados homens; os poucos homens
considerariam ideal para receber do Pro- que disseram saber o que era o CadÚnico
grama, os Apanyekra geralmente devolve- não souberam explicar do que se tratava.
ram para o consultor a pergunta, inquirin- Ninguém respondeu afirmando conhe-
do sobre o quanto, em sua opinião, seria cer outros programas sociais que poderia
necessário para que pudessem bancar seu acessar via CadÚnico; tampouco informa-
transporte à cidade e a estadia nela, adqui- ram ter ocorrido qualquer consulta prévia
rir geladeiras e os remédios que estão em a respeito do PBF ou do CadÚnico junto à
falta no Posto de Saúde da aldeia, além de comunidade, resultando na ignorância do
roupas e alimentos, em especial para os funcionamento de ambos.
períodos rituais. Observando o dia-a-dia
40 da população, o consultor constatou que Os primeiros cadastros do Programa Bol-
muitos dos anseios manifestados pelos sa Família na aldeia remontam a 2006. Na
Canela não precisariam ser atendidos via ocasião, a prefeitura de Fernando Falcão,
repasse financeiro. Bastaria que houvesse por intermédio de um representante es-
remédio e médico no Posto, um local de- colar indígena, realizou um cadastramen-
cente para se hospedar na cidade, trans- to massivo de um grande número de fa-
porte gratuito à mesma e combate aos mílias. Os cadastramentos posteriores a
invasores da TI, que comprometem a caça 2006 passaram a ser feitos com o auxílio
com atividades predatórias. Isso resolvido, da FUNAI, embora tenha havido variações
a percepção de pobreza certamente dimi- de acordo com o período e com a família.
nuirá, dado que o acesso que terão àquilo Muitas beneficiárias não se recordaram
que os kupen podem oferecer será maior e de ter atualizado seus cadastros. Com a
melhorará a vida da população. ajuda dos maridos, soube-se que as atu-
alizações são feitas geralmente em mol- diariamente, com exceções pontuais. Por
des semelhantes ao do cadastramento de outro lado, a ausência de professores faz
2006: um responsável (desta vez, membro com que, de fato, a frequência à escola
da família, e não um terceiro) se encami- não seja cotidiana, posto que a escola fica
nha ao local da administração municipal alguns períodos inoperante - no mês de
responsável pelo PBF e apenas apresenta outubro passado (2013), p.e., praticamen-
sua documentação. Descobriu-se que eles te não houve aulas). O consultor não des-
identificam claramente quando o cartão carta a possibilidade de que o controle de
é bloqueado por meio dos “patrões”, e o frequência inexista, inclusive em virtude
motivo sempre é a atualização do cadastro dos intervalos tomados pela maioria dos
e nunca descumprimento de condicionali- professores não-indígenas em seu tra-
dades. De acordo com os Canela, não há balho. Em 2011, a Prefeitura de Barra do
presença de qualquer agente do Estado Corda contou com um Projeto de Trans-
se dirigindo à comunidade para lembrar porte Escolar, para ajudar a resolver o pro-
as pessoas da atualização do cadastro; e a blema de transporte. O Projeto era finan-
Funai só instrui quem a procura. Também ciado pelo Ministério da Educação (MEC)
não foi registrada qualquer notícia de no âmbito do Plano de Desenvolvimento
prestação de informação acerca do Cadas- da Educação (PDE), porém o recurso foi
tro Único e do acesso a outros programas desviado e não trouxe resultados para
sociais que, como já foi mencionado, são Porquinhos – segundo o consultor, há in-
desconhecidos pelos Apanyekra. quérito do Ministério Público apurando o
caso. Atualmente quem não está na aldeia
Os CRAS/CREAS não cumprem a função de não tem possibilidade de se deslocar até
informar às famílias acerca do que é o Ca- a escola e fica alijado da educação formal.
dastro Único, do que ele significa, porque Os Apanyekra reclamam da quantidade de
ele é feito e para que ele serve; tampou- merenda adquirida, informando ser pouco
co o fazem em relação ao Programa Bol- para o número de alunos na escola (que gira
sa Família. Os cadastramentos são feitos em torno de 360, segundo informou um
mediante apenas a apresentação de do- dos professores). Não existe material esco-
cumentos e não há informação acerca de lar na língua indígena. Há poucas publica-
benefícios adicionais. Não há atividades ções na língua Timbira Oriental, a maioria
especiais para os indígenas, assim como desconsiderando a variante Apanyekra, e
praticamente não há atividades “não-es- praticamente todas foram confeccionadas
peciais” para esta população. por missionários. Uma grafia unificada da
língua Timbira Oriental é desenvolvida
d) Condicionalidades – A maioria dos en- pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e
trevistados respondeu ao consultor que os professores indígenas se baseiam nesta
os matriculados na escola a frequentam grafia em sala de aula.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 41


Também não se encontrou beneficiários comunitários de saúde. O que o consultor
Apanyekra que se recordassem de terem verificou in loco é que há pesagem das
deixado de receber o benefício em razão grávidas e das crianças recém-nascidas na
de descumprirem as condicionalidades da aldeia, realizada pela enfermeira, junto ao
saúde. Os Canela estão pleiteando, hoje, agente de saúde indígena, que visitam as
a criação de um DSEI Timbira, para saírem casas de todos pela manhã. Não há, contu-
do DSEI Maranhão, que vêem como inope- do, um acompanhamento mais qualificado
rante e incapaz de atender suas deman- da situação de cada gestante ou recém-
das mais básicas. Na pesquisa realizada -nascido, devido não haver pessoal para
pela equipe da NC Pinheiro (2013) junto fazê-lo. A percepção extremamente pe-
à equipe da SESAI, o DSEI Maranhão foi jorativa em relação à assistência à saúde
apontado com o de pior desempenho en- compartilhada pela aldeia pode ajudar a
tre os DSEI em relação à cobertura vacinal explicar o motivo de não serem menciona-
e quanto à cobertura de acompanhamento das nas respostas as atividades de pesa-
nutricional das crianças de até cinco anos gem das gestantes e recém-nascidos. Ou-
de idade (apenas 2% de cobertura). Na tra possibilidade é que a população não
percepção da equipe técnica da SESAI, o veja nenhum sentido na ação de pesagem,
baixo desempenho do DSEI poderia estar pois com a ausência de pessoal qualifica-
relacionado a uma deficiência no registro do para o controle nutricional (médico e/
das informações e, desta forma, talvez, a ou nutricionista) a rotina não tem nenhum
cobertura vacinal real seja maior do que a retorno em forma de diagnóstico e acon-
apresentada. selhamento alimentar e nutricional. É feito
só a metade do processo, atendendo a um
A percepção dos Canela é radicalmente comando de produzir dados para registro
oposta à da equipe da SESAI, uma vez que e não para um serviço completo de vigi-
foi constatado pelo consultor que na al- lância alimentar e nutricional e desenvol-
deia há posto de saúde, porém faltam me- vimento das crianças.
42 dicamentos e há apenas uma enfermeira
disponível para atender as 700 pessoas A ausência de agentes comunitários na
que lá vivem. Os Canela informam que o aldeia, ou as várias barreiras de acesso
médico da SESAI não comparece à aldeia, à saúde que os indígenas enfrentam na
e ninguém conseguiu dizer qual foi a úl- cidade, pode ser um indício de que, na
tima vez que ele havia ido a Porquinhos; prática, o cumprimento das condiciona-
atualmente, membros da própria SESAI lidades da saúde não é algo importante
são acusados pelos Canela de desvios de e exigido dos habitantes de Porquinhos,
recursos. Essa situação possivelmente in- com os dados reais dos indígenas não sen-
fluiu na resposta negativa obtida a prati- do computados ou nem coletados (sendo
camente todas as questões colocadas no inexistentes). Contribui para essa hipóte-
RBC a respeito do atendimento a todas as se o fato de que nenhum dos entrevista-
mulheres gestantes e lactantes, acompa- dos, mesmo aqueles do sexo masculino,
nhamento pré-natal ou visitas de agentes com mais de 30 anos e maior experiência
no trato com os não-indígenas e o Estado, problemas do deslocamento, a maioria da
soube responder a respeito da existência população indígena deseja ter acesso às
de qualquer condicionalidade para par- “invenções dos kupen”, para não mencio-
ticipar do PBF ou continuar recebendo o nar as situações em que o deslocamento é
benefício. feito com fins de adquirir alimentos.

e) Aspectos do pagamento e recebimento São apontados pelo consultor, como prin-


do benefício e sua logística – O cartão do cipais problemas enfrentados pelos indí-
Programa Bolsa Família de praticamente genas na cidade, os seguintes: preconcei-
todas as famílias Apanyekra está nas mãos to e racismo sofrido pelos índios; violência
dos “patrões”. Um patrão é um agiota que (ameaças e agressões); e alto consumo de
empresta dinheiro a taxas de juros altas álcool, que atinge uma crescente parte da
(não há notícia de patrão que cobre me- população masculina adulta e também
nos que 20% de juros sobre o montante algumas mulheres, porém em menor me-
emprestado) e, em troca, toma os cartões dida. As dificuldades com o retorno estão
dos beneficiários, algumas vezes pegando ligadas à ausência de carros para realizar
também seus documentos. O patronato os deslocamentos. Há apenas um carro da
não se limita ao Programa Bolsa Família, própria comunidade, dirigido por um indí-
havendo patrões que também sacam as gena que já foi motorista da FUNAI. Este
aposentadorias ou auxílio-materno de carro foi tomado da FUNAI, pois era utili-
seus “clientes”. O consultor identificou zado anteriormente para trabalhar na TI e
existirem diferentes patrões trabalhando não estava mais sendo empregado para
junto aos Apanyekra. Parte deles possui nenhum fim, abandonado em uma oficina
algum comércio, outra parte se tornou da cidade. Os Apanyekra têm dificuldade
patrão por trabalhar junto aos índios e em manter este carro, que quebra fre-
realizar o trânsito entre cidade – aldeia quentemente e lhes dá muitas despesas,
com frequência. Os patrões que possuem fazendo com que ele passe períodos ina-
cantina ou comércio conseguem que os tivos, aumentando com isso a dependên-
“clientes” gastem seus benefícios prefe- cia dos indígenas junto ao transporte dos
rencialmente junto a eles. Outros patrões patrões.
são menores e mantêm menos cartões
em seu poder. O patronato surge também Como os benefícios não são sacados di-
como uma forma de acesso ao crédito. retamente pelos próprios Canela, eles
não puderam responder à questão “que
O PBF faz as pessoas saírem da aldeia mais tipo de dificuldade você já teve para sa-
vezes dado que, havendo a possibilidade, car o benefício”, tampouco se já tiveram
eles sacarão o benefício todos os meses, alguma. Os beneficiários são alienados de
nunca o deixando acumular. Apesar dos todo o processo de recebimento de seu

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Resultados de Cada Estudo de Caso 43


dinheiro e muitos sequer sabem, exata- conhecem o gestor municipal do PBF e, nas
mente, o valor atual de seu benefício, dado entrevistas formais, apenas em uma o inter-
que nem todos os patrões aceitam entregar locutor (homem adulto com pouco mais de
o extrato de saque para o “cliente”. Existem 30 anos) respondeu seguramente à questão
pessoas que sequer sabem mais sua senha “quem é o responsável pelo Programa Bolsa
de saque, estando esta em domínio do pa- Família na cidade”. Ainda neste caso, ele o
trão. Os Canela informaram, ainda, que os fez em referência a cidade de Fernando Fal-
saques dos patrões são feitos preferencial- cão (onde mantêm seu benefício) e não ti-
mente na lotérica e no mercado, mas não nha a mesma informação em relação à Barra
excluíram que os saques também sejam do Corda (cidade que visita com muito mais
realizados na própria agência da Caixa Eco- frequência, inclusive em virtude do aporte
nômica. Narram nunca terem visto ou ou- financeiro provido pelo benefício). Em ou-
vido falar que um patrão teve problemas tros casos os homens adultos especularam
para sacar o PBF de seu “cliente” em qual- quem poderia ser o responsável, mas não
quer estabelecimento de Barra do Corda. demonstraram segurança na resposta. Por
vezes, a pergunta causava confusão e a res-
Segundo o consultor, os Apanyekra estão posta era que o próprio patrão era “o res-
discutindo informalmente, e nas suas ins- ponsável pelo PBF na cidade”.
tâncias internas de tomada de decisão co-
letiva, uma estratégia para romper o círcu- Como já foi informado anteriormente, em
lo vicioso de dependência do patronato. geral os indígenas sofrem grande precon-
Muitos disseram ao consultor que preten- ceito negativo na cidade e se sentem des-
dem cancelar seus cartões que estão de confortáveis frequentando vários espaços,
posse dos patrões e solicitar uma nova via, como lojas de maior porte (em especial
para que eles mesmos os operem. Contu- aquelas que vendem eletrodomésticos) e,
do, observa o consultor, em situações se- principalmente, bancos. Nas entrevistas e
melhantes, anteriormente, os cartões no- conversas realizadas pelo consultor com
44 vos acabaram voltando para as mãos dos os Apanyekra, em apenas uma ocasião eles
patrões, seja por haver ainda uma “dívida informaram terem se sentido “bem trata-
em curso” que levava a ameaças ao bene- dos” pelo vendedor. Algumas vezes, inclu-
ficiário, seja por dependência econômica sive, pediram que o consultor conversasse
do patrão, que vai assegurar em um pri- com o negociante por eles, para evitar que
meiro momento que as pessoas na cidade fossem enganados. Em dada ocasião, a ge-
não passem fome ou voltem para a aldeia, rente de um mercado frequentado pelos
dado que o valor do benefício muitas ve- Apanyekra disse ao consultor não gostar de
zes é insuficiente para manter uma família índio, porque eles pioram a imagem de Bar-
em Barra do Corda por vários dias e pagar ra do Corda: “não trabalham e só bebem”.
o “frete” de cada passageiro no traslado.
Todos os relatos recolhidos em campo
f) Relações com o poder público, comércio e indicam que os Apanyekra desconhecem
sociedade local – Em geral, os Apanyekra não “espaços de discussão entre governo e
sociedade para tratar do PBF” (as Instân- o consultor diz ter escutado dos homens
cias de Controle Social - ICS). Ninguém na que precisavam levar determinados pro-
aldeia participa da fiscalização nas ICS do dutos “para suas esposas”, mesmo quan-
Programa Bolsa Família. Adicionalmente, do os objetos em questão não as teriam
os Canela não expressam nenhuma con- como destino final (exemplo: cadernos
fiança na capacidade de resolução de para crianças estudarem, vestimentas
problemas das administrações municipais para outros membros da família, etc.). As
de Barra do Corda e Fernando Falcão. Este decisões acerca do emprego do benefício,
quadro se agravou especialmente após o apesar de compartilhadas pelo casal, são
início do processo demarcatório, quando vistas como mais legitimamente femini-
passaram a evitar ir à cidade e passaram nas. As mulheres, contudo, se queixam
a sofrer constrangimentos quando nela muitas vezes de que seus maridos não es-
estiveram. tão seguindo tudo o que elas definiram. O
consumo intendo de álcool é visto como
g) PBF na perspectiva de Gênero – Os car- a principal causa disto. Coincidentemente,
tões do Programa Bolsa Família estão na esse consumo é também a principal causa
maioria das vezes no nome das mães. de separações e divórcios na aldeia, sendo
Uma família é constituída aos olhos dos visto como principal causa de ruptura das
Apanyekra a partir do momento em que relações sociais e colocando o alcoolista
o casal tem filhos. Não obstante, os filhos em condição semelhante ao dos “animais
são vistos como indiscutivelmente ligados valentes” (hobré)21.
à mãe, com a qual permanecem no caso
de separação. Os Canela não veem proble- h) Produção e segurança alimentar e nutri-
ma no cartão ser feito no nome da mulher. cional – Não foi registrado casos de aban-
Pelo contrário, homens e mulheres ques- dono de atividade produtiva em virtude
tionados a este respeito responderam do PBF; todas as famílias possuem um
positivamente a esta diretriz do Progra- setor de roça (ligado à casa) e o trabalho
ma, explicitando a conexão realizada no nele parece estar mais condicionado à dis-
pensamento nativo entre o benefício e a ponibilidade de transporte para percorrer
criança. Apesar de o saque ser feito pelo a área (dado que existem plantações bem
patrão e da principal pessoa a se relacio- distantes da aldeia) e de mão-de-obra na
nar com o patrão ser o homem (caso o
haja), as mulheres é que tendem a decidir
como o recurso deve ser prioritariamente
21. O uso do termo “alcoolista” não corresponde a um
gasto. A economia doméstica é gerida por diagnóstico clínico, mas apenas descreve a pessoa que
elas e os homens tendem a reconhecer a apresenta comportamento e tendência a um consumo
excessivo de álcool. Sobre esse assunto cf. COUTINHO,
distribuição no núcleo familiar como de 1992. Sobre processos de alcoolização entre povos indí-
domínio feminino; assim, frequentemente genas no Brasil cf. SOUZA (2013).

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Resultados de Cada Estudo de Caso 45


família. O que mais afeta a capacidade de alimentação cotidiana, mas que estão sem-
produção nativa é a ação de madeireiros pre presentes nas festas e rituais.
e caçadores, que destroem grandes por-
ções da mata (dificultando, por exemplo, O acesso à alimentação é assegurado pela
a produção de novas casas com a palha do produção da aldeia e pelo Programa Bolsa
buriti) e acabam com os animais em cer- Família. Contudo, a permanência na cida-
tas regiões da área indígena. Como não de pode levar a população Canela a pas-
há qualquer combate sistemático a estes sar fome, uma vez que o benefício não é o
crimes por parte do Estado (pelo contrá- suficiente para garantir a alimentação de
rio, os Canela apontam grande conivência toda a família por um período longo e o
dos funcionários públicos, dizendo des- acesso a ele depende do patrão, que pode
conhecer qualquer denúncia que estes já estar indisponível ou se recusar a entre-
tenham feito a respeito da depredação co- gar o recurso devido à dívida já acumula-
nhecida por todos), os Apanyekra são cada da por seu “cliente”. O “medo de passar
vez mais prejudicados em sua produção fome” certamente diminuiu após a en-
tradicional. trada no PBF, porém a mitigação da fome
no contexto aldeão não é o principal uso
O dinheiro do PBF é utilizado para com- do Programa para a maioria da população
prar alimentos produzidos fora da aldeia indígena de Porquinhos. Os Canela não
e, raramente, para comprar alimentos utilizam barcos para pesca, mas se valem
dentro da aldeia. A base da alimentação do dinheiro do Bolsa Família para adquirir
indígena é constituída de arroz e mandio- instrumentos de pesca, em especial anzóis
ca (carboidratos), carne de caça ou peixe e linha. Este recurso também é empregado
(proteínas) e frutas. O montante maior de na compra de itens para a lavoura, como
alimentos adquiridos na cidade com os facões, foices e outros instrumentos para
recursos do benefício corresponde a car- auxiliar no plantio e na colheita.
boidratos, como o arroz ou a farinha, ou
46 proteínas, principalmente a carne de boi. i) Utilização do benefício e usos do PBF – O
Também compram feijão, fava, leite em dinheiro do benefício é prioritariamen-
pó, café, sal, açúcar e óleo de soja regular- te utilizado para dois fins básicos: (a.) a
mente, para complementar a alimentação subsistência por meio da aquisição de ali-
cotidiana, aumentando a variedade dos ali- mentos, que servem para complementar a
mentos consumidos, porém elevando tam- comida da aldeia, aumentando a varieda-
bém - segundo fontes da comunidade e de disponível, ou para evitar a fome nos
conversas com as enfermeiras da aldeia, o períodos passados na cidade (servindo
número de diabéticos e hipertensos é cres- também para bancar o transporte entre os
cente e muito superior ao de uma década trechos); (b.) aquisição de bens necessá-
atrás (infelizmente não foram encontrados rios para as festas e rituais, especialmente
registros quantitativos desse fato). Em me- comida, mas também bermudas, panos e
nor quantidade, adquirem biscoitos e refri- sandálias novos (para “estar bonito” -
gerantes, que não são vistos como parte da mpej), além de outros itens de higiene e
beleza (como sabonetes, xampus e cre- guerra”. Alojaram-se em uma construção
mes para cabelo). Apesar de as peças de ao lado do posto de saúde e passaram a
vestuário e os artigos de higiene e beleza noite inteira bebendo. Pela manhã, com
serem consumidos independentemente a chegada do pessoal da FUNAI a Porqui-
da existência de festas, a perspectiva de nhos, os técnicos do Centro de Referência
algum amekin (“festa” ou “ritual”) faz com foram solicitados a abandonar a aldeia, o
que a aquisição destes itens seja manda- que prontamente atenderam. A percepção
tória, tornando o seu consumo muito mais existente a respeito dos órgãos ligados à
frequente durante os períodos de rituais. assistência social é negativa, dado o aten-
A aquisição de eletrodomésticos é mais dimento precário e à má vontade em lidar
rara e geralmente só é feita por famílias com os indígenas, que não sabem exata-
que possuem aposentados ou um número mente o que se faz naqueles locais, con-
grande de cartões do PBF com o mesmo cebidos apenas como “onde nos levam
patrão, permitindo acesso a um “crédito caso haja problema no benefício”.
patronal” maior.

3.3 Terra Indígena


j) Acesso aos serviços e benefícios socio-
Takuaraty/ Yvykuarusu
assistenciais – Os Canela não conhecem
os Centros de Referência de Assistência
(ou Aldeia Paraguasu)
Social (CRAS) ou os Centros de Referên- a) Percepções e conhecimento do PBF – O
cia Especializados de Assistência Social Programa Bolsa Família é concebido como
(CREAS). Apesar de terem noção de que um benefício que deve ser usado ‘para as
existem e eventualmente serem levados crianças’ e que, portanto, é visto como uma
até estes locais por não-indígenas (sejam forma de que as crianças permaneçam na
membros da Funai ou patrões) para buscar escola, em boas condições. A consultora
resolver qualquer problema referente ao crê que, mesmo sem a condicionalidade
PBF, não foi encontrado um único mehin da educação, o dinheiro continuaria sendo
(como os Canela se denominam) que se “das crianças”. Há dois aspectos que con-
dirigisse espontaneamente a estes locais tribuem para isso: o primeiro é o fato que
ou sentisse que lá era o lugar para resol- o dinheiro do PBF tenha “encaixado” numa
ver seus problemas e conseguir ser bem concepção segundo a qual não se pode
atendido. Durante todo o período em que frustrar a vontade dos jovens. O segundo,
o consultor esteve entre os Apanyekra, que reforça ou até incentiva o primeiro, é
apenas uma vez a equipe volante do Cen- que diversos agentes (principalmente os
tro de Referência de Fernando Falcão foi da escola, e mais ainda os da escola na
a Porquinhos. Há relatos de que estes cidade) associam sistematicamente o PBF
funcionários chegaram armados e decla- à presença das crianças na escola e à sua
raram que estavam “preparados para a boa aparência – é exemplo disso a seguin-

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Resultados de Cada Estudo de Caso 47


te fala: “vocês não recebem PBF? Podem produção agrícola para consumo interno.
comprar sapatos novos para seus filhos”... A pesquisadora relata que, hoje em dia,
e assim por diante. Difícil é estabelecer o essa produção depende estreitamente da
que condiciona o quê; o que é causa do assistência do Estado (Prefeitura para tra-
quê. O mais provável é que os dois aspec- tor e FUNAI para obtenção de algumas se-
tos funcionem juntos: é para as crianças e, mentes), deixando de ser realizada plena-
portanto, também (e hoje, principalmente) mente quando o trator não é cedido para
para a escola. Se o benefício não atinge preparar a terra.
sua meta, o jovem prefere (ou é incentiva-
do a) sair para trabalhar. O dinheiro é con- c) Cadastro Único – O CadÚnico não é bem
siderado como sendo de uso exclusivo das conhecido pelos Guarani e Kaiowá. Apesar
mulheres, e especificamente destinado aos de ouvirem falar no assunto e de saberem
filhos. Ele cumpre um papel de inclusão de sua existência, seu funcionamento e
desses jovens nas escolas, principalmente seu propósito não são percebidos de for-
nas escolas urbanas, pois permite em certa ma clara. A consultora constatou que a
medida que eles adquiram bens materiais maioria associa o CadÚnico apenas ao PBF
equivalentes aos dos brancos. A consultora e mais especificamente às atualizações
observou que o dinheiro também cumpre frequentes para as quais são convocados
um papel importante nas relações entre no CRAS.
pais e filhos, já que ele permite (ou impos-
sibilita) a realização dos desejos de consu- O relacionamento com os atendentes do
mo das crianças e dos jovens. CRAS de Paranhos é alvo de muitas críti-
cas. A primeira é que os atendentes “pa-
b) Pobreza e escassez – A consultora cons- raguaios”22 se recusam a atender em gua-
tatou que a noção de bem viver é compre- rani, o que dificulta muito a compreensão
endida pelos indígenas como viver jun- e fluidez das informações dos dois lados.
tos - com alegria, jovialidade, e podendo Por outro lado, na hora das entrevistas aos
48 compartilhar e dividir alimentos, afetos e beneficiários, a qualidade das perguntas,
relações. Essa noção aparece relacionada o tom sobre o qual são feitas, a paciên-
ao porã, i.e., o “belo”, o “bom”, conceito cia relativa e até a boa ou má vontade do
nativo ligado à fertilidade, à reprodução e entrevistador incidem fortemente sobre
continuidade e também vinculado à con- a qualidade e veracidade das respostas.
cepção da pessoa guarani e do bem viver, A grande maioria dos beneficiários afir-
e se contrapõe diretamente à noção de ma que não esteve à vontade na hora da
pobreza, cujos predicados o RBC se pro- entrevista, ou que foi levado a responder
põe identificar. Assim, “ser pobre é não
poder satisfazer os filhos” (ver abaixo Uti-
lização do benefício e usos do PBF).
22. Segundo a consultora, a categoria “paraguaio”, tal
como é usada pelos Kaiowá e Guarani nessa terra indíge-
As atividades produtivas da aldeia Para- na, designa todo e qualquer não indígena (independente
guasu giram principalmente em torno da de sua nacionalidade) falante da língua guarani.
certo tipo de questão, incitado a assumir que os Guarani e Kaiowá têm hoje do PBF.
uma renda mensal quando na prática o O grau de informação dos habitantes da
que a pessoa recebe são pagamentos aldeia Paraguasu sobre as condicionalida-
eventuais por serviços pontuais, irregula- des se explica por duas razões. A primei-
res, e assim por diante. ra é que os agentes de saúde e a equipe
volante da Sesai fazem visitas domésticas
Os problemas de comunicação podem (mesmo que ainda existam queixas nes-
acarretar erros e mal-entendidos que afe- se sentido, principalmente daqueles que
tam diretamente o valor do benefício (tan- moram no “fundo” da aldeia) e recebem
to para cima quanto para baixo). Foram de forma regular a população no Posto de
registrados pela consultora mais de vinte Saúde. Eles são os principais intermediá-
casos nos quais os valores do benefício rios e informadores das questões ligadas
diminuíram ou oscilaram após a última ao PBF na aldeia, atuando na interface en-
atualização do cadastro e outra dezena de tre o Programa e a população indígena. É
casos em que famílias em princípio sem por meio deles, por exemplo, que chegam
renda estão apenas recebendo o BF, sem as chamadas para atualização dos Cadas-
o BSP (Benefício de Superação da Extrema tros. A segunda razão é a insistência por
Pobreza). A análise de um desses casos, parte de todos os atores públicos, assim
com auxílio da SENARC, permitiu à consul- como dos funcionários da lotérica e de-
tora identificar que havia uma declaração mais interlocutores não indígenas, sobre o
de renda no cadastro que a família afirma- perigo do “bloqueio” do cartão ou da per-
va não ter. Na medida em que não se trata da do benefício.
de um caso isolado, caberia se perguntar
se o que está ocorrendo é que os opera- Mas as condicionalidades podem se tor-
dores locais do CadÚnico não reconhecem nar rapidamente uma “caixa preta”, quan-
as informações declaradas pelos benefici- do obrigações misteriosas impostas aos
ários e pressionam por outras, diferentes, indígenas aparecem. Uma dessas “obri-
que lhe pareçam aceitáveis. Parece ser gações” identificada pela consultora foi o
caso de verificação ou que alguma medi- caso da compra de “cartão protetor” para
da seja tomada para que não ocorra mais o cartão do PBF, imposta pela lotérica, afir-
esse tipo de abuso. mando tratar-se de uma exigência de Bra-
sília (“se não, vai bloquear o cartão”).
d) Condicionalidades – A consultora cons-
tatou que a maioria das famílias está cien- Entre os problemas identificados pela
te de que o recebimento do benefício está consultora como limitadores do cumpri-
vinculado ao cumprimento das exigências mento das condicionalidades pela popu-
de saúde e educação. A questão da escola lação beneficiária estão a partidarização e
neste caso é indissociável da percepção as descontinuidades na gestão municipal

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Resultados de Cada Estudo de Caso 49


da educação, com incidência sobre as ro- Paranhos, única alternativa local para a re-
tinas da escola. A Escola Municipal Pancho tirada do benefício. Como exemplo, a con-
Romero é hoje palco de uma disputa in- sultora menciona a imposição da compra
terna entre os professores, e externa com do referido “cartão protetor”. Em muitos
a direção da escola e a Secretaria Munici- casos ele foi automaticamente atribuído
pal. Por conta da briga política que opôs aos beneficiários e descontado (R$ 2,50)
dois candidatos à Prefeitura nas últimas do valor do benefício. Assim, em poucos
eleições a escola deixou de ser bilíngue e dias, praticamente todas as mulheres com
diferenciada, e diversas novas rotinas buro- as quais a consultora conversou disseram
cráticas foram impostas. As mudanças vêm terem sido obrigadas a comprá-lo.
provocado insatisfação no corpo docente,
se refletindo no controle de fluxo de pre- f) Relações com o poder público, comércio
sença dos alunos, não mais feito de manei- e sociedade local – No que diz respeito ao
ra sistemática, entre outras consequências. uso do dinheiro, a consultora constatou
que a situação de fronteira (Paraguai-
e) Aspectos do pagamento e recebimento do -Brasil) é evidentemente um lugar propí-
benefício e sua logística – Constatou-se que cio para as atividades dos comerciantes
a falta de transporte público ou coletivo (os “patrões”). Assim, estes possuem co-
subsidiado para que os Guarani e Kaiowá mércios dos dois lados da fronteira. Esses
possam sacar o benefício, acaba deixando comércios não são exatamente comércios
grande parte das mulheres à mercê dos co- como conhecemos, e sim depósitos que
merciantes (“patrões”) de Paranhos – eles permanecem fechados e são abertos ape-
vêm quotidianamente até a aldeia para nas para receber os fregueses indígenas
levá-las até a Lotérica e até seus estabe- trazidos das aldeias. Do lado paraguaio,
lecimentos comerciais. O beneficiário que por exemplo, um desses comércios só
aproveita a “carona” é obrigado a fazer a apresenta preços afixados em guarani
maior parte de suas compras na loja do co- (moeda paraguaia), enquanto outros dois
50 merciante que o transportou. Caso contrário, comércios, situados do lado brasileiro,
deverá voltar por seus próprios meios ou de simplesmente não têm preços afixados.
fato pagar a volta (R$ 30,00). Caso o benefi- Quando os patrões retêm cartões, estes
ciário tenha uma dívida com o comerciante, ficam guardados em lugar seguro, do lado
este confiscará seu cartão do Programa Bol- paraguaio, invariavelmente. Os Guarani e
sa Família, ou algum de seus documentos de Kaiowá são unânimes sobre isso.
identidade até ele saldar sua dívida. Esses
“patrões” não só são aparentados entre si g) PBF na perspectiva de Gênero – Segun-
como integram a elite política do município, do a consultora pode perceber, é possível
alguns ocupando cargos na prefeitura, o que dizer que as mulheres são consideradas
torna mais complexa a situação. as responsáveis pelo dinheiro e por sua
gestão doméstica. Assim, praticamente
Foi identificada uma série de problemas e todo o dinheiro obtido pela família é ad-
irregularidades praticadas pela Lotérica de ministrado pela mulher. Isso foi observa-
do entre a grande maioria das famílias das mulheres (“para uso com as crianças”)
entrevistadas e que se pode acompanhar e nesse sentido seu valor não deveria ser
no dia-a-dia, o que não significa que seja afetado pela renda dos maridos.
uma regra aplicável sem exceções a to-
das. De forma geral, os homens costumam h) Produção e segurança alimentar e nu-
entregar grande parte do dinheiro de seu tricional – Os dados levantados pela con-
trabalho para a esposa. Ela é responsável sultora indicam que praticamente todas
pela compra do que a família precisa em as famílias da aldeia possuem roçados.
termos de alimentos, vestimentas e de- Nestes roçados, costumam plantar princi-
mais bens de consumo. Foi notado, ainda, palmente milho e mandioca e, em alguns
que o dinheiro obtido pelos homens com casos, feijão, melancia, abóbora, arroz. As
o trabalho temporário nas fazendas da re- famílias da aldeia recebem cestas de ali-
gião é usado principalmente para comprar mento, algumas tanto do governo do Es-
comida e fazer as compras regulares da fa- tado, quanto da FUNAI. A cesta do gover-
mília, enquanto o dinheiro recebido como no é distribuída a cada dois meses e a da
benefício do PBF destina-se à compra de Ação de Distribuição de Alimentos (ADA)
calçados, vestimentas e material escolar do Ministério do Desenvolvimento Social
para as crianças e os jovens. (MDS) é entregue de forma irregular, o que
acarreta alguns problemas, principalmen-
As mulheres guarani e kaiowá se surpre- te para as famílias que contam quase ex-
endem com o fato da renda dos homens clusivamente com elas para se sustentar.
incidir na composição dos valores do be- A cesta de alimentos (tanto da ADA como
nefício do PBF, que elas consideram ser do governo do estado) serve, no ano de
exclusivo “para as crianças”. Poderíamos 2013, como base alimentar da família. A
dizer que há certo sentimento de injustiça produção agrícola – que em 2013 foi ex-
envolvido nessa incompreensão geral da clusivamente de mandioca– e eventuais
composição dos valores. A incompreen- compras extras de alimentos (principal-
são também se explica pelo fato de que mente de “carcaça” – subproduto do fran-
essas duas fontes de renda (a das diárias go) completam o cardápio.
dos homens e a do benefício do PBF) não
serem concebidas da mesma maneira. A Algumas famílias insistem em fazer seus
primeira (renda dos homens) é fruto de roçados, mesmo na enxada, mas muitas
trabalho e se destina a alimentação. A se- vezes recorrem então ao uso de agrotó-
gunda (benefício do PBF) é resultado de xicos para combater os capins, que são
uma exigência do Estado (“do governo”, praga na região. Uma mulher chegou a
“de Brasília”) de que as crianças frequen- comentar coma pesquisadora que não
tem a escola. Em resumo, para as mulhe- conseguia dormir à noite por causa de
res Guarani e Kaiowá o dinheiro do PBF é cheiro forte do veneno aplicado em massa

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Resultados de Cada Estudo de Caso 51


por seu vizinho na lavoura. Há também as tem várias causas, entre elas que as novas
fazendas das redondezas, que costumam gerações mudaram e não respeitam mais
pulverizar as lavouras com agrotóxicos. o jeito antigo de viver e de se relacionar
Um exemplo é a Fazenda Paraná, cujos com a terra e com seus frutos. A rezado-
proprietários fizeram aplicação de agrotó- ra explicou à consultora que os jovens de
xico na sua lavoura de soja no final de no- hoje estão acostumados demais com os
vembro e início de dezembro. Foi possível alimentos dos brancos e por isso se re-
identificar o cheiro da substância a vários cusam a trabalhar nas roças. “Eles estão
quilômetros, principalmente à noite e de viciados na merenda”, como disse. Possi-
madrugada. velmente, ao lado da péssima qualidade e
variedade da merenda escolar, que varia
O mesmo problema do capim como praga, entre arroz com (pouquíssima) carne mo-
com efeito limitante à atividade agrícola ída e macarrão com (pouquíssima) salsi-
e, por consequência, à sustentabilidade cha, nos melhores dias, esteja ocorrendo
e soberania alimentar foi identificado no (como efeito colateral) a erosão dos sabe-
estudo de caso da TI Dourados (cf. mais a res, práticas e estéticas alimentares tradi-
frente). De fato, há informações de que o cionais indígenas.
problema atinge várias Terras Indígenas
no MS, a indicar a necessidade de uma Outra causa seria a necessidade cada vez
ação mais abrangente e não somente nes- maior de obtenção de dinheiro, o que leva
ta e/ou naquela TI. praticamente todos os homens a traba-
lharem nas fazendas vizinhas. A consul-
Algumas famílias também plantam roças tora adverte que o trabalho em fazendas
com intuito de comercializar parte de sua vizinhas é intenso e mal remunerado. As
produção, principalmente a de milho e diárias oscilam entre 30 e 45 reais, segun-
mandioca. Essa produção é escoada dire- do o tipo de trabalho realizado (carpina,
tamente junto a algum fazendeiro da re- plantio/ “tratoragem”, instalação de cer-
52 gião, ou é comercializada em estados vizi- ca). Além disso, a dedicação ao trabalho na
nhos, principalmente no Paraná. fazenda limita a disponibilidade dos ho-
mens a se dedicaram ao trabalho na roça.
Os Guarani e Kaiowá da aldeia, que não
são assalariados, dependem quase que Essa transformação e a perda de interesse
exclusivamente das cestas de alimentos pela alimentação tradicional afeta direta-
para a base de sua alimentação. Essa base mente na qualidade da alimentação. As-
é eventualmente completada com produ- sim, as refeições básicas em uma família
tos da roça, como a mandioca (principal- que dispõe de algum tipo de renda (além
mente no ano 2013 que foi realizado a do PBF) são quase que exclusivamente
pesquisa). Todos afirmam que antigamen- compostas por carboidratos (arroz, ma-
te essa produção era mais abundante e carrão ou mandioca, nessa ordem) e um
que comercializavam parte dela. Explicam pouco de carne (frango, boi, sardinha ou
que essa perda de interesse pelas roças salsicha). A cesta da ADA distribuída em
novembro de 2013 era composta por 7 ponto também deve ser relacionado com a
pacotes de feijão, 5 pacotes de arroz bran- questão segundo a qual muitas benefici-
co, dois pacotes de açúcar, 4 litros de óleo árias concebem o PBF como um benefício
e 2 pacotes de leite em pó de 500 gr. É destinado a ajudar a população a fazer cum-
importante ressaltar também que ela não prir uma ordem do governo: “eles querem
é distribuída proporcionalmente à compo- que as crianças fiquem na escola, por isso
sição familiar. Isso significa que as famílias nos dão dinheiro para as roupas, os calçados
mais numerosas recebem a mesma cesta e o material”. Isso aponta para uma futura
que as famílias mais reduzidas. Em algu- reflexão: sobre o papel da política pública
mas casas, uma cesta de alimentos não no combate aos preconceitos, assim como
chega a durar uma semana. sobre o papel da política pública como tam-
bém criadora de novas “necessidades” de
i) Utilização do benefício e usos do PBF – consumo para as populações.
O principal aspecto observado pela con-
sultora no que diz respeito ao uso do be- São as mulheres, em sua grande maioria,
nefício do Programa Bolsa Família pelos que retiram o benefício (registrou ape-
Guarani e Kaiowá da Terra Indígena T/Y nas 5 beneficiários homens na aldeia) e,
é que ele é exclusivamente usado pelas de maneira mais geral, são elas que con-
mulheres, para comprar principalmente trolam a economia doméstica, mesmo
calçados, roupas e material escolar para as quando uma parte da renda familiar vem
crianças. Trata-se de uma regra geral, mes- do trabalho masculino. Por outro lado, a
mo se as famílias mais extensas também falta de opções de transporte e limitações
compram sabão e/ou algum alimento com logísticas diversas (incluindo aí a relativa
o que “sobra” depois da aquisição princi- ausência da FUNAI nessa sub-região do
pal de roupas e calçados. estado), praticamente obrigam os Guarani
e Kaiowá a recorrer aos comerciantes para
Essa priorização do uso do benefício para a poder receber e usufruir do benefício, e
compra de roupas, calçados e material para essa dependência em relação aos comer-
as crianças levou a consultora a sugerir que ciantes compromete fortemente o livre
duas questões devem ser pensadas em con- usufruto do benefício.
junto visando entender o que estaria acon-
tecendo em um nível mais profundo e que j) Acesso aos serviços e benefícios socioassis-
estaria operando na formação desta motiva- tenciais – Em Paranhos, o CRAS local atende
ção. A primeira é a questão da pressão social quase 700 famílias indígenas e conta ape-
(seja ela interna ou externa) sobre as crian- nas com três entrevistadores (mais o ges-
ças e os adolescentes no que diz respeito tor), dos quais dois são falantes de guarani.
a sua aparência física e símbolos exteriores Essas 700 famílias formam quase 40% do
(material escolar e acessórios em geral). Este total de famílias atendidas ali.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 53


A consultora constatou que os Guarani de parentesco em nenhuma das aldeias
e Kaiowá não sabem o que é o CRAS e o próximas). Essa funcionária evocou assim
CREAS. Os beneficiários do PBF conside- as dificuldades que como funcionários do
ram que o CRAS é hoje o responsável pelo CRAS enfrentam para entender (cultural e
PBF e os termos CRAS, CadÚnico e PBF são sociologicamente) a resistência da mulher
vistos quase como sinônimos. Essa relativa tanto em voltar para o Paraguai, quanto em
confusão se deve a que o PBF dispõe hoje, se instalar em uma das aldeias vizinhas.
dentro do CRAS de Paranhos, de uma sala
específica para receber os beneficiários e k) Outros aspectos observados – A questão
realizar as entrevistas para cadastramen- do PBF em uma situação de fronteira, nes-
to e atualização do CadÚnico. Portanto, o te caso a fronteira político-administrativa
contato dos Guarani e Kaiowá da aldeia entre Brasil e Paraguai, agrega outros ele-
Paraguasu com o CRAS e CREAS, limita-se mentos à já complexa situação analisa-
em grande medida aos momentos de reali- da. A título de exemplos, a migração de
zação do cadastro e de atualização do Ca- famílias indígenas entre um e outro país;
dÚnico. Uma responsável do CRAS explicou a migração de famílias oriundas do Para-
à consultora que apesar da proximidade e guai, que se instalam nos arredores das
do entrosamento do PBF com os assisten- cidades, em acampamentos, ou mesmo
tes sociais do CRAS, as ações realizadas nas Terras Indígenas na região; a atividade
por este último limitam-se atualmente ao dos comerciantes (“patrões”), alguns com
perímetro urbano de Paranhos. Segundo comércio em ambos os lados da frontei-
ela, isso se deve principalmente a três fato- ra; e os atritos dentro da TI em relação ao
res. O primeiro depende estreitamente da uso da terra para plantio e a sua ocupação
vontade política da Prefeitura. O segundo para moradia. A isso, agrega-se a retenção
está vinculado ao problema logístico de e guarda dos cartões pelos “patrões” do
falta de pessoal e meios de transporte para outro lado da fronteira - lado paraguaio.
constituir um verdadeiro CRAS volante, que Uma situação considerada pela consultora
54 poderia circular pelas aldeias e ter mais de extrema gravidade que está merecen-
agilidade para trabalhar fora dos limites da do uma ação, inclusive, de polícia.
cidade. O terceiro diz respeito à capacita-
ção dos assistentes sociais e demais fun-
3.4 Terra Indígena
cionários do próprio CRAS que, segundo
ela, não estão preparados para trabalhar
Dourados
com populações indígenas. Para explicar a) Percepções e conhecimento do PBF – A
isso, ela deu um exemplo com o qual esta- referência mais comum ao PBF na TI Dou-
va trabalhando naquele momento, do caso rados é como o “dinheiro das crianças”, ou
de uma indígena guarani do Paraguai que seja, um recurso que é repassado pelo go-
teria se instalado em um assentamento do verno para ser utilizado com os filhos. Se
MST à proximidade de Paranhos e que teria as famílias não observam esse padrão, em
sérios problemas para conseguir alimentar geral isso decorre de estarem em situação
os filhos (mulher viúva, cega, sem vínculos de vulnerabilidade.
O estudo de caso de Dourados aponta estranhamento, ao consultarem os funcio-
que o PBF chegou a Dourados no exato nários do CRAS ou do PBF na cidade, esses
momento em que se aprofunda a crise do orientaram as pessoas a terem paciência
sistema de controle e dominação dos indí- que num prazo de três ou quatro meses a
genas baseado na figura do “capitão” (ou situação estaria regularizada e o dinheiro
“capitão da aldeia”), criado no período do voltaria a ser depositado.
Serviço de Proteção do Índio (SPI). Desde
os tempos do SPI, o Estado escolhia essas b) Pobreza e escassez – O consultor rela-
figuras como intermediárias na relação ta que o Programa Bolsa Família é hoje
com os grupos indígenas, sendo em geral essencial para um grande número de fa-
uma pessoa (homem) com certa capacida- mílias kaiowa e guarani: em vários lares,
de de liderança local23. Segundo o consul- pode ser a única renda disponível por
tor, alguns elementos desse sistema ainda períodos consideráveis. Grande parte
persistem, e essa figura é atualmente cha- dos homens da TI Dourados sobrevive
mada de “cacique”.

A partir do PBF e a entrega de cestas de


23. A criação da figura do “capitão” nas aldeias indíge-
alimentos diretamente a cada família, dá- nas no Mato Grosso do Sul remonta aos primeiros anos
-se, pela primeira vez, uma distribuição de atividade do Serviço de Proteção Indígena (SPI), órgão
indigenista oficial na época, criado em 1910. No caso da
massiva de recursos do Estado sem ne-
Reserva de Caarapó, por exemplo, o primeiro “capitão” foi
nhuma intermediação dos “capitães”. Essa nomeado em 1920 (BRAND, 2001; MARQUES, 2011). O
parece ser a grande novidade introduzida papel desse personagem está potencialmente carregado
de conflito e ambivalências, pois tem de atender pres-
pelo PBF, considerando-se o histórico de
sões e demandas vindas simultaneamente de duas di-
relações dos indígenas de MS com o Esta- reções: dos seus parentes e da comunidade indígena de
do brasileiro e a estrutura de intermedia- abrangência da “sua administração” e da administração
estatal, que exerce por meio dele o que vem a ser cha-
ção instalada no interior da TI. mado na antropologia da política de “governo indireto”.
A expressão “governo indireto” é uma tradução do inglês
indirect rule, que foi utilizada originalmente para deno-
De outro lado, para boa parte dos benefi-
minar o sistema político-administrativo descentralizado
ciários da TI Dourados, o PBF é uma espé- praticado nas colônias africanas controladas pelo Reino
cie de “caixa-preta”; seu funcionamento é Unido (particularmente no Quênia e na Nigéria), entre o
final do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
algo misterioso para as pessoas entrevis- Ele está baseado no estabelecimento de “intermediários
tadas. O consultor sustenta esta afirmação nativos” (uma espécie de “administrador nativo”) situa-

nos inúmeros relatos de pessoas que ob- dos entre a população local e os administradores britâ-
nicos. Política semelhante foi implementada nos Estados
teve dizendo que os seus benefícios foram Unidos entre os anos 1930 e 1940 (BLANCHETTE, 2010).
bloqueados por alguns meses no passado, O indirect rule foi um momento geral que exprimiu a ne-
cessidade dos colonizadores redefinirem os seus postu-
e que depois voltou a ser disponibiliza-
lados assimilacionista (LECLERC, 1973), e que no caso da
do sem que se tivesse a menor ideia dos África britânica tomou a forma do que Mahmood Mamda-
motivos. Além disso, para sua surpresa e ni (1998) chamou de “despotismo descentralizado”.

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Resultados de Cada Estudo de Caso 55


de um trabalho informal, ganhando tem- tem reclamações substanciais sobre o PBF.
porariamente diárias em fazendas ou em A questão, porém, é que ainda persiste na
setores como a construção civil. Qualquer comunidade um grupo de famílias exclu-
pequeno acidente, qualquer doença na ídas, algumas inclusive da cesta básica
família pode romper um frágil equilíbrio da FUNAI. Tudo indica que isso ocorra em
e, nesses momentos, só sobrará o Progra- decorrência das excessivas exigências de
ma Bolsa Família para impedir o pior. Mas documentação, relacionadas às limitações
nem sempre a assistência social na região logísticas e linguísticas de parte das famí-
parece ter consciência dessa importância lias da TI. De outro lado, o consultor pode
do Programa Bolsa Família. Não são poucas observar que há famílias indígenas que
as histórias de famílias (às vezes com cinco, recebem o PBF, mas que se as regras fos-
seis filhos) que, justamente em momentos sem seguidas a risca, não deveriam estar
delicados – em que o marido está enfer- recebendo.
mo, ou a mulher está grávida –, veem seu
benefício ser bloqueado. Durante meses, Foi identificado haver um evidente des-
elas peregrinam entre o CRAS da aldeia e compasso entre as exigências locais de
o escritório do Programa Bolsa Família na documento para obter o PBF (“a excessiva
cidade, buscando saber, por que o dinheiro exigência de documentação são queixas
foi bloqueado e quando poderão voltar a recorrentes”) e o que é efetivamente indi-
contar com ele. Dado que para os Guarani cado pelo MDS. Segundo relatos recolhi-
o PBF constitui uma espécie de seguridade dos em campo, anteriormente o RANI ou
social básica, há um alerta aos responsáveis a Certidão Administrativa de Casamento
pelo Programa: que prevejam dispositivos do Índio eram suficientes para dar acesso
para impedir o bloqueio ou desligamento aos indígenas a cestas básicas, aposenta-
automático de famílias em situação de vul- dorias, entre outros. Hoje, com a ascen-
nerabilidade temporária, como doenças, são dos benefícios sociais, há uma lista
acidentes de trabalho ou em período de grande e variada de documentos que são
56 gestação, pós-parto ou amamentação. exigidos pelas instâncias governamentais.
É muito comum encontrar relatos de ver-
c) Cadastro Único – Em 2006 foram ca- dadeiras peregrinações entre o CRAS e o
dastradas 2.300 famílias na TI Dourados. escritório do PBF – passando por escolas,
No ano seguinte (2007), criou-se, dentro FUNAI e outros órgãos responsáveis por
da TI, o CRAS Bororó. Segundo dados le- conceder às mulheres indígenas os docu-
vantados, na TI Dourados estão incluídas, mentos que lhes são exigidos. Em alguns
atualmente, 2.128 famílias no Cadastro casos, há gente que está há mais de dois
Único, constando como beneficiadas pelo anos tentando solucionar problemas rela-
Programa Bolsa Família 1.842 delas em fe- cionados ao PBF, sem sucesso.
vereiro de 2014.
d) Condicionalidades – À primeira vista, a
A presente investigação considera que amplitude da presença dos sistemas de
uma parte significativa das famílias não saúde e educação na TI Dourados garan-
te o acesso geral dos habitantes do local aplicada na estrutura dos CRAS e central
aos equipamentos e serviços relacionados do Cadastro Único. Não existe uma verba
às condicionalidades do PBF: saúde, edu- específica para as áreas de educação e
cação, assistência social. Por outro lado, saúde. O recurso é repassado na forma de
a qualidade dos serviços de saúde nas custeio, de acordo com a necessidade de
TIs de Mato Grosso do Sul tem sido alvo cada área; normalmente a área de saúde
de fortes protestos, o que tem levando a recebe computadores, material de expe-
questionamentos sobre a validade da co- diente e materiais de divulgação, adquiri-
brança feita às pessoas das condicionali- dos com estes recursos.
dades de saúde.
Em levantamento realizado pela NC Pi-
Há quatro postos de saúde na TI e uma nheiro junto a Divisão de Atenção à Saúde
quantidade insuficiente de agentes de Indígena (DIASI), o acompanhamento das
saúde comunitários – todos indígenas – condicionalidades de saúde das famílias
encarregados de visitar as famílias. Lide- beneficiárias do PBF em áreas indígenas
ranças locais avaliam que o ideal seria a na maioria dos municípios de sua área de
relação 60 famílias por agente, mas hoje abrangência é realizado pelos EMSI (Equi-
se chega a mais de 80/1. Enquanto o pes- pe Multidisciplinar de Saúde Indígena),
quisador constatou muitas reclamações mas há casos como nos municípios de
de bloqueio do benefício inexplicadas, Campo Grande, Corumbá e Antônio João
a pesquisa sobre condicionalidades de onde o acompanhamento é realizado por
saúde realizada pela empresa NC Pinhei- equipes municipais de saúde. Foi dito,
ro (2013) para o MDS, por sua vez, nos dá também, que as EMSI procuram se arti-
pistas para constatar que parte desse pro- cular com os agentes de medicina tradi-
blema pode estar relacionada a falhas na cional das aldeias para que os indígenas
informação repassada por esses agentes aceitem mais facilmente os serviços de
ao CRAS . 24
saúde. Além de associar o uso de fármacos
com a medicina tradicional indígena, seria
Ainda segundo resultados da pesquisa re- comum acontecer de os agentes das EMSI
alizada pela NC Pinheiro, apenas cerca de
três meses antes da pesquisa, as equipes
dos CRAS que atuam na TI Dourados pas-
saram a visitar as famílias com certa sis- 24. Segundo a pesquisa realizada pela NC Pinheiro
(2013), o acompanhamento social das famílias beneficiá-
tematicidade. A Secretaria de Assistência
rias do PBF em situação de descumprimento é ainda uma
Social de Dourados é a responsável pela prática incipiente em Dourados. O que em parte parece

gestão dos recursos financeiros vindos estar relacionado com a situação encontrada em campo
pelo consultor, ou seja, com a falta de equipes volantes
do PBF. A maior parte dos recursos é des- e de funcionários no CRAS interessados e qualificados,
tinada à área de assistência social, sendo entre outros problemas.

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Resultados de Cada Estudo de Caso 57


levarem rezadeiras e benzedeiras aos hos- do convívio e observação prolongada do
pitais. Os depoimentos reunidos pelo con- dia-a-dia de usuários e da relação desses
sultor e seus muitos anos de experiência com os prestadores de serviços25.
de pesquisa presencial na região não lhe
permitem reconhecer a existência efeti- No campo da educação escolar, o consul-
va de uma tal estratégia, ao menos na TI tor identificou que há um tratamento de-
Dourados. Assim, é plausível supor que, de masiado inflexível – no sentido de rigidez
ocorrerem fatos como os relatados nessa cultural - em tornar a escolarização uma
pesquisa, seriam isolados ou associados condicionante às famílias. Em diálogo com
a outras terras indígenas de MS. Além dis- a população indígena, constatou que há
so, existem informações circulando na TI de parte dos operadores do Programa uma
a respeito das orientações que algumas visível dificuldade de compreensão com
famílias evangélicas pentecostais recebe- famílias que têm um entendimento diver-
riam, em suas igrejas, de não aplicar, de so daqueles que estabeleceram e aplicam
nenhuma forma, o planejamento familiar, as regras a respeito da escola, além das di-
ainda em se tratando simplesmente da ficuldades específicas pelas quais muitas
recomendação de espaçar as gestações passam em decorrência da atual situação
a fim de não gerar maiores complicações da TI. Há famílias que não dão a importân-
para a saúde de mães e filhos pequenos. cia que o governo dá à escolarização e que
Também há comentários sobre lideranças deixam de mandar a criança à escola com
pentecostais que orientariam as famílias a esperada assiduidade. Outras conside-
a evitar a procura do sistema de saúde, ram mais importante que, em certo perío-
mesmo em casos envolvendo desnutri- do, uma criança participe do plantio ou da
ção de crianças. Informações como essas colheita de uma roça familiar, em vez de
requerem, evidentemente, uma apuração ir à escola. Além disso, é comum entre os
específica. Kaiowá e Guarani que qualquer compro-
misso seja desmarcado se amanhece cho-
58 De nossa parte, cabe-nos destacar que as vendo. Há também os problemas propria-
duas pesquisas adotaram abordagens e mente logísticos, por exemplo, o lamaçal
metodologias distintas, o que certamen- que se forma nas estradas de terra da TI
te pesa no resultado alcançado. No caso nos períodos de chuvas continuadas, tra-
da pesquisa realizada pela NC Pinheiro, zendo dificuldade de deslocamento das
ela toma por base, unicamente, a fala dos crianças à escola. Noutros casos as crian-
prestadores de serviços de saúde, obtida ças moram a mais de um quilômetro do
em entrevistas formais, que poderiam ter
adotado um discurso politicamente corre-
to na descrição do que fazem. Já as cons-
25. Como a NC Pinheiros entrevistou a DIASI, cuja ação
tatações das pesquisas que este trabalho se estende a todas as TIs de Mato Grosso do Sul, é possí-

consolida, levantaram seus dados desde a vel que esse tipo de conduta, de alguma cooperação com
agentes tradicionais de cura, ocorra de maneira mais efe-
perspectiva dos usuários, fazendo uso das tiva em outras TIs. Tratar-se-ia de um objeto a ser aproxi-
diferentes modalidades de entrevista e mado mediante pesquisa específica.
local onde estudam. Outro efeito da dis- que na região, há várias décadas, em fun-
tância entre moradia e a escola é que nem ção da pequena dimensão das terras indí-
sempre as mães e pais – principalmente genas, as famílias já se deslocam até a ci-
os que têm um número grande de crian- dade periodicamente para fazer compras.
ças em casa – conseguem se assegurar de A dificuldade que existe se relaciona aos
que seus filhos efetivamente chegaram meios de transporte: “não há linhas urba-
à escola. Segundo comentaram diversos nas de ônibus que entrem na TI”.
interlocutores, a primeira reação dos pais
e mães quando há o bloqueio do PBF é Foi constatada pela investigação que uma
deixar de mandar as crianças à escola – parcela dos cartões está retida por comer-
possivelmente em decorrência dos custos ciantes – não só mercados, mas também
que a frequência escolar adiciona à eco- lojas de roupas e mesmo vendedores in-
nomia doméstica. “A escolarização parece formais, que fazem negócio com os indí-
ser, por vezes, compreendida como uma genas, vendendo-lhes itens como roupas
concessão que se faz ao governo, por re- (femininas, infantis) e materiais escolares.
ceber o PBF, e não um efetivo caminho de A pessoa nessa situação não se desloca
‘ascensão social’”, conforme afirma o con- até a cidade, o saque é feito no caixa ele-
sultor. Outro problema identificado pelo trônico da CEF - e não nas lotéricas, pois
consultor foi o excesso de alunos em sala estas têm exigido a documentação pes-
de aula, assunto que apareceu de manei- soal de quem retira o dinheiro. Os cartões
ra recorrente nas reuniões - envolvendo do PBF são assim utilizados como instru-
pais, lideranças e professores - que ocor- mento de crédito: o cartão é entregue ao
reram na aldeia durante a sua estada . 26
comerciante como forma de “parcelar”
uma compra de valor maior do que o be-
e) Aspectos do pagamento e recebimento nefício mensal. O fato é que as pessoas
do benefício e sua logística – O consultor com menor conhecimento de matemática
constatou não haver muita variação na for- financeira acabam, com frequência, sendo
ma como os indígenas costumam receber ludibriadas, pagando muito mais do que
o dinheiro do PBF: ou as pessoas recorrem deveriam. “Se você deixa o cartão, o gas-
às próprias agências da Caixa Econômica
Federal - CEF na cidade, ou às lotéricas.
Não foram registradas queixas significati- 26. O Movimento de Professores Indígenas Guarani e
vas em relação à dinâmica de pagamento Kaiowá foi criado nos anos 90 e vem realizando encon-
tros anuais, entende-se que as capacidades e conheci-
em si, e ao serem questionadas sobre o mentos neles desenvolvidos e acumulados deveriam ser
possível inconveniente de ter de ir à cida- mais bem aproveitados, por exemplo, na redefinição, ou

de para receber o dinheiro, as mulheres da melhor posicionamento do papel da educação escolar no


âmbito do PBF; ou ainda, em como tornar o sistema esco-
TI responderam, de modo geral, que isso lar em nível local mais ajustado à realidade sociocultural
não é novidade para elas, tendo em vista da população alvo.

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Resultados de Cada Estudo de Caso 59


to que fez lá sobe no mês seguinte – você O consultor pode identificar discussões
nunca paga tudo”, comentou uma pessoa internas entre os guarani, nos diversos fo-
entrevistada pelo consultor. Além disso, ros que congregam as lideranças locais, a
comenta-se na TI que os vendedores, so- respeito da necessidade da instalação de
bretudo os que trabalham de maneira in- um caixa eletrônico no interior da TI, para
formal, abusam dos preços propostos aos recebimento de benefícios. Para se ter
indígenas. uma ideia da importância dessa alternativa
para a população, considere-se o seguinte
Os indígenas com dependência alcoóli- quadro: alguns lugares da TI ficam distan-
ca são os especialmente vulneráveis aos tes mais de 20 quilômetros do ponto mais
abusos dos comerciantes. Comenta-se próximo de saque; não há linhas urbanas
que certos comerciantes oferecem fre- de ônibus nem transporte interno percor-
quentemente bebidas alcoólicas aos indí- rendo a TI – os ônibus urbanos passam pela
genas. É uma forma de conseguir a “fide- MS-156, a pista asfaltada que atravessa o
lidade” dos clientes, segundo o consultor, Jaguapiru; o deslocamento das pessoas é
calando questionamentos a respeito dos geralmente feito em bicicletas ou carroças;
preços que estão sendo praticados ou da e só uma pequena parte dos habitantes da
qualidade dos produtos oferecidos. TI dispõe de veículos automotores, sobre-
tudo motocicletas. Idosos e mulheres com
Outra das “vantagens” oferecidas aos in- crianças pequenas são a parcela da popu-
dígenas em troca da retenção do cartão é lação mais prejudicada com essa situação.
o transporte até a cidade para as compras. Para ilustrar o drama vivido pela popula-
Há pelo menos um mercado que, segun- ção, o consultor menciona o caso de uma
do foi relatado, mantém um micro-ônibus criança de três anos que morreu após uma
destinado a buscar os “consumidores in- queda da mãe, que ia de bicicleta para a
dígenas” em suas casas, para leva-los ao cidade com ela na garupa.
estabelecimento – situado num bairro pe-
60 riférico da cidade e distante da reserva – e f) Relações com o poder público, comércio
retornar até suas casas, com suas compras. e sociedade local – Se em outros tempos
o órgão indigenista, seja o SPI ou a FUNAI,
A atual dificuldade de transporte na TI Dou- era o principal agente estatal a relacionar-
rados, sobretudo de idosos – mas também -se com os indígenas na qualidade de ór-
para as crianças em idade escolar e as mu- gão tutor, hoje esta interlocução se dá por
lheres que preferem sacar elas mesmas o múltiplos meios. No caso dos indígenas da
dinheiro na cidade - torna essa situação (a TI Dourados, como há muitos eleitores, eles
retenção dos cartões e as diferentes ma- são cortejados pelas administrações locais
neiras de garantir a “fidelização” dos in- e contam com um vereador na Câmara de
dígenas) nada simples de ser enfrentada. Dourados, um guarani. Em 2013, a prefei-
Ainda que a contragosto, para muitos que tura de Dourados criou a Coordenadoria
“optam” por essa via talvez isso lhes pareça Especial de Assuntos Indígenas, órgão es-
ser a via mais segura, ou mais cômoda. tabelecido a pedido do referido vereador.
Em relação ao apoio dos órgãos públicos levado várias famílias a aceitarem “contra-
às roças familiares, o consultor esclare- tos de parceria” com produtores de soja
ce que há hoje uma divisão de trabalhos na região. Há décadas, certo número de
entre diversos órgãos que pertencem a indivíduos, sobretudo da aldeia Jaguapiru,
instâncias distintas de governo: a FUNAI estabelece contratos com não indígenas,
fornece o óleo diesel e sementes, mas é dividindo o dinheiro gerado com a venda
a prefeitura a responsável pelos tratores de soja plantada em terrenos dentro da
e por disponibilizar tratoristas. O detalhe TI – inclusive, também no Bororó. Antiga-
é que os tratores que a prefeitura fornece mente, esses contratos eram amplamente
são, na verdade, oriundos de um progra- conhecidos como “arrendamentos”. Hoje,
ma federal do Ministério do Desenvol- são chamados de “parcerias”, sendo que a
vimento Agrário (MDA), que, por sua vez, FUNAI e o MPF vêm buscando regulamen-
repassou, há alguns anos, essas “patru- tar essa atividade, por meio de Termos de
lhas mecanizadas” às prefeituras. As má- Ajustamento de Conduta.
quinas devem atender, além das aldeias,
os assentamentos da reforma agrária e
O consultor verificou que a falta de assis-
também comunidades remanescentes de
tência à agricultura familiar tem favoreci-
quilombos. Fontes locais informaram ao
do a concentração de renda, produzido e
consultor que a situação está complicada
agravado diferenciação entre indígenas
não somente com as aldeias indígenas,
dentro da TI. Hoje há um número consi-
que têm tido dificuldade para terem aces-
derável de famílias que vive em terrenos
so aos serviços proporcionados pelos tra-
emprestados ou alugados. Há comércio de
tores, quilombolas e assentados também
lotes e casas dentro da TI e mesmo denún-
reclamam da falta de “pontualidade” da
cias (que, precisariam ser investigadas) de
prefeitura. Considerando-se o fato de que
que certos indivíduos acumulariam a pro-
o governo do estado e vários prefeitos da
priedade de dezenas de casas.
região se pronunciam publicamente con-
tra a demarcação de terras indígenas e
quilombolas, além de não apoiarem polí- E mais, essas parcerias e o uso dado a terra
ticas de reforma agrária, há mesmo quem têm gerado um sério problema de saúde
desconfie na região que se trata de uma pública: a aplicação de herbicidas e inse-
ação coordenada, com claras intenções de ticidas na soja, muitas vezes em terrenos
inviabilizar a economia familiar em favor situados bem próximo das residências das
da ocupação das terras das famílias indí- famílias indígenas e sem observar crité-
genas, quilombolas e assentados com ou- rios básicos como a direção do vento, por
tras culturas agrícolas. No caso dos indíge- exemplo. O que, muitas vezes, levam as
nas da TI Dourados, a falta de assistência crianças pequenas de saúde mais frágil a
técnica e apoio à produção familiar têm sofrer em situações como essa.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 61


Uma peculiaridade da TI Dourados é que varás para seus estabelecimentos e que
há no seu interior cerca de 20 estabele- se submetam a fiscalizações de órgãos
cimentos comerciais - a maioria está no como a vigilância sanitária. Na reunião en-
Jaguapiru - que vendem gêneros alimen- tre o MPF e os comerciantes indígenas, li-
tícios e que pertencem aos próprios mo- deranças da TI expressaram a expectativa
radores da comunidade (aos Terena e a de que esse processo seja conduzido não
mestiços terena/guarani ou terena/kaio- de forma repressiva, mas por meio de uma
wa ou terena/não indígenas). O consultor conscientização e capacitação progressiva
relata ainda que além de mercados/mer- dessas pessoas, a partir da assistência de
cearias (bolichos, como são conhecidos órgãos como o Serviço Brasileiro de Apoio
regionalmente), há, hoje, no interior da TI às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE).
uma série de outros tipos de estabeleci-
mentos, como venda de gás, borracharia, São inúmeras as reclamações sobre a
xerox, lanchonete, pizzaria, lava-rápido e postura dos comerciantes – indígenas e
até um espaço para festas. Alguns bares não indígenas – na hora de estabelecer
dentro da TI têm anúncios de bebidas os preços das suas mercadorias. Várias
alcoólicas em vias públicas de ampla cir- pessoas manifestaram a desconfiança de
culação, inclusive de estudantes. Nesses que as contas são manipuladas se o clien-
mesmos espaços, há mesas de sinuca e te não estiver bem atento. Contribui para
fliperamas. Além dos estabelecimentos si- essa desconfiança o fato de os produtos
tuados dentro da TI, há dezenas de outros não conterem etiquetas de preço afixa-
em seu entorno, pertencentes a não indí- das, dando margem a esse tipo de proce-
genas, mas frequentados principalmente dimento. Há, também, muitas queixas de
por indígenas. gente que entra de carro na aldeia e ofere-
ce de casa em casa produtos com origem

Atualmente, os comerciantes do entorno incerta, qualidade duvidosa e preços idem

da TI vêm sendo alvo de operações coor- (comerciantes informais).


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denadas pelo Ministério Público Federal,
que procura coibir práticas ilegais e pro- Como nas outras TIs investigadas, também
mover a regularização dos mercados que em Dourados há denúncias de retenção
vendem aos indígenas. O foco tem sido do cartão magnético das famílias indíge-
principalmente a qualidade dos produ- nas por comerciantes locais para recebi-
tos vendidos – a Vigilância Sanitária foi mento do benefício. O consultor informa
peça-chave na primeira ação de campo que já houve ações da gestão local do PBF,
desse trabalho, executada no fim de ou- que ao menos no caso desta TI, acionou o
tubro/2013. Outros órgãos participaram Conselho Municipal de Assistência Social
da operação, que contou com apoio da para que este formalize denúncia junto ao
Força Nacional: FUNAI, Inmetro, PROCON, Ministério Público Federal.
Vigilância Sanitária e Secretaria Municipal
de Finanças. Há uma expectativa de que O consultor também menciona o estrago
os comerciantes indígenas obtenham al- que as denúncias anônimas por supos-
tos maus tratos envolvendo as crianças como parte de uma família – para receber
têm causado nas famílias indígenas na TI a Bolsa Família, por exemplo –, é preciso
Dourados. É fato – e muitos funcionários gerar documentos “de guarda”. A trami-
públicos indígenas reconhecem – que tação desses papéis costuma ser longa e
existe um número significativo de famílias custosa, pois se exige um processo que
problemáticas. Porém, afirma o consultor, passa pela sempre lenta Justiça da cidade.
o mecanismo das denúncias anônimas, da Em alguns casos essa tramitação exige se
forma como é manejado hoje por órgãos deslocar por longas distâncias e por várias
como o Conselho Tutelar, já provocou epi- vezes, com datas marcadas, para compa-
sódios lamentáveis do ponto de vista dos recer diante de pessoas em instituições
direitos indígenas. Como as diferenças - como por exemplos tribunais - com au-
étnicas e religiosas estão combinadas de sência de servidores que falam a língua
modo intrincado na TI, fazendo com que guarani, e que ficam querendo muitos
as disputas políticas, econômicas e cultu- detalhes sobre a vida familiar. Tudo isso,
rais apareçam mescladas, fazer uma “acu- para os idosos, que são os que comumen-
sação de abuso ou agressão contra uma te adotam as crianças, costuma ser muito
criança ou adolescente” pode ser a forma dificultoso. O resultado é que, frequente-
mais fácil, hoje, de obter a vingança contra mente, as mais prejudicadas são as crian-
um inimigo ou concorrente; também como ças. Para o consultor, a solução para todo
meio para afetar alguém cujos costumes esse imbróglio talvez seja relativamente
pareçam ofensivos a seus dogmas religio- simples: bastaria que a FUNAI, o Ministério
sos – evangélicos, no caso. O consultor Público Federal e as lideranças da TI abris-
ouviu sobre várias situações de acusações sem um diálogo e desenvolvessem um
injustas que chegaram, inclusive, a gerar a mecanismo apropriado para manter a con-
prisão de moradores da TI. sulta permanente à comunidade, e que os
gestores do PBF se baseassem na cons-
Quando o sistema de assistência social trução de acordos com o sugerido órgão
age dentro das aldeias, os equívocos se local de consulta para que esses arranjos
acentuam, como, por exemplo, o fato de familiares autônomos não impliquem na
a adoção, entre os Kaiowá e Guarani, não exclusão das crianças (como beneficiárias
ser pensada como algo necessariamen- principais dos recursos do PBF) ao acesso
te definitivo, que se necessita formalizar. a políticas públicas.
É comum que os avós ou tios de uma ou
mais crianças assumam temporariamente Na avaliação de alguns indígenas da TI, li-
os cuidados com elas. Isso pode aconte- deranças que têm se destacado no debate
cer, por exemplo, quando um núcleo fami- sobre os programas sociais, a criação de
liar passa por problemas econômicos. Para um órgão de consulta à comunidade para
que uma criança passe a ser reconhecida assuntos de família poderia resolver uma

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 63


série de temas que hoje são encaminha- g) PBF na perspectiva de Gênero – O con-
dos de forma morosa e ineficiente, dando sultor constatou ser senso comum na po-
margem a conflitos e insatisfação gene- pulação indígena, em Dourados, a ideia
ralizada - além de potenciais injustiças, de que o benefício deve ser administrado
como relatado. pelas mulheres e destinado a cuidar das
crianças. Também encontrou entre mulhe-
Segundo a NC Pinheiro (2013), a gestão res entrevistadas o entendimento de que
municipal do Programa está situada na Se- o Estado poderia ser mais coerente em
cretaria Municipal de Assistência Social de termos de relações de gênero. Por exem-
Dourados, e o gestor do Programa é fun- plo, calculando o valor do PBF sem con-
cionário público municipal, formado em siderar a renda do marido, associando o
filosofia e ocupa o cargo de gestor desde valor somente à quantidade de filhos que
o ano de 2011. O gestor é também o co- existe na família.
ordenador do Cadastro Único. Até o final
de 2013 não havia sido constituído um Também foram relatados ao consultor
Comitê Intersetorial do Programa, embora casos de violência doméstica associados
houvesse ao que parece uma interlocução com cartões de benefícios apropriados
constante entre a gestão municipal e os por membros da família, não os do PBF,
coordenadores de saúde e educação por mas os cartões de saque da aposentado-
meio de reuniões bimestrais para discutir ria de mulheres idosas, fisicamente mais
os resultados de cada área e para plane- frágeis e com maiores dificuldades para
jamento de ações. Não se tem notícias de denunciar as agressões.
participação de representantes da saúde
indígena nestas reuniões. Foi declarado No que concerne aos Kaiowá e Guarani, o
que “o controle social” do Programa é re- consultor sugere uma maior aproximação
alizado pelo Conselho Municipal de Assis- do Programa com o movimento de mulhe-
tência Social, entretanto não se informa se res que se articula na Kuña Aty Guasu, a
64 há participação nele de representantes in- Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá
dígenas da Reserva de Dourados. Segundo e Guarani, criada em 2012. Ele avalia que
o consultor, “em Dourados, os indígenas a Kuña Aty Guasu pode se converter numa
em geral, inclusive as lideranças, desco- importante parceira nesse momento de
nhecem qualquer espaço em que possam reflexão e de definição da atuação do PBF
dialogar sobre o controle social do PBF. entre povos e comunidades indígenas,
Diferente do que acontece em áreas como particularmente no MS.
a saúde, em que existem pessoas dentro
da TI que são reconhecidas pelas pessoas h) Produção e segurança alimentar e nu-
em geral como representantes indígenas tricional – Conforme atestam várias etno-
diante dos órgãos públicos, na área da grafias já produzidas na região, incluído o
assistência social as únicas referências acúmulo de conhecimento do consultor
são os próprios indígenas funcionários do entre os Kaiowá e Guarani, as relações no
CRAS Bororó”. âmbito da parentela (te’yi) estão fortemen-
te relacionadas à agricultura familiar, com consistência das políticas de apoio à agri-
destaque para o milho, cultura em torno da cultura familiar indígena em Dourados, e
qual se organizam elementos fundamentais na região sul do MS em geral, que se ma-
da cosmologia indígena, bem como as suas nifesta na demora ou na ausência do po-
principais cerimônias. Tradicionalmente, as der público no auxílio ao preparo da terra;
reuniões festivas (genericamente chama- no atraso na distribuição de sementes;
das de guaxire, em alusão a um tipo de dan- na impossibilidade de tomar crédito do
ça circular que comumente ocorre nessas Programa Nacional de Fortalecimento da
ocasiões) dependem, sobretudo, da fartu- Agricultura Familiar (Pronaf); e na falta de
ra de alimentos, que somente uma família uma assistência técnica adequada. Mesmo
com uma boa roça consegue proporcionar. quem tem alguma terra disponível para o
Há, portanto, uma relação direta entre o cultivo, em decorrência desses fatores,
aumento da produção de alimentos na agri- muitas vezes não consegue fazê-lo, tendo
cultura familiar e o reforço dos laços sociais. de apelar para a “parceria” com os planta-
dores de soja (de dentro da aldeia ou não).
Grosso modo, uma família estará satisfeita
com: 1) uma roça de subsistência de dimen- Uma boa parte dos trabalhadores que an-
sões suficientes; 2) o acesso adequado a be- tes iam às usinas agora está empregada
nefícios sociais (seja o Programa Bolsa Famí- em uma diversidade de ramos de traba-
lia, a aposentadoria, o BPC ou a pensão por lho, incluindo até mesmo os supermer-
morte ou invalidez – além das cestas bási- cados da cidade. Mas os empregos mais
cas); 3) a possibilidade de, em alguma medi- recorrentes são a construção civil (como
da, o marido realizar trabalhos fora da aldeia serventes ou pedreiros), os serviços públi-
(a “changa”). O consultor pode observar que cos (limpeza, manutenção de vias) e os fri-
as famílias nucleares que conseguem um goríficos – estes, empregando um número
equilíbrio entre esses três fatores são aque- crescente de jovens mulheres indígenas.
las que aparentam maior satisfação, em ter- O consultor recomenda a realização de
mos de qualidade de vida. Todavia, é peque- uma pesquisa quantitativa, com outra me-
no o número de famílias que têm uma roça todologia, para captar em detalhes a atual
suficientemente grande para poder viver so- situação de emprego indígena na região e
mente dela (complementado pelo apoio dos a diversidade de possibilidades para o tra-
benefícios sociais). As pessoas que dispen- balho remunerado fora da aldeia.
sam a changa não são numerosas, em função
da escassez de espaço na TI, sobretudo. A dificuldade de acesso à água é outro
problema identificado entre algumas fa-
Outro fator que dificulta a dedicação à mílias na TI. Mesmo entre famílias em que
roça é a já histórica – e muito atual – in- os três citados fatores estão equilibrados

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Resultados de Cada Estudo de Caso 65


(roça/benefícios/changa) há casos de sé- vem se mostrando bem exitosa. Trata-
rias dificuldades. O consultor constatou -se do projeto coletivo Comunidade Vida
que em certas áreas da TI chega a faltar Kaiowá (CVK), instalado no Bororó desde
água nas residências por mais de um mês. 2007, que contam com o apoio de uma
Em novembro/2013, em várias casas que pequena equipe técnica ligada à Igreja
visitou no Bororó lhe diziam que ali não Católica local.
havia água já fazia mais de 40 dias.
i) Utilização do benefício e usos do PBF –
Também há falta de lenha, isso em função Como dito acima, na TI Dourados o be-
da escassez de matas, o que impõe às fa- nefício do PBF é visto como o “dinheiro
mílias a necessidade de comprar gás. Den- das crianças”, ou seja, um recurso que é
tro da TI há quem cobre mais de R$ 65 por repassado pelo governo para ser utilizado
um bujão (enquanto na cidade se encon- com os filhos. Gastar o dinheiro “com as
tra o mesmo gás por R$ 45). Finalmente, a crianças” é comprar coisas que serão usa-
escassez de áreas/matas também impõe a das diretamente por elas, como roupas,
necessidade de compra de itens como ma- materiais escolares, brinquedos etc. Em
deira e telhas para construção das casas, termos de alimentação, é muito comum
cercas etc. indicarem que o PBF deve ser utilizado
especificamente para comprar “algo mais”
O conjunto de ações sociais que inclui que é usado diretamente pelas crianças,
cestas de alimentação, Programa Bolsa como frutas. Itens considerados femini-
Família e merenda escolar, entre outros nos, como roupas e calçados, parecem
elementos, não basta para solucionar o também entrar nesse rol, embora as pes-
problema da insegurança alimentar vivida soas não costumem frisar esse fato, talvez
cotidianamente por muitas famílias na TI, por receio de que alguém (o pesquisador,
conclui o consultor. Além do acima indi- p.e.) identificasse alguma possibilidade de
cado, uma parte significativa da TI Doura- que o dinheiro não estivesse sendo gas-
66 dos–em áreas que poderiam ser utilizadas to devidamente. O que parece não fazer
para cultivos familiares – está hoje total- muito sentido, pois não existe nenhuma
mente ocupada por capins invasores, so- proibição quanto a esse tipo de gasto por
bretudo a braquiária e o colonião, ambos parte do Programa Bolsa Família.
de origem africana.
Grosso modo, constatou o consultor, se
Mas nem tudo são dificuldades e pro- uma família gasta o dinheiro do PBF pre-
blemas. Uma experiência desenvolvida dominantemente com alimentos básicos,
por um grupo que varia entre dez e vin- isso pode estar indicando que enfrenta
te pessoas, trabalhando em cerca de 20 uma situação de vulnerabilidade maior,
hectares na produção e processamento de que na maioria das vezes se relaciona
mandioca para venda na cidade do produ- com problemas com a renda “masculina”
to embalado e descascado, além de outras da casa, oriunda, geralmente, do trabalho
culturas agrícolas como abóbora e milho, dos homens fora da aldeia. O PBF constitui
hoje, aos Guarani de Dourados, uma espé- la e um pequeno centro de serviços que
cie de seguridade social mínima, e é nesse inclui um posto dos correios. Há também
espírito que o programa deveria prever igrejas evangélicas e pequenos comércios
dispositivos para impedir o bloqueio ou nos arredores.
desligamento automático de famílias em
situação de vulnerabilidade temporária, Pelos dados levantados pela pesquisa, o
como doenças, acidentes de trabalho ou CRAS pode chegar a realizar mais de 500
em período de gestação, pós-parto ou atendimentos em um mês. Para isso, conta
amamentação. com um número de funcionários franca-
mente insuficiente. Hoje são nove, sendo
j) Acesso aos serviços e benefícios socio- seis para atendimento direto – três assis-
assistenciais – O Comitê Gestor de Ações tentes sociais, um psicólogo, uma pessoa
Indigenistas Integradas da Grande Dou- especializada em Previdência Social, e
rados teve sua criação oficial em 2007, uma no PBF; reivindicam ao menos mais
mas já atuava desde maio de 2005 na seis, sendo três para atendimento direto
região quando a TI Dourados foi palco de ao público. A falta de funcionários tem
um “boom” midiático, associado a mor- sido a justificativa para que não se crie
tes de crianças por desnutrição. Entre as uma equipe volante para o CRAS – que
ações que provocou, esteve a promoção, seria fundamental para atender as áreas
em 2006, do cadastramento massivo dos mais distantes, incluindo os acampamen-
moradores da TI Dourados. Além disso, em tos indígenas em volta da TI.
2007, com apoio do Comitê, criou-se, den-
tro da TI, o Centro de Referência de Assis- Como ação imediata do MDS, o consultor
tência Social (CRAS) Bororó. sugere a implantação de internet e telefo-
ne fixo público (orelhão) no CRAS Bororó:
O CRAS Bororó é um equipamento em a falta de conexão do equipamento com o
pleno funcionamento e cotidianamente sistema de informações do PBF, bem como
lotado de indígenas, sobretudo mulhe- a inexistência de um aparelho telefônico
res – sempre acompanhadas de muitas que possibilite o acesso a canais como
crianças–, que frequentam o local para o “0800” do PBF, ocasiona uma série de
participar de atividades (palestras, grupos dificuldades para os beneficiários do pro-
de discussão, cursos), receber alimentos grama. A disponibilização desses novos
(cestas doadas, ou vegetais que são com- meios de comunicação poderia diminuir
prados dos produtores indígenas pela consideravelmente os inconvenientes
prefeitura, via o projeto Mesa Brasil) ou para as famílias indígenas. Atualmente, o
buscar os mais variados auxílios em rela- usual é que, diante de qualquer pedido
ção a benefícios sociais – sobretudo o PBF. de informação que demande a consulta
Próximo há um posto de saúde, uma esco- ao cadastro da beneficiária, a pessoa seja

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Resultados de Cada Estudo de Caso 67


encaminhada a outro local, a mais de 10 para obter o acesso ao PBF ou entender
quilômetros do CRAS Bororó, o chamado problemas como bloqueios no pagamen-
“escritório do Bolsa Família”, no centro to; 2) dificuldades com a documentação
da cidade de Dourados, no endereço: rua exigida para o acesso ao PBF (há um evi-
João Rosa Góes, 395 – Centro. dente descompasso entre as exigências
do MDS e as que são preconizadas pela
O modo de funcionamento do escritório Prefeitura de Dourados); 3) embaraços
do PBF em Dourados também gera outros criados pela falta de infraestrutura de
transtornos para a população indígena do comunicação no CRAS Bororó, aliados ao
município. Além da TI Dourados, o muni- despreparo dos funcionários do escritório
cípio também abriga a TI Panambizinho, do PBF na cidade de Dourados para lidar
habitada praticamente só por Kaiowá, que com o público indígena.
fica a cerca de 25 km do escritório do PBF,
na sede do município. Segundo as lide- Em relação às ações do Programa Nacional
ranças dessa TI, para chegar ao escritório de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego
a tempo de conseguir uma senha, as pes- (PRONATEC) na TI Dourados, uma quantia
soas têm duas alternativas: ou conseguem considerável vem sendo investida, nos úl-
pegar um único ônibus que passa às 6h da timos anos, em cursos profissionalizantes,
manhã, na rodovia que corta o distrito de oferecidos no CRAS a partir de uma contra-
Panambi – distante mais de um quilôme- tação que é definida pela prefeitura local.
tro de boa parte da TI; ou pagam passagem Não há notícia de que tenha havido efeti-
de R$ 40 a um transportador que vive no vas consultas a população na TI, o que tem
distrito de Panambi. Outro complicador gerado uma oferta incompatível com as
do encaminhamento dos beneficiários ao demandas locais, além de desperdício de
escritório do PBF na cidade é que no lo- dinheiro público. Na avaliação de algumas
cal não há funcionários falantes da língua lideranças da TI que acompanham as ati-
guarani – isso é mais problemático no caso vidades do CRAS, cursos aparentemente
68 das mulheres, que na maioria dos casos são simples, voltados à agricultura familiar e
pessoas que mantêm o guarani como pri- a questões domésticas, entre outros, mais
meira língua e têm pouco domínio do por- próximos da realidade atual da maioria da
tuguês. Além da incorporação de pessoal população, poderiam gerar efeitos bem
qualificado, inclusive no domínio da língua positivos no curto e médio prazo.
guarani, o consultor pensa que a produção
de materiais informativos e impressos (tipo Por fim, destaque-se uma demanda ex-
banner) em Guarani ajudaria em muito a re- pressa em vários documentos de lideran-
lação com os Guarani e Kaiowá. ças da comunidade a criação de um CREAS
na própria TI Dourados; a criação de um
Em síntese, os principais problemas (“pro- segundo CRAS, no Jaguapiru; e a criação
blemas típicos”) enfrentados hoje pela de um CAPS, considerando a extensão do
população em relação às duas unidades problema dos suicídios, principalmente
do SUAS são: 1) dificuldades com a língua de jovens, e o alcoolismo.
3.5 Terra Indígena a “cidade, os bens e os brancos” que ele

Alto Rio Negro impõe - isso tanto entre aqueles que vivem
na TI Alto Rio Negro, quanto entre os que
a) Percepções e conhecimento do PBF – a
estão na cidade de São Gabriel. A isso po-
consultora constatou haver uma percepção
deríamos associar as noções de “despesa”
positiva entre a população indígena em re-
e “gasto”, uma vez que os deslocamentos
lação ao PBF, em particular no recebimento
das pessoas até SGC inevitavelmente exi-
do recurso em si mesmo, apesar dos múl-
gem ou envolvem itens cujo acesso e uti-
tiplos descaminhos que se interpõem en-
lização exige ou ter o dinheiro necessário
tre famílias potencialmente beneficiárias e
para pagá-los ou a abertura de um “crédi-
seu efetivo recebimento do recurso em São
to” (e consequente endividamento) junto a
Gabriel da Cachoeira (SGC).
um comerciante ou agiota no local de ori-
gem ou de destino. Os valores estimados
Nas entrevistas realizadas pela consultora, de gasto exclusivamente com combustível
o acesso ao PBF apareceu associado a “via- nas viagens realizadas em canoas de ma-
gens”, ou seja, com a necessidade dos be- deira, com motor “rabeta”, que são o meio
neficiários indígenas terem que “viajar”. Os usual de transporte utilizado pela maioria
dados levantados pela consultora indicam das famílias indígenas da TI Alto Rio Negro,
que uma “viagem rápida” varia entre dois podem variar entre R$ 190 (comunidade
e oito dias, isso com o mínimo de paradas Vila Nova, rio Xié, com uma distância da
e a depender da comunidade considerada. cidade de SGC variando entre 4 e 5 dias,
Somando as estimativas mais rápidas de ida e volta) e R$ 500 (em Iauaretê, rio Pa-
viagem ao tempo mínimo de estadia na ci- puri, com uma distância da cidade de SGC
dade, sem contar com possíveis demoras no variando entre 11 e 13 dias, ida e volta).O
atendimento e/ou recebimento, estas via- resultado final, na maior parte dos casos, é
gens podem variar entre uma semana a um que o recurso acaba por ser financeiramen-
mês. A experiência da consultora indica que te muito pouco significativo, porém dese-
muitas famílias simplesmente não têm con- jado e positivamente qualificado. Pesam
dições de fazer tal percurso, ainda mais se para isto as estratégias de manejo nativas,
considerada a frequência de idas à cidade adotadas para o recebimento e uso do re-
exigidas pelo Programa Bolsa Família. Outras curso financeiro28.
sequer têm canoas ou motor rabeta 27
para
os seus deslocamentos – situação verificada
comumente entre as famílias Hupd’däh. 27. Pequeno motor de popa, isso é, colocado na parte
de trás de uma embarcação pequena, tipo canoa, muito
utilizado na região.
Outra associação simbólica identificada
28. Estes valores, como os tempos de viagem, são
pela consultora na população ao se referir aproximações fornecidas à consultora pelos próprios in-
ao Programa é a da obrigatória relação com dígenas, podendo haver variações.

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Resultados de Cada Estudo de Caso 69


A consultora identificou entre as mulheres pelo MDS nas comunidades pesquisadas
uma percepção particular do PBF: enten- e as pessoas, ao serem questionadas, res-
dem que os recursos do Programa são sua ponderam nunca tê-las visto.
responsabilidade, mais como “mães” de
crianças e também jovens do que como Por fim, a consultora encontrou dissemina-
“mulheres” - isso inclui também muitos da entre as famílias a noção de que quem
casos em que as avós “criam” seus netos, trabalha com “carteira assinada” não pode
como seus “filhos” ou tendo sua guarda, ser beneficiário do Programa, nem sequer
o que apareceu muitas vezes entre as co- ser cadastrado. Quando isso acontece, as
munidades e famílias pesquisadas. Para pessoas sentem-se “burlados” ou prete-
as mulheres, além de serem elas as res- ridos. Muitos indígenas ficam indignados
ponsáveis por seu manejo, o benefício quando há casos em que agentes de saú-
é percebido como “das crianças” – essa de ou professores recebem o benefício,
compreensão apareceu tanto entre as mu- porque eles “têm carteira assinada”.
lheres indígenas das comunidades quanto
da cidade SGC. b) Pobreza e escassez – O termo “pobreza”
não foi encontrado sendo utilizado pelas
Outro resultado comum encontrado na famílias, seja nas entrevistas ou no dia-a-
investigação entre os indígenas é a com- -dia. Muitos depoimentos recolhidos pela
pleta incompreensão do Programa. Este consultora enfatizaram o quanto são pri-
foi o dado mais incontestável do trabalho vilegiados e verdadeiramente “ricos” e o
de campo em SGC. O que todos deseja- quanto efetivamente “comem”, apesar da
vam, quando o PBF estava em questão, era situação de escassez de alimentos, nota-
“informação” e, sobretudo, alguém capaz damente de fontes proteicas, em algumas
de resolver seus muitos problemas. Se comunidades. Quando chegam a acionar
não, pelo menos indicar o porquê deles e o termo “pobreza” segundo as conceitu-
como resolvê-los. A pesquisadora também ações de não indígenas, com a qual são
70 encontrou um desencontro de informação constantemente confrontados na relação
e uma considerável falta de clareza em com os “brancos”, o fazem dentro de um
relação ao programa, suas regras e proce- quadro de compreensão específico. Um
dimento, entre aqueles que não deveriam exemplo disso é a maneira como atribuem
tê-las: os funcionários das instituições significado e se relacionam com o “di-
operadoras do PBF em São Gabriel da Ca- nheiro”. Ele é visto como algo necessário,
choeira. Além da ausência de informação notadamente quando as pessoas estão
pontual nas instituições públicas, consta- na cidade; nesse contexto, ter ou não ter
tou haver falta de campanhas de informa- “dinheiro” traz efeitos importantes e sua
ção que sejam planejadas e executadas ausência pode causar sofrimento, como
em conjunto com e especificamente para “sede” e “fome”. O “auxílio” (dinheiro)
povos indígenas no município. Também recebido do governo é visto quase que
não foram encontrados exemplares das como um dever: ou porque as pessoas
cartilhas nas línguas indígenas elaboradas não têm trabalho (no sentido de emprego)
como os brancos, então não têm “dinhei- “documentação”, isso não apareceu claro
ro” para comprar coisas para as crianças nas conversas com os indígenas. Um fun-
ou algum “ranchinho”; ou porque moram cionário do CRAS disse que bastaria RG e
longe e precisam de auxílio; ou ainda por- CPF, e se possível o título de eleitor. En-
que os filhos precisam estudar, precisam quanto isso, algumas mulheres disseram
comer (“merendar”), seja em São Gabriel que não puderam ser as titulares do PBF
da Cachoeira, em outras comunidades ou justamente pela ausência de “documen-
nas cidades do país onde estejam. Para a tação completa”. Na prática, verificou-se
consultora, isto parece indicar a necessi- que o RANI não tem validade efetiva para
dade de um Programa específico para po- o acesso a praticamente nenhuma política
pulações indígenas, formulado em outras pública em SGC, quando direcionada a po-
bases conceituais que não as de “pobre- vos indígenas. Quando muito, ele pode ser
za” ou de “extrema pobreza”. mais um dos documentos a ser exigido,
mas sendo por si só insuficiente à com-
c) Cadastro Único – À incompreensão em re- pletude do processo burocrático.
lação às regras e ao funcionamento do PBF
entre a população somam-se exigências Apesar das várias campanhas de documen-
documentais e maneiras de dar explica- tação realizadas na região, foram verificadas
ções que nem sempre são compreensíveis inúmeras situações de ausência de algum
aos beneficiários ou potenciais beneficiá- ou até de todos os documentos básicos exi-
rios. A consultora pôde constatar que além gidos ao cadastramento. Um exemplo disso
dos desencontros de informação e da falta são os indígenas Hupd’äh entrevistados,
de clareza identificada entre funcionários que possuíam título de eleitor, mas não CPF.
operadores locais do Programa, os procedi- Por outro lado, foram também recolhidos
mentos por eles indicados nem sempre es- muitos relatos sobre documentos perdidos
tão acessíveis às pessoas, como fazer liga- ou “alagados” durante os longos percursos
ções telefônicas ou acessar a sistemas de por igarapés e rios até chegar a São Gabriel
internet. Procedimentos concebidos para da Cachoeira. Falta de condições financei-
outras circunstâncias, mais comuns no sul ras, dificuldades logísticas e adversidades
do país, são simplesmente exigidos, sem a das viagens e permanência na cidade são
devida consideração do contexto do norte alguns dos agravantes deste quadro.
amazônico e da condição sociocultural e
linguística do interlocutor. A consultora constatou que as famílias
indígenas na cidade são, em sua maioria,
É disseminada a ideia entre os indígenas cadastradas no próprio CRAS. As visitas
de que apenas aqueles que possuem “do- domiciliares, ao menos no bairro do Daba-
cumentação completa” podem acessar rú, que é o mesmo do CRAS, eram minori-
o Programa. Mas qual é exatamente essa tárias. Foi mencionado que as assistentes

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 71


sociais “ameaçam” uma visita, para verem de outros atores locais sobre o Programa.
como elas vivem, mas que dificilmente Foram reunidos vários depoimentos com
isto acontece. Muitas famílias souberam relatos sobre usos abusivos das “condicio-
da existência do PBF por vizinhos, paren- nalidades” por parte de representantes de
tes e agentes comunitários de saúde. órgãos públicos, como o próprio CRAS e a
Secretaria Municipal de Educação e Cultu-
d) Condicionalidades – A população pesqui- ra (SEMEC), e mesmo espaços não oficiais,
sada mostrou desconhecer o termo “condi- como a casa lotérica. Muitos pais demons-
cionalidade”. A ideia de que o recebimento traram preocupação com a notícia que re-
do recurso é condicionado a tomar deter- ceberam dos Coordenadores de Escolas,
minadas atitudes é algo difusa, notada- supostamente vinda da SEMEC, de que te-
mente com relação à “saúde”. Apenas uma riam o benefício suspenso caso seus filhos
minoria dos entrevistados pela consultora repetissem o ano ou tirassem notas baixas.
sabia, devido ter sofrido bloqueio ou can- Também houve casos em que, no momento
celamento do benefício, tendo descoberto do cadastramento, foi dito aos pais que o
existir esta “obrigação” neste momento. recebimento do benefício estava condicio-
nado a manter seus filhos “limpos” e não
Considerando os objetivos estabelecidos no comprar alimentos sem valor nutricional.
PBF para o mecanismo “condicionalidades”,
foi constatado que esses não vêm sendo Em relação ao acompanhamento das con-
seguidos adequadamente, ou seja, pareceu dicionalidades de saúde das famílias que
estar havendo certa distorção entre os ob- moram em comunidades, foi informado
jetivos como formalmente definidos (como que isso é feito em fichas preenchidas
meio para garantir direitos) e sua operacio- pelos Agentes Indígenas de Saúde (AIS)
nalização na prática das instituições em ní- ou pelos Agentes Comunitários de Saú-
vel local. Ao invés de atuar com instrumento de (ACS), contratados pela prefeitura, e
de identificação, acompanhamento, promo- que essas fichas são entregues no PAC
72 ção e de auxílio às famílias beneficiárias em (Programa de Agentes Comunitários) duas
situação vulnerabilidade, a prática local tem vezes ao ano – mas que isso não tem se
lhe dado uma feição punitiva, como algo ne- traduzido em consolidação destes dados,
gativo e não de promoção social. O quadro com vistas a acompanhamento e possíveis
se agrava quando o bloqueio não resolvido intervenções. Nas comunidades pesqui-
gera o cancelamento do acesso ao benefício sadas, a estrutura dos postos de saúde,
do Programa, situação nem sempre reverti- quando existentes, mesmo onde estes
da, apesar da família possuir perfil adequa- são considerados polos-base, é pequena
do ao PBF. e fisicamente precária. Há uma visível fal-
ta de articulação entre a gestão municipal
Utilizar as “condicionalidades” para ter do PBF e o DSEI Alto Rio Negro.
incidência ou coagir indígenas a agir de
determinada forma foi uma ocorrência bas- Segundo informa o produto final do estudo
tante marcada nas narrativas indígenas e realizado por NC Pinheiro (2013), em São
Gabriel da Cachoeira, a gestão municipal ponível, que não é suficiente para fazer a
do PBF está situada na Secretaria Muni- cobertura de todas as aldeias (em número
cipal de Assistência Social, sendo que a superior a 400) - existem aldeias aonde o
secretária de assistência social e também tempo de deslocamento chega a mais de
primeira-dama do município ocupa o car- 40 dias considerando o percurso entre ida
go de gestora do Programa. A coordenação e volta. Também foi percebido não existir
de saúde do PBF está situada na Secretaria um fluxo de informações sobre o acompa-
Municipal de Saúde e a coordenadora em nhamento das condicionalidades de saúde
dezembro de 2013, que possui curso supe- do PBF entre o nível municipal e o nível
rior em Nutrição e está no cargo desde o estadual29, nem qualquer tipo de interlocu-
ano de 2010, dedica-se à função em meio ção com a esfera federal sobre o acompa-
período durante três a quatro dias por se- nhamento das condicionalidades de saúde.
mana. Segundo os dados produzidos por
ocasião da pesquisa, além de uma equipe Segundo foi apurado em campo pela con-
volante, composta por uma assistente so- sultora, o controle da condicionalidade de
cial e dois auxiliares de nível médio, havia “educação”, no caso das escolas estaduais
220 Agentes Comunitários de Saúde (ACS) é feito por meio da “declaração de frequ-
contratados pela Prefeitura Municipal ência”, que os próprios pais devem solici-
prestando serviço ao DSEI Alto Rio Negro. tar na unidade e entregar em São Gabriel
Mas esses ACS estão presentes em apenas da Cachoeira ou quando há algum muti-
parte das aldeias da área de abrangência rão de serviços na própria comunidade30.
do município. Nas demais comunidades
locais onde existem Agentes Indígenas
de Saúde (AIS) contratados pelo DSEI Alto
29. A educação escolar indígena está sob a égide da
Rio Negro, o acompanhamento não é rea- administração municipal, no caso do ensino fundamental,
lizado. Segundo a gestora do Programa na e estadual no caso do ensino médio. Ambas instâncias es-
tão carecendo de uma reciclagem sobre o PBF, incluindo
gestão passada (até 31.12.12), o acompa-
população indígena, e maior informação sobre as bases
nhamento das condicionalidades de saúde conceituais da política pública e sua interface com os di-
das famílias indígenas aldeadas não era reitos fundamentais de educação e saúde.

realizado pela gestão municipal nem pela 30. De acordo com o Censo Educacional 2012, MEC/
coordenação de saúde. Além da falta de in- INEP – existem em SGC 245 escolas públicas de ensino
fundamental, de 1ª a 8ª série (com 11.564 alunos e 711
terlocução com a Saúde Indígena, a gestão docentes), cuja efetivação é de responsabilidade munici-
municipal do PBF enfrenta problemas de pal, e 13 de ensino médio estaduais (com 193 docentes

toda ordem. Segundo as responsáveis pelo e 4.766 estudantes) responsáveis pelo ensino médio. (Cf.
IBGE, link: http://cod.ibge.gov.br/APZ). A pesquisa de cam-
estudo, os recursos financeiros e humanos po aponta que, até dezembro 2013, não tinha sido cons-
não são suficientes, há um grande dispên- truído nenhum acordo entre a instância estadual e o mu-
nicípio para criar um fluxo oficial de informações sobre
dio financeiro na aquisição de combustível
frequência escolar destinado ao sistema de informações
para movimentar a única embarcação dis- referentes às condicionalidades de educação do PBF.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 73


Em entrevista realizada com o Diretor da condições materiais mínimas capazes de
escola estadual de Iauaretê, esse afirmou acolher seus estudantes.
que sabia quase nada do Programa e que
não sabia quais alunos são beneficiários e) Aspectos do pagamento e recebimento
do Programa em sua escola - disse que do benefício e sua logística – Na cidade de
gostaria de saber e de participar mais. São Gabriel está o único CRAS que atende
às mais de 6.000 famílias que integram
A pesquisa também identificou casos em o Cadastro Único de todo o município. É
que diferenças e conflitos intersubjeti- também o local onde está situado o ter-
vos no espaço intracomunitários podem minal financeiro ativo de pagamento do
ter efeitos negativos sobre o controle e Agente Operador (a casa lotérica) que, até
a informação repassada às instâncias su- novembro de 2013, era o único responsá-
periores de controle do cumprimento das vel pelo pagamento dos recursos do PBF
condicionalidades. Assim, professores às cerca de 5.000 famílias beneficiárias,
podem “acusar” pais de não levarem os das quais aproximadamente 1.100 são fa-
filhos à escola, em face de idas à cidade mílias indígenas da TI Alto Rio Negro.
ou mesmo por ocasião do trabalho nas
roças, notadamente das meninas. Ao mes- A possiblidade de adesão crescente a pro-
mo tempo, pais podem “queixar” da não gramas sociais do Estado, entre eles o PBF,
qualificação de determinado professor, de bem como o acesso a posições assalaria-
sua falta ou abuso de poder, por legislar das de professores e agentes de saúde
sobre seus filhos, das notas que deveriam indígenas tem representado, segundo a
ter dado, ou ainda da não aprovação do consultora, um estímulo cada vez maior
filho ou filha no final do ano. Algo seme- aos movimentos e à intensificação das re-
lhante pode ocorrer com agentes de saú- lações dos indígenas com as instituições
de. Foram comuns tanto reclamações de públicas, atores políticos e estabeleci-
que pais não levavam os seus filhos para mentos comerciais instalados em SGC. O
74 ser pesados e medidos, quanto dos pais afluxo das famílias para a cidade ocorre
com relação, por exemplo, aos agentes de em determinados momentos do mês ou
saúde, dizendo que esses não realizavam dos semestres do ano, em determinados
a pesagem ou nem visitas domiciliares. casos gerando condições calamitosas de-
vido às condições de permanência na ci-
Ao mesmo tempo em que há de parte dos dade. O Programa, enquanto algo que tem
indígenas um questionamento da “con- como condição a relação com o espaço da
dicionalidade” da frequência escolar e “cidade”, tem se mostrado ser um impor-
outras demandas que o ambiente escolar tante incrementador deste trânsito cada
impõe a pais e crianças, as conversas e de- vez mais intenso e de permanência na ci-
poimentos tidos pela consultora indicam dade. Vão mais à cidade, diretamente em
que se espera que as escolas sejam mais razão do Programa, mas também porque
bem estruturadas, com currículos diferen- podem ir à cidade, inclusive com outros
ciados, merendas adequadas e mesmo fins, justamente porque recebem ou es-
peram receber os recursos do Programa, casas de parentes. Os relatos apontam, em
efetuar compra de mercadorias ou levar geral, para uma situação de má recepção
farinha para um filho que esteja estudan- e o desconforto que sentem ao serem re-
do na cidade. É bastante comum a ocor- cebidos por parentes na cidade. São pou-
rência de viagens à cidade em decorrência cos aqueles que têm condições de pagar
do calendário escolar, para aqueles que por vagas para estender a rede em algum
têm seus filhos estudando, ou de festas quarto na casa de parentes ou outras
relacionadas com o calendário católico – “pousadas” informais. Muitos aportam em
destaque aos meses de julho, dezembro e frente à cidade, cozinhando em fogões de
janeiro. barro e dormindo ou na própria embarca-
ção ou em barracas de lona. Outros, como
O trabalho de campo da consultora apu- os Hupd’äh e Yuhup’d’eh, com baixo co-
rou que, idealmente, as idas à cidade nhecimento da língua portuguesa e cujo
são feitas por toda a família em canoas/ contato com a cidade é muito recente,
embarcações próprias. Isto, contudo, nem dormem em barracas de lona montadas
sempre é possível, mas os indígenas des- nas areias do rio Negro, preferencialmen-
dobram-se para que a viagem aconteça te no porto de Parauari, lugar considerado
desta maneira. Viagens compartilhadas como um dos principais focos de trans-
são descritas como problemáticas, des- missão de malária no município.
confortáveis e até como fonte de conflitos
ou desentendimentos entre parentes ou Não foram poucos aqueles que disseram à
co-viajantes. Em alguns casos a ida para a consultora desejar ter um “caixa eletrôni-
cidade pode levar até 34 dias, sob as con- co” na própria comunidade. Algo que, por
dições mais adversas. Os indígenas vêm ora, é inviável, considerando que a imensa
pelo caminho alimentando-se de farinha, maioria das mais de 700 comunidades lo-
frutas e algum peixe que consigam pescar cais da TI Alto Rio Negro não possui ener-
ou trocar por combustível ou outros pro- gia elétrica. A consultora sugere a instala-
dutos. Dormem acampados na beira do rio ção de uma máquina em Iauaretê, onde
ou em suas canoas. Levam algumas latas há uma central de energia termoelétrica e
de farinha para consumo e, muitas vezes, até uma agência da companhia de energia
para a venda. Produtos como artesanatos do estado do Amazonas, isso poderia aju-
e frutas são também transportados para dar na solução de alguns dos problemas
serem vendidos. acima relatados, ao menos para aquelas
famílias que preferirão esta opção a ter
Uma vez na cidade, as condições de per- de ir até SGC. Além dessa, penso que po-
manência não são muito melhores. Alguns deria se pensar na utilização dos distritos
podem possuir casas na cidade ou em administrativos municipais e pelotões de
áreas periurbanas, ou serem acolhidos em fronteira, de modo a que sejam instalados

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 75


pontos com tais “caixas”, numa distribui- funcionário. Este fica separado dos bene-
ção geográfica que contemple de forma ficiários ou seus “representantes” por um
equitativa a distribuição das comunidades vidro, onde ficam também, estranhamen-
por toda a área de abrangência munici- te, as máquinas de registro de senha. É ele
pal. Além de Iauaretê, há Pari-Cachoeira, quem opera o registro da senha. A consul-
Cucui, Taracuá e alguma comunidade do tora observou situações em que os car-
Içana que são referência como polos de tões podem conter as senhas e, às vezes,
articulação indígena31 no interior da TI. valores inferiores aos que efetivamente
o beneficiário deve receber. Quando não,
Em decorrência das distâncias e custos do juntamente com o cartão, os beneficiários
deslocamento, aliado à impossibilidade de entregam ao funcionário do estabeleci-
acúmulo do benefício por mais de três me- mento um papel com o número de senha.
ses, sem que ele seja devidamente sacado Quanto ao valor sacado, as descrições dos
algumas famílias têm optado por entregar indígenas indicam que, usualmente, os
o cartão para familiares que vão à cidade funcionários perguntam aos beneficiários
ou mesmo que lá residem. Também pode quanto eles têm a receber. Muitas famílias
acontecer de haver algum filho estudando relataram que o valor do benefício pode
em escolas de nível médio ou cursos, in- ser diferente de mês a mês ou conforme
cluindo os do Programa Nacional de Acesso a época do ano, notando que estas varia-
ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC). ções não se devem ao acúmulo de bene-
Neste caso, o cartão pode ser deixado com fícios por mais de um mês. A ocorrência
o/a jovem e o recurso é aplicado para que de dar troco em balinhas, mas principal-
possam se manter durante o mês. mente, em “raspadinhas” acontece com
regularidade. Os que se recusam a receber
Foi constatado pela consultora que um a “raspadinha”, em geral, sofrem assédio
número significativo de famílias tem re- neste sentido, quando a entrega não é já
cebido exclusivamente comprovantes de automática. Muitos supunham também
76 saque padrão da Caixa Econômica Federal. que faziam parte do benefício social, sen-
Privadas de acesso ao extrato ou compro- do obrigatórias. Deste modo, têm sido, em
vante de pagamento de benefício social, um ou outro caso, sistematicamente im-
importante veículo de informação na re- pelidos a aceitar as raspadinhas como par-
lação do MDS com os beneficiários, as te do pagamento do benefício social. Aqui
pessoas são privadas da oportunidade de caberia até acrescentar que os indígenas
acesso às informações regularmente en- associam a uma pessoa da Lotérica a fun-
viadas sobre condicionalidades e outros ção de intermediar a a seguridade social,
assuntos, além da garantia de um saque as aposentadorias, se colocando como
controlado pelo Programa. uma espécie de “procurador” para receber

A consultora observou também que na


hora do saque na loja lotérica, em geral os 31. Sobre a noção de “polos de articulação indígena”
indígenas entregam o cartão nas mãos do cf. MELATTI, 1979.
o dinheiro dos aposentados. Muitas des- longa distância, para os comercian-
crições de indígenas e situações observa- tes é a garantia de que irão receber
das em campo indicam que os indivíduos pelos produtos disponibilizados. É
referidos como “procuradores” pelos indí- prática comum as famílias realiza-
genas têm atuado oficiosamente como se rem compras de mantimentos para
vários meses de subsistência e os
fossem os próprios indígenas. Retém seus
comerciantes realizarem o saque
documentos, utilizando seus cartões mag-
mensal dos benefícios. Os preços
néticos e senhas, sacando seus recursos
praticados costumam ser abusivos
integral ou parcialmente, beneficiando-se,
e muitas das famílias sequer conhe-
de vários modos, destas operações.
cem o valor de seus benefícios, pois
contraem dívidas que sempre são
Atualmente, o benefício financeiro repas- arroladas.” (p. 56).
sado pelo Programa aos indígenas está
encampado pelo sistema de patronagem. Foi constatado que o mesmo acontece
Ou seja: por relações fundamentalmente com famílias indígenas e jovens que vi-
assimétricas entre indígenas e comercian- vem em área urbana: seus cartões vão
tes, por meio das quais ocorre a captura parar nas mãos de comerciantes locais (os
desse benefício em favor dos não indíge- “patrões”) e “agiotas”. Na prática, parte
nas. O ato de deixar o cartão magnético significativa do recurso financeiro repas-
com o comerciante tem sido tanto uma sado pelo Programa é canalizada para as
exigência quanto a condição do forne- mãos destes sujeitos.
cimento de mercadorias por parte dos
“patrões”. Informação semelhante foi co- No caso dos Hupd’äh, a consultora ob-
lhida pela equipe da NC Pinheiros (2013) servou que, apesar da pouca e recente
quando da sua estada em São Gabriel da cobertura pelo Programa e a retenção de
Cachoeira para realização da pesquisa. A cartões por comerciantes, os depoimen-
seguir reproduzimos o trecho do seu rela- tos ressaltam outras dimensões do “es-
tório sobre o assunto: tar na cidade”. Isto é descrito como uma
espécie de rito de queima de recursos e
celebração da autonomia, onde se leva a
“a maioria dos cartões magnéticos
vida com tudo o que se deseja, ainda que
para recebimento do benefício está
por uma semana, e mesmo que seja para
de posse dos comerciantes locais.
Se para o indígena esta é a forma en- retornar endividado às aldeias. Ir à cidade
contrada para usufruir do benefício e adentrar no “mercado” têm significado o
financeiro, pois como não há possi- acesso a recursos de diversas ordens, que
bilidade de deslocar-se frequente- de outro modo só aconteceria muito mais
mente à área urbana, seja devido ao precariamente e pela intermediação de
custo de deslocamento, seja pela outros povos, como os Tukano e Tariana.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 77


f) Relações com o poder público, comér- A feira municipal é um dos lugares onde é
cio e sociedade local – A desarticulação visível a expressão indígena do município
das instituições competentes – situação e da cidade de São Gabriel da Cachoei-
também constatada pelo estudo da NC ra. Isso também não passa despercebido
Pinheiro (2013) - redunda e contribui nas diferentes instâncias, secretarias e
negativamente na execução das diversas espaços do poder público municipal. Na
fases do Programa, do cadastramento ao administração passada o prefeito era um
recebimento do recurso. Constatou-se indígena pertencente ao povo Tariano.
haver pouco conhecimento sobre o fun- Agora, o cargo voltou às mãos do filho de
cionamento do Programa no município, um comerciante.
o que é agravado pela segmentação das
unidades que operam o PBF no município, As redes locais de patronagem, que se
localizadas em bairros díspares da cidade, estendem por gerações, conferem o tom
com constantes mudanças de endereço e das relações interétnicas locais contem-
de funcionários da linha de atendimento. A porâneas. A desigualdade, a exploração,
desinformação encontrada pela consultora a dependência e o endividamento torna-
entre indígenas e não-indígenas foi tama- ram-se, assim, circunstâncias como que
nha, que inclusive a agência lotérica e seus naturalizadas e usuais das interfaces que
funcionários são percebidos e indicados põem em relação indígenas e não indíge-
pelos indígenas como parte do sistema de nas. Isto pode se expressar não apenas
gestão do Programa, em nível municipal. nas relações formalmente comerciais e
que envolvem o “fornecimento” de mer-
A implementação e os recursos dos Pro- cadorias, mas em outras relações que
gramas Sociais, salários de professores e envolvam direta ou indiretamente não
agentes de saúde, como aqueles advin- indígenas, regionais e o “dinheiro” per-
dos da venda de produtos “indígenas” tencente a indígenas. A consultora pode
são aqueles que abastecem significativa- perceber que essas redes podem envol-
78 mente o mercado local formal e informal. ver tanto proprietários quanto funcioná-
Embora alguns indígenas possuam ativi- rios de estabelecimentos comerciais, de
dade comercial, sobretudo no mercado serviços públicos, bancos e agências de
informal, tanto esse quanto o mercado correios, ou ainda pessoas com cargos e
formal são maioritariamente geridos por funções políticas. Algumas dessas pessoas
não indígenas. É ponto pacífico que os são oriundas de famílias que mantiveram
indígenas movimentam o comércio local vínculos comerciais-exploratórios com os
e incrementam o mercado eleitoral. Toda- indígenas há mais de duas gerações. Po-
via, o deslocamento crescente de indíge- dem ter tido a função de regatões que
nas para a cidade e seu estabelecimento circulavam por comunidades das várias
relativamente permanente no espaço ur- calhas de rios, hoje nos limites formais da
bano não deixa de ser pensado, em alguns TI Alto Rio Negro, como também de donos
momentos, como um problema pela admi- de estabelecimentos comerciais diversos,
nistração pública. na cidade de São Gabriel da Cachoeira.
Foram ouvidos vários depoimentos dos A consultora encontrou uma sensível ten-
indígenas indicando apropriação indevida dência da gestão municipal atual em substi-
de recursos por parte de funcionários da tuir funcionárias indígenas por “esposas de
lotérica, uma vez que esses têm acesso à militares”, mediante processo seletivo curri-
senha do “cartão do PBF” ou “caixa fácil”. cular simplificado, com perdas na qualidade
Houve um caso em que a pessoa teve qua- do serviço. Ações deste tipo aconteceram
tro meses de recursos “desaparecidos”, no PETI, tendo sido a responsável indígena
não encontrando valores disponíveis para de nível médio, substituída por uma esposa
saque na casa lotérica, única responsável de militar, com formação em pedagogia. O
pelo pagamento do PBF em São Gabriel da mesmo aconteceu com a responsável pelo
Cachoeira, até meados de novembro de CadÚnico, contratada há três meses, sendo
2013. Um funcionário do estabelecimento esposa de militar e especialista em proces-
lhe dizia, mês a mês, que não havia dinhei- samento de dados. Em geral, estas pessoas
ro para receber. Quando finalmente o be- desconhecem totalmente a realidade da
neficiário resolveu procurar o CRAS, cons- região, bem como ignoram as disposições
tatou que seu benefício havia sido pago constitucionais relativas a populações indí-
e sacado regularmente, mas não por ele. genas e a diferenciação de políticas públi-
Foram relatadas iniciativas de mutirão de cas que lhes sejam direcionadas.
cadastramento diretamente acompanha-
das ou que foram associadas pelos indíge- Ainda com relação à gestão municipal,
nas a candidatos a vereadores ou outros houve relatos de que o prefeito descen-
representantes de políticos locais. Alguns de de uma linhagem de regatões (comer-
indígenas disseram que ouviram de um ciantes) com atuação na região há mais
candidato a vereador que ele prometia au- de três gerações. Sendo de família que
mentar o valor do Programa Bolsa Família possui diversas atividades comerciais em
ou, pelo contrário, cortá-lo, caso não fosse São Gabriel da Cachoeira, o prefeito já
eleito. Ameaças semelhantes teriam sido foi funcionário da FUNAI, tendo sido de-
feitas a mulheres indígenas da cidade, no nunciado pelo MPF por desvio de verbas
caso de não fazerem o cartão Caixa Fácil, enquanto exercia este cargo – condenado
sob a ameaça de que teriam seus benefí- no final do processo. A consultora soube
cios cancelados. Microexercícios de poder por indígenas que comerciantes de sua
subordinador como os implícitos nesses família são os responsáveis, atualmente,
exemplos podem ser encontrados aqui e por parte da merenda escolar fornecida
ali, parcialmente expressos no tratamento às escolas municipais da TI Alto Rio Negro.
dispensado aos indígenas por forças poli-
ciais, por funcionários de serviços públi- g) PBF na perspectiva de Gênero – A divisão
cos em geral, notadamente no contexto sexual do trabalho entre homens e mulhe-
urbano, como por parte de políticos locais. res é marcante e é um atributo consolida-

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 79


dor e por vezes dissociador de boa parte tema agrícola do alto rio Negro, baseado
das relações sociais no Alto Rio Negro: na horticultura, sobretudo no cultivo de
mulheres são fundamentalmente horti- mandioca para a produção de farinha e
cultoras e responsáveis pela produção de outros derivados.
comidas em geral, inclusive das comidas
rituais; homens caçam, pescam, fazem a O peixe é o alimento preferencial dos po-
derrubada e o preparo das roças. Este pa- vos do alto rio Negro, o que se soma tam-
pel feminino tem se demonstrado atuan- bém a pouca produtividade da caça, em
te e fundamental contemporaneamente, bacias de águas pretas. Ecologicamente
cabendo ser associado com a perspectiva falando, a TI Alto Rio Negro caracteriza-se
que estas beneficiárias têm do PBF e a ma- por conter diversos micro-ecossistemas,
neira como utilizam seus recursos. mesmo dentro de uma mesma calha de
rio. Em determinados trechos de rio, pode
Segundo a consultora, a alocação dos re- haver lagos e peixe, enquanto carecem de
cursos do Programa como sendo respon- terras firmes. Em contrapartida, em outros
sabilidade das mães, tanto quanto seu trechos de um mesmo rio, pode haver ter-
emprego na educação dos filhos são, de ra firme e escassez ainda maior de peixes.
fato, a tônica da maior parte dos depoi- Estas diferenças podem dar o tom das mi-
mentos coletados durante o trabalho de grações e viagens para a cidade, quando
campo. A relação do recurso e seu uso contam com trocas ou vendas de produtos
com a educação é considerado por muitas com parentes ou moradores indígenas ao
mães um valor máximo e motivo de orgu- longo dos cursos de rios, nos longos traje-
lho pessoal. Mas o recurso também pode tos até a cidade.
ter outros usos, que não aqueles direta-
mente relacionados às crianças, pela or- No que concerne ao trabalho nas roças,
dem: comida; combustível para ir à roça ou muitos depoimentos de mulheres, em ge-
alimentar motores de ralar mandioca; de- ral titulares do benefício, destacam e qua-
80 pois aparecem pratos ou outros utensílios lificam a dissociação entre o recebimento
e mesmo o pagamento de tarifas de ener- de recursos do Programa e o desempenho
gia elétrica. Muitas mães manifestaram à de suas atividades produtivas, o que pode
consultora o desejo de que o Programa se incluir a produção de farinha para a venda
estenda também aos jovens indígenas em ou troca e, minoritariamente, artesanatos.
universidades. Alguns depoimentos destacam, entretan-
to, que antes do Programa precisavam tra-
h) Produção e segurança alimentar e nutri- balhar incansavelmente, de modo a criar
cional – As investigações desenvolvidas seus filhos com suficiência, dando-lhes
pela consultora indicam que a participa- roupas e pagando taxas e materiais esco-
ção no Programa não tem alterado signi- lares. Algumas famílias relatam ter ouvido,
ficativamente as atividades produtivas inclusive, da Secretaria Municipal de Edu-
locais voltadas à subsistência cotidiana. cação, que pelo fato de serem beneficiá-
Notadamente quando considerado o sis- rias do Programa não apenas podiam, mas
deveriam usar o dinheiro para pagar taxas sociais acaba por submeter-se à lógica re-
escolares, diante da precariedade dos re- gional. São “empurrados pra trás”, como
cursos do município que chegam até os uma mulher Hup qualificou, referindo-se
indígenas. O que é mais importante, é que às filas para atendimento quando há mu-
havia um forte empenho destas mulhe- tirões de cadastramento e documentação
res em qualificar seu trabalho cotidiano em Iauaretê. Isto pode e tem inviabilizado
intenso e contínuo nas roças, no sentido seu acesso tanto à documentação neces-
de demonstrar que não dependem e não sária a Programas como o Programa Bolsa
poderiam depender apenas dos recursos Família, e outras iniciativas de políticas
do PBF. São depoimentos enfatizando pro- públicas a que se tornem elegíveis. Muitos
blemas, sofrimentos, incompreensões e outros povos, vindos, sobretudo, do rio Pa-
expectativas, mas sempre com uma visão puri, como os Piratapuia, ou do alto Uau-
que deixa clara a importância, de seu pon- pés, como os Wanano, podem também ter
to de vista, de receber o recurso. seu acesso dificultado ou considerado não
preferencial sobre outros indivíduos que
Grandes concentrações populacionais po- pertencem a povos considerados como
dem tornar terras para cultivo a distâncias oriundos de Iauaretê e/ou estão situados
viáveis escassas. A consultora pôde cons- em posições hierárquicas superiores.
tatar que ocorre em Iauaretê e com boa
parte das famílias que para lá migraram, a i) Utilização do benefício e usos do PBF – no
partir do rio Papuri, alto e médio rio Uau- tocante a utilização do recurso do PBF, a
pés. A escassez de peixe, por outro lado, consultora constatou haver uma clara as-
parece atingir a Terra Indígena como um sociação com crianças e jovens, o que se
todo, sendo poucas as comunidades onde reflete em seus modos de apropriação. A
o recurso é apontado como “suficiente”. compra de roupas, materiais escolares, pa-
Esta deficiência também é potencializada, gamento de taxas escolares e algum “ran-
na medida do crescimento populacional cho”32, quando isso é possível. Em muitas
das comunidades. comunidades, a construção de igrejas, a
reforma de escolas, centros comunitários e
Por fim, a consultora destaca que a or- até malocas são feitas através de mutirões
ganização social do alto rio Negro não e contribuições das diversas famílias, algu-
pode ser compreendida sem referência à mas delas financeiras, o que pode incluir os
ideia de hierarquia (entre não indígenas recursos do PBF. Também o consideram em
e indígenas; e entre os diferentes povos
indígenas), com múltiplas expressões e
negociações locais. Especificamente com
relação aos Hup’däh, o trabalho de campo 32. Expressão regional para se referir a alimentos não
demonstrou que seu acesso a benefícios produzidos localmente, mas comprados ou fornecidos.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 81


muitos casos, no fim das contas matemá- o Centro de Referência e Assistência So-
ticas e extraídos os gastos com viagem e cial (CRAS). Essa situação é tão marcante
estadia na cidade, de muito pequeno valor. que as pessoas, em geral, procuram antes
este estabelecimento comercial, para re-
O emprego do recurso em fins que direta solução de seus problemas ou esclareci-
ou indiretamente propiciam a educação mentos, que o próprio CRAS ou outras ins-
dos filhos generalizou-se nas comunidades tituições relacionadas ao PBF. O mesmo
estudadas. Ai, o recurso é tido, ou como aju- acontece quando estão em questão outras
da a jovens estudantes na cidade ou como políticas públicas locais, como por exem-
modo de comprar algum rancho, mesmo plo, as previdenciárias. A pesquisadora
que pequeno, e coisas para as crianças. A identificou que tanto o CRAS quanto as
noção de que o benefício é “para ajudar as demais unidades onde o Programa é pra-
crianças” e sua “educação escolar” foi en- ticado no município são percebidas pela
contrada disseminada entre a população. população apenas como “lugares” onde
A consultora percebeu que tanto meninos entregam documentos, pegam cartões etc.
quanto meninas mais velhas, pré-adoles-
centes, tentam polarizar o recurso para fins Em todas as comunidades pesquisadas,
que consideram supérfluos, sendo even- bem como junto a famílias beneficiárias
tualmente contemplados. Assim, moças urbanas, não se teve qualquer notícia da
de uma família beneficiária podiam tentar existência da Instância de Controle Social
convencer suas mães de comprarem rou- (ICS) do Programa, nem qualquer outro
pas ou cadernos de preços que tornariam, mecanismo de participação e fiscalização
naquele mês, inviável contemplar filhos comunitária na gestão municipal do PBF.
menores, com alguma compra. Segundo a NC Pinheiro (2013), até o final
de 2013 também não havia sido instituído
O manejo do recurso por parte das mães um Comitê Intersetorial do PBF.
é algo bastante comum entre as famílias
82 beneficiárias pesquisadas. As mães tentam, Por fim, registre-se que a capacitação das
assim, dividir o dinheiro entre necessida- equipes do CRAS, quando realizada, acon-
des coletivas e de cada um dos membros tece na cidade de Manaus e, ao que tudo
da família. Muitas vezes optam por destiná- indica, não são mencionados aspectos
-lo àqueles filhos que estudam na cidade relacionados às especificidades de cadas-
ou adotam também rodízio de cartão/re- tramento e relacionamento com popula-
curso, bimestral ou trimestralmente, entre ções indígenas.
filhos nas comunidades e filhos na cidade.

j) Acesso aos serviços e benefícios socioas-


3.6 Terra Indígena
sistenciais – Os relatos recolhidos apon-
Parabubure
tam para a ausência do CRAS nas comu- a) Percepções e conhecimento do PBF – O
nidades. Não foi raro a consultora ouvir Programa Bolsa Família, ou “o Bolsa” como
alguém se referir à lotérica como sendo é chamado pelos Xavante é percebido
como um “dinheiro” a mais e que faz par- Outra fonte de tensão tem sido o aumento
te do conjunto de rendas que são aufe- e redução dos valores a serem recebidos
ridas pelos moradores de cada aldeia: as (em decorrência da inclusão e posterior ex-
aposentadorias, o auxílio maternidade, clusão de famílias indígenas no Plano Brasil
os salários de professores, de agentes de Sem Miséria). Para além do total desconhe-
saúde indígena e de agentes indígenas de cimento acerca do Plano Brasil Sem Miséria,
saúde ambiental. Isso é importante reter, não conseguem entender porque tiveram
segundo a consultora, pois ajuda a enten- os valores do “Bolsa” aumentados e, após
der uma série de outras representações e um certo período de tempo, diminuídos.
comportamentos deles em relação a dife- Com frequência, iniciaram os depoimentos
rentes aspectos do Programa. para esta pesquisa com a pergunta “por que
baixou?”, feita com indignação.
Segundo a consultora, o conceito de po-
breza e a importância do acesso das fa- Outra pergunta frequente feita à consul-
mílias às transferências monetárias; a tora foi “por que tá bloqueado?”, seguida
ausência de apoio dos serviços socioassis- de uma série de interrogações a respeito
tenciais para o caso de filho deficiente; e do tempo em que o próprio benefício fica-
os valores atuais do PBF e as dificuldades rá bloqueado e de explicações a respeito
para atualizar os dados cadastrais tiveram das providências que foram tomadas no
lugar de destaque nas entrevistas realiza- sentido de reverter o processo de blo-
das. Em todos os depoimentos não foram queio e dos resultados, nem sempre posi-
encontradas evidencias de que os Xavan- tivos, dessas ações. Segundo a consultora,
te relacionam o PBF com os temas da edu- os bloqueios têm implicações de ordem
cação, saúde e serviços socioassistenciais. financeira e nas rotinas das aldeias, pois
Isso parece decorrer da associação direta as famílias passam a ter despesas extra
do PBF com dinheiro em espécie. com fretes, pagos para viagens até a sede
do município e também para o vizinho
No que se refere ao acesso ao PBF, os Xa- município de Barra do Garças; realizam
vante demonstram insatisfação e ansieda- deslocamentos que ao final se mostram
de com o quadro de bloqueio constante desnecessários, incluindo as mulheres e
do “Bolsa”, situação que tem causado suas crianças; pagam despesas com ali-
stress e tensões no interior das aldeias mentação fora da aldeia, nas pensões e
visitadas. Para os Xavante, os bloqueios bares locais; e, sem alternativas, acabam
causam muita “dor de cabeça” e são o re- se endividando durante esses processos
sultado de “roubos” ou do tratamento dis- de deslocamento. “Essas são algumas das
criminatório a eles dispensado por parte razões de “muita dor de cabeça” que o
dos agentes públicos locais. “Bolsa” causa aos Xavante”.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 83


Por outro lado, o fato de ter outra fonte de vergonha de ver os índios pelados, na
dinheiro (para além das citadas anterior- época. Mas agora eles falam, mas porque
mente) é motivo de contentamento para agora os índios só usa roupa? Eles dão e
os Xavante e a pergunta mais comum que agora cobram, né?”. Produto das relações
a consultora ouviu foi “o Bolsa vai aumen- de contato, a pobreza é relacional e assi-
tar?”, numa demonstração clara de que métrica, cabendo aos brancos a responsa-
gostariam de poder dispor de mais recur- bilidade de minimizá-la, pois foram eles
sos financeiros e ampliar o leque de ren- que trouxeram para as aldeias certas ne-
das monetárias presente hoje nas aldeias. cessidades. Não se justifica, portanto, que
os não indígenas questionem a existência
Sobre a noção que os Xavante têm a res- de carências, de ordem financeira, nas al-
peito da origem do dinheiro do Programa deias Xavante.
Bolsa Família, a consultora verificou que
há algum conhecimento, embora desi- c) Cadastro Único – Os Xavante desconhe-
gualmente distribuído, de que o dinheiro cem o CadÚnico enquanto meio de acesso
é disponibilizado pelo Governo Federal. a outros programas sociais e sua função de
Nas entrevistas e em conversas ouviu fra- banco de dados e sistema de informações.
ses como a que segue: “Brasília que man- As referências recolhidas pela consultora
da, né, para todo o mundo, todas as famí- são indiretas e surgem em situações em
lias do Brasil, pro índio também”. que eles buscam levar os documentos de
identificação civil na “assistência” para re-
b) Pobreza e escassez – Em relação ao ceberem o “Bolsa da criança mais nova, o
conceito de pobreza, foram encontradas caçula” uma vez que para isso é necessá-
percepções a respeito. Para alguns, a situ- rio “levar os documentos, lá na assistência,
ação em que se encontram é de pobreza, para cadastrar”. Perguntados se conhecem
para outros a riqueza maior está no fato o CadÚnico dizem que sim, que trata-se
de que continuam a praticar suas festas do “cadastro do Bolsa Família”, mas mes-
84 e rituais e que continuarão a ser Xavante, mo fazendo essa associação não têm cla-
não importando “as coisas que branco foi reza a respeito da necessidade regular de
trazendo pra gente”. A pobreza é entendi- informar as alterações na renda e na com-
da como algo que veio de fora, foi trazido posição familiar como forma de atualizar
pelos “waradzu” (“não índios”) e existe na o banco de dados e a concessão de bene-
medida em que é associada aos brancos, fícios. As atualizações cadastrais são reali-
pois os Xavante não podem adquirir itens zadas apenas sob demanda, quando soli-
de vestuário, por exemplo, “por essa parte citadas pelo operador local do PBF, devido
somos pobres”, ou seja, são pobres por- a situações de bloqueio dos benefícios ou
que não dispõem de recursos para adqui- durante os períodos em que a atualização
rir as roupas que foram introduzidas nas cadastral torna-se obrigatória. Vários com-
aldeias pelos brancos: “os brancos, assim, provantes de atualização cadastral foram
vestiram os índios, antigamente, né? De- apresentados à consultora, como prova
ram roupas pra se vestir porque eles tinha de que estavam respondendo, inclusive
com bastante antecedência, aos prazos aos níveis extremos de calor que lá expe-
estipulados pelo responsável por operar rimentam. Outra situação relatada por ela
o PBF, para “fazer o cadastro”. Entretanto, é a das aldeias localizadas em áreas dis-
pôde-se verificar, mesmo após as atuali- tantes daquelas onde existem escolas. As
zações, que avisos nos extratos da CAIXA crianças precisam caminhar durante horas
continuavam a ser entregues solicitando tanto para chegar como para retornar das
que essas atualizações, que já tinham sido escolas: “meus filhos, caminham no sol, na
realizadas, fossem feitas. Outra queixa chuva, duas horas, fica com dor de cabeça,
bastante comum, ouvida pela consultora, fica doente, tirei da escola, não pode ficar
foi de que não adianta levar os documen- doente, não! Por que bloqueia o Bolsa, por
tos solicitados (no caso do nascimento de quê? Por que recebo esta carta? Não tá
crianças, por exemplo) uma vez que não certo, não!”.
percebem qualquer alteração no valor do
benefício recebido. Quanto às condicionalidades da Saúde
(vacinação e acompanhamento da curva
d) Condicionalidades – A educação, no de desenvolvimento das crianças de 0 a 7
sentido da escolaridade na língua por- anos de idade), seu cumprimento por par-
tuguesa, não é percebida pelos Xavante te dos Xavante seria de ordem pragmática,
como diretamente associada ao Programa uma formalidade a ser cumprida para des-
Bolsa Família. Ao contrário, diz a consulto- bloquear o benefício, “leva lá na assistên-
ra, são comuns os depoimentos de chefes cia, o peso e a altura para desbloquear”.
de grupos familiares que apontam para a De qualquer forma, foi constatado que a
possibilidade de retirarem suas crianças vacinação e a pesagem das crianças são
da escola como forma de se verem livres realizadas com regularidade e já fazem
“dessa dor de cabeça, essa frequência es- parte das rotinas das mães e das crianças.
colar. Só pede lá na assistência”. Ao que Entretanto, essas ações são anteriores à
parece, diz a consultora, a frequência es- chegada do PBF nas aldeias, não tendo
colar é mais um documento para ser le- ocorrido qualquer alteração significativa
vado para a “assistência”. Questionados na execução dessas atividades em função
sobre a importância das crianças frequen- do PBF. Essas observações decorrem de
tarem a escola, eles retrucam “naquele acompanhamento e informações colhi-
calor, não aprende nada, precisa ventila- das pela consultora desde o ano de 2006
dor, isso precisa” - uma indicação de que em Parabubure. De outra parte, a equipe
percebem claramente que diante das con- da NC Pinheiro (2013) colheu depoimen-
dições extremamente precárias das es- tos indicando que as ações de saúde nas
colas das aldeias não faz sentido manter aldeias no DSEI Xavante não ocorrem de
ali as crianças com regularidade uma vez maneira integral e extensiva. Há proble-
que não conseguem se concentrar devido mas de integração entre a coordenação

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Resultados de Cada Estudo de Caso 85


do PBF em Barra do Garças (situada na Se- Ou seja, além da responsabilidade pelo
cretaria Municipal de Assistência Social), fluxo da informação do nível local aos
a Secretaria Municipal de Saúde e a co- níveis superiores do sistema recair fun-
ordenação de saúde (DSEI), o que agrava damentalmente nos ombros das famílias
o quadro de precário acompanhamento indígenas, preocupadas com as possíveis
das condicionalidades de saúde e o fluxo consequências que a desinformação pode
das suas informações - não há um Comi- gerar, como, por exemplo, o bloqueio do
tê Intersetorial do Programa formalmente dinheiro, a coisa é tratada de maneira me-
instituído. A seguir, destacamos um trecho ramente burocrática nas instâncias insti-
do relatório da NC Pinheiro onde seus tucionais. Não foi identificado qualquer
autores buscam dar uma ideia de como tipo de monitoramento, controle ou bus-
a informação sobre as condicionalidades ca ativa pelas famílias beneficiárias, e os
de saúde das famílias indígenas aldeadas registros de acompanhamento são prati-
estão sendo tratadas em Barra do Garças camente inexistentes. É sintomático ouvir
(situação semelhante foi encontrada em do coordenador de saúde do PBF em Barra
Campinápolis): do Garças falar que os casos de descum-
primento das condicionalidades estão as-
“as famílias indígenas precisam des- sociados às dificuldades que estas famílias
locar-se com seus próprios recursos enfrentam para se deslocarem de suas al-
até um posto de saúde da rede do deias e entregar a documentação que com-
SASISUS [Subsistema de Atenção à prova que cumprem a sua parte (p. 111).
Saúde Indígena do SUS] dentro das
aldeias (importante lembrar que
A gestão municipal do Programa respon-
apenas parte das aldeias dispõe de
um posto de saúde). No posto de sável pelas ações de atenção e promoção
saúde o enfermeiro ou técnico pesa, da população Xavante de Parabubure está
mede e checa a carteira de vacina, localizada na Secretaria de assistência
estes dados são anotados em um Social de Campinápolis. Segundo NC Pi-
86 cartão (papel comum onde há cam- nheiro, o gestor é responsável por todos
pos para preenchimento dos dados), os procedimentos ligados ao Programa,
este cartão é entregue ao indígena desde o cadastramento e recadastramen-
que deve levá-lo pessoalmente até to das famílias, digitação dos cadastros,
a sede da coordenação de saúde do atendimento dos beneficiários, entre ou-
PBF localizado no centro de Barra do tras atividades. Ou seja, a gestão do Pro-
Garças. Na coordenação de saúde
grama concentra-se em uma única pessoa.
os dados dos cartões entregues pe-
Da mesma forma, a coordenação de saúde
los beneficiários, são utilizados para
do PBF conta apenas com a coordenado-
preencher os mapas de acompanha-
ra para realizar todas as tarefas que sur-
mento que posteriormente são digi-
tados no Sistema de Gestão do PBF gem de um universo formado pelas 853
na Saúde pela coordenadora.” (pp. famílias indígenas beneficiárias (dados de
108-109). 2013) e outras tantas que querem sê-lo.
e) Aspectos do pagamento e recebimen- dos da Lotérica já chegaram a cobrar entre
to do benefício e sua logística – O recebi- R$10,00 (dez reais) e R$20,00 (vinte reais)
mento dos benefícios do Programa Bolsa como meio de efetivar o pagamento dos
Família só é possível por meio do deslo- benefícios aos não titulares dos cartões
camento das mulheres, com seus maridos do Bolsa.
e filhos, para a sede do município; e que
esse deslocamento implica, necessaria- f) Relações com o poder público, comércio
mente, no pagamento de “frete”. Há, por- e sociedade local - Os relatos obtidos e ob-
tanto, uma associação direta do dinheiro servações feitas levam a concluir que os
do Programa Bolsa Família com o paga- Xavante estão descontentes com a pres-
mento do frete. Em outras palavras, trata- tação dos serviços de todas as instâncias
-se do recebimento de um dinheiro que locais e do poder público relacionadas
já vem associado a uma despesa: “o Bolsa com o PBF: “a Assistência”, a Lotérica, “o
Família é pouquinho, paga o frete, não dá Postinho” (Posto de Saúde), a Escola. No
pra nada.” caso da Lotérica e da Assistência, se refe-
rem a ela como sendo instituições onde as
Os “freteiros” chegam às aldeias na noite pessoas se relacionam com base no pre-
anterior e, pela manhã, “carregam” as car- conceito demonstrado: “eles não gostam
rocerias de seus veículos com a lotação do Xavante não”, “eles têm preconceito”,
alcançando o limite máximo, tendo sido “tá sempre bravo com a gente”, “não dá
observado situações perigosas, como o um sorriso, não!”. Houve situações de
transporte de pessoas ocorrendo junta- constrangimento de mulheres Xavante e
mente com o transporte de botijões de de grande irritação e nervosismo dos fun-
gás de cozinha. Ainda, que em geral os ín- cionários no atendimento aos indígenas.
dios retornam no mesmo dia para a aldeia, Foram relatadas várias situações de re-
geralmente no período da tarde, e então tenção de cartões e documentos pessoais
os caminhões já podem receber uma nova por comerciantes locais. Em todas essas
“carga”, pois encontram outros grupos fa- situações as detentoras dos cartões pos-
miliares prontos para seguirem até a sede suíam dívidas acima do valor do benefício
do município para receber o “dinheiro do do PBF. Notas de vendas, emitidas pelos
Bolsa”. próprios comerciantes, com os valores das
compras efetuadas e de quanto os Xavan-
Relatos colhidos pela pesquisadora in- te estavam devendo foram apresentadas
dicam que diante da insatisfação dos pelas mulheres como forma de comprovar
Xavantes em relação à necessidade de os próprios relatos. Mercados locais man-
deslocamento das mulheres até a sede tém uma forma peculiar de se relacionar
do município e da tentativa dos chefes de com os eles – trata-se da cobrança siste-
família para sacar os benefícios, emprega- mática de um “sobre-preço”: na venda

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Resultados de Cada Estudo de Caso 87


para os Xavante, todos os itens da cesta mentos em que as compras são efetuadas
básica de alimentos são acrescidos de e porque elas dizem apenas “ele compra”.
um valor adicional. Os Xavante conhecem
essa prática, mas se sentem impotentes Como em outros lugares, aqui a titulari-
para reclamar devido à ausência de pre- dade dos cartões é majoritariamente das
ços nas mercadorias (nas prateleiras) e/ou mulheres, sendo raros os casos de cartões
a não emissão de nota fiscal, com preços no nome dos chefes de família, fato que
unitários, valor total e itens das compras é revelado com constrangimento. Para as
devidamente discriminados. De modo ge- mulheres, a maior dificuldade advinda da
ral, observou a consultora, o atendimento titularidade dos cartões refere-se à ne-
às mulheres, no balcão, é realizado de ma- cessidade de deslocamentos para a sede
neira tensa, por um atendente e um auxi- do município durante os últimos meses
liar e as desconfianças são publicamente de gravidez ou no período em que estão
anunciadas, em voz alta. amamentando, para receber o dinheiro
do Programa Bolsa Família. O incômodo
Segundo a NC Pinheiro, até o final do ano de maior refere-se às condições de transporte
2013 não havia sido criado o comitê inter- (e das estradas) a que tem que se subme-
setorial de gestão do PBF ou a denominada ter durante o percurso. Queixam-se ainda
Instância de Controle Social (ICS). Pratica- que devido às longas esperas na Lotérica,
mente não existia qualquer interlocução muitas vezes ficam com fome juntamente
entre a gestão e a coordenação de saúde, com suas crianças, e se sentem impotentes
nem realizadas reuniões ou discussões en- diante da situação, pois precisam aguardar
tre as áreas para planejamento das ações de para receber o dinheiro, do qual dependem
gestão do Programa. Também não existia in- para se alimentar. Muitas mulheres men-
teração entre a gestão municipal de saúde cionaram ainda a preocupação com o uso
do PBF e a saúde indígena sobre o acompa- de bebidas alcoólicas por parte de seus
nhamento das condicionalidades de saúde filhos e parentes adultos enfatizando o in-
88 dos beneficiários indígenas aldeados. centivo e facilitação do comércio local para
que esse consumo ocorresse.
g) PBF na perspectiva de Gênero – Muitas
mulheres se mostraram contentes com a h) Produção e segurança alimentar e nutricio-
titularidade do cartão do Programa Bol- nal – São comuns os depoimentos de que o
sa Família, pois, segundo elas, é possível “Bolsa” é “pouco”, “pouquinho” e serve ape-
“comprar um pouco de mistura” , “vai33
nas para comprar “alguma mistura”.
para Campinápolis”, “compra mochila para
o filho”. Ao mesmo tempo, com os dados e
observações obtidos, não é possível afir-
33. A expressão “mistura” é utilizada regionalmen-
mar que tomam autonomamente as deci- te para designar o acréscimo de alguma quantidade de

sões a respeito dos itens adquiridos com o carne na alimentação cotidiana. Por se tratar de pequena
quantidade e para que todos que partilham da mesma
dinheiro do PBF. Isso porque os homens as refeição possam ter acesso a essa carne é necessário que
acompanham e estão presentes nos mo- ela seja “misturada” com os outros alimentos.
Foi observado que durante os dias em que dos e recusam-se a responder se interfe-
se deslocam para a cidade para receber os rem nas prioridades da lista de compras.
benefícios do PBF os Xavante realizam
compras de alimentos na rede de comér- j) Acesso aos serviços e benefícios socioas-
cio local. A cesta adquirida, segundo eles, sistenciais – Para os Xavante, o CRAS é a
“acaba e não tem dinheiro para comprar”, “assistência” e desconhecem os serviços
ou seja, termina em alguns dias e não é e outros benefícios socioassistenciais para
possível repô-la. O único alimento com- além do PBF. É para lá que levam os do-
prado em grande quantidade é o arroz cumentos da família, “leva documento e
branco e não há comercialização de ali- recebe o Bolsa”. É ainda o lugar onde são
mentos no interior das aldeias, uma vez realizados os desbloqueios dos benefí-
que a produção das pequenas roças dos cios – “vai na Lotérica, tá bloqueado, vai
grupos familiares destina-se apenas para na assistência, fala com X, pra desbloquear.
o consumo próprio. Há consumo (alimen- Demora, não desbloqueia logo não”. Para
tos comprados) de arroz branco, pães e s Xavante, o CRAS está ligado tanto ao re-
refrigerantes. Além desses alimentos, eles cebimento do dinheiro do Bolsa quanto a
adquirem massa para macarrão, óleo, açú- todas as ações que se fizerem necessárias
car e sal. para que esse recebimento ocorra. Mas
apesar de possuir instalações novas, am-
Com o advento das primeiras chuvas, en- plas e adequadas, do ponto de vista da es-
tre os meses de dezembro e janeiro, os Xa- trutura física, os Xavante não reconhecem
vante estiveram bastante ocupados com a ser esse o lugar de acolhimento de suas
preparação de suas roças para o plantio da demandas. Ao contrário, são comuns os
mandioca, feijão e arroz. A colheita de abó- relatos recolhidos pela consultora de que
boras era abundante e muitos esperavam não são bem atendidos e de que estão sen-
igual resultado na colheita do milho que, à do enganados com relação aos valores dos
época da pesquisa, ainda “está pequeno”. benefícios recebidos. Outro dado relevante
levantado é que nos comentários dos Xa-
i) Utilização do benefício e usos do PBF – vantes, os termos “assistência” e “CRAS”
De maneira geral, os recursos do Programa são intercambiáveis. Por outro lado, diz que
Bolsa Família são utilizados para a compra aos Xavante não está clara a relação dessa
de alimentos. Como os deslocamentos instância de serviço público com o ato de
para a cidade e as compras nas mercearias desbloqueio do recurso, ao mesmo tempo
e mercadinhos locais são feitas em con- em que para alguns o lugar onde são reali-
junto, não foi possível identificar quem zados os desbloqueios é na “assistência”,
decide a respeito dos itens adquiridos. outros atribuíam isso a Lotérica – a lotérica
As mulheres costumam dizer “é ele quem e seus funcionários apareceriam em cena
compra”, em referência aos próprios mari- como agentes com poder de decidir sobre

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Resultados de Cada Estudo de Caso 89


o bloqueio e o desbloqueio do recurso. Por relação da população Guarani do Jaraguá
fim, ressalta que os Xavante gostariam de com dinheiro. Cita, por exemplo, o fato dos
ter atendimento diferenciado, pois pen- programas de transferência de renda não
sam que o não atendimento das demandas serem novidade para essa população que
apresentadas aos funcionários da “assis- vive na periferia da cidade de São Paulo.
tência” decorre fundamentalmente do des-
conhecimento absoluto desses funcioná- Os entrevistados pela equipe da NC Pi-
rios em relação à língua Xavante. nheiro (2013) acreditam que, para os
Guarani, o PBF é considerado essencial.
Em relação à aplicação dos recursos do Ín- Isso tanto pelo recurso financeiro ofereci-
dice de Gestão Descentralizada (IGD) que do pelo Programa para a subsistência das
vai para o município de Campinápolis, a famílias, que não possuem outras fontes
NC Pinheiros verificou que esse é decidi- de renda, quanto pelo reforço que o pro-
do pela Secretária de Assistência Social do grama trouxe aos serviços de prevenção e
município e a coordenação do CRAS; que tratamento de doenças, ao associá-lo com
não chegam quaisquer recursos para a Se- condicionalidades de saúde e aportar re-
cretaria Municipal de Saúde; e que o ges- cursos complementares.
tor municipal do PBF não participaria das
discussões sobre a aplicação dos recursos A percepção da maior parte dos morado-
e desconhece onde são aplicados ou se há res de Jaraguá, entretanto, é de que é difícil
distribuição destes recursos para as áreas acessar o PBF. A percepção comum é a de que
de saúde e educação. os problemas de bloqueio ou suspensão do
benefício se relacionam com atualizações
cadastrais ou a mudanças de endereço e si-
3.7 Terra Indígena Jaraguá tuação familiar. Os fatores que contribuem
a) Percepções e conhecimento do PBF – para a consolidação dessa percepção são: a
Com relação à percepção e significados consciência de que muitos têm documentos
90 do PBF para a população pesquisada, o considerados inconsistentes pela burocracia
mais marcante é que o PBF é visto como e a existência de cadastramentos que em-
“o dinheiro das crianças” e, na medida do perram, ocasionando demora no recebimen-
possível, a aplicação do recurso deve estar to dos cartões de benefícios. Há também um
a elas dirigido. A consultora especula que caso de beneficiária que recebeu o cartão há
isso pode ser decorrência da exigência de meses, mas que ainda não recebeu nenhu-
cumprimento das condicionalidades de ma renda. Esses casos provocam insatisfação
saúde e educação que envolve as crian- com o processo de acesso ao PBF e acarretam
ças. Por outro lado, pode contribuir para uma sensação de injustiça e de falta de crité-
isso a centralidade que as crianças têm na rios objetivos.
vida da comunidade. Sobre os significados
do Programa e as mudanças que ele pode O grau de conhecimento dos moradores
acarretar no cotidiano da comunidade, a das comunidades sobre os critérios de
consultora diz que o PBF não inaugura a acesso ao PBF é o seguinte: sabe-se que
ele é dirigido às pessoas de baixa renda, na etapa de cadastramento do processo
mas não se tem clareza sobre os limites de acesso aos programas sociais.
de renda per capita familiar; e diz-se que é
para aqueles que possuem filhos, sendo o c) Condicionalidades – A consultora diz
nascimento de primeiro bebê o momento que o cumprimento das condicionalida-
certo para a família recorrer ao benefício. des de educação e de saúde referentes
Os moradores veem o PBF como um direi- às crianças não é um problema para os
to que eles têm, assim como os não índios moradores da TI Jaraguá. Como nas outras
e demais cidadãos. Mas é visto como um duas Terras Indígenas situadas no interior
direito que se tem a partir do nascimento do perímetro do município de São Paulo,
dos filhos. em Jaraguá existe uma unidade básica de
saúde (UBS). O posto de saúde da aldeia
Os moradores da TI consideram os progra- atende a todas as crianças com vacina-
mas sociais incapazes de solucionar seus ção, pesagem e medição, sendo isso de
problemas e a principal sugestão apre- responsabilidade das agentes indígenas
sentada pelos(as) beneficiários(as) foi a de saúde - elo entre a comunidade e as
de aumento no valor mensal do benefício equipes de saúde - que se mostraram bem
como meio para aumentar o impacto do familiarizadas com as regras referentes ao
PBF na vida das famílias. Esta percepção calendário vacinal e pré-natal. O posto de
de que o valor é baixo não causa desinte- saúde da aldeia atende a todas as mulhe-
resse na demanda pelo Programa. O que res gestantes e há o exame de pré-natal
impacta negativamente a demanda são disponível.
as percepções relativas à falta de solução
para problemas de acesso ou de gestão do Segundo os pesquisadores da NC Pinheiro
PBF. (2013), as equipes multidisciplinares cos-
tumam se articular com os pajés (agentes
b) Cadastro Único – Todos os interlocu- responsáveis tradicionalmente pela ma-
tores indicaram saber da necessidade de nutenção da saúde individual e coletiva
recadastramento ou atualização cadastral. entre os Guarani), o que resultaria numa
Informaram, ainda, que recebem corres- melhor aceitação das ações de saúde e
pondência pelos Correios avisando sobre uma maior proximidade com a comuni-
prazos e necessidade de atualização. Por dade. Mas, ao que parece, baseado nos
outro lado, dizem que os problemas com o depoimentos reunidos e conversas tidas
cadastro único são muitos e variados, sen- ao longo da presente investigação de
do esse o principal “gargalo” percebido. campo, essa articulação é ainda incipien-
Problemas relacionados à documentação te. Há conversas nesse sentido, em torno
são apresentados como o principal óbice da chamada Rede Cegonha, por exemplo,

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Resultados de Cada Estudo de Caso 91


mas nada ainda está efetivado em termos te três quilômetros da aldeia e são aces-
de apoio concreto da SESAI à presença de síveis por caminhada ou por transporte
rezadores e parteiras no sistema de saúde público de ônibus.
nos hospitais.
e) Relações com o poder público, comér-
Os filhos vão à escola todos os dias, a es- cio e sociedade local – Aparentemente,
cola é indígena, há material didático na há uma legitima desconfiança na aproxi-
língua, há distribuição de material escolar mação com os gestores federais, estadu-
e não falta merenda. As diferenças foram ais ou municipais, em especial com a área
relacionadas a eventuais bloqueios de be- de regularização fundiária, vista como
nefícios por descumprimento da condicio- permeável a interesses econômicos e/ou
nalidade de educação e os relatos aponta- empresariais.
vam para problemas quando há mudança
de aldeia, o que demonstra que o sistema Ninguém sabe quem é o responsável pelo
de acompanhamento de matrículas e fre- PBF no município. Ao serem questionados
quência escolar não é sensível o suficien- sobre se houve mudança na relação com
te de modo a incorporar um traço bastante os comerciantes a partir do Programa Bol-
documentado da cultura e religiosidade sa Família, muitos disseram que sim e indi-
Guarani, qual é a sua grande mobilidade34. caram como razão o fato dos comerciantes
No perímetro da aldeia há duas escolas: e ambulantes saberem que eles têm di-
uma de educação infantil e outra de en- nheiro. Há inclusive uma pessoa que ofe-
sino fundamental, e aparentemente não rece cesta básica na aldeia para pagamen-
há problemas de acesso ou transporte to posterior em caso de beneficiário do BF.
de alunos. O mesmo não ocorre em rela- Afirmaram que não há retenção de cartão
ção aos egressos do ensino fundamental como garantia no caso. Também não há
e que deveriam cursar o ensino médio, conhecimento sobre espaços de discus-
isso apesar da existência de escolas em são entre governo e sociedade civil como
92 bairros acessíveis por transporte público. as Instâncias de Controle Social (ICS). A to-
A pesquisa não conseguiu verificar se as talidade das pessoas disse que não sabe
dificuldades sentidas são principalmente do que se trata e não citaram alguém que
a discriminação “nas escolas de branco” e faça esse papel entre os indígenas. Diz-se
o custeio do transporte público ou outros sobre a prática de “procurar as lideranças”
fatores. em caso de problema. Mas não é atribuído
a ninguém o papel de fiscalização ou de
d) Aspectos do pagamento e recebimento Controle Social.
do benefício e sua logística – À exceção de
uma pessoa que prefere fazer suas com-
pras no bairro da Lapa, todos os interlocu-
tores disseram que vão até a lotérica e co-
mércio próximos para saque do benefício 34. Sobre a relação mobilidade, cultura e religiosidade
e compras. Estes distam aproximadamen- entre os Guarani cf. SCHADEN, 1974; PISSOLATO, 2007.
Em relação ao acesso aos serviços públi- visto que se alimentam principalmente
cos, não há saneamento básico nas re- de doações e não tem controle sobre o
sidências e o abastecimento de água é que lhes é doado. As famílias dependem
público, mas insuficiente e não chega a dos empregos relacionados à comunida-
totalidade das residências. Uma grande de (como agentes de saúde, professores
preocupação é a poluição da lagoa que há e outros), da venda da mão-de-obra em
no território da aldeia. Ela já foi piscosa e serviços instáveis, e do comércio de ar-
hoje é visivelmente insalubre. Há coleta tesanato. Há uma baixíssima inserção da
pública de lixo. Lideranças da aldeia en- população no mercado de emprego for-
volvem jovens na promoção de ações de mal. As atividades remuneradas, quando
limpeza de lixos e detritos, oportunidade existem, são precárias e de baixo assala-
em que falam sobre como toda aquela su- riamento. Isso se deve a incompatibilida-
jeira vem das mercadorias e do modo de de entre os saberes dos mais velhos e os
vida do juruá (“branco”) e que, portanto, requeridos por um mercado de trabalho
são signos de uma economia predatória urbano. Lideranças levantam a preocupa-
que contamina o tekoa (também grafado ção, ainda, com o destino dos mais jovens
tekoha, significa “o lugar do modo de ser que não estão passando por um aprendi-
guarani”) e o modo de vida guarani. zado com relação à produção de uma boa
vida nos moldes indígenas, e tampouco
f) PBF na perspectiva de Gênero – O PBF do aprendizado de novas habilidades
é visto como destinado às mulheres. Por compatíveis com a vida de uma aldeia em
outro lado, ouviu de atores externos à co- meio ao urbano (seja de formação para os
munidade relatos sobre a existência de trabalhos relacionados com a comunidade
conflitos e violências dirigidas às mulhe- e executados por não-índios atualmente,
res. Mas, pelo que a consultora relata, há por exemplo).
uma organização política delas na forma
de uma espécie de conselho que partici- Além dos programas sociais, a fonte de
pa das Assembleias e que exige soluções renda mais comum é a venda de artesana-
para alguns casos de violência contra a to. Mas os moradores afirmam que o valor
mulher. conferido a esses artesanatos pela popu-
lação de São Paulo é ainda menor do que
g) Produção e segurança alimentar e nu- em aldeias de outras regiões. Há também
tricional – A Terra Indígena Jaraguá não os trabalhos remunerados na aldeia que
oferece o mínimo necessário em terra e estão distribuídos por diferentes residên-
água para qualquer projeto de autonomia cias: merendeiros/cozinheiros (cinco) que
produtiva. Não há produção de alimentos cuidam do Centro de Educação e Cultura
na Terra Indígena. O padrão de segurança Indígena (CECI), além dos cargos de coor-
alimentar é absolutamente insatisfatório denadores (dois), educadores (seis) e vi-

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Resultados de Cada Estudo de Caso 93


gias (três em cada escola). Existem ainda xima a “comprar o que está faltando” e os
os cargos de limpeza (quatro, nas duas es- exemplos dados de maneira monossilábi-
colas). Existem três agentes indígenas de ca são remédios, chinelos e comida. Fre-
saúde (AIS), um agente indígena de sane- quentemente são citados os gastos com
amento (AISAN) e dois motoristas que tra- as crianças.
balham na equipe da Unidade Básica de
Saúde da aldeia. Há, ainda, os professores i) Acesso aos serviços e benefícios socioas-
da escola de ensino fundamental. Outro sistenciais – As famílias indígenas conhe-
trabalho constante é a apresentação do cem o CRAS e já foram atendidas nessas
coral de crianças e de instrumentistas, por unidades. O motivo dos atendimentos re-
meio do qual recebem, na maior parte das latados foi sempre o CadÚnico. Não houve
vezes, pagamento em doação de alimen- qualquer referência a outra atividade de-
tos. A consultora também menciona como senvolvida pelo CRAS específica para os
fonte de renda a venda de picolé de sa- indígenas. Na percepção dos entrevistados,
quinho e uma pequena venda mantida por o CRAS está localizado em lugar de fácil
um casal. acesso e não relataram nenhuma resistên-
cia a serem atendidos. Relataram visita de
h) Utilização do benefício e usos do PBF – técnicos do CRAS (ou equipe volante) por
Quando questionado como é utilizado o ocasião do primeiro cadastramento e em
recurso do PBF, a resposta é sempre pró- contextos de atualização cadastral.

94
4
ANALISANDO OS
ACHADOS POR BLOCO
TEMÁTICO
Num esforço de síntese, a se- A pesquisa também aponta para
guir reunimos e comentamos os um “baixo conhecimento” da
“achados” apresentados na seção população indígena em geral so-
anterior reunidos considerando bre o PBF. No plano discursivo
a divisão temática estabelecida não foram encontradas pessoas
por ocasião da elaboração do que pudessem definir, descrever
Roteiro Básico Comum (RBC). Os e explicar o programa – ou seja,
nove blocos temáticos constitu- seus objetivos, regras, procedi-
ídos serviram de referência dos mentos, como obter ajuda para a
estudos de campo por, ao menos, resolução de problemas no per-
oitenta dias nas Terras Indígenas curso que vai do cadastramento
selecionadas. ao saque do recurso financeiro
etc. – nos mesmos moldes como
ele é compreendido, descrito e
4.1 Percepções e explicado discursivamente pelos
significados acerca seus operadores, por exemplo,
do PBF no MDS em Brasília, ou expresso
A proposta de repasse de recur- nos textos dos manuais e docu-
sos financeiro é bem aceita pela mentos oficiais. Mas isso não sig-
população. Podemos dizer que nifica que as pessoas não tenham
há uma forte associação do di- suas explicações e que no dia-a-
nheiro repassado pelo Programa -dia não busquem se comportar e
com a parcela infantil e jovem ajam de forma a acessar e garan-
da população, como sendo o di- tir a continuidade do acesso ao
nheiro “das crianças”, devendo recurso. Isso poderá ser compre-
ser destinado prioritariamente endido nos blocos temáticos que
a dar-lhes condições principal- seguem.
mente para frequentar a escola.
Também como um dinheiro desti- O processo investigativo tam-
nado às mulheres, para que fique bém revelou que há diferentes
responsável por esse objetivo, e níveis de conhecimento dentro
a outros associados ao bem estar das comunidades sobre a relação

95 das crianças. do recurso financeiro e o MDS e


o Governo Federal. A ponto de haver sido longo do tempo. Tentar compreender essa
identificada certa “confusão de compre- “confusão” pressupõe a incorporação no
ensão” sobre o papel das lotéricas e dos quadro explicativo da análise do tipo de
comerciantes na operacionalização do sis- interação face a face e das práticas recípro-
tema social constituído para viabilizar uma cas de busca de autonomia e dependência
renda mínima às famílias e o seu acesso a entre os atores e coletividades em cena,
direitos básicos, especialmente à saúde e a especialmente entre os indígenas e os co-
uma educação escolar de qualidade. Para merciantes e agentes públicos ao longo do
além das limitações na/da capacidade hu- tempo. Como veremos mais a frente, esta
mana para conhecer o conjunto das causas situação também é fruto da forma como
e consequências ramificadas das ativida- vêm operando contextualmente os agen-
des em que está empenhada, isso pode ser tes responsáveis locais dos CRAS e CREAS.
explicado quando se olha contextualmen-
te, para o tipo de integração social que se Há uma crítica generalizada sobre o valor
dá no plano local, e que produz e reproduz do PBF ser insuficiente, sobretudo das fa-
significados e relações “naturalizadas” ao mílias com grande quantidade de filhos.

TERRA INDÍGENA PERCEPÇÕES E SIGNIFICADOS ACERCA DO PBF


• Baixo conhecimento sobre o PBF. Além de ser um meio para se relacionar com os kupen
(não-indígenas) e para adquirir os bens feitos por eles, receber o benefício é considerado
Porquinhos
fundamentalmente um direito. Ou melhor, um dever daqueles (os kupen)em relação aos
indígenas (mehin).
• O PBF é concebido como um benefício concedido à população para as crianças e jovens,
o que é associado fortemente à garantia da permanência deles na escola o maior tempo
Takuaraty/Yvykuarusu
possível e em boas condições. O dinheiro é considerado de uso exclusivo das mulheres e
destinado aos filhos.
• O dinheiro do PBF é percebido como sendo “das crianças”, ou seja, um recurso que é
repassado pelo governo para ser utilizado com os filhos. Se as famílias não observam esse

96 padrão, em geral isso decorre de estarem em situação de vulnerabilidade.

• A partir do PBF e do novo esquema das cestas de alimentos, diretamente às famílias,


Dourados
dá-se, pela primeira vez, uma distribuição massiva de recursos do Estado sem nenhuma
intermediação dos capitães introduzidos pelo antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI).

• Para boa parte dos beneficiários da TI Dourados, o PBF é uma espécie de “caixa-preta”,
de funcionamento misterioso.
• Baixo conhecimento sobre o funcionamento do PBF, agravado pela segmentação das uni-
dades que operam o Programa no município, em bairros díspares da cidade, com constantes
mudanças de endereço e de funcionários da linha de atendimento.

• O PBF e o recebimento do recurso em si são valorizados positivamente pela população


indígena, isso apesar dos altos custos que implica o acesso à maior parte das famílias bene-
Alto Rio Negro
ficiárias (gastos com combustível e manutenção física durante os longos percursos fluviais
e com estadia na cidade) e os múltiplos descaminhos que se interpõem entre a família
beneficiária e o efetivo recebimento do recurso.

• Encontrada completa incompreensão do Programa, de por quê e como resolver os tantos


problemas que vão se acumulando sem resolução.
• “o Bolsa”, como é chamado pelos Xavante, é percebido por eles como um dinheiro a mais
e que faz parte do conjunto de rendas que são auferidas pelos moradores de cada aldeia,
como as aposentadorias, o auxílio maternidade, e os salários de professores, de agentes de
saúde indígena e de agentes indígenas de saneamento.

• Para além do total desconhecimento acerca do Plano Brasil Sem Miséria, não conseguem
entender porque tiveram os valores do “Bolsa” aumentados e, após um certo período de
Parabubure tempo, diminuídos.

• Ter esta fonte de dinheiro é motivo de contentamento e a pergunta mais comum ouvida
foi “o Bolsa vai aumentar?”

• A respeito da noção de origem do dinheiro do PBF, foi dito por alguns entrevistados e
ouvido em conversas frases como a que segue: “Brasília que manda, né, para todo o mundo,
todas as famílias do Brasil, pro índio também”.

• O dinheiro do PBF é pouco, mas “é certo” e tem continuidade. A família pode planejar.
Gera um estado, um sentimento de “segurança monetária”.

• Tirando as “lideranças” que andam por Brasília, que participam dos debates e reuniões
sobre políticas públicas para povos indígenas etc., as demais pessoas não associam o PBF
com Brasília.
Barra Velha

• Manifestam curiosidade especialmente com a forma como é feito o cálculo do benefício


e porque ou como ocorrem reduções. Querem compreender como pode haver diferença de
valor entre famílias com características semelhantes.

• Não se identificam como pessoas em situação de “pobreza” ou “pobres”.

• O PBF é considerado um continuador da política do programa “Renda Mínima” do governo


estadual.

• O BF é visto como algo “do Governo”.

• É algo positivo, bem visto, mas sua operação é vista como dependente da vontade e dos
Jaraguá
humores dos gestores governamentais.

• É geralmente associado como destinado às mulheres.

• A utilização do recurso é essencialmente familiar; não há uso coletivo, não reúnem o


dinheiro para algo maior do que atender às necessidades individuais das famílias.

4.2 Cadastro Único


Há pouco conhecimento disseminado en- na forma de comunicação e de repasse de
tre a população sobre o que é o Cadastro informação sobre o Programa e o Cadastro
Único (CadÚnico) e que ele é a porta de en- na TI, e que isso passa pela não priorização
trada para outras políticas além do PBF. Pa- desse assunto pelas unidades do SUAS que
rece estar havendo, no mínimo, uma falha estão em contato direto com a população.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 97


A exigência demasiadamente rígida de feita aos indígenas pelos operadores lo-
documentação feita pelos agentes lo- cais do CadÚnico, pode-se afirmar que
cais do PBF à população está compro- ocorrem falhas no reconhecimento das
metendo o acesso desses ao Programa. informações declaradas pelos beneficiá-
No Alto Rio Negro, como em outras Ter- rios. O caso analisado com a SENARC não
ras Indígenas, não está sendo aceito o parece ser isolado, pois faz parte de uma
RANI como documento que credencia a categoria de situações recorrentes, em
pessoa a ter acesso ao Cadastro. São exi- que os operadores pressionam os decla-
gidos documentos que para o contexto rantes com perguntas que lhes causam
local cria mais barreiras que proporciona constrangimento, até obterem respostas
o acesso da população alvo aos benefí- que lhes pareçam aceitáveis. Assim uma
cios do Programa. declaração forçada com tal procedimento,
referente a um ganho eventual (temporá-
A análise de um desses casos, com auxí- rio ou pontual) pode ser registrado como
lio da SENARC, permitiu a uma consultora renda permanente, podendo implicar em
identificar que havia uma declaração de prejuízo para o declarante. Parece ser caso
renda no cadastro que a família afirmava de verificação ou que alguma medida seja
não ter. Pelas entrevistas que realizou e a tomada para que não ocorra mais esse
observação direta que fez da abordagem tipo de abuso.

TERRA INDÍGENA CADASTRO ÚNICO

• O termo “Cadastro Único” é desconhecido, bem como que outros programas sociais
poderiam ser acessados via CadÚnico.

• Reclamam que não houve qualquer consulta prévia sobre o PBF ou sobre o CadÚnico
Porquinhos
e que o CRAS/CREAS não cumpre a função de informar.

• Identificam quando o cartão é bloqueado através dos “patrões”, e o motivo sempre é

98 a atualização do Cadastro.

• O CadÚnico não é bem conhecido pelos Guarani e Kaiowá, apesar de ouvirem falar
no assunto e de saberem de sua existência.

• A maioria associa o CadÚnico apenas ao PBF e mais especificamente às atualizações


frequentes para as quais são convocados no CRAS.

• O relacionamento com os atendentes do PBF é alvo de muitas criticas. A grande


Takuaraty/Yvykuarusu
maioria dos beneficiários afirma que não esteve à vontade na hora da entrevista e foi
incitado a assumir uma determinada renda mensal. Há problemas de comunicação ao
longo dessas entrevistas, que podem acarretar erros e mal-entendidos que afetam
diretamente o valor do benefício.

• Dificuldade de tratar o caso dos “filhos de criação” nas regras atuais de funciona-
mento do Programa Bolsa Família.
• Uma parcela considerável da população continua excluída do PBF e outros “benefícios
sociais”; às vezes, nem a cesta básica da FUNAI chega até elas, e tudo indica que um dos
principais fatores para que isso ocorra são as excessivas exigências de documentação, além
das limitações logísticas e domínio linguístico.

• Foi identificado um evidente descompasso entre as exigências locais de documento


Dourados
para obter o PBF e o que é efetivamente indicado pelo MDS. O RANI não vem sendo
aceito como documento de identificação, e para chegar a tirar o RG civil, alguns indíge-
nas têm que, antes, providenciar três outros documentos, gerando custos adicionais.

• Dificuldade de tratar o caso dos “filhos de criação” nas regras atuais de funciona-
mento do Bolsa.
• A ideia de que apenas aqueles que possuem “documentação completa” podem
acessar o Programa é generalizada, apesar das disposições em contrário do cadastra-
mento diferenciado que no caso dos povos indígenas validam o RANI. A exigência de
documentação para o cadastramento merece mais atenção de parte do MDS.
Alto Rio Negro
• Na prática, o RANI não tem validade efetiva para o acesso a praticamente nenhuma
política pública, quando direcionada a povos indígenas. Quando muito, ele é um dos
documentos a serem apresentados, sendo por si só insuficiente à completude dos
processos burocráticos.
• Desconhecem o CadÚnico enquanto meio de acesso a outros programas sociais e
sua função de banco de dados e sistema de informações.

• Perguntados se conhecem o CadÚnico dizem que sim, que trata-se do “cadastro do Bolsa
Família”, mas mesmo fazendo essa associação não têm clareza a respeito da necessidade
Parabubure regular de informar as alterações na renda e na composição familiar como forma de atualizar
o banco de dados e a concessão de benefícios.

• As atualizações cadastrais são realizadas apenas sob demanda; quando solicitado pelo
operador local do PBF; devido a situações de bloqueio dos benefícios; ou durante os perío-
dos em que a atualização cadastral torna-se obrigatória.
• Não sabem explicar o que é o Cadastro Único, mas sabem que anualmente devem
fazer o recadastramento e que só tem acesso ao recurso financeiro do BF quem está
cadastrado.

• O deslocamento até o local do Cadastramento (ou recadastramento) foi sempre um


problema (transporte). Consta que houve um combinado com o pessoal “da Assistência
Social” para que todos os anos, no mesmo período, uma equipe vá às aldeias fazer o
trabalho de cadastramento e recadastramento. Ainda assim há problemas: porque são
Barra Velha
muitas famílias em relação ao tempo que os técnicos ficam nas aldeias, e porque não
destinam um tempo para dar esclarecimentos, tirar dúvidas etc. Em 2013 a equipe foi
um pouco mais prestativa no item esclarecimentos.

• Não há reclamações de tratamento em Porto Seguro, o problema maior mesmo são


as condições de transporte até lá e o retorno à aldeia.

• A FUNAI (CTL na TI) é atuante e prestativa no tocante ao cadastramento de beneficiários.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 99


• “O cadastramento funciona”, disse a consultora a partir dos relatos que diz ter reco-
lhido. Não há problema de transporte (acesso de ônibus, metrô etc.).

• O RANI não é aceito como documento e várias famílias não têm a documentação
exigida.

• Recebem visita dos técnicos do BF.

• Não sabiam que o CadÚnico dava acesso a outros Programas.


Jaraguá
• As famílias são proativas: quando têm um filho, vão buscar atualizar o cadastro.

• Demonstram clareza sobre a importância de manter os dados atualizados para rece-


berem o recurso ou o valor em conformidade com as regras.

• O RANI não é aceito como documento;

• Várias famílias não têm a documentação exigida, mas a FUNAI estaria buscando
solucionar isso.

4.3 Condicionalidades
Os relatos são diversos, não sendo possí- regular (me refiro a professores) e a existência
vel chegar a construir um quadro amplo e de estabelecimentos de ensino (escola e sa-
profundo da perspectiva indígena sobre as las) inadequados aos padrões culturais locais,
condicionalidades. Mas o que se depreen- bem como às condições ambientais/climáti-
de dos relatos é que o tema das condicio- cos. Há também problemas com a merenda
nalidades é desigualmente compreendido que chega às escolas: baixa qualidade, quan-
pela população. De qualquer forma, na tidade insuficiente para cobrir o mês escolar,
medida em que ele tem poder de bloqueio merenda não entregue ou entregue com atra-
sobre o desembolso do benefício, não é so, e sem “segurança de consumo” – em al-
possível dizer que seja algo desconhecido. guns casos em visível estado de deterioração.

100 A obrigatoriedade de “frequência escolar” De diferentes maneiras ficou evidente que


foi questionada em praticamente todas é necessário haver uma avaliação específica
as TIs investigadas. O cumprimento dessa sobre a situação do sistema local de aten-
condicionante aparece como tendo dificul- ção à saúde da população e, em particular,
dades operacionais, que passam pela falta do atendimento às exigências do Programa
de um sistema de registro e acompanha- – relacionado especialmente com o registro
mento eficiente, mas também pelo enten- de peso/medida como ações de monitora-
dimento dos operadores locais de que há mento do adequado desenvolvimento das
problemas nos recursos ou condições para crianças, vacinação, pré-natal e atenção à
as crianças frequentarem e terem um apro- saúde materno-infantil. O fluxo de informa-
veitamento satisfatório da escola. Foram ci- ções sobre as condicionalidades de saúde
tados os problemas de transporte, de pessoal parece não ter alcançado ainda o objetivo
qualificado e interessado e com frequência estabelecido, ou seja, não alimentam ações
para corrigir as deficiências e vulnerabilida- fa” ou um “pedágio”, em muitos casos algo
des constatadas entre a população investi- bastante oneroso, que os beneficiários têm
gada, no que concerne à vigilância de seu de realizar ou pagar para viabilizar e garan-
estado alimentar-nutricional e de saúde tir a continuidade do acesso ao benefício.
integral. Isso acaba contribuindo ainda mais Além disso, em Dourados, Rio Negro, Takua-
para a compreensão geral que apareceu por raty/Yvykuarusu e Parabubure houve recla-
praticamente todos os casos investigados: a mações graves sobre o sistema de saúde, a
de que as condicionalidades são uma “tare- qualidade dos serviços prestados etc.

TERRA INDÍGENA CONDICIONALIDADES


• O controle de frequência escolar inexiste. Há problema de transporte para frequen-
tar a escola; a merenda é insuficiente; não há material escolar nas línguas indígenas e
há ausência de professores por importantes períodos.

• Não há notícias de bloqueio relacionado com condicionantes de saúde. Pleiteiam a


Porquinhos criação de um DSEI Timbira, pois sofrem com a falta de remédios e o DSEI Maranhão
não oferece atendimento médico na aldeia ou hospedagem digna na cidade (para tra-
tamento). Apesar dos reclamos, verificou-se in loco que há pesagem das grávidas e das
crianças recém-nascidas, realizada pela única enfermeira, junto ao agente de saúde
indígena, que visitam as casas de todos pela manhã. Contudo, não há um acompa-
nhamento mais qualificado da situação de cada gestante ou nutriz ou recém-nascido.
• Os beneficiários têm conhecimento e compreendem as condicionalidades relacio-
nadas ao PBF.

Takuaraty/Yvykuarusu • Dificuldades para o seu cumprimento: problemas de comunicação com agentes de


saúde; distância do Posto de saúde em relação ao “fundo“ da aldeia; questões ligadas
à escola (dificuldade causada pelo caderno de presença que não possui espaço para
marcação de faltas).
• À primeira vista, a amplitude da presença dos sistemas de saúde e educação na TI
garante o acesso dos habitantes aos equipamentos e serviços relacionados às condi-
cionalidades do PBF: saúde, educação e assistência social. Por outro lado, a qualidade
dos serviços de saúde nas TIs de MS tem sido alvo de fortes protestos, inclusive na TI
Dourados.

• Foram identificados vários casos de bloqueio do repasse do benefício em decorrência


de falhas na informação repassada pelo agente de saúde ao CRAS.

• O acompanhamento social das famílias beneficiárias do PBF em situação de des-


Dourados cumprimento é ainda uma prática incipiente em Dourados.

• No campo da educação escolar, o problema, mais uma vez, é a inflexibilidade, a falta


de diálogo e compreensão, seja com famílias que mantêm entendimentos diversos
a respeito da escola ou com certas dificuldades específicas que decorrem da atual
situação da TI.

• O Movimento de Professores Indígenas Guarani e Kaiowá, que existe desde os anos


90 e organiza encontros anuais, tem canalizado as reivindicações que emergem da
população e deveria ser mais ouvido quando o assunto é educação escolar na TI Dou-
rados.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 101


• Da perspectiva indígena a “educação” é uma das ideias centrais direta ou indireta-
mente relacionadas ao Programa.

• O controle da condicionalidade de educação é feito mediante declarações de fre-


quência que os próprios pais devem solicitar e entregar em São Gabriel ou na própria
comunidade, quando essa é visitada por equipes vinculadas a programas sociais (mu-
tirões).

• Para além da alfabetização, a ausência de ensino médio dentro da TI tem sido apon-
tada como limitador da escolaridade de jovens indígenas. Este é o tipo central de mo-
tivação para migrações que têm como destino a cidade de São Gabriel, ou mesmo
outras comunidades. A associação entre o Programa e a “educação” é notável entre os
indígenas, tendo impacto importante sobre as modalidades de utilização do recurso
(implementos e taxas escolares e suprimentos alimentares).

• Com relação ao acompanhamento de condicionalidade em saúde, o mais importan-


te a assinalar é a desarticulação reinante entre o Distrito Sanitário Especial Indígena
do Alto Rio Negro (DSEI-ARN), instância do Subsistema de Saúde Indígena do SUS e a
Alto Rio Negro Secretaria Municipal de Saúde e a Secretaria Municipal de Assistência Social de São
Gabriel da Cachoeira. A da saúde é responsável pela gestão de Agentes Comunitários
de Saúde (ACSs) que são pagos pelo município e atuantes numa parte das comuni-
dades indígenas. O DSEI, instância federal, é responsável pela atenção e as visitas
regulares de suas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) às comunida-
des indígenas de modo geral. Os Agentes Indígenas de Saúde (AISs) atuam articulada-
mente com essas EMSI, enquanto os ACS são subordinados à prefeitura municipal e se
consideram independentes do DSEI. A produção de dados da pesagem e medição das
crianças é tarefa, em geral, atribuída a ACSs e AISs. As EMSI somente transportam essas
informações produzidas por esses agentes de saúde para entregá-las na secretaria
municipal de saúde – no Programa de ACS, PACS - duas vezes ao ano. Daí supõe-se
que seguem para a secretaria de assistência ou ação social de São Gabriel, respon-
sável pelo preenchimento do Sistema de Informações das Condicionalidades SICON.
Essa desarticulação reforça a interrogação sobre a eficácia e a efetividade do trabalho
feito pelos agentes de saúde, estejam eles vinculados à prefeitura ou a DSEI, sem que
tenham tomado providências da alçada dos gestores do DSEI e do município para que
haja um envolvimento efetivo das EMSI na oferta qualificada de vigilância alimentar e
nutricional, como idealizado com a implantação das condicionalidades.
• A educação escolar na língua portuguesa não é percebida como diretamente asso-
102 ciada ao PBF, ao contrário, são comuns os depoimentos de chefes de grupos familiares
que apontam para a possibilidade de retirarem suas crianças da escola como forma de
se verem livres “dessa dor de cabeça” da frequência forçada das crianças para escolas
em condições extremamente precárias e insalubres. Frequência que “só pede lá na
assistência”.

• No caso das aldeias localizadas em áreas distantes daquelas onde existem escolas,
as crianças precisam caminhar durante horas tanto para chegar como para retornar das
Parabubure
escolas: “meus filhos, caminham no sol, na chuva, duas horas, fica com dor de cabeça,
fica doente, tirei da escola, não pode ficar doente, não! Por que bloqueia o Bolsa, por
quê? Por que recebo esta carta? Não tá certo, não!”.

• Quanto às condicionalidades da Saúde, seu cumprimento por parte dos Xavante


seria de ordem pragmática, uma formalidade a ser cumprida para desbloquear o bene-
fício: “leva lá na assistência, o peso e a altura para desbloquear”. De qualquer forma,
pode constatar que a vacinação e a pesagem das crianças são realizadas com regulari-
dade e já fazem parte das rotinas das mães e das crianças.
• As condições e recursos disponíveis nas aldeias de Barra Velha, Boca da Mata e
Meio da Mata são distintas, o que possibilita numa melhor atenção e cumprimento das
condicionalidades, tanto de saúde quanto escolar, na primeira.

• Em todas as aldeias há problema com a “merenda escolar”. Não é suficiente para


Barra Velha
atender a necessidade do mês inteiro.

• Tratamento do lixo e da água e o saneamento local deveriam ser uma prioridade.


Isso promoveria uma melhora substantiva na saúde geral da população e menos casos
de verminose e diarreias a serem tratados pelo pessoal de saúde.
• O cumprimento das condicionalidades não é um problema.

• Na atenção à saúde, o serviço de atenção básica no local é satisfatório. Faltam con-


dições de acesso aos serviços especializados.
Jaraguá

• O ensino fundamental está na aldeia; quando os indígenas chegam ao ensino mé-


dio, o/a jovem ou tem de ir para a cidade, ou se desloca para outra aldeia próxima de
estabelecimento de ensino.

4.4 Logística de
pagamento/recebimento
do benefício
Em todos os relatos foi apontada a pre- de cálculo do Programa. Há nisso um forte
sença do “patrão” como agente chave no indício de conluio entre comerciantes e
acesso /recebimento do recurso financei- especialmente os estabelecimentos loté-
ro destinado pelo Programa às famílias ricos. No caso desses últimos, verificou-se
beneficiadas. Em Porquinhos, por exem- que alguns funcionários aproveitam-se
plo, a investigação concluiu que o cartão das dificuldades de entendimento e de
de praticamente todas as famílias está manuseio dos indígenas do sistema de
nas mãos deste personagem. Em todos os cartão magnético, para dar-lhes somente
casos relatados eles são comerciantes lo- parte do valor do benefício, ou mesmo
cais, que “facilitam” o acesso aos locais de dizer-lhes que não há nada para receber,
saque do recurso do PBF, e que orientam aparentemente apropriando-se desse re-
os indígenas a gastar o dinheiro nos seus curso não repassado aos indígenas. É o
estabelecimentos comerciais. caso do “dinheiro desaparecido”, registra-
do em São Gabriel da Cachoeira.
O controle sobre os cartões, a título de ga-
rantir o pagamento da dívida contraída, é Para sacar o benefício, as pessoas têm de
tamanho que as pessoas acabam alienan- sair de suas aldeias, o que leva alguns in-
do-se do valor que recebem ou deveriam dígenas a dizer que o “PBF faz as pessoas
estar recebendo de acordo com as regras saírem da aldeia”, enfrentando dificulda-

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 103


des de transporte e de alimentação, pres- tivos tradicionais de Cucui, Iauareté, Taracuá
são psicológica e constrangimentos vários e Pari Cachoeira ou onde há Pelotões de
nos estabelecimentos onde sacam e onde Fronteira e dispositivos de comunicação e vi-
gastam o recurso. No caso dos Xavantes, os gilância a serviço do exército? Isso certamen-
constrangimentos envolvem as mulheres e te aproximaria o Programa das aspirações
crianças, que seguem até os locais de saque locais no tocante ao acesso ao benefício.
com elas, que muitas vezes esperam por
horas na fila do caixa para serem atendidas. Como assinalado pela consultora, as difi-
culdades para o recebimento do benefício
Se no caso da TI Alto Rio Negro a aspiração acabam inserindo e prendendo os Guarani
manifesta pelos indígenas, de haver uma e Kaiowá em uma teia de relações assimé-
caixa eletrônica em cada comunidade, é algo tricas das quais eles dependem quase que
tecnicamente inviável na atualidade, porque completamente, tanto para poder receber
não instalar caixas nos “distritos” administra- como para “usufruir” do benefício.

TERRA
LOGÍSTICA DE PAGAMENTO/RECEBIMENTO
INDÍGENA

• O cartão do BF de praticamente todas as famílias Apanyekra está nas mãos dos “patrões”.
Como os benefícios não são sacados diretamente pela/os titulares, eles não puderam responder
à questão “que tipo de dificuldade você já teve para sacar o benefício”. Muitos sequer sabem,
exatamente, o valor atual de seu benefício, dado que nem todos os patrões aceitam entregar
o extrato de saque para o “cliente”. Informaram, ainda, que os saques dos patrões são feitos
preferencialmente na lotérica e no mercado, mas não excluíram que os saques também fossem
realizados na própria agência da Caixa Econômica. Os patrões também estão de posse dos docu-
mentos de muitas beneficiárias e dependentes, dificultando o acesso à saúde pública e o trânsito
fora da aldeia.
Porquinhos
• O PBF faz as pessoas saírem da aldeia. Apesar dos problemas do deslocamento, a maioria
da população indígena deseja ter acesso às “invenções dos kupen”. O problema não é “sair da

104 aldeia”, é a forma que esta saída se dá: com fome na cidade, sem pouso em Porquinhos e sem a
certeza do regresso imediato.

• Os principais problemas na cidade são: preconceito e racismo sofrido pelos índios; violência
(ameaças e agressões); alcoolismo, que atinge uma crescente parte da população masculina adul-
ta e também algumas mulheres, porém em menor medida. As dificuldades com o retorno estão
ligadas à ausência de carros para realizar os deslocamentos.

• Falta de alternativas de transporte deixando grande parte das mulheres à mercê dos comer-
ciantes (“patrões”) de Paranhos, que vêm à aldeia para levá-las até a Lotérica e ao seu estabele-
cimento comercial. O beneficiário que aproveita a “carona” é obrigado a fazer a maior parte de
suas compras na loja do comerciante que o transportou. Caso contrário, deverá voltar por seus
próprios meios ou pagar a volta (R$ 30,00). Em caso de dívida com o comerciante, os cartões do
Takuaraty/ PBF são confiscados (ou algum documentos de identidade) até ela ser saldada.
Yvykuarusu
• A Lotérica começou a comercializar um “cartão protetor” para os cartões do PBF e outros bene-
fícios, cobrando dos beneficiários R$ 2,50. Todas as mulheres com que a consultora conversou
disseram ter sido obrigada a comprá-lo. Também tem sido exigido dos Guarani e Kaiowá que este-
jam na lotérica em dias específicos, sob pena de não receberem o recurso se forem em outra data
– foi observada uma situação de chantagem constante sobre os beneficiários em relação a isso.
• Em geral, as pessoas recorrem às próprias agências da Caixa Econômica Federal na cidade, ou
às lotéricas. Não se registraram queixas significativas em relação à dinâmica de pagamento. De
modo geral, questionadas sobre o possível inconveniente de ter de ir à cidade para receber o
dinheiro, as mulheres da TI respondem que isso não é novidade para elas, tendo em vista que, na
região, há várias décadas, em função da pequena dimensão das terras indígenas, as famílias já se
deslocam até a cidade periodicamente para fazer compras. A dificuldade que existe se relaciona
aos meios de transporte: não há linhas urbanas de ônibus que entrem na TI, por exemplo.

• Uma parcela dos cartões se encontra retida por comerciantes – não só mercados, mas também
lojas de roupas e vendedores informais que fazem negócio com os indígenas, vendendo-lhes
Dourados
itens como roupas (femininas, infantis) e material escolar.

• Outra das “vantagens” oferecidas aos indígenas em troca da retenção do cartão é o transporte
até a cidade para as compras. Há pelo menos um mercado que, segundo relatos, mantém um
micro-ônibus destinado a buscar os “consumidores indígenas” em suas casas na TI, leva-los até o
estabelecimento e depois trazê-los novamente em suas casas com as suas compras.

• Existem, atualmente, discussões internas entre os guarani a respeito da necessidade da insta-


lação de um caixa eletrônico no interior da TI, para recebimento de benefícios. Alguns lugares da
TI ficam distantes mais de 20 quilômetros do ponto mais próximo de saque.

• O Programa se mostrou um importante incremento do trânsito cada vez mais intenso entre
comunidades e a cidade de SGC. Os indígenas vão mais à cidade, diretamente em razão do Pro-
grama, mas também porque podem ir à cidade, inclusive com outros fins, justamente porque
recebem ou esperam receber os recursos.

• A incerteza e a possibilidade de insucesso de todas estas etapas marcam o discurso indígena


sobre elas. Tanto que as idas à cidade, com vias à resolução de qualquer aspecto do Programa,
devem necessariamente se somar a outros interesses, como a compra de mercadorias ou levar
farinha para um filho que esteja estudando na cidade.

• O trabalho de campo apurou que, idealmente, as idas à cidade devem ser feitas por toda a
família e em canoas/embarcações próprias. Viagens compartilhadas são descritas como proble-
máticas, desconfortáveis e até como fonte de conflitos ou desentendimentos entre parentes ou
co-viajantes. A depender da distância da comunidade, modalidade de viagem e das condições
materiais da família, pode variar entre 03 dias até no mínimo de 23 ou 34 dias. Foi encontrado
Alto Rio Negro
com frequência o desejo de se ter um “caixa eletrônico” na própria comunidade.

• Boa parte das famílias com as quais a consultora esteve têm acesso exclusivamente ao “com-
provante de saque” indiscriminado da Caixa, sendo assim privado do comprovante de pagamento
de benefício social, que é específico e canal estratégico de comunicação entre o Programa e os
beneficiários.

• A população concebe a agência lotérica e seus funcionários enquanto “unidades” que gerem
o BF ao nível municipal, podendo indicar existir uma realidade oficiosa paralela operando na
execução do Programa.

• Foram identificados saques realizados por terceiros, por familiares que vão à cidade ou mes-
mo que lá residem. Isto acontece, sobretudo, devido ao alto valor e dificuldades em transpor a
distância entre “comunidades” e a cidade, aliado à impossibilidade de acúmulo do benefício por
mais de três meses.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 105


• Ocorrência de casos de entrega do cartão ao funcionário da lotérica no momento do saque. Ali,
funcionários separam-se dos beneficiários ou seus “representantes” através de um vidro, onde
ficam também as máquinas de registro de senha, operadas pelos primeiros. Os cartões podem
conter as senhas e, às vezes, valores inferiores aos “reais” estampados em uma de suas faces.
Quando não, juntamente com o cartão, os beneficiários entregam um papel com o número de
senha ao funcionário do estabelecimento. Usualmente, os funcionários perguntam aos benefici-
ários quanto eles têm a receber.

• Muitas famílias relataram que o valor do benefício pode ser diferente de mês a mês ou con-
forme a época do ano, notando que estas variações não se devem ao acúmulo de benefícios por
mais de um mês. A ocorrência de dar troco em balinhas, mas principalmente, em “raspadinhas”
acontece com regularidade.

• O Programa está encampado, em muitas situações, pelo sistema de “patrão” com as características
Alto Rio Negro
locais nas relações entre indígenas e comerciantes. O ato de deixarem o cartão magnético, seja aque-
le que dá acesso aos recursos do Programa, sejam aqueles propriamente bancários, para recebimento
de salários ou benefícios sociais, é uma exigência e condição do fornecimento de mercadorias, por
parte dos “patrões”. Em alguns casos dizem que o “patrão” devolve o cartão para que seja desbloque-
ado e depois o retém novamente. Um indígena diz que alguns comerciantes “compram” a lealdade de
policiais locais, “que tiram fiado com ele” e completa, “são os seguranças deles”.

• Há vários casos de “dinheiro desaparecido”: a pessoa ia à casa lotérica, única responsável pelo
pagamento do PBF em São Gabriel da Cachoeira até meados de novembro de 2013, e o funcioná-
rio lhe dizia, mês a mês, que não havia dinheiro para receber. Quando finalmente o beneficiário
resolveu procurar o CRAS, constatou que seu benefício havia sido pago e sacado regularmente
– e não havia sido por ele. Foram recolhidos vários casos de beneficiários que recebiam valores
muito abaixo do que deveriam segundo consulta realizada pelo canal de consulta telefônica ao
MDS.
• O recebimento do benefício do BF só é possível por meio do deslocamento das mulheres, com
maridos e filhos, para a sede do município; e esse deslocamento implica, necessariamente, no
pagamento de “frete”.

• Diante da insatisfação dos Xavante em relação à necessidade de deslocamento das mulheres


até a sede do município e das tentativas dos chefes de família para sacar os benefícios, na Lo-
térica já chegaram a cobrar entre R$10,00 e R$20,00 como meio de efetivar o pagamento dos
benefícios aos não titulares dos cartões do Bolsa

• Os Xavante demonstram insatisfação e ansiedade com o bloqueio constante do “Bolsa”, situ-


Parabubure
ação que tem causado stress e tensões no interior das aldeias visitadas. Para eles, os bloqueios
106 causam muita “dor de cabeça” e são o resultado de “roubos” ou do tratamento discriminatório a
eles dispensado por parte dos agentes públicos locais.

• Os bloqueios têm implicações de ordem financeira e nas rotinas das aldeias, pois as famílias
passam a ter despesas extra com fretes, pagos para viagens até a sede do município e também
para o vizinho município de Barra do Garças; realizam deslocamentos, incluindo as mulheres e
suas crianças, que ao final se mostram desnecessários ou infrutíferos; pagam despesas com ali-
mentação fora da aldeia, nas pensões e bares locais; e, sem alternativas, acabam se endividando
durante esses processos de deslocamento.
• Em Barra Velha os bloqueios são casos excepcionais.

• Deslocamento para receber é o “grande gargalo” dos Pataxó (ônibus, frete etc.).

Barra Velha • Ir buscar o dinheiro é cansativo, dá stress, sofrimento...

• As lotéricas não estão permitindo terceiros retirarem o recurso (mesmo quando são familiares).
Muitos têm optado por fazer suas compras nos carros-baú que entram na aldeia. Os comerciantes
pegam os cartões e vão sacar na Caixa ou nos comércios locais.
• Diferentemente do achado nas demais TIs, aqui a consultora não identificou haver problemas
de transporte no acesso ao recurso transferido, nem há a atuação de freteiros e patrões “facili-
tando” o acesso.

• Os indígenas vão a pé até a lotérica, que fica em um mercado próximo, e sacam o dinheiro.
Retiram no dia marcado, ou 2-3 dias depois no máximo.
Jaraguá
• A consultora só encontrou “cartões do Bolsa” sendo utilizados pela população.

• Não foi informado haver algum tipo de pressão na lotérica ou no mercado para que consumam
produtos ou serviços.

4.5 Utilização do benefício


financeiro
Coerente com o discurso de que o di- Também há registros de destinação para
nheiro do PBF é “para as crianças”, em compra de alimentos, complementares ao
praticamente todas as investigações isso alimento não produzido (roçado) ou obtido
encontra materialidade na compra prefe- (caça, coleta e pesca) localmente. O “algo
rencial de material escolar, roupas e cal- mais”, como referido em Dourados; ou um
çados para as crianças poderem frequen- ingrediente para enriquecer a “mistura”,
tar as escolas de maneira “adequada”. apreciada pelos Xavantes. Mas a depender
Em praticamente todas as investigações da situação, especialmente das famílias em
observou-se que esse direcionamento na situação de vulnerabilidade, o recurso pode
utilização do recurso decorre da pressão ser utilizado preferencialmente na compra
que há sobre os pais e, especialmente, de comida. Isso ocorre nas situações em
as crianças, como exigência do ambiente que a família não tem um roçado suficiente-
escolar em que as últimas estão sendo mente produtivo, nem recebeu cesta básica
inseridas. compatível com o tamanho da família.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 107


TERRA INDÍGENA UTILIZAÇÃO DO BENEFÍCIO FINANCEIRO
• O dinheiro é utilizado basicamente com: (a) subsistência através da aquisição de alimentos;
(b) aquisição de bens necessários para as festas e rituais, especialmente comida, mas também
bermudas, panos e sandálias novos, além de outros itens de higiene e beleza. A aquisição de
Porquinhos
eletrodomésticos é mais rara e geralmente só é feita por famílias (extensas) que possuem apo-
sentados ou um número grande de cartões do PBF com o mesmo “patrão”, permitindo um acesso
maior ao “crédito patronal”.
• O benefício é usado pelas mulheres e prioritariamente para comprar calçados, roupas e mate-
rial escolar para as crianças. Trata-se de uma regra geral, mesmo entre as famílias mais extensas:
compram sabão e/ou algum alimento com o que “sobra” da compra principal - roupas e calçados.
Takuaraty/ Ação do fator pressão social consumista (seja ela interna ou externa) sobre as crianças e os
Yvykuarusu adolescentes por uma determinada aparência física e adoção dos símbolos exteriores (material
escolar). Muitas beneficiárias concebem o PBF como um recurso destinado a ajudar a população
a fazer cumprir uma ordem do governo: “eles querem que as crianças fiquem na escola, por isso
nos dão dinheiro para as roupas, os calçados e o material”.
• Na TI Dourados o benefício do BF é visto como o “dinheiro das crianças”. Gastar o dinheiro
“com as crianças” é comprar coisas que serão usadas diretamente por elas, como roupas, mate-
riais escolares, brinquedos etc.

• Em termos de alimentação, é muito comum indicarem que o BF deve ser utilizado especifi-
camente para comprar “algo mais” que é usado diretamente pelas crianças, como frutas. Itens
considerados femininos, como roupas e calçados, parecem também entrar nesse rol.

Dourados
• Se a família gasta o dinheiro do BF predominantemente com alimentos básicos, isso pode es-
tar indicando que enfrenta uma situação difícil, que no mais das vezes se relaciona com a renda
“masculina” da casa, oriunda, geralmente, do trabalho fora da aldeia.

• O BF constitui uma espécie de seguridade social mínima, e é nesse espírito que o programa
deveria prever dispositivos para impedir o bloqueio ou desligamento automático de famílias em
situação de vulnerabilidade temporária, como doenças, acidentes de trabalho ou em período de
parto ou amamentação.
• Predomina a associação do recurso do BF com crianças e jovens, o que se reflete em seus
modos de utilização: a compra de roupa e material escolar, pagamento de taxas escolares e
algum rancho, quando isso é possível. A noção de que o benefício é “para ajudar as crianças” e
sua “educação escolar” é bastante presente.
Alto Rio Negro
• As mães tentam dividir o dinheiro entre necessidades coletivas e de cada um dos membros
da família. Muitas vezes optam por destiná-lo àqueles filhos que estudam na cidade ou adotam

108 também rodízio de cartão/recurso, bimestral ou trimestralmente, entre filhos nas comunidades
e filhos na cidade.
• De maneira geral os recursos do BF são utilizados na compra de alimentos, especialmente
Parabubure
arroz branco, pães e refrigerantes. Também macarrão, óleo, açúcar e sal.
• Nos discursos há uma tendência para enfatizar que o dinheiro é gasto inteiramente com ma-
terial escolar, sandália e vestimentas para os filhos irem à escola.

• Buscando estabelecer um “padrão de utilização mais geral dessa renda”, a consultora diz que
o dinheiro, em primeiro lugar, é utilizado na compra de alimentos que se consomem em casa
Barra Velha (café, açúcar, sal, macarrão e arroz); em segundo lugar, ele serve para adquirir vestimentas, cal-
çados e produtos de higiene e limpeza; e em último lugar serve para garantir algum bem mais
permanente, como uma cama, um fogão ou uma geladeira ou um par de óculos a prestação.

• Concomitante a esses gastos, o BF pode também pagar a conta de energia elétrica e o gás de
cozinha da família, cujo custo é bastante elevado.
• A consultora diz que os Guarani não gastam com material escolar.

Jaraguá
• O recurso é utilizado preferencialmente com as crianças, podendo ser também utilizado na
compra de chinelo, carne (“Mistura”)e excepcionalmente com remédio.
4.6 Formas de relação dos
indígenas com o poder
público, comércio e a
sociedade local
Não foi registrada em uma única Terra In- purra ou mesmo uma clara posição políti-
dígena a participação dos indígenas nas ca de não “facilitar a vida” dos indígenas
instâncias de Controle Social do Programa. (o caso dos tratores e preparação da terra
dos roçados familiares indígenas) e dar
A figura do “patrão” emerge aqui nova- continuidade aos arranjos estabelecidos
mente, posto que não é pouco comum (por exemplo, das “parcerias” ou arrenda-
esse personagem ter fortes vínculos com mentos de lotes para plantio de soja na re-
os poderes políticos e a administração serva indígena) que representam maiores
pública municipal. Trata-se de uma figura vantagens para não indígenas.
cuja persistência ao longo do tempo de-
riva da insuficiência e inadequação das A pesquisa no Alto Rio Negro confrontou-
ações do poder público nas suas ações -se com diversas situações discriminató-
e políticas que se destinam aos povos rias contra os indígenas de parte de co-
indígenas. Sua presença é diretamente merciantes, funcionários de Secretarias
proporcional à exclusão dos indígenas e à e outras instituições municipais, como
não consideração de suas especificidades também agentes públicos estaduais e
socioculturais e territoriais. federais responsáveis por atender os in-
dígenas no município de São Gabriel da
No caso de Dourados, vê-se que a dispo- Cachoeira. Esse mesmo comportamento
sição dos órgãos públicos está bastante foi identificado por praticamente todos os
aquém da necessidade dos indígenas mo- demais consultores nos seus respectivos
radores da TI. Há um jogo de empurra-em- estudos de caso.

TERRA INDÍGENA RELAÇÃO COM O PODER PÚBLICO, COMÉRCIO E A SOCIEDADE LOCAL


• Apenas um interlocutor respondeu seguramente à questão “quem é o responsável pelo
BF na cidade”. Alguns responderam que o próprio patrão era “o responsável pelo PBF na
cidade”.

Porquinhos • Indígenas sofrem grande preconceito negativo na cidade e se sentem desconfortáveis


frequentando vários espaços, como lojas de maior porte e, principalmente, bancos.

• Desconhecem “espaços de discussão entre governo e sociedade para tratar do PBF”. Nin-
guém na aldeia participa da fiscalização nas Instâncias de Controle Social (ICS) do BF.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 109


• Os “patrões/comerciantes” possuem comércios dos dois lados da fronteira. Esses comér-
cios são de fato depósitos que permanecem fechados e são abertos apenas para receber
os fregueses indígenas trazidos das aldeias. Do lado paraguaio, por exemplo, um desses co-
mércios só apresenta preços afixados em guarani (moeda paraguaia), enquanto outros dois
Takuaraty/
comércios, situados do lado brasileiro, simplesmente não têm preços afixados. Quando os
Yvykuarusu
“patrões” retêm cartões, estes ficam guardados invariavelmente em lugar seguro do lado
paraguaio.

• Esses “patrões” são aparentados entre si e todos têm vínculos com o poder político local.
• O governo estadual e vários prefeitos da região se pronunciam publicamente contra a de-
marcação de terras indígenas, além de não apoiarem políticas de reforma agrária, há mesmo
quem desconfie na região que se trata de uma forma de sabotagem a não disponibilização
dos tratores no período em que mais são necessários.

• Em Dourados há um vereador indígena e foi criada uma coordenadoria na prefeitura só


para a temática indígena. Já existiu um comitê gestor de políticas indigenistas na região, mas
que hoje não mais existe, o que tem impactado negativamente na resolução de uma série
de questões relacionadas à sustentabilidade, gestão territorial, segurança alimenta e outras
na TI Dourados.

• Em relação ao apoio dos órgãos públicos às roças familiares, hoje, há uma divisão de
trabalhos entre diversos órgãos, que pertencem a instâncias distintas de governo: a FUNAI
fornece o óleo diesel e sementes, mas é a prefeitura a responsável pelos tratores e por
disponibilizar tratoristas.

• Por questões fundamentalmente políticas e interesses econômicos, a prefeitura não tem


disponibilizado o trator no tempo correto, ou não tem disponibilizado de forma eficiente,
para auxiliar na preparação dos roçados indígenas em Dourados - o problema da falta de

Dourados apoio à roça é geral na região sul de MS.

• A falta de assistência técnica e apoio à produção familiar tem um efeito colateral grave na
TI Dourados: uma profusão de contratos de parceria para produção de soja em áreas dentro
da Reserva.

• Até o final de 2013 não havia sido constituído um Comitê Intersetorial do Programa.

• Existem vários mal-entendidos entre os indígenas e não indígenas com relação às crianças

110 e a forma como se deve cuidar delas. Quando o sistema de assistência social age dentro das
aldeias, os equívocos se acentuam.

• Há cerca de 20 estabelecimentos comerciais que vendem gêneros alimentícios ali e que


pertencem aos próprios moradores da comunidade; também bares e outros tipos de estabe-
lecimentos menores. Há também um grande número de comerciantes no entorno da TI que
vendem aos índios e vêm sendo alvo de operações de fiscalização coordenadas pelo MPF.

• Vários indígenas manifestaram desconfiança com os comerciantes: estarem manipulando


os preços e valores da dívida. Além disso, há o problema da qualidade dos produtos vendi-
dos. Operações recentes têm demonstrado problemas como carne e peixe impróprios para
consumo que são oferecidos aos indígenas.
• A desarticulação das instituições competentes redunda e contribui negativamente para
uma execução das diversas esferas e protocolos do Programa, nas diversas fases, do cadas-
tramento ao recebimento do recurso.

• A pesquisadora presenciou diversas situações discriminatórias contra indígenas envol-


vendo comerciantes, coordenadores e funcionários de Secretarias e outras instituições mu-
nicipais, como também agentes públicos estaduais e federais.

• As redes locais de patronato (o “patrão”) conferem o tom das relações interétnicas locais.
A desigualdade, a exploração, a dependência e o endividamento tornaram-se, assim, circuns-
tâncias como que naturalizadas e usuais das interfaces que põem em relação indígenas e
Alto Rio Negro
não indígenas. Esta relação pode se dar diretamente, a partir de valores a serem recebidos,
ou indiretamente, através do fornecimento de mercadorias a altíssimos custos.

• A dificuldade em transporem distâncias é, grosso modo, o vetor central deste tipo de rela-
ção estabelecida entre indígenas e não indígenas.

• Ocorrência de deslocamento de famílias dos diferentes grupos da Família Linguística


Maku para a sede do município, estimulada pela busca de acesso ou usufruto do beneficio
do BF. Em geral ficam expostos à condições que os vulnerabilizam mais do que eles já esta-
vam e expõem a riscos epidemiológicos e sociais graves (malária e infecções respiratórias,
roubos e assédio moral e violências diversas).
• Os Xavante estão descontentes com a prestação dos serviços de todas as instâncias locais
e do poder público relacionadas com o BF: “a Assistência”, a Lotérica, “o Postinho” (Posto
de Saúde), a Escola. No caso da Lotérica e da Assistência, se referem a ela como sendo ins-
tituições onde as pessoas se relacionam com base no preconceito demonstrado: “eles não
gostam do Xavante não”, “eles têm preconceito”, “tá sempre bravo com a gente”, “não dá um
sorriso, não!”.

• Foram relatadas várias situações de retenção de cartões e documentos pessoais por co-
merciantes locais. Em todas essas situações as detentoras dos cartões possuíam dívidas
Parabubure acima do valor do benefício do PBF. Notas fiscais, com os valores das compras efetuadas,
comprovavam os depoimentos colhidos.

• Foi constatado que o mercado local mantém uma forma peculiar de se relacionar com os
indígenas: trata-se da cobrança sistemática de um “sobre-preço” na venda para os Xavante;
todos os itens da cesta básica de alimentos são acrescidos de um valor adicional.

• De modo geral, observou a consultora, o atendimento às índias, no balcão, é realizado


de maneira tensa, por um atendente e um auxiliar e as desconfianças são publicamente
anunciadas, em voz alta.
• Os beneficiários sabem que a única forma de solucionar problemas relativos ao PBF é atra-
vés do contato com alguém da Assistência Social da Prefeitura de Porto Seguro. No entanto,
como a viagem é cara e demorada, requerendo que a pessoa pernoite na sede do município
ou em alguma outra aldeia Pataxó mais próxima da cidade, muitos acabam por não buscar
a resolução do problema na cidade, aguardando a vinda da equipe volante da Prefeitura, ao
Barra Velha final de cada ano.

• No entanto, são extremamente tensas e conflituosas as relações com os moradores da


vila de Caraíva, onde episódios de violência emergem com certa regularidade, vitimizando
canoeiros, artesãs e indivíduos adictos ao álcool que perambulam pela vila quando estão
alcoolizados.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 111


• Desconfiança na aproximação com os gestores federais, estaduais ou municipais, em es-
pecial com a área de regularização fundiária, vista como permeável a interesses econômicos
e/ou empresariais.

• Ninguém sabe quem é o responsável pelo PBF no município.

• Também não há conhecimento sobre espaços de discussão entre governo e sociedade


Jaraguá
civil como as Instâncias de Controle Social (ICS). A totalidade das pessoas disse que não sabe
do que se trata e não citaram alguém que faça esse papel entre os indígenas.

• Em relação ao acesso aos serviços públicos, não há saneamento básico nas residências e
o abastecimento de água é público, mas insuficiente e não chega a totalidade das residên-
cias. Uma grande preocupação é a poluição da lagoa que há no território da aldeia. Ela já foi
piscosa e hoje é visivelmente insalubre. Há coleta pública de lixo.

4.7 Acesso dos indígenas


às unidades do SUAS
(CRAS, CREAS)
Os indígenas dizem que ou não sabem da isso não se dá de maneira desinteressada.
existência, ou sabem muito pouco a res- Outros testemunharam terem se sentido
peito dos CRAS e CREAS, embora haja rela- “humilhado” quando foram no CRAS. Al-
tos de terem recorrido até estas unidades, guns indígenas alternam e confundem,
especialmente aos CRAS, para saber do nos mesmo relatos, o CRAS, o CadÚnico e
motivo do bloqueio do cartão ou buscar a casa lotérica, como observado entre os
alguma outra informação ou demanda de Guarani-Kaiowá.
inclusão no PBF.
Novamente não foi registrado participa-
Também há reclamação de que não são ção nas instâncias de Controle Social, nem
112 bem atendidos e tratados pelos funcio- conhecimento da existência de qualquer
nários. No caso do Alto Rio Negro, alguns mecanismo de participação e fiscalização
se dizem mais “bem tratados” e “informa- comunitária na gestão municipal do PBF. A
dos” na Lotérica do que no CRAS – embora população estudada desconhece esse fato.
TERRA INDÍGENA ACESSO DOS INDÍGENAS ÀS UNIDADES DO SUAS
• Não conhecem qualquer CRAS ou CREAS, apesar de saberem que existe um local a que são
levados para “apresentarem papéis e atualizarem o cadastro”.

Porquinhos
• Reclamam de mau atendimento e desinformação.

• O CREAS e o CRAS não se deslocam até a aldeia.


• Em Paranhos, o CRAS local atende quase 700 famílias indígenas e contam apenas com três
entrevistadores (mais o gestor), dos quais dois são falantes de guarani, mas os indígenas quei-
xam-se deles por se recusarem a atendê-los em guarani. Essas 700 famílias formam quase
40% do total de famílias atendidas ali.

Takuaraty/ • Os Guarani e Kaiowá não sabem o que é o CRAS e o CREAS; eles consideram que o CRAS é
Yvykuarusu o responsável pelo PBF e os termos CRAS, CadÚnico e PBF são visto quase como sinônimos.

• As ações do CRAS estão limitadas ao perímetro urbano de Paranhos; não há CRAS volante.

• Na hora da entrevista, os entrevistadores exercem uma forte pressão sobre os indígenas,


constrangendo para que declarem fontes de renda.
• A Terra Indígena Dourados é a única dentre as pesquisadas que tem um CRAS em seu inte-
rior.

• O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) situado no Bororó é um equipamento


em pleno funcionamento e cotidianamente lotado de indígenas, sobretudo mulheres. Mas a
falta de pessoal para atender à demanda em momentos de pico tem criado insatisfação entre
a população indígena.

• Falta de estrutura resolutiva (de comunicação e transporte) e capacitação no CRAS Bororó,


submetendo os indígenas a verdadeiras peregrinações pelas unidades do sistema na sede do
município.

• A falta de funcionários tem sido a justificativa para que não se crie uma equipe volante para
Dourados
o CRAS – que seria fundamental para atender as áreas mais distantes, incluindo os acampa-
mentos indígenas em volta da TI.

• Falta de atenção à questão linguística no escritório do BF na cidade de Dourados, havendo


a urgência de contratação de, pelo menos, um funcionário falante de guarani nessa unidade.

• Além de pessoal qualificado, inclusive no domínio da língua guarani, ajudaria em muito a


produção de materiais informativos e impressos (tipo banner) em Guarani.

• Os cursos profissionalizantes não têm atendido as necessidades e expectativas da popula-


ção da TI. Antes da elaboração da programação de cursos, faz-se necessário uma consulta às
instâncias organizativas e lideranças, para que a oferta fique mais próxima da realidade atual
da maioria da população, suas demandas e projetos de vida.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 113


• O CRAS é praticamente invisível aos beneficiários indígenas do PBF. Não é raro que alguém
se refira, por exemplo, à lotérica, enquanto sendo o Centro de Referência e Assistência Social
(CRAS), da mesma forma que antes procuram este estabelecimento comercial para resolução
de seus problemas ou esclarecimentos, antes que o próprio CRAS ou outras entidades relacio-
nadas à gestão do PBF. O CRAS e demais unidades onde o Programa é praticado no município
são apenas “lugares” onde entregam documentos, pegam cartões etc.

Alto Rio Negro


• O dono da lotérica, neste sentido, é quem os informam e, em algum sentido, lhes prestam au-
xílio. O loccal é visto pelos indígenas como parte do PBF. Os indígenas ficam bastante admirados
quando lhes é explicado que, do ponto de vista da execução formal do PBF, a lotérica não passa
de um comércio, tendo um papel e natureza diferente daquele exercido por funcionários do CRAS.

• Ausência de Controle Social ou qualquer outro mecanismo de participação e fiscalização


comunitária na gestão municipal do PBF que seja do conhecimento das famílias beneficiárias.
• Os Xavante chamam o CRAS de “assistência” e desconhecem os serviços e outros benefícios
socioassistenciais para além do dinheiro do PBF. É para lá que levam os documentos da família,
“leva documento e recebe o Bolsa”. É ainda o lugar onde são realizados os desbloqueios dos
benefícios – “vai na Lotérica, tá bloqueado, vai na assistência, fala com X, pra desbloquear.
Demora, não desbloqueia logo não”.

• Apesar de possuir instalações novas, amplas e adequadas, os Xavante não reconhecem ser
Parabubure
esse o lugar de acolhimento de suas demandas. Ao contrário, são comuns os relatos recolhidos
dizendo que não são bem atendidos e de que estão sendo enganados com relação aos valores
dos benefícios recebidos.

• Gostariam de ter atendimento diferenciado, pois pensam que o não atendimento das de-
mandas apresentadas aos funcionários da “assistência” decorre fundamentalmente do desco-
nhecimento absoluto da língua Xavante por parte dos funcionários.
• Afora o principal cacique da TI, e o ex-cacique do núcleo de Barra Velha, apenas duas be-
neficiárias, das mais de 100 pessoas com quem a consultora conversou ao longo da pesquisa,
Barra Velha afirmaram saber o que é um CRAS ou CREAS.

• A maioria nunca ouviu falar desses centros nem faz ideia das ações que os mesmos promovem.
• As famílias indígenas conhecem o CRAS e já foram atendidas nessas unidades.

• O motivo principal dos atendimentos relatados à consultora foram sempre o CadÚnico.


Jaraguá

114 • Relataram visita de técnicos do CRAS (ou equipe volante) por ocasião do primeiro cadastra-
mento e em contextos de atualização cadastral.

4.8 Atividades produtivas


e comerciais locais e
Segurança Alimentar
Em nenhum dos casos houve registro de O trabalho fora da TI (caso Dourados) tem se
abandono das atividades produtivas de- constituído parte da estratégia de sustentação
vido ao recebimento do PBF. Ao contrá- das famílias, especialmente dos homens pais
rio, em alguns casos ele é utilizado para de famílias, mas também das mulheres jovens,
potencializar a capacidade produtiva e sendo na grande maioria dos casos, trabalhos
alimentar, como na compra de material de temporários e sem qualquer esquema de se-
pesca e ferramentas. guridade no trabalho ou seguridade social.
TERRA INDÍGENA ATIVIDADES PRODUTIVAS E COMERCIAIS LOCAIS E SEGURANÇA ALIMENTAR

• Não foi registrado casos de abandono de atividade produtiva em virtude do PBF. O que
mais afeta a capacidade de produção nativa é a ação de madeireiros e caçadores.

• O dinheiro do PBF é utilizado para comprar alimentos produzidos fora da aldeia e, rara-
mente, para comprar alimentos dentro da aldeia. A base da alimentação indígena é cons-
tituída de arroz e mandioca (carboidratos), carne de caça ou peixe (proteínas) e frutas.
Porquinhos
Também compram feijão, fava, leite em pó, café, sal, açúcar e óleo de soja regularmente,
para complementar a alimentação cotidiana.

• Também foi observado seu uso para aquisição de material de pesca, em especial anzóis
e linha, e itens para a lavoura, como facões, foices e outros instrumentos utilizados no
plantio e na colheita.

• Praticamente todas as famílias da aldeia possuem roçados, onde costumam plantar


principalmente milho e mandioca e, em alguns casos, feijão, melancia, abóbora, arroz.

• Mas esses roçados só podem ser abertos com ajuda da Prefeitura, quando ela cede o
trator oportunamente. Os roçados em 2013 eram só de mandioca e bem reduzidos por
conta disso. Isto é, não houve produção de milho nem de nada mais além de uma pou-
ca mandioca. Dependência quase total do poder público local (e consequentemente das
cestas de alimentos).

• Algumas famílias também plantam roças com intuito de comercializar parte de sua pro-
dução.

• Dizem que as novas gerações mudaram e não respeitam mais o jeito antigo de viver
Takuaraty/
e de se relacionar com a terra e com seus frutos. “Eles estão viciados na merenda”, co-
Yvykuarusu
mentou uma rezadora Guarani. Indícios de erosão cultural e da autonomia e soberania
alimentar.

• Praticamente todos os homens trabalham nas fazendas vizinhas. O trabalho na fazenda


é intenso e mal remunerado, e limita a disponibilidade dos homens a se dedicaram ao
trabalho na roça.

• As famílias da aldeia recebem cestas de alimento, tanto do governo do Estado, quanto


da FUNAI. As famílias mais numerosas recebem a mesma cesta que as famílias mais re-
duzidas.

• A prática do uso de agrotóxicos está disseminada na região, trazendo problemas a saú-


de da população.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 115


• Na prática, o conjunto de ações sociais que inclui cestas de alimentação, Bolsa Família
e merenda escolar, entre outros elementos, não basta para solucionar o problema da in-
segurança alimentar.

• O problema fundamental a ser enfrentado em Dourados é a escassez de terras. Além da


área total da TI ser insuficiente, considerando o número de pessoas e famílias que compõe
a população que ai habita, as desigualdades no seu interior fazem com que alguns tenham
mais que outros, que exista gente que vive de aluguel.

• Grosso modo, uma família estará tão satisfeita quanto tenha: 1) uma porção suficiente
de terra para o desenvolvimento das suas atividades; 2) uma roça de subsistência de di-
mensões suficientes; 3) acesso adequado a benefícios sociais - BF, aposentadoria, BPC ou
pensão por morte ou invalidez; 4) acesso à cesta básica; 5) o marido realizar trabalho fora
da aldeia (a “changa”).
Dourados
• Problema de demora ou ausência do poder público no auxílio ao preparo da terra; atraso na
distribuição de sementes; impossibilidade de tomar crédito do Pronaf; e falta de assistência
técnica adequada. Mesmo quem tem alguma terra disponível para o cultivo muitas vezes não
consegue fazê-lo, tendo de apelar para a parceria com os plantadores de soja (de dentro da
aldeia ou não). As roças familiares estão em descoberto no que tange às políticas públicas.

• Boa parte dos trabalhadores que antes iam às usinas agora está empregada em uma
diversidade de ramos, incluindo supermercados, construção civil, serviços públicos e fri-
goríficos, que têm empregado um número crescente de jovens mulheres indígenas.

• Há um número considerável de funcionários públicos indígenas, só que isso não é rele-


vante no conjunto porque a população é muito grande.

• Em certas áreas da TI chega a faltar água nas residências por mais de um mês.
• A participação no PBF não altera significativamente as atividades produtivas locais vol-
tadas à subsistência cotidiana, notadamente quando consideramos o sistema agrícola do
alto rio Negro, baseado na horticultura, sobretudo no cultivo de mandioca para a produção
de farinha e outros derivados.

• Alguns depoimentos destacam, entretanto, que antes do Programa precisavam traba-


Alto Rio Negro
lhar incansavelmente, de modo a criar seus filhos com suficiência, dando-lhes roupas e
pagando taxas e materiais escolares.

116 • Peixe e derivados de mandioca mantém-se como base preferencial da dieta Rionegrina,
mas a produção continuada e suficiente destes recursos pode ser variável de comunidade
a comunidade.
• São comuns os depoimentos de que o “Bolsa” é “pouco”, “pouquinho” e serve apenas
para comprar “alguma mistura”. A expressão “mistura” é utilizada regionalmente para de-
signar o acréscimo de alguma quantidade de carne na alimentação cotidiana.

• Nos dias em que se deslocam para a cidade para receber os benefícios do BF os Xavante
realizam compras de alimentos na rede de comércio local. A cesta básica “acaba e não tem
Parabubure dinheiro para comprar”, ou seja, termina em alguns dias e não é possível repô-la. Há pre-
valência no consumo (alimentos comprados) de arroz branco, pães e refrigerantes. Além
desses alimentos, eles adquirem massa para macarrão, óleo, açúcar e sal.

• O único alimento comprado em grande quantidade é o arroz branco e não há comercia-


lização de alimentos no interior das aldeias uma vez que a produção das pequenas roças
dos grupos familiares destina-se apenas para o consumo próprio.
• Na aldeia Barra Velha e todas as suas extensões, situada na porção oriental da TI, o ar-
tesanato representa (no verão) a principal fonte de renda para muitas famílias Pataxó. No
restante do ano, durante o chamado inverno, algumas famílias se voltam para a agricultura.
A pesca e a pecuária (de corte) ocorrem paralelamente, ao longo de todo o ano.

• Esse cenário se modifica bastante uma vez que se considera a parte mais ocidental do
território, nas aldeias Meio da Mata, Boca da Mata e Cassiana, onde as atividades produti-
vas são menos variadas. Há uma presença maior da agricultura, da pecuária e do artesana-
to mecanizado voltado para a produção de gamelas.

• Outra grande fonte de renda em toda a terra indígena advém do setor de serviços, saú-
Barra Velha
de e educação, com ocupação formal de pelo menos duas centenas de pessoas, em sua
maioria pagas pela Prefeitura de Porto Seguro.

• Em relação à segurança alimentar, a situação das famílias na TI Barra Velha é extremamente


heterogênea. No oriente aparentemente há mais fartura. Por outro lado, foi encontrado ai situ-
ações de extrema pobreza em aldeias como Xandó, imediatamente vizinha à vila de Caraíva.

• Em relação à merenda escolar foi informado que em toda a TI Barra Velha sua oferta é
insuficiente. Em praticamente todas as aldeias se relatou que o alimento enviado pela
Prefeitura de Porto Seguro não chega a durar uma quinzena, destinando-se apenas às
crianças e estudantes do ensino básico.

• Produzem utensílios para serem vendidos (artesanato).

• Várias pessoas trabalham nos estabelecimentos locais de serviço público. Várias pesso-
as trabalham na construção civil.

• Recebem cesta básica e doação de alimentos de terceiros.

Jaraguá • O tamanho da TI inviabiliza a realização de roçados. A isso se soma a restrição ao ma-


nejo dos recursos naturais na área que foi demarcada como Parque Estadual. Querem par-
ticipar da gestão compartilhada do Parque e poderem utilizar determinadas áreas para
atividades de coleta e mesmo abertura de pequenos roçados.

• Problemas de acesso à agua em várias residências – a água é encanada. A rede pública


não chega até todas as residências e a caixa–d’água na aldeia está necessitando ser recu-
perada (“está quase caindo”).

4.9 Questões de gênero


A titularidade do cartão em nome das mu- fundamentalmente provendo as condições
lheres não trouxe conflitos perceptíveis em necessárias para que frequentem a escola.
nível familiar. Elas têm ficado contentes com
a situação, pois podem destinar o recurso O tema merece um aprofundamento que
para fins que julgam os mais adequados e vá para além do registro do uso do cartão,
importantes para o bem-estar da família. Em vejam-se, por exemplo, os desafios que as
geral o têm direcionado para as crianças, mulheres Xavante têm de enfrentar para
atendendo algumas demandas dessas, mas chegar até os pontos de saque do recurso.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 117


TERRA INDÍGENA QUESTÕES DE GÊNERO
• Os cartões do BF estão sempre no nome das mães e tanto homens quanto mulheres
responderam positivamente a esta diretriz do Programa. Apesar de o saque ser feito pelo
“patrão” e de a principal pessoa a se relacionar com ele ser o homem, as mulheres é que
Porquinhos
tendem a decidir como o recurso deve ser prioritariamente gasto. Por outro lado, várias
mulheres se queixaram de que seus maridos não estão seguindo tudo o que elas definem
(em razão, principalmente, do consumo de álcool).
• Os cartões do BF estão sempre no nome das mães e tanto homens quanto mulheres
responderam positivamente a esta diretriz do Programa. Apesar de o saque ser feito pelo
Takuaraty/Yvykuarusu
“patrão” e de a principal pessoa a se relacionar com ele ser o homem, as mulheres é que
tendem a decidir como o recurso deve ser prioritariamente gasto.
• É senso comum que o benefício deve ser administrado pelas mulheres e destinado a
cuidar das crianças.

• Existem discussões na TI sobre temas como a violência doméstica, mas, no geral, os pro-
blemas envolvendo cartões de benefícios que são apropriados por membros da família es-
tão relacionados às aposentadorias de mulheres idosas – fisicamente mais frágeis e com
maiores dificuldades para denunciar as agressões.

• A participação das mulheres nas Aty Guasu é antiga. Elas sempre tiveram papel de des-
taque no movimento, mas geralmente realizando tarefas de menor visibilidade diante das
pessoas de fora. Periodicamente se reúnem na Kuña Aty Guasu, a grande assembleia das
Dourados
mulheres Kaiowá e Guarani.

• A Kuña Aty Guasu pode se converter em importante parceiro para o planejamento e refle-
xão sobre as políticas públicas destinadas a comunidades indígenas de MS. Elas reivindicam
políticas e programas diferenciados, com ênfase na capacitação de servidores públicos em
gênero, direitos humanos, cultura e língua indígena. Duas das suas pautas, incidentes na
segurança alimentar e nutricional, são as de garantia de acesso à água e a articulação de
ações para controle do uso de agrotóxicos que contaminam águas e ambiente, afetando
gravemente a saúde de todos os moradores da TI. Para melhorar o acesso às políticas rei-
vindicam a contratação de intérpretes nos serviços, de assistência social inclusive, já que o
monolinguismo é maior entre as mulheres indígenas.
• A divisão sexual do trabalho entre homens e mulheres é marcante e é um atributo con-
solidador e por vezes dissociador de boa parte das relações sociais no Alto Rio Negro. As
mulheres são fundamentalmente horticultoras e responsáveis pela produção de comidas
118 em geral, inclusive das comidas rituais. Este papel feminino tem se demonstrado atuante e
fundamental contemporaneamente, merecendo associações importantes com a perspecti-
va que estas beneficiárias têm do PBF e a maneira como utilizam seus recursos.
Alto Rio Negro

• A alocação dos recursos do Programa é de responsabilidade das mães, tanto quanto seu
emprego na educação dos filhos. Essas são as tônicas da maior parte dos depoimentos cole-
tados durante o trabalho de campo. Dentro da perspectiva Rionegrina, a relação do recurso
e seu uso com a educação é considerado um dos aspectos mais nobres e importantes do
Programa.
• A consultora observa entre algumas mulheres contentamento com a titularidade do car-
tão do PBF, pois, segundo eles, é possível “comprar um pouco de mistura”, “vai para Campi-
nápolis”, “compra mochila para o filho”. Mas reconhece não ser possível afirmar que tomam
as decisões a respeito dos itens adquiridos com o dinheiro do PBF. Isso porque os homens
as acompanham e estão presentes nos momentos em que as compras são efetuadas e por-
que elas dizem apenas “ele compra”.

• Como em outros lugares, a titularidade dos cartões é majoritariamente das mulheres,


sendo raros os casos de cartões no nome dos chefes de família, fato que é revelado com
Parabubure constrangimento.

• Para as mulheres, a maior dificuldade advinda da titularidade refere-se à necessidade de


deslocamentos para a sede do município durante os últimos meses de gravidez ou no perío-
do em que estão amamentando, para receber o dinheiro do PBF. O incômodo maior refere-se
às condições de transporte (e das estradas) a que tem que se submeter durante o percurso.

• Queixam-se as longas esperas na Lotérica, muitas vezes ficam com fome juntamente com
suas crianças, e se sentem impotentes diante da situação, pois precisam aguardar para re-
ceber o dinheiro, do qual dependem para se alimentar.

• O PBF é percebido como um Programa voltado principalmente para as mulheres “mães


de família”.

• Por outro lado, e tendo por referência vários relatos recolhidos nos três meses de pes-
quisa, a consultora arrisca afirmar que a desigualdade de gênero persiste, com força, entre
Barra Velha
os Pataxó.

• Muito embora o PBF tenha tido um impacto sobre essa configuração, com algumas mu-
lheres dependendo cada vez menos de seus maridos, as experiências de empoderamento
ainda são bastante pontuais e específicas.

• O PBF é visto como destinado às mulheres.

• Por outro lado, a consultora ouviu de atores externos à comunidade relatos sobre a exis-
Jaraguá
tência de conflitos e violências dirigidas às mulheres. Mas, pelo que soube, há uma organi-
zação política delas na forma de uma espécie de conselho que participa das assembleias e
que exige soluções para alguns casos de violência contra a mulher.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Analisando os Achados por Bloco Temático 119


5
CONSIDERAÇÕES
GERAIS

Ter assegurado o recebimento os vários relatos de ocorrência


de uma renda mensal de manei- de situações de constrangimen-
ra permanente é algo bem aceito to de crianças no ambiente es-
pela população indígena onde se colar, pelo fato de não estarem
realizaram as pesquisas. Ou seja, “adequadamente trajadas”, nem
aparentemente, não há eviden- “devidamente equipadas”. Além
cias de que entre os beneficiários de poder ser caracterizado como
e potenciais beneficiários indíge- violência psicológica, ou até ma-
nas exista quem seja contrário à nifestação de racismo ou outras
transferência monetária de renda, formas mais sutis de intolerância,
e há quem pense que ela é um di- essa pressão sobre pais e crianças
reito e que deve ter o seu valor tem direcionado sobremaneira o
elevado. recurso do PBF para determina-
dos itens de consumo que talvez
Os relatos revelam a centralida- nem sejam os mais necessários
de da associação “benefício do para a família, considerando es-
PBF” e “crianças” no imaginário pecialmente os casos de famílias
social das famílias, nos diferen- em nítida situação de vulnerabi-
tes grupos étnicos estudados. lidade.
As crianças são consideradas as
beneficiárias principais do re- A pesquisa mostrou existir um
curso recebido pela família do baixo conhecimento dos indíge-
PBF. O dinheiro “das crianças” foi nas em relação ao PBF, isto é, ao
expressão recorrente, em geral seu funcionamento e ao como
associada com uma destinação obter ajuda na resolução de pro-
específica: para que elas possam blemas de percurso, que vai do
estar, “o mais adequadamente cadastramento ao saque do re-
possível”, inseridas no contexto curso financeiro. Foi encontrado
escolar, atendendo aos padrões um baixo conhecimento sobre
de vestimenta (uniforme) e higie- o Cadastro Único (CadÚnico) e a
ne, e dotadas dos meios conven- sua importância enquanto por-
cionais de ensino escolar (livros, ta de acesso a várias políticas e

120 120 cadernos, lápis, caneta, mochila


etc.). Preocupa-nos, no entanto,
programas do Governo Federal,
bem como do recurso financeiro
e demais benefícios proporcionados pelo muitos casos desinteressado de ambos
PBF. Esse desconhecimento sobre regras e em relação a essa população. A exigência
o conjunto dos procedimentos do progra- demasiadamente rígida de documenta-
ma acaba por impactar também negativa- ção, feita pelos agentes locais à popula-
mente na possibilidade de controle social ção, está comprometendo o acesso desses
- dos indígenas e suas organizações locais ao Programa e seus benefícios. Não ficou
e regionais, por exemplo, a Federação das esclarecido o porquê da Certidão do RANI
Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (Registro Administrativo de Nascimento
(FOIRN) no Alto Rio Negro - sobre a gestão do Indígena) não estar sendo aceita como
local do Programa e sobre os operadores um documento de identificação suficiente
bancários locais do PBF (lotéricas) respon- no caso dos indígenas, e por isso muitos
sáveis por repassar o recurso financeiro às outros documentos são solicitados, sendo
famílias, associados a diversas ocorrências que as instruções do MDS para a opera-
impróprias descritas nas entrevistas da cionalização do Programa dizem o contrá-
pesquisa. rio. Qual seria o motivo de a Prefeitura em
Dourados, como exemplo, pedir título de
Para além da dificuldade de compreensão eleitor para quem tem ou quer ter acesso
proporcionada pelas distintas perspec- ao benefício do PBF?
tivas culturais e experiências passadas
e presentes de funcionários e indígenas, De maneira geral, a necessidade de eleva-
parece estar havendo, no mínimo, falha ção no valor da transferência é justificada
na forma e no conteúdo da comunicação pelos indígenas com as seguintes razões:
e repasse de informação sobre o Progra- para que possam ser adquiridos os dife-
ma, o Cadastro e as Condicionalidades na rentes bens e serviços de seu interesse,
TI, e que isso passa pela não priorização que como novas necessidades são impe-
dessa ação, e de uma maneira compre- lidas aos índios e algumas praticamente
ensiva, pelos gestores das Unidades do impostas no contexto do contato; para
SUAS e pelos os agentes operadores do que possam chegar até os locais onde o
CRAS/CREAS locais que estão em contato recurso é sacado, e de maneira mais in-
direto com os indígenas. Contribui para dependente das redes de comerciantes
isso o desempenho não adequado e em (os “patrões”) e seus meios de transporte

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Considerações Gerais 121


“facilitador” ou “de apoio” aos indígenas local, isso apesar das boas intenções dos
(seus “clientes”) “beneficiados” pelo PBF; gestores e técnicos do Programa. Estamos
também para cobrir suas despesas com diante do que na teoria social é chamado
alimentação e estadia, de forma a que es- de as condições inimaginadas e as conse-
sas, mais as despesas com transporte, não quências não desejadas da ação (GIDDENS,
sejam iguais ou superiores ao valor do va- 2003).
lor transferido. Com exceção da TI Jaraguá,
constatou-se que, na prática, o custo com O acesso aos locais de saque do benefí-
transporte, estadia e alimentação é o prin- cio foi identificado como um problema em
cipal fator de atração da população até as praticamente todas as Terras incluídas na
redes de comerciantes, e do seu círculo investigação - a exceção talvez seja a TI
vicioso de crédito/endividamento, de que Jaraguá (SP). Como pudemos verificar na
são eles agentes promotores. Mantidos os TI Alto Rio Negro, buscar o recurso em São
critérios atuais de cálculo do valor repas- Gabriel da Cachoeira pode significar para
sado às famílias, o PBF dificilmente alcan- algumas famílias ficar fora de casa (“via-
çará o seu objetivo superior, que é ser um jando”) até duas, três ou mais semanas.
verdadeiro mecanismo de autonomização É necessário ampliar os pontos de paga-
– o que inclui independência nos proces- mento do programa, de forma a facilitar o
sos de tomada de decisão - e de promo- acesso ao recurso.
ção social e econômica desse segmento
da população brasileira. Em nenhum dos casos analisados foi en-
contrado registro de participação de “re-
O círculo vicioso de crédito/endividamen- presentantes indígenas” nas instâncias de
to que caracteriza o sistema de patrona- controle social local do Programa, quando
gem, mascarado pela consciência social elas existem formalmente, pois como vi-
ou ideologia da “ajuda” e da “facilitação” mos nesta pequena amostra de Terras In-
que por sua vez assegura há décadas a dígenas, ou não existem ou funcionam de
122 mais-valia dos “patrões”, foi encontrado maneira bastante precária. Como vimos,
em seis, dos sete estudos de caso, inter- as decisões em relação à utilização dos
ceptando os recursos transferidos pelo recursos repassados às prefeituras são to-
PBF. Dado o nível atual de desinformação madas, na maioria dos casos, de maneira
dos indígenas sobre o programa, em várias centralizada, com regras e procedimentos
TIs as agências lotéricas e os comerciantes nada claros, e sem consulta aos benefici-
são percebidas como parte da estrutura de ários, sejam indígenas ou não-indígenas.
gestão do Programa. Assim, não nos pare- Difícil saber, antes de se experimentar,
cerá estranho que se produzam em breve se incluir representantes indígenas traria
críticas tachando o PBF de contribuir (não melhoras significativas à gestão local do
intencionalmente) com a reprodução e até Programa e para o enfrentamento dos di-
renovação (“modernização”) de sistemas versos problemas identificados, posto que
e práticas de dominação e exploração das alguns são de ordem estrutural do Progra-
populações e povos indígenas em nível ma (regras e procedimentos) e outros do
sistema de práticas estruturadas onde ele ser definidas para cada povo e contexto.
se instala e passa a operar. De toda ma- Isto só poderá ser feito dentro de instân-
neira, garantir a participação e um maior cia de participação e controle social com
controle social sobre as decisões relativas presença e manifestação livre previamen-
à utilização dos recursos repassados às te informada de representantes indígenas.
prefeituras e outros órgãos públicos nos
parece ser a via com melhores chances de No que se refere à condicionalidade re-
transformar o Programa para melhor. É um lacionada com o acesso e a permanên-
direito assegurado na Constituição Fede- cia na escola, e considerando o que foi
ral de 1988, e em dispositivos internacio- visto em campo, chegou-se a conclusão
nais como a Convenção 169 da Organiza- de que está na hora do Programa refle-
ção Internacional do Trabalho (OIT). tir, junto com os indígenas, sobre o lugar
da educação escolar no Programa; sobre
Parece-nos importante ser aberta uma re- como ela vem sendo implementada e que
flexão sobre condicionalidades. Sobre o resultados vêm sendo alcançados local-
tipo de teia de dependências que o PBF mente. Entre os indígenas, beneficiários e
acaba produzindo e sobre os problemas lideranças, pairam muitas dúvidas e sérias
que as condicionalidades implicam: i.e., as desconfianças sobre o projeto de futuro
condições nas quais as populações têm de do Programa para os povos indígenas e
cumprir tais condicionalidades, em alguns o papel da educação na preparação dos
casos demandando deslocamentos por jovens indígenas. Em que medida o PBF
horas ou dias, com custos assumidos pelo não estaria contribuindo para uma noção
beneficiário. Política pública transforma- civilizatória e uniformizante de educação
da numa espécie de chantagem social escolar? De alguma forma, o ideário do
(não propositalmente, evidentemente) e Programa - como da condicionalidade de
que exige cumprir regras que sequer são educação - acaba, em teoria, por não per-
possíveis de cumprir (em muitos casos) o mitir a escolha destas populações, tanto
que acaba transformando a vida das pes- com relação a idades escolares para in-
soas em uma peregrinação constante para gressar na escola, quanto à opção por ou-
conseguir/tentar cumpri-las (algumas in- tras formas de educação, como a denomi-
ventadas pelos agentes locais, inclusive) e nada de consuetudinária. Ao contrário de
acessar e usufruir minimamente do bene- algo que os induza a frequentar a escola e
fício. A justificativa do recurso a condicio- ao consumo, o que os indígenas parecem
nalidades é de contribuírem à garantia de desejar – e isso apareceu fortemente no
direitos. Para que este propósito efetiva- Alto Rio Negro, como também em Porqui-
mente seja alcançado é preciso repensar, nhos, Barra Velha e Dourados - são escolas
junto com os interessados, quais condicio- melhor estruturadas, com currículos dife-
nalidades e em que condições poderiam renciados, merendas adequadas e mesmo

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Considerações Gerais 123


condições materiais mínimas capazes de conhecimento serve prioritariamente para
acolher seus estudantes. Na medida em se operar no contexto interétnico.
que isso não ocorre, há entre os indíge-
nas incluídos na pesquisa quem pensa ser O mesmo “repensar” nos parece necessá-
essa condicionalidade um contrassenso, rio em relação à política de condicionali-
devendo ser abolida para populações in- dades de “saúde”. Além da precariedade
dígenas. Ela existe no PBF por um motivo verificada nos serviços de atenção à saú-
que não está presente entre populações de dos indígenas, o sistema de acompa-
indígenas: no mundo ocidentalizado, a es- nhamento de condicionalidades é falho
cola é vista como o locus de transferência em várias Terras Indígenas: faltam funcio-
de educação e cultura para as novas gera- nários adequadamente qualificados para
ções. Entre os Canela, por exemplo, não é o trato com a população; faltam condições
nada disso: a escola serve para aprender de mobilidade às equipes de saúde; em al-
a se relacionar com os não-indígenas (i.e., guns casos as instalações e equipamentos
aprender o sistema de contagem deles, a ou são insuficientes ou estão localizados
escrever no papel e em português, a ler a grande distância dos locais onde a po-
documentos...) - ao menos é isso o que pulação vive; e foi verificada uma visível
se espera que ela proporcione; a escola é falta de articulação entre as instituições
algo tido como bom, mas não como indis- envolvidas, tanto entre os agentes que
pensável ao bem viver. Onde se “aprende” operam em nível local (Prefeituras, FUNAI,
os ofícios e os conhecimentos relevantes DSEI/SESAI) como entre essas e as que es-
é nos rituais, que formam caçadores, xa- tão nos níveis superiores de articulação
mãs, corredores de tora etc. - enfim, aquilo institucional.
que os Canela vêm como realmente ne-
cessário à sua existência (por isto, uma Não obstante os problemas vividos e pen-
das ideias de “pobreza” é a de escassez sados pela população nos múltiplos con-
de ritual). A escola é uma instituição alie- textos da vida social do PBF, é possível
124 nígena, de funcionamento duvidoso, cujo dizer que em alguma medida o Programa
tem contribuído para a sustentabilidade visando à constituição de um subsistema
alimentar da população, seja viabilizando específico, um Subprograma Bolsa Famí-
a compra direta de alimentos, seja pro- lia Indígena, com regras e procedimen-
porcionando as condições para a compra tos próprios, a exemplo do que ocorre
de ferramentas e instrumentos que são/ no Setor Saúde, e que esse subsistema
serão utilizados na geração de alimentos integre o conjunto das Ações Sociais do
(especialmente os roçados e na pesca). ministério junto aos povos indígenas35.
Mas, por si só, dissociado de outras ações, É importante que esse processo trans-
seus efeitos serão inevitavelmente insufi- corra com participação e consultas aos
cientes para gerar uma efetiva sustentabi- povos indígenas, mediante as suas or-
lidade alimentar. É preciso ser retomada, ganizações e instituições próprias, para
e urgentemente, a tese de que só com definir as mudanças necessárias e como
uma política integrada, intersetorial, será implantá-las. Lembramos que todos os
possível enfrentar os desafios da segu- consultores trouxeram do campo expec-
rança alimentar entre os povos indígenas tativas, demandas e questionamentos
no país. No caso dos Guarani e Kaiowá em dos indígenas em relação ao Programa.
Mato Grosso do Sul, tanto quanto para os Houve grande interesse na pesquisa e
Guarani da TI Jaraguá, em São Paulo, se nos resultados concretos que ela possa
não for resolvido o problema fundiário, trazer no funcionamento do PBF entre
destinando as porções de terra (territó- eles. Além disso, durante as consultas
rios) demandadas, dificilmente elas alcan- prévias informadas, realizadas antes do
çarão a desejada autonomia e segurança início das investigações de campo, hou-
alimentar unicamente com cestas básicas ve o compromisso institucional do MDS
e transferências monetárias. em retornar os resultados da pesquisa,
ao menos nas TIs que foram pesquisadas,
Por fim, parece-nos que o MDS deve criar além de efetuar uma operação geral de
no mais breve possível um eixo ou campo mais informação culturalmente adequa-
de reflexão o mais participativo possível da sobre o PBF.

35. As opiniões emitidas nesta publicação são


de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores,
não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista
do Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Considerações Gerais 125


6
RECOMENDAÇÕES DOS
CONSULTORES À GESTÃO
DO PROGRAMA
As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos consul-
tores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ministério de Desenvolvimento
Social e Agrário.

6.1 Percepções e
significados acerca
do PBF
Em praticamente todas as Terras do Bolsa Família, o papel do CRAS
Indígenas os indígenas deman- etc.). Houve também um grande
dam do MDS para que planeje e interesse por saber como acessar
execute, de maneira coordenada outros benefícios via CadÚnico.
com as demais instituições, ações Muitas famílias não tinham co-
de informação sobre o PBF. No nhecimento disso ou não sabiam
caso da TI Parabubure (MT), p.e., como e onde obter informações
foram constatadas graves lacunas qualificadas a seu respeito.
de informação entre a população,
bem como de informação incon-
sistente, confusas e contraditó-
6.2 Cadastro Único
rias, ou informações enganosas Recomenda-se aos gestores do
repassadas aos Xavante por co- PBF que estimulem e contribuam
merciantes, donos e funcionários com as ações de documentação
de lotéricas e, mesmo, pelos di- da população. Foram constatados
ferentes agentes públicos locais. vários casos de famílias em esta-
O mesmo problema foi identifi- do de vulnerabilidade, ou com um
cado em contextos tão distintos perfil semelhante a beneficiários,
quanto as TIs Alto Rio Negro (AM) que não haviam conseguido se
e Takuaraty/Yvykuarusu (MS), o cadastrar porque não tinham a
que exige uma ação informati- documentação mínima solicitada
va qualificada e culturalmente pelo Programa. Isso apareceu com
informada do MDS à população certa recorrência no caso das mu-
indígena sobre o funcionamento lheres, fazendo com que os mari-
do Programa, suas regras e proce- dos ficassem como os titulares do

126 126 dimentos (CadÚnico, condiciona-


lidades, recebimento e utilização
cartão. No caso dos Canela, da TI
Porquinhos (MA), p.e., eles des-
conheciam o funcionamento do Cadastro Recomenda-se ao MDS que faça gestões
Único, acreditando que a ficha preenchida no sentido de revalorizar o Registro Ad-
tinha como única finalidade garantir o car- ministrativo de Nascimento do Indígena
tão Bolsa Família. (RANI), como um documento válido e ne-
cessário para políticas públicas que te-
A pesquisa também pôde constatar que nham povos indígenas como beneficiários.
os/as funcionários/as que estão em con- Ainda, que seja feita uma ampla divulga-
tato direto com a população na ponta ne- ção entre os gestores e funcionários nos
cessitam ser mais bem preparados para se diferentes níveis da administração públi-
relacionar e comunicar-se com os/as indí- ca sobre a documentação necessária para
genas. Por exemplo, nos Centros de Refe- o cadastramento de famílias no Cadastro
rência (CRAS) e nas Prefeituras municipais. Único de Programas Sociais. Como foi re-
A falta de pessoal com fluência no uso do ferido acima, mesmo entre funcionários
idioma indígena tem sido apontada como públicos foram encontradas inconsistên-
um obstáculo à comunicação e compre- cia, confusão e contradição na informação
ensão de ambas as partes. A consultora relativa à documentação necessária para
que realizou pesquisas na TI Takuaraty/ inclusão no CadÚnico.
Yvykuarusu (MT), recomenda a forma-
ção de um ou dois agentes de referência Por fim, recomenda-se que os agentes do
Guarani ou Kaiowá para as questões de Estado desloquem periodicamente às al-
documentação que possam orientar a po- deias para atualizar os cadastros, e que as
pulação e organizar ações de informação prefeituras sejam responsabilizadas por
na língua, regularmente. Sua recomenda- possíveis falhas de cadastramento, espe-
ção pode muito bem ser expandida para o cialmente quando isso implicar em não
conjunto dos CRAS aos quais recorram fa- inclusão de potenciais beneficiários e a
mílias indígenas. A mesma recomendação ocorrência de bloquei na transferência do
cabe às prefeituras municipais. recurso financeiro às famílias.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Recomendações dos consultores à Gestão do Programa 127


6.3 Condicionalidades
A noção de “condicionalidade”, como tralizando as compras públicas e criando
definida pelos idealizadores do Progra- mercado para os pequenos produtores.
ma, é algo que soa estranho às famílias Além de poder fornecer alimentos de me-
indígenas onde a pesquisa foi realizada. lhor qualidade e culturalmente mais ade-
Vários entrevistados afirmaram desco- quados às escolas nas Terras Indígenas,
nhecer tal regra, e outras só tomaram estimulando a produção de alimentos
conhecimento quando tiveram a trans- oriundos da agroecologia e das cadeias
ferência bloqueada e foram informados da sociobiodiversidade indígenas, a um
da causa. Há também quem questione custo mais baixo, a valorização da pro-
sua aplicação, uma vez que na escola dução local se constituirá num fator de
onde estão os seus filhos há problemas geração de renda adicional às famílias e
com o fornecimento de água (de prefe- a comunidade onde vivem36.
rência tratada); as instalações estão em
estado precário ou são ambientalmente Em situação semelhante foram encontra-
inadequadas (na TI Parabubure (MT), p.e., das as instalações e os serviços de aten-
as crianças Xavante frequentam escolas ção à saúde a que as famílias têm acesso
incompatíveis com o clima da região, o na sua vida cotidiana. Foram identificados
que causa extremo desconforto térmico inclusive em alguns lugares, problemas
e impede a permanência dos alunos nas técnicos, de organização e método sede
salas de aula); não há transporte adequa- recursos humanos (carência de equipa-
do e permanente; faltam professores ou mentos institucionais, acesso a internet,
estes não cumprem com a carga horária insuficiência ou alto rodízio de funcioná-
exigida; e os materiais escolares forneci- rios, de capacitação, de normatização, de
dos não atendem às necessidades bási- organização do trabalho e articulação de
cas nem às demandas de conhecimento, fluxos) que afetam a atualização e trans-

128 em geral desconectados da dinâmica da missão das informações de saúde via


vida nas aldeias e do universo indígena. SISVAN e SIASI, o que, em alguns casos
Em todas as TIs há problemas com a me- resultou em bloqueio na transferência do
renda escolar, pois não é oferecida em recurso do PBF a supostos “descumprido-
quantidade e qualidade adequadas - isso res” da condicionalidade de saúde.
apesar do Programa de Aquisição de Ali-
mentos (PAA) e no Programa Nacional de
Alimentação Escolar(PNAE) existir meca-
nismos de gestão e estarem abertos pre-
36. Em 2013, o Fundo Nacional de Desenvolvimento
cedentes do ponto de vista legal, que au-
da Educação (FNDE) criou um Grupo de Trabalho sobre
torizam a compra direta de alimentos do Alimentação Escolar Indígena. O objetivo formal desse

agricultor familiar cadastrado (e também grupo de trabalho é elaborar uma proposta com ações
estratégicas em alimentação e nutrição direcionadas aos
de famílias indígenas), sem necessidade escolares indígenas, visando adequar os normativos do
de licitação, democratizando e descen- PNAE a essa realidade (BRASIL/CAISAN, 2013).
Assim, a recomendação feita ao Programa é cluídas na pesquisa. No caso da TI Alto Rio
que se repense, junto com os beneficiários Negro (AM) isso pode demandar vários dias
indígenas, se é possível e desejado manter de viagem por rios, igarapés e caminhos no
este sistema de condicionantes, que pune meio da mata. Horas de viagem também
unilateralmente os “beneficiários” e des- apareceram nas TIs Parabubure (MT), Porqui-
considera o estado atual de precarização nhos (MA) e Barra Velha (BA). A dificuldade
dos serviços de saúde e de educação esco- de acesso (físico e também cultural-linguís-
lar destinados aos povos indígenas. tico), em parte por omissão do Estado a res-
peito, é um dos principais condicionantes
É recomendado ao MDS que se tome a (“o caldo de cultivo”) da continuidade do
frente e organize um processo de discussão sistema exploratório da patronagem. Mas
visando identificar os fatores que estão di- não somente, as complexidades culturais do
ficultando a oferta de serviços de qualida- consumo e os dilemas do desejo têm tam-
de à população (educação escolar e ações bém um lugar de destaque na configuração
de saúde) e as estratégias que necessitam e reprodução deste tipo de sistema, e os
ser adotadas para reverter esta situação no comerciantes (“patrões”) sabem bem disso.
mais curto prazo possível. Sobre a Câmara
Interministerial de Segurança Alimentar e A primeira recomendação que emerge dos
Nutricional (CAISAN), tanto quanto o Con- estudos é que se busque aproximar os pon-
selho Nacional de Segurança Alimentar e tos de saque dos locais onde vivem as famí-
Nutricional (CONSEA), pelo papel que am- lias. Na TI Barra Velha (BA), recomenda-se a
bos têm para a efetivação da Política e o instalação de uma lotérica mais próxima aos
Plano Nacional de Segurança Alimentar e limites da TI, ou, alternativamente, a gratui-
Nutricional 2012/2015 (PLANSAN), julga- dade do transporte para os beneficiários do
-se que poderão ter um papel importante PBF que precisam se deslocar da aldeia até
nesse processo37. A participação informada
de representantes indígenas nesse proces-
so deve ser considerada imprescindível.
37. A CAISAN integra o Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (SISAN) e tem por objetivos: (1) ela-

6.4 Logística de borar, a partir das diretrizes emanadas do Conselho Nacio-


nal de Segurança Alimentar (CONSEA), a Política e o Plano
pagamento/recebimento Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - PLANSAN,

do benefício indicando diretrizes, metas, fontes de recursos (orçamen-


tários e outros) e instrumentos de acompanhamento, mo-

O acesso aos pontos de saque do recurso nitoramento e avaliação de sua implementação; (2) coor-
denar a execução da Política e do Plano; e (3) articular as
transferido pelo PBF foi considerado um políticas e os planos de suas congêneres estaduais e do
problema em praticamente todas as TIs in- Distrito Federal. Cf. BRASIL/CAISAN 2011, 2013.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Recomendações dos consultores à Gestão do Programa 129


a cidade mais próxima a fim de sacar o seu Recomenda-se também uma ação do MDS,
benefício. No caso da TI Porquinhos (MA), em articulação com o Ministério Público
ao lado de um transporte para o desloca- Federal e a Polícia Federal, visando desba-
mento dos Canela Apanyekra da aldeia até ratar as redes de exploração/expropriação
a cidade de Barra do Corda, é urgente que de indígenas, promovidas por comercian-
se pense em uma alternativa de local para tes formal e informalmente estabelecidos
que eles fiquem hospedados. Na TI Takua- nas localidades onde há saque do recur-
raty/Yvykuarusu (MS), se recomenda que so do PBF. No caso da região de fronteira
seja criado e oferecido aos habitantes dessa do Mato Grosso do Sul com o Paraguai (TI
(e das outras terras indígenas do município Takuaraty/Yvykuarusu), onde comercian-
e sul do MS) algum tipo de alternativa de tes de ambos os países estão envolvidos
transporte coletivo gratuito. Constatou-se com retenção de cartões, verificou-se que
que a falta de alternativas de transporte e será necessária uma operação conjunta,
seu custo relativamente elevado, deixam os envolvendo instituições brasileiras e si-
indígenas a mercê dos “patrões”, que retêm milares daquele país. É, entretanto, neces-
seus cartões ou documentos pessoais quan- sário reconhecer que a existência e per-
do se endividam. Na TI Alto Rio Negro, reco- sistência dessas redes se apoiam no fato
mendou-se que a Caixa Econômica Federal de sua funcionalidade para um segmento
(CEF) abra uma Agência com plenas atribui- social que não visualiza alternativas à po-
ções na cidade de São Gabriel da Cachoeira, sição desvantajosa que ocupa, num con-
e que o MDS considere a implementação de texto social e político caracterizado por
modalidades diferentes de pagamento para fortes tensões fundiárias. Sendo assim, é
povos indígenas, com a criação de “equipes recomendável que medidas compensató-
volantes de pagamento”. O recurso repas- rias sejam implementadas prévia ou si-
sado às prefeituras, o denominado Índice multaneamente, de modo a que os bene-
de Gestão Descentralizada (IGD), cuja ges- ficiários indígenas possam ter garantia de
tão é (teoricamente) responsabilidades das acesso ao PBF e ao seu usufruto, por vias
130 Secretarias de Assistência Social, bem que alternativas e não simplesmente serem
poderia custear parte desse sistema, desde penalizados por não disporem das condi-
que devidamente “carimbado”. Isto sugere ções de romper com a situação instalada.
a inclusão de um componente “i” (indígena)
na composição desse índice e assim incor- Recomenda-se também uma ampla ação
porá-lo na respectiva dotação constante da de fiscalização da ação das lotéricas. Foi
lei orçamentária, em nível de subprojeto ou constatado o estabelecimento de regras
subatividade, identificada com o nome da arbitrárias para o recebimento do bene-
localidade que receberá os recursos aloca- fício (por exemplo, a exigência de que
dos. Ação que teria que ser acompanhada
38

de uma normatização que faça sistema com


o as bases conceituais e propósitos de polí- 38. Cf. http://www.orcamentofederal.gov.br/glossa-
tica social do PBF. rio-1/recurso-carimbado.
os beneficiários recebam em dias fixos, recebimento quanto no gasto do recurso
obrigando-os a arrumar passagem todo mês financeiro transferido. Alguns conteúdos
para ir até a cidade) e a imposição de “ras- sugeridos a partir do estudo de caso TI
padinhas” como troco e a compra de “capa Porquinhos: português (principalmente lei-
para o cartão”. Também há suspeitas de tura e escrita), matemática aplicada (prin-
apropriação de parte do recurso financeiro cipalmente contabilidade) e direitos legais.
transferido, pela alegação de algumas loté- Também incluir um módulo sobre Políticas
ricas, de que o PBF ou depositou menos, ou Sociais, com um destaque para o PBF (in-
não depositou naquele mês, isso após se ter cluindo suas regras e procedimentos).
consultado pelo telefone 0800, junto à cen-
tral de atendimento do programa, o saldo
com o cartão e a senha do/da beneficiário/a.
6.6 Formas de relação dos
indígenas com o poder
Também ações de informação e capacitação
público e a sociedade local
dos indígenas para que eles mesmos, jun- Recomenda-se a instituição ou efetivação
tamente com suas organizações, tenham da Instância de Controle Social (ICS) do Pro-
maiores capacidades de defesa dos seus grama, determinando que nos municípios
direitos frente aos abusos dos “patrões”. em que há povos indígenas seja obrigatória
Por exemplo, um programa que contemple a participação de representação indígena.
conteúdos básicos de economia financeira
para famílias indígenas que o desejarem e Para a TI Dourados, além da participação
cursos de formação de indígenas para atu- informada de representante indígena na
arem como acompanhantes das famílias no ICS, é recomendada a criação de um órgão
momento do recebimento da renda transfe- de consulta à comunidade para assuntos
rida pelos Programas Sociais, especialmente de família. Para um dos consultores, se a
de idosos – chamaremos transitoriamente FUNAI, o Ministério Público Federal e as
esses agentes de Agentes Indígenas de As- lideranças da TI abrissem um diálogo para
sistência Social (AIAS). Também se poderia chegar a mecanismos apropriados, isso
pensar em bolsa para tradutores e apoiado- “poderia resolver adequadamente uma sé-
res de assistência social. rie de temas que hoje são encaminhados
de forma morosa e ineficiente, dando mar-
gem a conflitos e insatisfação generaliza-
6.5 Utilização do benefício da, além de potenciais injustiças”. A isso se
financeiro junta o reconhecimento institucional dos
Recomenda-se oferecer aos povos indíge- espaços políticos nativos, isto é, das suas
nas condições de acesso a alguns domí- formas próprias de organização social e po-
nios de conhecimento específicos, neces- lítica e de tomada de decisão – um proce-
sários para não serem enganados tanto no dimento a ser aplicada ao conjunto das TIs.

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Recomendações dos consultores à Gestão do Programa 131


No caso da TI Alto Rio Negro (AM), recomen- positivos na relação das unidades do SUAS
da-se que se determine o funcionamento com as famílias indígenas. Essa demanda
em um só local para todos os serviços de foi apresentada em todas as TIs onde a po-
atendimento relacionados ao acesso e exe- pulação fala um idioma distinto e tem difi-
cução do PBF nos municípios que atendam culdades para entender e se expressar no
populações indígenas; e que estes locais se- português brasileiro – isso é mais expressi-
jam acessíveis e que ofereçam estrutura às vo entre as mulheres indígenas.
famílias indígenas, dado que mulheres usu-
almente comparecem às unidades acompa- A formação de “agentes de referência so-
nhadas de filhos pequenos. Muito provavel- bre o PBF” é outra demanda que emergiu
mente esse tipo de encaminhamento tem de várias pesquisas e que, recomenda-se,
abrangência bem maior do que simples- seja incluída no plano de trabalho do MDS.
mente esta TI. Para isso, faz-se necessário Além de informar e orientar os benefici-
um levantamento específico com vistas a ários de cada comunidade sobre o PBF e
ajustar a distribuição dos serviços, de forma outros Programas Sociais na língua indíge-
a torná-los mais acessíveis aos indígenas. na, eles poderiam cumprir outras funções,
como verificar se os dados cadastrais es-
tão atualizados. A existência desse agen-
6.7 Acesso dos indígenas
te de referência na aldeia, a exemplo dos
às unidades do SUAS
AIS e AISAN, permitiria esclarecer muitas
(CRAS, CREAS) dúvidas in loco, evitando deslocamentos
Sugere-se ao MDS que promova esforços desnecessários e em alguns casos, inócu-
para aproximar as unidades do SUAS ao os até a cidade.
mundo indígena e aos diferentes modos de
pensar e de comportar-se que ai existe. Em
primeiro lugar, organizando ações de capaci-
6.8 Atividades produtivas
tação específica voltadas às equipes do PBF e comerciais locais e
132 que estão nos municípios e se relacionam di- Segurança Alimentar
reta e indiretamente com indígenas. Durante Recomenda-se a implementação de ações
as pesquisas de campo, muitos beneficiários destinadas ao fortalecimento da deno-
se queixam que são particularmente mal re- minada economia indígena. Apoiando e
cebidos, mal informados (com evidente má fortalecendo iniciativas de produção, dis-
vontade e descaso) e que os atendentes fa- tribuição, consumo e comercialização de
lantes do idioma indígena, quando há, muitas bens e serviços oriundos da sociobiodi-
vezes se recusam a atendê-los falando idio- versidade local. Também o apoio material
ma distinto do português. às iniciativas familiares e coletivas de pro-
dução de alimentos, com o fornecimento
A contratação de pessoal com fluência de instrumentos de trabalho nas roças,
na(s) língua(s) falada(s) pelos indígenas é manejo florestal e piscicultura. Os ser-
outra medida que poderá promover efeitos viços de Assistência Técnica e Extensão
Rural (ATER) culturalmente qualificada e soberania alimentar desta parcela da po-
continuada certamente têm um papel im- pulação.
portante a cumprir, e a experiência recen-
te mostra que é possível uma assistência Infelizmente em algumas TIs, a distribui-
técnica sensível às demandas, desejos e ção de cestas básicas é ainda uma ação
expectativas indígenas39. necessária. Recomenda-se a continuidade
dessa ação, mas que seja revisto os itens
No caso dos Canela da TI Porquinhos (MA), que entram na sua composição. Em prati-
por exemplo, eles gostariam que o MDS os camente todas as TIs foi apontado o pro-
auxiliasse na implementação de uma co- blema da qualidade de certos produtos e
operativa indígena, junto a outros povos a inadequação de alguns itens em rela-
Timbira (Canela Ramkokamekra, Krinka- ção aos hábitos alimentares locais. Mas a
tí, Krahô, Pykobjê), como modo de terem melhoria na qualidade dos itens da cesta
acesso mais fácil aos produtos dos kupen e básica não é suficiente, há o problema da
sem a intermediação dos “patrões”, e a não quantidade. Foi observado na TI Takua-
precisarem se deslocar à cidade para obter raty/Yvykuarusu (MS), por exemplo, que
bens no comércio, em especial alimentos. em alguns casos uma mesma cesta, com
a mesma quantidade de produtos, é en-
Já entre os Guarani e Kaiowá da TI Doura- tregue para um casal, ou um casal e dois
dos, o incentivo à agricultura familiar e a filhos, ou uma família de 12 pessoas. Por-
projetos de reflorestamento e reconstitui- tanto, é necessário adequar a quantidade
ção das matas ciliares mostrou ser a ação de produto ao tamanho da família.
mais urgente a ser implementada, particu-
larmente devido ao seu potencial efeito Entendemos que além de ações setoriais,
direto e positivo na segurança alimentar promovidas ou pelo MDS de maneira in-
das famílias. Viabilizar planos regionais dependente, ou articulado com outros
e projetos locais de gestão territorial e ministérios e órgãos vinculados (MDA, MS,
ambiental, para que a população possa MEC, FUNAI), é necessário haver uma ação
progressivamente limitar sua necessidade conjunta do CONSEA e da CAISAN. Ambas
pela cesta de alimentos, é o caminho reco- as instâncias têm um papel chave na solu-
mendado. Recomenda-se que sejam feitas ção de muitos problemas e desafios que
gestões junto às prefeituras (e a situação foram identificados pelo processo de pes-
no Mato Grosso do Sul é emblemática do quisa iniciado em setembro de 2013.
uso político de recursos públicos) para
que disponibilizem o maquinário para que
a terra seja preparada no tempo certo, via-
bilizando a agricultura familiar indígena,
39. Cf. Verdum, 2005; Verdum e Araújo, 2010.
e por consequência a sustentabilidade e

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Recomendações dos consultores à Gestão do Programa 133


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E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Referências Bibliográficas 137


Anexo 1 ROTEIRO BÁSICO
COMUM (RBC)

Parte 1: Percepções e visões sobre o PBF e


sobre Pobreza

1. O que é pobreza para você? 6. O que você acha de ter que


ir até a cidade sacar o bene-
2. Você considera a sua comu-
fício?
nidade uma comunidade
pobre? Por quê? 7. O que você acha do PBF?

3. O PBF mudou alguma coisa 8. O que tem de positivo no


na vida da sua família? E da Programa?
comunidade?
9. O que tem de negativo?

4. Se sim, o que mudou? Se 10. Você sabe por que o gover-


não, por que não mudou? no dá este dinheiro para
você?
5. O PBF faz a sua família sair
mais vezes da aldeia? O que 11. Se você pudesse mudar al-
você acha disso (é bom, é guma coisa no BF, o que mu-
ruim, faz diferença?)? daria?

138 138
Parte 2: Cadastro Único

1. Você sabe o que é o Cadastro Único? 5. Como você realizou seu cadastramen-
(se, sim, explicar o que é). to? Procurou um CRAS? Participou de
um Mutirão? Recebeu a visita de um
2. Como você ficou sabendo da exis-
funcionário do CRAS em seu domicílio?
tência do Cadastro? (Através da
prefeitura/ CRAS/ Secretaria de As- 6. Se estão fora do Cadastro, sabe o por-
sistência? Pela FUNAI? Pelo DSEI? quê? Não tem perfil – não precisam?
Pelas lideranças indígenas? Por uma Não querem? Não foram identifica-
consulta prévia (OIT 169)? Por pro- dos como possíveis beneficiários?
gramas de rádio e televisão? Pelos
7. Você já realizou alguma atualização
professores indígenas? Por fóruns
dos seus dados no cadastro?
de participação indígena no muni-
cípio ou na região? Por outros? Por 8. Com que periodicidade você atualiza
quem?). os seus dados no cadastro?

3. Quando você fez o cadastramento 9. Como você fica sabendo que é pre-
de sua família, você foi informa- ciso atualizar os dados? Alguém vai
do de que por meio dele poderia na comunidade/aldeia ou você vai
acessar um conjunto de ações e na prefeitura/CRAS? A Funai/DSEI
programas sociais, entre eles o ajudam a lembrar?
PBF?
10. Na ocasião do cadastramento e/ou
4. Você conhece os outros programas da atualização dos seus dados no ca-
que pode acessar através do Cadas- dastro, você ficou satisfeito com as
tro Único, além do PBF? Pode dar informações prestadas sobre o ca-
exemplos? dastro e sobre os programas sociais
que a sua família pode acessar?

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Roteiro Básico Vomum (RBC) 139


Parte 3: Condicionalidades

1. Você/Seus filhos vai/vão à escola to- 10. Como são adquiridos os materiais
dos os dias? escolares?

2. A escola é indígena? (se a resposta 11. A escola é na aldeia?


for NÃO, pular para a questão 7)
12. A frequência à escola levou à migra-
3. Os professores são indígenas? ção para fora da aldeia?

4. Há merenda escolar todos os dias? 13. Caso seja necessário se mudar da


Quais são os alimentos geralmente aldeia para frequentar a escola, há
oferecidos? alteração na composição do domi-
cílio?
5. Há materiais escolares na língua da
etnia? 14. Caso seja necessário se mudar do
domicílio (na aldeia) para frequentar
6. Você já teve algum problema no
a escola, há alteração na economia
seu benefício por seu(s) filho(s)  não
doméstica?
ter(em) ido à escola?
15. Há posto de saúde na aldeia? (se a
7. Quanto tempo leva para chegar à es-
resposta for NÃO, pular para a ques-
cola do município?
tão 17)
8. Necessita de algum meio de trans-
16. O posto de saúde da aldeia atende a
porte? Qual?
todas as crianças?
9. Há merenda escolar todos os dias?
17. As vacinas de seus filhos estão em
Quais são os alimentos geralmente
dia?
oferecidos?
140
18. O posto de saúde da aldeia atende 25. O deslocamento para a cidade para
a todas as mulheres gestantes e que o tratamento de saúde é por que não
estão amamentando? há posto de saúde na aldeia?

19. Há atendimento pré-natal disponí- 26. O deslocamento para a cidade para


vel? o tratamento de saúde é para alguns
desses casos:
20. Você já teve algum problema no seu
benefício por seu(s) filho(s) e/ou   a a. Medição das crianças
senhora n
  ão ter(em) ido ao médico? b. Pesagem das crianças
c. Vacinação das crianças
21. Há agentes comunitários de saúde
d. Pré-natal
que visitam com frequência a al-
e. Outros*
deia? (se a resposta for NÃO, pular
27. Você conhece as regras da educação
para a questão 21)
(frequência escolar) que seus filhos
22. Os agentes comunitários de saúde precisam cumprir para não ter pro-
fazem a pesagem e a medição das blema no benefício? Você sabe com
crianças? qual propósito elas foram criadas? O
que acha dessas regras?
23. Os agentes comunitários de saúde
atendem as gestantes e as mulheres 28. Você conhece as regras da saúde
que estão amamentando? (calendário vacinal e pré-natal) que
você e seus filhos precisam cumprir
24. Você já teve algum problema no seu para não ter problema no benefício?
benefício por seu(s) filho(s) e/ou   a Você sabe com qual propósito elas
senhora   não ter(em) recebido a visi- foram criadas? O que acha dessas
ta do agente comunitário de saúde? regras?

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Roteiro Básico Vomum (RBC) 141


Parte 4: Aspectos do pagamento/recebimento dos
benefícios/logística de pagamento

1. Quem recebe o BF na sua família? 6. Por quanto tempo em média as


Quem guarda/cuida do cartão? pessoas ficam fora da comunidade
quando vão sacar o benefício? Já
2. Onde você saca o benefício do Bolsa
teve problemas com as pessoas na
Família?
cidade? Se sim, de que tipo? Já teve
3. O saque é feito no seu município? problemas com o retorno? Se houve,
Se não for feito no município, o que de que tipo?
a sua família faz para receber o Bol-
7. O PBF faz as pessoas saírem das al-
sa Família, já que não há locais para
deias mais vezes? O que você acha
saques na sua cidade de referência
disso? (é bom, é ruim, faz diferença?)
(dizer o nome, em cada caso)?
8. Você já teve dificuldade para sacar o
4. Como você se desloca até o lugar em
benefício do Bolsa Família?
que costuma sacar o benefício/Bolsa
Família? Qual o tempo do desloca- 9. Que tipo de dificuldade você teve
mento? Com que tipo de transporte? para sacar o benefício do Bolsa Fa-
Vai só ou junto com outros/as bene- mília?
ficiários/as? Por quê?
10. Normalmente, o Bolsa Família é sa-
5. Este deslocamento implica em des- cado nas datas previstas no calendá-
pesa? Quanto é gasto, aproximada- rio mensal de pagamento?
mente, com transporte para ir até
11. Caso não, por que o benefício não é
o local em que saca o benefício do
sacado nas datas previstas (mensal-
Bolsa Família e voltar para casa/tra-
mente) de pagamento do Programa
142 balho?
Bolsa Família?
12. Você tem ou teve algum tipo de di- [ ] Precisou comprar alguma coisa
ficuldade para usar o seu cartão do no comércio para poder sacar o
Bolsa Família? Bolsa Família;
[ ] Precisou adquirir “raspadinhas”
13. Qual(is) dificuldade(s) você teve para
ou cartão de loterias, para poder
usar o seu cartão do Bolsa Família?
sacar o Bolsa Família;
14. Sua família recebe o benefício por [ ] Precisou deixar uma parte do
meio de depósito em conta bancária seu benefício na casa lotérica ou
(tem o cartão CAIXA Fácil)? no comércio, porque eles disse-
ram que isso era obrigatório;
15. Por que sua família escolheu receber o
benefício por meio de conta bancária? [ ] Teve seu cartão Bolsa Família
retido por funcionários da Caixa,
16. Você costuma entregar o seu cartão casas lotéricas, comércios com a
e a senha, utilizados para sacar os marca CAIXA AQUI (que façam o
benefícios do Bolsa Família, a outras saque do Bolsa Família);
pessoas para que façam pagamen-
[ ] Precisou deixar seu cartão em
tos, saquem dinheiro ou qualquer
outras lojas ou comércio como ga-
outra operação em seu nome?
rantia de compras a prazo (comér-
17. Para quem você costuma entregar o cio sem a marca CAIXA AQUI)
cartão? Já teve algum problema cau- Observação: caso seja constatada
sado por isso? Quais? ocorrência de algum tipo, tentar
entrevistar também os atores en-
18. Algumas das situações abaixo já acon-
volvidos (funcionários da CAIXA
teceram com você e sua família desde
nos municípios, casas lotéricas,
que está no Programa Bolsa Família?
comerciantes).
(marcar mais de uma, se for o caso)

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Roteiro Básico Vomum (RBC) 143


Parte 5: Utilização do benefício/usos do PBF

1. O que você e sua família fazem com 4. A pessoa que decide o uso do di-
o dinheiro do Bolsa Família? nheiro é a mesma que o saca?

2. Alguém da família decide de que for- 5. O não recebimento do PBF em algum


ma o dinheiro será usado? Quem? mês (seja por suspensão, bloqueio ou
cancelamento) causou transtornos?
3. Há consenso entre os membros da
família sobre a forma como o dinhei- 6. Como o não recebimento do PBF em
ro será utilizado? algum mês é percebido?

Parte 6: Relações com o poder público local/comércio/


sociedade local

1. Quando você tem algum problema 7. Quando você vai sacar o benefício, seja
com o Bolsa Família, o que você faz? na agência da Caixa, na lotérica, nos ter-
Quem você procura? minais Caixa Aqui, como você é tratado?
Você acha que o tratamento é diferente
2. Você sabe quem é o responsável
com os indígenas? É melhor, é pior?
pelo PBF (quem paga o benefício)?
8. Você sabia que existem espaços de
3. Você sabe quem é o responsável
discussão entre governo e sociedade,
pelo PBF no município?
as Instâncias de Controle Social (ICS),
4. Quando você precisa falar com al- para tratar do PBF em seu município?
guém para receber o PBF ou quando
144 está com algum problema relacionado
9. Você sabia que as lideranças indíge-
nas podem participar desses espaços?
ao Bolsa Família, como você é tratado?
10. Há alguém na aldeia que participe da
5. Quando você vai sacar o benefício
fiscalização, nas ICS do Bolsa Família?
há algum constrangimento em rela-
ção às pessoas que moram na cidade 11. Você participa de algum grupo que
(não indígenas)? Você se sente mal discute, fiscaliza e acompanha o PBF
de ter que ir até a cidade sacar o be- no seu município ou na sua comuni-
nefício? Por que? dade? Na sua organização indígena?

6. O Bolsa Família provocou alguma 12. Você conhece alguma liderança de


mudança na relação com os comer- indígena de seu povo ou de sua re-
ciantes (eles oferecem novos produ- gião que participe desses espaços
tos (quais?), crédito, mais crédito, de discussão? Você tem conversado
dão melhor tratamento etc.?) com essa pessoa sobre o PBF?
Parte 7: PBF na perspectiva de gênero

1. O cartão do Bolsa Família está em 4. Ainda que o cartão esteja no nome


nome de quem? da mulher, ela tem autonomia para
decidir o que fazer com o benefício?
2. Se for em nome da mulher, houve al-
[fazer esta indagação junto às pró-
guma orientação/determinação por
prias mulheres, procurando verificar
parte de quem fez o Cadastro Único?
o que elas fazem com ele]
3. Tem algum problema o cartão ser
5. O dinheiro do PBF fica com a mulher?
feito, preferencialmente, em nome
da mulher?

Parte 8: Produção e segurança alimentar e nutricional

1. A comunidade deixou de praticar al- via dinheiro para comprar a comida?


guma atividade produtiva por causa
7. Depois de entrar no Programa, com
do PBF (por exemplo, ter roça?)
que frequência a família sentiu
2. Alguém da sua família deixou de medo de passar fome?
trabalhar na propriedade de alguém
8. Com o dinheiro do PBF já foram com-
recebendo por diária? O PBF tem al-
pradas ferramentas ou materiais neces-
guma influência nisso?
sários para a produção familiar? Para
3. O dinheiro do PBF é usado para com- custear mutirão/puxirum/puxirão/aju-
prar alimentos produzidos fora da al- ri/convite ou outros rituais agrícolas?
deia? (Se sim, que tipo?) E dentro da
9. Com o dinheiro do PBF a família
comunidade?
comprou sementes ou mudas para
4. Com o dinheiro do PBF o que mudou na plantação?
alimentação da família em termos de
10. O dinheiro do PBF já foi utilizado
quantidade e variedade dos alimentos?
para adquirir ou reformar barcos e/
5. Desde que entrou no Programa, a fa- ou instrumento de pesca?
mília deixou de se alimentar suficien-
11. A sua família já se uniu a outra(s)
temente bem por falta de dinheiro?
para fazer um projeto de produção
6. Nos últimos 3 meses, algum morador (cultivo, criação, pesca ou artesana-
com menos de 18 anos não comeu em to) com o dinheiro do PBF?
quantidade suficiente, porque não ha-

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Roteiro Básico Vomum (RBC) 145


Parte 9: Acesso aos serviços e benefícios
sócioassitenciais

1. As famílias indígenas conhecem o 8. A família indígena recebe visita dos téc-


Centro de Referência de Assistência nicos de CRAS ou da equipe volante?
Social/CRAS e o Centro de Referência
9. Como a família percebe o CRAS (ou
Especializado de Assistência Social/
CREAS)? Ou seja, como ela define o
CREAS?
CRAS/CREAS?
2. Já foram atendidas nessas unidades?
10. Quando foram cadastrados foram infor-
Quais os motivos que levaram a pro-
mados dos benefícios, como o Bolsa Fa-
curar essas Unidades?
mília, que poderiam passar a receber?
3. De quais atividades participam no
11. Quando cadastrados, foram informados
CRAS?
sobre outros benefícios, como BPC (Be-
4. O CRAS (ou no caso do CREAS) realiza nefício de Prestação Continuada), Bene-
atividades específicas para os indíge- fícios eventuais (ex: auxílio natalidade,
nas? auxílio em caso de morte, calamidade)

5. Você considera importante ter aten- 12. Conseguiram ter acesso ao benefício?
dimento pelo CRAS (ou CREAS)? Por Qual benefício? Qual unidade promo-
que? veu o acesso?

6. O CRAS (ou CREAS) está localizado em 13. A família que possui membro que recebe
local de fácil acesso? Onde? o BPC forneceu essa informação no mo-
mento de preenchimento do cadastro?
7. A família indígena encontra alguma
resistência para o seu atendimento 14. De quais serviços sociais as famílias
146 nessas unidades? Que tipo? indígenas sentem necessidade?
Anexo 2 ROTEIRO BÁSICO
ELABORADO POR BRUNO
NOGUEIRA GUIMARÃES
Parte 1: Composição familiar

1. Qual o seu nome? 3. Você possui filhos? Eles mo-


ram aqui?
2. Qual a sua idade?
4. Quantas pessoas residem
nesta casa?

Parte 2: Cadastro Único

1. Você recebe Bolsa Família? 5. Em qual cidade foi realizado


Quem mais nesta casa rece- o cadastro?
be o Bolsa Família?
6. Você sabe quem envia o di-
2. Como você fez o cadastro do nheiro do Bolsa Família? Por
Bolsa Família? E como você que ele o envia?
ficou sabendo dele?
7. Quem é o responsável pelo
3. Existem outros programas Bolsa Família na cidade?
que você pode acessar pelo
8. A quem você recorre em
mesmo cadastro?
caso de algum problema no
4. Você já atualizou os dados recebimento do benefício?
no cadastro? Por quê?

147
Parte 3: Condicionalidades

1. Existem pessoas nesta casa que es- 4. Alguma vez vocês deixaram de rece-
tão matriculadas na escola? Quando ber o benefício do Bolsa Família? Se
elas vão às aulas? sim, sabe o motivo?

2. O Posto de Saúde atende a todas as 5. Você conhece as regras para rece-


crianças desta casa? E as gestantes e ber/continuar recebendo o Bolsa Fa-
lactantes? mília? Quais são?

3. Os seus filhos receberam vacinas? Al-


gum deixou de receber alguma vacina?

Parte 4: Estratégias de apropriação do benefício

1. Quem recebe o Bolsa Família? 4. Onde você saca o benefício do Bolsa


Família?
2. Com quem está o cartão do Bolsa Fa-
mília? (Posso ver o cartão?) 5. Como você se desloca até o local de
recebimento do Bolsa Família?
3. O cartão está no nome de quem? O
que você acha disto? 6. Com que frequência você recebe o
dinheiro do PBF?

148
Parte 5: Patronato

1. Quem é o seu patrão? 6. Por que você escolheu esta pessoa


para ser seu patrão?
2. Desde quando ele é o seu patrão?
7. Você sabe onde o seu patrão saca o
3. Você sabe quanto recebe por mês
seu Bolsa Família? (na Caixa Econô-
com o Bolsa Família?
mica, na Lotérica etc.?)
4. Você sabe quanto o patrão toma por
8. Seu patrão está com seus documen-
mês do PBF?
tos?
5. Você sabe quanto deve ao patrão e
quando a dívida será quitada?

E studos E tnográficos sobre o P rograma B olsa F amília entre P ovos I ndígenas

Roteiro Básico Elaborado por Bruno Nogueira Guimarães 149

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