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I

Senhorita Seator

Aqueles olhos azuis fitavam o mar. Esse azul, no entanto, não


era como a água que enchia o oceano, mas como o fogo: incandescente,
inquieto, expansivo. Figuravam como duas safiras no rosto bronzeado
de Ellie Seator, uma menina de origem nobre, no auge dos vinte, cujos
cabelos de um castanho escuro desciam lisos à altura do pescoço. Seu
nariz era atravessado por uma faixa de sardas que pontilhavam aos
poucos uma linha horizontal de uma bochecha à outra. Ela se apoiava
a estibordo do Asas da Aurora, um navio de visual detalhado e que
carregava uma pequena tripulação. O casco era de uma madeira clara
e as velas das cores do amanhecer eram cortadas em formas
triangulares.

Não eram piratas ou comerciantes comuns. Eram um grupo de


exploradores que aceitavam trabalhos de busca e escolta, além de
realizarem suas próprias caças a tesouros. Guiados pelo brilhante
caçador de relíquias, Shaun Exarr, os sete tripulantes se esforçavam
para realizar todos os seus objetivos.

— O mar traz algo de novo nesses dois anos que olha para ele,
senhorita Seator? — era o tempo em que tripulação existia.

— Já falei para não me chamar assim, Judas! — Ellie martelou


com a mão o ombro de seu amigo.

Judas Scar usava uma roupa predominante vermelha. Alguns


acessórios de couro eram usados como proteção e bolsos. O cabelo

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ruivo tendia ao magenta e aquele sorriso zombeiro parecia ser colado
em seu rosto. Anéis, pingentes e outros acessórios dourados, apesar de
discretos, mostravam a imagem de uma pessoa apegada aos bens
materiais.

— Você deveria se orgulhar de ter um nome nobre, garota.

— Eu me orgulho do nome da minha família, mas não me


escondo atrás dele. — Aqueles olhos brilhantes consumiam — Antes
de ser uma Seator, me chamo Ellie. Por isso Ellie é meu primeiro nome
e Seator, meu segundo.

— É deveras um argumento esplêndido, senhorita Seator —


seu sorriso irônico sempre tinha um quê de malícia.

Ellie franziu os olhos e formou um pequeno bico com a boca


em uma expressão irritada.

— Terra à vista! — Uma criança de treze anos gritou de cima de


um mastro. Ygor Exarr era o irmão mais novo do capitão. Ele reduziu
uma luneta portátil e a guardou por dentro da camisa. Usava roupas
em tons amarelos claros assim como o chapéu que parecia muito
grande para sua cabeça. O cabelo era loiro dourado, a exemplo de
Shaun, e caía um pouco sobre a testa. Um papagaio pousado sobre a
proteção do cesto repetiu as palavras do dono; era Pierre, mascote da
tripulação.

— É a ilha que visamos? — um homem de roupas verdes


perguntou à criança. Grimm Swalosh, o imediato do Asas da Aurora,
era um dos espadachins mais brilhantes do mar e um galanteador
compulsivo, seus cabelos cor de mel eram cobertos parcialmente por
um chapéu de abas grandes.

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Uma menina de cabelo vermelho intenso, curto e repicado
correu em direção à proa. Ao parar com as mãos sobre as paredes do
navio, quase deixou que seu chapéu de couro enfeitado com penas e
uma caveira fosse levado pelo vento. Lydia Swambucker era uma das
duas garotas da tripulação.

— Iiiiiirra — a ruiva disse em frente ao navio, como se estivesse


montando um cavalo.

— É engraçado como todos nesse navio se vestem como se


tivessem sido convidados para uma festa fantasia e todos tiveram a
ideia de se fantasiar de pirata — Judas abafou uma risada em meio às
palavras.

— Você usa um tapa-olho, cabeça de tomate — Ellie não


perdoou.

— É muito cruel falar da deficiência dos outros assim — o


rapaz colocou a mão sobre o olho esquerdo, tapado por um acessório
de couro.

— Oh! Me perdoe.

Judas riu cobrindo a boca com o punho — Você é muito


inocente, Ellie.

A menina abriu um sorriso. Judas não sabia, mas ela estava


feliz porque ele a chamara pelo primeiro nome.

Um homem de cabelo azul anil observava um mapa em um


papel amarelado. Era Malt Weige, um mago talentoso e misterioso. Ele
enrolou o papiro e o guardou pra uma hora mais conveniente.

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— Arrear velas! — O capitão gritou do convés. Era um homem
loiro de vinte e sete anos, vestido completamente de acordo com a
opinião de Judas. Usava um chapéu preto com penas brancas, um
tapa-olho com uma estampa do “Jolly Roger” cobrindo seu olho
esquerdo, uma jaqueta negra lustrosa e diversos acessórios pelo corpo.

O Asas da Aurora aportou levemente na areia fofa da praia. Os


tripulantes desceram após arrumar o navio e esperaram pelas ordens
do capitão. Shaun, ainda no navio, se pôs a discursar:

—Amigos! — falava em um tom alto e claro — Essa ilha,


aparentemente isolada de tudo, recebe com uma frequência relativa a
visita de marinheiros e piratas. Homens perdidos ou que apenas estão
buscando um lugar para descansar. O que esses homens ignoram,
porém, é o motivo de estarem pisando nessa areia fofa. Lendas existem
para serem seguidas, são como sonhos, você pode ignorá-los, mas são
um reflexo da realidade. Aqui, sobre este solo que repousam seus pés,
há um tesouro e é atrás desse tesouro que estamos. Explorem! Subam o
mais alto nas árvores, cavem o mais baixo na areia, se separem, se
juntem, procurem e achem! Nos encontraremos aqui ao pôr do sol.
Tragam o saque para ser compartilhado — O capitão encerrou o
sermão saltando do navio.

Os tripulantes se dividiram para explorar a ilha e Ellie seguiu


com Judas por um caminho entre árvores tropicais. A brisa refrescava
a pele e fazia um barulho leve, mas contínuo ao soprar pelas folhas.

— Você não achou curioso o discurso do capitão? — Judas


começou um assunto.

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— O que você quer dizer? Sabe que ele gosta de falar daquele
jeito quando dá ordens para...

— Não é isso. Shaun esconde umas das maiores mentes dos


mares atrás daquela personalidade. Ele sempre sabe o que quer. É
estranho ele ter nos mandado buscar por algo de forma tão vaga.

— Acho que você está pensando demais, Judas.

— É mesmo? — o rapaz tirou um papel de uma pequena bolsa


que carregava. Era um mapa.

— Isso pertence ao capitão? Judas, o que pensa que está


fazendo?

—Ele com certeza notará que foi perdido, mas nunca vai saber
o que aconteceu. Isso é um mapa para o tesouro dessa ilha. Percebe?
Você não está curiosa para saber o que o capitão esconde da gente?

—Não gosto muito disso...

—Por aqui — Judas guiava Ellie para ajudá-lo em suas


artimanhas.

Após quinze minutos de caminhada, eles se depararam com


um templo de pedra. A estrutura era coberta pelo verde da grama que
crescia nas paredes cinzentas e cipós que serpenteavam pelas
rachaduras. Uma construção fantástica de um povo antigo que atraía
os brilhantes olhos azuis de Ellie. Uma única entrada quadrada estava
ao centro levando a um corredor que escondia a magnitude do
interior.

Judas estava queimando o mapa de Shaun com um isqueiro.

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— O que você está fazendo?

— Não é óbvio? Estou queimando as provas.

— Você me faz me sentir uma criminosa.

— Mas somos.

— O Shaun vai fazer a gente andar na prancha — Ellie


encolheu os braços num gesto de medo.

Judas olhou para ela com uma expressão de indagação. Em


parte porque o capitão nunca faria algo assim, mas principalmente
porque não havia uma prancha no Asas da Aurora.

—Você está se deixando convencer muito bem pela fantasia de


pirata do capitão.

Ellie olhou para a entrada quadrada e os dois caminharam para


o templo antigo, o lugar marcado no mapa.

Furos no teto permitiam a passagem da luz solar, tornando


possível enxergar algo enquanto se caminhava pelo corredor. O
caminho se estendia e parecia descer, como uma rampa de ângulo
muito agudo.

Subitamente, um alçapão abriu abaixo dos exploradores, mas


Judas teve reflexo suficiente para evitar a queda. Ellie não teve a
mesma sorte. A menina sofreu uma queda de dois metros e grades se
fecharam pela passagem que atravessou, permitindo que continuasse
falando com seu companheiro, apesar de não poder voltar ao andar
superior.

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—Você está bem? — o rapaz se agachou sobre a grade.

— Acho que sim — Ellie limpou as roupas. — Uou! Parece que


é bem escuro aqui embaixo.

Uma pequena tocha caiu pela grade para Ellie, acompanhada


de um isqueiro.

—Você realmente parece estar bem preparado.

— Eu seguirei o caminho adiante. Faça o mesmo e tentaremos


nos encontrar em alguma outra passagem.

Não parecia uma ideia muito inteligente, mas Ellie acatou e


seguiu em frente.

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II

Pássaro Negro

Tithania Blackbird estava perdida. Não queria aceitar isso, era


extremamente orgulhosa para tal, mas estar num antro circular sem
saber por qual porta entrou, a fazia ter que aceitar o fato.

A garota era integrante de uma guilda em uma cidade


portuária, a qual se sustentava realizando diversos tipos de serviços,
que talvez fossem mais bem classificados como missões. Estava
naquele momento a trabalho em uma ilha não tão conhecida. Um
barco a deixara na praia e um mapa a levara ao seu destino principal,
ainda assim, naquele momento não tinha ideia do que fazer.

Carregava na mão direita uma tocha e na mão esquerda um


papel, no qual havia uma moeda desenhada, o motivo de estar ali. Um
cliente tinha oferecido uma boa quantia para encontrarem esse tesouro
perdido, mas parecia que Tithania chegaria com uma missão
fracassada daquela vez.

Só de pensar no rosto de Griffor, seu mestre avarento, ao


descobrir que não conseguiria o dinheiro, Blackbird ficava irritada. E
Dave? E Aisha? Seus amigos ficariam tão decepcionados. Ela tinha que
tentar. Buscaria por cada fresta nas pedras, cada canto não iluminado,
cada sala não visitada. Bufava, soprando a franja prateada que caía
sobre a testa, sacudia os cabelos que desciam à altura das costas.
Escolheria uma nova passagem e seguiria seu caminho, mas como

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saber qual passagem não havia sido tomada? Uma luz avançava por
um dos corredores indicando que alguém se aproximava, também de
posse de uma tocha. Tithania era uma lutadora por natureza e se
preparava para um combate. As coisas estavam ficando empolgantes.

Assim que percebeu um pé passando pelo portal, a garota


disparou uma bola de fogo de suas mãos nuas. Ela era a filha de um
dragão, apesar de nem todos saberem disso, e isso a dava algumas
vantagens.

Ellie foi atingida por uma esfera laranja, quente em seu ombro
direito. Fumaça subiu de sua roupa chamuscada e o impacto foi o
suficiente para que derrubasse a tocha que carregava consigo. Tithania
lançava a que tinha no chão e agora, sem nenhuma fonte de luz, a
escuridão era total.

O cheiro de cinzas incomodava o nariz da pequena navegadora


que desembainhava sua espada sem saber com o que ou o porquê
estava lutando. Portava um belo florete, uma arma sem corte, mas
excelente para perfurações, muito comum entre espadachins e
esportistas. A garota Seator projetava sua energia na lâmina que
brilhava em um azul intenso, na tonalidade do céu.

Tithania correu em direção à luz que era emanada por sua


oponente. Puxou suas duas adagas, armas leves, de corte rápido,
eficazes em combates de curto alcance, que colocavam pressão sobre o
inimigo pela quantidade de ataques. Graças à iluminação de sua
magia, Ellie pôde distinguir o movimento de uma menina avançando:
cabelos cinzas que balançavam com o movimento, uma armadura
escamada cobria seu dorso e os braços desprotegidos eram enfaixados
por panos.

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As lâminas colidiram, as adagas em xis pressionavam o florete.
As duas meninas se encararam por alguns segundos e Ellie expandiu a
aura que envolvia sua arma. A pequena explosão azul derrubou as
lâminas de Tithania e a obrigou a recuar um passo, momento que a
jovem exploradora dos mares aproveitou para estocar. O movimento
foi interrompido pelo braço esquerdo de Blackbird que fora coberto
por escamas negras e duras que podiam ser percebidas pelas brechas
das faixas.

Tithania afastou o florete com o braço vazio e chutou o queixo


de Ellie. Um golpe flexivo, preciso. A velocidade em que o pé de
Blackbird atingiu a oponente mostrava como ela era uma combatente
talentosa.

O impacto foi o suficiente para derrubar Ellie sentada no chão e


fazer com que a luz que emanava apagasse. Ainda que no escuro, a
membra da guilda da cidade porteira estava prestes a atacar quando
ouviu uma voz.

—Por que estamos lutando?

Tithania parou seu movimento imediatamente e pôde perceber,


mais uma vez, aquela luz azul iluminar o local, dessa vez emanada da
palma da mão da menina caída.

— Me chamo Ellie. Acho que não sou tua inimiga.

— Me chamo Tithania — a meio-dragão dava um sorriso


sincero. Isso pode parecer estranho para alguém que estava brigando
há pouco tempo, mas a verdade é que trocar socos é uma maneira
interessante de se formar laços. — Interessante o teu truque de luz.

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—Eu sou uma maga—Ellie levantava. —Uma não tão talentosa.

— Você pode manter essa luz enquanto caminha pelo lugar?

— Gostaria de salvar energia.

— Não se preocupe. Eu sei como recuperar o nosso fogo.

Ellie estava preocupada ao segurar uma tocha enquanto


Tithania disparava uma bola de fogo a uma distância que com certeza
contrariava todas as regras de segurança.

Depois que o serviço completo, elas compartilharam o fogo de


uma tocha para outra e se entreolharam, sabendo que ali começaria
uma grande amizade.

— Desculpa pela bola de fogo... e pelo chute. Você também está


perdida?

— Eu acabei caindo em uma armadilha. Meu amigo está lá em


cima — Ellie encarava o teto — Em algum lugar.

— Esse lugar não é muito amigável realmente. Vamos buscar


uma saída. Eu aconselho aquele corredor — Tithania apontava com o
indicador.

— Mas aquele foi de onde eu vim.

— Eu quis dizer aquele — apontava para o que estava


imediatamente à direita.

As duas seguiram viagem e se depararam com uma passagem


fechada. A porta parecia ter algum sistema de funcionamento.

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— Isso não me parece muito fácil — Ellie dizia encarando a
passagem.

— O que é aquilo? — Tithania apontou para um bueiro e


correu em direção a ele. —Será uma passagem? — Retirou a tampa,
apenas para se deparar com um buraco cheio de água até o topo.

— Tem alguma coisa ali dentro. Parece uma manivela — Ellie


se aproximava.

Antes que Tithania pudesse opinar sobre o assunto, Ellie tinha


mergulhado, mostrando espetacular capacidade de nado. Em pouco
menos de um minuto, a garota que ficou na superfície pôde ouvir o
barulho da porta rangendo ao abrir.

— Deu certo! —comemorava.

Ellie saía do bueiro com o cabelo denso pela água. Ela respirava
fundo e voltava ao chão. Depois, ambas colocavam a tampa de volta
no bueiro.

Elas passavam pela porta.

— Uma escada! Parece que encontramos a saída — Tithania


estava animada.

As garotas prosseguiram caminhando e passaram por mais


antros com diversas portas. Mantiveram a estratégia de seguir apenas
uma direção o que funcionou muito bem, agora iluminadas pela luz
do sol que passava por diversas janelas.

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— Judas! — um homem estava parado em um cômodo que
parecia ter destaque no centro. Se o tesouro estivesse em algum lugar
estaria ali, mas não havia nada.

Ellie correu em direção ao amigo acompanhada de Tithania.

— Ora, vejo que você se multiplicou no tempo em que estive


longe.

— Judas, ela nem mesmo parece comigo.

Tithania estava um pouco confusa.

— A pequena aqui se comportou? — Judas colocava a mão


sobre a cabeça de Ellie e esfregava seus cabelos.

— Ah! Acho que sim — Tithania se apoiava sobre um pequeno


detalhe no meio do altar em que estavam. Uma mesa arredondada que
se erguia da pedra como um relevo. No centro dela, um recuo
octogonal fazia parecer que algo se encaixava ali. Blackbird sabia que
era a moeda que procurava. — Você não encontrou nada aqui? —
Agarrava os ombros de Judas.

— As coisas mais interessantes que encontrei nesse lugar foram


vocês duas — afastava a mão das meninas. — Você parece preocupada
com algo.

— Não é nada — Tithania olhava para baixo.

A luz do sol tomava um tom laranja enquanto passava pelas


frestas no teto e nas paredes. A sensação de fim de tarde descia sobre
os três, aquele doce sentimento de fim de aventura que todos sentem
ao ver o horizonte mudar de cor.

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— O sol está se pondo. Não vamos deixar o capitão esperando.

— Shaun vai ficar muito triste ao descobrir que não tem


nenhum tesouro... Não foi você, Judas que disse que ele sempre sabe o
que está fazendo?

Judas colocou a mão sobre o ombro de Ellie e abaixou o rosto


na altura do dela.

— Lembre-se de manter nosso segredo.

— Capitão? Vocês são piratas?! — Tithania apontou assustada.

Judas via a chance de se divertir um pouco.

— Sim... e dos piores — cotovelava o braço de Ellie.

— É! Nosso capitão usa um tapa-olho — a menina não estava


mentindo.

— E uma perna de pau — Judas estava.

Ellie ria um pouco, mas entrava na brincadeira.

— Ele conversa com tubarões!

— Ele gosta muito de alimentá-los — segurava fortemente o


braço de Tithania que reagia com um soco.

Judas dava um passo para trás e colocava a mão no nariz para


assim constatar que estava sangrando.

— Que amiga agressiva você arrumou.

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— Judas, desculpa! — Ellie se desculpava mesmo sem ter feito
nada.

Tithania olhava para seu próprio punho tentando se situar


melhor.

— Era brincadeira, Tithania!

A garota de cabelos cinza só soube sorrir como desculpa. E


assim seguiram de volta para onde estava o navio. Por sorte, Judas
tinha um excelente senso de direção e sair do templo acabou sendo
bem mais fácil do que entrar.

— Parece que alguém encontrou um tesouro — Grimm se


aproximava de Tithania e se curvava para beijar sua mão.

— Qual o nome dessa pedra preciosa? — olhava de forma


incômoda para os olhos dela.

— Tithania Blackbird — ela respondeu puxando a mão devagar


um pouco sem jeito.

— Todos estão aqui, o sol está se pondo e nem mesmo uma


moeda de ouro! — Shaun balançava os braços enquanto exclamava.

Moeda de ouro? Será que aquele homem buscava o mesmo que


Tithania? Ela não sabia se deveria falar de sua missão, não conhecia os
detalhes e seus novos amigos pareciam um pouco suspeitos.

—Ao menos, me trouxeram uma prisioneira — em um


movimento rápido, Shaun desembainhou sua espada: um sabre curvo
de lâmina negra, contornado por uma linha prateada. Ele desferiu um
golpe rápido acertando o pescoço de Tithania.

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A garota fechou os olhos. Sua cabeça ainda estava em seu
pescoço? Eles eram realmente piratas? Ela foi enganada? Ao abrir os
olhos percebeu estar intacta. O ataque tinha sido extremamente real,
mas não estava nem um pouco ferida.

Guarda-laços, a espada do capitão era uma arma extremamente


interessante. Ela só tinha capacidade para cortar inimigos do usuário.
Pessoas que apresentassem alguma ameaça ou tivessem intensões
malignas. Em outras situações, um golpe da lâmina era como um
toque com uma pena. Tithania nunca entendeu realmente o que
acontecera ali, mas todos riam enquanto Shaun guardava a arma.

—Seja bem-vinda, Tithania. O Asa da Aurora está pronto para


mais um tripulante — só havia uma forma de responder o sorriso de
Shaun: com outro sorriso.

No caminho para casa, o capitão estava muito intrigado, se


perguntando o que havia acontecido com o mapa que tinha
desenhado, mas esse era um assunto que não podia entrar em pauta.
Não era do feitio dele enganar seus tripulantes, seus amigos, mas
havia um motivo para manter segredo sobre o tesouro que visava
naquela ocasião.

—Então você também mora em Wavecot? — Grimm sentou ao


lado de Tithania num banco à lateral do navio.

—Você não tem que trabalhar? — Malt parou bem em frente


aos dois e olhou de forma inexpressiva para seu companheiro de
verde.

Grimm respirou fundo e se levantou, procurando por algum


lugar onde precisassem de ajuda.

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Tithania olhou para o homem de cabelo azul estático diante
dela, mas assim que abriu a boca para falar qualquer coisa que
passasse em sua mente, ele andou para longe dali.

Ygor correu e sentou onde Grimm estava antes.

Uma criança? Tithania se lembrava de Aisha. Não via a hora de


chegar à guilda e receber seu abraço de sempre.

— Qual o teu nome?

—Ygor! É um prazer conhecer você, senhorita.

Tithania não pôde segurar a gargalhada.

— Senhorita? Por favor, me chame de Tithania.

— O Grimm fala dessa forma.

— Grimm? — procurava pelo rapaz de chapéu de abas longas


— Ele não parece um exemplo para ser seguido. Se bem que todos
aqui...

— Meu irmão com certeza é!

— Irmão? Grim... — antes de completar o nome, Tithania


percebia que a criança olhava fixamente para o capitão.

— Ah! O capitão. Shaun o nome dele?

— Isso!

Tithania ouviu uns murmúrios. Baixos, mas agitados. Ellie e


Lydia falavam sobre um assunto desconhecido, mas que parecia
interessante.

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— Entendo. Vocês são poucos, mas parecem se divertir
bastante — O papagaio pousou no colo dela.

— Esse é Pierre. Meu papagaio.

— Todos os piratas precisam de um papagaio.

— Aaaargh! — O garoto dava o seu melhor imitando um


pirata.

— Onde está Judas?

— Provavelmente fazendo algo na cozinha.

— Vocês deixam a comida na mão daquele homem? —


algumas cenas estranhas passaram pela cabeça de Tithania que
instantaneamente tremeu ao passo que um calafrio corria sua espinha.

— Ygor, não vai fazer teu trabalho? — Shaun falou do leme.

A criança levantou e o papagaio acompanhou seu movimento


voando. Tithania olhava sorridente, curiosa com o que o garoto faria.
Então ele gritou a todo pulmão:

—Terra à vista!

Shaun respondeu quase simultaneamente:

— Arrear velas!

Tithania mais uma vez riu daquele quase teatro que estava
assistindo. Seus novos amigos pareciam boas pessoas afinal e ela
imaginava que a garantiriam algumas risadas.

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A brisa do mar soprava gentilmente por seus cabelos. Ela
levantava para ver de longe o lugar onde morava: Wavecot, a cidade
portuária, lar dos Cavaleiros Alados.

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III

As Boas Vindas dos Cavaleiros Alados

Wavecot recebia o mar com seu formato de lua. A cidade era


palco de um movimento intenso, pessoas vinham de todos os lugares
carregando mercadorias de todos os tipos. As ruas se dividiam aos
montes dando morada a casas, lojas, tavernas e todo tipo de
estabelecimento. Era também lar dos Cavaleiros Alados, uma taverna
que abrigava a guilda da qual Tithania fazia parte.

Já no porto, o movimento era notável. Pessoas gritavam


misturando suas vozes à bela melodia do mar, navios chegavam de
viagens longas e diversas tendas se alinhavam formando uma feira,
onde qualquer coisa podia ser achada. As cores quentes da cidade
mescladas à forte incidência solar davam uma sensação calorosa a
quem chegasse.

— Finalmente em casa — Tithania sorria enquanto olhava para


os interiores da cidade.

A tripulação do Asas da Aurora descia carregando algumas


bolsas e cestas, no que o capitão pareceu se interessar por uma tenda.

—Ei, vejam — era Grimm que falava — O capitão parece ter


encontrado algo.

Todos pararam seus afazeres e olharam curiosos para Shaun


que estava em uma tenda que vendia diversas miscelâneas. O capitão
conversava com o mercador, procurando negociar um bom preço. Seu

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sorriso descontraído fazia parecer que eram antigos amigos. Tithania
observava o vendedor ser hipnotizado pelo carisma do irmão de Ygor,
sem perceber que ela mesma fora seduzida pelo encanto da tripulação.

Shaun voltou segurando um gancho daqueles clássicos em


histórias sobre piratas e mostrou para equipe, orgulhoso de sua
aquisição.

— Oh! — Judas simulou estar enjoado — retire tal objeto de


minha visão. Apenas de olhá-lo, sinto-me ser acometido de tétano —
virou o rosto fugindo seus olhos do gancho.

Shaun cruzou os braços e bufou.

— Judas, Judas! — Ellie sacudia o amigo — Você está bem?


Fale comigo.

Quase como se mudasse de personagem em meio a uma peça,


Judas olhou para Seator e depositou a mão nos ombros dela com seu
típico sorriso irônico.

— Estou ótimo, pequena. Obrigado pela preocupação.

— Você tem certeza? — ela arregalou o olho bom de Judas com


uma das mãos — Seu olho parece um pouco pálido.

Ele afastou as mãos da menina.

— Sim, estou bem.

Pela feira de Wavecot, via-se vender frutas, legumes, roupas,


máscaras e até mesmo artefatos que os vendedores afirmavam ser
relíquias.

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— Ei, ei! Você não quer comprar algo? — Grimm se aproximou
de Tithania. — Por minha conta.

A garota o encarou por um tempo com um olhar suspeito, mas


então se decidiu.

— Sim, eu quero — ela o arrastou pelo braço em meio às


pessoas enquanto se colocava a falar.

— A alguns metros daqui existe uma dessas tendas, sabe?


Onde vendem o melhor chocolate do mundo. Sério, todos vocês
deveriam provar — ela fez um sinal com a mão para que todo o grupo
a acompanhasse. — Eu tenho certeza que vocês vão adorar. Sim! Sim!
Todos vocês. Como eu adoro aquele chocolate. Eu vou comer vários —
esfregou as mãos em euforia — É ainda melhor quando alguém paga
pra gente — disparou em uma corrida — Vamos! Vamos! —a
tripulação era obrigada a acelerar os passos para seguir a menina.

Todos pareciam felizes com seus chocolates, mas Grimm


transparecia que tinha gastado um pouco mais do que esperava. Judas
se aproximou do ouvido do amigo e disse:

— Bom trabalho, conquistador — deu dois tapas no ombro de


Grimm e o rapaz de verde sentiu que era sarcasmo.

— Vocês precisam conhecer a guilda! — Tithania falou ainda


devorando seus chocolates. — É um lugar incrível e eu não posso
esperar para apresentar todos vocês para meus amigos.

Os tripulantes se entreolharam.

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— Não façam essa cara! — quando Tithania começou a falar
tanto? — Eu quero todos você lá. Talvez o Grimm até nos pague uma
bebida.

— É... — nem Grimm sabia o que ia falar quando foi cortado.

— Brincadeira — a garota riu — Mas sério, vamos todos.

— Eu adoraria — Ellie era categórica e Lydia parecia


compartilhar de seu entusiasmo.

Os outros se mostravam estar em dúvida. Ygor puxou a jaqueta


do irmão e Shaun assentiu dar uma rápida passada na taverna. Eles
moravam também naquela cidade e o capitão almejava ver sua própria
casa, mas sabia que um pouco de tempo não faria mal.

Grimm concordou finalmente e Malt não disse ou fez


absolutamente nada. O mago azul apenas seguia o fluxo dos
acontecimentos sem demonstrar concordância ou discordância de
qualquer coisa e às vezes era fácil esquecer sua presença.

— Temo ter que recusar o convite — Judas acenou com uma


mão.

— Que? Por quê? — Era verdade que Judas ainda assustava um


pouco Blackbird, mas ela queria todos seus novos amigos juntos.

— Eu tenho outros planos, mas aparecerei quando puder.


Conheço bem o lugar.

— Isso não me parece uma desculpa convincente — Ellie


encarou Judas encurvando as costas.

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— Você vai me ver de novo, princesa — de certa forma aquilo
era uma maneira de caçoar da linhagem nobre de Ellie. Ele usou a
palma da mão para pressionar acima da cabeça da garota, diminuindo
ainda mais a postura dela. — Bom — soltou a menina. — A gente se
vê.

O caminho para a guilda não era longo, ela ficava na costa com
a porta virada para o mar. Tithania girou a maçaneta de uma porta de
madeira em uma grande construção branca e parou à soleira de braços
abertos. A tripulação do Asas da Aurora estava parada logo atrás
quando uma criança correu do interior e gritou tão alto quanto pôde:

— Tiiiiiiiiiiiiiiiiiii! —Tithania era atingida por abraço voador


que a obrigou a dar um passo para fora da taverna.

Aisha, a criança pendurada em Blackbird, tinha nove anos e um


cabelo laranja fogo que descia liso até sua cintura. Ela estava usando
uma túnica branca sem mangas que chegava a seus calcanhares e uma
tiara e braceletes metálicos pintados de rosa.

— Aisha, eu trouxe amigos — disse a menina dragão.

— Oh! Eles são tantos. Ei, aquilo é uma arara?

— Na verdade é um papagaio —Ygor coçou a bochecha.

— Eu sempre quis ver uma arara — Aisha se aproximou de


Pierre enquanto todos entravam.

Tithania correu para o balcão onde um homem de cabelos


negros sobre os ombros e nariz largo lavava um copo. Grifor tinha
sessenta anos, mas estava extremamente bem conservado,

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aparentando pouco mais de quarenta. Ele era o líder da guilda e o
homem que acolheu Tithania quando criança.

— Você trouxe amigos — o homem disse sorridente. — Seus


amigos trouxeram dinheiro?

Grifor era conhecido por ser um velho avarento. Segurava suas


moedas tão firme quanto um espadachim segura sua espada e sempre
que possível, planejava formas de aumentar suas riquezas.

— Grifor, — Tithania estava um pouco triste por ter que dizer


que falhara em sua missão. O líder da guilda não ia gostar de perder
dinheiro. — Lá na ilha, eu encontrei um templo — ela prolongou para
dar a notícia. — E nele, tinha uma espécie de altar, uma pequena mesa
de pedra eu diria, com um recuo capaz de encaixar perfeitamente a
moeda que eu estava procurando; mas não havia nada lá. Desculpa —
ela olhou para baixo, sentada em um dos bancos do bar.

— Uma pena — Grifor apoiou seu braço direito sobre o balcão.


— O nosso cliente iria pagar uma boa quantia naquela moeda.

— O que era ela afinal? — a jovem olhou para o mestre.

— Uma dessas lendas piratas, sabe? Maldições ou qualquer


coisa assim. Tem gente que gosta de se envolver com essas coisas. No
mundo há pessoas de todos os tipos e os colecionadores costumam ser
um tipo estranho. Agora, eu tenho algo para você — Grifor retirou do
bolso um papel e o desdobrou para entregar à Tithania.

— Para mim? — a garota via o conteúdo.

25
— Um dragão foi visto nos campos, não muito longe daqui —
Grifor era um dos poucos que sabia o segredo de Tithania. — Isso com
certeza interessaria você.

— Uma missão? Para tirar o dragão de lá? Eu não vejo um


dragão desde...

— Eu sei. Também achei estranho esse dragão perdido. Ele está


dormindo desde ontem e ninguém o viu chegando. Escondi esse papel
para você. Seria um problema se Dave o visse primeiro.

— Obrigada, Grifor. Você é ótimo — Tithania deu um beijo na


testa do líder dos Cavaleiros Alados.

— Teus amigos parecem ter se enturmado, mas ainda não


compraram nada.

— Calma, senhor — Tithania riu. — Tudo em sua hora. Dave...


um dia também vai chegar a hora dele saber sobre mim — olhava para
um quadro na parede. — Como ele não implica com aquilo?

Na parede do bar, havia um quadro emoldurado retangular. A


pintura de um dragão vermelho gigantesco devastando uma cidade.
Grifor olhou para o quadro com profundidade, como se lembrasse de
algo, mas foi interrompido pela sua própria fala.

— Talvez ele goste de arte.

— Duvido muito — Tithania acrescentou. — Vou ver se algum


dos meus amigos quer saber como funciona nosso sistema de missões.

— Não precisa se preocupar tanto, Tithania. É um dragão


pequeno pelo que disseram.

26
Assim que a menina saiu do balcão, outra mulher se
aproximou de Grifor. Beatrice Crocker se vestia perfeitamente como o
estereótipo de uma bruxa: roupas de um azul tão escuro que só um
olho sensível notaria que aquilo não era preto, um grande chapéu
pontudo sobre seus cabelos lisos e curtos de cor similar à sua roupa,
penas dos tons mais sombrios ornavam sua vestimenta. Seu rosto era
liso e bonito, de uma mulher por volta dos vinte e cinco.

— Grifor, o rapaz ali disse que queria me pagar uma bebida —


apontou com o rosto para um homem à mesa, era Grimm.

— Finalmente os amigos da Tithania estão servido de algo —


serviu rapidamente dois copos de cerveja. — Vá, Beatrice. Tua missão
é conseguir o máximo de dinheiro que puder desse belo rapaz.

— Sim, senhor! — a bruxa segurou as duas mãos de Grifor


antes de pegar os copos sobre a mesa.

27
IV

O Dragão Bebê

— Você é muito engraçado, Mike — Lydia bebia com alguns


homens em uma mesa da taverna, mas teve sua atenção distraída por
uma conversa entre Tithania e Ellie. — Depois conversamos mais — a
garota se levantou e andou até às amigas, ignorando o fato do nome
do rapaz com quem conversava ser, na verdade, Josh.

Tithania e Ellie pareciam ter uma conversa séria quando


sentiram Lydia jogar os braços sobre seus ombros.

— Qual o assunto da vez, meninas? Garotos, moda, caça aos


coelhos?

— Caça aos coelhos? — Tithania se mostrou confusa, mas Ellie


parecia já estar acostumada.

— Melhor. Caça a dragões — a menina Seator respondeu à


amiga.

— Drag... — Tithania, em um movimento rápido, tapou a boca


de Lydia que estava prestes a gritar e seguiu falando.

— Precisamos de um pouco de discrição. Há um dragão


dormindo em um campo aqui perto e precisam de alguém para retirá-
lo de lá. Parece que a guilda é a única coisa com que podem contar.

— Dragões? — Lydia falava baixo agora. — Eles não são tipo,


grandes e perigosos?

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— Esse parece pequeno. Talvez seja um filhote.

— Filhotes de dragões devem ser tão fofinhos — Ellie se


entusiasmou.

— Talvez não tão filhote assim. Certo, vamos falar com Grifor e
partir em nossa missão. Acho que não tem boas vindas melhores pra
vocês.

As três garotas conversaram com o líder da guilda que as deu


mais detalhes sobre a missão.

— Perseu poderia emprestar alguns cavalos para vocês, mas


Tithania é simplesmente péssima com as rédeas.

A menina dragão levantou o punho cerrado irritada.

— Ha! — Ellie caçoou — Como você pode ter problemas com


algo tão simples?

— É mesmo? — Tithania encarou a tripulante de olhos azuis —


Então eu te desafio! — gritou de forma que fez todos na taverna
olharem.

— Eu aceito — Ellie era confiante. — Assim que voltarmos.

Lydia mantinha um sorriso amarelo sabendo que aquele era o


prenúncio de uma catástrofe.

As três saíam quando Ellie parou à porta olhando para dentro.

— Aquele é o Grimm?

29
— Não há nada pra ver aqui — Tithania empurrava a menina
para fora enquanto falava.

— Mas ele parece estar chorando — Ellie disse fazendo força


para ficar do lado de dentro.

— Nada para ver aqui, nada para ver aqui. — Tithania repetia
para a amiga e para si mesma.

Na incapacidade de cavalgarem, as meninas pagaram um


carroceiro para transportá-las. O homem, durante o percurso, citou
haver um dragão dormindo no local aonde estavam indo e naquela
situação, Tithania não hesitou em dizer que estavam seguindo para
resolver o problema. Lydia ficou um pouco confusa, já que Tithania
fez questão de ser tão discreta enquanto estavam dentro da taverna.

— Esse é o destino, senhoritas — o carroceiro parava próximo a


uma subida pouco íngreme, coberta por grama. — Sigam esse caminho
e verão o dragão com os próprios olhos.

As garotas agradeceram e desceram da carroça, prontas para


iniciar o trabalho.

Em menos de cinco minutos de caminhada, foi possível avistar


um corpo vermelho. O campo era aberto e as meninas correram em
direção ao que haviam visto.

Deitado em um sono profundo, o dragão apresentava escamas


vermelhas e lisas; o rosto, de alguma forma, dava uma impressão de
jovialidade e o tamanho era comparável a um elefante adulto, porém
mais comprido.

30
Deitada, a criatura mantinha o topo da cabeça abaixo da altura
das meninas, com a parte inferior repousando ao solo. A cauda
enrolada e as asas comprimidas faziam com que o animal não
parecesse tão assustador.

— Oh! Então esse é um bebê dragão? — Ellie se entusiasmou.

— Quê? Bebê? — Tithania se impressionou com a constatação


da amiga. — Claro que não.

— Uau. De onde eu venho, os calangos costumam ser bem


menores. Mesmo os adultos — Lydia observava o animal com
curiosidade.·.

— Calango? — Tithania estava perdida.

— Ele é tão fofinho — Ellie estava passando a mão sobre a testa


do réptil.

— Mas o que você... — Tithania golpeou a mão da menina de


olhos azuis. — Pare com isso!

— Mas ele é tão encantador — Ellie levou as mãos à altura do


queixo.

— Precisamos acordá-lo para tirá-lo daqui, né? — Lydia


colocou a mão em seu coldre — Eu tenho uma boa ideia.

Antes que pudesse ser impedida pelos movimentos de


Tithania, Lydia efetuou um disparo para cima. As duas caíram no chão
logo em seguida, graças ao salto de Blackbird para evitar o tiro, mas a
menina dragão agiu tarde. Alguns segundos de silêncio se seguiram e

31
as meninas puderam perceber o dragão abrir os olhos. A criatura se
ergueu estendendo as asas e Tithania se apressou em agir.

— Espere! Nós...

Uma baforada de fogo cobriu as três meninas, pintando de


preto a grama onde pisavam.

As três garotas foram protegidas por um círculo azul e Ellie


tinha se posto na frente das outras duas, seus braços cruzados em xis
diante do rosto. Ela dispersou a barreira abrindo os membros e se
preparou para o combate.

O dragão, podia-se notar suas expressões faciais tão facilmente


quanto as de um humano, se mostrou impressionado e recuou um
passo. Tithania correu e usando sua mão, apoiou-se sobre a cabeça da
criatura girando para cima de seu corpo.

A besta, com a menina sentada sobre seu pescoço, começou a se


mover e balançar e abriu suas asas de maneira ameaçadora. Ellie e
Lydia observaram a cena sem saber muito bem como agir. Até que o
dragão alçou voo e então, elas continuaram sem saber como agir.

O dragão, Tithania podia notar, não tinha uma habilidade de


voo tão bem desenvolvida e pousou não muito distante dali. Ele só
queria mesmo uma maneira de se livrar da garota. Blackbird saltou de
seu pescoço fazendo acrobacias no ar e pousou de frente para o réptil.

— Calma. Vamos conversar! — Ela insistiu, as mãos mostrando


as palmas como se pedissem para o animal parar.

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Tithania puxou a faixa que enrolava seu braço esquerdo. Sobre
a pele branca, uma tatuagem formava um padrão de runas no
antebraço. Símbolos tingidos de negro com um significado importante
que o dragão pareceu entender. Blackbird não tinha percebido os olhos
de seu parente vermelho até eles mudarem de cor. Os glóbulos, antes
acinzentados e artificiais, como se uma neblina cobrisse a íris,
tomaram uma coloração mais natural, cor de mel, vívida.

O dragão começou a reduzir em tamanho. A raça tinha a


capacidade de assumir uma forma humana e na verdade, ficava assim
na maior parte do tempo. Opondo-se a aparência bestial, eles são seres
civilizados e dotados de cultura, concordando nas facilidades de suas
formas alternativas. Afinal, enquanto pessoas, podiam manusear
objetos com as mãos e passar por espaços menores, coisas que
favoreciam a construção de cidades onde habitavam, afastados dos
humanos. No geral, só se assumia a forma dracônica em situações bem
específicas, que geralmente envolviam destruição em massa.

Em adição à transmutação, dragões tinham a importantíssima


habilidade de materializar e desmaterializar suas roupas no processo.
Habilidade cuja falta tornaria inviável a mudança de forma, já que
eles, em verdade, tinham uma forma de pensar, quanto a aceitação
social, próxima aos humanos.

O dragão deu lugar a um garoto de idade próxima à Tithania.


Cabelos vermelhos, longos e encaracolados presos em um rabo de
cavalo, uma barba da mesma cor cobria seu rosto parcialmente
falhada, o corpo largo era dotado de músculos fortes.

— Tithania...

33
— Derick...

Os dois se encararam por tempo curto e foram distraídos por


Ellie e Lydia correndo montanha a baixo, ou melhor, rolando.

— Ué. Onde está o dragão? — Lydia foi a primeira a falar


enquanto Ellie ainda recuperava o ar.

— O dragão? É... é... — Tithania olhou para o ar buscando


alguma história.

— Zefir — Derick agarrou Tithania pelos ombros. — Ele fez


isso comigo. Precisamos fazer algo.

Blackbird se colocou cabisbaixa à menção daquele nome. Ela


segurou as mãos do amigo e olhou com um olhar carregado para suas
acompanhantes de missão.

— Olhem, Derick é o dragão — ela colocou a mão sobre o


ombro do rapaz o indicando. — Mas preciso que vocês mantenham
segredo. Essa história é complicada demais.

— Precisamos pará-lo, Tithania — Derick segurou firmemente


o braço da menina. — Você tem a marca.

Tithania abraçou seu amigo com força.

— Fico feliz de não ter perdido você — Ela sorriu. — Vamos


para casa. Lá você estará protegido, eu prometo. E então, você poderá
me contar tudo que você sabe.

— Então nós ficaremos com ele? — Ellie quebrou o clima.

34
V

Herança de Escamas

Kalehan, em sua forma humana, era um homem loiro, rosto


longo, altivo. Usava roupas negras com mangas longas. Com
frequência, ia visitar sua filha em certo bosque. Cruzava a floresta a
passos rápidos, fazia dois anos seguia o mesmo caminho.

Naquele dia, sua viagem foi interrompida por um dos seus.


Zefir não se parecia um humano, como se sua forma alternativa não
pudesse esconder seu verdadeiro eu. A pele era de um moreno leve,
mas pálida, um tom seco. Os cabelos brancos eram curtos e arrepiados,
na testa, quase imperceptíveis, havia dois pequenos chifres. Pelo corpo
sem camisa, escamas de um cinza escuro saltavam, criando formas,
espinhos pelo dorso e membros e linhas vermelhas tingiam a pele
como pinturas sem significado aparente. Os olhos eram brancos e
possuíam uma aura especial, um abismo vazio, cortante.

— Você não tem sido um líder muito presente, Kalehan — o


dragão cinzento prosseguiu a conversa.

O líder dos dragões estava parado, encarando o outro de sua


raça. Já imaginava onde aquilo chegaria.

— Você tem se envolvido por demais com os humanos.


Tornou-se um fraco — Zefir continuou o discurso. — Você pouco é
visto na cidade. Todos estão duvidando de tua soberania.

35
— Os humanos têm um jeito próprio de viver, Zefir — Kalehan
falava pela primeira vez. — Tenho aprendido muito com eles.

— Bobagem! Você se entregou às paixões. Desde que a criança


nasceu, você tem sido outro.

— Você mesmo não tem filhos híbridos, Zefir?

— Mas eles não me amoleceram — apontou a espada em sua


mão direita para Kalehan de forma sentenciosa.

— Sei onde isso vai chegar. Pare com esses discursos vazios. Sei
também que não está sozinho. Faça aparecer seus seguidores, quero
olhá-los no rosto.

Entre os dragões, existia a cultura de desafiar o atual líder pela


liderança. Quando isso não acontecia, o líder também poderia julgar
alguém merecedor de seu título e passá-lo de bom grado. Isso era feito
através de um ritual onde a marca dracônica era gravada na pele do
novo soberano. Isso também significava a morte do anterior, que
selava as características de sua alma nas runas demarcadas.

Zefir temia não poder enfrentar Kalehan sozinho e por isso,


aproveitava-se da falta de testemunhas para atacá-lo de maneira
covarde.

Das árvores, surgiram dois homem, um por cada lado. Um


deles usava uma túnica escura que cobria sua cabeça com um capuz e
uma máscara vermelha que o escondia o rosto. O outro era um homem
alto, próximo aos dois metros, forte, cabelos curtos de um vermelho
intenso. Usava uma armadura de couro e portava uma espada de
lâmina larga que segurava com uma mão.

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— Eu podia esperar isso de você — Kalehan olhou julgando o
homem encapuzado. — Mas Ragnar? — Demonstrava uma certa
decepção com o ruivo.

Chamas de cor pura encheram a mão do líder dos dragões,


depois elas o circundaram, fluindo em volta de todo seu corpo e
dispersaram ao tocar no chão. Aquilo era um campo de batalha e não
restava mais lugar para falas. Uma torrente de fogo foi lançada contra
Zefir, abundante, devastadora. O dragão cinzento respondeu
erguendo a mão esquerda em forma de faca, como se cortasse o ar em
um movimento vertical. As labaredas bifurcaram, divididas por uma
barreira invisível, o chão de areia ficou desenhado.

Kalehan viu com o canto dos olhos a aproximação de Ragnar.


O gigante saltou e fez um corte vertical. Escamas negras cobriram todo
o braço do dragão soberano e ele o colocou entre o rosto e a espada,
bloqueando o ataque. As escamas, extremamente resistentes, cederam
à força do colosso. Elas se partiram, a lâmina tocou a carne, sangue
pingou no chão. Os pés do defensor afundaram no solo, mas ele não
foi capaz de bloquear um segundo golpe: um chute que o lançou
voando para a direção oposta.

Caído aos pés do homem encapuzado, Kalehan tentou se


levantar. Aquele oponente se abaixou, segurou a cabeça do dragão
loiro, colocou os polegares sobre sua testa. Uma dor excruciante correu
por seu corpo o obrigando a gritar. O líder dos dragões envolveu os
punhos em fogo, apesar do que sentia, e desferiu um soco contra o
peito do mascarado. O inimigo foi lançado por entre as árvores com o
impacto e agora Kalehan sabia que Jano não o incomodaria tão cedo.
Faltavam dois.

37
Kalehan voltou ao combate. Um vento atravessou seu corpo,
um frio cortante, fractais de gelo corriam por seus olhos. Era uma
rajada gerada pelo indicador de Zefir. O dragão de fogo estacou por
um segundo, mas logo se envolveu em chamas, recuperou a perfeição
dos movimentos de seu corpo e avançou. Envolto em labaredas, ele
correu por dentro do sopro gelado e socou. O golpe foi parado pela
mão do dragão cinzento, o vento parou, fogo circundou os dois e então
irrompeu do chão.

Zefir saltou para fora da coluna incendiária, chamuscado,


coberto de fuligem. Ragnar avançou, buscou Kalehan em meio ao fogo
e a coluna desapareceu. O dragão ruivo atacava com uma série de
cortes, todos potencialmente mortais. O líder dos dragões desviava,
buscando uma brecha. Com as duas mãos, gerou uma grande
quantidade de fogo, disparada como um canhão, cobrindo o gigante
de chamas e fumaça.

Zefir atacou por cima, um corte com sua espada negra. Kalehan
deu um passo para trás, a espada tocou no chão e esse congelou sob
seus pés. O dragão de fogo estava preso e o ataque seguinte atravessou
abaixo de suas costelas. A lâmina saiu do outro lado, o sangue saiu
congelado.

Zefir retirou a espada e foi obrigado a se afastar por causa de


uma esfera flamejante que se expandiu de seu oponente. Kalehan não
queria se transformar em dragão, os inimigos fariam o mesmo e a luta
tomaria proporções gigantescas, ainda mais com Ragnar ali. Não, ele
não poderia fazer isso.

Os três dragões ainda estavam ativos, mas Kalehan era de


longe o mais ferido. Ele precisava pensar em algo.

38
Dragões tinham diferentes níveis de controle sobre sua
transformação. Alguns, como Kalehan, podiam cobrir seu corpo de
escamas onde bem entendessem, outros, como Ragnar, podiam apenas
se transformar completamente. Havia também aqueles como Zefir, que
mal podiam disfarçar completamente sua natureza.

Kalehan disparou grande parte de seu poder, em uma


gigantesca torrente de fogo que incendiou a floresta diante dele. Sabia
que seus inimigos escapariam com vida daquilo, mas ele só queria
criar tempo. Asas negras surgiram de suas costas e ele as bateu,
voando para longe do campo de batalha. Contava que o incêndio o
cobriria e com o tempo de vantagem já seus inimigos teriam que se
transformar completamente para voar em sua direção. Saiu da vista de
todos e se encontrou com a filha no lugar de sempre.

— Pai, pai! — Tithania era uma criança de treze anos e correu


em direção ao pai quando o viu pousando. Ele se apoiou nos ombros
da menina e a olhou nos olhos. — Pai, você está sangrando. Você está
bem? — Ela tentou o apoiar usando as mãos.

— Blackbird, — dragões não tinham sobrenome. Kalehan


inventou aquele para se passar por humano e Tithania acabou
herdando um nome falso. — Eu preciso que você me escute — ele
colocou a mão suja de sangue frio sobre o rosto da menina. — Preciso
que você vá embora assim que isso acabar.

— Acabar? O que vai acabar?

— Me desculpe por isso — ele rasgou a manga de sua veste


revelando uma tatuagem em seu braço, um padrão rúnico, a marca
que designava o líder dos dragões. Depois, agarrou o braço da menina.

39
Tithania olhou assustada enquanto a marca incandescia,
mudando do preto para o vermelho.

— Eles virão atrás de você, eles virão atrás da marca. Fuja, se


esconda em meio aos humanos, vá para uma cidade grande, abandone
esses campos. Não se preocupe com tua mãe, eles nunca a viram, mas
você, você precisa ir. Guarde esse segredo, não deixe que ninguém
veja essas marcas, nem que saibam do teu sangue.

— Do que você está falando? Quem vai vir? Que marca?

— É um tempo difícil para os dragões, filha. Zefir assumirá o


poder, mas lembre-se: você é a verdadeira soberana entre os dragões.

As runas se ergueram no ar, dançando, buscando um novo


hospedeiro. Kalehan pressionou o braço de Tithania e as marcas
desceram, pousaram, colaram na pele da menina, se tornaram uma
pintura. A criança ainda olhava assustada para os símbolos quando
seu pai a soltou.

— Vá! Abra suas asas, pássaro negro — essas foram as últimas


palavras do antigo líder dos dragões.

Tithania correu pela floresta, sem saber pra onde, sem saber
por quê. Virou as costas para o pai, deixou que suas asas negras
saíssem de suas costas e voou mesmo sem dominar a habilidade.

Kalehan sorriu e fechou os olhos para não mais os abrir.

40
VI

Olhos de Águia, Coração de Leão

Tithania tinha treze anos e vivia nas ruas de Wavecot há alguns


meses. Dormia em becos e roubava nas feiras para sobreviver. Era uma
criança esperta e com as habilidades necessárias para se proteger.

Andando pelas ruas de uma feira, usando um manto


improvisado, ela avistou sua próxima vítima: um homem que
barganhava com um feirante sobre os preços dos tomates. A menina
passou sorrateiramente por trás do comprador e puxou algumas
moedas de seu bolso, correndo em seguida.

A garota disparou contando as moedas em sua mão, entrou


pelos becos, esbarrou nas pessoas, saltou por barracas, derrubou
mercadorias. Aquele senhor nunca a veria novamente e se visse, não a
reconheceria.

Ela entrou em uma ruela e retirou o capuz. Parou para contar o


dinheiro novamente, compraria alguns chocolates com ele.

Andou distraída com um sorriso abobado no rosto ainda


olhando para mão quando deu de frente com alguém.

— Você não olha por onde... — a menina olhou em quem tinha


esbarrado. Reconhecendo o homem que tinha acabado de roubar,
virou-se para fugir, mas foi agarrada pelo capuz sendo obrigada a
permanecer onde estava.

41
No súbito de seus instintos, voltou-se para seu detentor e
socou, um golpe que foi facilmente bloqueado. O homem de cabelos
negros e lisos a fitou despreocupado. Ela tentou usar a outra mão,
chutar, usar a testa, todos golpes em vão.

O homem se abaixou diante dela e pressionou o topo de sua


cabeça com a mão, bagunçando os cabelos prateados. Um sorriso
colado no rosto, olhos semicerrados, o nariz largo parecia um bom
alvo, mas Tithania tinha concluído não conseguir acertá-lo. O homem
abriu as pálpebras e disse:

— Esses olhos — hesitou por um instante. — Você é um


dragão?

Tithania arregalou os olhos e assoviou sem querer.

— Dragão? — empurrou a mão do homem de sua cabeça. —


Não. Claro que não, tipo dragão. Eu pareço um dragão? — começou a
recuar lentamente, passos curtos para trás. Não sabia quem era aquele
homem, mas agora sabia que ele era perigoso.

Grifor se levantou. Mãos na cintura. Observava como a garota


não soava nada natural.

— Olha, senhor, desculpa por roubar teu dinheiro — estendeu


a mão com as moedas. — Estão aqui. Agora se você não se importa, eu
vou andar lentamente na direção oposta a qual você vai, tudo bem?

— Você deve ter fome, né? — Grifor segurava um saco de


tomates. — Eu sou dono de uma taverna aqui perto. Gostaria de comer
algo?

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Tithania trouxe o braço de volta, cerrando a mão em torno das
moedas.

— Você não precisa pagar — não era sempre que Grifor dizia
isso.

— Quem é você? — Tithania perguntou.

— Me chamo Grifor. O dono da taverna mais movimentada


dessa cidade.

— O que você quer de mim? — A garota estava amedrontada.


Ele devia estar atrás da marca que seu pai deixara. Ela segurou o braço
com força.

— Talvez, se eu te der um lar, você pode trabalhar pra mim.


Nada é de graça realmente.

— Um lar? — Tithania, apesar de não querer mostrar, tinha


saudades de casa.

— Se bem que você é uma criança. Não pega bem você


trabalhar servindo bebidas alcóolicas. Mas você pode sair para
comprar as coisas para mim — concluiu. — Seria um adianto.

— Você esqueceu que eu acabei de te roubar? Por que você


confiaria em mim?

Grifor sorriu.

— Porque você não tem olhos de quem mente.

— Mas por que eu confiaria em você? — Tithania acreditava ter


o pegado em um argumento infalível.

43
— Porque eu já esgotei todas as mentiras que eu podia contar e
agora só posso dizer a verdade.

Aquilo não fazia o menor sentido, mas Tithania cedeu. Tinha


fome e queria dormir numa cama. Ela concordou com a cabeça.

— Você gosta de lutar? Quer que eu te ensine?

O semblante da garota mudou instantaneamente. Seus olhos


dilataram e seu sorriso se estendeu.

— Sim! — disse eufórica.

— Siga-me. Começaremos hoje.

Grifor levou Tithania para sua taverna. O lugar era bem grande
e a garota descobriu que também era usado como pousada. Estavam
em um lugar vazio, chão de areia, sem teto, uma espécie de quintal.

Grifor entregou duas adagas para Tithania e a menina notou


que estavam bem amoladas.

— Não deveríamos começar com armas de madeira? — a


garota indagou, sempre inquisitiva.

— Como eu vou te ensinar a cortar com algo que não corta? —


parecia um argumento brilhante.

Grifor também segurava duas adagas.

— O aprendizado mais importante para você seguir é —


Tithania se atentou nas palavras do mestre. — Tenha os olhos de uma
águia e o coração de um leão.

44
— Olhos de águia e coração de leão? — o que aquilo
significava?

Grifor atacou, Tithania cruzou as duas adagas diante dos olhos


para se defender.

O mestre parou diante da pupila e a olhou por um instante.


Pressionou suas adagas para baixo com a mão, tirando-as da linha dos
olhos da menina.

— Como você pretende defender meu ataque se não pode vê-


lo? — Grifor provocou.

— Olhos de águia? — a menina tinha um brilho no olhar.

— Sim. Enxergue tudo, cada detalhe. Veja seu alvo para atacar,
veja seu alvo para defender e quando for agir, seja como um leão, não
hesite.

— Coração de leão? — ela assentia a cada palavra de Grifor.

— Coragem para seguir com tua decisão. É isso que significa.


Veja e faça. Não feche os olhos temendo o ataque. Encare-o, desafie-o.
Olhos de águia, coração de leão.

— Certo! — a garota respondeu.

— Vamos tentar mais uma vez.

Grifor cortou na diagonal. Tithania, atenta, deu um passo para


trás evitando um golpe em tempo impecável. Ela parou para observar
o adversário, mas um chute a fez capotar pelo chão.

45
— Você teve a chance de me atacar, mas não o fez. Você
hesitou.

Tithania levantou e repetiu em sua mente as palavras “olhos de


{guia e coração de leão”.

— De novo — ela disse.

Grifor avançou, lâminas na mão, ainda não tinha iniciado um


ataque; a criança saltou uma altura fascinante e chutou com a sola do
pé o rosto do mestre. O golpe atingiu. O homem andou para trás
surpreso e já era alvo de uma segunda investida, um corte horizontal
na altura da cintura. Ele bloqueou o avanço do braço da garota com
seu pulso, girou e a arremessou no chão.

— De novo? — ele perguntou.

— Sim.

A menina se levantou com um salto e assumiu novamente


postura de combate. Incansável, ela treinou até o anoitecer, quando
pararam para comer.

Já na mesa, Tithania devorava um sanduíche com euforia. Os


meses na rua a fizeram se esquecer do que era se alimentar bem.

— Isso aqui está muito bom — falava com a boca cheia.

— Ah — Grifor suspirou. — Você me fez perder uma tarde


inteira de expediente.

Ela limpou a boca com as costas da mão e se pôs a falar.

46
— Eu vou arrumar uma forma de pagar por tudo. Eu prometo.
Quando eu crescer, trarei algum dinheiro para você.

Grifor pôs a mão no queixo pensativo. Ali surgiu a ideia para


futura fonte de renda de Tithania. Uma guilda, um grupo que realiza
missões em troca de dinheiro. Mercenários, porém com algumas
limitações. Plano que seria concluído depois de dois anos e o dono da
taverna e então mestre da guilda batizaria de Cavaleiros Alados.

— Grifor, como você sabe sobre mim? — a garota esfregava a


barriga.

— Que? — ele não entendeu a pergunta.

— Sabe. O lance com dragões — ela já se sentia confortável


perto dele e precisava de alguém em quem confiar além de si mesma.
Tinha que ser ele. Alguém que talvez pudesse iluminar seus caminhos.

— Ah! Eu já tinha me esquecido disso — Grifor riu.

— Que?! — Tithania se surpreendeu e talvez tivesse se


arrependido um pouco do comentário.

— Você me lembra de um certo alguém — ele suspirou.

— Um certo alguém?...

— Você lava a louça — Grifor levantou e se retirou do cômodo.


Aquela conversa nunca chegou ao final.

— Híbrida! — a garota gritou fazendo Grifor estacar à porta. —


Minha mãe é humana.

47
— Talvez dragões não tenham tanta dificuldade de se
relacionar com a gente — o homem sorriu e atravessou a passagem.

48
VII

O Desafio de Tithania

Tithania escondeu sua marca por anos e quando finalmente


encontrou um dragão, quando finalmente voltou para a sua história,
entregou sua identidade. Ela provavelmente não estava pronta para
aquele momento e ao ver um da raça de seu pai, sentiu-se tragada por
seu passado. Queria saber a influência que a marca tinha, queria saber
se a cultura dos dragões ainda era respeitada. Blackbird acabou
ganhando muito mais do que podia esperar: o dragão, na verdade, era
Derick, um amigo de infância.

Em certo período da vida de Tithania, compreendido entre seus


sete e dez anos; Kalehan, seu pai, costumava a levar para visitar a
cidade dos dragões. Lá, a garota conheceu Derick, um dragão não
muito mais velho que ela.

Tithania não via seu amigo há quase dez anos, e não é de


estranhar que o encontro tenha a comovido. Derick, além de um amigo
de longa data, era a passagem de Tithania para reingressar em sua
própria história e honrar a memória de seu pai.

A taverna de Grifor inicialmente era chamada de Gigante


Vermelho, mas recebeu o nome da guilda quando essa foi criada.

Tithania abriu a porta da Cavaleiros Alados, distraída, ainda


com os pensamentos preenchidos por seu encontro com Derick e se
esqueceu completamente do ritual de recepção.

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— Tiiiiiiiiiiiiii! — a criança de cabelos laranja saltou em
Blackbird levando ambas ao chão das ruas de Wavecot.

Derick, surpreso, observou a cena cogitando suas ações quando


Ellie repousou a mão em seu ombro.

— Não se preocupe. É sempre assim. — ela disse antes de


entrar na taverna acompanhada do menino dragão.

A tripulante do Asas da Aurora fez o trabalho de apresentar o


novo amigo enquanto Tithania estava atirada do lado de fora. Lydia se
conteve em correr para um balcão e pedir uma bebida.

— Primeiro, me mostre a cor da moeda, querida — Grifor


nunca deixava o dinheiro fugir.

Lydia apalpou os bolsos para buscar o dinheiro que Grifor


pedia.

Quando Tithania finalmente entrou, foi recebida por um


discurso de Ellie:

— Finalmente você chegou — a menina a encarou com seus


olhos azuis.

— Mas nós chegamos juntas — Tithania argumentou em vão.

— Não fuja de suas responsabilidades. Não pense que me


esqueci do teu desafio.

Tithania lembrou que havia desafiado Ellie para uma disputa


de hipismo e isso a preocupava já que sabia das próprias limitações no

50
assunto, contudo, não poderia fugir de um desafio, ainda mais
proposto por ela mesma.

A menina dragão olhou para Derick. Havia tanto para falar


com ele, mas teria que esperar.

— Certo! Grifor, onde está Perseu? — perguntou em voz alta.

O dono da taverna estava pedindo a Aisha para comprar


algumas caixas de leite e se virou para responder. Você vai achá-lo se
for ao estábulo.

A enorme construção que dava morada aos Cavaleiros Alados


possuía um estábulo, que no geral, era cuidado por Perseu, um jovem
notável quando o assunto era cavalos.

— Uma armadura completa não me parece ideal para o


trabalho que está fazendo — Tithania se aproximou do rapaz que
alimentava um dos animais.

— Você também está sempre vestindo tua armadura, Tithania


— Perseu era um pouco mais velho que a menina, possuía cabelos
castanhos curtos e vestia uma armadura completa, sem elmo, de um
branco límpido.

— Mas a minha não é tão chamativa — Tithania olhou para as


próprias roupas. A roupa era tecida com um metal simulando
escamas, mas não tinha uma aparência de armadura tão evidente.

Perseu deu total atenção à menina.

— Eu preciso de um cavalo. Dois.

51
Tithania explicou a situação para Perseu que relutou, mas então
cedeu.

Enquanto a cidade se preparava para o desafio, um homem


ruivo estava sozinho em um beco. Ele encarava a mão suja de sangue
que acabara de tossir. Judas sabia que o fluido não deveria ser tão
escuro, ou tão espesso. Ele fechou os olhos aceitando a situação e
procurou um lugar para lavar as mãos.

A movimentação na rua era grande para ver o duelo. As


notícias se espalhavam rápido quando se tratava daquela guilda.
Perseu guiava dois cavalos negros e algumas pessoas questionavam a
demora de Aisha que ainda não havia trazido o leite.

— Esse é Amadeus — entregou um cavalo para Tithania. — E


esse é Lucio — cedeu o outro para Ellie.

— Você dá bons nomes para os cavalos — Ellie concluiu.

As meninas subiram em seus animais e já ali demonstraram


total falta de habilidade. Perseu mordeu os dedos preocupados e
algumas pessoas discutiam quem havia tido a ideia daquele desafio.

— Certo. Vocês já decidiram quais serão as regras do duelo? —


o cavaleiro tomou a frente das duas e perguntou.

— Quem conseguir ficar no cavalo por mais tempo ganha —


Tithania deu a resposta.

52
Ellie pareceu aceitar aquilo como um desafio, mas Perseu não
entendeu assim tão bem. Eram cavalos, não touros, qual era a
dificuldade de permanecer em cima deles?

Enquanto ele ainda pensava, as duas meninas se olharam e


balançaram a cabeça decidindo iniciar o duelo. Elas sorriram, gritaram,
bateram as pernas nos cavalos e atropelaram o rapaz na armadura
branca.

Os animais deram partida e o desafio que todos esperavam não


durou segundos. Amadeus, o cavalo de Tithania, fez uma curva,
entrou em meio à multidão, derrubou caixas e pessoas e perdeu o
controle completamente. Lucio, o cavalo de Ellie, andou poucos
metros e ficou parado. Ellie estaria em apuros se fosse uma corrida,
mas aquelas pareceram boas condições para ela.

Perseu levantou e olhou o cavalo enlouquecer. O animal se


balançava enquanto Tithania o agarrava para não cair. O cavaleiro
correu e conseguiu chegar a tempo de salvar o cavalo das mãos de
Tithania.

A menina foi lançada ao chão e o rapaz passou por ela


enquanto caía. O homem saltou sobre o cavalo e a simples sensação de
ter alguém que sabia o que estava fazendo sobre ele, acalmou o
animal.

O desafio foi assunto por toda tarde, quando finalmente o sol


se pôs e alguém abriu a porta.

— Trouxe os leites — era Aisha.

53
VIII

Um Combate de Tirar o Chapéu

O duelo entre Tithania e Ellie foi um sucesso e Grifor não pôde


deixar de pensar em uma forma de ganhar dinheiro baseado naquilo.
Ele passou toda a noite criando um plano até que obteve uma notícia
para dar na manhã seguinte.

— Vou iniciar um torneio — ele comunicou aos membros da


guilda que já estavam na taverna, muitos moravam lá mesmo.

— Está precisando de dinheiro, velho? — Um rapaz loiro, da


idade de Tithania, cabelos ondulados sobre os ombros largos e
vestindo roupas simples falou.

— Eu nunca preciso de dinheiro, mas eu sempre quero, Dave


— Grifor respondeu.

Lydia e Ellie, que dormiram na pousada, também estavam


presentes.

— Quais são os detalhes? — Beatrice Crocker, sempre


chamando atenção com seu chapéu pontudo, perguntou.

— Teremos dois tipos de cadastro — o dono da taverna


começou a explicar. — Um para apostadores e outro para lutadores.
Iniciaremos hoje a inscrição de lutadores e quando acabar,
começaremos as apostas.

54
— Imagino que tenha uma taxa de inscrição — Tithania
perguntou, conhecendo o mestre.

— Claro, querida. Não posso deixar o dinheiro fugir. Mas a


maior parte do investimento entrará pelos apostadores. No fim, quem
apostar certo, vai ganhar uma quantia baseada naquilo que apostou e
o lutador vencedor vai poder pedir para que um dos outros lutadores
faça qualquer coisa. E — Grifor deu uma entonação maior — o pedido
pode ser feito pra mim também.

— São termos muito perigosos. Tem certeza que vai dar certo?
— Beatrice foi racional.

— Com certeza. Ninguém vai perder a oportunidade de


diversão.

Todos concordaram com a resposta.

— Certo. Quantas vagas terão para lutadores? Torneios só


funcionam em certo número de pessoas — a bruxa continuou.

— Deixe que se inscrevam. A matemática, eu resolvo depois.

Tinha muito para dar errado, mas Beatrice não duvidava de seu
mestre.

— Quantos aqui pretendem participar? — o dono da taverna


perguntou.

Ellie, Tithania, Dave e Selene levantaram as mãos.

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Selene era uma jovem membra dos Cavaleiros Alados. Possuía
cabelos ruivos escuros e estava usando um pijama azul. Sentada em
uma das mesas, tomava um chá numa pequena xícara branca.

— Você não vai participar, Lydia? — Ellie tentou convencer a


amiga.

— Eu não confio no homem do dinheiro — a menina confessou


em voz baixa.

As inscrições se iniciaram e Beatrice ficou responsável pela


documentação. Uma mesinha foi colocada do lado de fora da taverna,
onde a bruxa fazia o trabalho burocrático além de convocar os
possíveis participantes.

— Então, o que você vai pedir se ganhar? — Tithania e Dave se


inscreveram juntos e ela perguntou ao amigo.

— Para o Grifor tirar aquele quadro do bar.

— Ah... o quadro — Ele com certeza não podia saber que


Derick era um dragão.

As inscrições e apostas duraram três dias e na tarde seguinte, o


torneio aconteceu.

A frente da taverna Cavaleiros Alados encheu de pessoas.


Grifor estava certo: o torneio era um sucesso. As lutas aconteceriam ali,
na rua, em meio a um círculo de pessoas que estavam ali para assistir e
torcer por suas apostas.

56
Grifor, claramente feliz, estava no meio do espaço aberto pelas
pessoas em círculo que formava o que seria usado como arena. Com
um papel na mão, ele chamou os primeiros lutadores.

— Tithania e Grimm.

Então aquele homem se inscreveu? Bom, Tithania preferia que


fosse ele do que o Judas.

— Olhe como o destino nos une. Desculpa princesa, mas eu não


posso perder. Tenho um pedido para fazer.

— Saiba que eu também! — a garota não hesitou.

Grimm tinha sua espada embainhada no lado esquerdo e


apoiava sua mão do mesmo lado sobre a empunhadura detalhada.

Tithania puxou as duas adagas que ficavam presas nas costas à


altura da cintura.

O rapaz respondeu desembainhando a rapieira. A espada de


lâmina fina era conhecida por sua leveza e movimentos rápidos.
Apesar da capacidade de corte, era propícia para um estilo de combate
com mais estocadas. Ele a empunhava com a mão esquerda, algo que
podia confundir um pouco os inimigos já que não era tão comum.

Grifor anunciou o início do combate.

O chapéu verde de Grimm subiu aos céus, ao alcançar o ápice


de seu movimento, projetou uma grande sombra. Ele desceu
completando a parábola e passou em frente ao rosto de Tithania,
cobrindo sua visão por alguns instantes. No primeiro filete de visão
que Tithania teve enquanto o chapéu descia abaixo de sua linha dos

57
olhos, ela notou uma espada se aproximando de seu rosto. Grimm
havia se movido em uma fração de tempo minúscula, mas ela não
tinha tempo para pensar, precisava reagir.

As adagas se chocaram por baixo da rapieria, levantando a


espada. Grimm se moveu para trás e Tithania pouco percebeu que
enquanto atacava, ele pegou o chapéu, ainda no ar, com sua mão
direita.

O rapaz devolveu o chapéu para a cabeça e sorriu para a


garota.

Ela avançou, realizou uma sequência de ataques com suas


adagas, mas Grimm se movia com destreza. Os pés do espadachim
mexiam-se com velocidade, girando, dando passos, uma dança
complexa que fazia o rapaz se desviar de todos os ataques.

Tithania saltou. Um chute aéreo era sua tentativa de acertar o


oponente, mas fracassou. Grimm recuou e preparou uma estocada,
avançando em seguida, mas a menina dragão também era ágil. Ela
girou em torno do eixo do adversário e o chutou pelas costas. O golpe
derrubou o chapéu.

Grimm botou a mão sobre a nuca e virou-se para continuar o


combate. Tithania sorriu.

O rapaz girou a espada em seu punho e os dois avançaram. O


movimento foi de passagem, os dois terminaram costa a costa.

Um segundo se passou e então Tithania notou ter sido alvejada.


As alças de sua armadura partiram e ela segurou a vestimenta para
que não caísse.

58
Os dois oponentes se olharam novamente. O público ficou
exaltado com a situação.

— Seu pervertido — Tithania segurava a armadura com um


dos braços.

— Desculpa, mas às vezes é preciso jogar sujo para ganhar —


Grimm deu de ombros.

Enquanto ele ainda falava, Tithania avançou mais uma vez,


usando o braço livre para atacar. Grimm surpreso desviou dos golpes
de forma confusa e era notável que seus movimentos estavam um
pouco atrapalhados.

Tithania chutou. O golpe não acertou Grimm, mas ele tropeçou


e caiu sentado. A garota o observou com um olhar vitorioso.

— Desisto — Ele disse.

Todos se impressionaram. Algumas pessoas na plateia gritaram


descontentadas por perderem a aposta.

O rapaz se levantou e guardou a espada. Em seguida, pegou o


chapéu, restabelecendo-o sobre os cabelos.

— Me desculpe por jogar sujo. Estarei torcendo por você.

— Ei! — Ellie gritou da plateia. — Você deveria torcer por mim.

Tithania não entendeu a desistência, gostaria de continuar


lutando, mas não desperdiçaria a vitória. Deixou que Grifor a
anunciasse vencedora e entrou na taverna para arrumar sua armadura.

59
— Eu apostei algumas fichas em você, garanhão — Judas
apareceu quando Grimm se moveu para fora da arena.

— Judas? — Ellie se assustou. — Você está bem? — se


aproximou do amigo — seus lábios estão um pouco roxos.

— Estou ótimo, senhorita, exceto pela derrota de Grimm.


Agora as chances de vitória do Asas da Aurora foram embora.

— Não se preocupe. Eu também me inscrevi! — Ellie animava


o rapaz.

— Se ao menos ele tivesse se inscrito — Judas ignorou a garota,


olhando para Malt que também estava na plateia, mas não perto deles.

— Nesse caso — Grimm tomou a voz. — Eu dificilmente me


inscreveria, pois o vencedor já estaria decidido.

— Rapazes, eu estou aqui — Ellie sacudiu os braços.

— Lembra quando pegamos aqueles bandidos? — Judas


continuou a falar sobre Malt.

— Aquilo certamente foi exagerado — Grimm respondeu.

Ellie chutou a canela de Judas que gritou e olhou pra ela.

— Por que fez isso?

— Eu queria saber se eu estava aqui — a menina sorriu.

60
IX

Festa do Chá

Tithania arrastou Aisha pelo braço e atravessou a porta da


taverna.

— Mas eu quero ver a outra luta — a criança relutou.

— Eu não vou lutar de novo se você não me ajudar a costurar


as alças da armadura.

Aisha aceitou.

Dentro da taverna, Tithania viu Dave e Derick conversando


sentados à mesa. Ela estava feliz por eles estarem se dando bem, ao
menos por enquanto. Ela torceu para o quadro na parede não ter
entrado em pauta.

— Dave, você não deveria estar lá fora? Seu nome pode ser
chamado — Blackbird indagou.

— Não se preocupe. Pedi pra Aisha vir me avisar quando for a


minha vez.

— Aisha está aqui — Tithania levantou a garota pendurada


pelo braço como se fosse um brinquedo.

Dave se levantou e apertou a mão de Derick. Tithania pôde


jurar ter sentido a taverna tremer nesse exato momento, mas claro que
era apenas sua imaginação. O garoto loiro trajava uma armadura

61
simples de aparência bárbara e usava uma tiara metálica na cabeça. Ele
saiu correndo para fora enquanto Tithania subia as escadas sem largar
a roupa.

A vez de Ellie lutar foi na terceira luta e Selene foi sua


oponente.

A tripulante já havia visto a menina antes, mas não sabia nada


de suas habilidades.

A integrante dos Cavaleiros Alados tinha cabelos


extremamente lisos e vestia uma roupa chamativa. Suas vestes
combinando várias cores e bem ornamentadas lembrava um pavão.
Era um tipo de vestido longo, mas adicionado a alguns filetes de
tecido que desciam da cintura e um punhado de penas azuis que
envolvia o colarinho.

Ellie cumprimentava a oponente que entrava na arena bebendo


uma xícara de chá.

— Você parece gostar bastante de chá — a menina de olhos


azuis sorriu.

— Sim — Selene ficou vermelha.

— Qual o teu favorito?

— Ah — a menina começou a contar nos dedos. — Eu gosto de


tantos.

— Ok. Vamos tirar um dia para você me mostra-los.

— Sim! — a garota se curvou como se agradecesse.

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— Vamos ter uma boa luta — Ellie desembainhou o florete.

Selene olhou para os lados, procurando por Beatrice na plateia


e então entregou sua xícara. Retornando à arena, Ellie a esperava
exercitando as pernas.

Grifor declarou o início da luta.

Selene estendeu as duas mãos. Um círculo mágico repleto de


detalhes, de um branco luminoso, apareceu em sua frente. Instantes
depois, inúmeros projéteis de energia em formato de penas foram
lançados contra Ellie. Os ataques foram como mísseis e uma explosão
de luz cobriu a garota.

— Desculpe, desculpe, desculpe — Selene se curvou uma vez


para cada palavra. — Eu não queria ter te matado.

Todos em volta fizeram silêncio até que Ellie finalmente


apareceu, ferida, mas viva, envolta por uma energia azul que
acompanhava completamente seus contornos.

— Foi um ataque bem forte — Ellie sorriu. — Eu vou cobrar o


tratamento das minhas feridas com chá.

Selene pareceu ficar extremamente feliz ao ver a menina bem e


sorriu concordando.

— Agora é minha vez — Ellie avançou estocando.

Selene desviou, de suas mãos surgiram garras feitas de luz


cobrindo seus dedos. A fã de chá atacou e a luta tomou proporções de
curto alcance.

63
Ellie atacava e desviava, surpresa pela menina conseguir se
manter tão bem num combate corpo a corpo.

— Achei que você só seria boa em combates a distância —


Seator disse ofegante. — Parece que me enganei.

Selene não disse nada, focada em atacar com suas garras de


energia.

A luta se prolongou sem que nenhuma das oponentes fosse


ferida e Ellie tomou distância.

— Certo. Vou te mostrar meu poder também — a garota


pareceu confiante.

As garras de luz sumiram da mão de Selene que parou ereta


observando sua oponente.

— Espero que você consiga se defender — Ellie guardou o


florete. — Não quero que se machuque muito.

Selene levantou uma sobrancelha assustada.

Ellie cruzou os pulsos em frente ao corpo, na altura do


abdômen. Uma aura azul a envolveu e começou a expandir. A energia
fluiu à sua volta e começou a criar filetes, subindo como bordas de
uma chama.

— Está pronta? — Ellie sorriu.

Selene deu um passo pra trás temerosa.

A energia azul cresceu, Ellie podia ser vista lá dentro como o


núcleo de uma bola de fogo. Ela tencionou seus músculos e sua aura

64
perturbou-se assustando todos que olhavam e então dispersou,
desaparecendo.

Ellie caiu no chão desmaiada, exausta por ter gastado tanto


poder.

Selene correu para ver se estava tudo bem e Grifor declarou a


vitoriosa confuso.

A oponente de Ellie a carregou para o meio das pessoas onde


Judas a recebeu.

— Aisha pode curá-la. Onde ela está? — Selene olhou para


todos os lados procurando a criança.

— Eu não acredito que ela gastou mais poder do que tinha —


Judas riu.

Selene concordou com a cabeça.

— Bom, não sei pra quem torcer agora.

— Torça por mim! — Selene disse com os olhos brilhando.

Malt se aproximou e segurou Ellie pelas costas.

— Gastar magia assim pode ser perigoso — o rapaz de cabelo


anil colocou a mão sobre a barriga da menina gerando uma esfera
azul. Não demorou para que a garota acordasse.

— Ai — ela esfregou os olhos.

— Boa noite, princesa — Judas disse escarnecendo.

65
— Você acordou — Selene se alegrou tímida. — Vou procurar a
Aisha para você.

— Traga um pouco de chá também — Ellie sorriu.

66
X

Boa Noite, Marshmallow

O torneio contava com dezesseis participantes: dois integrantes


do Asas da Aurora, seis dos Cavaleiros Alados e outros oito guerreiros
que se acreditavam capazes de ganhar.

Tithania, já com as alças da armadura costuradas, voltou a


tempo de ver as últimas lutas da primeira rodada. Conversando com
os amigos descobriu que Dave havia sido eliminado por Perseu e se
entristeceu por ele.

Aisha, assim que voltou, começou seu trabalho tratando dos


feridos. A menina tinha grandes capacidades curativas com seus
poderes. Uma luz laranja brilhava sobre Ellie enquanto a menina
respirava, deixando-se recuperar pela magia da criança.

Blackbird procurou saber quem foi o vencedor da segunda luta


e, consequentemente, seu oponente. Obteve uma resposta que a
agradou: Wyna Bragança.

Wyna era uma moça de vinte e três anos. Possuía sangue nobre
assim como Ellie, mas parecia querer fugir desse detalhe, seus cabelos
eram rosa, curtos e repicados e os olhos inspiravam confiança. Ela e
Tithania tinham uma espécie de rivalidade que sempre as
proporcionou boas disputas e agora, em um combate direto, Blackbird
não podia deixar-se ser derrotada.

67
Ela conhecia bem as armas de Wyna: flechas venenosas. A
habilidade da nobre com o arco era inegável, mas em um combate
curto, dentro de uma arena, a vantagem era total para Tithania.

Depois de vinte minutos de pausa, Grifor anunciou o início da


segunda rodada.

As duas oponentes se encararam atentas. Wyna retesou uma


flecha no arco antes de Grifor anunciasse a luta. Ela atiraria assim que
o combate começasse, Tithania só precisava se desviar daquela flecha e
a batalha estaria decidida.

A luta começou e Wyna atirou a flecha. Tithania, prevendo o


movimento, bloqueou o disparo com sua adaga e deixou escapar um
sorriso vitorioso. Nesse instante, uma segunda flecha alcançou seu
ombro. Wyna atirou duas flechas? Naquela velocidade? A partir de
agora, era uma questão de tempo: Tithania precisava vencer antes do
veneno fazer efeito.

A menina dragão avançou e golpeou. Seus golpes saíram tortos


e quando Wyna esquivou, Tithania caiu com as mãos tocando o solo.

Wyna colocou mais uma flecha no arco e apontou para a cabeça


da oponente.

— Desiste, Blackbird?

— Eu não posso perder para você — Tithania agarrou as


pernas da adversária e a derrubou no chão. Sentada sobre Wyna,
sentiu seus olhos fecharem e manteve o foco para desferir um último
golpe.

68
— Boa noite, marshmallow — socou o rosto de Wyna com força
o bastante para nocauteá-la e em seguida, apoiou a mão do chão
evitando desmaiar.

Mais uma vitória foi adicionada para Tithania, que aguardou a


segunda rodada enquanto era tratada por Aisha.

Ocupada com o veneno, Tithania só foi descobrir seu oponente


na hora do combate. Ela e Perseu estavam na arena, preparados,
esperando as ordens de Grifor.

— Minha armadura parece ideal para você agora? — Perseu


perguntou brincalhão.

— Com certeza! — a euforia da própria resposta fez Tithania se


lembrar daquele dia. De como havia ido pedir alguns cavalos para
Perseu e de como tinha deixado tudo sair de controle durante o duelo.

Confundida por seus pensamentos, Tithania roeu as unhas


pensando que devia desculpas ao rapaz. Sabia como os cavalos eram
importantes para ele e desde o ocorrido, não tocara no assunto. Numa
mistura de emoções, Blackbird perdeu toda a vontade de lutar contra
aquele oponente.

A menina olhou para o chão e girou os olhos procurando por


nada. Ela voltou a face para Perseu e não acreditou que falaria aquilo.

— Desisto — as palavras soaram estranhas.

Um movimento começou entre as pessoas, decepcionadas,


principalmente por causa das apostas.

— Você tem certeza, querida? — Grifor confirmou.

69
— Me desculpe, Perseu, mas não posso lutar contra você — a
menina se curvou e se retirou da arena apressada.

Perseu a acompanhou com os olhos, incrédulo e não foi capaz


de entender a própria vitória.

— O vencedor é Perseu Horswing — Grifor anunciou também


sem entender o que havia acontecido. Tithania era como sua filha e era
de se estranhar quando ela fazia algo que ele não compreendia.

A menina dragão entrou na taverna e passou as meia-hora


seguinte encarando a parede pensando no que havia feito.

70
XI

Uma Nova Aventura

No dia seguinte, a rua onde ficava a taverna de Griffor


abrigava uma festa. A vencedora do torneio foi Selene, que teve como
pedido a realização de um evento para a cidade e proibiu que o líder
da guilda realizasse qualquer tipo de cobrança. Ele se sentiu um pouco
contrariado, mas ainda estava no lucro graças às apostas.

Mesas expostas à rua recebiam várias pessoas e em uma delas


estavam, em uma conversa regada a chá, Ellie e Selene.

— Fico feliz por ter sido eliminada pela campeã.

— Hm... obrigada — Selene respondeu tímida.

— Meu capitão veio falar comigo que sairíamos hoje em mais


uma aventura. Ele não deu os detalhes ainda, mas espero que essa dê
mais certo que a anterior.

— É. Eu também — Selene estava se esforçando para manter


um diálogo, mas não era boa com palavras.

— Fico feliz por você ter me fornecido chá antes da minha


partida.

— Sim! — dessa vez, foi um pouco mais eufórica.

— Acho que poucos olhariam para você e imaginariam que


você seria a vencedora.

71
Selene sorriu e levou um pouco de seu chá à boca.

Em um beco próximo, Tithania estava sozinha com Derick.

— Você está sumida há tanto tempo. O que andou fazendo,


Tithania?

— Nada muito diferente do que você está vendo aqui — a


garota sorriu.

— Sete anos, Tithania. Você tem noção de como estão as coisas?

A menina olhou para baixo e suspirou, depositou a mão no


ombro do amigo e disse:

— Conte-me tudo que tem a contar, Derick. Faz muito tempo, é


verdade; mas o importante é que estamos aqui agora.

— Eu que quero saber das coisas — o rapaz recostou na parede.


— Em uma tarde comum, Zéfir chegou com o corpo de Kalehan na
cidade. Na ausência de alguém com as marcas, foi decidido que ele
deveria ser o novo líder. Com o apoio de Jano e Ragnar, sua aceitação
foi imediata.

Jano e Ragnar... Aqueles nomes eram conhecidos por Tithania.


Dragões poderosos, respeitados na sociedade dracônica.

— Ele colocou a culpa nos humanos. Disse que Kalehan andava


tempo demais com eles e que provavelmente foi traído por algum e
assassinado covardemente.

72
— Isso é ridículo! — Tithania se irritou. — Meu pai não
morreria assim — ela olhou para o braço coberto pelos panos e se
lembrou do último dia que o viu.

— Não. Mas os dragões compraram a briga. O ódio se


instaurou em meio ao povo.

— E você? O que aconteceu contigo? — Tithania tinha uma


expressão triste.

— Eu perguntei por você. Insisti que Kalehan podia ter passado


a liderança para a filha por algum motivo — as palavras de Derick
tinham entusiasmo. — Mas eles disseram que isso era ridículo. Que
uma híbrida não podia nos governar. Mas aí está a prova — ele se
referia ao braço dela. — Eu estava certo.

— Mas... — Tithania tinha dúvida. — O que você estava


fazendo no lugar onde te encontrei?

— Eu disse que iria atrás de você. Eu precisava te encontrar,


descobrir o mistério de teu paradeiro. Então, Zéfir me lançou um
feitiço — ele parou para buscar informações em sua mente. — Eu não
lembro muito bem o que aconteceu até que eu vi a marca em seu
braço, até que eu reconheci você.

— Entendo — Tithania se pôs pensativa. — Vamos resolver


isso, Derick. Eu sou líder por direito! Podemos destituir o tirano do
Zéfir.

— Não é assim tão fácil, Tithania... Você sumiu por muito


tempo. Aparecer agora não faria os dragões ficarem do teu lado. E no
caso de um confronto direto... não temos a menor chance.

73
— Então o que vamos fazer? Você tem alguma ideia por acaso?

— Não sei. Esperar, conseguir aliados, ficar mais fortes.

— Eu tenho medo do que Zéfir planeja...

— Eu também. E temo que eu sei o que é.

— Tenho amigos que sei estarem disposto a ajudar, mas não


quero os envolver nisso.

— Vamos dar um tempo. Tem uma semana que saí em tua


busca. Vamos esperar fechar um mês e ver se algo acontece.

— Certo. Eu partirei em uma viagem.

— Tithania?

— Ellie me convidou. Uma aventura com meus novos amigos.


Não ficaremos fora por mais de uma semana — ela confortou Derick.
— Fique aqui. Garanto que é o lugar mais seguro que você pode ficar.
Nenhum dragão se meteria com Griffor — ela riu.

O garoto olhou para baixo e na ausência de uma resposta.


Tithania tomou aquilo como concordância.

— Vai ficar tudo bem — a garota voltou à taverna para


aproveitar o resto da festa.

Ao pôr do sol, a tripulação do Asas da Aurora se preparava


para mais uma viagem, dessa vez com a ilustre presença de Tithania.
As despedidas foram calorosas com direito a muitos abraços. O navio

74
partiu, deixando para trás a cidade que abraça todos os visitantes.
Tithania, na popa, observava Wavecot sumir no horizonte, com a
certeza nos olhos que retornaria em breve.

75
XII

A Tirania do Imperador Titânico

— Nossa aventura dessa vez é uma missão — Shaun explicou


enquanto o navio seguia o curso. — Um trabalho.

— Dinheiro certo — Judas colocou.

— Exato. Sem falhas dessa vez. Precisamos escoltar um navio


mercante. Simples assim.

Todos pareceram contentes com a empreitada e Tithania


pensou que o que faziam não era tão diferente do que era feito pelos
Cavaleiros Alados. Ela concluiu que eles eram uma guilda do mar.

— E onde está esse navio mercante agora? — Grimm


questionou.

— Em uma ilha um pouco distante. Eles marcaram o dia de


encontro comigo. Suponho que os alcançaremos no fim dessa noite e
assim que amanhecer, os traremos para Wavecot.

Wavecot? Tithania ergueu a sobrancelha. Ficaria fora por


menos tempo do que imaginou enquanto conversava com Derick.

— Qual o tipo de mercadoria? — Ellie se interessou.

— Especiarias — Shaun foi curto.

— Hmm... talvez possamos conseguir algo interessante com


eles. Sinto falta de algumas coisas na cozinha — Judas propôs.

76
Para Tithania ainda era estranho acreditar que o ruivo de tapa-
olho era responsável pela comida, mas mais tarde, quando
banquetearam, ela teve que concordar que o homem sabia o que estava
fazendo.

A brisa era favorável e o Asas da Aurora flutuava no mar como


um pássaro flutua nos céus. As dimensões pequenas, a madeira leve,
as velas cortadas, toda a geometria favorecia a velocidade do barco.

— Você gosta de observar as estrelas? — como um gato furtivo,


Judas se aproximou por trás de Tithania, que admirava o céu noturno.

— Hã? Judas? — a menina instintivamente chegou para o lado,


convidando o rapaz a se apoiar também nas bordas do navio.

— Eu te amedronto, menina? — a pergunta era afrontadora.

— Amedrontar? Claro que não — Tithania mentiu.

— Eu sempre sinto que você recua quando se trata de mim.

— De onde você tirou isso? — Tithania tremeu de forma


inconsciente.

— Está escrito em seus olhos — Judas sorriu. — Talvez você


tenha bons instintos.

— O que você quer dizer com isso? — ela questionou.

— Nada. Isso foi só um desabafo.

— Desculpa se eu te fiz se sentir mal.

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— Não, garota. Esse não é o motivo do desabafo.

Tithania estreitou os olhos.

— Aquilo é um navio?

— É enorme — Judas concordou.

Completamente apagado, o que o fazia difícil de enxergar à


noite, apesar das dimensões colossais, um navio se aproximava ao
longe.

— Ele está vindo para cá — Judas correu. Sem saber o


procedimento, Tithania o acompanhou.

— Navio à vista! — Judas gritou, trazendo toda a tripulação


para ver o que estava acontecendo.

— Uau! Ele é grande — Lydia esfregava os olhos. Tinha


acabado de ser acordada.

— Mas o que está acontecendo? — Shaun questionou com o


leme em punhos.

Grimm parou estagnado na borda do navio por alguns


instantes.

— Não pode ser — ele recuou. — Shaun! — gritou. — Shaun!


— gritou novamente para ter certeza que era ouvido.

O capitão o olhou pasmo.

— Se você tem qualquer sentimento por essa tripulação, recue


agora!

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— Que? — Shaun indagou perplexo.

— Vire esse navio. Se mova em outra direção. Fuja rápido.

O capitão nunca vira seu imediato tão atônito dentro daquele


dois anos que trabalhavam juntos.

— O que está acontecendo com você, homem? Recomponha-se


— Shaun ordenou.

— Eles estão preparando os canhões — Ygor tinha uma luneta


no olho.

Balas de canhão cruzaram a distância entre os dois navios,


acompanhadas do barulho de pólvora explodindo. Uma barreira
transparente protegeu o Asas da Aurora e se desfez em seguida. O
mago azul estava fazendo seu trabalho.

— Estamos sendo atacados! — Judas disse o óbvio.

Shaun passou por um conflito interno, ainda mais sem saber o


que acontecera com Grimm, mas não podia se desesperar, era o
capitão do navio. Ele saltou para o convés.

— Ellie cuide do timão.

Sem hesitar, a garota correu, juntou energia mágica nas pernas


e saltou para a parte do controle.

— Se você gosta do teu estômago, agarre-se a ele — o capitão


aconselhou Tithania.

— Não podemos lutar, Shaun. Aquele é o Tirania do Imperador


Titânico — o medo de Grimm era evidente.

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Aquele nome era conhecido no mar. O mais perigoso navio
pirata. Um monstro de proporções enormes que não costumava deixar
suas presas escaparem. Há cinco anos, Grimm havia visto aquele navio
e essa não era uma memória que ele gostava de lembrar.

Tithania ainda colocava as palavras de Shaun no lugar quando


o navio balançou. O movimento súbito a fez segurar a barriga e se
ajoelhar. Ela entendeu as palavras do capitão naquele momento.

O mar, antes calmo, tornou-se tempestuoso. Ondas subiram e a


água parecia trabalhar para afastar os dois navios.

Se perguntarem o que faz um bom capitão, muitos responderão


carisma, ou força de vontade, ou qualquer uma dessas características
comuns. Mas Shaun tinha o que verdadeiramente fazia um bom
capitão: relíquias.

Em seus dedos, o líder do Asas da Aurora, possuía dos anéis: a


Tenacidade do Senhor dos Oceanos e a Fúria do Imperador dos
Trovões. O primeiro permitia que o usuário controlasse o mar, fizesse
perturbações incomuns na água, controlasse seu fluxo; o segundo
permitia a conjuração de raios estrondosos.

O Asas da Aurora se colocou de lado para o Tirania do


Imperador Titânico, os canhões postos à mira. Magicamente, o martelo
de todos eles bateram, pólvora explodiu, balas foram lançadas ao
inimigo.

Lydia, Judas e Ygor alimentavam os canhões com munição e


Malt disparava todos ao mesmo tempo com seus poderes.

80
Uma grande fenda abriu em meio ao ar. Um rasgo negro em
formato de boca que cortou o espaço e engoliu os projéteis. O navio
pirata também sabia se defender.

Shaun ergueu a mão direita e um raio caiu sobre o barco


inimigo. Fogo incandesceu a madeira, mas não era um dano
significativo comparado ao tamanho do navio.

A luta seguiu dura enquanto Tithania tentava se manter de pé.

O capitão levantou uma tromba d’{gua. Dessa vez, estava


convicto que o outro navio não conseguiria se aproximar, mas aquela
mesma boca negra se abriu de novo, dessa vez debaixo deles, na
superfície. A fenda engoliu o vórtice marinho e sugou a água ao redor,
tragando os dois navios para seu centro. Os tripulantes do Asas da
Aurora se sentiram virar, a borda do barco beirando o abismo recém
criado. A abertura se fechou, os navios colidiram.

O impacto foi leve e apesar das desproporções, o Asas da


Aurora não sofreu nenhum dano significativo.

Em pé sobre a popa da Tirania do Imperador Titânico, surgiu


um homem. Barba negra trançada que chegava à altura do peito; na
cabeça, uma bandana verde cobria parcialmente os cabelos longos até
as costas; a roupa deixava um de seus peitos à mostra e tatuagens
negras cobriam seu braço em forma de ondas.

Bartolomeu Fokke era o capitão do gigante de madeira. Sua


postura amedrontadora era repleta de magnificência, seu olhar
aterrador perfurava a alma, sua simples presença causava uma
sensação de impotência.

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Na impossibilidade de qualquer reação por parte dos
tripulantes do Asas da Aurora, Judas fez o que devia ser feito.

— Desistimos — os olhares se concentraram no ruivo, o de


Shaun estava especialmente irritado.

Os tripulantes foram tomados como prisioneiros e o Asas da


Aurora dado a um pirata subalterno de Fokke.

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XIII

O Passado Vermelho de Quem Veste Verde

Grimm tinha vinte e três anos e era o homem mais feliz do mar.
O jovem espadachim era o imediato da Rainha do Amanhecer e a
capitã do navio, Esmeralda, era sua noiva. A garota era a mulher
mais bonita do mundo, isso não era exatamente verdade, mas assim
era para os olhos de Grimm.

A Rainha do Amanhecer era um gigante da marinha. Um


caçador de piratas que fazia a lei funcionar sobre a superfície do
oceano, os criminosos temiam ao ouvir esse nome e a coleção de
missões bem sucedidas acresciam a cada dia.

Os noivos cruzavam espadas no convés do navio. O rapaz


usava um uniforme azul, comum aos marinheiros; seus cabelos cor de
mel, desprovidos de qualquer proteção, reluziam com o sol. A garota
usava verde, nenhum tripulante jamais a viu vestindo outra cor; um
chapéu de abas longas sombreava seu rosto lívido de pele macia; os
olhos verdes eram escuros e se confundiam com castanho; o cabelo era
loiro e ondulado, descendo até a cintura com um brilho invejável.

Duelos entre os dois eram comuns, uma forma de treino para


passar o tempo. No geral, Grimm sabia que não tinha chances, mas era
esperançoso.

O garoto atacou: cortou, perfurou e avançou. A menina


bloqueou todos os ataques com maestria, ela sabia como dominar a
espada. Grimm possuía um estilo movimentado, com muitos passos e

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fintas, as pernas eram a principal parte de sua técnica, um alicerce
móvel para golpes fluídos e ágeis. Esmeralda era mais concentrada, a
mão direita, que segurava a espada, movia a lâmina com precisão; os
pés se moviam pouco, mas a rapieira alcançava onde a garota queria
alcançar.

Os dois usavam o mesmo tipo de espada, mas a luta não era


equilibrada. Em meio ao jogo de pernas de Grimm, Esmeralda deu um
único passo à frente; seus pés bloquearam o movimento dos passos do
oponente e o rapaz caiu no chão derrotado, a espada da capitã
apontada para seu queixo.

— Ainda assim, eu continuo tentando — o rapaz sorriu.

A garota esperou que ele levantasse.

— Você só precisa de mais treino — ela comentou — leva jeito


pra coisa.

O casal se moveu para estibordo do navio branco.

— Sabe... — Esmeralda começou a falar. Os dois estavam com


as costas apoiadas na borda do navio. — Eu não pretendo ficar nesse
emprego pra sempre.

— O que é essa conversa tão de repente? — Grimm indagou.

— Não sei — a garota se virou, apoiando os cotovelos na


lateral, olhando o infinito do mar e Grimm imitou seu movimento. —
Eu quero poder viajar por aí, livre das obrigações.

— Acho que os piratas ficarão felizes com isso — Grimm


brincou.

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— Querendo ou não, é um trabalho perigoso o nosso.

— Acho que eles que deveriam ter mais medo de você.

— A vida pode nos trazer qualquer coisa. Inclusive a morte.

— Isso parece irônico.

— Porque realmente o é.

Grimm sorriu e olhou pro céu, o azul celeste tocava no azul do


mar a uma distância tão longe de seus olhos e mesmo assim, a
imensidão fazia parecer tão perto. Eles estavam em um gigante de
madeira, um dos maiores navios no mar, em tamanho e em
reconhecimento, mas mesmo assim, eram míseros diante do oceano.

— E como você pretende fazer? — o rapaz se interessou.

— O que?

— Tudo. Viajar pelo mundo sem obrigações. O que você


pretende fazer realmente?

— Ah... — ela divagou — pretendo ter meu próprio barco.

— E viajar a esmo.

— Sim. Não seria uma tarefa difícil para gente — ela segurou a
mão do amado.

— E qual seria o nome do barco?

— Asas da Aurora — ela disse sonhadora.

Grimm riu.

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— Não gostou do nome?

— Eu amei — os dois se abraçaram.

Eles admiraram o mar por mais um tempo, quando Esmeralda


viu uma embarcação.

— Aquele navio... — ela começou.

— É ainda maior que o nosso. Nunca vi uma embarcação tão


grande.

— Tirania... — A garota se moveu pelo Rainha do Amanhecer.

— Esmeralda?

— Parece bom pro nosso último trabalho, não é? Pegar o maior


pirata da história — ela deu passos firmes pelo convés sem esconder o
sorriso no rosto. — Em seus postos, amigos! Hoje vamos pescar um
peixe grande.

A Rainha do Amanhecer se aproximou da Tirania do


Imperador Titânico pronta para abordagem. Eis que em algum
momento, um vislumbre no tempo, uma fagulha na memória de
Grimm, uma guerra começou.

O garoto viu uma bala de canhão voar perto de sua noiva, o


chapéu da garota desapareceu em meio à fumaça. As duas tripulações
se atacaram. Madeira, fogo, poeira, lâminas, sangue. O convés branco
era manchado de vermelho.

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Grimm se viu empunhando a espada, combatendo inúmeros
inimigos, se esquivando, cortando, sua roupa manchada de sangue
que ele já não sabia se era dele.

O barulho era violento: baques, pólvora estourando, gritos.


Grimm viu alguns companheiros se lançando ao mar fugindo da
batalha. A madeira e o oceano abrigavam corpos dos dois lados da
luta. O combate parecia equilibrado, mas Grimm sabia que não era, ele
sentia.

Esmeralda manuseava a espada com precisão cirúrgica. Em


meio a surtos de tosse causados pela fumaça, ela se movimentava,
protegia os olhos da fuligem e atacava, sua lâmina girava e cortava
seus inimigos, sangue jorrava em cada um de seus ataques. Ela estava
vendo muitos de seus subalternos morrerem e começava a se culpar.
Ela subestimou as lendas sobre o adversário, se sentia invencível, será
que aquela seria finalmente uma batalha que perderia? Sua mente era
um turbilhão quase tão turbulento quanto a batalha que se dava diante
de seus olhos; ela tinha muito o que se preocupar, mas o mais
importante: onde estava Grimm? Ele estava bem?

O rapaz fazia seu caminho em meio às farpas e aos corpos.


Procurando com os olhos por sua amada, foi quando ele o viu: o
capitão do navio inimigo. Grimm ficou paralisado. Ele nunca tinha
sentido aquilo e naquele momento pôde perceber que a presença
daquele homem, mesmo antes de vê-lo, era a responsável por sua
sensação de derrota durante aquela batalha.

Bartolomeu Fokke estava parado, sem nenhum arranhão ou


menção de movimento. Sua postura era perfeita e a própria batalha
parecia fugir dele. Em meio ao caos de sangue e fuligem, o capitão do

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Tirania do Imperador Titânico se mantinha impecável. Nenhum
soldado se aproximava dele, nenhuma partícula de poeira o tocava.

Imóvel Grimm encarou o homem. Era surreal. O garoto correu


os olhos e então encontrou o que procurava: Esmeralda, a mulher que
amava. A garota estava a uma distância de cinco passos do capitão,
espada em punhos, rosto e roupas cobertos de sangue, cabelos
desgrenhados.

Assim como Grimm, Esmeralda parecia não ter forças para se


mexer. Podia atacar, podia alcançar o capitão com sua esgrima
perfeita, podia matar aquele homem e levar sua tripulação à vitória;
mas não conseguia. Por quê? Grimm a olhava e sabia que tinha a
mesma sensação que ele. O rapaz a admirou. Naquela situação tão
primitiva, entregue à brutalidade e ao medo da batalha, ela ainda era
linda, ele ainda a amava.

A pistola do capitão Fokke subiu em sua mão, o cano apontou à


distância para o belo rosto de Esmeralda. Ela viu o movimento do
adversário, a vida pode trazer qualquer coisa, ela ainda não conseguia
se mover. Grimm se horrorizou. Nos lábios de sua noiva, ele viu seu
último sorriso. O rapaz fechou os olhos, ouviu o barulho, não os abriu.
Ela estava morta. O jovem imediato sentiu o impacto do próprio corpo
na água, havia fugido da batalha, correndo em meio à luta sem olhar
por onde ia. Abriu os olhos, viu os dois navios lado à lado, destruídos,
em chama; ao seu lado, na água, viu o chapéu de Esmeralda, uma
última lembrança.

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XIV

A Manifestação do Medo

Shaun estava na cabine do capitão da Tirania do Imperador


Titânico, mas dessa vez, ele era apenas mais um tripulante. Sentado à
sua frente estava o verdadeiro capitão, Bartolomeu Fokke, o pirata
mais temido da história.

— Você tinha muitas coisas interessantes no teu navio — Fokke


apoiou o queixo sobre a mão e o cotovelo sobre a mesa, os olhos de
Shaun se irritaram. — Andei lendo teu diário de bordo.

Shaun se aproximou e apoiou a mão aberta sobre a mesa, seu


olhar desafiou Fokke por um instante, mas então vacilou, o corpo do
loiro estremeceu, ele recuou.

— É inteligente não me desafiar. Qual o teu nome, capitão? —


Fokke foi sinceramente respeitoso.

— Shaun — ele se limitou a dizer.

— Shaun... Eu sou obrigado a dizer que você é um gênio. Nessa


idade e conquistou tanta coisa — Fokke abria uma gaveta e pegava um
par de anéis. — Você me surpreende de verdade.

Shaun manteve-se calado.

— Deixamos vocês com suas armas porque todos os homens


têm direito a seu instrumento de defesa, mas isso... — encarou os
anéis. — É perigoso demais para deixar com você por enquanto.

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— Você saqueou meu barco e está mantendo a minha
tripulação de refém. Não aja como se fôssemos amigos.

— Você tem espírito, garoto. Poderia ser facilmente o maior


pirata que esse mundo viu, mas te falta uma longa jornada e por
enquanto, esse título é meu.

O capitão do Tirania do Imperador Titânico não fez


absolutamente nada, mas Shaun se sentiu sufocar. A sensação era
como se toda a atmosfera na cabine tivesse mudado, o ar ficou pesado,
esmagava os ombros do ex-capitão do Asas da Aurora. Sentiu as
pupilas dilatarem, os músculos enrijecerem, os nervos agitarem, seu
corpo reagia à uma ameaça incalculável e Shaun podia entender que
aquilo era medo, um medo irracional, primitivo, que era desencadeado
pela simples presença daquele homem no mesmo espaço que ele.

— Algo me chamou especial atenção em tuas anotações —


Fokke folheou umas páginas, era o diário de bordo de Shaun. — A tua
última missão. Então você entrou em uma ilha, todos os cálculos feitos,
as rotas precisamente pesquisadas, os pontos todos convergindo e não
encontrou o que procurava?

— Algumas lendas são só lendas — Shaun falou sem se mover.

— Você é um gênio realmente, mas te falta algumas coisas.


Algo como malícia — Fokke fechou o livro. — Qual o nome do rapaz
que anda com vocês? O de cabelo vermelho.

— Judas? — Shaun questionou mais para si mesmo do que


respondendo o outro.

— Judas, certo? Ele será o próximo a entrar nessa cabine.

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Shaun lentamente recuperou o controle de seu corpo.

— Nós poderíamos trabalhar juntos, Shaun. Você seria meu


imediato, nada no mar poderia nos parar.

— Me desculpe, capitão — o título foi espontâneo. — Mas eu e


você temos trabalhos diferentes. Eu nunca faria o que você faz.

— Alguns dias aqui mudarão sua opinião. Agora pode se


retirar.

Shaun assentiu, porém antes de cruzar a porta, o rapaz foi


chamado.

— Qual o teu objetivo? — Fokke foi inquisitivo.

— Imediato? Fugir daqui junto com minha tripulação.

— Não seja tolo. Você sabe do que estou falando.

Shaun se virou e caminhou na direção da mesa do capitão.

— Tudo que eu quero é que amanhã eu tenha mais relíquias do


que hoje.

— Teus planos parecem muito utópicos. Ainda sim, será ainda


mais difícil se você não se unir a mim.

— Relíquias, capitão Fokke, podem ser qualquer coisa.


Enquanto eu viver, estarei acumulando mais e mais relíquias. Em
forma de ouro? Joias? Sim, também. Mas também em forma de
lembranças e sentimentos, em forma de amizade e de conquistas e por
isso, tirar meus tripulantes daqui e recuperar meu barco será uma
forma de conseguir uma nova conquista. Por fim — Shaun pegou o

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diário de bordo da mesa. — Isso fica comigo — o rapaz andou
tranquilamente em direção à porta e se retirou do local.

Judas entrou pela porta com seu sorriso característico no rosto.

— Me pergunto o que você quer de mim capitão. Espero que


não seja a cabeça.

— Judas, certo? O que são os outros tripulantes daquele barco


para você?

— Amigos? — Judas jogou os ombros.

— Não me parece certo da tua resposta.

— Isso não importa agora, não é mesmo? — Judas se


aproximou — Eu tenho certeza que você não me chamou aqui pra
discutir minhas filosofias — sentou-se sobre a mesa. — E quer saber?
Eu estou sinceramente muito instigado com o motivo de me trazer
aqui — aproximou o rosto do capitão.

Fokke não se moveu. Sua postura intacta na cadeira era digna


de governar o mundo, os olhos deles encararam o escárnio de Judas
sem nenhuma reação.

— A moeda. Você está com ela, não é?

Judas franziu o olho.

— Vocês foram revistados por minha tripulação. Não sei como


você a manteve escondida.

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— Talvez você precise de revistadores melhores — Judas se
retirou da mesa e ficou parado em pé diante de Fokke.

— Você tem um gênio difícil, posso ver. Pobre Shaun, um


garoto tão bobo apesar de suas qualidades. Não merecia um traidor
como você na tripulação.

— E o que te leva a pensar que sou um traidor.

— A história da missão de vocês não me deixa outra escolha e


você, a forma como reagiu quando abordei o barco de vocês. Você tem
o que é preciso para fazer isso.

— E o que você pretende fazer se estiver certo?

Nesse momento, a atmosfera no navio mudou. Cada pessoa


sobre o convés, cada tripulante presente na embarcação, tremeu.
Todos sentiram o peso da gravidade no corpo, os pelos se eriçaram, os
olhos alargaram. Cada um sentiu um medo instintivo tão grande que
os fez estacar. Eram como animais acuados e não sabiam de onde a
ameaça surgia. Na verdade sabiam, ela vinha de dentro da cabine do
capitão.

De repente, essa sensação foi dando lugar a uma nova. Um


outro tipo de medo, ainda pior que o primeiro, sombrio, macabro.
Aquele pavor instintivo deu lugar a um paranormal, uma verdadeira
fobia, como se o medo pudesse se materializar e possuir aquele navio.
A influência do capitão foi ao pouco consumida por essa sensação de
trevas e todos os presentes puderam sentir a passagem lenta de um
domínio para o outro até que finalmente aquele medo primordial,
irracional, instintivo desapareceu e foi completamente substituído pelo

93
novo: um medo que não era simplesmente irracional, mas que estava
além da razão.

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XV

O Futuro Negro de Quem Veste Vermelho

Alguns minutos antes do pânico se espalhar no local, Ellie e


Grimm conversavam sentados sobre um banco. Vendo o estado aflito
do amigo, a senhorita Seator tentou ajudar.

— Acho que arrumamos um problemão, né? — ela sorriu de


forma inocente.

— Muito maior do que você imagina — ele estava


verdadeiramente preocupado, mas não pôde deixar de corresponder o
sorriso.

— Ei, eles são piratas, né? — tudo que Ellie sabia sobre o
passado de Grimm era que ele havia trabalhado caçando criminosos
do mar.

— Os piores — Grimm tinha o chapéu no colo, chapéu que


havia pertencido a uma pessoa especial.

— Mas veja, há tantas mulheres entre os piratas. Não acha que


consegue uma chance com uma delas? — Ellie queria animar o amigo
de alguma forma. Falava em um som descontraído, brincando.

— Ei! É assim que me enxerga? — ele riu. — Pois saiba que eu


já tive uma noiva — ele colocou o chapéu de volta à cabeça.

— O que? Você? Noivo? Não brinca — Ellie ria, mas estava


surpresa de verdade.

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— Ela sempre vestia verde... Nunca consegui entender isso.

— Grimm... — Ellie despertou o rapaz de seus devaneios.

— Oi?

— Você sempre usa verde.

O rapaz riu.

— Mas nem sempre foi assim... — a atenção dele foi distraída


para uma aglomeração no navio.

Thitania havia arrumado briga com uma garota da tripulação.


O motivo era dispensável, as duas garotas de gênio forte simplesmente
se notaram prestes a trocar golpes, talvez Tithania pela situação
estressante e Scylla por simplesmente não gostar de novos tripulantes.

A oponente de Blackbird tinha cabelos longos, cacheados e


rosa, o penteado o prendia de forma a realçar seu volume. Usava
roupa simples de cor castanha.

— Scylla, não nos arrume problemas — o irmão da garota


falou. Ele era também imediato do o navio. Usava roupas azul-
esverdeadas, os cabelos negros eram curtos e o olhar sempre sereno.

— Cale-se, Charybdis.

As duas garotas se encararam e avançaram. O público era


composto de tripulantes do navio que riam e incentivavam a batalha.

Tithania fez um corte semicircular com sua adaga, mas Scylla


saltou cruzando o ar sobre a garota em um movimento acrobático.
Assim que a pirata tocou no chão, seus braços se envolveram em

96
eletricidade, as descargas eram rosa e se dobraram até tomarem a
forma de serpentes.

As cobras elétricas avançaram pelo ar, as presas seguindo


Tithania e a outra extremidade ligada à Scylla. Blackbird recuou e
desviou com o torso, mas não pôde evitar todos os ataques. As
mordidas a fizeram sentir uma corrente elétrica cruzar o corpo, mas
ela não vacilou, estendeu a palma da mão e disparou uma bola de fogo
contra a oponente.

A esfera flamejante atingiu a pirata que a amorteceu com os


braços ainda envolvidos pelas descargas elétricas. Os pés dela
deslizaram pelo chão e Tithania avançou em perseguição, seguindo
com um chute rasteiro. A menina de cabelo rosa pulou e ao descer,
atacou com um dos braços, a mão em forma de garra. Blackbird
bloqueou com o braço, mas sentiu os dedos da adversária
pressionarem sua pele, mais uma descarga elétrica passando pelo seu
corpo que respondeu com um chute que apesar de afastar a oponente,
não a derrubou.

Foi quando elas sentiram algo. Ambas reconheceram a


sensação, era a presença esmagadora do capitão Fokke que emanava
pelo navio. Scylla sabia que não havia uma ameaça real, mas ainda
assim, não conseguia reagir.

Em seguida, elas tiveram a segunda sensação. Um sentimento


extremamente abstrato, como se uma sombra escalasse por suas almas.
Por um momento, sentiram a sanidade desmanchar e observaram que
todos no navio estavam conturbados.

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Dois medos estavam coexistindo, não, estavam se enfrentando
e quando um deles finalmente se saiu vitorioso, todos olharam para o
leme a ponto de ver um homem chegar com um sorriso macabro no
rosto.

Judas apresentava sintomas estranhos há algum tempo, mas


agora pareceram mais notáveis. O lábio estava roxo, a pele pálida,
veias azuis se mostravam no rosto.

O rapaz, em um posto mais alto que todos os tripulantes, trazia


em uma das mãos a cabeça do capitão Fokke.

Muitos ali estavam acostumados com a violência, eram piratas


que já haviam visto muito. Não foi a cabeça decapitada do capitão que
os incomodou, foi algo no Judas. Algo naquele sorriso que causava um
desconforto profundo. Mais de uma pessoa vomitou diante daquela
cena mórbida.

— A vida é uma eterna metamorfose — Judas iniciou um


discurso. — E as coisas antigas precisam ser destruídas para dar lugar
às novas. E hoje, amigos — ergueu os braços. — Damos início a uma
nova era para o Tirania do Imperador Titânico. E uma nova era
precisa, é claro, de um novo capitão — deu uma pausa enquanto
olhava pra tripulação. — Alguém discorda disso?

Judas olhou para cada um dos tripulantes e quando seu olhar


encontrou o de Ellie, viu uma lágrima descendo pelo rosto da garota.
Por um instante, a expressão do assassino mudou para algo parecido
com arrependimento, mas não tardou para que prosseguisse com seu
olhar para o próximo e depois para os mais adiante.

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Por longos segundos, ninguém ousou dizer nada. Não queriam
desafiar o homem que matou Bartolomeu Fokke.

— Judas — Shaun sussurrou, em sua mente passou a conversa


que acabara de ter com o homem morto.

— Que? Esse homem matou nosso capitão! — Scylla se moveu.


Andou pelo navio agitada enquanto discursava. — Vocês não vão
seguir ordens dele, não é? — ela gostava de Fokke, tinha uma
admiração sincera por aquele homem e em sua concepção, só ele era
digno de governar aquele navio. Ninguém reagiu. — Vocês estão
brincando, não é? Estão com medo? — O tom dela vacilou. Também
estava com medo, mas não queria demonstrar isso. — Irmão? —
Charybdis negou-lhe o olhar.

— Então temos uma decisão — Judas disse, malicioso. — Não


se preocupe, capitão — olhava para Shaun. — Vocês não pertencem a
esse lugar. Deixaremos vocês na ilha mais próxima e talvez vocês
tenham uma tripulante para me substituir — passava o olhar por
Scylla, jocoso. — Quanto ao Asas da Aurora, não posso fazer nada por
ele, mas aposto que você tem uma forma de recuperá-lo.

Shaun engoliu em seco. O resto da tripulação também não


sabia como reagir. As sensações mistas incomodavam profundamente.
Ellie tentou dizer algo, mas não reuniu forças. Apenas fechou os olhos
e virou as costas caminhando, sendo confortada por um abraço de
Grimm.

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