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Piccarinica , shaments espolede .

abora apreciada and internaute

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MEMORIAS

DO

MARQUEZ DE POMBAL
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CONTES

MAGIOS DOS SEUS

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"Iado

; M. Orii ;

LIVR RIN
2. . 4
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MEMORIAS

DO

MARQUEZ DE POMBAL

CONTENDO

EXTRACTOS DOS SEUS ESCRIPTOS

E DA

CORRESPONDENCIA DIPLOMATICA INEDITA

EXISTENTE EN DIFFERENTES SECRÉTARIAS D’ESTADO

POR

JOHN SMITH

Secretario privado do Marechal Marquez de Saldanha (actual Duque do mesmo titulo )

TRADUZIDAS

POR

J. M. DA FONSECA E CASTRO

en de nt

LISBOA
LIVRARIA DE ANTONIO MARIA PEREIRA - EDITOR
50 - RUA AUGUSTA -52
1872
DP

GHI

A29

« Such men are raised to station and command


When Providence means inercy to a land .
He speaks, and they appear: to Him they owe
Skill to direct, and strengh to strike the blow ,
To manage with address to seize with power ,
The crisis of a dark decisive hour ..

« Taes homens são elevados ao poder e mando quando a Provi


dencia quer mostrar a sua misericordia a um paiz . A sua voz appa
l'ecem elles : a Ella devem a destresa para dirigirem o golpe, a força
para o despedirem , o saberem regular e dominarem com potencia
a crise de uma hora tenebrosa e decisiva .»
AO EX ." SR . ROBERT PEEL

Quando, admirando o caracter e genio do Marquez de Pom


bal, primeiro contemplei a tarefa de compilar e publicar umas
Memorias d'aquelle illustre estadista, e mesmo até ao momen
to em que o termo dos meus trabalhos se approximava, con
fesso que me custou a conceber a esperança de que teria a dita
de apresentar-me perante o publico sob å valiosa sancção do
VOSSO nome.
Entretanto que mui reconhecidamente agradeço a vossa
prompta acquiescencia a tal respeito, o maior desejo que po
dia ter nutrido sobre um assumpto que nem sempre é de tri
vial importancia , permitti-me que respeitosamente observe a
particular propriedade d’esta dedicatoria, referindo-me á coin
cidencia que se dá entre a vossa elevada posição n'este paiz ,
e a que outr’ora occupou o grande ministro de Portugal. Am
bos foram , em tempos criticos, escolhidos para sustentar a hon
ra e a força de grandes nações ; e de ambos se exigiu o deli
cado discernimento , e a firmeza, que distinguiram o dito mar
quez , — qualidades estas que lhe grangearam a admiração e
inteira confiança do seu paiz , e pelas quaes todo o inglez bom
e sensato deve igualmente confessar-se vosso devedor.
Desejando finalmente que os vossos esforços tenham longa
duração , e que sejam coroados dos mais felizes resultados, fi
cará d'este modo inteiramente traçado o meu parallelo .
Tenho a honra de ser,
Vosso etc. etc.

JOHN SMITH .
PROLOGO

Precedendo a vida do Marquez de Pombal d'um prologo,


deve este talvez dirigir -se particularmente aos seus concida
dãos ; porquanto, se alguma compensação ousasse esperar pelo
meu humilde intento de desaffrontar o caracter d'aquelle illus
tre estadista das calumnias com que pretenderam manchar- lhe
a memoria, desejaria recebel-a especialmente das mãos d'aquel
les leitores, em cujos corações se poderia julgar que o nomede
Sebastião José de Carvalho e Mello excita emoções d’um orgu
lhoso e generoso patriotismo. A historia não nos fornece sequer
o parallelo d'um outro genio, cuja fama tenha sido tão louca
mente denegrida pela nequicia e perversidade dos seus inimi
gos. E de que outro modo olharemos qualquer biographo de
Pombal, nascido da raça dos jesuitas, ou criado com o leite de
suas doutrinas ? Se fosse possivel antecipar aqui os promeno
res das Memorias que se seguem , no meio de todos os succes
sos agitadores do ministerio d'aquelle estadista, seria custoso
descobrir uma medida que em sua concepção exigisse maior
coragem , ou que em seus resultados tivesse mais duravel im
portancia, do que a expulsão d'aquella seita de Portugal.Este
passo, primeiro, causou admiração, mas depois foi successiva
х PROLOGO

mente imitado pelos soberanos catholicos de toda a Europa ; e,


qualquer que seja o grau de admiração ou de censura que um
tal procedimento herde dos adversarios ou dos apologistas do
dominio clerical, nenhum jesuita hesitaria em condemnar tanto
os seus auctores, como conselheiros ; porquanto não admittiria
pelo menos convenção alguma entre a sua ordem proscripta e
perseguida , e o primeiro homem que lhes esmagou o poder e de
finitivamente os baniu do imperio que usurparam . Foi, pois, um
membro da companhia de Jesus, o primeiro escriptor que com
pilou a historia da vida e tempos de Pombal. Nascido de paes
italianos, era por isso destituido de todas aquellas sympathias
que constituem a nacionalidade d’um portuguez; subdito d'um
estado insignificante , mal podia apreciar as grandes medidas
commerciaes adoptadas por Pombal; o acanhado systema das
escolas teria naturalmente levado as suas idéas contra os pla
nos de educação universal, que foram dirigidos sob os auspi
cios de D. José : nem tão pouco é possivel conceber que o fa
natico valido d’um principe absoluto podesse approvar o desen
volvimento d'aquellas esclarecidas maximas da politica do ga
binete , que se acham identificadas com a carreira do ministro ,
cujas Memorias formam a materia d'esta obra. Porém , não nos
esqueçamos de que este escriptor occultou os seus principios
debaixo da mascara d'uma publicação anonyma. Todavia , é
n'esta historia anonyma, e, podemos ajuntar, anómala , que to
das as narrações posteriores aquella epocha se fundam . A com
pilação do jesuita foi seguida de uma variedade de menos im
portantes publicações tiradas de originaes de igual authentici
dade. Vê-se que estas diversas producções differem entre si
principalmente no tamanho, na ordem e diversidade dos suc
cessos, e na proeminencia de certos caracteres, com quanto a
sua similhança seja occasionalmente auxiliada por leves modi
ficações, quer nas vistas dos respectivos auctores , quer pela in
troducção d'algum conto popular, talvez novamente inventado .
Comtudo a mesma similhança de familia apparece nas feições
de cada uma - e são evidentemente derivadas do mesmo tron

co jesuitico. E , com quanto não deva admirar que um jesuita


avidamente emprehendesse escrever a vida , e delinear o ca
racter , do fallecido ministro ;menos admiração deve causar que
PROLOGO XI

um tal biographo pintasse o seu heroe com a similhança, ora


d'um escravo e d’um tyranno, ora d'um monstro e d'um para
sita , ora d'um hypocrita e d’um velhaco : — alguma cousa, com
tudo absurda ou impossivel; alguma cousa,menos o individuo,
cujas qualidades o auctor tem procurado, ainda que fracamen
te, descrever : alguma cousa , n’uma palavra , mas não Pombal.
Ora , os leitores inglezes perguntarão talvez o que tem a
presente geração com um politico portuguez ? Dar uma respos
ta cabal a esta pergunta seria antecipar as Memorias que se
seguem ; porém , pode-se em geral responder, que tem havido
homens celebres, que não só illuminaram o povo que instrui
ram , e o paiz que ornaram , mas lançaram tambem progressi
vamente os raios da sua luz sobre gerações successivas, e que
ainda brilham como pharoes para regularem a passagem e guia
rem o progresso d'uma posteridade admiradora . O ministro que
governa em tempos tumultuosos , pouco gosa as regalias do offi
cio, incorrendo ao mesmo tempo em todas as suas responsabi
lidades. Seus infatigaveis trabalhos de dia, e sua vigilante an
ciedade de noute ; a incessante rotina dos seus deveres, com
prehendendo negocios de consideravel importancia ; o sacrificio
de sentimentos particulares a interesses publicos ; a perda da
sociedade e a privação de mais de metade dos gosos da vida
domestica :—que patriotismo, por mais exaltado que seja , sup
portaria uma tal existencia, se o seu premio consistisse na in
veja dos defensores e nas cabalas da hydra -opposição ? Será
possivel suppor -se, que esses homens eminentes que tem con
tribuido para a importante legislação da sua patria , estejam
condemnados ao olvido e ao desprezo, como as entidades d’uma
popularidade temporaria em cujos exemplos seus successores
nenhum interesse tem ? ou negará o leitor ao regenerador da
sua patria toda a recompensa, excepto a de uma ephemera re
putação ?
Não é tão pouco só entre os seus concidadãos que o vas
sallo fiel da coroa deve esperar a estima e approvação da pos
teridade. Não é para estimular a industria do negociante ne

cessitado, ou para divertir a attenção do passageiro sem cui


dados, que a bella columna corinthia n’esta hora se acha em
andamento em memoria do nosso immortal Nelson . O estran
XII PROLOGO

geiro intelligente elevará a vista acima do baixo-relevo na base,


para seus olhos examinarem a rica esculptura do capitel, e con
templarem o heroe. Da belleza da estatua passará naturalmente
ao caracter do individuo, e, é de esperar que, se o estrangeiro
parar diante da columna de Nelson , ou do tumulo de Pombal,
não leia a inscripção sem indagar a historia , nem , entretanto
que admira , vote sua indifferença ao homem .
Além d'isso , a vida de Pombal offerece bastantes casos que
attrahem a attenção, e excitam especialmente a do leitor inglez ;
assim , independentemente do interesse geral ligado aquella parte
da historia de Portugal, a administração d'aquelle estadista foi
particularmente ingleza em seu caracter e meios. Nem seus es
forços na conservação da liberdade commercial do seu paiz mi
litaram inteiramente contra esta posição . Por quanto combinan
do e ajustando os reciprocos direitos do negociante, não só es
tabeleceu uma intelligencia boa, segundo os tempos d'então ,mas
estipulou a mais efficaz garantia para a continuação d'aquellas
amigaveis relações que tanto contribuiram para a prosperidade
de ambas as nações. É tão fertil de exemplos o progresso do
seu governo , que a sabedoria do seculo actual não ha de des
prezar de certo imital-os. Uma administração que abrange um
espaço de vinte e sete annos , deve necessariamente fornecer
grandes exemplos de sabedoria ou de loucura, e deve ter essen
cialmente contribuido para a felicidade, ou para a miseria do
povo. E , pois , talvez justo concluirmos por uma vez em favor
d'aquellas qualidades, por isso que não é possivel conceber que
um ministro permanecesse por tanto tempo na posse do gover
no, se este não fosse bom e sabio. Os máus governos criam os
máus vassallos, e nunca estes soffrerão um d'aquelles, ainda
que pretendam persuadil-os da sua bondade. « Vinte e dous an
nos » dizia mr. Burke, «não é nenhum espaço insignificante na
historia de uma grande nação » . Foi, comtudo, durante um es
paço de vinte e sete annos que Pombal illustrou, pela pratica,
algumas d'aquellas maximas essenciaes da politica , as quaes
n'aquella epocha apenas foram apreciadas pela legislação da
Gran Bretanha , então incomparavelmente a mais esclarecida
do universo . Mostra -nos quantos bens positivos um governo
póde conferir , e o seu não foi vão e inepto . A sua vida mos
PROLOGO XIII

tra- nos o raro exemplar d’um legislador excedendo a intelli


gencia do seculo em que viveu , fazendo ao mesmo tempo ver
emphaticamente o que constitue a verdadeira reforma. Pombal
não foi um reformador especulante. Além de não tentar inno
vação alguma sobre velhos costumes com o fim de desenvol
ver uma theoria nova e phantastica , não propagou cegamente
erros antiquados. Jámais ministro algum interveio nos interes
ses da sociedade com tanto zelo, sem desorganisar os seus ele
mentos ou obstruir o seu progresso. Não se curvou perante o
idolo da reforma sem ter levantado o véo e mostrado a verda
de ; e, regulando portanto a marcha da civilisação, concebeu os
planos, abriu os prospectos, animou a empreza , regulou e sup
priu as necessidades, e desenvolveu as forças d'uma nação .
Seus escriptos contém descobertas das mais importantes que
hoje são conhecidas da sciencia moderna de economia politica ;
e a sua administração reconciliou ,de certo modo , dous princi
pios oppostos — animando a industria interna sem paralisar a
liberdade do commercio. E no progresso e cultura do espirito,
que Pombal — estranho , comparativamente, aosdebates do par
lamento inglez , não teve ainda quem o imitasse. A distincta de
lineação da sua reforma politica e social, consiste nos seus pro
fundos e comprehensivos planos de instrucção, projecto este
n'aquella epocha sem rival entre todos os paizes catholicos da
Europa. Estabeleceu principios para auxiliarem seus preceitos,
illustrando estes com o exemplo. Os sentimentos que expres
sou Cuvier , quando entre 1809 e 1810 este philosopho foi en
carregado da organisação das universidades do Piemonte , Ge
nova e Toscana, foram , meio seculo antes antecipados pelo
regenerador de Portugal ; e as palavras de Cuvier descrevem
tão claramente a obra e materiaes da administração de Pom
bal, que podia deixar de inseril-as aqui. « Criae » dizia o inge
nuo naturalista francez , « criae antes escolas do
que direitos
politicos ; fazei que os cidadãos comprehendam os deveres que
o estado da sociedade lhes impõe ; ensinae- lhes primeiro o que
são direitos politicos , do que lhes offereçaes a sua fruição : en
tão se fará todo o progresso sem que resulte um unico abalo
então cada idéa nova lançada em bom terreno terá tempo de
brotar, crescer e amadurecer sem aluir o corpo social. Imitae
XIV PROLOGO

a natureza, que, no desenvolvimento das suas producções, obra


gradualmente , e dá tempo a que cada membro se aperfeiçoe.
As instituições carecem de muito tempo para produzirem todos
os seus fructos : vêde o Christianismo, cujos effeitos ainda não
chegaram ao seu termo, não obstante ter dezoito seculos de exis
tencia . )
Não obstante , as medidas de Pombal produziram os fructos
da prosperidade nacionalmesmo durante a vida e a experien
cia do grande organisador. Comtudo, foi especialmente por duas
causas, cuja falta muito tem posteriormente concorrido para ac
celerar a decadencia de Portugal, que este rapido progresso foi
sustentado . A primeira é o ministro ter possuido a inteira e ina
balavel confiança do seu soberano . A perseverança e o animo
de D. José foram , a este respeito , admiravelmente mantidos ,
fielmente merecidos, e dignamente recompensados . O rei con
fiava no ministro , e este conferia as bençãos d’um feliz reinado
tanto ao soberano como ao povo : e esta mutua confiança con
tribuiu para o effeito da segunda causa d'aquella felicidade do
estadista , que era um governo forte. A fraqueza d'um governo
é sem duvida proverbialmente uma calamidade para o corpo
politico ; e, quaesquer que fossem os motivos secretos de Na
poleão , quando na sua audiencia declarou aquella verdade,
não obstante ter pervertido sua applicação para usurpar as va
rias funcções do estado, excusando -as, o estado recente de
Portugal justifica a linguagem do Imperador dos francezes no
parlamento por occasião da abertura da sessão legislativa , vin
te e cinco dias depois da sua coroação : — « La faiblesse du pou
voir suprême est la plus affreuse calamité des peuples.
A força do governo de Pombal foi especialmente opportuna .
As grandes occasiões produzem geralmente os grandes homens,
ainda que nem sempre succede elles gosarem de toda a facili

dade em levarem a effeito os seus planos . Porém as visitas da


Providencia são ordinariamente seguidas de ministros e meios
de consolação . O terremoto de 1755 fez sentir o seu abalo em
toda a Europa , e das bellezas de Lisboa e das, que a cercavam ,
algumas submergiram -se em profundos abysmos , e outras aca
baram por fumegantes ruinas. Porém , a mesma prostração da
força nacional que se seguiu ao desespero geral, foi favoravel ao
PROLOGO XV

progresso. O paiz ficara reduzido a um estado de penuria e de


infancia nacional ; as suas forças vitaes estavam de algum modo
paralisadas, e, ainda que dormentes , não estavam extinctas ;
e os elementos plasticos da civilisação podiam tomar a forma
que uma capacidade forte quizesse dar-lhes. Não se precisava
senão esse espirito superior. O genio de Pombal surgiu das cin
zas de Lisboa : o ministro foi feito para este renascimento , e ,
levado á plenitude do poder, aproveitou a opportunidade de
regenerar a sua patria .
O auctor julga -se digno de mil desculpas pela maneira por
que levou ao cabo esta tarefa. Não se creia que foram de ge
nero vulgar as difficuldades que encontrou . Na verdade , a dif
ficuldade de compilar a vida de um eminente homem de estado
deve andar a par da instrucção, que da sua leitura se tira. To
dos os casos e incidentes agradaveis da sua vida domestica se
perdem na torrente da sua carreira publica , de sorte que até
os escriptores contemporaneos, de cujas narrações esperamos
colher os materiaes d’umasmemorias interessantes , teem a atten
ção tão exclusivamente concentrada no seu caracter publico ,
que pouco referem fóra do que lhe diz respeito. Porém , o bio
grapho que tentasse seguir -lhe os passos muito de perto, arris
cava -se a , alternativamente, degenerar em fastidioso chronista
de passados acontecimentos, ou a assumir o infatuado zelo d’um
partidario politico. A mesma exuberancia do assumpto tornou
se, no caso presente , uma causa de embaraço . Sob governos
constitucionaes em imperios mais vastos é cada uma das varias
repartições de administração necessariamente governada e di
rigida pelo seu respectivo chefe , cujos actos publicos encon
tram portanto os seus limites dentro d’uma esphera mais re
stricta . Mas o extraordinario personagem , sobre que estasMe
morias se baseam , possuia elle só , e exercia todas as funcções
d'um governo complicado ; e, em quanto me vi obrigado a se
guir-lhe o progresso, fiz por não levar o leitor muito ao campo
da legislação, atravez o qual os meus passos se dirigem . Com
tudo, achei-me forçado a recorrer á historia d'essa legislação
afim de colligir os materiaes para as seguintes paginas, pois
que, o que de memoria existe , não serviria senão a desencami
nhar. Assim , só , por assim dizer, e sem guia , tive que valer
XVI PROLOGO

me de escriptos dispersos mas de origem insuspeita , que se


acham sepultados entre os registos e decretos impressos em
Lisboa, do archivo da legação de Portugal em Vienna, e dos
volumosos despachos que existem nas secretarias. Foi-me con
cedida a vista d'estes ultimos documentos, cujo conteúdo dá um
testemunho mais imparcial do caracter de Pombal, do que da
riam os louvores de seus amigos , ou a censura dos seus inimi
gos. Como nas differentes opportunidades , que tive de consul
tar estas diversas e distantes auctoridades, interveio grande
espaço de tempo, tornou -se-me por isso impossivel conservar
uma série consistente de ideas sobre a maior parte dos factos
registados. Portanto , se se deparar com alguma passagem occa
sionalmente introduzida pouco a proposito, ou referida mais
cedo do que sua importancia pareça exigir, é de esperar que
inteiramente não esqueça ao leitor o trabalho e difficuldade que
ha em formar e reunir uma diversidade de materiaes vastamente
espalhados, e até ás vezes contradictorios, n’uma narração não
interrompida , e olhe as deficiencias da obra com proporcionada
indulgencia .
CAPITULO I

Primeira grandesa de Portugal; constituição livre ; queda da liberdade ; empresa


maritima e commercial; descobrimento da ilha da Madeira , dos Açores e Cabo
Verde ; Vasco da Gama, sua viagem dobrando o Cabo da Boa Esperança ; em
baixada ao Preste João ;Magalhães; descoberta das minas d'ouro ; D. João III ;
introducção dos jesuitas em Portugal; estabelecimento da inquisição ; rapida
decadencia da primeira prosperidade ; D. Sebastião ; usurpação de Philippe II ;
cruel proscripção ; Malaca , Ceylão , e outras possessões tomadas pelos hollan
dezes ; expulsão dos hespanhoes ; D. João IV ; reunem -se côrtes ; D. João V ;
sua fraquesa e fanatismo; estabelecimento do Patriarchado ; é concedido aos
reis de Portugal o titulo de « Fidelissimo» ; fundam -se immensos edificios; Ma
fra ; licenciosidade de D. João V ; excessos do clero e da nobresa ; construc
ção do celebre Aqueducto ; morte de D. João V ; estado lastimoso de Portugal.

Portugal, enfraquecido pelas guerras estrangeiras e intes


tinas, jamais apresentará ao estrangeiro aquelle estado de pros
peridade, que gosou , quando os seus emprehendedores mariti
mos circumnavegaram o globo, e o seu poeta inspirado, ha tres
seculos , cantou as glorias de seus compatriotas. Comtudo os
primeiros annaes da monarchia lusitana encerram memorias
de innumeraveis feitos d’uma raça de homens illustres, dignos
da comparação dos heroes do grande tempo da Grecia culta,
ou das epocas victoriosas da Roma marcial. O governo de Por
tugal, cerca de 1139, foiconstituido , não como geralmente suc
cede com os imperios por meio do sangue e conquistas, mas
por meio de eleição popular. O mesmo espirito nobre, que con
cebeu sua independencia, tambem por muito tempo a conser
vou resistindo ousadamente as usurpações do soberano, e res
YOLUME I 2
2 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tringindo a licenciosidade do povo. Porém , a fatal influencia


d'um clero ignorante, incutindo o fanatismo, abateu o espirito
do povo , destruiu o da liberdade, e extinguiu o amor de em
prehendimentos e de gloria . Então, a altiva malicia clerical,
abrigando -se por detraz do esconderijo do claustro, lançava
d'ahi os seus anathemas ; o medo paralisou a mão do trabalho ;
a apprehensão reprimiu os vôos do poeta ; e a aristocracia, ol
vidando a sua gloriosa origem , mergulhou -se namolle indolen
cia dos despotas orientaes, e isto ao mesmo tempo que um ga
lanteio voluptuoso, ao qual nenhuma acção nobre refreava, afe
minou o vigor da mocidade, e destruiu a firmesa do caracter
nacional. A ambição, a conquista, o saber e o genio , tudo foi
sacrificado a um amor de illimitada inacção, que exhauria a
vida na ignorancia , e destruia o talento antes que despontas
se. O predominio do clero estabeleceu -se , e as riquesas do
nobre, os thesouros do cidadão , os fundos do negociante e os
salarios do operario— todos os recursos da industria - eram
lançados no insondavel abysmo da rapacidade ecclesiastica .
D'ahi em diante dominou o fanatismo em Portugal.
Lisboa , berço das descobertas maritimas, parece formada
pela naturesa para ser o emporio do commercio. Por isso , os
portuguezes , excitados pelo espirito dos emprehendimentos, que
só florece sob um governo livre e n’um paiz , que abunda em
recursos, foram o primeiro dos povos europeus que mandou
seus filhos arar mares desconhecidos , arrostar perigos inevita
veis, navegar por oceanos espantosos, e explorar terras igno
tas. Não era por esforço nenhum do espirito que podia ven
cer-se o medo de perigos medonhos , de tormentas horriveis,
de rochedos enormes, de monstros fabulosos, e de toda a qua
lidade de perigos incomprehensiveis , que , na epoca a que nos
referimos, pensavam encontrar-se alem das Columnas de Her
cules -o non plus ultra-- da exploração grega.
Gloriosos fructos e bem fadados louros foram os que Por
tugal colheu n’estas expedições. N’uma d'ellas, no seculo XV ,
foi descoberta a magnifica ilha da Madeira. E , ao passo que
n'outras, seus intrepidos filhos percorriam toda a costa d'Afri
ca até á Serra Leôa , e colonisavam as ilhas dos Açores e Cabo
Verde, tocava Bartholomeu Dias, pelos fins do mesmo seculo ,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 3

o Cabo da Boa Esperança , a que chamou das Tormentas; não


satisfeito com as suas descobertas, possuido do inextinguivel
amor de dominio , que então caracterisava os portuguezes, man
dou, na Ethiopia, explorar o reino do famigerado Preste João ,
para que lh’o descrevessem . Porém o resultado d'esta ultima
empresa não igualou as suas ardentes esperanças.
Immediatamente depois o grande capitão Vasco da Gama
partiu para a India com tres vélas e dobrou o Cabo da Boa Es
perança , o extremo meridional d'Africa . A fortuna sorriu -lhe

n'esta atrevida empresa, e o heroe lusitano voltou coroado pela


fortuna , depois de uma ausencia de dous annos. Seus perigos
e proesas tornaram -se a base dos celebres Lusiadas, poema de
que os portuguezes justamente se ufanam ; por quanto, aome
rito intrinseco acresce a gloria de ser o primeiro que , depois
da idade de Augusto, existiu . Por meio de taes empresas, co
mo a do Gama, depressa se estenderam os dominios portugue
zes na Asia desde Ormuz até Malaca . Foi por este tempo que
tomaram posse de Gôa ; que estabeleceram amigaveis relações
com a Persia ; que conseguiram estabelecer -se na China ; e que
ratificaram um livre commercio no Japão . Emfim , Portugal,
ajudado exteriormente pela judiciosa conducta de seus grandes
capitães, e no interior por uma sabia administração ,viu as suas
possessões , as suas riquesas e o seu poder chegarem a um au
ge até então desconhecidos ; ao mesmo tempo Lisboa tornou -se
o deposito dos thesouros da Asia, e o emporio dos productos
orientaes .

No hemispherio do occidente mostravam os portuguezes


tambem o seu genio activo e emprehendedor. Em 1520 desco
bre Magalhães o estreito, que ainda hoje conserva o seu no
me, mas não chega a concluir a sua descoberta , porque é des
afortunadamente morto n'uma escaramuça pelos indigenas. To
davia , a datar d'aqui, vastas porções do continente d'America
meridional se submetteram a Portugal, e a prosperidade nacio
nal foi progredindo gradualmente .
Depois não vêmos senão fraquesa e decadencia, não sendo
poucas as causas , que as determinaram . A rivalidade d'outras
nações é das principaes, mas a mais fatal foi a colonisação do
Brasil, que privando Portugal de seus mais emprehendedores
4 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

habitantes, tirou -lhe suas fontes de riquesa — porque roubando


de suas cidades a industria e a actividade, e implantando-as
nas terras do mundo occidental, lançara assim o fundamento
d'uma decadencia prematura. É em consequencia d'esta desgra
çada politica, que ainda hoje Portugal soffre. De balde imagi
naram que eram inexhauriveis as minas d'onde annualmente
extrahiam os preciosos metaes, e que augmentando o ouro au
gmentava a riquesa. Mas, quando assim fosse, parece que não
se lembravam então, de que o valor do ouro e da prata dimi
nuiria na proporção da sua abundancia , ao passo que o traba
lho das minas seria sempre o mesmo, de sorte que a despesa
chegaria a igualar ou a exceder a receita. Outras causas hou
ve tambem que apressaram a ruina da monarchia portugueza,
mas essas serão referidas nos logares em que, com minuciosida
de, se trata tanto de Portugal como d'outras nações, e portanto
não devem deter-nos inutilmente .
Foi quando D. João III subiu ao throno , em 1523, que
aquella decadencia se manifestou com mais rapidez. Pareceu
nascido, se não para completar, aomenos para apressar a rui
na do seu paiz . Dotado d’um caracter taciturno, melancholico
e supersticioso , a sua piedade ou temor, levou -o a consentir no
estabelecimento da inquisição , e a proteger a sociedade de Je
sus. Desconfiado, e destituido d'aquellas nobres qualidades,que
caracterisam o monarcha , e faltando- lhe aquelles elevados sen
timentosdehonra , quedistinguem o soldado, e que fazem a gran
desa da ambição , permittia a inveja dos seus aulicos, e a emu
lação de seus menos dignos rivaes, para que fosse denegrida e
destruida a reputação d'aquelles mesmos a quem devia toda a
sua segurança como rei , e Portugal toda a sua influencia como
nação : e , tendo-os assim abatido aos olhos do povo, não lhe
faltou o animo para fazel-os chamar , e deixal-os perecer na
miseria . O seu successor , D. Sebastião, subiu ao throno com
mais dignas aspirações. Influido pela esperança do premio, ou
estimulado pela sede de gloria , passou à Africa com dezeseis
mil homens, commandados pela flor da nobresa, para soccor
rer um monarcha banido , e, sendo possivel, restaurar-lhe o
throno: a posse de Arzilla era a condição d'esta desgraçada
empresa , no caso que fosse bem succedida a sua invasão. A
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 5

fortuna , porém , falhou no ataque, e o malfadado monarcha ,


derrotado na famosa batalha d’Alcacerquivir, perdeu o exercito
e com elle a vida , sem que ao menos o misero restante de seus
soldados , ou os distantes vassallos do seu arruinado reino, ti
vessem a consolação de pagar - lhe esses ultimos deveres da se
pultura, a que a humanidade, em todos os seculos, tanta im
portancia tem ligado : pois é ainda um mysterio, se pereceu na
batalha , e se perdeu entre os corpos mutilados, ou se, abando
nando a peleja , conservou depois um rigoroso incognito, e vi
veu vida de morte na pobresa e obscuridade .
Disse- se, e muitos acreditaram o boato, que elle apparecera
depois em Venesa ; porém , essas vozes, não obstante excitarem
grande interessee curiosidade, não só não despertaram os ani
mos dos portuguezes , mas não moveram nenhum outro valo
roso Sebastião a tentar a restauração do seu throno, deixan
do -o assim morrer obscuro. Comtudo isso esperaram a sua vin
da durante muito tempo , e até havia , ainda no seculo presen
te, muita gente ignorante, que, sob a denominação de Sebas
tianistas, aguardava a sua volta .
Por morte de D. Sebastião sete pretensores disputaram a
corða, entre os quaes se achava Filippe II de Hespanha , que,
sustentando a sua pretensão com um exercito de trinta mil ho
mens, com que invadiu Portugal, fez que os seus rivaes, sem
forças ou sem animo para se lhe oppôrem , lhe abandonassem
o terreno; e assim foi Portugal, em 1580, annexado á Hespa
nha . Camões não teve que soffrer a magoa de testemunhar a
degradação da sua patria, porque morreu no anno antecedente.
Porém , Filippe só conseguiu a sua usurpação á custa de
milhares de vidas, o que revolta os sentimentos e abala o es
pirito do historiador, que descreve similhante quadro. Sabemos
por via authentica , que foram tantos os cadaveres lançados ao
mar , que o povo não quiz comer peixe sem que as aguas fos
sem solemnemente purificadas pormeio de ceremonias religio
sas. Só da torre de S. Julião da Barra foram precipitados ás
ondas dous mil ecclesiasticos. O conde da Ericeira , no seu
Portugal Restaurado, ao registar estas atrocidades, exclama
com verdadeiro horror ---- « que o mar não querendo occultar
tanto delicto , trazia os corpos ás redes dos pescadores e reti
6 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

ravam -se d'ellas os peixes offendidos do insulto , recusando ser


mantimento de homens , que mudando as disposições de Deus,
lhes queriam dar homens por alimento ». Esta indignação dos
peixes durou tanto tempo, que, segundo diz o mesmo historia
dor , « foi necessario que a instancia dos pescadores o Arcebis
po de Lisboa fosse em procissão benzer o mar, profanado com
tantos sacrilegios, para que elle (como succedeu ) tornasse a pa
gar o tributo do peixe, que d'antes costumava » . E quem sabe,
se deveremos com rasão concluir que foram justamente accu
sados, como instigadores d'essa horrivel proscripção , os jesui
tas, para , como é muito provavel, augmentarem a sua riquesa ,
e consolidarem o seu poder sacrificando os seus irmãos ? Mas,
pela honra da Igreja Christã e da humanidade acreditemos que
essa accusação de instigarem aquella matança é falsa, e que
esse imputado desejo de augmentarem os seus thesouros e o
seu poder por meio da ruina e destruição de seus concidadãos ,
não passa d'uma exageração de seus inimigos. O caracter do
monarcha hespanhol explica sufficientemente todas as cruelda
des que então soffreu Portugal, e não busquemos por isso es,
tigmatisar a sociedade de Jesus com o ferrete do fratricidio . É
bastante que o digamos, mas não juntemos accusação ficticia
ou injusta .
Portugal, subjugado pelo governo torpe e retrogrado da
Hespanha , depressa perdeu a sua posição e importancia na Eu
ropa , e, ao mesmo tempo , a sua influencia na Asia ; entretan
to, destruido o exercito e abatido o commercio , os seus rendi
mentos e thesouros eram profusamente lançados nos canaes da
prodigalidade hespanhola . Asferidas abertas pelos altivos cas
telhanos nunca sararam , nem tão pouco todo esse tempo de
corrido até hoje ainda diminuiu a inimisade, que desde então
ficou existindo entre as duas nações. Para a independencia de
Portugal, como nação que só o brio nacional e a concentração
da força natural sustentam , é melhor assim : os portuguezes
conhecem perfeitamente que a Hespanha, pela sua posição geo
grafica, torna -se um visinho perigoso, e um alliado suspeito .
D'uma e d'outra parte tem havido quem deseje a união iberica
para que a Peninsula se torne uma nação solida , independente
e poderosa ; porém , não creio que esses desejos jamais possam
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 7

realisar -se . Os caracteres nacionaes divergem muito para que


possamos admittir , que uma tal união tivesse durabilidade.
Comtudo , Lisboa , gosando o monopolio do commercio do
Oriente, tornara -se o emporio dos productos asiaticos, e todas
as nações ali affluiam . Mas, tendo a guerra rebentado entre a
Hespanha e Hollanda, e vendo -se os hollandezes expulsos d'a
quelle porto em consequencia do jugo que pesava sobre Por
tugal, tiveram que ir directamente á India para fazerem o seu
commercio ; e foi assim , que, pouco depois , sob o pretexto das
hostilidades que então existiam entre as duas nações, invadi
ram e se apoderaram das ricas ilhas de Ceylão e Malaca, e de
muitas outras colonias que nunca foram restituidas a Portugal.
Porém , a retribuição não se fez esperar, porque, seguindo
os passos da injustiça depressa esta alcançou os seus agentes.
A decadencia da Hespanha começara. A guerra com a Hollan
da custou -lhe a perda dos Paizes Baixos, onde, por causas po
liticas, ou por perseguição religiosa, cerca de dezoito mil pes
soas foram executadas durante o governo sanguinario do feroz
Alba. Além d'isso, a sua invencivel armada, arremessada pelas
ondas, impellida pelas borrascas e dispersa pela tempestade,
cahiu optima preza da justa vingança dos inglezes, que furio
samente perseguiam e destruiam sem piedade os fluctuantes
castellos d'aquelles hespanhoes, que haviam ameaçado arras
tal-os algemados aos pés do throno do malogrado Filippe. Ou
tra calamidade os aguardava , mais deploravel no seu transito
e mais fatal em suas consequencias. Para satisfazer o odio pes
soal ou o zelo supersticioso do arcebispo de Valencia , um mi
lhão de mouros, a parte mais industriosa e virtuosa da popu
lação , foram arrancados do solo onde nasceram , e expulsos
para as aridas planices d’Africa, tendo perecido, diz -se, uma
decima parte antes de chegaram ao logar do exilio . Estreme
ce-se contemplando tanta miseria e tanta agonia inflictas pelo
braço dissoluto d’um sacerdote indigno. Nunca a Hespanhá re
cuperou esta perda . Foi o sangue do seu proprio coração que
ella derramou . Rasgou os orgãos, que alimentavam e faziam
circular os finos fluidos em seu seio de pedra. D'então para o
futuro não foi a monarchia hespanhola mais que uma pagina
da historia, e não uma potencia com força e actividade ; e foi
8 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tal a rapidez da sua decadencia que, não obstante os seus quin


ze milhões de habitantes no reinado de Fernando e Isabel, a
sua população em 1715 não era superior a sete milhões: acce
lerada e terrivel retribuição na verdade !
Todavia o jugo es'rangeiro não tinha de pesar eternamente
sobre a atmosphera politica de Portugal. Opprimidas por innu
meraveis injurias e affrontas, a Catalunha e a Biscaia subleva
ram -se em 1640; e Portugal, aproveitando a opportunidade ,
e por meio d’uma d'aquellas revoluções sem effusão de sangue ,
que tão raras vezes embellesam as paginas da historia, collo
cou no throno o Duque de Bragança .
Chamado á soberania por acclamação popular, como D. Af
fonso o foi em 1139 , o novo rei, D. João IV , reuniu côrtes im
mediatamente , o que causou grande satisfação, porque parecia
assim prometter ao povo ter parte no governo , e o allivio e
igualdade dos tributos. A experiencia , porém , tem mostrado,
tanto em Portugal como n'outras nações, que a forma simples
d'um governo livre é insufficiente para proteger o povo das
usurpações da auctoridade arbitraria . Essas esclarecidas ma
ximas politicas que obrigam os monarchas a respeitarem a vida
e propriedades de seus subditos, e essas sabias regras que lhes
servem de norma na pratica dos seus privilegios, e que hoje
são até observadas nas monarchias absolutas, não existiam en
tão, ou , se existiam , sabiam -nas, mas não as praticavam . As
sim , ainda que os privilegios da nação foram tão solemnemen
te garantidos e ratificados pelas côrtes de Lamego no seculo XII
com tanto cuidado e exactidão, como o foram os dos inglezes
na sua celebre Carta Magna ; comtudo, na época a que allu
dimos, e mesmo no seculo XVIII, esses direitos theoricos eram
tão conhecidos ou praticados como em Inglaterra no reinado de
Henrique VIII , em que bastava o simples fiat do soberano para
tirar-se a vida a qualquer cidadão . Talvez que a cruel vassal
lagem , que os prendia á Hespanha , tivesse afeito seus espiri
tos ao captiveiro, e por isso a revindicação momentanea dos
seus direitos não pode ter nascido senão da severidade que o
acompanhava. Porém , como quer que seja, o clero, vendo a
apathia da nação, valeu -se da opportunidade para augmentar
o seu prestigio e reconciliar o povo com as arbitrariedades das
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 9

classes superiores. O exito foi o desejado ; porque, em conse


quencia da sua cegueira e do despotismo do governo , o povo
permaneceu ignorante, e a nação tornou -se abatida no espirito,
indolente no caracter, e pobre de recursos. D'este modo , Por
tugal, enfraquecido e humilhado, perdeu quasi todas as suas
possessões no oriente ; e, entre as poucas que lhe restavam ,
contava- se Bombaim , colonia então doentia , esteril e sem me
recimento , e por isso dada em dote á infanta D. Catharina, que
se desposou com Carlos II d'Inglaterra : longe estavam um e ou
tro governo de prever que um logar tão superficialmente apre
ciado viria a ser a capital do imperio britanico na India . As
outras colonias, que Portugal ainda ali conserva , de
pouco The
valem , e talvez nos não enganemos, se dissermos que não virá
longe o dia em que as cederão ao que maior interesse offerecer.
Em 1706 ( tendo então o personagem d'estas Memorias
sete annos) succedeu D. João V no throno, e dous annos de
pois , tendo vinte e um , desposou D. Marianna , filha do impe
rador Leopoldo I. Dotado d’uma disposição indolente e luxurio
sa, foi por conseguinte presa das fraquezas e vicios que nas
cem da inercia e da indulgencia . No homem de posição com
mum , que não chega a exercer os mais elevados cargos do
estado , é aquella tendencia para a inacção ás vezes honrada
com a denominação de bem -estar, e louvada como uma virtu
de, o que a prudencia e a philosophia produzem ; porém , no
soberano é as mais das vezes o resultado da incapacidade do
espirito para a execução de grandes feitos; e, a julgar pelos
seus effeitos , tem mais connexão com o vicio do que com a
virtude. Em D. João era natural o amor do ocio ; e a longa paz
que a nação gosou no seu reinado , foi devida mais á sua in
dole do que ao amor da justiça , ou á sua capacidade em mate
rias de governo . A sua benignidade tornou -o um autómato do
clero, que,desviando-lhe a attenção da governança do reino,.
,e
dirigindo-a para a edificação e engrandecimento de igrejas e
mosteiros, fez que por este meio a sua influencia e poder cres
cessem a ponto de chegarem a um auge prodigioso e quasi in
crivel. N'este tempo não havia em Portugal menos de oitocen
tos estabelecimentos religiosos, que sustentavam na indolencia
e esterilidade, e muitas vezes no vicio e na immoralidade, mais
10 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

da decima parte de toda a população do paiz. Porém de todos


os absurdos clericaes d'este reinado , o que mais o distinguiu ,
foi a edificação d’uma igreja pelo teor da de Roma; para o
que, tendo -se D. João ardentemente iniciado no projecto do seu
clero e n'elle assentido, obteve a permissão da curia de Roma
para empregar os thesouros do paiz no que julgava uma con
veniencia ; advertindo, comtudo, que aquella concessão não dei
xou de custar sommas consideraveis . Executado este plano,
creou-se um cargo ecclesiastico mais elevado do que até então
se vira, nomeando -se uma dignidade para presidir como chefe
da igreja em Portugal, com a denominação de Patriarcha , a
que ficou annexo um collegio sacro composto de vinte e qua
tro prelados, aos quaes, por concessão regia, foi conferido o
tratamento de Excellencia (distincção de tanto apreço então ,
que se dava aos grandes do reino : classe, que nem mesmo com
prehendia os nobres, que tivessem o titulo de visconde). Para
mais realçar a similhança d'esta corporação ecclesiastica com
a curia de Roma, os paramentos do patriarcha em dias solem
nes eram iguaes aos do papa, e as vestes dos prelados eram
escarlates á imitação das dos cardeaes. Na celebração das ce
remonias religiosas não só buscavam igualar, mas até exceder
o illustre collegio que haviam tomado para modelo. Mais de
cem clerigos subsidiarios, a quem com profusão se dispensa
vam honras e dignidades, occupavam logares subordinados a
esta nova instituição ; entretanto que uma escala infinita de lo
gares inferiores augmentou o pessoal do Patriarchado a ponto
de tornar-se impossivel dizer em que condição obscura se su
mia o ultimo da immensa legião clerical. Esta inqualificavel
vaidade não custou menos de oitenta mil libras, não incluindo
outras quantias pasmosas que se dispenderam primeiro que
alcançassem a licença para a incorporação do estabelecimento .
A datar d'ahi foi conferido a D. João V e aos seus successo
res o tratamento de « Fidelissimo » .
Outra empresa gigantesca a que D. João dedicou bastantes
annos de anciosa solicitude, e em que se dispenderam rios de
dinheiro, que com mais utilidade teria sido empregado no pro
gresso da agricultura, manufacturas e commercio do paiz, foi
a edificação d’um immenso convento em Mafra . Não podemos
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

deixar de lastimar, em vista da belleza , grandeza e magnifi


cencia d'este nobre edificio, que tanta riqueza, trabalho e ta
lento se não tivessem gasto n’alguma empreza que em mais
harmonia estivesse com o espirito do seculo, ou quemais ade
quada fossé ás necessidades da nação. Porém , se nos fins da
obra havia utilidade, é o que parece nunca ter occupado a at
tenção do rei. Aprazia -se de as suas obras serem effeito da
piedade, e a lisonja de seus aduladores a verdade ; mas a voz
da vaidade, como evidencia em caso duvidoso , decidia a ques
tão. O edificio contém , além do convento , uma igreja e um pa
lacio, tudo construido com o maior esplendor , e enriquecido da
mais apurada arte, tendo n’elle trabalhado os mais celebres ar
tistas da Italia . Vejamos como em Vathek se acha descripto
este sumptuoso edificio :
« A entrada da igreja fez-me lembrar bem a de S. Pedro,
quando passámos pelo seu magnifico portico , ornado de esta
tuas de santos e martyres trabalhadas com infinita delicadeza .
« O interior da igreja espanta á primeira vista . O altar -mór
ornado por duasmagestosas columnas demarmore vermelho va
riegado, ambas de pedras inteiriças com mais de trinta pés de
altura, attrahe immediatamente os olhos . Trevisani fez a pin
tura do altar d’umamaneira digna de mestre. Representa Santo
Antonio no extasis vendo o menino Jesus descer á sua cella no
meio d'um esplendor de gloria .
« No dia seguinte , sendo a festa de Santo Agostinho , de
que são devotos os mesmos que habitam o mosteiro , todos os
candelabros dourados estavam patentes e as velas accesas. De
pois d'alguns minutos d'observação no meio d’esta brilhante il
luminação, visitámos as capellas lateraes, todas enriquecidas
de baixos relevos primorosamente acabados, e de grandes por
taes de marmore preto e amarello ricamente variegado e tão
bem polido, que reflecte como um espelho. Nunca vi uma tão
bella collecção de marmores resplandecendo por todos os lados.
O pavimento, a abobada, a cupula , e até a mais alta serpen
tina, tudo é esculpido com os mesmos materiaes esplendidos e
duraveis. Rosas de marmore branco e ramos de palma grava
dos com a maior perfeição embellezam todos os lados do tem
plo . Ainda não vi capiteis corinthios mais bem delineados, ou
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

executados com maior exactidão e intelligencia , do que os das


columnas que sustentam a nave .
« Satisfeita a nossa curiosidade e examinados os diversos

ornamentos dos altares , passámos á sachristia seguindo o nosso


guia por uma longa galeria e uma magnifica sala d'abobada
atapetada e embutida com bellas variedades de alabastro e por
phydo, bem como uma capella contigua no estylo damaior ma
gnificencia. Atravessámos diversas salas e capellas mais, deco
radas com igual sumptuosidade, até que ficamos cançados e
perdidos como cavalleiros errantes no labyrintho d’um palacio
encantado. Comecei a imaginar que não veriamos o fim a tan
tas e tão vastas salas ; e por isso avançámos com passo bas
tante rapido d’um extremo ao outro d’um aposento de seis
centos pés de comprido n'um ou dois minutos. Estes immensos
corredores e as cellas com que elles communicam , em numero
de trezentas, são todos d’abobada e construidos da maneira

mais solida e sumptuosa. Cada cella, ou antes sala, porque são


bastante espaçosas , altas e bem claras para que mereçam tal
nome, está mobilada com sua mesa e estante de madeira do
Brasil.
« A bibliotheca é d’um comprimento prodigioso não tendo
menos de trezentos pés; e o tecto abobadado d’uma forma ele
gante, bellissimamente estucado ; e o pavimento de marmore
branco e vermelho .
« A cupola póde de certo contar-se entre as mais notaveis
e bem proporcionadas da Europa .»
Foi ao mesmo tempo que fazia este faustoso desperdicio em
Mafra, que em Lisboa patenteou uma prodigalidade, que ain
da mais a empobrecia . Em S. Roque, uma igreja da mais in
significante apparencia em architectura, fez consagrar e deco
rar uma pequena capella o mais explendida e sumptuosamen
te possivel dedicada a S. João Baptista, afim de propiciar e sa
tisfazer os jesuitas. Esta capella, attendendo ás suas dimensões,
era talvez a mais rica do mundo ; não obstante só ter dezesele
pés de comprimento sobre doze de largura , os materiaes n'ella
empregados, e o que a arte poude produzir, não custou tudo
menosde 225.000 libras.Enriqueceram -na os mais raros mar
mores e exquisitos mosaicos, e offuscava litteralmente a vista
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 13

com as variadas e brilhantes cores de lapis-lazuli, porphydo ,


amethysta , chrysólitha , alabastro, prata e ouro. Em consequen
cia , porém , d'estas e outras más applicações da receita publica
a armada e o exercito foram quasi aniquilados, as fortificações
cahiram em ruinas, e as defensas do paiz cessaram de offere
cer resistencia . A marinha, o exercito , as linhas de defeza e os
regimentos de observação, que havia, eram in nomine ; do mes
mo modo que existiam desmontadas e abandonadas as forta
lezas que havia . Finalmente o governo não era mais que o es
queleto d’um poder executivo ; carecia de tudo quanto lhe dá
vida— homens, dinheiro e munições de guerra , isto é, o san
gue, os nervos e o sustento d’uma nação .
Desde 1698 que não tornaram a reunir cortes, e as func
ções unidas d’um poder deliberativo e executivo foram usur
padas e eram exercidas pelo clero e pela nobreza . Sendo am
bos, no mesmo gráo , ignorantes , ambiciosos, altivos e despo
ticos, oppunham -se por isso a qualquer alteração na marcha
rotineira da governança , e estavam determinados a todo o ris
co, e procedendo arbitraria e inconstitucionalmente , a impedir
que o povo praticasse qualquer acto que podesse excitar- lhe o
antigo amor da liberdade, ou que o levasse a exigir na admi
nistração dos negocios publicos aquella parte , que injusta e in
dignamente lhe fora arrancada em seus momentos de victoria
e enthusiasmo. A licenciosidade era geral; nem mesmo julga

ram necessario o véo da hypocrisia para occultar ao publico , a


que o monarcha não só animava,mas abertamente abraçava ,
O convento de Odivellas, cujos muros sagrados encerra
vam trezentas bellas reclusas , era o theatro onde D. João V
buscava e conseguia entregar-se aquellas scenas voluptụosas
que pouco harmonisavam com a sua piedade exterior. É em
vista d’estas tendencias que o caracterisavam , que nos vimos
compellidos a consideral-o mais como um sultão d’um imperio
do oriente, do que como o rei d'um estado christão .
Os excessos mais barbaros e brutaes envileciam as classes
mais elevadas da nobresa . Com a noute vinham as suas licen
ciosas orgias e odiosas dissenções com que estrugiam as ruas
de Lisboa ; entretanto que as vidas dos pacificos cidadãos, per
didas em defesa propria ou gastas em libidinosos desvarios,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

não eram vingadas nem expiadas : osmalfeitores aristocraticos,


pondo -se a coberto com as suas riquesas ou abrigando-se a
sombra da sua jerarchia de affinidade á corða , ficavam impu
nes e illesos. Debaixo d’um governo d'esta naturesa achava -se
deprimida a industria e algemada a empresa, as quaes duvi
dando colher o premio e o fructo da acção, desistiam do esfor
ço e mergulhavam -se na inercia . Até os judeus, homens per
severantes e sequiosos do ouro , vendo -se perseguidos e contra
riados nas suas diligencias de adquirirem uma repugnante e pe
nosa fortuna, abandonaram seus negocios e fugiram do reino .
Comtudo , segundo certas authoridades, não deram este passo
desesperado sem primeiro offerecerem um tributo annual de
200:000 libras ( somma muito consideravel então ) para se lhes
conceder estabelecerem - se em Almada , uma grande villa situa
da n’uma eminencia ao sul do Tejo defronte de Lisboa , e pri
mitivamente fundada pelos inglezes, quando , no seculo XIII,
prestaram auxilio aos portuguezes contra os mouros. Todavia
a proposta não foi aceita. Nomeio , porém , de toda esta loucu
ra , fraquesa e infelicidade é digna dos maiores louvores, não
só pela sua grandesa sem rival em tudo o que a antiga Roma
emprehendeu ou executou ,mas pela sua utilidade, uma empre
sa a que este reinado viu o começo e o fim : o grande Aquedu
cto de Lisboa , que, da distancia de duas leguas, conduz gran
de quantidade d'agua para abastecer a capital. Foi começado
em 1712 e acabado em 1732. Atravessa o profundo valle de
Alcantara, onde é sustentado por trinta e cinco arcos tendo o
maior duzentos e sessenta e quatro pés d'altura , e duzentos e
oitenta de largura entre as bases. Dous conductos trazem a agua
da nascente havendo ahi espaço para se passar a pé.
Tendo assim esboçado a vida e propensões d'este monar
cha com relação ao seu governo e passatempos, não deve admi
rar nem surprehender mostral-o agora mergulhado na imbeci
lidade e fatuidade, que foi o estado a que seu pae chegara pre
viamente a sua morte, e entregar -se ás praticas mais abjectas
de supersticiosa devoção . Foi assim que antes vegetou do que
viveu nos ultimos nove annos da sua vida , fallecendo a final em

1750, e deixando a nação sobrecarregada com uma divida de


tres milhões de libras sterlinas, e quasi á borda do exicio .
CAPITULO II

Accessão de D. José ao throno; reflexões sobre o nascimento de Pombal; seus


primeiros passos ; alista -se no exercito ; seu casamento ; sua nomeação de mi
nistro na côrte de Inglaterra ; sua feliz diplomacia ; obtem uma satisfação por
lhe prenderem o seu medico ; sua saída de Londres ; desintelligencias entre a
curia de Roma e a côrte de Vienna ; Benedicto XIV procura a mediação de
Portugal ; Maria Theresa escolhe para arbitro Pombal ; missão d'este em Vien
na ; morte de sua mulher; casa com a sobrinha do marechal Daun ; carta au
tographa de Maria Theresa ; aspecto physico de Pombal; opinião de mr. Blon
del acerca de Pombal ; este sae de Vienna e chegando a Lisboa é nomeado se
cretario de estado dos negocios estrangeiros ; caracter de D. José .

D. José I, subindo ao throno , completava trinta e sete an


nos ; e , não se lhe tendo jamais permittido tomar uma parte
activa na gerencia dos negocios publicos durante a longa epoca
da incapacidade de seu pae, viu -se inopinadamente chamado
a tomar as redeas do governo d’uma nação, que o seu anteces
sor deixara entregue á maior desorganisação e a maior miseria
possiveis .
Nos complicados negocios da vida , nas incertesas da pros
peridade commercial, e nas calamidades que nascem do mau
governo, succede sempre a cada depressão ou exaltação uma
certa tendencia para a reacção, e é d'este modo que não só a
sociedade em geral, mas cada individuo em particular, apren
de a curar dos proprios interesses ou a ser perseverante. E as
16 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

sim que os remedios para os males politicos se descobrem ,


quando esses males tocam a sua méta , e para a reformamo
ral quando a immoralidade, deixando de ser parcial, se torna
geral em seus effeitos. Quando, porém , a causa da desgraça é
a ignorancia, e esta é alimentada pelos ministros da religião
como parte essencial do seu systema, os homens não podem
quebrar asalgemas que os prendem ; porque, setentarem eman
cipar-se d'este captiveiro, sabem que serão accusados do atten
tado de revolverem os alicerces , sobre que o edificio da religião
se acha construido. Portanto o primeiro passo para o progres
so está condemnado , e é necessariamente n'elle que existe o
bom ou mau exito d’uma desesperada tentativa. O desespero
póde produzir a coragem ; a necessidade póde excitar a indus
tria ; as doenças podem impor a sobriedade, e a oppressão pó
de levantar o grito da liberdade : porém uma ignorancia su
persticiosa , e por conseguinte satisfeita, jamais procura a luz
da instrucção para dissipar as trevas em que se acha envolta,
e tãopouco intenta desfazer o encanto d'essa cruel superstição,
que, não contente de privar os seus sectarios da luz da verda
de, os obriga a fechar os olhos á bellesa da intelligencia. Esta
superstição , o tyranno morbido do espirito , sustenta o seu do
minio
por meio de ameaças de penas no outro mundo , não he
sitando ao mesmo tempo inflingir outras n’este. Comtudo , fe
lizmente para a humanidade, jamais existira na Europa chris
tã um tal abuso de religião .
Não ha paiz , cuja historia jamais nos mostrasse que em
qualquer epoca de sua ameaçada dissolução houvesse menos
principios de regeneração, do que em Portugal pela morte de
D. João V. E , comtudo , n'esse mesmo momento em que toda
a esperança de prosperidade futura se desvanecera, e a fortu
na parecera abandonar a infeliz terra a uma breve e prema
tura destruição, surgiu um genio poderoso, e das profundesas
do seu espirito transcendente , á similhança da deusa Athenien
se nascendo do cerebro de Jupiter Olympio , brotou uma nova
serie de factós. Fora-lhe confiada pela Providencia a ardua ta
refa de reprimir as fontes latentes do mal; de moldar os ma
teriaes mais incongruos e contrarios n’uma consistencia e fór
ma convenientes; de desmascarar a hypocrisia e destruir os
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 17

abusos da religião ; de revocar a litteratura , reanimar o com


mercio, e recoperar a prosperidade; de remir e sustentar a di
gnidade da coroa ; de juntar esplendor e fama ao seu paiz; de
propagar a sua reputação, reaccender o seu antigo genio , vin
dicar os seus antigos direitos, e tornal-o mesmo a collocar n’a
quella ordem e consideração dos conselhos das potencias euro
peas, donde o condemnavel e mau governo de seus filhos dege
nerados o deixara descer,mas que o genio patrio não lhe permit
tira perder. Este homem foi Sebastião José de Carvalho e Mello ,
depois Conde d'Oeyras e Marquez de Pombal. E , como é por
este ultimo nomeque este grande vulto é geralmente conhecido,
ficarei usando delle no seguimento das presentes Memorias.
Este illustre estadista nasceu em Lisboa a 13 de maio de
1699. Seu pae, Manuel Carvalho de Ataide, era um cava
lheiro de poucos haveres mas independente , e que pertencia
a uma certa categoria distincta pelo titulo de Fidalgo de Pro
vincia, o que lhe dava jus aos numerosos privilegios da no
bresa, comquanto não fosse aos dos grandes do reino, porque
n'este numero só se contavam os titulos de duque , marquez e
conde . Sua mulher, D. Thereza de Mendonça , de uma familia
illustre, teve d'elle tres filhos, que foram , álem do personagem
d'estas Memorias, Francisco e Paulo .
Predominando em Portugal o costume de frequentes vezes
os filhos tomarem o appellido de suas mães, Sebastião juntou
ao seu nome o appellido de Mello, que era de seu avó mater
no João d'Almeida e Mello , representante d'uma familia muito
distincta nos annaes portuguezes. Paulo de Carvalho e Men
donça era dos tres filhos o mais velho, e Francisco Xavier de
Mendonça o mais novo .
Pena é que quasi nada se saiba dos primeiros annos de
Pombal. Frequentou a universidade de Coimbra para , por as
sim dizer, satisfazer a um costume, e, tendo trabalhado na ro
tina dos estudos improficuos que então formavam o program
ma d'aquella universidade, deixou-a desgostoso , e talvez com a
firme convicção de que nunca era possivel, para chegar á luz
da verdadeira sciencia, penetrar as sombras academicas de
Coimbra , o que tanto provam os insuperaveis obstaculos que
na sua entrada se encontravam .
YOLUME I 3
· 18 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Deixando a universidade assentou praça no exercito como


cadete, segundo o costume então . Em breve promovido a cabo ,
n’este posto se conservou até que abandonou a profissão das
armas, que n’aquelle tempo de paz não só não era adequada

á sua disposição activa, mas não parecia propria para o des


envolvimento do seu genio ascendente. Vendo -se assim lança
do no ocio , tratou de entregar -se exclusivamente ao estudo da
historia , politica e legislação.
Entretanto que proseguia n’estes estudos, chamando-o um
tio seu a Lisboa, o apresentou ao cardeal da Motta , então va
lido de D. João V, e que possuia por conseguinte as redeas do
governo. O cardeal, conhecendo intuitivamente o caracter que
o distinguia , logo previu os fructos que o paiz podia um dia
vir a colher do genio de Pombal, e animando-o instantemente
nas suas prosecuções, recommendou -o ao mesmo tempo com
interesse ao rei, que , em signal da consideração, com que eram
olhados os seus progressos litterarios e a sua reputação , o no
meou , em 1733 , socio da Academia Real de Historia, fundada
em 1720 ; e pouco depois , para maior prova do quanto apre
ciava o seu talento , manifestou o desejo de que elle escrevesse
a historia d'alguns monarchas portuguezes . N'isto, porém , met
teram -se negocios importantes e urgentes , que obstaram á exe
cução do trabalho para que tão distinctamente fóra escolhido.
No mesmo anno, em que seus talentos attrahiam a atten
ção do governo, e lhe grangeavam a protecção da corða , casou
com D. Theresa de Noronha , viuva , d'uma antiquissima fami
lia , e sobrinha do conde dos Arcos.
D'este modo estabelecido, e desejando alcançar na corte al
gum logar de distincção que requeresse energia e actividade
compativel com os seus desejos ou adequado ás suas habilita
ções, mas não o podendo ter conseguido por não o haver, per
maneceu na especie de inacção, em que vivia até 1739 , quan
do graves circumstancias obrigaram o rei, por conselho do car
deal, a envial-o a Londres na qualidade de ministro plenipo
tenciario . Foi com praser que aceitou tão honrosa nomeação,
olhando- a como um meio auxiliar , que o habilitava a combi
nar em um só, o estudo da legislação e da politica. É eviden
te, portanto , que já no principio da sua carreira , sem que ain
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 19

da se lhe tivesse offerecido occasião de distinguir -se por meio


d'algum acto, ou de manifestar o seu genio , o monarcha nutria
esperanças, e reconhecera indicios de grandesa futura , e que
aquella nomeação para occupar tão importante logar mostrava
que os, que regiam osdestinos da nação, depositavam a maior
confiança no seu tacto, juiso e delicadesa .
Vê -se que durante todo o tempo , em que occupớu aquelle
logar na corte britanica , não despresou nem esqueceu os ver
dadeiros interesses do seu paiz, alcançando, alem de varios pri
vilegios para os portuguezes em Londres, e da cessação por uma
vez , de todas as violencias e extorsões a que , por vezes, os fi
zeram submetter , o direito de o seu governo poder prender e
mesmo punir , segundo o rigor da lei, todos os inglezes que se
atrevessem a commetter vexações, prepotencias ou quaesquer
delictos nos dominios portuguezes. Pombal fez depois que lhe
dessem uma satisfação d’um insulto dirigido a um empregado
da sua legação, tornando-se assim um instrumento , que manti
nha e definia os privilegios dos enviados estrangeiros, que fo

ram muitas vezes a causa de disputas não obstante o previo


acto do parlamento de 1709 , que prohibia, que os embaixa
dores e aquelles, que estivessem ao seu serviço, podessem ser
presos. Deu -se este incidente com um medico de Pombal, e cu
ja prisão fôra feita por um collector, mas que, em vista da re
presentação do ministro portuguez, foi posto em liberdade.
No jornal do conde d'Oeyras, a que teremos occasião de
nos referirmos , acha -se narrado um caso curioso relativo ás di
vidas dos embaixadores estrangeiros, com data de Londres de
14 de junho de 1783, e é como se segue: « Vimos tambem
(na Abbadia de Westminster ) dois caixões, em que jazem os
cadaveres de dois Embaixadores; um de Hespanha, outro de
Sardenha ; que se conservam ha mais de cem annos, sem se
darem á sepultura, por não terem pago as suas dividas.»
Ora , um dos privilegios, que Pombal alcançou para os por
tuguezes residentes em Londres, foi a isenção do pagamento
dos impostos. Representou aoministerio , n’um officio de setem
bro de 1739 , que os collectores do imposto das janellas ha
viam feito penhora nos generos d'um Bento de Magalhães, ne
gociante portuguez, o que declarou ser contrario aos tratados
20 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

que subsistiam entre as duas nações, em virtude dos quaes os


negociantes inglezes em Lisboa exigiam e gosavam as isenções
de todas as imposições similhantes. Em vista d'esta represen
tação respondeu o duque de Newcastle em 20 de novembro
de 1739 , o seguinte : « Sua Magestade Britanica sendo infor
mado de que os vassallos de Sua Magestade Fidelissima, que
residem em Inglaterra , teem sido sobrecarregados e obrigados
ao pagamento d'alguns impostos publicos e parochiaes, que fo
ram lançados por Acto de Parlamento a todos os habitantes in
distinctamente ; ordenou -me que vos participasse, ainda que
em virtude da naturesa e fórma do nosso governo, não cabe na
alçada do rei isentar ninguem em particular do pagamento dos
impostos lançados por Acto de Parlamento, e que esta isenção
nos vassallos portuguezes, em qualquer Acto Parlamentar, não
só seria nova , mas sujeita a grande debate e inconveniencia :
comtudo, para dar a Sua Magestade Fidelissima uma prova da
amisade e consideração em que o tem Sua Magestade Britani
ca , e para que os subditos de Portugal que residem em Ingla
terra fiquem descançados de que não serão incommodados por
causa de quaesquer impostos parochiaes ou outros que, em vir
tude de Acto Parlamentar , sejam pagos pelos habitantes em
geral, vos faz saber que todos esses impostos lhes ficarão des
carregados, sem que por causa d'elles incorram em multas ou
penas algumas.»
Tambem não foi antes da epoca da diplomacia de Pombal,
que para os ministros estrangeiros na corte de St. James se es
tabeleceu o costume de importarem os « seus vestuarios, mo
veis , vinhos etc., para uso de suas casas, livres de direitos.
É a um manuscripto de Pombal, de que em seu competen
te logar se encontrará um extracto , que devemos o sabermos
a naturesa das suas occupações durante aquelle tempo. N'este
documento manifesta elle o pesar de que a sua pouca saude ,
e os muitos estudos a que se vira obrigado a applicar-se para
familiarisar -se com a historia , constituição e legislação d’Ingla
terra, o tivessem impedido de adquirir o conhecimento da lin
gua ingleza . Ora, attendendo a que esteve alguns annos n'a
quelle paiz , podemos talvez estranhar esta circumstancia ; mas
se reflectirmos que era o francez, que principalmente se falla
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 21

va na côrte de Jorge II, não havendo então obras nenhumas


inglezas sobre politica ou legislação, que requeressem o conhe
cimento d’esta lingua exclusivamente para aquelle estudo ; e
que o estado de perturbação do norte d'Inglaterra tambem in
terveio muito directamente nos seus estudos e socego, cessará

de certo a nossa admiração . Portanto, era dos escriptores fran


cezes que adquiria os seus conhecimentos, notando-se que, en
tretanto que passava noute e dia na contemplação e analyse
dos ministerios de Sully e Richelieu , e procurava assenhorear
se dos principios financeiros de Colbert, Sully tornou -se insen
sivelmente e de modo tal o seu exemplar e o objecto da sua
veneração, que, nos seus actos futuros, é tão conspicua a ma
neira feliz por que imitou aquelle grande homem nas varias
circumstancias da sua carreira , que os seus mais enthusiasti
cos admiradores não devem recear comparal-o , com a maior
exactidão , com o seu illustre prototypo.
Em 1745 regressou Pombal a Lisboa , parece que a pedi
do seu pelo motivo de que a corte d’Inglaterra não teria sido
nenhuma cama de rosas para um embaixador catholico, tendo
se promulgado um edito com data de 15 de fevereiro de 1744
para que se executassem as leis contra os papistas e non
jurors,mandando aquelles que sahissem das cidades de Londres
e Westminster e de dez leguas em circumferencia das mesmas
até 2 de março , para prendel- os a todos emsuas casas e to
mar-se as armas e cavallos aos que não quizessem prestar os
juramentos .
Pombal, não tendo em que occupar -se em quanto esteve
em Lisboa, teve bastantes occasiões para poder observar e es
tudar as causas dos abusos, que reinavam em todos os ramos
de administração. Examinou com vista pratica d’um legislador
as differentes repartições publicas, d'onde concluio que o reme
dio existia em reformas moderadas e judiciosas ; que a falta
estava nos governantes , e não nos governados; e que, para
formar o caracter d'uma nação e augmentar as suas forças, se
deveriam empregar leis sabias e salutares, dirigindo , e não
obstruindo o progresso da intelligencia ; instruindo , e não cor
rompendo , o povo ; distrahindo, e não fomentando, as suas pai
xões más ; desfazendo , e não alimentando, os seus prejuisos ;
22 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

e, emfim , modificando , e não exasperando , as suas supersti


ções, orgulho nacional e illusões. Entendia que todos os povos
teem um quinhão igual de virtude, e que tudo quanto se preci
sa n’um legislador, é saber, não só proporcionar o trabalho a
todas as classes, mas fazer-lhes chegar uma devida parte de
protecção para assegurar ao governo bons cidadãos, e ao paiz
habitantes valiosos. Foi n'estes principios que elle fundou to
dos os seus actos, como depois se verá ; e ainda que, segundo
as palavras d’um escriptor moderno, « encontrou o paiz infes
tado de ladrões, o commercio decaido, a propriedade nas mãos
da nobresa , e o povo dissoluto,» mostrou o quanto podia o seu
grande genio, fazendo que os salteadores desapparecessem ,
que o commercio fosse restaurado, que os bens fossem distri
buidos com imparcial amplidão , e que o povo prosperasse tor
nando - se industrioso e feliz .

Entregue a estas proficuas observações de novo os seus


talentos foram requisitados para um negocio de summa delica
deza e difficuldade . Suscitara -se uma discordia entre a curia
romana e a corte de Vienna relativamente á extincção do pa
triarchado de Aquileia, o que ameaçava ter graves consequen
cias, como succede necessariamente em todas as desintelligen
cias com aquella curia , visto que tendem não só á separação
d'aquella igreja , mas a destruir a integridade da fé catholica ,
que é o grande principio sobre que deve fundar - se « A Unidade
da Igreja .»
Não só Benedicto XIV buscou a mediação de Portugal,
mas tambem a imperatriz Maria Theresa, tão famigerada pelas
suas virtudes como celebre pela sua sabedoria, não esquecen
do que era sua conterranea , a que então estava na posse do
governo de Portugal na qualidade de regente durante a inca
pacidade do rei, estava anciosa por confial-a a um portuguez,
com cuja probidade, sagacidade e inteireza, ambas as partes
podessem contar. Por isso, não havendo pessoa demais reco
nhecida competencia que Pombal, foi elle immediatamente en
viado a Vienna na qualidade de ministro plenipotenciario para
resolver esta melindrosa questão . Tambem é de crêr, que esta
escolha fosse a rogo de Maria Theresa desejando recebel-o na
sua côrte com tão importante missão, porque não é sem funda
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 23

mento que podemos concluir, que não seria ignorado por uma
princesa , cujos conhecimentos eram tão varios, quanto o seu
genio era profundo, um homem que tão boa reputação gosava
no seu paiz, e cujas felizes negociações em Inglaterra teriam
de certo feito echo e excitado a admiração geral. Terminados,
pois , os preparativos de viagem , partiu para Vienna , onde che
gou em 1745 ; e, depois de varios ajustes,mutuas concessões
e contractos, e com infinita satisfação do papa, de Maria The
resa e do seu soberano, resolveu os negocios amigavel e termi
nantemente.
Foi entretanto que se achava n’esta corte, que recebeu a
cruel noticia da morte de sua esposa, a quem o amor o ligara,
vivendo ambos na mais perfeita harmonia. Pombal soffreu esta
perda com verdadeira resignação christã ; porém , a monotonia
d'uma vida solitaria é que não convinha a um homem do seu
genio . A recordação dos felicissimos dias, que gosara, levou -o
a desejar outra vez aquelle estado, sentindo -se tanto mais in
clinado a esta segunda união, quanto a primeira fora de ephe
mera felicidade e esteril. Não tardou muito que , passado o tem
po do luto , fizesse a sua escolha entre as damas da côrte , na
pessoa da joven condessa Leonor Ernestina Daun , filha de Hen
rique Ricardo, conde de Daun , familia illustre nos annaes aus
triacos pela fama e victorias do celebre marechal d’este nome,
a quem Maria Theresa devia , segundo ella propria confessava ,
a posse da corða, e do qual, fazendo uma breve interrupção ,
direi algumas palavras para illucidar os leitores acerca do con
ceito , que d'elle terão de fazer .
Este insigne marechal, cheio de honras e conservando até
final a estima da nobre imperatriz , cujo throno firmara, falle
ceu em janeiro de 1766. Maria Theresa, annos antes da sua
morte, fizera - lhe mercê de 250:000 florins para que podesse
comprar bens, que se perpetuassem na sua familia. A impera
triz da Russia reconheceu os seus serviços com a dadiva d'uma
espada ricamente cravejada de diamantes, e avaliada em 30 :000
florins. Na sua casa de campo , a poucas leguas de Vienna ,
viam -se seis peças, que a imperatriz lhemandara, quando ga
nhou a batalha de Colin , tendo gravada uma inscripção que
honra a familia Daun .
24 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Sendo, pois, reciproco aquelle amor, e obtido o consenti


mento do marechal, tendo-se primeiro procedido a certas in
formações, dado seguranças satisfatorias, e deduzido provas da
origem nobre e caracter apreciavel de Pombal, celebraram - se
as nupcias com grande pompa e brilho sob os immediatos aus
picios da imperatriz, que desde então, e em todo o tempo de
sua vida de peripecias, ficou dedicando a ambos uma firme e
inabalavel amisade. A felicidade coroou este consorcio com o
fructo de dois filhos e tres filhas, a quem n'outro logar alludi
remos. Entretanto expliquemos n'algumas linhas o motivo por
Pombal era sempre feliz nos seus negocios, e porque gran
que
geava tantas sympathias em todos os circulos onde era intro
duzido .
Pombal era sobre maneira alto , airoso , e bem parecido ;
tinha o rosto intelligente e expressivo, asmaneiras agradaveis,
a linguagem fluente, e a voz em extremo suave e persuasiva .
Os seus inimigos, esquecendo estas vantagens naturaes e os
dotes adquiridos, e concluindo da justa severidade com que se
vira obrigado a encarar o crime e a castigar o vicio em nume
rosos exemplos durante o seu longo ministerio , que era austero
e repulsivo no aspecto , e tão reservado como frio nas manei
ras, assim o pintaram . Esta inverosimil exposição é, porém ,
destruida pelas informações, que podemos colher acerca da sua
affabilidade e polidez na vida privada, cujas qualidades não
foram jamais impugnadas, sendo antes confirmadas pelo teste
munho de varias autoridades, que tive a honra de consultar.
Para que a grandeza do crime parecesse menor imputando a
pena á severidade do juiz , tomaram pormoda representar Pom
bal como um ministro rispido e severo. A calumnia foi a con
sequencia natural da posição a que depois chegou , e dos ar
isso que
duos deveres, que lhe cumpria desempenhar. E por
passo a transcrever aqui o juiso imparcial sobre as qualidades
de Pombal, feito por pessoa que teve sobejas occasiões para
poder formal-o com exacção . No archivo dos Negocios Estran
geiros, em Paris ,com a designação de : « Correspondencia d'Aus
tria n .° 244 » dei com um despacho de Blondel,ministro fran
cez em Vienna , dirigido ao seu governo com data de 10 de
janeiro de 1750 , de que fiz o seguinte extracto :
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 25

«M. de Carvalho a été longtemps, ministre de Portugal à


Londres, d'où le roi son maître l'a fait passer ici pour y em
ployer ses offices afin de rétablir la bonne intelligence entre
cette cour et celle de Rome. Il a été également chargé de faire
recouvrer à l'électeur de Mayence les bonnes graces du Pape .
Dans ces deux affaires il a donné des preuves de son habilité ,
de sa sagesse , de sa droiture , de sa douceur, et surtout de sa
grande patience , et il s'est non seulement concilié la bienveil
lance de toutes les parties intéressées, mais aussi de tous les
ministres étrangers , et des personnes de considération qui sont
ici. Il est noble en tout sans ostentation ; il est sage et très pru
dent; rempli de sentiments et principes d'honneur , ne visant
qu’un bien général ; et je sais qu'il n'a pas dépendu que l’im
pératrice n'adoptât plus tôt des sentiments pacifiques . Il est
aussi bon citoyen du monde qu’aussi solide, et il a été fort
regretté de la cour et de la ville . Il a environ 50 à 55 ans, et
s'est marié à Vienne depuis quatre ans à la fille de la Genérale
de Daun . » Concluia o despacho , dizendo que Pombal estava
prestes a voltar a Lisboa para tomar posse da pasta dos nego
cios estrangeiros , para que fora chamado pela rainha regente
em vida de D. João V.

É , pois, do testemunho imparcial do ministro francez que


se acha n’um documento, que nunca fora devassado, que temos
a mais exacta informação do caracter de Pombal. Advirta -se,
tambem , que não foi por meio da intriga , como seus biogra

phos pertenderam , que lhe foi confiado tão importante cargo,


mas sim pela alta consideração em que na sua corte o tinham .

1 TRADUCÇÃO.— « Mr. de Carvalho foi por muito tempo ministro de Portu


gal en Londres, d'onde o rei, seu amo, o fez passar para aqui com o fim de em
pregar suas diligencias para restabelecer harmonia entre esta corte e a de Roma.
Foi egualmente encarregado de fazer com que o eleitor de Mayence recuperassa
a amisade do Papa . N'estes dois negocios deu provas de habilidade, prudencia ,
rectidão, moderação , e especialmente de grande paciencia, e conciliou não so .
mente a benevolencia de todas as partes interessadas, mas igualınente de todos
os ministros estrangeiros, e das pessoas distinctas, que residem n’esta cidade. É
nobre em tudo sem ostentação : sabio e muito prudente : possuido de sentimen
tos e principios de honradez, não aspirando senão ao bem geral; e sei que não
dependeu d'elle o não adoptar a imperatriz mais cedo sentimentos pacificos. Elle
é tão bom cidadão como integro, e tanto a corte como a cidade tiveram inuitas
saudades d'elle . Tein de 50 a 55 annos , e ha quatro annos que casou em Vienna
com a filha da mulher do general Daun. »
26 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Acompanhado de sua esposa e bastante saudoso, partiu de


Vienna no começo de 1750, chegando a Lisboa sem novidade
pouco antes da morte de D. João V.

Fallecendo , emfim , este monarcha , e subindo ao throno


D. José, logo Pombal tomou posse da pasta , que lhe estava des
tinada , sendo desde então que devemos datar o exordio dos
seus esforços quasi sobre humanos para a regeneração da sua
patria . Se alguma deficiencia havia em D. José , ou se, em con
sequencia do abandono, em que foi educado, não tinha a ca
pacidade sufficiente para governar sem o esteio de forças su
periores, o que é certo, é que, felizmente para Portugal , álem
da firmesa de espirito , de que se achava possuido , da constan
cia nos planos e do amor natural da gloria , tinha tambem a
inabalavel convicção de que, com um ministro do genio de
Pombal, a quem apreciava em subido gráo, o seu reinado se
não distinguiria pouco dos dos seus predecessores nos mais
florescentes dias da colonisação de Portugal. Feliz com a posse

d'um Sully , olhava talvez para a gloria de Henrique IV . Eis


finalmente o que explica o animo e a resolução com que sem
pre sustentou o seu ministro contra todo o genero d'intriga e
infatigavel malicia durante o longo periodo de vinte e sete an
nos .
CAPITULO III

Reflexões geraes ; Pedro da Motta ; os jesuitas ; o commercio é animado ; estado


do sul; as ruas de Lisboa , de Londres, e de Vienna ; as rendas publicas ; as
colonias ; estabelecem - se companhiasmercantis ; os indios são declarados livres
na America ; Pombal cria inimigos ; consegue conservar a confiança do rei.

Possuindo desde logo a inteira confiança do seu monarcha,


Pombal viu -se revestido do poder de pôr em execução os pro
jectos reformadores, que profundamente concebera e pacifica
mente amadurecera. Não tendo, porém , garantia alguma que
lhe assegurasse a continuação do valimento do rei, e para que
não provocasse a opposição e o resentimento de duas classes
poderosas no estado a nobresa e o clero — , devia principiar
com circumspecção e proceder com cuidado . Diz -se, ainda que
nenhuma authoridade bem conhecida o confirma, que elle ex
clamara um dia , que, se chegasse a ministro do reino , torna
ria Portugal, em vinte annos, mil vezes mais feliz ou mil ve
zes mais desgraçado . Foi sem duvida com perspicuidade, que
Pombal divisou os meios, que teria de empregar para salvar
Portugal da sua ignominiosa situação ; mas o que tambem é
muito possivel, é que, ao reflectir na difficuldade e no perigo
de introduzir as medidas tendentes á restituição de tantos bens
injustamente usurpados, e á correcção de tantos abusos , elle
28 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tivesse duvidado do resultado dos seus mais sabios planos, e


por vezes olhado a obra da regeneração como inexequivel.
Comtudo, de qualquer que fosse a natureza dos seus recondi
tos receios relativamente ao exito, vel-o -hemos em toda a sua
carreira ministerial attender a toda a especie de abusos admi
nistrativos, e ajudar com o seu todos os poderes subordinados ,
assim nas minimas circumstancias do cargo, como nos mais
distantes objectos do governo . Ver -se-ha a industria animada ,
e , por consequencia, o commercio ; a agricultura florecer ; as
manufacturas augmentarem ; a receita publica crescer ; a popu
lação duplicar ; um efficiente exercito organisado ; uma pode
rosa esquadra formada ; a justiça imparcialmente administra
da ; a hypocrisia desmascarada ; a sciencia premiada ; o orgulho
humilhado; a humildade exaltada, e a escravidão emancipada.
Tudo , e ainda mais do que isto , foi obra de Pombal: creou um
sentimento de moralidade publica, de igualdade e virtude, que
é o amalgama da união e da força, e que distingue uma nação
prospera, ou um exercito bem organisado, como por muito tem
po succedeu a Portugal dando -lhe logar entre as potencias mais
consideraveis da Europa.
Sendo Pedro da Motta , ainda que in nomine, o presiden
te dos ministros, e não lhe permittindo o estado declinante da
sua saude intervir na gerencia dos negocios publicos com aquella
diligencia, que a sua posição de certo requeria ; por isso , a par
tir d'esta epoca , todas as leis e decretos, que saíram do gabi
nete regio , podem ser considerados como emanados de Pom
bal, visto que D. José não adoptava medida nenhuma sem o
consultar. Comtudo Pombal não poude promulgar os seus sa
bios decretos, ou pôr em vigor os seus patrioticos projectos re
generadores, sem encontrar opposição . Os jesuitas deram o
grito , e não tardaram em tramar a sua ruina . Porem , como as
suas intrigas, crimes e fructos que d'elles colheram , com as
conspirações da nobresa, e o seu odio implacavel a D. José e
a Pombal, hão de por si sós fornecer materia para um capi
tulo, limitemo-nos entretanto a expor os poderosos obstaculos
que Pombal teve que vencer ou repellir para collocar o paiz
na posição invejavel , em que o deixou . Os primeiros cinco an
nos do reinado de D. José decorreram na investigação e exe
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 29

cução de energicasmedidas tendentes ao melhoramento da admi


nistração interna , e em dispor e estabelecer as reformas da fa
zenda concebidas pelo ministro . Uma das cousas importantes,
que attrahiu a attenção de Pombal no começo do seu ministe
rio, foi a Santa Inquisição, como lhe chamavam , decidindo res
tringir e regular a sua jurisdicção, e prohibir as suas torturas
secretas e execuções publicas, que de ha muito entorpeciam o
espirito do povo, e deprimiam o governo do paiz.
Façamos, comtudo , justiça aos portuguezes declarando que
o seu caracter nacional não foimanchado por tão cruel tyran
nia, como a que distinguiu o cruento predominio da Inquisi
ção em Hespanha, e que nem tão pouco Lisboa foi testemu
nha, no mesmo grao de crueldade, dos execraveis espectacu
,

los chamados autos-da-fé, que, por largo tempo, infamaram


Madrid na historia , e lhe attrahiram o odio de todos os verda
deiros christãos e gente sensata . Os portuguezes assignalaram
se por meio de leis mais brandas e sentimentos mais benevo
los ,
que, sendo o fructo da sua communicação maritima e com
mercial com as outras nações da Europa, lhes engrandeceu o es
pirito , e lhes fez esquecer ou alliviou os seus infortunios. Pombal,
vendo que uma instituição d'aquella natureza era incompati
vel com o progresso das artes, com a existencia da sciencia , e
com a presença da liberdade, determinou , a todo o risco , aba
ter a authoridade d'aquelle tão iniquamente denominado Santo
Officio. Portanto, logo no começo do seu ministerio , em 1751,
foi promulgado um decreto, que estatuia a maneira conto aquelle
tremendo tribunal havia de proceder, ordenando a abolição ,
em futuro, dos autos-da -fé, e que nenhumas execuções se fa
riam sem o consentimento e approvação do governo , que, na
qualidade de tribunal de appellação, reservava para si o direi
to de investigar e processar, e de confirmar ou revogar a sen
tença , segundo a justiça que, á luz da verdade, mostrasse as
sistir -lhe ou não. Por meio d'este poderoso golpe perdeu o santo
officio a sua força , e ficou redusido á condição d’um tribunal
ordinario , o que nos leva a admirar a sabedoria , que conce
beu aquelle acto , e o animo, que praticou um tão ousado ras
go politico, cuja execução tinha de subjugar não poucos e ter
riveis adversarios, e crear outros tantos inimigos virtuaes. Com
30 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tudo , Pombal, com aquella perseverança , que caracterisa um


homem de estado, levou a effeito os seus planos, não obstante
a virulencia do fanatismo, o poder do clero e os prejuisos do
povo .
Para que possa fazer- se idea do estado indefeso do reino
anteriormente ao ministerio de Pombal, basta dizer que, bem
poucos dias antes da morte de D. João V, alguns corsarios ar
gelinos ancoraram em frente do cabo de Espichel, cujo forte
estava incapaz de offerecer resistencia ou de vingar a affronta.
Pombal, para remediar este estado deploravel das defesas do
paiz e reparar as fortificações, que por todos os lados caiam
em ruinas , applicou para esse fim a verba de vinte e sete con
tos de réis , que era muito sufficiente, segundo se calculara.
Fez, pelo mesmo tempo , construir uma fabrica nacional de pol
vora , visto que este artigo era fornecido por individuos, que
gosavam o monopolio do contracto e abastecimento. Assim ,
tudo, por seu turno, occupou a sua attenção. Corrigiu os abu
sos que se haviam introdusido no lucrativo negocio dos dia
mantes ; estabeleceu regras por onde deviam guiar -se os pes
cadores da baleia , e definiu e melhorou as leis relativas a suc
cessões. Fundou em 1751 uma fabrica de refinar assucar, a
que concedeu varios privilegios afim de animar este ramo d’in
dustria .

No anno seguinte voltou a attenção para o 'producto da


seda, concedendo, que «as pessoas que lavrassem dez arrateis
de seda em rama, ou d'ahi para cima, a podessem livremente
vender, sem que d'ella , e da terra , em que voluntariamente hou
vessem plantado tantas amoreiras que poduzissem pelo menos
a dita quantidade de seda , sendo uma só terra, pagassem siza ,
dizima, portagem , 44% % , nem outro algum tributo velho, ou
novo, e as que produzissem de tres arrobas para cima, sendo
mecanicos, o ficarem habilitados, nas suas pessoas e nas de
seus filhos, e descendentes , para servirem todos os empregos
das Cidades e Villas do Reino , que requeriam nobresa.» En
tretanto era prohibida a exportação da seda em rama, fio e ca
sulo .
Em vista d'estes factos, basta uma pequena reflexão , para
nos convencermos de que foi guiado pelo perfeito conhecimento
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 31

do clima, capacidade e posição de Portugal com relação ao


resto da Europa , e por isso dos seus recursos e producções,
que Pombal poude animar a industria e fazer bom uso dos fun
dos publicos ; e foi d'este modo que proseguiu na marcha do
progresso , cortando uns males pela raiz e alliviando outros,
ou , deixando o campo explorado , descobrindo alguma nova
fonte d'industria para juntar ás riquezas e felicidade do povo .
Em seguida tratou de attender aos roubos acompanhados
de todo o genero de offensas, que grassavam no Alemtejo, no
meando uma commissão para sentenciar os culpados em Re
lação por via de summario ; e, como a divisão dos territorios
do Reino do Algarve, da provincia do Alemtejo , e das comar
cas de Santarem e de Setubal impedissem a prisão , e facilitas
sem a impunidade dos delinquentes , ordenou que fosse cumu
lativa a jurisdicção Criminal de todos os Juizes e Ministros dos
ditos territorios,dando tambem plena liberdade a todos os par
ticulares d'aquelles logares para lançarem mão , não só dos de
linquentes, mas tambem das pessoas suspeitas. Com estas e
outras disposições governativas, depressa a policia adquiriu
mais energia , e os crimes se tornaram mais raros durante este
reinado , do que jamais o foram anterior ou posteriormente a
elle. Entretanto transitava - se nas ruas de Lisboa , até então
um vilipendio para a nação, com mais segurança do que nas
de qualquer outra capital da Europa .
Provaremos esta asserção citando a seguinte descripção do
estado de Londres e seus suburbios, que encontramos n’um
discurso do throno de 15 de novembro de 1753, e proferida
pela propria boca do soberano da Gran - Bretanha : Muito

me penalisa o ver-me obrigado a referir - vos um facto , que co


bre de ignominia a nação, e faz que os meus fieis vassallos so
fram grandes perigos e prejuisos. E , pois, com summo pesar
que noto que os horrendos crimes do roubo e do assassinio se
tem ulteriormente tornado mais frequentes do que raros.» 0
ministro portuguez em Vienna, n'uma correspondencia de 4 de
junho de 1763, informa o seu governo do seguinte: « Em Vien
na não se fala n'outra cousa senão nos roubos e assassinatos
perpetrados na capital e nas estradas visinhas d'ella.» E outra
vez n'um officio de 2 de março de 1766 : « Tem havido repe
32 MEMORIAS DO MARQUEZ DES POMBAL

tidos incendios nos arrabaldes de Vienna , e tambem roubos na


cidade e estradas publicas.»
As ruas de Lisboa haviam muitas vezes testemunhado pelo
meio da noute as dissensões dos fidalgos, sendo os insultos pes
soaes geralmente expiados com as vidas dos offensores. As re
putações eram atacadas, e a lei em vez de remediar este mal
com promptidão e energia, mostrava- se tardia e deficiente. Nas
portas das casas affixavam -se pasquins da mais cynica natu
resa , ao passo que por cima das das pessoas casadas punham
chavelhos, rindo-se impunemente do mal que causavam os au
tores d’estes attentados. Um alvará de 2 de outubro de 1753
ordenou que por ser muito frequente o delicto de se fazerem
ou publicarem Sátyras, ou Libellos infamantes pela difficulda
de de se provar quem eram os seus autores e mais pessoas que
para isso concorriam , e tambem porque as pessoas offendidas
tinham muitas vezes por melhor vingarem -se illicita , ou occul
tamente do
que queixarem -se ás Justiças ; e, para que delicto
tão atroz não continuasse, e antes se extinguisse com o justo
temor do castigo : se fizesse este caso de devassa, e esta se ti
rasse ainda que não houvesse queixa de parte . Os inimigos de
Pombal perverteram este alvará nas suas narrações parciaes ,
omittindo as palavras que estão escriptas em grifo.
As disposições fiscaes reclamaram depois que n'ellas se in
terviesse, e se reformassem . As sizas e outros tributos haviam
se até então cobrado com grande detrimento para a nação, sen
do a sua arrecadação feita por numerosos recebedores, que
d'ellas se appropriavam empobrecendo assim o povo e dilapi
dando o thesouro. Com um traço de penna foram estes devo
radores aniquilados. Foi nomeado um thesoureiro geral das
Sizas com o ordenado de 7008000 réis annuaes com seu es
crivão com 200 $ 000 réis tambem annuaes e oitenta réis de
cada conhecimento que fizesse . Todas as camaras nas cabeças
das Comarcas ficaram obrigadas a elegerem todos os annos um
Recebedor que arrecadasse as mesmas sizas dos mais recebe
dores dos ramos de cada uma das comarcas. O numero d'estes
recebedores não excedia a vinte e oito em todo o reino, e a
importancia total dos seus diversos ordenados era de 1: 1948000
réis, sendo o maior de setenta mil réis , e o menor de vinte. Or
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 33

denou -se tambem que os recebedores eleitos todos annos seriam


afiançados pelos vereadores, que os elegessem , ficando seus
bens obrigados a qualquer fallencia do recebedor .
Foi, pois, d’este importante modo que começou por esta
belecer -se o systema benefico e economico da fazenda , resul
tando que a receita augmentasse , e o governo adquirissemais
forças, tornando-se ao mesmo tempo o onus mais leve para o
povo, e buscando -se meios não só para fazer face á despesa pu
blica , mas tambem para remir a enorme divida , com que o mau
governo e incapacidade dos ministros de D. João V deixaram
nação sobrecarregada.
Pombal até para as circumstancias da casa real nos mais
insignificantes misteres dirigiu a sua attenção. M. Saint Priest,
ministro francez em Lisboa no reinado de D. José, refere n’uma
correspondencia particular, que Pombal acabara de pôr cobro
á anarchia e desperdicio que reinavam no paço . Eram realmen
te grandes os abusos que tinham de corrigir -se, especialmente
na ucharia . Havia oitenta empregados, que a reforma reduziu
a vinte, sendo os gastos da mesma ucharia investigados e sub
mettidos a novo regulamento , de sorte que desceu a menos de
metade o dispendio da casa .
Reformada até um certo ponto a maior parte dos abusos
internos, tratou Pombal de attender ao misero estado das co
lonias. Asdonzellas de familias distinctas e ricas do Brasil eram
mandadas para Portugal sob o pretexto de receberem educa
ção, mas onde quasi todas iam perecer na clausura dos con
ventos, no que se praticava um excessivo abuso em grande pre
juiso do estado e do augmento da população. Veio , porém , des
truir este costume um decreto , que expressamente o prohibiu .
Adoptaram -se excellentes medidas para animar a exportação
dos productos , e augmentar o commercio de Moçambique, o
que teria tornado aquella colonia um apanagio inapreciavel pa
ra a corôa de Portugal, se até hoje se houvesse seguido a mes
ma vereda . Eu soube que aquella provincia é susceptivel de
grandes melhoramentos, de um governador que d'ali veio ulti
mamente , e que , não obstante o seu genio emprehendedor, foi
infelizmente exonerado no meio dos seus trabalhos e progres
sos : houve mudança de ministerio em Lisboa , e por conseguin
YOLUME 1 4
34 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

te foi preciso o logar para um dos afilhados do novo minis


tro !
Durante o longo e inglorioso reinado de D. João V o tra
fico commercial não só enfraquecera, mas quasi se extingui
ra, e por isso bem viu. Pombal que não era sem difficuldade
que poderia reanimar a especulação adormecida, ou estimular
os emprehendimentos enfermos no seio da classe commercial,
que havia tanto tempo que jazia sob a influencia d'um lethargo
oppressivo . Portanto, para fazer que a actividade revivesse , e
a capital do paiz caminhasse sempre em progressiva pros
peridade, concebeu a idea de organisar grandes companhias
mercantis , sendo esta a maneira de crear novos ramos de com
mercio , ou de proseguirem -se empresas para que eram nec
sarios grossos cabedaes, o que não só então se adoptou com
bom exito, mas que subsequentemente tambem tem sido imi
tado. Vemos finalmente que todas as grandes empresas de que
provém consideraveis progressos, assim em Portugal como em
França , Inglaterra ou algum outro estado da Europa , tem si
do começadas e executadas por companhias com bons resulta
dos.
Nos primeiros tempos da administração de Pombal foi en
viado um embaixador á Tartaria e á China, cuja embaixada se
acha relatada n’um manuscripto , que existe na bibliotheca da
casa da Ponte, sob a designação de «Relação da Embaixada á
Tartaria , e á China mandada pelo Senhor Rei D. José I, sen
do Embaixador Alexandre Metello de Sousa e Menezes. As
sim , já antes de 1754 o commercio da India e China föra fran
queado aos portuguezes, o qual, porém , por motivos a que já
alludimos, como a falta de fundos sufficientes , e por isso a au
sencia da empresa , se tornara insignificante, sem que ninguem
d'elle tirasse utilidade , nem a nação vantagem . Por conseguinte
Pombal, para reanimal-o, organisou uma associação composta
de negociantes, então bem conhecida pelo nome de Companhia
Oldembourg. Esta medida de monopolio , como lhe chamaram ,
não deixou , porém , de acarretar muita censura , e grangear so
bejos inimigos ao seu author.Osmonopolios , que as companhias
gosam , chegados a um certo ponto, tornam -se sem duvida pe

sados, praticando-se por isso em parte uma excessiva injustiça


MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 35

para com a nação, e sendo talvez então que devem suspender


se os seus privilegios, e extinguil-os, abrindo -se o commercio
á concorrencia publica .
Um decreto de 8 de junho de 1755 , dictado pela sabedo
ria e humanidade, emancipou os indios das provincias do Pa
rá e Maranhão declarando -os livres. Na Africa tinham os ne

gros de permanecer na escravidão até uma época mais oppor


tuna para d'elles se cuidar , porque assim o exigiam a politica
e o seu estado de abatimento . Não houve meio de que se não
lançasse mão para estimular e civilisar os indios. Foram con
cedidos alguns privilegios aos portuguezes, que casassem com
mulheres d'entre aquelles , e extinguiram -se as nimias e vexa
torias restricções, que existiam entre uns e outros. Foi altera
do o tempo da partida annual das frotas mercantes com desti
no para a America , e vice-versa, e regulado de maneira que
evitasse os prejuisos que demoravam a viagem . Além d’isso ,
para que as colonias progredissem mais , e, civilisando os seus
habitantes, estes caminhassem para o seu bem - estar, no dia im
mediato aquelle , em que fôra assignado o citado decreto , assi
gnou D. José o alvará , que autorisava a incorporação da Com
panhia Geral do Grão Pará e Maranhão , meio este que veio
derramar um novo espirito na classe commercial, e fazer que
o commercio , entre Portugal e suas colonias da America me
ridional, assumisse um novo aspecto, e excitasse um novo in
teresse .

Entretanto que se executavam estas reformas não se con


servou muda nem queda a facciosa opposição. Cada novo pro
jecto do ministro era um incentivo para a raiva e inveja da
aristocracia . A nobresa vendo em perigo de serem destruidos
muitos dos privilegios usurpados e illegaes de que estava de
posse , concebeu o odio mais concentrado contra o author das di

tas reformas ; e, ao passo que os jesuitas, prevendo que a seu


turno seriam atacados, buscavam os meios de defesa em cons
pirações secretas e engenhosos estratagemas, parte da plebe ,
cega á sabedoria que dictava aquellas grandes reformas, e sem
apreciar o patriotismo, que as originava , unia-se aquellas duas
classes augmentando o clamor e a opposição. Comtudo a fran
quesa de Pombal, junta á sua indomavel perseverança , de tal
36 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

modo catechisava e dominava o rei, que durante a torrente d'a


quellas virulentas invectivas e influencia das incriveis expro
brações, que incessantemente choviam sobre o ministro, mos
trou -se sempre firme em sustental-o , e constante na confiança
que n'elle depositava.
Assim , pois, já Pombal começara a experimentar a mesma
adversidade, a mesma ingratidão , a mesma inveja e as mesmas
accusações, a que o grandeSully, em identicas circumstancias,
se vira sujeito, quando trabalhava pela gloria do seu paiz, e
pela honra e salvação do seu soberano . Comtudo não havia
obstaculo ou opposição, satyra maliciosa ou escandalo ignomi
nioso, que esmorecesse , desanimasse ou fizesse mesmo que Pom

bal se apartasse d'aquelle grande sentimento de patriotismo e


elevado siso d'uma esphera superior, a que nada , que seja vir
tuoso e sabio, é impossivel, quando para a sua execução coope
rem a rectidão e o juiso. N'elle não havia essa cauta timidez,
que hesita entre a concepção d’um grande projecto politico .
Primeiro que procedesse a alguma refórma meditava -a profun
damente ; mas, uma vez resolvida , jamais a abandonava, pois
que a sua rara sagacidade e vastos conhecimentos lhe davam
o poder de, n'um relance d'olhos, prever todas as difficulda
des e facilidades que poderiam apresentar -se. Destituido de
amor proprio e de toda a ambição álem da que o levou a ex
ceder todos os outros homens em patriotismo, podemos com
justa rasão servirmo-nos , a seu respeito , d'aquella energica
observação , de que um critico francez se serviu fallando do ora
dor romano : — Il eut cette gloire, que tous les ennemis de l'e
clat furent les siens. Teve esta gloria —que todos os inimigos
da magnificencia o foram delle.
CAPITULO IV

Extractos dos escriptos de Pombal ; observações geraes sobre o estado de Portu


gal; o calamitoso terremoto de Lisboa do 1.o de novembro de 1755 ; miseria
geral; perda de muitas vidas e bens; a familia real salva- se ; magnanimi
dade de Pombal ; seu memoravel apophthegma; medidas para alliviar a mise
ria ; proclama-se a lei de guerra ; restabelece - se a ordem ; extractos dos offi
cios que existem na secretaria do estado ; os corsarios argelinos ; intrigas dos
jesuitas ; Lisboa é reedificada por Pombal.

Pombal não foi indifferente ás difficuldades e obstaculos


que, oppondo -se ao progresso da reforma, o embaraçavam e
se não alliavam com elle , o que facilmente se conclue das se
guintes reflexões que, para prova d'esta asserção, extrahi de
seus proprios escriptos :

« Já não estamos nos seculos reformadores, onde os legis


ladores só pela força do seu genio , mudavam as constituições
dos Estados corruptos. Como cada nação fazia então , como um
Mundo á parte, ou para melhor dizer, cada Estado não via mais
que a si mesmo no universo, e o systema de um povo não era
relativo mais , que aquelle povo, o legislador achava grandes
facilidades para a reforma. Mas depois da liga da Europa , que
ro dizer , depois que os interesses politicos de um Estado, vie
ram a ser interesses politicos de outro Estado todos os Gover
nos teem os olhos abertos sobre a mudança que se medita n’a
38 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

quelles que o cercam ; e, como os vicios dosmais fracos entram


precisamente na composição das cousas, que contribuem para
formar os mais fortes, não se lhes permitte que trabalhem , pa
ra ser melhores; porque da mediocridade d'aquelles , depende
a grandesa d'estes. Em uma palavra, por pouco que estas re
formas ataquem seus interesses respectivos, elles só se lhe op
poem , e como o Governo corrupto está em um estado natural
de fraquesa , é sempre obrigado a conter-se nos limites, que
lhe prescreve sua mesma desordem .»
Não se fala dos meios de reforma, que poderiam empre
gar os grandes ministros. Isto é muito pequeno soccorro, para
um Governo destroçado. O mais vantajoso que podem fazer os
grandes homens de Estado , não é anniquilar os vicios do sys
tema actual, mas usar de palliativos, para embaraçar- lhes o
progresso , e esteiar a maquina, pelo medo que teem , afim de
que não cáia ; e isto porque quasi sempre muitas causas com
plicadas, e uma infinidade de estranhos accidentes , e que por
isso mesmo não são da sua jurisdicção, embaraçam e prendem
de muitas maneiras.»
« A politica já não assassina logo , ella mata lentamente .
Hoje os Estados minam , ou são minados. Em geral, o damno
vem sempre de longe, e da mesma sorte , que ás enfermidades
inveteradas, quando se lhes quer dar remedio , já não é tempo .
A ruina de um Estado n’estes tempos modernos, está sempre
apparelhada . Elle se encaminha å sua perda por degraos.
Subministram - lhe insensivelmente todos os meios da destrui
ção. Elle se vê anniquilado por arte. Esta é a politica Roma
na , que abatia os governos, fazendo- os apparecer no Mundo
com mais lustre ; elles, não se appercebiam da sua ruina, se
não quando lhesnão restava mais meio algum natural de a pre
venir.» Eis aqui em duas palavras qual era a situação de Por
tugal, antes do espantoso phenomeno , que causa hoje tanto es
panto á Europa .
« O Reino não podia mais. A monarchia estava agonisan
do. Os Inglezes tinham peado esta Nação , que tinham debaixo
da sua dependencia ; elles a haviam insensivelmente conquis
tado, sem ter provado algum dos inconvenientes das conquis
tas : o povo estava atado ao carro da sua politica ; não ha
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 39

via mais remedio, nem mais meios para quebrar as suas


peias.»
« Por mais que se estabeleça um certo direito das gentes,
politico e civil, para todas as nações , a lei do mais forte entre
os homens governa sempre o Mundo. O primeiro rei, foi um
soldado feliz, disse um grande poeta do nosso seculo.»
« Jamais os Inglezes tinham posto em obra a maxima, que
os leva a destruir ou ao menos a enfraquecer todos os outros
systemas, para augmentar a força do seu . O Governo Portuguez
não tinha já alma; todas as suas partes estavam sem vigor.
Cada peça esperava para se mover, que a Inglaterra lhe děsse
movimento, em uma palavra , tudo estava desesperado. »

Foi n’uma epoca, em que se davam circumstancias tão ha


bilmente descriptas, que sobreveio aquelle memoravel terremo
to, que parecendo ao principio completar a ruina de Portugal,
contribuiu talvez na realidade para resgatar aquelle paiz da
vassallagem , em que se mergulhara, e livrar os portuguezes da
miseria e rusticidade, que os humilhava .

« Quando os principios de um Estado se corromperam uma


vez ,» continúa Pombal, « leis novas são quasi inuteis : porque
a reforma d’esse primeiro abuso é n'elle sempre a origem do
segundo. Não se faz n'elle mais que mudar um mal por outro,
sempre fica o fundo da desordem do Estado .

Para que melhor se possa comprehender a evidente diffi


culdade da situação de Pombal, passo a descrever aquella tre
menda catastrophe, que encheu a Europa de terror, e cobriu
de luto este formoso paiz.
Nunca os mais amenos climas meridionaes viram nascer o
sol mais radiante do que Lisboa no 1.º de novembro de 1755 .

Toda a naturesa parecia repousar em perfeita confiança na pa


cifica bellesa d'um ceo sereno e de purissimo azul, e na suavi
dade d'uma atmosphera tranquilla . Os soberbos palacios e al
tivas igrejas de Lisboa reflectiam fielmente no largo seio do Te
jo, cujas limpidas aguas não eram agitadas pela mais ligeira
brisa . Parecia que o prazer, a paz e a segurança haviam fixa
40 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

do a sua morada nas suasmargens, e se divertiam sobre as suas


aguas. Mas ah ! em poucas horas ia esta scena risonha mudar
se em horror , miseria e desolação ; e , como se as furias das tre
vas, de repente resgatadas do captiveiro, que as continha , cais
sem precipitadamente sobre a tranquilla cidade, trazendo em
seu rasto o terremoto, a rapina , o assassinio, o sacrilegio e a
violação, tudo mudou : a naturesa cessou os seus beneficios, e
o homem deixou de ser humano.
Eram nove horas e quatro minutos da manhã do dia de
Todos os Santos, hora em que o devoto povo de Lisboa se di
rigia pressuroso para os muitos templos, que n’aquelle dia fes
tivo estavam , segundo o costume, brilhantemente illuminados,
quando se sentiu o primeiro abalo ; è, momentos depois, não
era esta magestosa cidade mais que um montão de ruinas in
distinctas. Aquelles, a quem a primeira queda não sepultou ,
espavoridos, aterrados e confusos, impelliam -se tumultuosa
mente para evitar a ameaçada immolação ; e, com gritos des
ordenados e orações entrecortadas, imploravam a misericordia
do Altissimo, entretanto que o desabamento das casas os esma
gava , ou as fendas, que debaixo dos pés se abriam , de todos
os lados os tragavam com terrivel e cruel certesa. Outros fu
giam para a praia, onde em vão esperavam encontrar a salva
ção ; pois o rio , violentamente agitado pelos grandes abalos da
terra , cresceu a uma altura extraordinaria , augmentando ao
mesmo tempo a sua impetuosidade na proporção da sua eleva
ção até tornar-se n’uma torrente, que sahindo do seu leito ar
rastava comsigo tudo quanto encontrava . Entretanto que alguns
navios de grande lotação se sumiam debaixo da encapellada
superficie de suas iradas ondas, outros, quebrando -se-lhes as
amarras, e redomoinhando com furiosa precipitação, desappa
reciam nos sorvedouros, ou , impetuosamente arremessados
contra outros, eram todos despedaçados pela violencia do em
bate .
Para multiplicar os horrores d'esta desoladora scena, ao
mesmo tempo que os templos da Divindade, o palacio do no
bre e a morada do plebeo se confundiam n’uma mesma ruina ,
foram apparecendo fogos em diversos pontos, que rebentavam
com incrivel violencia ameaçando consumir tudo o que o ter
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 41

remoto poupara. Se hoje , tão longe d'aquella epoca , é immen


samente penosa a miseria geral para poder supportar -se a vi
da , quão horriveis deviam então ser os soffrimentos de cada
um ! Que de agonias aguardaram os que sobreviveram aquella
calamidade! Osmaridos anciosos pela sorte de suas mulheres ,
e asmulheres pela de seus maridos ; as mães pela de seus fi
lhos, e estes succumbindo de desespero pela falta d'aquellas :
emfim , cada laço que prendia o coração era quebrado, e os
objectos mais caros, que fazem que o homem se submetta ale
gremente ás inclemencias da vida , perdiam -se e ficavam aban
donados e sepultados n’um vasto jazigo .
No meio d'este chaos e d’esta miseria, as prisões deram sa
hida aos seus flagiciosos moradores ; e estes malvados, exultan
do na desgraça , a que deviam a liberdade, abandonaram -se á
satisfação do appetite , e á perpetração dos crimes mais atrozes.
Enfurecidos pelo vinho , e ávidos de ouro, appareciam em toda
a parte roubando , violando ou assassinando, segundo podiam
satisfazer o seu furor, ou saciar a sua luxuria : e eis emfim co
mo a crueldade do homem veio aggravar a tremenda visita do
Omnipotente.
Para corroborar os factos , de que trato, fiz alguns extractos
de varias correspondencias enviadas então ao governo por mr.
Castres, ministro inglez em Lisboa , os quaes não deixarão de
interessar ao leitor, não só pela inquestionavel authenticidade,
mas tambem porque n'elles se encontram circumstancias que

nunca foram publicadas. O seguinte é d'uma correspondencia


de 6 de novembro de 1755 , onde se acha uma descripção vi
va e graphica d'aquelle infausto successo .
« A perda do meu bom e digno amigo o embaixador hes

panhol, que ficou esmagado á porta de sua casa , quando tenta


va escapar-se para a rua , junta á dôr que ha cinco dias me
causam as tristes noticias, que a cada passo nos trazem relati
vamente á sorte d’uma ou outra pessoa do nosso conhecimen
to pertencente á nobresa, a qual, pela maior parte, se acha in
teiramente arruinada , tem -me seriamente sensibilisado ; mas o
que sobre tudo me afflige é a sorte dos desgraçados subditos
de Sua Magestade, da classe inferior , que de todos os lados
affluem a minha casa pedindo-me pão, e andam espalhados por
12 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

todo o meu jardim com suas mulheres e filhos. Até agora não
tenho deixado de soccorrer a todos , e o continuarei a fazer
em quanto não me faltarem os meios, o que espero não succe
derá attendendo ás convenientes medidas, que o sr. Carvalho
para isso tem tomado.»
« Tem -se dado as melhores providencias possiveis para
impedir o roubo e o assassinio , de que ha tres dias tem ha
vido frequentes casos , vagando pela cidade turbas de deser
tores hespanhoes, que se valem da occasião para commetterem
taes delictos. Tendo-me sido confiadas consideraveis quantias
que alguns inglezes, que tiveram a felicidade de salvar alguns
dos seus bens, depositaram em minha casa , pelo que tive em
toda a noute a casa cercada de ladrões, escrevi esta manhã
ao sr. Carvalho pedindo -lhe uma guarda , o que espero me
será concedido. >

Uma outra do mesmo ministro , de 15 do mesmomez , re


fere as seguintes particularidades :
«O primeiro abalo começou pelas dez horas menos um
quarto. da manhã, e, tanto quanto pude julgar, durou seis ou
sete minutos ; depois, succedeu -se um intervallo de cerca de
cinco minutos antes do segundo , que durou tres minutos pou
co mais ou menos: de sorte que n’um quarto d'hora fôra esta
grande cidade convertida em ruinas. Em seguida rebentaram
muitos incendios, que no espaço de cinco ou seis dias consu
miram todos os generos e outras cousas.
«Parece que a força do terremoto teve sua séde mesmo
no centro de Lisboa, porque os prejuisos não são tão consi
deraveis para qualquer dos lados. Julga-se que partio do caes
que se estende da alfandega até ao paço , que desabou , e se
sumiu completamente, submergindo -se alguns barcos tambem
ao mesmo tempo . As aguas subiram então de vinte a trinta
pés, e desceram outro tanto por quatro vezes com varios in
tervallos, segundo me contaram .»
Comtudo não foi Lisboa só que soffreu os estragos do ter
remoto , porque se entenderam a outras partes do reino (e tam
bem da Europa ) principalmente a Setubal e ao Algarve, onde
foram bem sensiveis. Calcula -se que só em Lisboa foram vic
timas d'aquella calamidade trinta mil pessoas , que pereceram
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 43

queimadas, afogadas ou sepultadas nas ruinas. As causas d’es


tes males continuaram ainda por alguns dias , como se verá.
N'outra correspondencia de 19 do dito mez, refere mr. Cas
tres, que o rei foi com toda a sua côrte habitar em barracas
de lona n’uma quinta , e que a malfadada nação esteve em im
minente perigo de ser presa da peste e da fome, e conclue
louvando o zeloso procedimento de Pombal, que, de dia e de
noute, se mostrava infatigavel em empregar todos os remedios,
que a miseria geral pedia . Só transcrevi a seguinte passagem
por me parecer de maior interesse :
« Como os abalos e tremores não cessaram inteiramente
desde o primeiro dia da nossa desventura , a corte com pouco
mais de tres partes da população continuam ainda a acampar
nos campos e quintas d’estas paragens. Os predios , que ainda
se vêem de pé na cidade, e na extensão d'algumas leguas nas
suas visinhanças, estão realmente , pela maior parte, n'um es
tado tão deploravel, que será custoso encontrar um entre cin
coenta , que possa resistir ao inverno , ainda que sustentado por
espeques . »
Facilmente se deprehende qual era a continua perplexi
dade, que a todos dominava , pelo que ainda em 13 de dezem
bro nos diz mr. Castres:
« Já lá vão quarenta dias desde que sobreveiu o grande ter
remoto, e comtudo raro tem sido o dia , que se tenha passado
sem se renovarem os nossos sustos, sendo os repetidos tremo
res quasi sempre acompanhados de tão fortes 'abalos de vez
em quando, e com especialidade na noute passada, que obri
garam a fugir quasi nús para o descampado, com grande pe
rigo de vida n’uma estação tão rigorosa como esta, não só os
que haviam começado a habitar os aposentos inferiores dos
predios, que ainda se acham de pé, mas aquella gente mesmo
que se abrigara em barracas. Entretanto o sr. Carvalho , que
parece possuir inteira confiança d'el-rei seu amo, não descansa
de dia e de noute em dar as providencias precisas para que
n’esta cidade de ruinas não escasseem os mantimentos ; para
obrigar toda a classe d'operarios, que affluiram das mais re
motas partes do reino , a voltar as suas differentes occupações ,
e para pôr cobro aos muitos roubos, que inevitavelmente suc
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

cedem em epocas de tanta desordem como esta , e principal


mente n’um logar tão exposto como este.»
Algumas vezes se sentiram ainda ligeiros tremores mesmo
posteriormente a 14 de janeiro do anno seguinte . Como era
de esperar por occasião d’uma tão funesta calamidade, não
houve nação na Europa, que não se apressasse a offerecer o
seu auxilio ao desditoso Portugal. Por isso, ignorando Jorge II
a sorte do seu representante em Lisboa , ordenou que imme
diatamente se dirigisse aquella corte com provisões de dinheiro
e viveres, a Charles Townsend , cuja partida se não effectuou
por ter então chegado a noticia de que mr. Castres estava sal
vo . Comtudo , foram os ditos soccorros em continente trans
portados n’um navio de guerra , que para esse fim se aprestou ,
e postos á disposição de D. José, constando os mesmos do se
guinte :
Valor calculado
em libras
Carne salgada , 6 :000 barris . 10 :000
Manteiga , 4 :000 barricas .. 3 : 000
Farinha , cerca de 3500 moios.. 15 :000
Trigo, idem . . 15 :000
Bolacha, 1 :000 saccas. 1 : 200
Arroz 12 :000 barricas.. 1 :000
Picaretes, enchadas, alavancas, parafusos , etc .. 1 :000
Dinheiro em ouro , moeda portugueza 30 :000
Dito em pesos de oiro... 20 :000
Em calçado.. 1 :000

Total... 97 : 200

É natural que não deixe de interessar á curiosidade do


leitor saber quantos inglezes foram victimas do terremoto. A
perda total, officialmente relatada pelo ministro inglez, foi de
vinte e oito homens e cincoenta mulheres .
Os prejuizos foram enormes. Entre os edificios destruidos
contavam -se a magnifica Patriarchal edificada por D. João V ,
o paço , e uma infinidade de igrejas e conventos ; entretanto que
para fazer -se idéa da quantidade de palacios e propriedades
particulares, que tiveram a mesma sorte , basta apresentar o
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 45

facto de que ruas inteiras se converteram em montões de rui


nas. Segundo um calculo approximado talvez sete milhões de
libras não pagassem os damnos que resultaram de tão terrivel
visita , não obstante ter -se recuperado parte das riquesas da
Patriarchal, entre as quaes se contava uma cruz de prata ava
liada em 30: 000 libras, e desenterrado cerca de 1:500 arro
bas de prata das ruinas d'aquelle e outros edificios,algum tem
po depois do terremoto .
A familia real estava felizmente no seu pequeno palacio de
Belem , quando sobreveio aquella catastrophe. A sua conster
nação era grande ; toda a córte estava banhada em lagrimas.
O rei, procurando descobrir algum animo no rosto dos que o
cercavam tremulos de susto , dirigiu -se a Pombal, que (apres
sando-se a offerecer o auxilio e consolação , que lhe fosse pos

sivel prestar em tão terrivel conjunctura ), entrara n’aquelle


momento, e perguntou-lhe o que convinha fazer n’aquelle mo
mento ? « Senhor, enterrar os mortos e cuidar nos vivos » , res
pondeu com placidez e no mesmo instante Pombal, cuja figu
ra nobre e aspecto tranquillo impuzeram admiração ás pessoas
presentes, quando proferia esta resposta concisa . Diz -se que
foi desde então que D. José ficou olhando o seu ministro co
mo um ente d’uma especie superior.
Não se perdeu depois um só instante em infructiferas dis
cussões ou em inutil condolencia . Pombal tornou a metter - se
na sua sege, e correu a Lisboa para partilhar o perigo e sub
ministrar os remedios, que podesse afim de attenuar os funes
tos resultados do terremoto . Onde quer que a sua presença
fosse precisa, ahi se achava. Durante muitos dias consecutivos
não sahiu da sua sege, onde , de dia e de noute , expedia as
suas ordens. N’um limitadissimo espaço de tempo lavrou du
zentos decretos relativos á conservação da ordem publica, ao
alojamento do povo, á distribuição de alimentos e ao enterra
mento dos cadaveres ; tendo tambem , entre outros , promulga
do um , que prohibia a toda e qualquer pessoa sahir de Lisboa
sem levar um salvo -conducto . Por este meio , muitas pessoas
que se valeram da opportunidade, que esta calamidade propor
cionava , para se apropriarem dos bens alheios, e as que haviam
entrado nas igrejas roubando -as sacrilegamente, não podiam
46 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

depositar a sua riquesa illicitamente adquirida em logar segu


ro , vendo -se por consequencia obrigadas a abandonal-a ou
restituil-a . Não houve cousa , por insignificante que fosse , que
n'estes decretos escapasse a Pombal, sendo tal a rapidez com
que os concebia e expedia , que muitos foram escriptos a lapis
sobre os joelhos, e immediatamente levados ao seu destino, sem
que d'elles ficasse copia. As providencias estenderam -se a tudo
e a todos : os feridos foram removidos e tratados ; os que não
tinham casa foram reunidos e alojados em barracas temporarias ;
os mantimentos chegavam de toda a parte , e eram distribuidos
pelos pobres; prohibiu -se todo o genero de monopolios ; foi ti
rada das provincias a tropa para manter a ordem ; os ociosos fo
ram obrigados a trabalhar ; as freiras dispersas, recolhidas; as
ruinas removidas ; os mortos sepultados, e, emfim , o respeito
publico restaurado. Receando -se muito que aos males, que já
affligiam a malfadada cidade , viesse juntar -se a peste em con
sequencia dos effluvios de tantos corpos decompostos, que não
era possivel dar á sepultura segundo o estylo da igreja , o pa
triarcha na esperança de prevenir o mal, mandou que elles
fossem lançados ao mar , havendo o cuidado de se lhes atar
grandes pesos, mas com todas aquellas ceremonias solemnes
e religiosas, que em casos taes podessem observar-se. Todavia
os jesuitas não deixaram de censurar Pombal por este ultimo
acto de prudencia.
Eram tantos os criminosos de toda a especie, que tendo
se escapado das cadeias vagavam pelas ruas, que Pombal viu
que era urgente mandar tirar uma relação minuciosa dos mis
teres e meios de todas as pessoas, empregando ao mesmo tem
po os ociosos e vadios, ou os que não dessem boa conta de si,
no desentulho das ruinas, dando -se - lhes por isso sustento e sa
lario. Comtudo , não obstante a sabedoria e beneficos fins de
tão energicas providencias, era tanta a ousadia d'estes desgra
çados e a licenciosidade do seculo , que á luz clara do dia en
travam em busca de pilhagem , juntando ordinariamente a vio
lação e o assassinio ao roubo ; de sorte que se collocavam
guardas ás portas de quasi todas as familias d'alguma consi
deração , para as defenderem e aos seus bens.
Para se obviarem estas desgraças foi proclamada a lei de
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 47

Lynch , sendo immediatamente processado no logar do crime,


onde ficava enforcado para exemplo e aviso dos mais, todo
aquelle que fosse encontrado em flagrante delicto . Esta lei, tão
energica como bem adequada aquella época, depressa resta
beleceu a ordem e o socego aos habitantes, que , outra vez res
guardados pela tutela de Pombal, dormiam com igual con
fiança e seguridade, á que antes do terremoto haviam gosado.
Qual teria sido a sorte de Lisboa opprimida por tantos in
fortunios, se não fossem o animo, a sabedoria, a actividade e
energia de Pombal? Como se fosse um ente sobrenatural, ap
parecia em toda a parte: aqui animava o timido e fortalecia o
atribulado , ali intimidava o malvado e reprimia o ocioso , aco
lá confortava o ferido e derramava o balsamo da paz e da con
solação no seio do desesperado e do afflicto . Elle era o tudo
em tudo - o sustentaculo, o regenerador e o genio da nação ;
de sorte que álem d'aquelles arduos deveres , de cuja execução
dependiam a existencia e a salvação de Portugal, tinha que
obstar aos ataques dos corsarios argelinos, que bordejavam
perto da costa , e desembarcavam todas as vezes que se lhes
proporcionasse occasião de poderem exercer o seu officio.
Ninguem presuma que os jesuitas, inimigos declarados de
Pombal, desapercebidos, deixassem passar tão geral como pa
vorosa calamidade, sem que afirmassem , como não hesitaram ,
que ella era um tremendo castigo da Justiça Divina pela im
piedade do ministro e dos seus conservadores, entre os quaes
era muito claramente incluido o rei. Com tal celeridade se es
palharam os seus maliciosos boatos por toda a Europa, que o
ministro portuguez em Vienna n’uma correspondencia de 18
de janeiro de 1756, pede a Pombal que o informe acerca dos
effeitos do terremoto porque se espalhara em Vienna que as
ilhas dos Açores haviam desapparecido - que a da Madeira
estava inteiramente destruida —que Coimbra estava reduzida
a cinzas — além de muitas outras falsidades importantissimas.
E junta que chegaram a prophetisar que egual convulsão se
havia de repetir no mesmo dia do anno seguinte .
Foi talo seu arrojo , que chegaram a prophetisar que
egual e terrivel abalo se havia de repetir no mesmo dia do
anno seguinte . Tudo , porém , se dispoz com facilidade, porque
48 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

no ultimo d'outubro de 1756 fez Pombal postar numerosas guar


das em torno da cidade. Entretanto, como se não realisava
aquella prophecia , o povo via , não só á custa dos seus pro
prios receios, mas d'aquelles que os originaram , quanto era o
seu poder ;- presagio este bem fatal para os jesuitas.
A parte da cidade, onde hoje se vê a praça do Rocio , sof
freu consideravelmente, mas foi de todo reconstruida n’um re
gularissimo plano de grande solidez durante a administração
de Pombal. Foi então que pela primeira vez se viu fazer um
passeio publico , e as novas ruas, além de bem alinhadas, so
Tidas, limpas e bem calçadas, foram canalisadas. Antes do ter
remoto eram ellas tão irregulares, que não havia uma unica,
cujo comprimento excedesse a trezentos pés. O terreno foi ni
velado , desfazendo-se as suas sinuosidades, formaram -se bel
las praças, e Lisboa promettia d’este modo tornar -se uma das

mais bellas capitaes da Europa . Porém , o plano reedificador


de Pombal não chegou a concluir -se. O risco e a execução de
todas as propriedades (e não são poucas) que ainda existem
d'algum valor e importancia , foram d'elle . Todavia o magni
fico aterro, que tencionava formar na margem do ameno Tejo ,
de Santa Apollonia até Belem , perto de duas leguas de exten
são , nunca chegou a começar-se. Se esta gigantesca obra se
tivesse effectuado , arborisando -a do modo que elle tinha em
vistas, teria attrahido a curiosidade e excitado a admiração da
mais remota posteridade , pois que teria ultrapassado tudo
quanto possa chamar-se grande ou sumptuoso, na Europa ou
no mundo.
CAPITULO V

Effeitos fataes em Portugal das minas de ouro ; tratado de commercio com İn :


glaterra ; importancia da alliança ingleza ; juizos de Pombal sobre a econo
mia politica ; o erario regio em 1754 ; extractos dos officios da secretaria de
estado intercalados no capitulo .

Já n'outra parte alludi ao effeito, que produziu na pros


peridade de Portugal, a descoberta das minas d’ouro do Bra
zil . Abandonada a agricultura por fortunas remotas e chime
ricas, e despresado o progresso das manufacturas pelos phan
tasticos productos das minas, o povo vira -se na extremidade
de ir a paizes estranhos buscar o sustento , que as suas terras
deixaram de produzir , e importar de longiquas nações os teci
dos, que os seus teares esqueceram fabricar. Pombal, conven
cido de que era este o erro fatal em que, os que o haviam pre
cedido no ministerio , tinham caído, e que a mania das minas
era uma das grandes causas da miseria da nação, e da dela
pidação da fazenda, assim se expressa : « Bem cedo as suas
terras se achavam quasi sem valor , seu continente sem pro
ducção. O estado perdeu muitos milhões em fundo de terras.
Não se semeou mais ,houve menos lavradores : esta classe, que
é a base do governo politico , e civil, veio a ser sempre menor,
o numero dos caseiros diminuiu todos os dias ; o reino não
VOLUME I 5
50 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

produziu mais que pequenas colheitas, as grandes de Portu


gal fizeram -se no anno seguinte em Inglaterra , e para lá le
varam o seu dinheiro. »

Obrigados d'este modo a dependerem dos productos es


trangeiros, quer dos generos alimenticios, quer das manufac
turas, que elles primeiro haviam produzido, os portuguezes
formaram com a Inglaterra o bem conhecido tratado em que
concordaram receber as manufacturas inglezas devendo estas
pagar leves direitos, em troca dos seus vinhos e fructas. Este
tratado, porém , foi o resultado , não a causa , da extincção
quasi completa da agricultura e da industria. Ora, permitta
se -me de passagem observar que em Portugal, onde um co
nhecimento exacto dos principios de correcta economia poli
tica se não encontra , tem uma certa categoria de individuos,
ha annos, adoptado o costume de altamente clamarem contra
as más consequencias , que imaginaram ter procedido dos tra
tados commerciaes entre o seu paiz e a Inglaterra. Esquece
ram -se de
que foi exclusivamente aquella alliança que as pro
vincias, onde as vinhas se tornaram uma fonte de riquesa , de
veram a sua prosperidade e mesmo a vida . Taes tratados não
prohibiram os portuguezes de lavrar as suas terras, nem de
trabalhar nos seus teares. A Inglaterra não fez mais que apro
veitar-se da pouca perspicacia do governo portuguez para d'el
la tirar vantagem , o que aliás outra nação teria feito sem du
vida nenhuma, e talvez em termos menos vantajosos do que
a da troca reciproca de productos. Se Portugal ficou obrigado
a receber os productos industriaes com exclusão dos das mais
nações, tambem não deve esquecer que a Inglaterra ficou re
cebendo os vinhos de Portugal em vez dos de França e do Rhe
no , e que esta exclusão dos vinhos foi, até uma época bem re
cente , um verdadeiro prejuiso para os inglezes, interessando
todavia n’isso os negociantes do Porto e as suas terras de vi
nho.

Se Pombal não parecesse casualmente inclinado a imputar


em extremo a miseria do seu paiz a politica do gabinete inglez,
que, segundo a sua opinião, obstava ao progresso da industria
e do commercio de Portugal, não me teriam suggerido aquel
las observações. Comtudo , e como ao diante veremos, jamais
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 51

deixou de ser um estrenuo advogado não só da importancia


mas da absoluta necessidade da alliança d’Inglaterra, que elle
com rasão tinha como unico meio de sustentar a independen
cia da nação , e de conservar as suas colonias. Como, porém ,
os negociantes inglezes de Lisboa e do Porto lançaram mão
de todas as occasiões , que se lhes proporcionavam , para se lo
cupletarem á custa dos portuguezes, pontos estes inseparaveis
de todas as transacções commerciaes, e tambem pugnavam e
reclamavam incessantemente privilegios esquecidos e injustos,
a que o ministro, sempre com a mesma tenacidade, se oppu
nha; não devemos admirar-nos que algumas vezes fosse leva
do a emittir juizos, que julgava justos, e que de alguma sorte
militam contra tão distincto caracter politico , e vastos conhe
cimentos governativos, que elle possuia sobre todos os homens
do seu paiz e do seu seculo.
Para provar aquella asserção dos privilegios que os ingle
zes reclamavam , citarei algumas das numerosas Cartas Re
gias » dos soberanos d'Inglaterra e Portugal, concedendo varias
prerogativas aos negociantes e outras classes dos dous reinos.
A de Ď . Fernando, em 1367, a favor dos inglezes, foi, em 1371 ,
retribuida por Eduardo III outorgando aos portuguezes a van
tagem de fazerem o seu commercio com as ilhas britanicas.
Ricardo II, em 1382, permittiu ao embaixador portuguez , Lou
renço Fogaça, desembarcar a sua bagagem em Inglaterra isen
ta de direitos. Em 1405 assignou Henrique IV tambem um
edito , que é um curioso documento d'aquelle seculo , pois que

ordenava que « não poderiam prender-se nenhuns portuguezes


em Inglaterra , nem tomar -se-lhes os navios ou outros bens
com o pretexto do pagamento das dividas, que Santiago e Lou
renço Fogaça fizeram no tempo , em que estiveram em Londres
como embaixadores de Portugal.»
A mais importante das regalias que os inglezes exigiram
em Portugal, foi a que o alvará de D. João IV confirmou em
1656, concedendo a Inglaterra ter em Lisboa um Juiz Con
servador. Póde fazer-se idéa das extraordinarias funcções d'es
ta especie de magistrado vendo o alvará de 1667, em que o
soberano de Portugal ordenava que não se prendesse nenhum
inglez n’aquelle reino sem ordem do seu Juiz Conservador. Fi
52 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

nalmente, para fazer ver a longa, e podemos dizer natural,


união entre as duas nações, poderiamos compilar bastantes vo
lumes de novos tratados e disposições para seu mutuo interes
se, se isto entrasse no plano d'estas Memorias.
« Em 1754 » diz Pombal, « Portugal não tinha quasi ne
nhuns productos de sua lavra que o sustentassem . A terra não
produzia mais que alguns fructos, os dous terços do necessario
physico, lhe eram fornecidos pela Gran -Bretanha. Esta monar
chia por seu commercio de economia o havia reduzido ao pon
to de ser conquistado, sem dar um golpe. Não lhe faltava mais
que tomar posse, o que haveria feito hamuito tempo se as con
siderações particulares, tiradas do systema geral da Europa,
não se tivessem a isso opposto .»
Chegara a este estado a agricultura do paiz : vejamos ago
ra como Pombal descreve a desgraçada condição , a que o com
mercio se vira então reduzido.
« A Inglaterra fazendo -se senhora de todo o commercio de
Portugal, todos os negocios d’esta monarchia passavam pelas
suas mãos. Os Inglezes eram no mesmo tempo os patrões, e os
feitores dos viveres n’este paiz. Tinham invadido tudo, nenhum
negocio se fazia senão por seu intermedio. Depois de ganhar a
Côrte de Londres a superioridade sobre este Estado, e de se der
ramar, por assim dizer , a Gran - Bretanha n’este reino, os por
tuguezes, não eram mais , que ociosas testemunhas do grande
commercio, que entre elles se fazia . Tranquillos espectadores,
não representavam alguma figura , sobre o seu proprio theatro ;
Portugal era uma grande platea , que via representar uma fa
mosa peça .

« Os Inglezes vinham até dentro a Lisboa roubar-lhe o com


mercio do Brasil. A carga das fructas era sua , as riquesas, que
ella trazia de volta , pertenciam -lhes : não havia cousa portu
gueza n'este commercio mais que o nome, não obstante no meio
d'este immenso negocio que se fazia no seu seio , o Estado des
falecia , porque os Inglezes sós tiravam todo o proveito . Estes
estrangeiros, depois de terem feito uma fortuna immensa,des
appareciam em um instante, levando comsigo uma porção das
riquesas d'este Governo , o que o lançava em uma pobresa con
tinua , e valeria mais que se não fizesse algum trafico, entre
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 53

gue inteiramente aos estrangeiros. O commercio hoje domina a


politica ; d'elle dimana o poder d’um povo. Todas as vantagens
que n’esta parte uma nação alcança sobre outra , se encami
nham á ruina d'aquella que as concede. N'isto não ha meio
nem temperamento ; as nações, ou destroem , ou são destrui
das pelo commercio, com outra nação só .»
Ainda que n'estas observações transparece mui claramente
a verdade , comtudo a energia e perseverança , que os inglezes
possuiam sobre a apathia e a inercia dos portuguezes, é que
deram o ascendente á Gran Bretanha. Referindo- se ao atraso
da industria interna , assim prosegue Pombal:
« Póde applicar -se aos portuguezes, o que diz um autor,
de certos povos da Africa : Elles vivem sem industria , e sem
artes, tem em abundancia preciosos metaes, que recebem im
mediatamente das mãos da naturesa. Todos os povos polidos
estão em estado de negociarem vantajosamente com elles, po
dem os estrangeiros fazer -lhes estimar em muito , cousas depou
co valor, e receber por ellas outras de summo preço .
« Esta inacção de Portugal vinha de longe, mas sempre da
Gran -Bretanha . Cromwel por um tratado de commercio , omais
vantajoso para a sua nação, tinha de algum modo aniquilado
esta monarchia , antes que ella existisse ; porque este tratado
se fez entre os dous Estados quarenta annos antes do desco
brimento das minas, isto é, antes que o reino de Portugal fi
zesse figura na Europa. N'elle foi estipulado que a Inglaterra
forneceria os vestidos a Portugal ; por aqui este famoso usur
pador , cortando o nervo do systema politico d'esta monarchia ,
arruinou este Governo com o primeiro golpe.
« Desde logo não se falou mais em artes n'este reino : in
sensivelmente as antigas manufacturas de Portugal se destrui
ram : a industria se relaxou , e bem cedo se extinguiu de todo.
A protecção que o Governo deu sempre aos Inglezes, receben
do os seus pannos, desanimou a actividade natural dos portu
guezes. A nação cahiu em uma especie de frio lethargo : a
ociosidade e a preguiça senhorearam -se de todos os corações,
não deixando n'elles logar para as outras paixões ; e a indo

1 Montesquieu, Esprit des Lois, lib . XXI, ch . 3 .


54 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

lencia dos portuguezes, augmentou -se a medida do grao de


grandesa , a que subiu a avaresa britanica .
Todo o vestuario , que falta a esta nação, que eu avalio
em vinte milhões de cruzados por anno, tira -se de Inglaterra :
porqué ninguem ignora que a França vende cincoenta peças
de panno annualmente. Uma nação, que tira d'outra todo o seu
vestido, não é menos dependente d'ella, do que de outra de que
receba o seu necessario physico , porque estas duas cousas são
igualmente necessarias para a existencia dos povos da Europa.
A Inglaterra segurava esta monarchia tanto pelo vestuario , co
mo pelo seu sustento . Ella não se podia já mover . Eram como
duas ancoras que a politica d'estes republicanos havia lançado
n'este reino. »

Em seguida, queixa -se Pombal da-má politica do governo


de D. João V que tanto se deixava ver na incuria do exercito
como da marinha, e na illimitada confiança que depositava na
protecção dos alliados .
« O reino de Portugal, havendo saccudido o jugo da Hes
panha , se tinha , por assim dizer, lançado nos braços da Ingla
terra , capacitado, de que lhe era indispensavel ter um alliado
de reputação no Mundo, e cujas forças maritimas podessem
enganar, com assombro a Potencia , de que elle se acabava de
livrar. É cousa espantosa, que uma reflexão , que devia pre
sentar-se - lhe logo , não o levasse a acabar a sua obra . Não ha
via para isso mais que dar um passo para traz , e examinar as
causas mesmo d'este acontecimento .

« Toda a Europa sabe que o projecto, a execução , e o fim


ditoso da revolução foi obra só dos portuguezes sem algum
soccorro estrangeiro. Sabe-se igualmente que todos os meios,
que a Inglaterra lhes havia fornecido até estemomento , haviam
sahido frustrados. Como podia pois suppor -se que esta Monar
chia teria força bastante para os livrar de recahir debaixo do
poder da Hespanha ?
« É mais facil sustentar a liberdade d’um povo , que liber
tal-o. Não obstante isto, a Inglaterra aproveitando -se d'esta es
pecie de inebriação , prometteu tudo para obter tudo. Aqui oc
correm por todas as partes as reflexões .
« Quando um povo recobra a sua liberdade politica, é uma
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 55

prova, que o Governo que o tinha na escravidão, se corrom


pera : e por conseguinte, que não está já no seu primeiro es
tado de força, e que dá bastante força , aquelle que alcançou a
liberdade, para a conservar. Seu primeiro esforço não é cousa
alguma, se não é seguido do segundo para se conservar a si
mesmo livre sem soccorro de um poderoso alliado, sem o que
recae, quasi sempre pelo outro lado na mesma escravidão, de
que acaba de sahir . As allianças, não são outra cousa mais que
commercios politicos. O alliado, que entra com mais poder, ti
ra d'ellas maior proveito.
« Depois da sua revolução ficou Portugal mais escravo de
Inglaterra do que jamais o fora de Hespanha. Esta Monarchia
pareceu desde logo não estender a mão para o soccorrer, se
não que para o opprimir depois, com uma infinidade de bra
ços. Ella o esmagou emfim com o peso do seu systema econo
mico. Antes do successo que destruiu Lisboa , este Estado não
tinha voz alguma deliberativa . Todas as suas revoluções The
eram destinadas pelo gabinete de Londres . Os procedimentos
de seus ministros, nas cortes estrangeiras, lhe estavam de al
guma maneira prescriptos. Esta Monarchia não tinha já arma
das, exercitos de terra e mar. Que systema! Um projecto de
pacificação, isto é, um estado de fraquesa, que se lhe tinha na
turalisado , o compunha todo. Elle já se não movia. Tinha per
dido todo o movimento de intriga politica , sem o qual um Go
verno cae necessariamente na impotencia .
« Descançai em nós (lhe dizia continuamente a Inglaterra ),
fiai- vos em nossas armadas ; não façais guerra , nós a faremos
por vós. >>
« Maximas de Estado. A peior de todas as politicas é conser
var-se constantemente em paz, quando todas as mais potencias
da Europa estão em guerra . Ainda que as desordens, que a cau
şam , não interessem particularmente a uma potencia , é preciso
que ella se intrometta na guerra, quando os inconvenientes d'esta
não sejam mais consideraveis , que os da paz. Um Estado se en
ganará sempre , quando crê, que as victorias, que se alcançam
à duzentas leguas do seu continente , em nada tocam os seus
interesses. O mesmo passa no mundo politico, que no physico
elementar , onde um primeiro mobil causa o movimento do todo .
56 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

«Ha n’elle, como uma força motriz geral politica, que der
rama por toda a parte. Esta força ou é reflexa , ou directa. Em
qualquer parte da Europa , que um de seus Estados augmenta
o seu poder, diminue necessariamente o do outro. Todos os Es
tados interessam , em entreter o equilibrio, porque d’isso depen
de a sua segurança. A distribuição geral do poder politico in
teressa todos os reinos, e republicas da Europa.
« Nas guerras geraes os pequenos Estados deviam mais,
que os outros, tomar parte, quando não fosse mais que para
tomarem o partido dos mais fracos, contra os mais poderosos.
Esta politica é necessaria , sem o que, os poderososGovernos,
adquirindo sempre mais forças,por fim engoliriam todos os mais
pequenos; porque nunca faltam pretextos ás grandes Monar
chias para declarar guerra ás fracas.

A causa immediata da decadencia de Portugal existe na


da sua primeira prosperidade. Ouçamos Pombal, que assim
continúa :
« As minas de ouro . Vède aqui qual é, ha sessenta annos ,
a unica fonte das riquesas de Portugal. Não é necessario ser
politico , basta valer -se da arithmetica , para mostrar, que um
Estado , que inclina toda a sua administração para as minas,
deve perecer necessariamente : « o ouro, e a prata , são umari
quesa de ficção.» ? Estes signaes tem muita duração , e den
tro em pouco, quanto mais se multiplicam , quanto menos pre
ço tem , porque representam menos cousas. No tempo da con
quista do Mexico, e Perú, os Hespanhoes, abandonaram as ri
quesas naturaes, para ter riquesas de signaes, que se envilecem
por si mesmos. O ouro, e a prata eram muito raros na Euro
pa ; a Hespanha de um salto , feita senhora d'uma grande quan
tidade d'estes metaes, concebeu esperanças, que nunca teria .
Não obstante, a prata não deixou de duplicar logo na Europa ,
o que se viu duplicando -se o preço de tudo que se comprava .
Em Jempo dobre ainda duplicou a prata, e o proveito diminuiu
de meios. Vêde como :

« Para tirar ouro das minas, e preparal-o , como é mister,


era necessario algum gasto . Supponho , que este fosse um a res

1 Montesquieu .
57
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

peito de sessenta e quatro ; assim as pratas, que traziam para


Hespanha a mesma quantidade de ouro , traziam uma cousa ,
que realmente valia metade menos, e custava metade mais. Se
se segue a causa da duplicação , se achará a causa da impo
tencia de Hespanha . Acha-se neste rasoado o compendio da
historia da fraquesa de Portugal. « Philippe segundo (acrescen
ta o mesmo autor,) depois do descobrimento do Mexico, fez a
celebre Banca Rota , que todo o mundo sabe.» = Philippe
quarto, (diz outro escriptor ) viu -se reduzido a fazer moeda fal
sa , para soccorrer aos encargos do Estado.»
Mas, quando este vicio physico não fosse natural d'estas
riquesas, uma só reflexão politica devia sarar para sempre
os soberanos, do frenesi de ter estes thesouros funestos . Se
aquelles, que descobrem minas de ouro abundantes, quizessem
remontar ao principio das cousas, elles achariam demonstrati
vamente a aniquilação do seu poder nas mesmas minas. O ou
ro por si mesmo, é o poder mesmo, porque elle dá aos Esta
dos meios de augmentar suas forças.
« Se um monarcha , que descobrisse abundantes minas,
quizesse reter no seu dominio todo o ouro que d'ellas tirasse ,
sem o repartir com os mais soberanos, como elle podia então
ter mais riquesas só, que todos os outros principes juntos; e
como estas riquesas o podiam conduzir ao universal imperio,
succederia , que toda a Europa se ligasse contra elle , para o
destruir , antes que elle mesmo podesse destruir tudo. Se para
evitar sua ruina , meditada por todos os Estados, elle reparte
com elles o producto das suas minas, cae por outra parte no
inconveniente , que quiz evitar , porque quanto fizer passar aos
outros governos , augmentando continuamente a massa das suas
riquesas, diminuirá necessariamente o seu poder , que em um
seculo decorrido, não estaria em um estado mais proporciona
do de força relativa com algum Estado da Europa .
« Se os exemplos podessem corrigir soberanos, nenhum ha
veria que não estabelecesse por maxima fundamental, o emba
raçar, que se abrissem minas, pois que depois da creação do
Mundo , se póde provar, que todos os Estados, que tem incli
nado a sua administração para este lado, enfraqueceram , e
desfalleceram .
58 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

« Maxima invariavel; as riquesas das minas são sempre


chimericas, para os Estados, que as possuem . Estes reinos não
são , fallando propriamente , mais que os economos, ou dispen
seiros de seus proprios thesouros. O fundo das minas perten
ce sempre aos povos industriosos, que as fazem valer . Tome
trabalha nas
mos o mesmo Portugal por exemplo. O negro , que
minas de ouro do Brazil , devia ser vestido em Inglaterra , que
lhe havia dado o panno ; as minas estavam portanto relativas
do preço
d'este á Inglaterra, até que o vestido estivesse pago .
« Para trabalhar nas minas , era necessario um cabedal
empregado em negros de estrada ; supponhamos que este capi
tal fôra vinte milhões, o interesse d'esta somma, que é de um
milhão , devendo -se pagar primeiro que tudo , das mesmas mi
nas, diminuia em outro tanto a somma da extracção. Acres
centai agora a subsistencia de mais de cem mil vassallos ne
gros, e brancos, que as minas levam ao Brazil. Subsistencia
que se não acha no Estado, e que é preciso comprar aos es
trangeiros.
«Acrescentai isso ao vestido , e ás cousas proporcionadas
ao luxo, que a Inglaterra introduzia nos naturaes do Brazil.
«Emfim ponde ahi as necessidades geraes da nação , que
depois do descobrimento das minas, deixando perder as artes,
era obrigada , a prover -se do necessario em outros povos, e se
achará , que todo o ouro , que se tirava das minas , pertencia a
outros governos . Que riquesa, grande Deus! a que na sua posse
arrasta necessariamente a perda do Estado.»
Para prova da verdade, que ha n'estas ultimas e profundas
observações, basta lembrarmo-nos de que, ainda que o monar
cha portuguez possuia as mais productivas minas de ouro , e
era tido como um dos soberanos mais opulentos da Europa,
era tal o estado dos cofres reaes em 1754 , que teve que con

trahir um emprestimo de quatrocentos mil cruzados , com cer


ta companhia , para occorrer aos encargos da casa . Este facto
illustra o juizo de certo , « que nunca houve um monarcha rico
e o povo pobre.»
Tendo deste modo feito por mostrar qual era a situação
de Portugal antes do infausto successo, que se acha descripto
no capitulo antecedente, farei ainda algumas observações, cor
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 59

roboradas por alguns documentos, que se referem a uma épo


ca posterior aquella , para no capitulo seguinte voltar ao obje
cto, que forma a base d'estas Memorias.
Tantos e tão arduos eram então os cuidados e deveres de
Pombal, que se viu na necessidade de buscar um habil ajudan
te , que o alliviasse na administração dos negocios publicos. Por
isso , chamou D. Luiz da Cunha , que chegou em maio de 1756 ,
sendo logo nomeado secretario de estado adjunto do Marquez
de Pombal, com as pastas da guerra e negocios estrangeiros.
Diogo de Mendonça continuou com a da marinha, em cuja pos
se estava desde a acclamação de D. José. Mr. Castres, n'uma
correspondencia de 10 de maio de 1756, refere estes prome
nores :
«O sr . Carvalho continúa a occupar o logar de ministro
dos negocios do reino, os quaes, com particularidade, reque
rem toda a sua attenção , absorvendo-lhe por isso todo o tem
po , desde as ultimas desgraças, que nos affligiram , não só em
concertar, com o nuncio do papa , um util projecto para dimi
nuir a grande quantidade de conventos, que aqui ha, mas em
ouvir os differentes pareceres dos architectos sobre o melhor
plano de reedificar a cidade. Como a sua saude tem ultima
mente declinado, em consequencia da excessiva assiduidade
nos negocios publicos, é fóra de duvida, que a nomeação de
D. Luiz da Cunha foi medida inteiramente sua
para tornar
me

nos pesados os seus trabalhos. Ora, sendo a opinião geral, que


elle possue, mais do que nunca , a estima e a confiança do rei,
o povo começa a olhal-o como presidente dos ministros, ainda
que, segundo penso, elle evita que assim o designem .»
Deu -se por este tempo um caso que mr. Castres refere da
maneira seguinte :
« O sr. Guillaume Pawson , negociante inglez estabelecido
ha trinta annos, no Porto, ahi se casou no anno de 1729 com
uma menina irlandeza, catholica romana, chamada Mary Ay
lward, da qual teve alguns filhos. Um dos artigos do contrato
de casamento estabelecia : que todas as filhas haviam de ser
educadas na religião de sua mãe, o que foi pontualmente ob
servado. O mais velho de seus dois filhos, chamado George, foi
enviado na edade de cinco annos para a Inglaterra , com o fim
60 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

de ser alli educado na religião protestante, que seu pae pro


fessou constantemente . Porem , como aquelle tinha sido bapti
sado numa egreja romana, os amigos do pai julgaram prudente
dar alguns passos, para saberem dos directores do tribunal da
inquisição, se o joven Pawson poderia seguramente voltar a
este paiz : e tendo ouvido delles a certesa de que da sua parte
não tinha nada a receiar, voltou , ha oito mezes , para o Porto
com o fim de ser naquella cidade socio de seu pai, e pôr-se á
testa dos negocios , quando este tomasse a resolução de se re
tirar para a sua patria.
A 17 deste mez de maio o referido mancebo voltando
d'uma casa de campo , foi preso ás oito horas da manhã no meio

da rua, tirado á força de cima do seu cavallo pelos officiaes do


bispo do Porto, e levado para as prisões do Aljube, onde está
rigorosamente guardado, não se tendo concedido a seu pai li
cença para lhe fallar .»
Não era facil resolver este negocio sem pôr em alvoroço os
animos de todo o clero portuguez. D. Luiz da Cunha, n'uma
conferencia , que a este respeito teve com o ministro da Gran
Bretanha, confessou ingenuamente que — havia certas forma
lidades em todos os casos, que tambem eram da competencia
da igreja , que não era possivel evitar; e que, não obstante de
sejar de todo o coração a felicidade da nação ingleza , sem lhe
importar que o saibam , muito lhe custaria dar occasião á gen
te ignorante do seu paiz para o taxar de herege !
O mancebo foi posto em liberdade, e o bispo severamente
censurado, e em seguida obrigado a resignar o episcopado, e
a retirar-se para qualquer terra longe d'ali, em punição da re
sistencia e má vontade, que mostrara em obedecer ao manda
do regio, que lhe foi dirigido, para que immediatamente sol
tasse mr. Pawson .

Em 31 d'agosto de 1756 foi posta em execução uma d'a


quellas arrojadas medidas, que tanto distinguiram a adminis
tração de Pombal. Acha -se descripta n’uma correspondencia
demr. Castres de 11 de setembro de 1756 , do modo seguinte :
«No dia 31 do proximo preterito, pela uma hora da nou
te, D. Luiz da Cunha, acompanhado de um official de justiça
e uma escolta de cavallaria, dirigiu -se a casa do Ministro e Se
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBÁL 61

cretario d'Estado dos Negocios da Marinha, Diogo de Mendon


ça, e participou- lhe em nome d'el-rei seu amo, que apenas se
lhe concediam tres horas para apromptar -se para o desterro
que lhe era ordenado para qualquer terra do reino , que lhe
aprouvesse, com tanto que não fosse menos de quarenta leguas
longe da capital. Diogo de Mendonça, com grande sangue frio
e presença de espirito , beijou a ordem regia, e entregando a
chave do gabinete, e a da secretária particular, que tinha na
repartição , metteu -se em seguida , acompanhado do seu confes
sor e de dois criados, na sua sege escoltada por quatro dra
gões.
« Horas depois d'esta expulsão, foi affixado em todos os lo
gares publicos d'esta cidade um decreto impresso , prometten
do vinte mil cruzados de premio ás pessoas, que fielmente des
cobrissem os autores, que se atreveram a proferir , que poderia
haver quem attentasse contra a vida de alguns dos Ministros,
que com o Rei despacham , e executam as Suas Reaes Deter
minações. »
Parece que foi este um momento bem critico , e que al
guma grande conspiração se tramava, cujas particularidades
nunca transpiraram . Algumas pessoas pouco notaveis tinham
já sido presas, e Lacerda recebeu ordem para voltar imme
diatamente a Lisboa .

Em 7 de julho de 1756 escreve mr. Castres : «Lacerda,


actualministro d’esta corte em Paris , teve inesperadamente or
dem de regressar a ella , por causa, segundo se pertende, de
certa correspondencia , que o compromette , a elle, e a um pa
rente , que tem n’esta cidade, a quem era dirigida , o qual foi
preso ha dez dias apprehendendo-se- lhe alguns papeis, de cu
jo conteúdo se descobriram taes cousas, que deram motivo á
prisão de muitas outras pessoas, entre as quaes se contam tres
ou quatro frades notaveis . O que é inquestionavel, é que os
ministros se reunem , ha perto de duas semanas , quer de dia

quer de noute, e tão secretamente, que, junto a tantas prisões


que ultimamente tem tido logar, tem suscitado grandes descon
fianças de haver n'isto bem sinistros designios.»
O embaixador francez mostrou - se muito estimulado com
a sorte que teve o seu amigo Mendonça , a cuja culpa parece
62 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

não ter sido estranho , visto que teve ordem , bem pouco de
pois, do seu governo para regressar a Paris . Mr. Castres in
forma-nos de que este embaixador, quando se despediu , rece
beu as barras de ouro do estylo no valor approximado de mil
e cem libras. « A Côrte, junta elle , parece ficar muito satisfei
ta vendo -se livre d’um ministro d’um genio turbulento como o
seu , o qual havia muito se tornara malquisto pelas suas in
cessantes disputas sobre bagatelas, e pela maneira livre e
absurda, com que se expressava fallando dos costumes e usos
da nação, não poupando mesmo ás vezes a pessoa do rei.»
CAPITULO VI

Formação da Companhia dos Vinhos do Alto Douro ; as grandes vantagens que


conferiu á agricultura e commercio ; é virtualmente abolida pelo governo cons
titucional ; tumultos no Porto em 1756 secretamente instigados pelos jesuitas ;
apologia de Pombal sobre a fundação e progressos da Companhia ; extractos
dos officios da secretaria do estado intercalados no capitulo .

Pombal, entretanto quemeditava nas diversas causas, que


arrastaram a nação ao misero estado a que chegara , e assi
duamente trabalhava por descobrir os meios de remediar as
fataes consequencias do terremoto , não só não esquecia as re
formas, que
todas as repartições do Estado imperiosamente re
clamavam , mas ainda bem não concebia os seus planos gover
nativos, logo os fazia executar sem perda de tempo entre a de
liberação e a execução d'elles. Effectivamente, até parecia em
seus decretos anticipar os abusos, que nascem das reformas,
estando sempre prompto a fazer -lhes face no momento , em que
apparecessem . Nomeio, porém , de todos os cuidados e ancie
dades inherentes á sua posição, não foi estranho ao facto de
que a conservação e influencia d'um governo dependem consi
deravelmente da maneira , como se promovem os interesses in
dividuaes. Portanto , occupou -o com especialidade a formação
da celebre Companhia dos Vinhos do Alto Douro, cuja optima
direcção obteve, ainda até uma época bem recente, uma celebri
64 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

dade indisputavel, e conservou bôa reputação pela puresa e


excellencia dos vinhos, que nenhuns outros ainda excederam ,
nem mesmo imitaram . Os factos, que se seguem , explicam a
causa de se haver formado esta Companhia .
Em agosto de 1756 , os principaes lavradores de cima do
Douro representaram a sua magestade que a agricultura dos
vinhos nas tres provincias da Beira , Minho e Tras -os-Montes,
estava tão decaída, que a receita não dava para a despesa ;
que os ganhos ficavam todos nas mãos dos taverneiros do Por
to , que adulteravam os vinhos de maneira tal, que os torna
vam prejudiciaes á saude dos consumidores, e que o melhor
meio de obviar tantos males era organisando uma companhia .
A urgencia do caso e a necessidade de n'elle intervir eram tão
evidentes , que Pombal não hesitou em iniciar- se nas vistas
d'estes lavradores, e com a deliberação e prestesa , que lhe co
nhecemos, promulgou um decreto a 10 de setembro de 1756
com o fim de organisar a «Companhia Geral da Agricultura
das Vinhas do Alto Douro » cujo capital se fixou em um mi
lhão e duzentos mil cruzados. O fim principal d'esta Compa
nhia era preservar a qualidade dos vinhos de ser adulterada ,
e beneficiar os lavradores e compradores dos mesmos, estabe
lecendo-se-lhes um preço rasoavel, emancipando -os assim das
intrigas dos monopolistas. A Companhia , segundo o decreto,
tinha o privilegio exclusivo de comprar todos os vinhos lavra
dos dentro d’uma certa demarcação territorial, por um preço
fixo, e n’um certo praso depois da vindima. Expirado aquelle
praso , podiam os lavradores vender os vinhos, que lhes res
tassem , nos mercados que Ihes
aprouvesse .
Esta celebre Companhia, depois de ter, não só outorgado
immensos beneficios a cada um , mas melhorado consideravel
mente a agricultura e o commercio da nação, foi definitivamen
te abolida, logo que se estabeleceu o governo constitucional:
o que foi applaudido por uns e impugnado por outros, segun
do defendiam ou condemnavam a dita Companhia , ou eram , ou
não interessados, n'ella . Permitta -se-me, todavia , observar de
passagem , que tiveram , ha pouco , a sancção regia , em Portu
gal, algumas medidas para o governo tornar a proteger e sus
tentar a Companhia e o decadente commercio do vinho. Ora ,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 65

que é fóra de duvida , é que, com quanto a julguem inutil ou


injusta no presente estado das cousas, (o que duvido), deve
forçosamente admittir -se, que concorreu notavelmente para fa
zer prosperar a agricultura das vinhas nas provincias do nor
te, e que abriu , por assim dizer , uma nova fonte de riquesas
ao commercio de Portugal. Porém , como succede a todas as
medidas reformadoras, especialmente ás fiscaes, a companhia
teve tambem logo do seu principio bem vehementes adversa
rios, achando -se entre elles os taverneiros, que, sentindo - se
offendidos pela barreira, que assim se oppunha ás suas antigas
prevaricações , arrastaram comsigo, como era de esperar, a
plebe, que costumava frequentar as suas tavernas. Estes des
contentes excitaram muitos motins no Porto , chegando uma
vez a forçarem e roubarem a casa do director da companhia,
e a fazerem sair da cama o chanceller d'aquella cidade , obri
gando-o a protestar contra a companhia ; e, não contentes ainda
com estas offensas, chegou a sua furia a tal excesso, que aggre
diram a tropa . Foi então que a luta se tornou seria bastante,
custando algumas vidas. Entretanto, alguem suggeriu felizmente
ás autoridades o expediente de fazerem sair uma procissão, que
finalmente socegou mais o povo, dispersando-se por fim .
Pombal, logo que teve noticia destes acontecimentos, fez
marchar novos reforços militares para o Porto , levando os com
mandantes strictas ordens de mandarem prender e processar
todas as pessoas, que fossem directa ou indirectamente implica
das nos ditos tumultos, ou que os houvessem fomentado . Estas
ordens foram executadas com todo o rigor, porque eram tão
extensas as ramificações dos motins, que aconselhava a pru
dencia , que se dessem severos exemplos, para que elles se não
tornassem a repetir, e, conforme a gravidade da culpa , que em
cada um se provou , assim se lhes applicou a pena.
Como prova de que taes motins foram muito mais graves

do que geralmente os teem representado, vejamos o que, n'uma


correspondencia de 19 d'outubro de 1757, diz mr. Hay, mi
nistro inglez em Lisboa : « Foram pronunciadas neste verão pas
sado as pessoas implicadas nos motins do Porto . Treze homens
e quatro mulheres foram executados, a 4 do corrente , com
pena ultima. Vinte e cinco pessoas foram condemnadas ; umas a
VOLUME I
66 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

trabalhos perpetuos, e outras a temporarios. Foram desterradas


para differentes pontos, oitenta, e condemnadas a multa e seis
mezes de prisão , cincoenta e oito . Foram absolvidas trinta e
e seis.» Não será , pois, fóra de proposito observar que, não
obstante o rigor destas penas, o ministro inglez as menciona
sem fazer commento algum , o que prova evidentemente que fo
ram justamente applicadas. Alem disso , posso accrescentar,
para elucidar aquelles, que tiverem visto Pombal descripto co
mo um severo ministro , que nunca , em todo o tempo da sua
longa administração, que abrangeu um periodo de vinte e sete
annos, nenhum ministro inglez censurou , nem mesmo alludiu
a que houvesse demasiada severidade. O que sobretudo mais
nos convence desta verdade, é que, ainda quando as causas
de qualquer pena eram cercadas de mysterio, e cuidadosamente
occultas, nunca , em nenhuma das correspondencias privadas e
confidenciaes de qualquer testemunha occular ou embaixador,
se duvidou um instante, ou impugnou a justiça dessa pena .
Ora , ainda que foram os taverneiros que figuraram nos re
feridos tumultos, soube -se que o seu primeiro germen partira
dos jesuitas, porque foram estes, que secretamente excitaram e
fomentaram as paixões do povo ; e, como foram estes tambem
os mais acerbos e implacaveis inimigos de Pombal,referirei no
seguinte capitulo uma breve historia desta sociedade desde a
sua introducção em Portugalaté á epoca de que fallamos, para
elucidar muitas passagens da sua existencia . Entretanto , ver
se ha que o Compendio da Fundação da Companhia dos Vi
nhos, que mais adiante apresento escripto por Pombal depois
da sua demissão do ministerio em 1777, é de summo interesse ,
especialmente porque é um dos documentos, que vindicam os
passos da sua carreira ministerial, que mais obnoxios foram
aos seus inimigos; e isto porque, expliquemol-o com anticipa
ção , uma das cousas principaes de que o arguiram , foi a ma
neira como sustentou a dita companhia , pelo que veremos co
mo elle considera estas arguições, e quaes foram os motivos
que o levaram a fundar a companhia .
Nunca os inimigos de Pombal poderam descortinar terreno
algum , em que o arguissem de sacrificar os principios ao inte
resse, nem descobrir que elle jamais emprehendesse uma refor
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 67

ma, ou pozesse em execução um projecto , que não fosse in


teiramente despido de toda a consideração pessoal, e só, ab
soluta e evidentemente , para o engrandecimento, honra e felici
dade da sua patria. Em nossos dias de governos representativos
não tem faltado quem diga que elle excedeu os seus poderes de
ministro , e que muitos dos seus actos foram despoticos e arbi
trarios . Tal foi o sentido , em que um campeão da liberdade
franceza, Lafayette, se expressou , ao passo que um celebre es
tadista de hoje, nascido em bem differente atmosphera politica,
observava ha pouco falando de Pombal, que elle estava todo
influido das ideas liberaes do nosso seculo . Quão varios são os
juisos dos homens sobre o mesmo assumpto !

APOLOGIA

OU COMPENDIO DA FUNDAÇÃO E PROGRESSO DA COMPANHIA GERAL DA AGRICULTURA


DAS VINHAS DO ALTO DOURO

aslinda continuavam com grande força as successivas, e


urgentes fadigas que a calamidade do terremoto do 1.º de no
vembro de 1755 fazia indispensaveis, quando no anno proxi
mo seguinte de 1756 appareceu nas barracas da Quinta de
Belem o Mestre Fr. João da Manchilha, como Procurador dos
principaes lavradores de cima do Douro , e homens bons da
Cidade do Porto , cheio de uma consternação tal, que seria uma
larga escriptura para a explicar, como presenciei naquelle
tempo .
« No meio della pois representei ao Senhor Rei D. José,
em nome de todos os sobreditos o seguinte:
Que os Inglezes da Cidade do Porto haviam acabado de
arruinar inteiramente as importantes vinhas do Douro, e os
productos d'ellas.
« Que jamais havia meios, com que se fabricassem . Que
tinham reduzido o preço do vinho a 6400 , e a 7200 réis por
cada pipa. Que ainda assim o não queriam comprar, senão a
credito de um e dous annos. Que o dito infimo preço não dava
de nenhuma sorte, nem ainda o necessario para a cava das vi
nhas, que por isso iam todas caindo abandonadas por seus
donos.
68 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

« Que o Abbade de Lobrigos já tinha largado a sua Igreja,


por não haver com que pagar-se a pensão della.
« Que todas as casas principaes daquelle territorio se acha
vam reduzidas á ultima pobresa, tendo vendido, e empenhado
até as colheres, e garfos com que comiam .
« Que as gentes da plebe, por não terem já com que com
prassem uma gota de azeite , comiam na quaresma, e dias de
jejum as suas couves temperadas com o toucinho dos seus porcos,
que criavam ; que aquella geral, e extrema pobresa tinha cau
sado tambem quasi geral prostituição das filhas dos lavrado
res, e senhores dos vinhos, porque os ditos Inglezes só com
pravam aos que lhes facilitavam as mesmas filhas para ....
seguindo -se d'aquellas facilidades grandes offensas de Deus, e
escandalos publicos.
« Esta triste pintura fez no pio , e paterno espirito do dito
Senhor uma grande impressão, e logo me ordenou que imme
diatamente fizesse qualificar por boas informações os sobredi
tos factos.

« D'ellas pois resultou achar-se que eram inteiramente cer


tos. Discorreu -se largamente na presença do dito Monarcha
sobre o remedio mais prompto, e efficaz, que se podia appli
car a tão grandes males, e assentou -se emfim que não po
dia haver outro, que não fosse o do estabelecimento de uma
Companhia forte, que com o peso da união do seu cabedal, e
credito desconcertasse a coligação nociva , em que se achavam
mancommunados os Inglezes.
« Conformou - se o dito Senhor com o referido Assento :
consequentemente se formou uma relação de perguntas, em
que se continham já as averiguações dos factos, que eram in
dispensavelmente necessarios, para se formar com inteiro co
nhecimento de causa, o plano da dita Companhia. E logo que
chegaram estas noções se minutou entre mim , e o Mestre de
campo General Manuel da Maya, a Representação, que sendo
approvada pelo mesmo Senhor, e indo ao Porto para se concor
dar com os interessados nella , voltou assignada por todos, e o
foi logo por mim , e pelo Desembargador Procurador da Coroa ,
assim como corre impressa, com o Alvará de Confirmação da
da em Belem aos 16 de setembro do dito anno de 1756 .
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 69

Quando o dito Monarcha, e o seu Ministro entendiam que


a referida Instituição, e o Alvará que a confirmou tinha levado
aos senhorios, e lavradores dos importantes vinhos do Alto
Douro a redempção do captiveiro, em que se achavam , quando
este era o reconhecido sentimento de todos os interessados , ho
mens instruidos e prudentes das tres Provincias da Beira, Tras
os Montes, e Minho ; tirando dos seus escondrijos os Padres da
Companhia do Collegio do Porto o plano da sublevação , que
no anno de 1661haviam feito levantar n'aquella Cidade con
tra o Senhor D. Affonso VI, e suggerido pelos exercicios, e con
fessionarios, que os vinhos da nova Companhia não eram con
venientes para o Sacrificio da Missa , levantaram no dia 23 de
fevereiro do anno proximo seguinte de 1756 o horroroso mo
tim , com que toda a plebe da mesma Cidade foi assaltar as
casas do Chanceller Cabeça d'aquella Relação, e das sessões
cartorio, e deposito da mesma Companhia , clamando que fosse
abolida , com as consequencias, que foram manifestas a todo
este reino pelo processo, e sentença alçada, que se guarda no
Real Archivo da Torre do Tombo para aviso dos seculos fu
turos.

« Desde aquelle passo em diante ficou sempre o Gabinete


fluctuando entre duas extremidades tão contrarias, e contradi

ctorias, como tem sido, ver por uma parte que dia em dia ir
mostrando a experiencia cada vez maiores progressos , não só
nos lucros da dita Companhia , em que consiste a sua esperan
ça , mas tambem a mesma proporção no consumo dos vinhos ,
na restituição do valor d'elles a preços racionaveis , no augmento
de cultura dos Vinhos, e na liberdade dos colonos, e senho
rios d'elles; e ver por outra parte que nenhum tempo lhe bas
tava para occorrer ás fortes opposições dos Inglezes, ás do
losas transgressões, com que os mesmos interessados na repu
tação dos vinhos inventavam para arruinal-o cada dia mais
com reprehensiveis fraudes, e as malversações e negligencias
dos Provedores, e Deputados da mesma Companhia.
« Os Inglezes, vendo que lhes tinham arrancado das mãos
aquelle importantissimo ramode commercio, e que se achayam
no Alto Douro dependentes dos mesmos lavradores, que antes
tratavam como escravos, dispondo dos bens alheios, como se
70 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

fossem proprios, não houve, pretexto , nem sophisma, que


não inventassem , e não pertendessem fazer valer pelos capcio
sos, e arrogantes Officios do Enviado Eduardo Hay, do Embai
xador Lord Himout, do Plenipotenciario Guilherme Henrique
Lytheleton , e do actual Enviado Roberto Wallpoll para arrui
nårem por meios directos e indirectos a mesma Companhia .»
Não posso deixar de fazer aqui uma breve interrupção para,
por meio de factos, mostrar que o estabelecimento da compa
nhia em questão foi por muitos annos objecto de reiteradas
petições , queixas e arguições dos negociantes inglezes do Porto,
ao que Pombal cerrava sempre os ouvidos. N’uma das muitas
contestações, que a este respeito teve com lord Kinnoul, defen
deu Pombal o seu procedimento dizendo:
«Que, quando por meio d’um tratado se concedia a liber
dade geral do commercio , nunca esta devia ser tão rigorosa
mente interpretada, que se julgasse que cohibia qualquer dos
soberanos de estabelecer nos seus dominios as leis, que lhe pa
recessem uteis para o interesse e segurança do seu governo, ou
de dirigir o commercio dos seus vassallos, ainda que fosse in
directamente ferir nos seus interesses os vassallos do outro so
berano .» E alem disso , « que havendo certa moderação reciproca
em evitar disputas particulares, e attendendo ao interesse geral
d'ambas as nações mais, do
que ao interesse e á opinião indi
viduaes, se conservara até ali a boa harmonia , e o commercio
prosperara com aquella felicidade e até ao auge, que a todos
eram visiveis .» E , « que o systema mais sabio que o Rei de Por
tugal pode seguir , é fazer que o commercio da sua nação se
torne um objecto de tal apreço para qualquer nação estrangeira ,
que possa captar e firmar, sobre o solido fundamento do inte
resse, a amisade de uma potencia capaz de sustental-a e de
fendel-a.» Pombal proseguia em emittir a sua opinião dizendo,
« que a Gran Bretanha, pela sua longa alliança e antigos tra
tados,bem como pelo seu systema politico , pela sua posição e
pelas suas forças maritimas, é de todas, a nação, a que Portu
gal devia dar preferencia ;» e concluiu declarando , « que o in
teresse geral dos dous paizes devia antepôr-se ao de uns poucos
de individuos. » Isto tudo se acha n'um officio de 11 d'outubro
de 1760. Agora ,em resposta ás representações de mr. Hay , es
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 71

creve este n'um officio de 5 de novembro de 1763, que Pombal


nunca perdeu de vista os verdadeiros interesses do seu paiz : « O
conde d'Oeyras expoz com certo calor que el-rei seu amo tinha
um innegavel direito de estabecer nos seus dominios as leis, que
julgasse convenientes , e que os negociantes estrangeiros não de
viam intrometter-se n’ellas. Que vinte e seis portuguezes foram

punidos com pena de morte pela opposição, que fizeram á


companhia , fundada para evitar a ruina total
do norte, e restaurar a puresa dos vinhos, que corromperam ,
tendo os feitores inglezes aniquilado aquelle ramo de commer
cio.' E continuou Pombal, ‘os estrangeiros, sem embargo dos
tratados ,devem obedecer as leis civis do paiz , em que viverem .
«Os officios,» continua Pombal « na sua Apologia ,» que se
acham nos massos dos papeis dos ditos quatro ministros Bri
tanicos , e nas minhas respostas a elles dados, mostram bas
tantemente as multiplicadas , e nunca acabadas fadigas, a que
obrigaram o Gabinete para achar rasões superiores a toda a
contestação , com que salvasse um estabelecimento de tanta uti
lidade publica d'este reino, repudiando constante, e firmemente
as arrogancias dos sobreditos quatro ministros de Inglaterra .
Os colonos interessados na reputação dos vinhos procu
raram sempre fraudal-a pelos seus mal entendidos interesses
particulares, ja introduzindo pelo escuro da noute os vinhos
azedos das terras adjacentes aos da demarcação dos vinhos de
embarque dentro della ; já misturando os inferiores, só proprios
para as tavernas com os ditos superiores de embarque, jả fa
zendo colligações clandestinas com os inglezes do Porto , fingindo
que compravam para si mesmo os vinhos na realidade com
prados para os ditos inglezes, e já inventando a medida da
fertilidade da sua imaginação , e da sua malicia differentes ou
tras fraudes, que necessitavam de maior extensão para serem
especificadamente relatadas.
« Fraudes, e colligações, cujos remedios fizeram indispensa
veis as outras extensissimas fadigas, sem as quaes não poderia
o mesmo gabinete dar as quasi successivas, e importantes pro
videncias, que nos registos da Secretaria d'Estado dos Nego
cios do Reino , não cabendo já em dous grandes livros, torna
ram preciso passar-se a terceiro.
72 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

«Os provedores, e deputados da mesma companhia, nos


primeiros trienios eleitos, e approvados (como ás cegas em
tão grande distancia ) entre os homens, que n’aquelle tempo
mostravam maior zelo ,maior credito , e mais intelligencia , veio
a descobrir-se pelas inquirições que não correspondiam , nem
á confiança , que n'elles se tinha posto, nem ao desinteresse,
que era indispensavelmente necessario na administração de ca
bedaes alheios. Passou -se a buscar para os logares de prove
dor, e vice -provedor as pessoas mais distinctas d'aquella cidade,
com a esperança que a sua authoridade, e exemplo constituis
sem a mesma administração na maior regularidade e na mais
exacta observancia ; porem nada d’isto bastou para que deixas
sem de continuar as desordens, e queixas até ao fim da junta
proxima precedente .
«Porque as ditas pessoas distinctas, ou por falta de intel
ligencia cabal dos negocios de agricultura , e do commercio ,
ou por negligencia , em nada tinham feito cessar as malversa
ções , de que foram arguidas todas as outras juntas, até á pro
xima preterita exclusivamente.
« È tambem para as cohibir, e reduzir aos seus justos de
veres, foram necessarias as outras grandes fadigas, e as outras
numerosas providencias, que nos sobreditos livros de registo
se acham manifestas.
« De tudo o sobredito resulta uma, e evidente demons
tração de que no ministerio não houve jamais a menor condes
cendencia lucrativa, nem com os inglezes do Porto,nem com os
senhores e colonos das vinhas do Douro , nem com as referidas
juntas; mas sim uma constante , e perpetua vontade, sempre
inalteravel de rebater as opposições dos primeiros, e de cohi
bir as fraudes dos segundos, e de reduzir aos termos de seus
deveres os terceiros, sustentando -lhe a autoridade, em quanto
se fazia preciso para a conservação de um estabelecimento , que
tem produzido em utilidade publica do Reino um tão grande
numero de milhões de cruzados, como provam os calculos an
nuaes do consumo dos vinhos de todas as qualidades, e repri
mindo os ditos provedor, e deputados em tudo o que se des
viavam das suas obrigações.
« E nem os inglezes para não serem tão fortemente com
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 73

batidos, nem os colonos do Douro para não serem presos, e


castigados, nem os provedores e deputados da referida junta
para não serem cohibidos, e removidos dos logares, logo que
na distancia de Lisboa chegou a constar que não cumpriam
com as suas obrigações dos ditos logares, haviam de fazer ao
gabinete donativos de grande importancia.
« As compras que fizeram de vinho de Oeiras, nunca podiam
ter a falsa interpretação de donativos. Contrariamente foram
sempre umas clarissimas provas, de que n'ellas por uma parte

procurou a referida junta as maiores vantagens da companhia ,


e pela outra parte preferiu sempre o damno das ditas vinhas,
aos interesses publicos da companhia, e aos seus proprios in
teresses particulares .
«Os negociantes inglezes e nacionaes da cidade do Por
to (como os outros da sua profissão) revolvem , e especulam
tudo o que lhes pode trazer conveniencia ; constou que foram
descobrir nos livros das entradas da Alfandega d'aquella Ci
dade, que antes do nocivo invento da baga de sabugueiro, (com
que corromperam os vinhos com o intento de os tingir) se cos
tumavam transportar para a mesma cidade os vinhos de Oei
ras pelo preço de 50 :000 réis , cada pipa, para darem aos do
Alto Douro a côr fechada , e firme, que elles não tem por sua
naturesa propria.»
De novo, e por ultimo, interrompo o fio d’esta Apologia
para alludir, como prova dos abusos, a que Pombal se refere
no paragrapho antecedente, ao Alvará de 30 de agosto de 1757
que lhes punha cobro . N'elle se prohibia que, da sua publica
ção em diante, se lançassem estrumes nas vinhas comprehendi
das dentro dos limites das demarcações, que se mandaram fa
zer nas duas margens do Rio Douro, sob pena de, pela pri
meira vez, ficarem os donos d'ellas inhibidos de venderem os
vinhos, que d'ellas colhessem , para embarque pelo tempo de
cinco annos, sendo- lhes tomados , e pagos os referidos vinhos
para ramo pelo preço de dez mil e quinhentos réis; augmen
tando a pena pela segunda vez ; e sendo -lhe confiscados com a
propriedade a beneficio dos interessados na mesma companhia
pela terceira : e bem assim prohibia, debaixo das mesmas pe
nas, que se lançasse a baga de sabugueiro nos ditos vinhos.
74 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Ás graves imputações, que a feitoria britanica no Porto fi


zera n’aquella epoca relativamente á adulteração dos vinhos do
Douro, responderam os Commissarios do Alto Douro : Que a
feitoria era a causa da decadencia dos vinhos do Douro, pois
que o seu vinho sobre bom , tinha passado ao estado de melhor ;
quizeram que excedesse ainda mais os limites, que lhe facul
tou a naturesa, e que sendo bebido, fosse um fogo potavel nos
espiritos, uma polvora incendiada no queimar, uma tinta de
escrever na côr , um Brazil na doçura , e uma India no aro
matico ! »
« Passei então, continua Pombal, a informar -me, e achei
que era verdadeiro o que se tinha referido, que com effeito o
dito vinho de Oeyras era tão coberto, e tinha tantos espiritos,
que uma pipa delle tingia , e espiritualisava dez pipas do outro
vinho do Douro , e que tendo a companhia a seu favor o pri
meiro dos ditos vinhos, ficaria com uma notavel vantagem so
bre os Inglezes, que só compravam os segundos.
« Sobre estes conhecimentos ordenei pois ao feitor de Oei
ras, que fazendo trabalhar nos lagares os vinhos da minha la
vra na mesma forma, em que os Inglezes trabalhavam os do
Douro, e mandando vir para isso homens peritos, os vendesse
todos á companhia, sem exceder o preço 36 :000 réis taxado
no § 4.° da Lei de 30 de agosto de 1759.
Representou logo o dito feitor que os vinhos trabalhados
n'aquella fórma, fazendo nos lagares uma excessiva despesa
diminuiam muito na sua qualidade , e que o dito § 4.° da lei
de 30 de agosto de 1759 fora restricto aos vinhos do Douro ,
e em nada pugnava com os de Oeiras tão superiores na sua
qualidade.
« Fez então a junta offerecer-me50 $ 000 réis , dizendo que
lhe tinha constado ser aquelle o antecedente preço dos vinhos
generosos, e cobertos de Oeiras .
«Mandaram -me tentar os Inglezes com os preços de 15 e
18 moedas. A todos respondi que, se eu estivesse na vida par
ticular da minha casa ,mandaria vender os meus vinhos a quem
mos pagasse melhor, que porém reputava a companhia, co
mo filha do meu ministerio , que lhe queria fazer a vantagem
de serem os seus vinhos sempre superiores aos dos Inglezes,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 75

e que ainda que, a referida taxa não comprehendesse os de Oei


ras, n'elles não se excederia nunca o dito preço de 36 $ 000 réis,
estabelecido para os do Douro, posto que inferiores.
« De sorte que nas referidas compras foi a dita companhia
sempre que ganhou direito, e credito, e fui eu o que em bene
ficio della perdi tudo, o que podia avançar nas maiorias dos
referidos preços, que se me offereceram , e podia lucrar além
dos ditos 36 $ 000 réis , que ficaram sempre sendo inalteraveis .)

MARQUEZ DE POMBAL .
CAPITULO VII

Estabelecimento dos jesuitas em Portugal; Simão Rodrigues ; sua elevação ; os


jesuitas tratam de senhorearem -se da direcção da universidade ; os seus pro
jectos e obras ; contraste entre os papas, Pio V e Gregorio XIII; Gaspar de
Saul; os jesuitas dirigem um vasto commercio na America meridional ; troca
de territorio entre Portugal e Hespanha; opposição dos jesuitas ; desastres dos
alliados ; medidas decisivas de Pombal; demissão do confessor do rei ; queixas
ao pontifice contra os jesuitas ; o cardeal Saldanha é nomeado reformador da
companhia de Jesus ; primeiras prohibições impostas aos jesuitas; são suspen
sos de confessar e prégar ; extractos dos officios da secretaria de estado inter
calados no capitulo.

Os jesuitas, cujas ambiciosas intrigas e amor do poder


contribuiram por tanto tempo para alimentar aquelle espirito
do fanatismo, que conservou tantos povos na ignorancia e ser
vidão , estabeleceram -se em Portugal no reinado de D. João III,
em 1540 .
Havia pouco que Ignacio Loyola, que fora soldado ,fundara
na Hespanha esta ordem , que brevemente foi introduzida em

Portugal por um archi-hypocrita , um tal Simão Rodrigues, que,


sem embargo da baixeza do seu nascimento , sendo filho d'um
remendão, aspirava aos mais impossiveis fins, concebendo por
isso os mais ambiciosos projectos. Este homem , unindo -se a
Francisco Xavier , obtiveram licença para visitarem o Oriente
na qualidade de missionarios . Xavier marchou ao seu destino ,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 77

e, em premio dos seus trabalhos e do zelo, com que se empre


gou na conversão dos indios, foi depois da sua morte canoni
sado pela Igreja de Roma. Todavia não foram , desde o princi
pio , aquellas as intenções de Simão. Vendo que certamente
ganharia mais conservando-se na sua patria , de tal modo se
insinuou na graça da corte, que o fizeram preceptor do prin
cipe herdeiro em 1543, conseguindo que pouco depois fosse
nomeado um jesuita para confessor da rainha . Isto era apenas
um élo da vasta cadeia politica , que os jesuitas forjavam en
tão na Europa , vindo esta ordem em breve a possuir , por meio
dos confessores, os segredos de quasi todos os principes da Eu
ropa, no que ganhavam o poder de moral e physicamente go
vernar os seus reaes penitentes. Aspirando assim ao predomi
nio espiritual como ao politico, era de esperar a rapidez, com
que progrediram nas suas diligencias attendendo a sua calcu
lada regra de viver, e ás opportunidades, que o seu officio de
confessores lhes facultava para imperarem sobre as fraquesas
dos seus penitentes excitando lhes o medo das penas. Simão ,
vendo -se tão bem collocado , não houve escrupulos que o de
tivessem um instante na prosecução dos seus projectos de en
grandecimento , tendo por isso bem depressa a satisfação de
conseguir , que a sua ordem fosse confiada a direcção da uni
versidade de Coimbra. Foi a partir de tão desgraçada epoca

que gradualmente declinou a litteratura portugueza, cuja nobre


linguagem , que recordava os descobrimentos dos seus grandes
navegadores, os feitos dos seus heroes d'outr'ora, e a sabedo
ria dos seus insignes legisladores, se limitou depois a escriptos
de biographia evangelica , á publicação de falsas prophecias,
á descripção de reliquias milagrosas, ou a contos, de que se
incumbiam os jesuitas, sobre soffrimentos ficticios de martyres,
phantasticos, ou sobre o medonho castigo de detestaveis he
reges.
O tempo era -lhes opportuno para o augmento da sua in
fluencia e de seu poder, sendo tal a sua presumpção que che
garam , segundo se diz , a conceber o plano de formarem em
Portugal um reino áparte, governado pelo Geral da ordem ,á si
milhança da outr'ora famigerada ordem dos cavalleiros de Mal
ta. Comtudo, se era realmente esta a sua intenção, a annexa
78 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

ção de Portugal á Hespanha em 1580 veio frustrar as suas


esperanças, e entenderam que era prudente dissimular o des
prazer, com que se submettiam ao governo de Philippe II.
Alem do plano d'estas Memorias não comportar , talvez
tambem se não conciliasse com os sentimentos de muitos lei
tores, o seguir, passo a passo, os jesuitas até vel-os chegar ao
funesto apogeo , que ao mesmo tempo alcançaram sobre a chris
tandade. Não só a idéa mesmo dos actos de perversidade ja
mais deixou de repugnar ao homem justo e religioso ,mas nem
tão pouco asmaquinações, intrigas, crimes e atrocidades d'esta
seita nos forneceriam sequer um feito , que merecesse a nossa ad
miração, ou uma acção digna de louvar. São bem conhecidos,
para que precisem ser recapitulados, os factos, que attestam a
sua monstruosa doutrina sobre o regicidio , e desthronisação
dos reis , o que em vão se pertende negar; a parte conspicua
que tiveram no assassinato de Henrique IV de França ; e os
differentes e quasi infinitos tractos secretos, repetidos castigos
e crueis envenenamentos, em que foram implicados. Tudo quan
to se assevera , que elles perpetraram durante o seu dominio
assolador, não caberia n'um romance : pareceriam incriveis mui
tos dos horrores, que elles provocaram , se não conhecessemos
que eram filhos do proprio espirito do fanatismo religioso , que
se glorificou na matança de S. Bartholomeu , e se sanctificou
nas Vesperas Sicilianas.
Diz -se que Pio V chorou ao ouvir narrar a matança de S.
Bartholomeu, em quanto que o seu successor, Gregorio XIII ,
dirigiu publicas graças a Deus, e enviou um legado a Paris
com a missão de congratular Carlos IX pelo bom exito , e ex
hortal-o a que continuasse a boa obra. Um escriptor francez
refere de Gaspard de Saulx, marechal de França , um caso que
bem demonstra o grao de fanatismo que abraçava então to
das as classes : Seo filho, que escreveo memorias, refere que
seo pai, achando-se no leito da morte fez uma confissão geralde
sua vida , e que tendo- lhe dito o confessor com um ar admi
rado : Pois quel Vós não me fallais da matança de S. Bartho
lomeu ? Eu à considero , respondeo o marechal, como uma ac
ção meritoria, que deve fazer esquecer todos meus outros pec
cados.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 79

Ainda que uma bulla do


papa concedera aos jesuitas a li
berdade de se estabelecerem em Portugal em 1540, restrin
gindo o seu numero a sessenta , comtudo, em 1543, alcan
çaram uma outra para o poderem illimitar, do que resultou
acharem -se, no principio do seculo XVIII, os dominios portu
guezes infectados de milhares d'elles de todas as classes e prin
cipios, levados domesmo espirito de ambição, quecaracterisava
a sua indole, pouco escrupulososa na escolha dos meios para
chegarem aos seus fins .
D. João V , subindo ao throno , ainda joven , vio -se desde
logo cercado pelos jesuitas, que obstruiram todas as avenidas
por onde alguem podesse approximar-se do rei ; e, para lhes
desviarem a attenção dos negocios publicos, trataram de ali
mentar a sua piedade, e de atear- lhe a paixão de fundar casas
religiosas, e de edificar dispendiosos palacios.
Entretanto não permaneceram na inacção nas outras par
tes das possessões portuguezas, e acobertando-se com o pretexto
de converterem os indios da America meridional, enviaram
missionarios para o Paraguay, onde se entregaram quasi ex
clusivamente a um grande e lucroso trafico. Não satisfeitos
ainda com estas vantagens, aspiraram depois a estabelecerem ,
como ja o haviam querido fazer em Portugal, um
governo in
dependente dirigido pelo seu Geral, que era este o titulo do
cabeça da ordem . Tendo, porem , a Hespanha e Portugal en
cetado negociações para se effectuar uma troca de territorios
n'aquellas possessões, foram os seus designios frustrados, não
servindo a resistencia , que este malogro e o seu pezar os in
citaram a oppôr, senão para accellerar a sua queda .
Vejamos, pois, os factos attinentes a este negocio . Pouco
antes da morte de D. João V , haviam as côrtes de Portugal e
Hespanha concordado em certa troca de territorio , cujos pre
liminares declaravam , que a Hespanha conservaria a provincia
da Nova Colonia disputada , havia muito tempo ,e Portugalficaria
com as sete missões do Paraguay . Para se pôr termo ao trata
do mandaram -se em 1751, instrucções da Europa aos commis
sionados das duas corôas para effectuarem a troca sem demora.
Quando , porem , estes quizeram cumpril-as, levantou -se tão ve
hemente opposição , com especialidade nas sete missões, que
80 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

obrigou Andrade, governador do Rio de Janeiro, a participar


ao seu ministro em Lisboa , não só a falta de forças para po
der pôr em execução o tratado, mas que eram os jesuitas a
causa da opposição, que encontrava ; e para prova de que elles
possuiam um dos principaes elementos de effectiva resistencia
basta dizer que tinham formado , até certo ponto, uma repu
blica independente nasmargens do Uruguay, e Paraguay, cons
tituida por trinta e uma villas com uma população approxima
da a cem mil almas. Estando as cousas n'este estado immatu
ro , trataram elles de empregar todos os meios para que os in
digenas não communicassem , de modo nenhum , com os hes
panhoes e os portuguezes ; e, entre outros , prohibiram - lhes que
aprendessem a lingua de qualquer d'estes, entretanto que elles
estudavam , e se applicavam assidua e incançavelmente ao co
nhecimento da dos mesmos indigenas, compondo para esse fim
diccionarios e grammaticas.

Não é de crer que homens tão versados na impostura , tão


familiares na intriga, e tão habeis na politica , trabalhassem de
balde para preencher os seus fins, conseguindo por isso im
plantar no espirito dos indios um odio implacavel aos hespa
nhões e aos portuguezes, representando -os como inimigos de
Deus e da humanidade, e que o seu sangue seria um sacrificio
bem aceito , visto que a unica intenção, com que vinham , era
de destruil -os, a elles e aos seus padres, para aniquilarem a
sua religião e reduzil -os á mais desgraçada escravidão. As ar
dilesas, a que recorreram para conseguir os seus intentos, fo
ram a um tempo ridiculas e terriveis. Concordaram , por exem

plo, que todo hespanhol ou portuguez, que ficasse prisioneiro


de guerra, seria degolado para que, pela influencia , que tinham
no demonio , não resuscitassem . Comtudo estes meios eram ape
nas auxiliares para estorvarem a desejada troca de territorio .
Portanto, sem despresarem meios alguns positivos de tentarem
a guerra offensiva e defensiva, foi tal o esforço , com que tra
balharam , que se viram dentro em pouco em estado de desa
fiar as forças unidas das duas coroas, o que cedo provou a
infructuosa tentativa, que, para os submetter, fizeram o Mar
quez de Valdelirios, general hespanhol, e Andrade, governa
dor do Rio de Janeiro. Em quanto o primeiro entrava no Pa
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 81

raguay com tres mil homens por um lado, avançava o segundo


com mil pelo outro. Todavia , foi tal a falta de tactica , ou , se
gundo se pretende, a deficiencia de cavallos, viveres e muni
ções, além d’uma epidemia, que atacou as tropas, que os allia
dos nunca poderam reunir as suas forças, entretanto que a
opposição , que os indios offereciam , era tão obstinada e irredu
zivel, que se viram por fim obrigados a ajustar tregoas até che
garem da Europa novas instrucções. Estes factos davam -se
em 1754 , quando Pombal enviou á America um seu irmão
para, cooperando com o bispo do Paraguay, pôrem fim ao do
minio dos jesuitas.
Pouco depois renovaram -se as hostilidades,mas com fracos
resultados. O jesuitas defenderam -se com habilidade e precau
ção contra as forças unidas dos hespanhoes e portuguezes du
rante 1754 e 1755 , mas em 1756 obteve Andrade algumas
vantagens sobre elles, e senhoreou -se dos seus estabelecimentos
a éste do rio Uruguay. Podemos concluir que esta guerra foi
desgraçada e prejudicial pelo facto , que já havia custado a
Portugal perto de tres milhões de libras.
Não carece de demonstração , que a maneira , como estes
negocios caminhavam , pouco devia conciliar -se com a força
intellectual e temperamento physico de Pombal; portanto exas
perado pela continua resistencia dos jesuitas, e pela falta de
cumprimento do alvará , que mandava , que os indios nas cou
sas temporaes ficassem dependentes das autoridades seculares,
e não dos missionarios, o energico ministro resolveu adoptar
medidas mais peremptorias e positivas. Comtudo esta empresa
tinha suas difficuldades. O poder e a influencia, que os jesui
tas gosavam em Lisboa , ainda eram consideraveis. Moreira era
o confessor d'el-rei, e a outros da sua ordem estava confiada
a direcção da familia real. Todavia Pombal não perdeu o ani
mo. D. José era homem illustrado, e , estando bem sciente do
caracter e intrigas dos jesuitas, tanto no interior do reino co
mo fóra d'elle , sabia que só tinha dous extremos para onde
appellar : sustentar o seu ministro, ou cair debaixo do jugo
dos seus inimigos. Por conseguinte, a 19 de setembro de 1757
decidiu -se dar -lhes um golpe ousado , que foi nem mais nem
menos que a demissão do confessor de sua magestade, prohi
VOLUME I 7
82 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

bindo-se ao mesmo tempo a entrada no paço a qualquer je


suita , sem a expressa licença d'el-rei .Pombal, ferindo com este
golpe os seus intrigantes e formidaveis inimigos , não perdeu
tempo em proseguir a sua obra com incançavel esforço e in
flexivel energia ; de sorte que, dezenove dias depois, a 8 d'ou
tubro do mesmo anno, mandou uma instrucção a D. Francisco
d’Almada , ministro portuguez na corte de Roma, para que,
« pedindo, e obtendo do Santissimo Padre uma audiencia par
ticular, e secretissima» o informasse plenamente de tudo o , que
relativamente aos jesuitas referia na mesma instrucção , a qual
diz , que « se omittiam n’ella os muitos, e mui aggravantes es
candalos, que se não podiam referir sem maior indecencia , e
pejo de quem os escrevesse, e ouvisse » Além d’isto deseja o
ministro fazer ver a Sua Santidade, que os jesuitas « haviam
sacrificado todas as obrigações christãs, religiosas, naturaes ,
e politicas a uma cega, insolita, e interminavel ambição de go
vernos politicos, e temporaes ; de acquisições, e conquistas de
fazendas alheias, e até de usurpações de estados.» E , ainda
mais , que « como toda a demora , que houvesse em obviar a tão
grandes desordens, teria a consequencia de as fazer irremedia
veis ;mandou El-Rei recolher ás respectivas casas das suas
filiações todos os confessores das pessoas reaes, que eram
jesuitas. Sua Magestade supplica ao mesmo tempo a Sua San
tidade, que se sirva de dar sobre esta importante materia tão
efficazes providencias, que os abusos , excessos, e transgressões
dos jesuitas cessem de uma vez. E o mesmo Senhor espera que
na paternal, e apostolica providencia de Sua Santidade não
falte a menor parte do que fazem preciso tão notorias urgencias,
para que uma religião, que tem feito tantos serviços á igreja
de Deus, não acabe n’estes reinos e seus dominios pela corru
pção dos costumes dos seus religiosos, e pelo geral escandalo
que elles tem causado com tão sucessivos, e estranhos abusos .»
Pombal não se satisfez com esta unica representação . A 10
de fevereiro de 1758 mandou uma carta ao enviado de Por
tugal na curia de Roma, ordenando- lhe que expozesse a Sua
Santidade as desordens, e os insultos, que os religiosos jesuitas
tinham accumulado no Maranhão , desde os principios do rei
nado de Sua Magestade com o mau fim de impossibilitarem a
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 83

execução do tratado de limites , e as sublevações, que tambem


fizeram , e intentaram com o mesmo objecto nas aldeas do
Paraguay, e Uruguay, dentro do reino, e até dentro do Paço,
não obstante ter o mesmo Senhor despedido do serviço do Paço
os confessores d'aquella profissão . Além d’isto, que , quando a

Companhia do Grão Pará e Maranhão estava para fundar -se,


elles lhe fizeram uma desesperadissima opposição, não vendo
n’ella mais , que o termo do consideravel commercio , que mo
nopolisavam n’aquellas provincias. Que entre outros excessos
a que o seu furor os incitara , exclamara o padre Ballester pu
blicamente do pulpito que, « quem entrasse n'aquella compa
nhia , não entraria na companhia de Christo Senhor Nosso .»
Para certificar tudo , quanto se allegava sobre a enormidade
da sua má conducta , juntaram -se provas dos seus attentados
tendentes a augmentarem a confusão durante o terremoto ; da
opposição , que fizeram á fundação da companhia dos vinhos
do Porto ; e de terem sido os instigadores dos tumultos, que
houve n'aquella cidade ; chegando elles a asseverar « que os vi
nhos da dita companhia não eram capazes para Sacrificio da
Missa ;» e isto , finalmente, além d'outras offensas, que a mes
ma carta referia , e que é escusado circumstanciar .
Em vista de taes representações, que sem duvida nenhu
ma se achavam bem substanciadas, para que podessem admit
tir qualquer evasiva ou contradicção , Benedicto XIV , por meio
d'um breve de 1 d'abril de 1758, nomeou o cardeal Saldanha
visitador e reformador da sociedade de Jesus nos reinos de Por
tugal e do Algarve, e em todas as possessões portuguezas ul
tramarinas.
Como a pessima conducta da sociedade era notoria , não
carecia por isso de prolongado exame. Portanto , ainda bem

não haviam chegado de Roma as credenciaes, quando o viga


rio apostolico publicou logo um edital a 15 de maio de 1758 ,
declarando que os jesuitas portuguezes , contra todas as leis de
Deus e das nações, dirigiam um commercio illicito , e que por
isso prohibia que, da presente data em diante, o continuassem
debaixo das penas e castigos estabelecidos pelas leis . Não era
esta a primeira vez, em que a autoridade ecclesiastica inter
vinha para acabar com o trafico illicito de que os jesuitas eram
84 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

senhores na America . Antes de Pombal tomar posse da admi


nistração do reino, já se tinha chamado a attenção da curia de
Roma para obviar a estes abusos. Benedicto XIV , por meio de
uma bulla de fevereiro de 1741, mandara prohibir a todas as
ordens religiosas (sem especificar nenhuma) toda e qualquer
sorte de trafico ou commercio, bem como todo o genero de po

der temporal, e que podessem comprar ou vender os indios,


de cuja conversão deviam tratar. Em dezembro do mesmo anno
foi promulgada outra bulla , que dizia respeito a todas as clas
ses em geral, mas em especial aos jesuitas, porque, como se
declarava , não tinham dado cumprimento á primeira . Esta , de
baixo do nome de Immensa Pastorum , é a primeira bulla pon
tificia notavel que se expediu para reprimir o máu procedimen
to dos padres missionarios da ordem de Jesus na Asia, Africa
e America , Brasil e Paraguay e n’ella se prohibiu debaixo da
pena de excommunhão para tudo ,mas especialmente para quem
reduzisse os Indios a escravos, ou se atrevesse a vendel- os,
compral-os , trocal-os, ou dal-os ; separal-os de suas mulheres
e filhos ; despojal-os dos seus bens, e fazendas; leval-os para
outras terras ; transportal -os ou por qualquer modo prival-os
da sua liberdade, e retel-os em escravidão ; etc. Eis, pois , uma
clarissima prova dos factos que realmente continuavam a dar

se. E , acaso , teria Benedicto XIV promulgado uma tal bulla ,


se uma urgentissima necessidade o não levasse a dar este
passo ? Haverá algum campeão da sociedade de Jesus, que ac
cuse o Padre Santo de, n’este caso, ter sido injusto para com
ella ? E que devemos pensar d'estes abusos cincoenta annos
antes de Pombal emprehender a sua reforma ?
Em seguida , para completar a derrota d'aquella insolente
companhia , publicou o cardeal patriarcha de Lisboa o seguinte
inopinado edital, a 7 de junho de 1758, que mandou affixar
nas logares publicos da cidade e patriarchado: — « Por justos
motivos, que nos foram presentes, e muito do serviço de Deus,
e do publico havemos por suspensos do exercicio de confessar ,
e prégar em todo o nosso patriarchado aos padres da Compa
nhia de JESUS por ora em quanto não ordenarmos o contra
rio .

Entretanto que Pombal assim fazia felizmente restituir ao


MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 85

seu soberano e ao governo o poder e a influencia, que os je


suitas tinham usurpado tanto em Portugal como na America ,
e que em toda a parte se reconhecesse a sabedoria de Sua San
tidade pelo modo como procedera , praticava -se um atrocissimo
attentado contra a vida de D. José, em que os jesuitas eram
altamente implicados, e, por isso , teremos de interromper o
fio das negociações, que havia entre Portugal e a curia de
Roma, para descrevermos esta terrivel conspiração, que acabará
de demascarar aquelles padres, destruindo tão infernal seita.
Concluirei, finalmente , este capitulo apresentando extracto
d'um officio de mr. Hay, de 10 d'outubro de 1757, em que
Pombal mo
este ministro commenta o proemio da ruina , que
veu á sociedade de Jesus, do modo seguinte : « Como a Com
panhia dos padres de Jesus é muito poderosa n’este paiz, está
por isso imminente a sua queda : para o que concorrem os
grandes fundamentos, que ha para acreditar , que os obstaculos
que se teem opposto ás expedições das forças unidas (na Ame
rica meridional ) tem sido principalmente fomentados por elles . »
pois, inutil apresentar mais extractos n’este sentido , pois
que nenhum ha, que não tenda a provar a energia e a sabe
doria de Pombal.

A 24 de junho de 1758 foi o cardeal Saldanha elevado á


dignidade de patriarcha.
CAPITULO VIII

Observações sobre a perigosa posição dos principes; honra devida ao caracter


de D. José ; a conspiração do duque de Aveiro ; cumplices principaes ; atten
tado de regicidio ; segredo rigoroso em descobrir os criminosos ; prisão dos
conspiradores ; seu processo e sentença ; execução ; severidade justificada;
sorte do resto dos conspiradores ; anedocta do conde de S. Lourenço ; Mala
grida ; erige-se uma igreja em memoria do livramento milagroso do rei; ex
tractos dos officios da secretaria do estado intercalados no capitulo .

Raramente acontece que os principes possuam a intelligen


cia de justamente apreciarem a capacidade de seus ministros ;
donde se conclue que poucas são as vezes, que um soberano
fraco deposite a sua confiança , ou confie o seu governo a ho
as
mens destinados a supprir a falta d'aquelle dote , de que tant
vezes vemos carecer o throno. Esta deficiencia , porém , deve
com mais rasão attribuir-se ao abandono da primeira tutela e
ás maquinações movidas pelo interesse dos lisonjeiros, bem co
mo á enervação do ocio, e ás consequencias definhantes da
sensualidade, que um nascimento elevado tão largamente offe
rece. Ora, como as vontades, a que nunca obstaculo nenhum
se oppõe, sendo sempre satisfeitas, depressa se tornam em ca
prichos, e aquelle , a quem jámais contrariam , cedo acredita na
sua infallibilidade ; assim , o desventurado principe , na idade
em que pela sua innocencia deixa guiar-se pelo machiavelis
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 87

mo, e em que a experiencia ainda o não tem ensinado a des


confiar dos seus aduladores, deixa prender-se pelos malignos
laços , com que o cercam o interesse e a intriga , até chegar a
considerar-se um ente fóra do gremio das sympathias huma
nas ; por outro lado, grande é forçosamente aquelle espirito
que não deixa subjugar-se pela lisonja d'aquelles , que em suas
palavras e obras só procuram fazer que elle se considere su
perior ao restante da humanidade, julgando a sua autoridade
derivada directamente de Deus ; e estoico da mesma sorte o
coração , que é capaz de receber com indifferença , e repellir

sem commoção as attracções do prazer, e as tentações do de


leite , tão fortes nos palacios dos principes . Quão preciosa nos se
ria então a memoria d'um rei sabio , e quanto venerariamos o
caracter d'um principe moderado ! O soberano dotado da grande
faculdade de conhecer o genio d’um ministro , e do valor neces
sario para sustental-o na sua elevada e invejada posição, vê-se
geralmente cercado de homens distinctos pela sua probidade e
famigerada rectidão , e cuja intelligencia e talentos não só il
lustram as paginas da historia , mas até fazem reverberar um
raio da sua luz sobre o proprio monarcha. E , pois , este senti
mento , que busquei amplificar, que fez que Sully, o grande
prototypo de Pombal, exclamasse : Nunca são os bons vassalos,
que faltam aos reis : é o rei, que falta aos bons vassalos.
Felizmente, Portugal encontrou em D. José um espirito
que soube apreciar o genio de Pombal, e que não deixou sub
jugar-se pelos prejuisos do seculo e da nação ; mas, entretanto
que tributamos a devida admiração ás qualidades transcenden
tes do ministro, não nos esqueçamos de reconhecer o premio
da determinação , e a coroa de honra, que cabem ao soberano ,
tendo sustentado Pombal contra tantas intrigas, e contra a ma
licia de seus inimigos durante quasi trinta annos. No reinado
de D. João V teria Pombal passado a sua vida na terra , onde
nascera, ou , quando muito , ter -se-hia distinguido nos paizes
estrangeiros como diplomatico ;mas nunca teria chegado aquella
eminente situação, que lhe deu o poder de emprehender e con
summar as multiplices reformas, que caracterisam o importante
reinado de D. José .
É da inabalavel constancia e firmesa , com que o monarcha
88 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

sustentou o seu ministro, que temos a esperar a origem da hor


rorosa conspiração , a que no capitulo antecedente alludimos.
Os inimigos do ministro viram no rei o unico obstaculo, que se
oppunha á sua vingança, e por isso , cooperando com os je
suitas, resolveram assassinar um para destruirem o outro . O
cabeça d'esta conspiração era , nem mais nem menos que um
titular, e mordomomór do paço , o duque d'Aveiro, homem que
possuia a confiança e o valimento de D. José, mas que, cheio
de uma ambição e orgulho sem limites, e envilecido pela
avaresa, não era dotado de qualidade alguma physica ou mo
ral, que compensasse estes defeitos. Quasi sempre se torna im
possivel justificar o procedimento dos homens, que se acham
em certas situações ; porém , em quanto ao duque d'Aveiro , pa
rece que o impellira aquelle descaminho o resentimento de
chimericas offensas, ou talvez a supposição d'algum infundado
despreso do rei ou do ministro , sendo este morbido sentimento
alimentado e amadurecido pelos jesuitas, que o rodeiavam . Se
isto não explica sufficientemente o procedimento do duque, não
podemos então attribuir a causa de adherir a uma conspiração
tramada contra o rei, de cuja confiança era depositario, senão
c
á hypothese de, que fosse apaz de aproveitar qualquer atten
tado, donde elle visse que podia resultar o engrandecimento da
sua familia , bem como a acquisição de novas riquesas. O se
gundo dos conspiradores era o marquez de Tavora , homem de
acanhado saber e genio brando , e por conseguinte um dos nu
merosos instrumentos do mal, que os insidiosos sempre acham
promptos a coadjuval-os e a auxilial-os. Com quanto seja des
necessario determo-nos aqui na analyse minuciosa dos motivos
particulares, que levaram este fidalgo a conspirar contra o seu
soberano , podemos comtudo notar que, tendo sua mulher, cuja
paixão predominante era a ambição , solicitado o titulo de dú
que para seu marido, e sendo -lhe aquelle negado, émuito pos
sivel, que persuadisse o marquez a vingar, por meio do regici
dio , a suamallograda pretenção . Dotada d'um espirito denodado
e intrepido , tornou -se por isso a alma da conspiração, e , a tão
raros dotes feminis , juntavam -se a grande influencia e poder
que gosava , e que a riquesa alliada á nobresa e sustentada pelo
talento jamais deixa de assegurar. Tinha sido uma das mais
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 89

bellas damas da côrte, e ainda conservava , na elegancia das


suas maneiras, vestigios d’essa expressão, que prende e arrasta
todos os, que d'ella se approximam .
A estes chefes da conspiração juntaram -se os filhos do
marquez, Luiz Bernardo e José Maria de Tavora , possuindo
um toda a violencia e ambição da mãe, e imitando o outro seu
pae na disposição branda e pacifica, e tendo-se por isso deixa
do , como elle, facilmente seduzir para coadjuvar os projectos
dos outros. Além d'estes, entravam tambem na conspiração, D.
Jeronymo d'Ataide, conde d'Atouguia, homem de poucos co
nhecimentos e fraca reputação , e mais cinco individuos deme
nos importancia, que n’ella se alistaram como instrumentos
executivos do regicidio . Estando, pois , tudo combinado, deter
minaram os conspiradores pôr o designio em execução na noute
de 3 de setembro de 1758.

Sabendo que o rei só recolhia ao paço pelo meio da noute ,


os conspiradores concordaram em postar-se em differentes pon
tos da estrada, por onde elle passava , divididos em varios gru
pos, para que, no caso que escapasse do primeiro assalto, fosse
victima do fogo d'uns ou d'outros. Eram onze horas d'aquella
memoravel noute, quando, n’uma sege, sem suspeita do peri
go, e acompanhado só pelo seu particular Teixeira. D. José se
approximou da primeira embuscada dos conspiradores , com
posta do duque d'Aveiro e d’um João Miguel, ambos a cavallo
e armados de bacamartes , os quaes, tendo esperado com im
paciencia que a sege passasse defronte d'elles, com a precipi
tação , que caracterisa os assassinos,desfecharam então sobre ella
as suas armas, uma das quaes, felizmente para o rei, errou
fogo, não tendo a outra causado damno algum . Atterado, e
sem saber se havia algum perigo mais a temer, o boleeiro
avanç ou em direcção ao logar, onde se achavam postados An
tonio Alvares Ferreira e José Polycarpo, que no mesmo instante
correram sobre a sege, e dispararam as armas, que estavam
carregadas com metralha, que a atravessou por todos os lados
e foi ferir gravemente o rei em varias partes. Todavia o pru
dente monarcha não perdeu a presença de espirito , porque gri
não
tou ao boleeiro , que retrocedesse immediatamente, e , para
ir alv oro çar s
as pessoa reaes no paço , ordenou -lhe q u e se di
90 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

rigisse a casa do seu medico. A ordem era critica : mas o bo


leeiro obedeceu , e o rei, já ferido, escapou d'este modo as ou
tras embuscadas, que haviam de completar a sua destruição.
Irei esclarecendo e confirmando os factos, que vamos ven
do , com alguns extractos de varias correspondencias do minis
tro britannico,mr. Hay, que só dez dias depois do attentado de
regicidio , é que enviou ao seu governo um despacho informan
do-o do que acabava de occorrer. Tinham chegado a Lisboa no
ticias da morte da rainha de Hespanha, e por isso fôra orde
nado que a corte deitasse luto . Esta correspondencia era de 13
de setembro de 1758 , e fornece -nos um curioso exemplo a

respeito da etiqueta da corte n'aquella época. « Suspendeu -se


a execução d'esta ordem em consequencia do incommodo de
sua magestade fidelissima, por ser costume n'esta côrte andar
se de gala , quando alguma pessoa real se acha doente. Quando
fui ao paço saber da saude d'el-rei, disseram -me que elle, na
noute de segunda feira , 3 do corrente, na occasião em que pas
sava por um corredor dirigindo -se ao quarto da rainha , teve a
infelicidade de cair e fracturar o braço direito . Já oito vezes

foi sangrado, e, como é gordo e corpolento, os medicos o teem


aconselhado a que não faça uso d'aquelle braço, e se abstenha
dos negocios publicos por algum tempo , para n’elle evitar qual
quer juncção de humores.» Por isso a 7 de setembro foi pro
mulgado um decreto , que nomeava a rainha , regente durante
a enfermidade de D. José .
Mr. Hay estava mais sciente do occorrido do que se con
clue da parte da sua correspondencia , que acabamos de ver.
Comtudo, n’um postcriptum assim refere aquella desgraça :
« O que relativamente ao incommodo de D. José acabo de
dizer, foi exactamente o que no paco medisseram , mas a ver
dade é esta : Indo suamagestade na noute de segunda feira , 3
do corrente , acompanhado do seu particular, visitar uma se
nhora , (custumando n'estas occasiões ir o rei numa sege e o
particular n'outra ,mas infelizmente n’aquella noute iam ambos
em uma só ) foi aggredido por tres homens mascarados a ca
vallo , os quaes , tendo deixado passar os batedores, atacaram
o resto , atirando um ao boleeiro, e os outros dois á sege. O rei
ficou ferido no braço direito , e diz-se tambem que no lado es
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 91

querdo, mas livre de perigo . O particular e o boleeiro ficaram


muito feridos, sendo as feridas d'este mortaes. Diz -se que este
golpe se dirigia ao homem , e não ao soberano. Este successo
tem causado grande consternação no paço, onde procuram cui
dadosamente occultal-o, fallando, porem , o publico com mais
liberdade do que prudencia . O que seria d'esta infeliz nação ,
se o rei tivesse succumbido !»

N'outra correspondencia posterior dizmr.Hay que « a maior


parte da carga passou por baixo do braço do rei, atravessan
do- lhe a casaca , e tocando no collete, mas sem offender a ilhar
ga.» Por meio d’este milagre, exclamava elle , « foi salva a vi
da d’este excellente principe» . Esta conspiração é olhada com
o horror e abominação, que merece, e parece ter-se limitado a
uma familia , julgando o publico , pelas apparencias, que a sua
descoberta não arrasta comsigo nenhumas consequencias. D'es
ta sorte não é possivel attribuil- a senão a uma feroz e desme
surada ambição , cujo exemplo é talvez, consideradas todas as
circumstancias, o mais extraordinario , que possa encontrar-se
na historia de qualquer nação .»
Hoje , e n’um paiz como a Inglaterra, onde livre e impar
cialmente se administra a justiça tanto ao pobre como ao rico ,
talvez custe a crer que, sem embargo de tão infame attentado
contra a vida do soberano, se passaram tres mezes, durante os
quaes o rei se conservou em completa reclusão , sem que se to
massem medidas nenhumas para os offensores serem presos e
entregues aos tribunaes.

A sagacidade e juiso de Pombal exigiam que ninguem pe


netrasse em suas suspeitas, nem mesmo os verdadeiros cumpli
ces d’esta cobarde offensa. Não se julgue, porém , que se dei
xava passar o tempo em vão sem se proceder, a nenhumas
pesquisas secretas, sem se começar alguma inquirição occul
ta , ou que o ministro dormia no seu posto. Davam -se todos os
passos necessarios sem assustar os culpados, ou despertar a sua
desconfiança , e, entretanto que D. José se conservava recluso
no paço , obstava Pombal a que elle deixasse 'escapar uma uni
ca palavra , um unico gesto , que trahisse as suas intenções . Este
ominoso silencio assustava os conspiradores, e parecia annun
ciar uma proxima tempestade. Uma carta, que então se achou
92 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

entre os papeis do marquez de Tavora , diz : « O silencio d'este


homem causa-me espanto. Parece perfeitamente descançado so
bre o que acaba de occorrer. » Porém , ainda que Pombal em
pregava todo o cuidado em occultar o seu juiso, o publico emit
tia bem alto a sua opinião, e o rumor apontava os criminosos .
Portanto , só quando viu satisfeitas as suas investigações sobre
todos os pontos ligados a esta conspiração, é que publicou , a 9
de dezembro , um edital referindo o caso com todos os seus pro
menores , e offerendo um premio pela apprehensão dos regici
das.

1
Quatro dias depois, isto é, a 13 de dezembro, começou a
obra da justiça retribuitiva pela prisão do marquez de Tavora,
seus dous filhos, quatro irmãos, genros , o conde d'Atouguia e
o marquez d'Alorna , juntamente com D. Manoel de Sousa Ca
>

lhariz, os quaes foram todos, com alguns dos seus criados, met
tidos nos carceres de Belem .
A marqueza de Tavora foi encerrada n’uma casa de reli
giosas, sendo os outros membros da sua familia do mesmo mo
do presos, ou guardados em conventos. Entretanto foram tam

bem presos o conde d'Obidos, Antonio da Costa Freire, pro


curador geral da corða , e o conde da Ribeira, tendo os jesuitas
a estricta prohibição de sairem dos seus respectivos conventos.
0 marquez de Tavora tinha a patente de general do exer
cito. Uma correspondencia de 30 de dezembro de 1758 nos
informa sobre os promenores da prisão d'alguns dos conspira
dores: « O general não estando em casa, quando os officiaes ali
se dirigiram , e sabendo que muitos dos seus parentes foram
presos, dirigiu -se n’essa mesma manhã ao paço , e quiz falar a
el-rei. Porém , ordenou -se- lhe, em nome de sua magestade , que
entregasse a espada , e foi conduzido preso ao paço da rainha,
onde se tinham preparado alguns quartos para os presos.»
Além d'isto , sabemos por eguaes vias, que a marqueza de
Tavora foi mandada para o convento das Grillas, e sua filha
para o de Santos; que as casas dos presos ficaram guardadas
por soldados, e que os quatro conventos pertencentes á socie
dade de Jesus foram cercados .

No primeiro de janeiro foram mandados para a Torre de


S. Julião o conde d'Óbidos e o da Ribeira ; a 4 foram distri
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 93

buidos por diversos conventos de freiras, a duqueza d'Aveiro ,


a condessa d'Atouguia , e a marqueza d'Alorna , com seus filhos ;
e a 11 foram custodiados oito jesuitas .
A prisão do duque d'Aveiro foi singular. Tinha -se retirado
para a quinta , que possuia em Azeitão , e estava á janella com
José Policarpo , seu criado, quando avistaram muitas pessoas a
cavallo , que se approximavam , e o criado,conjecturando com ra
são que eram os officiaes, que iam com ordem de prendel-os,
aconselhou o duque a que buscasse na fuga a salvação . Porém ,
como não podesse convencel-o d'uma cousa, nem persuadil-o a
outra, senão fugindo elle proprio , assim escapou aos officiaes
de justiça . O que é notavel, é que, sem embargo de se terem
offerecido dez mil cruzados a quem o prendesse, nunca se des
cobriu o seu retiro .

Preso o duque, e apprehendidos os seus papeis , foram es


tes examinados. Entre uma infinidade de documentos, que
eram outras tantas provas da conspiração, achou -se uma carta
que lhe fora dirigida, e que continha as seguintes palavras :
« Li o plano, que v. ex.a me remetteu sobre o grande negocio,
que está bem arranjado ; se a execução for conforme o proje
cto , parece-me impossivel que falhe.» E n'uma outra : «Appro
vo o designio de v . ex.?: debaixo das circumstancias actuaes
não ha escolha. Para acabar com a autoridade do rei Sebas
tião , é preciso aniquilar a do rei José.»
Constituiu -se immediatamente um tribunal para processar

os criminosos, e outro para ouvir os depoimentos em seu fa


vor. Porém , as confissões d'uns e o testemunho d'outros, pro
duziram provas tão manifestas do seu crime, que pouco mais
coube ao tribunal que pronunciar a sentença. Portanto , a 12
de janeiro , concluidas as inquirições, os tres ministros d'esta
do, como presidentes do tribunal, e mais sete juizes, assigna
ram o processo e a sentença do mesmo , condemnando onze dos
conspiradores a immediata pena de morte. Junta a esta peça
publicou-se uma relação larga e minuciosa das provas sobre
que a sentença do tribunal se fundou , e que demonstrava a
culpa dos conspiradores.
A sentença do duque d'Aveiro e do marquez de Tavora foi
que, « desnaturalisados, exhautorados das honras e privilegios
94 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

de portuguezes, e de vassallos, e criados etc., fossem levados


com baraço, e pregão á Praça do Caes do logar de Belem ; e
que n’ella em um cadafalso alto, levantado de sorte, que o seu
castigo fosse visto de todo o povo ; depois de serem rompidos
vivos , quebrando-se-lhes as oito canas das pernas, e dos bra
ços , fossem expostos em uma roda, para satisfação dos presen
tes e futuros vassallos d'este reino: e a que, depois de feita
esta execução fossem queimados vivos os mesmos réos com o
dito cadafalso , em que fossem justiçados, até que tudo pelo fo
go fosse reduzido a cinzas, e a pó, que seriam lançadas no mar,
para que d'elles, e da sua memoria não houvesse mais noticia .»
Além d'isto foram -lhes confiscados todos os bens, arrasados os
palacios, salgando -se o chão .
Luiz Bernardo e José Maria de Tavora , o conde d'Atou
guia , Braz José Romeiro , João Miguel, e Manoel Alvares foram
condemnados a eguaes penas com a differença de serem estran
gulados antes de serem rodados. Antonio Alvares Ferreira e Jo
sé Policarpo foram condemnados a serem queimados vivos ; mas
como este ultimo escapara, foi queimado em effigie . Finalmen
te, a marqueza de Tavora , attendendo á sua classe e sexo, te
ve por sentença o ser degolada .
Estas execuções tiveram logar no dia immediato aquelle, em
que as sentenças foram proferidas ; e, consumidos os cadave
res, lançou -se fogo ao cadafalso e aos proprios instrumentos
com que os criminosos foram executados, sendo as cinzas lan
çadas nas aguas do Tejo, para que nenhuns vestigios ficassem
de tão horrorosas offensas. O nome de Tavora foi abolido , e
mandou -se que de então para o futuro se ficaria chamando
« Rio da Morte » um rio que tinha aquelle nome.
Mr. Hay refere a execução dos delinquentes da maneira se
guinte :
«Sabbado, 13 do corrente, como fosse o dia destinado pa
ra a execução, na praça que fica defronte da casa, em que os
presos estavam guardados, levantou -se um cadafalso com oito
aspas em cima. N’um lado collocaram Antonio Alvares Ferrei
ra , e no outro a effigie de José Policarpo de Azevedo, de quem
ainda não ha noticias - pois foram estes os dois, que fizeram
fogo sobre a sege do rei. Pelas oito horas e meia da manhã co
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 95

meçou a execução . Os réos eram conduzidos a um e um debai


xo d'uma consideravel escolta. A marqueza de Tavora foi a pri
meira , que subiu ao cadafalso , onde com um só golpe foidego
lada , ficando depois o cadaver ali estendido, e coberto com um
panno de linho. Seus filhos José Maria de Tavora e o joven
marquez, o conde d'Atougia e tres criados do duque d'Aveiro
foram primeiro estrangulados presos a um poste, quebrando
se -lhes depois os braços e pernas com um malho de ferro . O
marquez de Tavora e o duque d'Aveiro soffreram vivos este
ultimo tormento , tendo o duque sido levado ao logar da exe
cução de rosto descoberto para maior affronta. Terminadas es
tas execuções foram os corpos emembros dos réos postos n’uma
roda , e cobertos com um panno . Porém , quando Antonio Al
vares Ferreira, cuja sentença foi ser queimado vivo, foi amar
rado ao poste, expozeram - lhe á vista os referidos corpos. Pon
do -se então fogo ás materias inflamaveis, que já estavam de
baixo do cadafalso , tudo , juntamente com os cadaveres, foi
reduzido a cinzas, sendo estas depois lançadas no rio.»
Não posso deixar de observar, anticipando outras observa
ções que a este respeito farei, que a severidade d’estas penas
não mereceu a minima censura do ministro inglez, mr. Hay,
que as olhou simplesmente como a consequencia do curso usual
da justiça em taes occasiões de regicidio.
Uma correspondencia d'este ministro , de 10 de fevereiro ,
dá -nos um curioso esclarecimento acerca d’este infame attenta
do contra a vida de D. José ; eil -o : « Como Sua Magestade
(Jorge II ) deseja que o informem de todos os promenores d'esta
conspiração, ha por isso uma circumstancia , que parece terem
occultado d’um modo engenhoso, sem que por esse motivo seja
menos acreditada , e que é a unica que se julga ter dado causa
á perfida conducta dos Tavoras — é pois as relações, que o rei
entretinha com a esposa do joven marquez, as quaes princi
piaram no tempo , em que o General era vice-rei da India, e
que duravam desde então. D'aqui se conclue todo o resto : é
talvez a causa das honras cummuladas, havia annos, sobre o
velho marquez e seus parentes , a mesma do seu desgosto por
ver a honra da sua familia, conspurcada . Quando os mais pa
rentes foram presos foi esta senhora mettida n’um convento,
96 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

sem ser d'aquelles, em que uma rigorosa disciplina se observa ,


e onde dizem que vive a seu bel prazer . »
É indubitavel, ainda que opposto ao espirito do codigo
mais moderado das leis modernas , que d'estas rigorosas penas
resultou a repressão d’outras conspirações , e que não só con
tribuiram para a segurança do rei, mas tambem para o socego
do paiz . Pois, se uma demasiada indulgencia tivesse havido na
applicação de tão crueis como, posso juntar, barbaras penas
com que a lei puniu os traidores , teria esta não só degenerado
em fraquesa , mas dado azo a novas conspirações, e talvez a
attentados de assassinato com mais seguro exito . Assim , foi
necessario um exemplo severo para, com a enormidade do cas
tigo, egualar a enormidade do crime de regicidio , de maneira
que o temor e o horror ficassem guardando a vida dos reis. O
que á primeira vista parece deshumano é quasi sempre o passo
mais acertado e benefico em similhantes conjuncções . Duas ou
tres vidas sacrificadas no começo d’um tumulto tem muitas
vezes abafado uma insurreição ; e está provado que este prin
cipio , já posto em execução em muitas occasiões de sedições
populares, é summamente proficuo á humanidade e á segurança
publica.
Duros e crueis tem sido os termos com que largamente e
muitas vezes se tem censurado Pombal, por consentir que du
rante a sua administração tivesse logar aquelle genero de sup
plicios, o que diriam então dos que se infligiram a Ravaillac ?
Diz - se que lhe deitaram nas feridas chumbo derretido , azeite
a ferver, enxofre e resina , sendo depois arrastado e esquarte
jado por quatro cavallos ! Verdade seja que esta barbara exe
cução teve logar n’uma época mais anterior, e estava em har
monia com o espirito do seculo. Todavia , a civilisada França
offerece -nos tambem um horroroso exemplo em dias mais re
centes. Na Chronologie Universelle (por Loève- Veimars) lê -se
a seguinte execução, que teve logar em 1766 , sete annos depois
da conspiração do duque d'Aveiro :
« O joven cavalheiro Labarre e alguns rapazes da sua eda
de, accusados de terem ultrajado um crucifixo, que estava n’u
ma ponte de Abberville, foram condemnados a padecerém a
amputação da lingua arrancada por meio de tenazes, a tortura
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 97

ordinaria e extraordinaria , e a serem queimados a fogo lento .


A sentença confirmada pelo parlamento de Paris foi executada
por cinco algozes . O cavalheiro Laborde depois de ter padecido
à tortura foi executado em Abberville. Este desgraçado rapaz
subio ao cadafalso com uma coragem tranquilla, e padeceo o
supplicio sem se queixar. Sua execução causou tal horror , que se
não atreveram a proseguir no processo dos demais accusados. »
Advirta -se , porém , que estes rigores da justiça não se li
mitaram só aos seculos passados, aos estados catholicos ou aos
povos, que jazem na barbaridade e no olvido. Ainda não ha
muito que na Prussia protestante, sob o governo do actual e
illustrado monarcha , um criminoso soffreu a odiosa execução,
que o Times publicou , ha dous annos,descrevendo-a da maneira
seguinte:
Execução do assassino do bispo de Ermeland. — Rudolph
Kühnapfel, o alfaiate, que assassinou o bispo Von Hatten e seu
mordomo, na sua residencia episcopal em Franenburgh , foi
executado na madrugada de 7 do corrente,no outeiro, que dista
cerca d'uma milha d'aquella cidade, proximoda estrada de El
ing. Os juizos pronunciados em ambos os processos pelos tri
bunaes do crime, foram acordes em condemnal-o á morte por
meio do supplicio da roda, que começaria pelas extremidades
inferiores do corpo acabando nas superiores ( von unten auf.)
A 15 do mez proximo preterito foi a sentença confirmada pelo
assentimento regio, que tomou uma nova formula . No reinado
proximo anterior costumava correr como se segue : - *Lemos a
sentença e ordenamos a sua execução . Hoje, adoptou o sobe
rano esta phrase : ‘Lemos esta sentença , e queremos que se de
livre curso á lei. O preso houve -se por muito tempo com bas
tante presença de espirito, sem patentear um só indicio de re
morso ou arrependimento até ao momento em que, na ultima
audiencia , lhe foi lida a sentença do tribunal, operando -se en
tão uma visivel alteração na sua conducta . A 28 do referido
mez, quando ouviu a ordem regia para a sua execução , estava
tão agitado , que não podia fallar, pelo que recebeu então o au
xilio espiritual do sacerdote. Na vespera do supplicio foi con
fessado e recebeu a communhão .» Agora vejamos como o El
bing Zeitung refere o caso :
VOLUME 1 8
98 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

«Ás quatro horas e meia da manhã foi o preso removido


de Braunsberg n’uma carreta bem escoltada, chegando ao lo
gar destinado para a execução ás seis horas.
Mais de 10 :000 pessoas affluiram de toda a diocese áquelle
logar ao romper do dia , sendo digno de notar-se que mais de
metade eram mulheres . O delinquente , tendo descido da car
reta n’um deploravel estado de desalento , tomou uma bebida
restaurante , que lhe foi administrada, sendo em seguida con
duzido ao cadafalso , onde, tirando- se - lhe as algemas, ajoelhou
com o padre, que o acompanhou , e orou. O presidente do tri
bunal de Braunsberg leu então a sentença, que o condemnava
a ser rodado, começando a tortura pelos pés, é voltando-se para
os tres algozes, concluiu com estas palavras:-E agora vol-o
entrego para o devido cumprimento d'esta sentença .
Quvindo isto , o réo olhou para o padre , tornou a ajoelhar
se , e murmurou uma breve oração . Levantando -se então , col
locou -se no cadafalso com fria resolução , e, recusando a ajuda
dos algozes, poz os braços e pernas na posição exigida ; depois
exclamou com voz firme — Deus se compadeça da minha po
bre almal Um dos algozes cobriu -lhe o rosto com um panno,
e o terrivel supplicio da roda começou . Em dez minutos deixou
aquelle desgraçado de existir, sendo o cadaver mettido n’um
caixão para isso já preparado. A ordem e o socego conserva
ram -se entre os espectadores, que guardaram um silencio ade
quado á terrivel scena , a queassistiram , e ao crime do paciente;
e, terminadas todas as cousas, foram -se retirando tambem em
boa ordem , ainda que visivel e profundamente commovidos.
Escusado é multiplicar exemplos: pois , se considerarmos as dif
ficuldades da situação de Pombal, e confrontarmos as circums
tancias, que acompanharam aquellas execuções em Portugal,
com os horrores, de que n'outros paizes tem sido revestida a
pena capital por crimes menos graves, estou convencido de
que, em vez de arguirmos Pombal de deshumanidade, antes
nos disporemos a admirar que elle tão moderadamente se en
tregasse ao espirito sanguinario do seculo.
Em junho de 1759 remunerou D. José o seu fiel ministro
com o titulo de conde d'Oeiras e com a commenda da ordem
de S. Miguel do arcebispado de Braga, insistindo além d’isso
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 99

em que, sempre que elle apparecesse em publico , o acompa


nhasse uma guarda de cavallaria para protegel -o da receiada
vingança dos parentes dos regicidas. Pouco depois , em julho
do mesmo anno, foi Francisco Xavier de Mendonça Furtado
do conselho de sua magestade, nomeado secretario de estado
adjunto ao conde d'Oeiras, seu irmão.
Antes de concluirmos este episodio nas presentes Memo
rias, diremos algumas palavras acerca das penas, que tiveram
os conspiradores, que não expiaram o seu crime no cadafalso.
É um documento , escripto pelo proprio marquez d'Alorna, em
quanto esteve preso, que a isso me habilita , e no qual declara
que usaram com elle menos rigor do que esperava ; donde se
conclue que os não trataram com severidade. Ao principio es
tiveram na fé de que os fariam passar pelos tractos, mas o
marquez confessa, que não se empregaram tão horriveis enge
nhos. Comtudo, mostra que não estava totalmente satisfeito ,
porque se queixa amargamente, servindo-se de expressões bem
infladas, de que os lençoes da sua cama não eram mudados as
vezes precisas ! E a constante allusão a tão insignificantes des
commodidades só serve a provocar o riso, e em especial, pelo
que a respeito das rações dos jesuitas se diz, crer -se-hia que
as privações dos presos no reinado de D. José eram em extre
mo terriveis. Na verdade, eram tratados com tão pouca seve
ridade, que o marquez, segundo elle mesmo conta , communi
cava constantemente com os seus parentes, permittindo-se- lhe,
ao mesmo tempo , sempre abastecer -se de novas provisões, não
só das cousas indispensaveis á vida, mas ainda das superfluas.
O conde d'Obidos, d'um temperamento taciturno e melan
colico , sempre que se lhe concedia que o seu confessor o visi
tasse duas vezes na semana , passava esses dias bem aprazivel.
Porem , nem elle, nem D. Manuel de Sousa, nem o conde da
Ribeira sobreviveram á sua prisão. O marquez d'Alorna refere
tambem com toda a devoção , que ao fazerem a cova para o
conde da Ribeira , se achou o cadaver d’um padre com o habito
em perfeito estado de conservação, sem embargo da quantidade
de cal e vinagre , que para o consumir se tinha deitado no caixão .

A maior parte dos conspiradores estavam possuidos do fa


natismo religioso , e taes foram sempre os mais aptos instru
100 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

mentos da ambição , quer os seus fins fossem bons ou máos.


Costa Freire e mais tres parentes dos Tavoras occupavam jun
tos a mesma prisão, gastando um d'estes todo o tempo a resar
em voz tão alta, que espantava os seus companheiros.
O conde de S. Lourenço , que passado algum tempo tam
bem foi preso, mas por motivo differente, nunca perdeu a sua
jovialidade durante a prisão . Tendo sido valido do rei, falla
va por isso com toda a liberdade, de que continuamente abu
sava tentando indispor D. José contra Pombal. Um dia, ima
ginando o conde, que observara em Pombal certo uso impro
prio da authoridade, que lhe era confiada, e vendo que o rei não
podia negal-o, exclamou com ar de triumpho :—aBem , ainda
Vossa Magestade conservará este homem ao seu serviço ? » Sim ,
replicou D. José , porque n’aquillo , em que elle commette uma
falta , commetteria qualquer de vós um cento .» Beckford , alguns
annos mais tarde, encontrou este mesmo conde, cujo caracter
singularmente phantastico descreve n’uma de suas cartas.
Os jesuitas implicados na conspiração eram muitos ; entre
elles contava-se Malagrida, de quem em particular me occu
parei, Moreira e João de Mattos. O primeiro , se não era um
consummado hypocrita, labutava então sob uma bem extraor
dinaria allucinação religiosa , passando horas successivas do dia
a resar nas mais arduas posições do corpo, tocando ás vezes o
chão com a fronte, além d'outras posturas ainda mais difficeis
e penosas. Cria tambem ouvir uma voz, que continuamente o
chamava , illusão esta, que Mattos e muitos dos seus compa
nheiros declararam ser inspiração divina. Por fim , talvez para
variar a monotonia da prisão, começou a escrever a vida de
Sant'Anna , obra extravagante , que n'outro capitulo terei occa
sião de analysar.
Foram os individuos , a que acabamos de alludir , os que sei
que foram punidos pelo seu perfido e cobarde attentado contra
a vida do monarcha ; agora , o que não posso dizer , é, quantos
foram os de menos consideração , que, pelo mesmo motivo, ti
veram menor ou maior castigo, sendo comtudo provavel que
não fossem em grande numero, com quanto se tivesse calcula
do em duzentas e cincoenta as pessoas suspeitas de haverem to
mado parte directa ou indirecta n’esta immensa conspiração.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 101

Resta -nos emfim dar noticia do castigo, que tiveram os tres


desgraçados Sousas suspeitos de cumplicidade na falta do mi
nistro Mendonça. Vimos já que D. Manuel foi preso ao tempo
da conspiração , e que morreu na prisão. Um anno antes de ser
preso, tinha recebido ordem de retirar-se para a sua quinta em
Calhariz , e seu irmão D. Luiz tinha do mesmo modo sido des
terrado para Mertola , que fica na fronteira do Algarve.

O enviado portuguez em Londres,Martinho de Mello , n'um


officio , de 23 de maio de 1760 , dirigido do governo inglez e
escripto em francez, dá um esclarecimento mais cabal das cul
pas do terceiro irmão, o Balio João de Sousa ; vejamos :
« Muito tempo antes do sobredito anno ( 1757 ) suspeitava
se em Lisboa que o referido Balio tinha intelligencias secretas
com os ministros de França. Ordenaram -lhe que no prazo de
24 horas sahisse de Paris, e voltasse por mar para Lisboa.
Identica ordem foi dada a Lacerda, ministro do rei em França ,
suspeito de ter conhecimento da conjuração. »
Parece que Lacerda obedeceu , e foi simplesmente banido
da corte , quando chegou ;mas o Balio despresou a ordem . Por
isso, por meio d’um decreto de 16 maio de 1757 ordenou
D.
José que, além de « desnaturalisar dos seus reinos e dominios
a D. João de Sousa , Balio da Religião de S. João de Jerusa
lem , e havel-o por privado de todas as honras e dignidades, que
competiam aos seus vassallos, o que se fazia publico por meio
de editaes; se procedesse immediatamente ao sequestro de to
dos os bens do sobredito Balio , e dos fructos da commenda
que elle administrava. »
CAPITULO IX

Prisão de oito jesuitas ; Malagrida ; os bens da companhia de Jesus são seques


trados ; é determinada a sua expulsão de Portugal; memorial dirigido a Cle
mente XIII; questão entre a curia de Roma e a côrte de Lisboa ; Sua Mages
tade publica uma deducção em que relata minuciosamente os motivos de queixa
que tinha contra a curia romana.

É preciso que voltemos agora a uma época anterior á pu


nição dos conspiradores, isto é, a 11 de janeiro de 1759, dous
dias antes do supplicio do duque d'Aveiro e seus cumplices,
quando se mandou proceder á prisão de oito jesuitas por sus
peita de cumplicidade na conspiração , contando-se entre elles
o referido fanatico Malagrida. Apprehendidos ao mesmo tempo
os seus papeis e examinados, n'elles se encontraram sobejas

provas da sua imputada culpa. O que, porém , parecerá singu


lar, é que entre os mesmos papeis se achou uma carta , em que
Malagrida , mezes antes do attentado contra a vida do monar
cha, avisava D. Anna de Lorena, dama do paço, de certo pe
rigo incognito , que ameaçava Sua Magestade . Esta dama, mo
vida não se sabe por que motivo, entendeu que devia reenviar
a carta a seu dono sem tomar conhecimento algum do seu con
teúdo, sendo por isso encontrada entre os papeis de Mala
grida .
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 103

Das muitas inquirições por que estes padres passaram , e


dos documentos, que em seu poder se descobriram , taes escla
recimentos resultaram , que revelaram as intrigas mais secre
tas e infames da Companhia de Jesus. Portanto , a 19 de ja
neiro fez sua magestade promulgar um decreto mandando se
questrar todos os bens da companhia , tanto os nacionaes, de
que estavam no usofructo , como proprios seus, e que lhes fos
sem apprehendidos todos os papeis, além d’isto prohibia ex
pressamente que , de modo nenhum , communicassem com os

seculares, ordenando que fossem detidos em seus conventos


debaixo de rigorosa prisão . Esta extrema medida foi o resulta
do da firme convicção que da sua culpa tinha o rei, que no
mesmo mez fez publicar um decreto declarando os jesuitas co
mo principaes motores da conspiração, que teve logar.
Emfim , para sua completa aniquilação, Pombal, convenci
do de que jamais a sua patria havia de prosperar ou gosar
tranquillidade, ou a vida do rei e a sua mesmo estariam segu
ras, em quanto elles existissem no paiz, resolveu a sua total
expulsão não só de Portugal, mas de todos os dominios portu
guezes. Para este fim foi, em 2 d'abril de 1759, dirigido a Cle
mente XIII um memorial n’aquelle sentido, fazendo ver no
preambulo, que aquella ordem degenerara dos fins para que
föra instituida, e que os seus principios e doutrinas eram per
niciosos ao bem -estar e socego do reino . Além d’isso, attestava
o mesmo memorial, que tendo sua magestade fidelissima expe
dido ordens aos generaes, que commandavam as suas tropas
no Brasil, para effectuarem a troca de territorio, em que as co
rôas de Portugal e Hespanha haviam concordado, e marcarem
os limites estipulados pelo tratado dos mesmos, recebeu o mes
mo senhor a seguinte resposta : « Que aquella execução conti
nha grande difficuldade, por quanto o governo dos ditos reli
giosos jesuitas, pela usurpação da liberdade das pessoas, e dos
bens, e commercio dos Índios, se tinham constituido em tal
força , que não era facil reduzil-os, achando - se absolutos se
nhores de tantos mil homens, por uma parte incommunicaveis ,
e inaccessiveis assim para os Portuguezes, como para os Hespa
nhoes ; e por outra parte sujeitos aos ditos religiosos, com uma
subordinação tal, qual nunca se tinha visto em creaturas ra
104 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

cionaes; de sorte que se deixariam fazer em pedaços , primeiro


que transgredissem o mais leve preceito dos ditos religiosos ,
ou que dessem entrada aos Portuguezes, e Hespanhoes nas
terras que habitavam . »
Para que de algum modo se possa fazer idéa dos meios

que para sua defesa os jesuitas empregaram na America , ex


trahi, dos archivos da legação portugueza em Vienna , o şe
guinte documento : « Vienna 18 d'agosto de 1754. Correu ha
tempo que os jesuitas hespanhoes tinham mandado alguns offi
ciaes francezes para a America com o fim de instruirem os Ta
puyos na disciplina militar. Como nunca pude descobrir o autor
ou fonte d'este boato, que tambem correu nos botequins de Lis
boa , pareceu -me inutil incommodar a V. Ex.º a este respeito.
Porém já me certifiquei do facto de que os officiaes francezes
se acham entre os indios ; e o conde Arzelor, que é ministro de
Hespanha , e M. Aubterre de França , asseveraram -me que o
general, que commanda a cavallaria dos indios, é um francez
conhecido pelo nome de Padre Tonnerre. É de concluir que
elle não estará sem subalternos , e que a sotaina seja o unifor
me dos officiaes. )

Continuava o memorial expondo não só os abusos, sedi


ções e rebelliões dos ditos padres,mas o trafico illicito , que sus
tentavam para deshonra da igreja e com grande prejuiso da
nação , e a parte mui visivel que tomaram na conspiração , e
conclue emfim solicitando a Sua Santidade « em quanto ao fu
turo toda a cooperação para cessarem tão extremos males com
o socego publico dos vassallos d'este reino , e com a cessação
do escandalo , que em todo o Mundo Christão tem causado os
ultimos insultos, em que os ditos religiosos se precipitaram em
Portugal, e todos os seus dominios.»
la incluso no mesmo um inventario de todos os bens per
tencentes aos ditos religiosos em Portugal, para que Sua San
tidade ordenasse os fins convenientes , em que deviam empre
gar -se. Supplicava -se- lhe tambem que se dignasse conferir os
poderes necessarios para os jesuitas, autores ou cumplices do
attentado de 3 de setembro de 1758, serem castigados.
Sua Santidade , em resposta a este memorial, expediu , em
2 d’agosto de 1759, dous officios a Sua Magestade Fidelissima
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 105

deferindo aquella supplica, mas pedindo- lhe aomesmo tempo ,


que usasse toda a moderação e clemencia no julgamento dos
ditos réos, e exhortando-o a que evitasse que o sangue d'aquel
les servos de Deus fosse derramado.
Em 5 d'outubro do mesmo anno publicou o cardeal pa
triarcha Saldanha uma pastoral prescrevendo a expulsão im
mediata e total de toda a Companhia de Jesus do reino de Por
tugal. Permittiu -se, comtudo, a alguns dos que ainda não tinham
professado solemnemente , e que pediram para os desligarem
de seus votos, ficarem . Outros ficaram presos para responderem
pelos seus crimes particulares e offensas politicas, e o resto em
barcou em navios para esse fim destinados, e foram desembar
cados em Civita Vecchia — não sendo talvez os mais agrada

veis presentes para o Papa. Não esqueçamos porém dizer, que


tendo -se recorrido á imperatriz Maria Theresa para consentir
que estes religiosos se estabelecessem no seu imperio, esta pru
dente soberana mostrou muito pouco zelo ou muita discrição
em receber taes hospedes indeferindo ao pedido. Pouco depois
foram os das possessões do mesmo modo mandados para a Ita
lia , ficando assim todos os dominios portuguezes livres da mais
rebelde e perniciosa sociedade, que jamais existiu . Se Pombal
nada mais tivesse praticado senão este acto de innegavel arro
jo, bastava elle para immortalisar o seu nome, e tornar cele
bre a sua administração nos annaes da historia europea , e a
mais gloriosa nos da de Portugal.
Passado pouco tempo, em consequencia das reiteradas ins
tancias da corte de Lisboa, publicou Clemente XIII, em dezem
bro de 1759, um breve concedendo á Mesa da Consciencia e
Ordens os plenos poderes para applicar a pena de morte aos
religiosos, assim seculares como regulares , incursos no crime
de lesa -magestade, com a condição, porém , de que o presiden
te d'este tribunal seria ecclesiastico . Declarava tambem o mes
mo breve, que era indispensavel para o bem publico, que o
escandalo de tão enormedelicto fosse irremessivelmente expia
do pela severidade do castigo, para que no futuro não houvesse
quem se atrevesse a praticar taes abominações na esperança
de, acobertado por qualquer prerogativa , ficar impune.
Assim , depois de quasi inauditos embaraços e difficulda
106 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

des, extinguiu -se o facho da traição no sangue dos conspii


res, e foram o dominio e influencia dos jesuitas quasi ann
lados por meio d’uma fiel exposição dos seus principios e
mes . Verdade seja que os ministros de Sua Santidade ainda
tinuaram a prestar -lhes soccorros secretos e mesmo publi
e este procedimento, junto a certas exigencias absurdas da
ria de Roma sobre a corte de Lisboa , deu a Pombal novos i
tivos de cuidado a respeito das relações futuras dos dous
vernos. Porém , o seu espirito não podia curvar-se ás insoli
pertenções da santa sé sobre o governo temporal do seu pa
nem permittir que a authoridade regia do seu soberano fos
insultada ou menoscabada . Além d’isso não era este um obj
cto que carecesse de prolongada disputa entre as duas corte
Tendo D. José nomeado o bispo de Angola para o arcebi
pado da Bahia, que vagara, submetteu , segundo o costume,
nomeação á approvação e confirmação do Papa ; porém , Su
Santidade não quiz reconhecel-a sem que lhe fosse apresentad
o acto authenticado , que continha a resignação do arcebispo ,
do que declarou duvidar. D. Francisco d'Almada , que era o

enviado portuguez, respondeu que a palavra e fiança do rei


deviam ser sufficientes para garantir a verdade, mas que não
obstante isso trataria de apresentar- lhe o acto sem demora ,
mostrando -se ao mesmo tempo altamente indignado pelo insulto
feito ao seu soberano , e transmittindo immediatamente ao seu
governo todos estes particulares.
Portanto, com o intuito de sustentar a dignidade da coroa
de Portugal publicou , Pombal em nome de Sua Magestade, uma
Deducção circumstanciada de todos os motivos de queixas, que
havia contra a curia de Roma. Este documento, sem embargo
da sua consideravel extensão, não pode deixar de interessar ,
ainda mais n’este momento em que as duas côtes de Roma e
Madrid se acham de tal modo divergentes , que pouca esperan
ça promettem para a integridade da igreja catholica romana
em Hespanha .
CAPITULO X

Deducção que o governo portuguez manda apresentar ao papa ; este nega audien
cia ao ministro portuguez ; Almada entrega a Deducção ao cardeal Orsini; quei
xas contra o cardeal Acciajuoli ; sua expulsão de Lisboa ; rompimento entre a
curia de Roma e Portugal; consequencia das pertenções do papado sol ogo
verno temporal de outros paizes ; & cardeal Torregiani; conceito em que o nun
cio mostra ter D. José e Pombal ; extractos dos officios da secretaria do estado
intercalados no capitulo .

DEDUCÇÃO

Que o ministro de Sua Magestade Fidelissima deve apre


sentar a Sua Santidade em resposta dos ultimos officios, que
lhe passou a curia de Roma, com a minuta do breve,
que veio
inclusa debaixo do Num . XX da carta de 29 de dezembro
de 1759.

1. A Sua Santidade, ao seu ministerio, e a todo o Mun


do Christão, tem dado El-Rei Fidelissimo (não só imitando mas
excedendo os seus regios predecessores) as mais demonstra
tivas, e concludentes provas, que um Monarcha immediato a
Deus no temporal, podia produzir aos olhos do publico , para
manifestar por modo evidente a sua filial veneração á sagra
da pessoa đo Vigario de Christo ; a sua constante , e exempla

rissima devoção á santa séde apostolica ; e o seu inextingui


108 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

vel, e religiosissimo desejo de contemplar a autoridade pon


tificia até as ultimas extremidades da mais constante , e singu
lar condescendencia .
2. Os memoriaes, e cartas instructivas de 8 d'outubro
de 1757, e de 10 de fevereiro de 1758 o mostraram assim
muito clara , e evidentemente : Porque ao tempo , em que Sua
Magestade Fidelissima recorreu á santa séde apostolica com
aquellas reverentes instancias, podia omittil-as: Achando-se
não só authorisado , mas necessitado pelos direitos, divino ,
natural, e das gentes, para expulsar dos seus reinos, e domi
nios pela via da força os regulares da companhia denominada
de JESUS , cujo pervertido governo lhe tinha sublevado um
grande numero dos seus vassallos, e lhe tinha movido uma
guerra , em parte insidiosa, e intestina, em parte declarada , e
publica ; fazendo -lhe dispender n’esta segunda guerra vinte e
tantos milhões de cruzados , além dos que lhe havia custado a
primeira para restaurar d'ella em todos os seus dominios ul
tramarinos a observancia das leis, e obediencia dos muitos
povos, que estavam rebeldes, por effeito da doutrina, que por
systema insinuavam os ditos regulares, debaixo do pretexto da
conversão das almas.
3. A outra carta regia de 20 d'abril de 1759 com a
Deducção, e papeis que a acompanharam , constituiram outra
aindamais exuberante prova da constantissima firmesad'aquel
les devotos sentimentos de S. M. F .: Pois, que se faz notorio
pela mesma evidencia do facto , que não sendo o dito Monarcha
vivamente conduzido por aquelles principios, não recorria á
santa séde apostolica depois do horroroso regicidio de 3 de
setembro de 1758 antes de castigar os obstinados, e perigosos
réos de uma tão execranda conjuração, e de um tão detestavel
delicto , achando -se para isso nova, e ainda mais urgentemente
authorisado não só pelos mesmos direitos divino, natural, e
das gentes, de que está usando quotidianamente a monarchia

de França , e a Republica de Venesa , em casos muito menos


urgentes; sendo tão exemplar a religião da primeira, como in
defectivelo zelo da segunda em tudo o que é veneração á mes
ma santa séde; mas tambem pelos exemplos do que pratica
ram no mesmo reino de Portugal a respeito dos crimes de re
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 109

bellião , e sedição (ainda que nenhum tal, como o de que se


trata ) os Senhores Reis D. João o II , D. Manuel, e D. João
o IV , usando do direito , que tinham , sem por isso offenderem
no exercicio d'elle a authoridade da mesma santa séde
apos
tolica .
4. Quando S. M. F. esperava que os effeitos d'aquellas
suas exuberantissimas condescendencias fossem as mais effica
zes cooperações da curia de Roma ; não só para o prompto
castigo dos réos de tão perniciosos e detestaveis crimes, mas
tambem para que no futuro ficassem cohibidos por um indefe
ctivel, e authentico exemplo tão detestaveis criminosos ; soube,
e lhe foi manifesto pelos factos mais publicos , que havendo os
mesmos jesuitas obstruido os orgãos , por onde aquellas signi
ficantes vozes de S. M. F. deviam chegar ao conhecimento de
Sua Santidade, passava n'aquella curia tudo em termos dia
metralmente contrarios ao que ao mesmoMonarcha haviam pro
mettido aquellas suas bem fundadas esperanças.
5. Soube, que depois do dito cruel, e infame assassinato
de 3 de setembro de 1758 , se não tinha ouvido nem uma uni
ca palavra de recriminação ao ministerio pontificio , contra os
principaes réos d'aquelle infame desacato.
6. Soube, que muito pelo contrario se havia escripto da
secretaria de estado de Sua Santidade ao nuncio de Hespanha
a carta, que se fez publica nasGazetas da Europa, intimando
se n'ella , que se fazia uma cruel guerra pela gente invejosa , e
libertina a um corpo tão respeitavel de religiosos tão beneme
ritos da igreja , que tinham por instituto promover continua
mente toda a sorte de exercicios proveitosos á religião, e sal
vação das almas; e de um corpo de religiosos inteiramente de
dicados pelo seu instituto a propagarem a maior gloria de
Deus, e salvação dos fieis.
7. Soube, que o exuberante elogio publicado na referi
9

da carta , foi dirigido (de acordo com o geral dos jesuitas) a


desmentir os decretos, e editaes com que S.M. F. havia atalha
do o progresso d'aquella conjuração infame: Porque ou havia
de ser insubsistente a fé da dita carta, ou a dos ditos decretos,
e editaes devia claudicar ; não só porque eram entre si contra
ditorios, e incompativeis , mas tambem porque n’este sentido de
110 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

fazer vacillar a fé dos mesmos editaes, e decretos, foi interpre .


tada a referida carta pela maior parte da corte de Roma, e pe
los escriptos publicos dos mesmos jesuitas, que ao referido fim
a tinham procurado .
8. Soube, que na mesma curia se reputou por culpa, e
delicto a reimpressão da Relação abreviada , em que se firmou
o breve de reforma do Santo Padre Benedicto XIV , e o man
damento do cardeal Saldanha ; procedendo -se a prisão contra
o impressor, e mandando -se os exemplares, que se acharam
ao geral dos jesuitas para os occultar.
9. Soube, que quando chegou a Roma a sentença, que foi

proferida em Lisboa a 12 de janeiro do anno proximo prece


dente de 1759, contra os conjurados ; se prohibiu por uma
parte a estampa della a todos os impressores d'aquella cida
de, e pela outra parte se defendeu com advertencias ás pessoas
mais graves, e com ameaças ás pessoas de menos porte , o da
rem novas da corte de Lisboa ; como se a dita sentença fosse
proferida em algum dos paizes barbaros, onde não ha justiça ,
e como se as noticias, que eram desagradaveis aos sobreditos
jesuitas réos de tão enormissimos delictos, fossem outras tantas
offensas da séde apostolica .
10. Esoube emfim , que ao mesmo intento se faziam pelo
ministerio de Roma as mais miudas, e mais exactas diligencias
para se descobrirem os auctores dos papeis impressos, que
eram desagradaveis aos sobreditos jesuitas ; ao mesmo tempo
em que com uma contradicção escandalosa , e estranha, se es
palharam com ampla, e descoberta liberdade os outros papeis
divulgados pelos referidos jesuitas, com o fim de denegrirem o
glorioso nome de S. M. F., e a honra , e justiça dos seus fieis
ministros, com calumnias atrozes ; como se fossem as referidas
calumnias outros tantos documentos authenticos , e irrefraga

veis , para provarem a innocencia de uns regulares, que na fór


ma mais juridica, e solemne; com pleno conhecimento de cau
sa ; e com repetidas audiencias de todos os seus co -réos; pela
decisão de um conselho supremo, composto dos tres secreta
rios de estado do despacho universal, e de dez senadores to
gados dos da maior reputação entre os dos primeiros tribunaes
da corte de Lisboa haviam sido declarados por notorios rebel
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 111

des; insidiosos adversarios de S. M. F .; sublevadores de pro


vincias inteiras; usurpadores do seu importante commercio ; e
maquinadores da conjuração, em que se havia commettido
aquelle execrando regicidio : sendo certo, e a todos constante,
que para se concluir a solida verdade dos referidos factos,bas
tava a prova plenissima, e liquidissima da presumpção de di
reito, que sempre tem a seu favor qualquer sentença ainda me
nos graduada do que a referida : E que n’estes termos bastaria
que se tratasse do interesse de qualquer pessoa particular, para
que contra a decisão da referida sentença se não deixasse illu
dir o povo innocente com as referidas calumnias livres , vagas,
e temerarias; sem mais probabilidade, que aquella , que costu
mam ter os clamores dos réos contra as pessoas dos juizes por
quem são condemnados.

11. Ao tempo em que S. M. F. ( tão admirado d'aquella


escandalosa paixão , que o ministerio politico de Sua Santida
de havia publicado sem o menor rebuço por tantos, e tão ma
inten
nifestos , e decisivos factos, como convencidos das puras
ções do Santissimo Padre ) se achava na precisa determinação
de representar ao mesmo Santissimo Padre a urgente necessi
dade, que faziam indispensavel não só a justiça , de que era
instantissimo acredor um tão funesto , e horroroso caso ; mas
tambem o commum decóro da thiara pontificia , e da coroa
da mesma Magestade ; afim de que Sua Santidade cohibisse os
effeitos d'aquella paixão desordenada do seu referido ministerio
politico , pelos meios que a sua apostolica sabedoria julgasse
mais proprios, e opportunos: A este tempo , digo, chegou a Lis
boa um correio extraordinario expedido nos principios de agosto
do anno proximo passado de 1759 pelo eminentissimo car
deal secretario de estado ao excellentissimo nuncio Acciajoli
com despachos tanto mais demonstrativos d'aquella descoberta
paixão do mesmo eminentissimo purpurado , e tanto mais pun
gentemente escandalosos, que sem deixarem logar á menor du
vida faziam pela sua inspecção manifesto , que haviam sido or
denados ao fim de promover um declarado rompimento entre
as duas cortes : Pois que exhibindo o mesmo nuncio ao dito
secretario de estado os referidos despachos se achou que eram
os seguintes.
112 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

12 • O primeiro dos referidos despachos, foi a pro-memo


ria apresentada pelo mesmo excellentissimo nuncio ao dito
secretario de estado de S. M. F .: Dando n'ella uma idéa
clara do conteúdo nos outros despachos, e instrucções, que
com elles havia recebido : E fazendo ver logo pelas obre
pções, e subrepções, pouca sinceridade , e excessiva liberdade,
com que se explicou na mesma pro -memoria, que se achava
instruido para exacerbar as justas queixas de El- Rei Fidelis
simo ; e para que na agitação de uma ruptura ( tão contraria
aos sentimentos d'aquelle Monarcha , como ás paternaes inten
ções de Sua Santidade) se confundisse o negocio principal dos
insultos, e do castigo dos regulares da companhia : Pois que
é pela mesma evidencia dos factos manifesto , que de outra sorte
não é verosimil, que em tão delicadas circumstancias usasse o
referido nuncio n’aquella pro -memoria de expressões taes co
mo são as que vou ponderar.
13. Por uma parte pretendeu o dito prelado escusar a
negativa da concessão do breve de commissão perpetua para a
mesa da consciencia , e ordens, avançou que aquelle tribunal
era secular, e somente ecclesiasticos alguns ministros d'elle :
Sendo notorio em Roma pelas bullas pontificias das funda
ções, e indultos dos grandes mestrados das ordens militares
d'este reino , e do referido tribunal em que reside a sua juris
dicção , que omesmo tribunal é pela sua mesma fundação , na
turesa, e quotidiano exercicio um tribunal religioso : que não
admitte ministro algum que não seja professo nas referidas or
dens : Que exercita jurisdicção ordinaria ecclesiastica como qual
quer dos bispos, arcebispos, e prelados maiores do reino , para
corrigir , e castigar todos os sacerdotes, seculares, e regulares
da sua jurisdicção : Que confirma prelados com jurisdicção
quasi episcopal, como os priores móres de Aviz, e de Palmel
la : Que fulmina censuras ecclesiasticas nos casos , em que os
bispos as fulminam conforme o direito canonico : E que emfim
foi proposto por S. M. F. ao Papa em um caso de tanta atro
cidade por isso mesmo; porque sendo tribunal ecclesiastico , é
aquelle, que entre os tribunaes ecclesiasticos do reino de Por
tugal teve sempre, e tem maior numero de ministros egregios
em letras, e virtudes.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 113

14.° Por outra parte avançou o dito nuncio com o mesmo


intento a outra livre, e temeraria proposição de que a nenhum
tribunal do mundo catholico se tinha concedido perpetua ju
risdicção para proceder contra os ecclesiasticos, em casos taes,
como o de que se trata : Isto aomesmo tempo em que é publi
co, e constante que só para este reino se expediram cinco bre
ves perpetuos d'aquella naturesa, e a maior parte d'elles em
casos menos graves . Tal foi o que Santo Padre Leão X espe
diu no anno de 1516 para o capellão mór relaxar todos os
clerigos menoristas, que fossem comprehendidos nos crimes de
furto , e falsidade. Tal o que o santo padre Pio IV mandou ex
pedir a 18 de julho de 1562, ampliando o primeiro para to
dos os outros crimes graves, com inhibição de todas as appel
lações, e até dos mesmos juizes delegados. Tal o que o mesmo
santo padre expediu em 4 d'outubro de 1563, para que todos
os clerigosmenoristas, que fizessem commercio contra a prohi
bição das leis de Portugal fossem remettidos aos juizes secu
lares para os castigarem ainda nos casos que não fossem di
gnos de pena capital. Tal o que o santo padre Gregorio XIII
expediu a 25 d'outubro de 1583 , para que todos os clerigos
seculares, regulares, e presbyteros, que commettessem crimes
de leza magestade, e promovessem sedições fossem relaxados á
justiça secular pelos seus respectivos prelados diocesanos. E
tal emfim o que o mesmo santo padre Gregorio XIII mandou
expedir no mesmo dia ao presidente, e deputados do dito tri
bunal da Meza da Consciencia e Ordens, para da mesma sorte
relaxarem todos os sacerdotes, que commettessem os referidos
crimes de leza magestade, e de conjuração. E ao mesmo tem
po , digo , em que tambem não eram desconhecidos os outros
breves, que concederam os santos padres ; Julio III á republica
de Genova para proceder a pena de morte contra todos os ec
clesiasticos, por juizes seculares com intervenção de um só co
nego , ou de qualquer outra pessoa constituida em dignidade
ecclesiastica : Nem menos eram ignorados os outros breves, que
foram concedidos aos governadores de Catalunha , do Rouisillon ,
e da Sardenha pelos Summos Pontifices Leão X , Clemente VII,
Paulo III, e Pío V , não se dando aquella faculdade a alguns,
que eram bispos, como a taes prelados, mas sim , como gover
VOLUME 1 9
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL .

nadores d'aquelles estados ; como se vê do contexto dos refe


ridos breves principalmente do de Clemente VII , expedido a 16
de junho de 1431 , e o de Pio V , expedido em 6 d'outubro de
1567 , em que concedem ao dito governador faculdade para
proceder usque ad Sententiam diffinitivam inclusive cum voto
duorum Doctorum Regiæ audientiæ etc.
15. Por outra parte tomou o referido nuncio a igual li
berdade de decidir tão incompetente, como estranhamente, que
a elle lhe competia o conhecimento dos delictos da naturesa
d'este de que se trata : Como se as sublevações , conjurações,
reicidios, e mais crimes de lesa magestade, fossem materias
espirituaes pertencentes ao altar e á igreja : Como se os Mo
narchas, que não reconhecem algum superior no temporal, co
mo supremos protectores, e paes dos seus vassallos, se não
achassem authorisados pelos direitos natural, divino e das gen
tes , para punirem tão atrozes delinquentes, e para conserva
rem com o castigo, e remoção d'elles a paz, e a tranquillidade
publica dos seus reinos, que de outra sorte não poderiam sub
sistir sem um continuo milagre : E como se o dito nuncio igno
rasse , que nos dominios de Portugal não pode exercitar mais
jurisdicção do que aquella que lhe está regulada pelas con
cordatas entre à séde apostolica e a corða, sem transgredir
os louvaveis costumes do reino , que não permittem que n'elle
se profira um absurdo tal como o referido depois de haverem
passado os seculos da ignorancia , em que as supremas juris
dicções espiritual, e temporal andaram confundidas com tão
graves prejuisos da igreja de Deus.
16.º Por outra parte se avançou o mesmo nuncio a es
crever, que a sua corte intentara mandar a este reino um
cardeal legado para conhecer do referido caso ; ou commet
tel-o ao conhecimento delle nuncio , ou a uma junta de pes
soas ecclesiasticas : Como se n'estes reinos não houvesse mo
narchia : Como se não houvesse um Monarcha , que não reco
nhece superior no temporal: E como se não houvesse tribu
naes, e ministros. Emfim a notoriedade d’este absurdo se faz
tão manifesta por si mesma, que não necessita de maior re
flexão .

17.° E pela outra parte emfim passou o mesmo nuncio


MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 15

a manifestar mais claramente o fim das Instrucções, que havia


recebido, avançando o outro absurdo igual, e manifesto de que
S. M. F. revogasse a expulsão , que já tinha determinado desde
o mez d'abril d'aquelle anno, como a 20 d'elle tinha significa
do a Sua Santidade : Conservando os regulares da companhia
chamada de JESUS n'estes reinos e seus dominios : E confian
do a segurança da sua real pessoa, e a tranquillidade publica
dos seus fieis vassallos ( cuja protecção é inherente á magesta
de inseparavelmente) aos progressos da reforma , que tinha pro
duzido por effeitos as blasfemias espalhadas em toda a Euro
pa contra a mesma Magestade Fidelissima, e o horroroso in
sulto de tres de setembro de 1758. Absurdo , que tambem se
faz tão manifesto per si mesmo, que não necessita de maior
reflexão .
18. Os outros despachos substanciados pelo dito nuncio
n'aquella pro -memoria , foram em tudo com ella tão coherentes ,
como se verá agora da sua inspecção.
19. Pois que o segundo dos mesmos despachos continha
umaminuta formulada em 11 d'agosto do mesmo anno de 1759 ,
para o breve da relaxação dos jesuitas presos, dirigido ao pre
sidente , e deputados do mesmo tribunal da mesa da conscien
cia e ordens.

20.° Minuta que pela sua inspecção mostrou logo ser con
cebida por quem a formulou com as mesmas sinistras inten
ções em termos evidentemente contradictorios, e incompativeis
com a letra , e com o sentido da carta regia de 20 d'abril do
mesmo anno, e da representação do procurador da coroa de
S. M. F., que acompanhou a mesma carta ; porque havendo - se
pedido um breve de consentimento amplo, e perpetuo para ne
cessaria precaução do futuro , se expediu o dito breve limitado,
e restricto ao caso preterito : Contradictorios e incompativeis,
por isso mesmo porque a dita minuta continha um breve tem
poral, com a letra , e com a disposição dos muitos outros bre
ves, que a séde apostolica costumou sempre expedir nos ca
sos similhantes não só a instancia das testas coroadas, mas dos
outros soberanos: E contradictorios, e incompativeis em fim com
o costume, que a justiça , e a decencia estabeleceram inaltera
velmente para a expedição das graças concedidas á instancia
116 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

dos principes soberanos ; porque o breve significado na referi


da minuta foi formulado, e expedido ao nuncio de Portugal
obrepticia , e subrepticiamente por modo clandestino, e com
um impenetravel segredo sem d'elle se dar a menor noção ao
ministro plenipotenciario de S. M. F. na curia de Roma, para
propôr a Sua Santidade o que tivesse que lhe representar no
caso de ser como era ) a referida minuta do breve contraria
as
ás instanci , e á decencia de S. M. F .; sendo certo , que nem
ainda qualquer particular foi até agora obrigado a expedir uma
graça , que entende, que lhe é, ou pode ser nociva.
0
21. O terceiro dos referidos despachos continha outra
minuta formulada no mesmo dia 11 d'agosto de 1759, na fi

á
gura de uma carta de Sua Santidade para servir de resposta
outra carta regia de 20 d'abril do mesmo anno , em que S. M.F.
havia recommendado a expedição do sobredito breve ; Narran
do n’esta minuta quem a formulou , que no dito breve (contra
dictorio e incompativel ) vinha largamente concedida a deseja
da , posto que extraordinaria faculdade: E passando a fazer
tambem contradictoria , e incompativelmente uma instantissima ,
e redundantissima instancia a favor dos mesmos identicos, je
suitas presos, e declarados por notorios , e immediatos co-réos
do execrando delicto de 3 de setembro de 1758 ; até se con

cluir a dita minuta mettendo na sagrada boca de Sua Santi


dade palavras tão estranhas, e tão intempestivas; como são :
Que lhe parecia fazer um bom officio,em não suggerir a S. M. F.
cousa contraria á sua gloria : Que antes se conformavam aquel
las instancias (de impunidade) com as inclinações do magna
nimo coração de S. M. F., o qual quereria antes dar aomun
do uma prova da sua real piedade condescendendo com a in
tercessão do vigario de Christo, para perdoar a vida aos mi
nistros do sagrado altar, os quaes quanto mais culpados fos
sem , tanto mais dignos seriam de commiseração . E que em
fim Sua Santidade teria grande consolação , de que se evitasse
o novo horror de se fazerem castigos publicos em homens con
sagrados a Deus.
22.° Expressões , que claramente mostram , que a paixão

de quem fez aquella minuta lhe não permittiu , que reflectisse


em que a carta n’ella significada havia de ser escripta no res
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 117

peitavel nome de Sua Santidade : Nem ainda em que no des


usado estylo das mesmas expressões, sendo ellas escriptas em
uma tão critica conjunctura, se fazia manifesta a mesma paixão
com que se escrevia : Nem tão pouco em que El-Rei Fidelissi
mo sem intoleravel gravame da sua real consciencia ; sem igual
desar da sua autoridade regia ; e sem offensa, e perigo da ma
gestade d'esta , e de todas as outras monarchias; não podia
deixar um exemplo de impunidade de tão execrando delicto :
Nem menos em que a effusão de sangue de sacerdotes réos de
crimes atrozes não continha alguma novidade ; sendo cousa
que muito se está vendo na mesma curia de Roma, e em ou
tras cortes da Europa sem tão funesto, e urgente motivo, como
o do abominavel reicidio de 3 de setembro de 1758 : Nem fi

nalmente em que não era ignorado, mas antes manifesto, que


o motivo com que o Geral dos jesuitas tinha pretendido conse
guir , que não fossem justiçados aquelles seus confrades, não
consistia em poupar aquellas poucas vidas n’este presente tem
po ; mas sim em maquinar, e prevenir com a falta d'aquella
necessaria justiça um argumento negativo para nos seculos fu
turos se desmentir a verdade hoje notoria do reicidio por elles
promovido ; como tantas outras vezes tem praticado osmesmos
jesuitas nos casos similhantes, de que não são estereis as his
torias.

23.° O quarto dos mesmos despachos mostrou tambem


ser formulado no sentido de outra minuta para uma segunda
carta pontificia com a mesma data de 11 d'agosto de 1759,
na qual a mesma paixão de quem a formulou , lhe não deixou
da mesma sorte ver nem que a redundancia dos elogios, e das
instancias a favor dos jesuitas em uma tão critica conjunctura
faziam outra demonstração ainda mais manifesta da dita pai
xão , que se devia occultar : Nem que a mesma carta pontifi
cia se achava concebida em termos desusados, e diametralmen
te contradictorios com a outra carta regia de 20 d'abril do mes
mo anno, a que esta devia responder.
24. Em primeiro logar porque havendo S. M. F., quanto
á expulsão dos jesuitas, dado conta ao Papa na referida carta
do que tinha ja então decisivamente determinado em uma ma
teria puramente economica do governo interior do seu reino ,
118 MEMORIAS DO MARQUEZ DN POMBAL

no qual governo interior, e economico nenhum monarcha se


accommodou até agora a ser dirigido por alguma potencia es
trangeira ; se fundou a sobredita minuta de resposta na suppo
sição de que o mesmo monarcha havia deixado a dita expulsão
dependente do proceder de Sua Santidade.
25. Em segundo logar para exhortar a mesma Mages
tade Fidelissima sobre aquelle não existente principio a que
conservasse nos seus reinos, e dominios os mesmos jesuitas ,
tomou a dita minuta por motivo a emenda , que n'elles promet
tia a continuação da reforma concedida pelo santo padre Be
nedicto XIV : E isto quando a mesma Magestade Fidelissima
já havia ponderado na dita carta firmada por sua real mão ,
que as bullas pontificias, e as leis regias do reino de Portugal,
não haviam tido em mais de um seculo da parte dos jesuitas
outra observancia,nem outros effeitos, que não fossem as usur
pações, e rebelliões de provincias inteiras; os mais inauditos,
e intoleraveis escandalos de que haviam enchido o mesmo rei
no, e seus dominios ; e o de se animar, e endurecer cada dia
mais o orgulho dos ditos regulares com a falta do castigo até
virem a precipitar-se nos horrorosos absurdos de prepararem
a Europa com as calumnias, e blasfemias, que n'eſla espalha
ram contra El-Rei Fidelissimo; e de se arrojarem depois ao
horroroso insulto de 3 de setembro de 1758, depois que co
nheceram , que já lhes não restava outro meio para evitarem a
continuação da reforma, que tão temeraria , e escandalosamen
te haviam procurado primeiro desmentir, e depois suffocar pe
las diligencias, que precederam , e seguiram o memorial, que
o Geral da mesma companhia apresentou a Sua Santidade
em 31 de julho de 1758 : E quando era notoriamente certo ,
que o mesmo seria conservar o dito monarcha nos seus reinos,
e dominios aquelles regulares depois de haverem sido compre
hendidos, e descobertos em um tão temerario , e horroroso in
sulto , do que sacrificar com a sua real pessoa todo o socego
publico dos seus fieis vassallos, até serem reduzidos á ultima
confusão , e á mais evidente ruina .
26. Em terceiro logar porque para o mesmo fim de per
suadir, que não fossem expulsos os ditos jesuitas se tomou n'a
quella minuta por outro motivo , que se não deviam confundir
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 119

os innocentes, com os culpados, para fazer padecer aos primei


ros a pena que merecessem os crimes dos segundos; não po
dendo deixar de haver muitos annocentes em uma corporação

tão numerosa que professa um estatuto de tanta perfeição : Que


vem a ser o mesmo do que fazerem -se os insultos dos referi
dos jesuitas somente particulares de alguns d'elles, e não com
muns de toda a sociedade.

27.° E isto ao mesmo tempo em que na referida carta


regia de 20 d'abril de 1759 se tinha S. M. F. explicado em
termos tão positivos, como foram : Sendo porém à incorrigi
bilidade do governo dos ditos religiosos tão notoria, como o
foi que nelles (com differença de todas as outras ordens
lares) está a corrupção que produz tão detestaveis defeitos no
governo , e no commum d'elles, que inteiramente se tem apar
tado dos seus santos institutos, e dos exemplos do seu bemaven
turado Patriarcha , para seguir maximas offensivas de toda a
sociedade civil , e união christã ; quando nas outras religiões,
se algum erro ha, somente se acha no particular, vendo-se sem
pre resplandecer no commum d'ellas a observancia regular : E
não sendo n’este caso os soberanos superiores á sua soberania ,
para deixarem expostos a perturbações, e ruinas, ainda menos
graves do que as referidas, os estados, e os povos, que Deus
lhes confou : Não pude deixar de apartar do corpo dos meus
fieis, e louvaveis vassallos, uma congregação, que tantas, e tão
custosas, e decisivas experiencias tem mostrado incompativel
com a paz, e tranquillidade publica , em que devo manter , pelos
direitos divino e natural, os vassallos, que Deus commetteu á
minha protecção : Mandando sahir sem maior dilação os sobre
ditos religiosos destes reinos, onde os senhores reis meus pre
decessores lhes permittiram a entrada para edificarem ,não para
destruirem etc.

28. De sorte, que S. M. F. não procedeu contra os par


ticulares; nem a culpa era d’estes particulares, como se quiz
persuadir ; mas sim contra o commum d'aquella sociedade in
teiramente pervertida n’estes reinos, e seus dominios ; sendo
esta prevaricação do seu commum notoria , e evidente a todo
o mundo civilisado , assim de facto, como de direito .
29. Era notoria a dita prevaricação de facto ; porque
120 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

manifestamente se vê que os attentados que S. M. F. substan


ciou na dita carta depois de mais de um seculo de calamitosas
experiencias; não podiam ser obrados por um , nem ainda mui
tos particulares sem a união de toda a sociedade: Pois que sem
a força resultante da união da mesma sociedade, se não pode
ria estabelecer o systema como se rebellaram tantas provincias
na America por tão dilatado tempo : Se não poderia resistir
com aquelle máo fim a tantas bullas pontificias, e leis regias,
como as que foram por mais de um seculo expedidas para se
estabelecer a obediencia , e civilidade dos indios :Se não pode
riam arruinar todos os governadores, e magistrados, que pu
gnaram pela observancia das mesmas leis, e bullas : Se não po
deriam armar tantos exercitos poderosos dos mesmos indios, e
dar-se uma tal consistencia á sua união ; de sorte que S. M. F.
fosse obrigado a dispender tantos milhões , como tem dispen
dido para The resistir : Se não poderia estabelecer na Europa
outro systema de calumnias, e de conjurações para similhan
temente se arruinar a santa reforma ordenada pelo santissimo
padre Benedicto XIV ; e para se attentar contra a vida do mes
mo monarcha fidelissimo: E se não poderiam em fim maquinar
na curia de Roma as intrigas, que por uma parte tem fechado
os caminhos para aquellas manifestas verdades não chegarem
ao conhecimento de Sua Santidade, e pela outra parte tem ac
cumulado tantos , e tão extraordinarios estimulos para promo
verem uma ruptura entre as duas cortes. Emfim quando S.M.F.
instou pela reforma quem espalhou as calumnias contra o mes
momonarcha na corte de Roma, e em todas as outras da Euro
pa, não foi o particular,mas sim o commum dos jesuitas : Quem
offereceu ao santo padre o memorial de 31 de julho de 1758
para invalidar a mesma reforma, e ameaçar a S. M. F. o in
sulto que pouco depois se commetteu , tambem não foram ne
nhuns particulares,mas sim o Geral como cabeça d'aquella per
niciosa sociedade: E o mesmo breve de reforma não foi expe
dido contra os particulares, mas sim contra o commum dos je
suitas do reino de Portugal, e seus dominios.
30. E era tambem notoria quanto ao direito a dita pre
varicação do commum da mesma sociedade : porque não ha
pessoa medianamente instruida, que ignore , que n'ella não mo
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 121

ve algum particular um só passo ainda dentro nos seus claus


tros, que ou não seja regulado pela obediencia dos prelados,
ou não seja immediatamente seguido de uma expulsão indis
pensavel; ou de castigo mais violento que a mesma expulsão .
È sendo tantos, tão horrorosos , tão successivos, tão manifestos ,
e tão publicos os attentados acima referidos; não ha juiso hu
mano em que caiba que podiam ser commettidos por particu
lares, sem a concorrencia do commum : Principalmente quan
do o commum era o que colhia os fructos, e recebia os interes
ses dos mesmos attentados ; e quando o mesmo commum não
só não castigou nunca os particulares por quem foram com
mettidos os mesmos attentados ;mas antes pugnou sempre acre,
e animosamente para os sustentar n’elles com as atrocidades
acima referidas. Por isso pois o eminentissimo, e piissimo car
deal D. João Martins Seliceo arcebispo de Toledo , e os outros
igualmente pios, illuminados, e veneraveis bispos D. Fr. Mel
chior Cano, D. Fr. Jeronymo Baptista Lanuza, D. João de Pa
lafox , D. Bernardino de Cardenas , o arcebispo de Manilha
D. Fr. Filippe Pardo , o Santo Fr. Pedro Baptista , e os outros
martyres seus veneraveis , e gloriosos companheiros, o pio e
douto sacerdote Arias Montano , o cardeal de Tournon , os Ge
raes da mesma companhia , S. Francisco de Borja, Mucio Vite
leschio, Thyrso Gonçalves, e João de Marianna depois detocados
pela graça divina ; com muitos outros de que se podéra fazer
um diffuso catalogo : Não clamaram pelos remedios promptos
contra os particulares da companhia , porque não é corrupção
haver particulares discolos quando são castigados ; mas sim
contra a corrupção do commum da mesma companhia , que
em todos aquelles tempos foi ameaçando, e produzindo in
sultos tão funestos á igreja de Deus, e ás monarchias do se
culo, como o que Portugal viu ultimamente com espantoso
horror.
31.0 Para exacerbar ainda mais com outro pungente es
timulo a inalteravel serenidade do religiosissimo espirito de El
Rei Fidelissimo, não perdoou quem instruiu o nuncio de Por
tugal com aquelles despachos, nem ainda ao estranho meio de
lhe suggerir que, pertendesse, como pertendeu inconsiderada,
e importunamente, surprehender o mesmo Monarcha na audien
122 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

cia que pediu , para introduzir o referido breve obrepticio , su


brepticio, e indecoroso .
32.•' Em ordem ao referido fim procurou o mesmo nun

cio primeiro verbalmente entregar a El-Rei Fidelissimo aquelle


inadmissivel breve, e as cartas que o acompanharam , sem dar
as copias, que são do costume, ao secretario de estado D.Luiz da
Cunha .
33.0
Havendo -lhe aquelle Ministro de estado feito ver ,
que não pediria audiencia de El-Rei seu amo antes de receber
as sobreditas copias : Havendo - lhas o mesmo nuncio participa
do n’aquelle aperto : E havendo-lhe respondido o dito secreta
rio de estado com o maior commedimento por carta de officio
de 7 de setembro do mesmo anno proximo passado, que Sua
Magestade lhe concedia audiencia para entregar as cartas de
Sua Santidade : E que somente elle nuncio suspendesse o refe
rido breve em quanto o mesmo monarcha representava ao, san
tissimo padre, o que a respeito d'elle se lhe offerecia : Tomou
aquelle prelado a estranha liberdade de replicar de seu pes
soal, e proprio movimento á sobredita resposta de S. M. F .:
Acrescentando a sua animosidade com a remessa da pro -me
moria acima ponderada : Esforçando- se para persuadir o mes
mo monarcha a que recebesse o tal breve : E servindo -se para
isso dos extraordinarios pretextos, que se lêem na carta por
elle dirigida ao mesmo secretario de estado em 8 do dito mez
de setembro de 1759, com a qual acabou de fazer manifesto
todo o veneno das suas instruccões.
34.' Nada bastou comtudo para alterar ainda no reli
giosissimo espirito de El-Rei Fidelissimo a sua firme fé a res
peito das puras, e paternaes intenções de Sua Santidade.
35.º Antes mandando omittir os absurdos , que se conti
nham na pro -memoria, e copias, ou minutas das cartas acima
referidas, com os decentes motivos de lhe não haverem sido
apresentados os originaes : E procurando evitar tão grandes de
sordens somente pela apostolica providencia do santissimo pa
dre , com a menor discussão de materias tão desagradaveis, e
indecentes , que a possibilidade podesse permittir :Mandou res
ponder aos ditos despachos pelos concisos, e significantes ter
mos, que foram expressos nas duas respostas seguintes.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 123

36. A primeira d'ellas foi a carta de officio com que o


mesmo secretario de estado D. Luiz da Cunha significou for
malmente ao sobredito nuncio no dia 10 do referido mez de

setembro, por uma parte, que de nenhuma sorte devia pôr nas
reaes mãos de S. M. F. o referido breve incompativel, indeco
roso, notoriamente obrepticio, e subrepticio , e contradictorio
com as puras, e paternaes intenções de Sua Santidade: Por
outra parte, que porem tudo o que fossem cartas do santissi
mo padre, separadas do referido breve, seriam recebidas por
S. M. F. com uma veneração muito igual ao seu filial, e cons
tante obsequio : E pela outra parte emfim , que elle secretario
de estado responderia á pro-memoria d'elle nuncio logo que
para isso recebesse as ordens, que ainda não tinha.
37. A segunda resposta foi a pro -memoria que S. M. F.
mandou expedir em 15 do mesmo mez de setembro ao seu mi
nistro plenipotenciario na curia de Roma: Com a ordem de a
fazer presente a Sua Santidade.
38.° Pro -memoria , que pela sua inspecçãomanifesta por
modo evidente e singular contemplação com que o mesmomo
narcha , ainda em tão escabrosas circumstancias procurou evitar
ao santissimo padre o que mais podia contristar, e affligir o seu
paternal animo em tudo o que a regia, e filial attenção de
S. M. F., e a necessidade publica , e instante podiam permit
tir - lhe.
39.º Pois que deixando -se em silencio n'aquella pro -me
moria , não só a individuação dos publicos, escandalosos, e de
cisivos factos da parcialidade do ministerio politico da curia de
Roma acima referidos ; 4 mas tambem os muitos estimulos, que
aos sobreditos attentados antecedentes havia accumulado o nun
cio de Lisboa com a exhibição dos quatro offensivos despachos,
que da mesma sorte ficam acima compilados : ? Deixando - se ,
digo em silencio a individuação de todas aquellas aggravantes
offensas, e pungentes estimulos, se reduziu o officio passado
n'aquella pro-memoria a representar S. M. F. com a mais fi
lial veneração , e exemplar reverencia a Sua Santidade, por
uma parte em termos mais particulares, e precisos, os eviden
1 Desde o § 1.º até o § 10.• d'esta deducção.
2 Desde o Š 11.º até o $ 30.• inclusivè da mesma deducção .
124 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tes motivos, que manifestavam obrepticio , e subrepticio , e in


admissivel o breve de consentimento significado na minuta , que
o nuncio havia exhibido ; e pela outra parte a significar ao mes
mo santissimo padre em termos mais geraes, que sua dita Ma
gestade Fidelissima se tinha necessariamente formalisado da ir
regular conducta, que o nuncio apostolico havia tido na sua
côrte ; das indecentes liberdades, que n'ella havia tomado ; e do
escandalo publico, que não só ao reino de Portugal, mas a
toda a Europa haviam dado alguns outros ministros de Sua
Santidade com a declarada , e descoberta cooperação, que con
tra todos os bons principios, e contra o decóro de sua mesma
Santidade , e de S. M. F. tinham manifestado , e estavam ma
nifestando sem rebuço na mesma corte cabeça da igreja a fa
vor dos execrandos insultos, e das abominaveis calumnias , que
todo o governo, e todo o commum dos regulares da Companhia
denominada de JESUS , tinham commettido no reino de Portu
gal, e seus dominios, estavam espalhando em toda a Europa .
40.º Instando finalmente S. M. F. em conclusão de tudo

a indefectivel justiça, a apostolica prudencia, e o paternal af


fecto de Sua Santidade : Primeiro por uma reparação tal, e tão
significante, que fizesse cessar com a promptidão , que era ne
cessaria , aquellas, e outras igualmente justas queixas com o
publico escandalo, que d'ellas havia resultar: Segundo, para
que dissipando assim o mesmo santissimo padre os obstaculos,
que haviam impedido os caminhos de chegar a sua presença a
verdade, que era notoria , não só ao reino de Portugal, mas a
todas as quatro partes do mundo descoberto , fizesse reduzir o
sobredito breve aos competentes, e decorosos termos, em que
haviam sido concebidos todos os outros breves, que a curia de
Roma, havia expedido nos casos similhantes, manifestos pelas
copias, que se lhe remetteram .
41. A força, e a notoriedade d'estas indispensaveis ins
tancias, fizeram com que a justiça, e a necessidade d’ellas, não
podessem ser inteiramente supprimidas, e occultadas ao conhe
cimento de Sua Santidade : seguindo-se das incompletas no
ções, que d'ellas chegaram ao santissimo padre os effeitos, de
nomear Sua Santidade o eminentissimo, e reverendissimo car
deal Cavalchini para conferir com o ministro plenipotenciario
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 125

de Sua Magestade Fidelissima, e de se esperar, que mediante


a probidade, e a justiça d'aquelle eminentissimo Purpurado,
se reduziriam as instancias de Sua Magestade Fidelissima aos
termos, justos, e decorosos ; sem a necessidade de se passar ás
individuaes explicações ulteriores acima deduzidas.
42.° Tornando porém logo a prevalecer a parcialidade
do mesmo ministerio politico de Sua Santidade, expediu em
28 de novembro do mesmo anno de 1759 o cardeal secretario
de estado ao ministro de Sua Magestade Fidelissima na Curia
de Roma um officio tão inesperado, e tão intempestivo , que
n'elle fez aquelle eminentissimo Purpurado outra demonstração
clara, e decisiva de que o seu objecto fôra sempre o mesmo
de exacerbar cada dia mais o animo de Sua Magestade Fide
lissima, e de provocar o seu real, e indispensavel decoro, de
sorte que o impossibilitasse para proseguir a negociação, afim
de que Sua Santidade não fosse pelo decurso della completa
mente informado dos factos acima referidos : proseguindo o
mesmo ministerio aquelle sedicioso plano , até vir finalmente a
declarar a El-Rei Fidelissimo um formal rompimento em no
me de Sua Santidade.
43.° Pois que no referido officio de 28 de novembro do
anno proximo precedente , depois de haver o mesmo ministerio
por uma parte argumentado contra as mesmas notorias eviden
cias da rasão natural, das disposições de direito divino, natu
ral e das gentes ; e de todos os numerosos Breves, que foram
expedidos pela Séde Apostolica, nos casos similhantes '; para
insistir na negativa do Breve de consentimento perpetuo para
a relaxação dos réos de tão enormes delictos : depois de haver
por outra parte pretendido sustentar as irregularidades, que
tinha obrado o Nuncio de Lisboa para surprehender e estimu
lar a Sua Magestade Fidelissima: e depois de haver passado
a recriminar sem sombra de rasão o ministro plenipotenciario
da mesma Magestade, que com exemplarissima prudencia , e
egual zelo de evitar todo o desabrimento , havia tolerado todos
os effeitos da paixão do mesmo eminentissimo Purpurado aci
ma referidos : acabou o mesmo ministerio de manifestar os seus

1 Como ficam acima manifestos desde o § 12.0 até o § 16.º inclusive d'esta
deducção .
126 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

fins ; declarando a guerra a Sua Magestade Fidelissima nas ex


traordinarias expressões, em que significou .
Que pelo que respeitava aos religiosos da Companhia de
JESUS, e ás resoluções acerca d'elles tomadas, e já em gran
de parte executadas por Sua Magestade Fidelissima; Sua San
tidade havia bastantemente exprimido os seus invariaveis sen
timentos na carta escripta sobre esta materia a Sua Magesta
de Fidelissima a quem havia sido communicado o theor della
desde o principio do mes de setembro proximo precedente, co
mo atteståra o secretario de estado D. Luiz da Cunha no seu

mesmo bilhete de 7 do dito mez : Que os sentimentos pontificios


eram invariaveis sobre aquelle artigo, por serem apoiados pe
la justiça , a qual não permitte nem que os innocentes sejam
confundidos com os culpados; nem que a pena , que por acaso
merecerem alguns individuos (para o castigo dos quaes Sua
Santidade tinha já concedido toda a referida faculdade) se es
tenda nas suas consequencias ao damno, e descredito do corpo ,
professando um Instituto approvado, e recommendado pelos
Summos Pontifices Predecessores do Santissimo Padre, è util
á Igreja Catholica, o qual gosa da protecção da Santa Sede,
e de Sua Santidade : E que os sentimentos do Santo Padre
eram invariaveis no referido ponto, tambem por serem cohe
rentes, ao que se tinha convencionado entre as duas côrtes,
quando El- Rei Fidelissimo propóz o caso ao Papa Benedi
cto XIV de boa memoria , e este abraçou o partido da deputa
ção de um visitador apostolico etc.
44.° De sorte que tratando- se de um Monarcha assassi
nado dentro da sua mesma corte por maquinações de uma con
gregação de Regulares pelo seu Santo Instituto dedicados a
Deus ; de um monarcha sobre aquelle execrando desacato ag
gravantissimamente offendido por quasi anno e meio na mesma
corte cabeça da Igreja Catholica na forma, que fica manifesta
n'esta deducção, e de um Monarcha emfim por todos estes mo
tivos acredor das mais publicas e significantes reparações da
parte de Sua Santidade: não bastando ao mesmo ministerio
politico da Curia de Roma usar n’aquelle seu sedicioso officio
de expressões tão indecentes, e tão arrogantes ; como foram , as
com que se pretendeu ingerir no governo economico do mesmo
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 127

reino de Portugal, para a elle serem restituidos os jesuitas ex


pulsos pelas leis de Sua Magestade Fidelissima; como foram ,
as com que se atreveu a arguir a indefectivel justiça do mes
mo monarcha : passou a declarar-lhe formalmente a guerra :
primeiro na intimação igualmente arrogante de que a Curia
de Roma seria invariavel aos sentimentos de pretender pertur

bar o governo economico, que a Sua Magestade Fidelissima


sómente compete no seu reino para n’elle conservar, e delle
despedir a quem bem lhe parecer : segundo na outra intima
ção de haver tomado, e de sustentar debaixo da protecção da
mesma Curia os abominaveis Regulares, cujo governo havia
maquinado, o referido insulto execrando de 3 de setembro do
anno de 1758 , e as abominaveis, e sediciosas calumnias , que
depois d'elle se seguiram na forma acima declarada .
45.° Em cuja evidencia é certo que não pode haver de
clarações de guerra mais formaes, do que foram , as que tem
feito o dito ministerio politico de Sua Santidade ; primeiro com
os factos insultantes , que pratica ha quasi anno e meio na fór
ma acima declarada; logo com os successivos escriptos, que
tem dirigido á côrte do mesmo Monarcha tambem na forma,
em que se acham acima indicados, concebendo -os, em termos
que ainda não seriam decentes para serem mandados ás lega
ções de Bolonha , ou Ferrara ; depois attentando por palavras
expressas contra a independencia do governo temporal e eco
nomico da mesma Magestade Fidelissima ; no qual governo
economico nem ainda os paes de familias particulares podem
ser perturbados por pessoas estranhas ; e ultimamente declaran
do, que sempre seria fautor, e protector dos sobreditos Regu
lares rebeldes, assassinos, e publicos adversarios do mesmo
Monarcha, e dos seus reinos e vassallos ; por taes não só juri
dicamente convencidos, e julgados sobre provas claras, eviden
tes, e exuberantes, pelo mais autorisado, mais qualificado , e
mais numeroso tribunal, que nunca se tinha erigido na corte
de Lisboa ; mas tambem por taes proscriptos ainda com maior
solemnidade por uma lei do mesmo Monarcha Fidelissimo :
não se podendo duvidar n'estes termos, nem de que entre as
potencias soberanas é visto declarar a guerra aquelle Principe,
que attenta contra a reputação de qualquer outro Principe :
1 28 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

que lhe intenta perturbar o governo interior dos seus estados :


e que publica, e formalmente toma o partido dos seus decla
rados inimigos ; como o tem praticado o dito ministerio poli
tico de Sua Santidade.

46. Comtudo o prudente zelo, com que o ministro ple


nipotenciario do mesmomonarcha procurava evitar as extremi
dades, a que o eminentissimo cardeal secretario de estado ti
nha reduzido uma negociação , que de sua natureza não admit
tia a menor duvida, o fez exceder de tal sorte as suas instruc
ções, que sem haver dado o menor conhecimento á sua corte
d'aquelle decisivo officio de 28 de novembro do anno proximo
precedente, ainda passou no dia 4 de dezembro do mesmo an
no de 1759 o officio , que tem a data d'aquelle dia ; propondo
um meio termo para a expedição do Breve de consentimento
perpetuo ; e deixando o mais em silencio até receber as ordens
1
da sua corte .
47. Sobre este systema de se ficar tratando só domodo ,
em que se havia de conceber a minuta para a expedição do re
ferido Breve, até o dito ministro receber novas ordens da sua
corte, lhe passou o mesmo cardeal secretario de estado em 12

do mesmomez de dezembro o outro insignificante officio , a que


elle respondeu no dia 13 , instando pela cathegorica resposta,
que fazia o objecto das suas instrucções; e recusando entrar
em mais explicações com aquelle prelado, que a sua declarada
paixão tinha feito inhabil para manejar aquella negociação em
tão delicadas, e escabrosas circumstancias.
48. Pareceu ao mesmo ministro plenipotenciario, que
assim o havia concedido Sua Santidade : porque no dia seguin

te 14 d'aquelle mez dedezembro recebeu pela mão do eminen


tissimo cardeal Cavalchini a minuta de um novo Breve de con
sentimento pontificio , que lhe causou grande prazer: pois que
ainda na substancia não era admissivel, comtudo lhe dava um
significante indicio de que ao conhecimento de Sua Santidade
haviam chegado as informações da precisa necessidade, em que
se achava a sua paternal consideração , e o seu decoro pontifi
cio de satisfazer ás desmerecidas offensas feitas na corte de Ro
ma a Sua Magestade Fidelissima, excluindo o eminentissimo
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 129

Torriggiani de uma negociação, para que elle mesmo se tinha


inhabilitado por tantos e tão manifestos modos .

49. Nesta intelligencia passou o dito ministro ao mes


mo eminentissimo cardeal Cavalchininos dias 20 e 21 do mez
de dezembro tres officios sobre as correcções, de que necessi

tava a minuta do Breve , que d'elle havia recebido .


50. Não durou porém muito aquella esperança . Antes
pelo contrario , sabendo o mesmo ministro plenipotenciario que
o negocio se achava em bem diversos termos : Sendo urgentis
simamente obrigado pelas instrucções da sua corte a despachar
para ella com a ultima resposta da curia de Roma: E recean
do justamente que a demora lhe fosse imputada : Escreveu um
bilhete no dia 26 do mesmo mez de dezembro ao cardeal Tor
riggiani, reduzindo-se n'elle a pedir -lhe os cavallos de posta
para expedir um correio á corte de Lisboa , sem lhe fallar no
negocio , que corria até então pelo eminentissimo cardeal Ca
valchini.

51. Logo mostrou a experiencia ao mesmo ministro ple


nipotenciario que a reparação que elle suppunha feita a El-Rei
seu amo, estava desvanecida, havendo tornado para as mãos
do mesmo eminentissimo cardeal secretario de estado a nego
ciação , que se tinha julgado entregue á direcção do eminentis
simo cardeal Cavalchini: Porque no dia seguinte 27 do referi
do mez de dezembro com a resposta, que lhe fez omesmo emi
nentissimo secretario de estado, sobre a licença para se lhe da
rem os cavallos de posta , lhe remetteu outra minuta de Breve
concebida nos mesmos identicos termos, em que o eminentis
simo Cavalchini havia conferido com o dito ministro plenipo
tenciario .
52. Resposta , e remessa , com as quaes ficou outra vez
o negocio reduzido aos escabrosos termos, em que se achava
antes de n'elle entrar o dito eminentissimo Cavalchini: Faltan
do a El- Rei Fidelissimo todas as exuberantes satisfações, que
se devem á sua authoridade regia, depois de lhe haver por tan
tos modos declarado a guerra o ministerio politico de Sua San
tidade: E sendo aliás até a dita ultima minuta de Breve con
cebida em termos differentes assim dos dois precedentes Bre
ves expedidos para o reino de Portugal pelo Santo Padre Gre
VOLUME I 10
130 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

gorio XIII, com a suppressão , do que entre elles devia servir


de base para a ampliação , como dos mais acima referidos :
ficando por tudo Sua Magestade Fidelissima nos termos da
guerra, que lhe tinha declarado a curia de Roma, na fórma
acima declarada .
POST - SCRIPTUM

53.° Por carta firmada pela real mão de Sua Magestade


Fidelissima, e dirigida a Sua Santidade em fórma authentica,
ou ao grande sello da sua chancellaria de estado em 2 de no
vembro do anno proximo precedente de 1759; affirmou de seu
proprio facto o mesmo Monarcha ao Santissimo Padre a demis
são que na sua real presença havia feito o arcebispo da Bahia
D. José Botelho de Mattos : Apresentando na vacatura d'elle para
aquella igreja do seu realpadroado o bispo de Angola D. Fr. Ma
nuel de Santa Ignez : E exprimindo tudo em termos tão claros
como são os seguintes :
Achando-se vago o arcebispado da Bahia do padroado da
minha corôa por demissão que delle fez nas mãos de Vossa
Santidade com licença minha o actual arcebispo D. José Bote
lho de Mattos : Nomeio, e apresento a Vossa Šantidade para o
dito arcebispado a D.Fr.Manuel de Santa Ignez, bispo de An
gola etc.
54.° Pendente a expedição das bullas do sobredito arce
bispado, chegou a Roma a Gazeta de Amsterdam , em que se
fez ao sobredito arcebispo D. José Botelho deMattos a desme
recida injuria de o supporem rebelde ás leis de Sua Magestade
Fidelissima, ou fautor dos jesuitas expulsos.
55. É bastou esta noticia apoiada por pessoas que não
são occultas á corte de Lisboa , para que o mesmo ministerio de
Sua Santidade fizesse suspender a expediçãodas referidas bullas :
Tomando por pretexto a falta de titulo justificativo da demis
são do sobredito arcebispo D. José Botelho de Mattos : Aggra
vando ainda mais com esta declaração feita ao ministro pleni
potenciario de Sua Magestade Fidelissima todos os outros in
sultos acima referidos: E dando outra clara , e manifesta pro
va de que tinha rompido com o dito Monarcha.
56. Pois que de outra sorte,nem violaria aquelle minis
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 131

terio até os mesmos textos sabidos de direito canonico , que


estabeleceram a fé inviolavel da palavra dos principes sobera
nos, quando affirmam do seu proprio facto , como tinha affir
mado Sua Magestade Fidelissima na presença do Santissimo
Padre por modo tão authentico, que sobre a demissão, e licen
ça , que havia dado ao dito prelado , apresentava outro para
lhe succeder : Nem tomaria a liberdade de romper toda a im
munidade do regio decoro para fazer o mesmo facto da demis
são affirmado por aquelle authentico modo por Sua Magestade
Fidelissima, e a sua real, e augusta palavra, dependentes de
outras provas menos significantes.
57. Concluindo-se por mais este demonstrativo facto ,
que o referido ministerio não quiz desperdiçar modo algum de
romper com o dito Monarcha, animado pelo espirito de discor
dia, cujas causas se não podem esconder com qualquer refle
xão , que se faça sobre estes excessos voluntarios, por mais que
o discurso se queira moderar, e se procure contrahir.

Como o Papa recusasse dar audiencia a D. Francisco d'Al


mada , foi esta Deducção entregue ao cardeal Orsini, acompa
nhada d'um officio que expunha os motivos da expulsão de
Portugal do nuncio .
N'este officio queixava -se Sua Magestade Fidelissima de va
rios escandalos temerarios e sediciosos do cardeal Acciajuoli, e
das offensas, que a cada passo praticava contra o governo de
Sua Magestade, acrescentando que aquella sua conducta par
ticular se seguiram insultos publicos, bem como um manifesto
despreso pela authoridade e dignidade do rei. Expunha o mes
mo officio que
, tendo Sua Magestade, por occasião do consor
cio do infante D. Pedro com a princesa do Brasil, a 6 de ju
nho de 1760, ordenado que por tres noutes houvesse lumina
rias, toda a população e os embaixadores estrangeiros, em si
gnal de respeito pela authoridade regia, se conformaram com
esta ordem : mas que o nuncio, debaixo do pretexto de não ter
recebido participação official do dito matrimonio , o que era
costume, não só despresara dar aquella mostra de respeito,mas
havia além d’isso fechado de tal sorte as janellas da casa da
132 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

sua habitação durante as referidas tres noutes, que não foi pos
sivel descobrir-se n’ella nem uma só luz . D. José, altamente
provocado por esta ultima affronta , determinou acabar com a
insolencia do nuncio . Por conseguinte , em 14 do mesmo mez
de junho de 1760, recebeu o cardeal uma carta de D. Luiz da
Cunha, na qual este ministro , por ordem de Sua Magestade,
intimava Sua Eminencia para que logo, immediatamente á apre
sentação da dita carta , houvesse de sair da côrte de Lisboa
para a outra banda do Tejo, e saisse via recta do reino de
Portugal no preciso termo de quatro dias, participando-lhe ao
mesmo tempo, que se achavam promptos os reaes escaleres na
praia fronteira á casa da sua habitação para o seu decente
transporte, e que uma decorosa , e competente escolta militar
o acompanharia até á fronteira do reino .
Um despacho de lord Kinnoul, de 14 d'abril de 1760 ,
prova -nos o máu procedimento d'este nuncio e as suas intrigas.
Tanto o embaixador francez, mr. de Merle , como o nuncio ,
não dissimulam o seu descontentamento, e fallam do conde
d'Oeiras sem reserva em termos desabridos. )
Em 14 de junho de 1760,Luiz de Mendonça , governador
interino da torre de Belem , apresentou -se ao nuncio , e disse
lhe que tinha ordem de Sua Magestade para acompanhal-o a
Aldea -Galega . Foi em vão que o nuncio contestou , e em tres
horas poz-se a caminho. A gente da plebe estava tão exaspe
rada pelo insulto que o nuncio fisera a El-Rei, que quiz lar
gar- lhe fogo á casa .
Por este tempo foram desterradas da côrte algumes pes
soas por cumplicidade nas maquinações do nuncio , ou por te
rem correspondencia secreta com os jesuitas. O visconde de
Ponte do Lima teve ordem de retirar -se para o Porto, e o con
de de S. Lourenço para Miranda. Em 21 de julho de 1760
Sua Magestade mandou que D. Antonio e D. José saissem
da sua quinta de Palhavā debaixo d’uma escolta militar, e fos
sem levados para cima de Coimbra, onde deviam ficar. D. José
era o inquisidor geral. Com quanto a bondade d’El-Rei fosse
illimitada para com estes bastardos, Motta e o Conde d'Oeiras
foram sempre avessos a que elles fossem elevados á cathego
ria de principes de sangue. Veio a descobrir -se que estavam
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 133

em correspondencia secreta com o nuncio . O outro irmão , que


é arcebispo de Braga , não incorreu n’aquelle desagrado.
Ainda bem se não sabia em Roma a maneira rigorosa co
mo se procedera para com o nuncio , já o Papa cessara toda a
correspondencia com D. Francisco d’Almada, e , como se de
clarasse haver rompimento entre as duas cortes, em 2 de julho
foram todos os portuguezes residentes em Roma obrigados a
sair immediatamente d'aquella cidade.
Como as causas d'este rompimento se acham tão ampla
mente expendidas na referida Deducção, é inutil apresentar pro
vas algumas mais em abono da politica , que Pombal então ado
ptou. O Papa havia mui arbitraria e inconstitucionalmente que
rido intervir na authoridade regia , e Pombal fez o que todo o
ministro patriotico, que aprecia a liberdade e a independencia
do seu paiz, deve fazer : tomou a resolução de, custasse o que
custasse, jamais reconhecer a potencia nenhuma estrangeira o
direito de intrometter-se no governo interior de Portugal. E até
os seus mais encarniçados inimigos devem admittir , que n'isto
lhe assistia a rasão, porque pertenções tão banaes como as do
inherente direito do Padre Santo intervir no governo temporal
das nações da Europa , só tendem a degradar a dignidade pon
tificia do vigario de Christo aos olhos do mundo christão. Além
d’isso, os scismas, que inevitavelmente similhante systema deve
animar, degeneram em licenciosidade, acabando por fim , de

pois que os partidos se constituem em cabeças de suas pro


prias igrejas , de destruir -se completamente não só a mesma
authoridade ecclesiastica , mas com ella tudo que é christão e
biblico .

De todos os factos expendidos se vê que a causa mobil da


prolongada disputa , que pendia entre as duas côrtes, foi o pro
cedimento do cardeal Torregiani. Este ministro de estado do
Summo Pontifice preferiu que as suas paixões secretas e juisos
particulares dominassem todos os sentimentos do decoro e da
prudencia , com que teria conciliado as cortes da Europa em tão
critica epoca para o poder da santa sé. N’uma carta particular
escripta de Vienna ao tempo do regresso do cardeal Acciajuoli
á Italia , quando foi expulso de Lisboa , acham -se os sentimen
tos do dito cardeal a respeito de D. José e do seu ministro as
434 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

sim expressos : « O marechal Botta , em uma carta datada de


Florença , diz que o nuncio lhe asseverou que o cardeal Accia
juoli, na sua passagem por Florença, tinha declarado o juiso
que formava d'el-rei nosso soberano, dizendo que era um mo
narcha muito perfeito, cheio de sentimentos religiosos, e de de
voção para com a igreja ; e que o conde d'Oeiras era um gran
de ministro dotado de verdadeira piedade e religião. Que os
jesuitas foram sem a menor duvida os authores da tentada morte
de sua magestade el-rei D. José ; e, se elle (Acciajuoli) tinha
tido a desgraça de cair no desagrado da corte de Portugal nos
ultimos acontecimentos da sua residencia , foi por ter executa
do as ordens do cardeal Torregiani. E uma carta de Milão diz
que Acciajuoli expressou os mesmos sentimentos em Roma,
circumstancia que excitou consideravel sensação n’aquella ci
dade.

Finalmente , o socego geral do paiz foi repetidas vezes at


testado durante este reinado tanto por mr. Hay como por lord
Kinnoul. « É com o maior praser que vos participo que, sem
embargo dos falsos boatos que leio em nossos periodicos intei
ramente destituidos de fundamento , reina aqui a maior tran
quillidade publica .» E é d'aqui que muitos tem pertendido in
ferir as acções de Pombal, descrevendo- as. Ainda outra vez tor
na o ministro inglez : « Os estranhos boatos, que outras nações
fazem repercutir n'esta , levam -me a necessidade de vos repe
tir que reina actualmente n'este paiz a mais perfeita tranquil

lidade publica .»
Orā , um caso que muito commentado foi n'aquelle tempo ,
acha -se referido n’um despacho de mr. Hay de 24 de janeiro
de 1761, da maneira seguinte: Sabendo que frequentemente
se espalham falsidades acerca do que se passa n’este paiz, to
mo a liberdade de mencionar um caso que hontem occorreu , e
que causou certo abalo em principio aos negociantes,mas que,
segundo me informaram , muda muito de figura . Hontem de
manhã foi a casa de mr. Tremoul, negociante italiano , sitiada
por uma escolta militar, tendo -se ordenado ao seu socio Nico
lini, que habita outra casa, que comparecesse. Isto á primeira
vista tem seus ares d’um acto de prisão, mas, pelo que vim a
saber , é apenas o resultado da attenção que o governo deu ás
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 135

repetidas representações de Nicolini fazendo ver as extravagan


cias do seu socio , e certas prevaricações relativas ás letras
commerciaes, a que o governo julgou conveniente pôr termo.»
As letras que tinha feito montaram a 20 :000 libras, e tratava
de escapar -se do reino.
CAPITULO XI

Regulações para Lisboa ser reedificada ; abolição da mesa dos homens de nego
cio ; estabelece uma nova mesa ; os seus fins ; é concedido á nobresa entrar
na companhia do Maranhão e Pará ; varios decretos ; civilisação dos indios;
meios excellentes que Pombal emprega ; creação da aula do commercio ; fun
da-se a companhia de Pernambuco e Paraiba ; meios de ensino ; estes mesmos
adoptados em Vienna; os jesuitas começam a perder a sua influencia n'aquella
capital ; lord Kinnoul é enviado a Lisboa para dar satisfação da conducta do
almirante Boscawen ; alguns conventos extinctos e outros reformados; extrac
tos dos officios da secretaria do estado intercalados no capitulo .

Passemos agora a registar algumas das importantes refor


mas que então , e durante alguns annos mais , occuparam a
attenção de Pombal. Nomais insignificante decreto promulgado
em nome de D. José vemos assignalado o cunho do genio su
perintendente do ministro, quer consideremos a grandesa e jus
tesa da concepção , quer ponderemos as correctas e elaboradas
circumstancias por que se poz em execução. Já esbocei as me
didas que elle immediatamente empregou, por occasião do in
fausto terremoto , para remediar os males e alliviar os soffri

mentos fortuitos de tão calamitosa commoção physica . Deram


se as mais restrictas ordens, para que as ruinas fossem inspec
cionadas, e tomaram -se as mais rigorosas precauções para que
a cada um se assegurasse não só a propriedade, que desabara,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 137

mas a exacta extensão de terreno que possuia antes do terre


moto ; e para que os predios e palacios, que foram destruidos,
não fossem substituidos por outros predios irregulares e por
casebres. Foi publicado um decreto que prohibia que pessoa
alguma levantasse qualquer edificio que não fosse conforme o
plano geral, que Pombal delineara com tanto esmero . As ca
sas d'aquelles que tiveram a temeridade de desobedecer a este
decreto , foram demolidas sem haver o menor favor nem ex
cepção .
Uma das cousas que em varias reformas concorreram para
que Pombal podesse effectual-as, foi o estulto procedimento da
opposição, contra quem as mesmas reformas se dirigiam . Por
exemplo ; algum tempo depois da fundação da companhia do
Grão Pará e Maranhão em 1755 , a mesa dos homens de ne
gocio sollicitou de Sua Magestade uma audiencia , de que abu
sou indigna e escandalosamente, fallando da companhia em ter
mos os mais desabridos e acerbos, predizendo fatalissimas con
sequencias ao paiz, e ameaçando com serios disturbios do
povo, os quaes não podiam ter por origem senão a sua sedi
ciosa linguagem .Este insulto , feito á authoridade regia, foi cor
rigido pela immediata demissão dos membros da referida me
sa, sendo em seguida obrigados a retirarem -se para differentes
pontos do reino distantes de Lisboa , entretanto que proceden
do -se sem dilação a uma rigorosa investigação sobre o porte
e direcção da mesma mesa, se provou que os abusos e fraudes
que se haviam introduzido na administração dos negocios da
sua jurisdicção, além dos monopolios que gosava, justificaram
inteiramente as medidas que Pombal empregou , e demonstra
ram a causa da opposição e arguições . Por conseguinte decre
tada, em 30 de setembro de 1756, a abolição da mesa dos
homens de negocio , foram Pombal e o desembargador Ignacio
Ferreira Souto encarregados de formarem um corpo de estatu
tos para uma nova junta de commercio , que se organisou ain
da antes de findo aquelle anno.
Esta util junta , cujo fim para que fora creada era proteger
e animar o commercio em todos os dominios portuguezes, com
punha -se d’um provedor, um secretario , um procurador, seis
deputados, sendo quatro de Lisboa e dous do Porto , um juiz
138 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

conservador, e um procurador fiscal, todos necessariamente


portuguezes legitimos ou estrangeiros naturalisados, e triennal
mente eleitos. Tinha a seu cargo a superintendencia do com
mercio , devendo obstar ao contrabando , e punil -o, passar li
cenças para a abertura de lojas de retalho, ou negal-as segundo
entendesse convir ou desconvir, sendo - lhe tambem delegado
o poder de visitar e inspeccionar as que se achavam abertas.
A delegação d’este poder inquisitorial foi necessaria para que
fossem reprimidos os abusos, que se praticavam no negocio de
retalho , como a venda de artigos de contrabando , e a posse
cumulativa de duas ou mais lojas em um só negociante, pois
que , n'este caso , sem embargo d'ellas existirem claramente em
nome de donos diversos, dava -se muitas vezes o caso dos ge
neros, que as basteciam pertencerem a outro dono , e este ser
estrangeiro . Comtudo , esta clausula, como depois se verá , di
rigia-se com especialidade aos inglezes, porque usurpavam o
principal commercio , e ganhavam consideravelmente com o ne
gocio de retalho . Os ordenados, que estes empregados venciam ,
eram pequenos, e tirados d’um leve imposto lançado sobre os
generos despachados nas alfandegas.
Outro traço notavel da administração foi o alvará , que em
5 de janeiro de 1757 se promulgou em nome de Sua Mages
tade declarando « que não prejudicaria á nobresa herdada de
qualquer pessoa interessar-se na companhia geral do Grão Pará
e Maranhão ; pois que tendo por objecto fazer florecer nos rei
nos, e senhorios do mesmo senhor o commercio , de que depen
dia tanto a utilidade de cada um em particular, como a do
bem publico do estado, era não só indifferente , mas decoroso
a todas as pessoas, ainda ás de maior grandesa, e qualidade,
interessarem -se n’ella .» Se até hoje a nobresa de Portugal ti
vesse obrado debaixo do principio desta sabia medida, não se
veria agora opprimida pela necessidade,nem soffreria as amar
gas recordações da primeira grandesa. E , comtudo , nada tem
a exprobrar. A sua propria indolencia , baseada n’um indoma
vel orgulho, mergulhou -a em difficuldades, donde não pode ti
rar -se senão á custa de grandes fadigas, d'uma diligente admi
nistração e ingerencia pessoal nos seus negocios : e isto porque
não ha fidalgo portuguez, por pequenos que sejam os seus ren
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 139

dimentos, que passe sem


delegar a administração dos seus bens
a uma segunda pessoa sua subordinada, sendo este o motivo
porque a maior parte das vezes se vê arruinado, e sempre de
predado. Eis, emfim , a rasão porque muitas das mais bellas pro
priedades d’este paiz jazem em ruinas, e seus donos namiseria .
Pouco depois da formação da junta do commercio, foi rees
tabelecida a real fabrica da seda , dando-se nova vida a este
ramo de industria quasi esquecido .
Para seguir a ordem chronologica dos mais preeminentes
decretos, que então se promulgaram , devo observar que era tal
o estado de servidão , em que o clero tinha o paiz , e a que o
reduziu o calamitoso reinado de D. João V , que D. José se viu
na absoluta necessidade de publicar um alvará confirmando a
sua prerogativa de edificar quaesquer igrejas em seus domi
nios sem para isso precisar de licença ecclesiastical
E impossivel passar em silencio , e sem expressar a maior
admiração pelas humanas e excellentes leis ,que em 1757 e 1758
se fizeram para civilisar os indios da America meridional. Além
de merecerem os maiores louvores, e honrarem altamente a

humanidade e sabedoria de Pombal, podem mesmo servir de


norma em todas as empresas futuras da civilisação dos povos
selvagens. O governo temporal assumido pelos jesuitas no Pa
rá e Maranhão foi abolido por um alvará de 7 de junho de 1755 ,
o qual delegou o mesmo das diversas povoações aos seus res
pectivos regedores . Comtudo, Pombal viu que ainda era preciso
emendar a lei, confiando a jurisdicção de cada povoação a um
director nomeado pelo governador do estado. Este alvará, de
3 de maio de 1757, contem as mais excellentes medidas para
a felicidade da colonia . Começa por mandar que se estabele
cesse o uso da lingua portugueza n’aquelles dominios, porque
« é este um dos meios mais efficazes para desterrar dos povos
rusticos a barbaridade dos seus antigos costumes ; e por ter
mostrado a experiencia , que ao mesmo passo que se introduz
n'elle a lingua do principe, que os conquistou , se lhes radica
tambem o affecto, à veneração , e a obediencia ao mesmo prin
cipe.» Mandava por isso que «haveria em todas as povoações
duas escolas publicas, uma para os meninos, na qual se lhes
ensinasse a doutrina christã , ler, escrever, e contar na fór
140 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

ma, que se praticava em todas as escolas das nações civilisa


das; e outra para as meninas, na qual, além de serem instrui
das na doutrina christă , se lhes ensinaria a ler , escrever, fiar,
fazer renda , costura , e todos os mais ministerios proprios da
quelle sexo .» Ordenava tambem que os directores não consen
tissem , que pessoa alguma chamasse negros aos indios, nem
que elles mesmos usassem entre si d'este nome, para que com
prehendendo que lhes não competia a vilesa do mesmo, podes
sem conceber aquellas nobres idéas, que naturalmente infun
dem nos homens a estimação e a honra, e conhecessem que
não eram escravos,de que, digamol-o para sua gloria , os eman

cipou Pombal. Prohibiu -se-lhes que assistissem diversas fami


lias em uma só vivendo como brutos, e faltando ás leis da ho- ·
nestidade , devidas á diversidade dos sexos, sendo talvez espe
cialmente o exercicio da torpesa , diz Pombal, os primeiros ele
mentos com que os paes de familias educavam os seus filhos.
A cultura do arroz, feijão , milho e algodão, foi animada , sen
do estes productos naturaes exportados em troca de manufa
cturas da Europa, no que se deu um passo de grande sabedo
ria , abrindo -se ao paiz uma fonte de commercio e de riquesa
mais apreciavel do que quantas minas de ouro jamais se hou
vessem descoberto . Em proporção das arrobas de tabaco com
que cada um dos indios entrasse na casa da inspecção , assim
se lhes distribuiam os empregos, e os privilegios. Para que o
governador do estado, sendo informado d'aquelles indios, que
entregues ao abominavel vicio da ociosidade faltassem á im
portantissima obrigação da cultura das suas terras, podesse
dar as providencias necessarias para remediar tão sensiveis
damnos ; foram obrigados os directores a remetter todos os an
nos uma lista das roças, que se fizessem , declarando n’ellas
os generos, que se plantaram , pelas suas qualidades ; e os que
se receberam ; e tambem os nomes assim dos lavradores, que
cultivaram os ditos generos, como dos que não trabalharam ;
explicando as causas, e os motivos, que tiveram para faltarem
a tão precisa, e interessante obrigação ; para que á vista das
referidas causas podesse o mesmo governador louvar em uns
o trabalho , e a applicação, e castigar em outros a ociosidade
e a negligencia.»
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 141

Acha -se finalmente declarado n’este importante documento


que : « Sendo pois a cultura das terras o solido principio do
commercio, era infallivel consequencia , que este se abatesse á
proporção da decadencia d'aquella .» Pombal continua obser
vando que : «Entre osmeios, que podem conduzir qualquer re
publica a uma completa felicidade, nenhum é mais efficaz, que
a introducção do commercio, porque elle enriquece os povos,
civilisa as nações , e consequentemente constitue poderosas as
monarchias. Consiste essencialmente o commercio na venda,

ou commutação dos generos , e na communicação com as gen


tes, e se d'esta resulta a civilidade, d'aquella o interesse , e a
riquesa. .....“ É certo indisputavelmente, junta elle , que na li
berdade consiste a alma do commercio . »
Por estas ultimas observações não podemos deixar de per
ceber quão rigorosamente Pombal seguia os passos de Sully,
cujo systema era que, primeiro que se estabelecessem as artes,
ou sobretudo que se devessem sustentar , devia a agricultura
achar -se florecente. Oxalá que as idéas d'estes dous vultos pos
sam influir nos ministros que hoje governam os destinos de
Portugal, e que faça que mudem o systema de acanhada po
litica que seguem em materias commerciaes. -
Todavia , não foi só da agricultura e do commercio , como
da civilisação dos indios, ou do socego e da prosperidade do
paiz , que Pombal se occupou exclusivamente . Não lhe faltou
o tempo para dirigir a reedificação e o aformoseamento da ci
dade, o que os muitos edificios que ainda existem , e as innu
meras leis que ordenaram e regularam a sua construcção, at
testam sufficientemente .
Até 1759 não houve em Lisboa instituição alguma onde
se podesse estudar o curso do commercio, vendo -se por isso
os negociantes obrigados a mandar vir de Venesa ou deGeno
va os seus guarda -livros. Pombal, tomando então na devida
consideração esta grande deficiencia, fundou , por decreto de
19 de maio do mesmo anno de 1759, a aula do commercio
para os alumnos, que seguissem esta carreira , serem instruidos
em todos os conhecimentos commerciaes , e collocou -a sob a
direcção da junta do commercio . Os fructos d'este estabeleci
1 Isto foi escripto em 1841, achando -se então o author em Portugal.
142 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

mento amadureceram , e viram -se perfeitamente em 1775 ,


quando em publico e na presença dos ministros e outros func
cionarios do estado, teve logar o exame de 200 alumnos, cuja
proficuidade em todos os ramos de arithmetica e materias
commerciaes , além da nautica e os mais estudos annexos , não
só os honrou a si, mas tambem á instituição, e ao seu fun
dador .
Entre outras empresas, que durante esta epoca tiveram lo
gar, houve a fundação d’uma associação commercial denomi
nada companhia de Pernambuco e Paraiba, ao passo que no
interior do reino se dava impulso á industria restaurando na
Beira as fabricas de lanificios, que se achavam quasi extin
ctas .
Já alludi aos meios que Pombal empregou para civilisar
os indios dos dominios portuguezes na America meridional;
mas o que merece mais detida attenção , são os esforços com
que trabalhou para derramar a instrucção em Portugal, por
que talvez que ainda em nenhum seculo ou paiz houvesse um
ministro , que mais energicasmedidas adoptasse para fazer che
gar o ensino liberal a todas as classes dos seus conterraneos,
do que elle . Não houve meio , que estivesse ao seu alcance, de
que não se valesse para fomentar e nutrir o amor da sciencia
em Portugal , para que o poder e a influencia da nação cres
cessem e multiplicassem á proporção do progresso da civilisa
ção, mas não com mais rapidez. « Da cultura das sciencias,
diz elle , depende a felicidade das monarchias ; e o estudo das
letras humanas é a base de todas as sciencias. »
Para pôr em vigor estes principios promulgou o alvará de
28 de junho de 1759 lastimando a maneira extraordinaria co
mo as sciencias decaíram d'aquelle auge, em que se achavam
« quando,» diz o alvará , « as aulas se confiaram aos religiosos
jesuitas, em rasão de que estes com o escuro, e fastidioso me
thodo, que introduziram nas escolas d’estes reinos , e seus do
minios ; e muito mais com a inflexivel tenacidade , com que
sempre procuraram sustental- o contra a evidencia das solidas
verdades , que lhe descobriram os defeitos, e os prejuisos do

uso de um methodo, que, depois de serem por elle conduzidos


os estudantes pelo longo espaço de oito, nove, e mais annos,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 143

se achavam no fim d'elles tão illaqueados nas miudesas da


grammatica, como destituidos das verdadeiras noções das lin
guas latina e grega . »
Para se promover o estudo do latim , foi aberta uma aula
d'esta disciplina em todos os bairros de Lisboa para ser gra
tuitamente ensinada, e para que houvesse a facilidade possi
vel em estudal-a, foi expressamente prohibida a grammatica de
Manuel Alvares « como aquella , que contribue mais para fazer
difficultoso o estudo da latinidade.» Do mesmomodo se prohi
biu que
nas ditas classes de latim se usasse dos commentado
res de Manuel Alvares, Antonio Franco , João Nunes Freire,
José Soares, e em especial de Madureira «mais extenso e mais
inutil.» Foram approvados para uso escolar o Novo Methodo
da Grammatica Latina , por Antonio Pereira , e a Arte da Gram
matica Latina por Antonio Felix Mendes. Em todas as capitaes
das provincias se abriram aulas do mesmo genero, juntando
se- lhes outras de grego, rhetorica , philosophia , e alguns estu
dos mais. Ora , para evidentemente provar o amor, que tribu
tara á litteratura , e para manifestar a exaltada opinião que
formava da influencia que ella exercia sobre o homem , e na
esperança tambem de que os seus apostolos, os professores, ti
vessem maior elevação tanto na sua propria estima como na
do povo, determinou Pombal que elles gosariam os varios pri
vilegios inherentes aos fidalgos portuguezes ; o que, portanto ,
assim fez constar por meio d’um alvará .
N’um despacho de 3 de novembro de 1759, do ministro
portuguez em Vienna, e que se conserva no archivo da lega
ção , acha-se o seguinte lisongeiro testemunho da famigerada
reputação de Pombal, e da fama das suas reformas de ensino :
novo methodo para as classes de latim e grego estabeleci
das em Portugal foi aqui approvado ; e o presidente do conse
lho aulico expressou o desejo que tinha de ver o mesmo me
thodo usado no imperio.»
Os effeitos do sabio systema de ensino de Pombal adopta
do pelo governo austriaco , depressa se desenvolveram , o que
nos deixa ver um despacho posterior que prova a celeridade,
com que os jesuitas foram perdendo terreno nos dominios de
Maria Theresa . O ministro portuguez, n’um officio de 1 d'abril
144 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

de 1759, participa o seguinte ao seu governo : « O arcebispo


sabendo que os jesuitas ensinavam nos collegios as doutrinas
de Ballumbau e do seu commentador (authores a quem o crime
de Ravaillac fez notorios) prohibiu -as. Este prelado reprime os
jesuitas, e elles olham -no com temor, que n'elles cresce por co
nhecerem o respeito com que suas magestades olham as suas
virtudes e sabedoria . E nos mezes de setembro e novembro
seguintes acrescenta mais o enviado portuguez : « Fez-se saber
que a universidade de Vienna se tira das mãos dos jesuitas.
E , « suas magestades escreveram ao geral dos dominicanos e
dos agostinhos para lhes mandarem dous theologos instruidos
capazes de ensinarem a verdadeira doutrina, e de extirparem
a que os jesuitas introduziram nos estados de suas magestades
-doutrina perniciosa não só para as consciencias dos seus
vassallos, mas para a vida dos soberanos. Finalmente para
os privar quanto fosse possivel da educação da mocidade aus
triaca , foi- lhes tirado o Theresianum , ou collegio dos nobres,
e posto debaixo da direcção do arcebispo.
Não devo passar em claro um facto que por este tempo,
em 1759, occorreu , pois que honrou consideravelmente a fir
me e decidida conducta de Pombal, e fez que em toda a Euro
pa o seu nome fosse mais respeitado . O almirante Boscawen ,
perseguindo uma esquadra franceza commandada pelo almi
rante de la Clue, alcançou-a defronte de Lagos, porto do Al
garve, e, ali, esquecido do direito dos povos, e do respeito de
vido ás prerogativas de umapotencia neutral,tratou de atacal-a
e aprisional-a á vista d'aquella fortaleza de Portugal. Pombal,
logo que foi sabedor de similhante acontecimento , expediu im
mediatamente uma tão energica representação ao gabinete de
S. James, que lord Chatham , apreciando devidamente os moti
vos, que o levaram a dar este passo, e conhecendo o máo effei
to que um tal procedimento havia de produzir nas cortes da
Europa se não se explicasse, enviou lord Kinnoul a Lisboa para
justificar e pugnar pelo porte do almirante . 1

1 Sentimos que o author asseverando que o Marquez de Pombal expedira


acerca d’esta violação do direito internacional uma energica reclamação ao gæ
binete britanico , exigindo satisfação do facto ; e dando-nos em seguida os termos
d'essa satisfação expressados pela boca do lord Kinnoul, nos não desse igualmen
te copia da referida reclamação, que aliás deveria tambem existir nos archivos
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 145

Logo que a noticia d'este caso chegou a Inglaterra , lord


Chatham expediu um officio a mr. Hay, em que expressava o
sentimento , que lhe causava esta violação do direito das gen
tes, e concluia declarando, que « se as circumstancias attinen
tes á supposta offensa forem de grave naturesa, tão grande é
o desejo que o rei nutre de dar a mais publica e ostensiva sa
tisfação ao Rei de Portugal, que sua magestade britanica, se
gundo penso , não terá a menor duvida em mandar uma em
baixada extraordinaria n’esta conjunctura . D
Effectivamente lord Kinnoul partiu para Lisboa na quali
dade de embaixador , e, pouco depois que ali chegou , a 29 de

do Ministerio dos Estrangeiros da Gran -Bretanha . Para obviar em parte a esta


falla, e para tornarmos esta obra o mais completa possivel, reproduzimos o se
guinte notavel escripto que tem corrido até agora como sendo a reclamação al
Judida : reproduzimol-o pela energia de sua linguagem sem de modo algum de
fendermos a sua authenticidade: bem pelo contrario temol-o como apocripho e
indigno da grande intelligencia do Marquez, o qual jamais assiveraria que a In
glaterra não podia viver sem Portugal, e que estava na nossa mão precipital-a
ao nada d'onde a arrancámos, etc., expressões que mais se assimelham a brava
tas hespanholas, que a palavras dignas de serein proferidas pelo ministro que
em todos os actos do seu governo manifestou sempre a maior seriedade e conhe
cimento profundo dos negocios.
Fis o escripto :

CARTA DO MARQUEZ DE POMBAL AO MINISTRO DOS NEGOCIOS


ESTRANGEIROS D'INGLATERRA

Eu sei que o vosso Gabinete tomou um grande imperio sobre o nosso ; mas
tambem sei que é tempo de elle acabar . Se meus antecessores tiveram a fra.
queza de vos conceder quanto quizestes, eu nunca vos concederei senão o que vos
dever. É esta a minha ultima resposta, regulae-vos sobre ella . Eu vos rogo, que
menão façaes lembrar das condescendencias, que o nosso Gabinete tem tido para
com o vosso : ellas são taęs que não sei, que alguma Potencia ashaja tido seme
Ihantes para com outra . É justo que este ascendente acabe por uma vez, e que
façamos ver a toda a Europa, que temos sacudido o jugo de uma dominação
estrangeira . Nós não podemos provar isto melhor, que obrigando o vosso Gover
no a dar-nos satisfação, que por nenhum direito nos deve negar. A França olha
ria para nós como para um Estado enfraquecido, se não podessemos obrigar - vos
a dar razão da offensa , que nos fizestes, vindo queimar defronte dos nossos por
tos, navios , que deviam ter ali toda a segurança .
Vós não fazieis ainda figura na Europa , quando a nossa Nação era a mais
respeitavel. A vossa Ilha não formava mais que um ponto na Carta Geografica ,
ao mesmo tempo que Portugal a enchia com seu nome. Nós dominavamos na
Asia, na Africa, e na America, quando vos dominaveis somente em uma Ilha da
Europa . A vossa Potencia era do numero d'aquellas, quenão podem aspirarmais,
que á segunda ordem ; e pelos meios que nós vos demos, a tendes elevado á pri
meira .
Esta impotencia physica vos inhabilitava para estenderdes os vossos domi
nios fóra do continente da vossa Ilha, porque para fazerdes conquistas precisa
veis um grande exercito, mas para ter um grandeexercito , é necessario ter meios
VOLUME 1 11
146 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

março de 1760, foi admittido á presença de D. José, expre.


sando -se então nos termos seguintes :
« Tenho ordem do Rei da Gran Bretanha,meu augusto am
de declarar a Vossa Magestade Fidelissima, que Sua Mage
tade zela muito os direitos dos soberanos, e em particular (
respeitos devidos á honra da coroa de Portugal, motivo pel
qual soube com grande desgosto do incidente imprevisto e de
sagradavel acontecido junto de Lagos.
«Estes sentimentos de Sua Magestade lhe foram sufficien
tes (apesar de quaesquer duvidas, que se lhe podessem appre
sentar) para me encarregar d'esta missão extraordinaria junt

para lhe pagar : vós os não tinheis : a moeda de contado vos faltava : os que cal
cularam sobre as vossas riquezas acharam , que não tinheis com que sustenta
seis regimentos. O mesmo mar, que pode olhar -se como vosso elemento, não vo
offerecia maiores vantagens : com muito custo poderieis apenas equipar vint
navios de guerra .
Ha cincoenta annos porém a esta parte tendes vós tirado de Portugal mai
de mil e quinhentos milhões , somma enorme, e de que a Historia não fornect
exemplo, que alguma nação do mundo tenha enriquecido outra de um modo se
melhante. O modo de adquirirdes esses thesouros vos foi ainda mais vantajosci
que os thezoiros mesmos. Pelas artes é que a Inglaterra conseguiu fazer-se se ..
nhora das nossas minas. Ella nos despoja regularmente todos os annos do seu
producto . Passado um mez depois da chegada das frotas do Brazil, não fica em
Portugal uma só peça de oiro ; tudo tem passado para Inglaterra, o que contri
bue ainda hoje, e contribuirá sempre para augmentar a sua riqueza numeraria .
A maior parte dos pagamentos do banco são feitos com o nosso oiro .
Por uma estupidez, de que tambem não ha exemplo na Historia Universal do
Mundo Economico, nós vos démos a faculdade de nos vestirdes, e de nos forne
cerdes todos os objectos do nosso luxo, que não é pouco consideravel. Nós damos
de que viver a quinhentos mil artistas, vassallos do Rei Jorge; população esta
que subsiste à nossa custa na Capital d’Inglaterra : os vossos campos são quem
nos sustenta : vós substituistes os vossos trabalhadores aos nossos: se antiga
mente nós vos forneciamos o trigo , vos sois quem hoje nol-o fornece : vós tendes
roteado os vossos campos, nós deixamos tornar os nossos em baldios.
Mas se nos vos temos elevado a esse ponto de grandeza , na nossa mão está
o precipitar -vos ao nada d'onde vos arrancamos. Nós podemos melhor passar sem
vós, do que vós sem nós. Basta uma só lei para destruir a vossa Potencia , ou
pelo menos para enfraquecer o vosso Imperio . Nós não precisamos mais do que
prohibir com pena de morte a saida do nosso oiro , para elle não sair jamais .
Talvez respondereis a isto , que apezar da prohibição sairá sempre domesmomo
do, como sempre tem saido ; porque os vossos navios de guerra tem o privilegio
de não serem visitados na sua partida, e em consequencia do dito privilegio elles
transportarão todo o nosso dinheiro . Mas não vos enganeis com isto : eu fiz es
trangular vivo o duque d'Aveiro , por ter attentado contra a vida do Rei; eu po
derei fazer muito bem enforcar um dos vossos capitães, por ter roubado a sua
effigie com despreso das leis. Ha tempos em que nas monarchias um so homem
pode muito : vós não ignoraes que Cromwell na qualidade de protector da repu
blica ingleza , fez cortar a cabeça a Pantaleão de Sá , irmão de João Rodrigues de
Sá, embaixador de Portugal em Inglaterra, por se ter prestado a um tumulto :
sem ser Cromwell eu estou em estado de imitar o seu exemplo na qualidade de
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 147

de Vossa Magestade Fidelissima, com o fim de desapprovar em


nome de Sua Magestade Britanica tudo quanto no calor da ac
ção tivesse podido fazer a mais pequena offensa ás immunida
des da costa de Portugal, como inteiramente opposto a suas
regias intenções, das quaes um dos assumptos mais caros tem
sido e será sempre o de conservar inviolavelmente a mais es
treita amisade entre sua coroa e a de Portugal.»
« É para este fim , Real Senhor, e pelos motivos d’uma dis
tincta affeição , que o rei, meu amo, considera como um prazer
o dar a Vossa Magestade este patente testemunho de sua sin
ceridade, e da extensão dos seus respeitos para com Vossa real
pessoa , bem como de sua attenção particular á vossa coroa .»
« Tenho, além d'isto , Real Senhor, as mais rigorosas ordens
de assegurar a Vossa Magestade que foi muito viva a sensibi
lidade com que o rei , meu amo, foi commovido por causa dos
factos acontecidos em vossa coroa , os quaes felizmente para

ministro protector de Portugal. Fazei portanto o que deveis, senão quereis que
eu faça o que posso .
Que seria da Grã -Bretanha, se por uma só vez se lhe tirasse o manancial das
riquezas da America ! Como pagaria á immensa tropa de terra, e a essa grande
armada de mar ? Como daria ella ao seu Soberano os meios de viver com o es
plendor de um grande rei ? Donde tiraria os grandes subsidios, que paga ás po
tencias estrangeiras para escorar, e firmar a sua ? Como viveria um milhão de
vassallos inglezes, se se acabasse para sempre a mão d'obra , de que tira o seu
sustento ? Em que estado de pobreza não cairia todo o Reino, se este unico re
curso lhe faltasse ? Basta que Portugal regeite os seus grãos, quero dizer, o seu
trigo, para que metade de Inglaterra morra de fome. Vos direis talvez que se
não muda com facilidade a ordem das coisas, e que um systema ha muito tempo
estabelecido, não pode transtornar-se em um momento. Dizeis muito bern , mas
eu direi ainda melhor : o rodear do tempo e que pode trazer esta reforma : eu
estabelecerei um plano preliminar d'economia , que se encaminhará ao mesmo
objecto . Ha muito tempo que a França nos estende os braços para que recebamos
as suas manufacturas de lã ; na nossa mão está aceitar as suas offertas, o que sem
duvida anniquilará as vossas. A Barbaria abundante de trigos nos fornece melhor
mercado do que os vossos. Então vos vereis com a maior dor um dos principaes
ramos da vossa marinha ficar inteiramente extincto . Vos sois muito versados no
ministerio, e não ignoraes que isto é um viveiro de officiaes, e marinheiros de
que a marinha real se serve em tempo de guerra , e com isto é que vós tendes
elevado a vossa potencia .
A satisfação que nós vos pedimos é conforme ao direito das gentes . Todos os
dias acontece haver officiaes de mar, que por zelo , ou inconsideração fazem
aquillo que não devem : ao governo cumpre punil- os, e fazer a reparação ao es
tado, que elles offenderam . Todos sabem que semelhantes reparações a não tor
nam depresivel. A nação que se presta ao que é justo, adquire a inelhor opinião ,
e da opinião é que depende sempre a potencia do estado.

CONDE D'OEIRAS.
148 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

nada mais serviram , senão para patentear cada vez mais a toda
a Europa , a magnanimidade e sabedoria de Vossa Magestade.
« A carta , que tenho a honra de appresentar a Vossa Ma
gestade confirma taes sentimentos do rei , meu amo, os quaes
eu acabo de expor mais desenvolvidamente a Vossa Magesta
de, bem como sua completa confiança na amisade reciproca de
Vossa Magestade, cuja experiencia lhe tem subministrado tan
tas provas. »
CAPITULO XII

Estado do exercito quando D. José subiu ao throno ; victorias ganhas outr'ora


pelos portuguezes ; as mesmas ganhas na guerra peninsular ; causa da dissen
ção entre Portugal e Hespanha; continuação da mesma; projecta -se o pacto de
familia ; os seus fins ; exigencias de França e de Hespanha ; resposta ; os hes
panhoes invadem Portugal e fazem uma proclamação ; indignação geral que
esta causou ; Portugal declara guerra á França e á Hespanha ;memoraveis sen
timentos de D. José por esta occasião ; estado indefeso de Portugal ; Inglaterra
manda auxilio de tropa e de munições ; o conde de Lippe chega a Portugal e
toma o commando das forças alliadas; os hespanhoes são obrigados a evacuar
os territorios portuguezes ; conclue- se a paz em Fontainebleau ; o artigo 21. ;
valiosos serviços prestados por de Lippe ; Pombal cria uma esquadra ; partida
do conde de Lippe ; conselho que dá aos officiaes ; extractos dos officios da se
cretaria do estado intercalados no capitulo .

É indubitavel que, quando Pombal assumiu


a posse da ad
ministração dos negocios publicos , não havia ramo de serviço ,
que mais necessitasse ser reformado, que o exercito. Oito, ou,
quando muito , nove mil homens mal disciplinados, eram quan
tos a nação podia reunir para repellir qualquer invasão, ou
punir o inimigo ; e isto ao mesmo tempo que as praças de guer
ra e fortalezas, em todo o reino, estavam tão arruinadas, que
se tornavam demasiadamente inuteis . Sabe- se o misero estado
a que o governo inerte de D. João V reduzira o exercito pela
seguinte passagem , que se encontra na descripção que Barelti

fez de Portugal em 1759 :


150 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

« Disseram -me que n’este reino o exercito não passava de


oito mil homens ; e, se os mais são como os que vi em Estre
moz e em Lisboa , não ha em toda a Europa um numero
egual, que apresenle tão desgraçada apparencia . A maior parte
d'elles andavam rotos e remendados ; e em Lisboa muitos me
pediram esmola não só nas ruas, mas até nos postos, em que
estavam de sentinella . »
Comtudo é de crer que este estado do exercito fosse exa
gerado ou pintado com côres menos verdadeiras ; porém , quer
se admitta uma quer outra cousa, é innegavel que se achava
em deploraveis circumstancias.
As fortificações haviam , até certo ponto, tido já os reparos
de que necessitavam ; mas os calamitosos acontecimentos que
sobrevieram no primeiro periodo do reinado de D. José, obsta
ram a que Pombal attendesse á organisação e disciplina d'um
exercito , e applicasse para isso os recursos da nação. Merece
dores, como os portuguezes são , da fama de bons soldados, e
distinctos como sempre foram , dirigidos por cabos intrepidos e
emprehendedores, pela sua disciplina e valor, não havia diffi
culdade em ter bons soldados, quando se encontrassem habeis
generaes. Pombal não ignorava que nas numerosas pelejas, que
tiveram com os hespanhoes, alcançaram as mais esplendidas
victorias, debaixo das mais desfavoraveis circumstancias, como
a inferioridade do numero , e o aperto de difficuldades , que os
cercavam . Não ignorava que devēram estas victorias ao amor
da independencia , e ao sentimento nacional de confiança e su
perioridade, que nutriam , o qual, mesmo quando seja filho da
imaginação, vale muitas vezes por milhares de soldados. Não
esquecia que na batalha de Aljubarrota em 1385 , dez mil por
tuguezes derrotaram quarenta mil da flor de Hespanha , e que
dez mil hespanhoes ficaram mortos no campo da batalha , con
tando-se entre elles tres principes de sangue, e uma grande
parte da nobresa ; que em 1659, o general hespanhol D. Luiz
de Haro, deixou seis milmortos no campo de Elvas, além d'um
consideravel numero de prisioneiros ; que em 1663, nas bata
lhas de Ameixial e Montes Claros, doze milhespanhoes , então
reputados pela melhor infanteria do mundo , foram desbarata
dos ou aprisionados ; e, em fim , que na batalha de Villa Vi
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 151

çosa , no anno seguinte pereceram dez mil hespanhoes, e fica


ram prisioneiros quatro mil: não via por conseguinte rasão ne
nhuma. porque tropas tão habeis como estas não podessem ser
outra vez organisadas,disciplinadas , e postas em campo . E não
se demorou muito na execução d'este projecto . Se a naturesa
o tivesse dotado de um espirito prophetico , teria previsto com
quanto garbo os filhos da sua patria haviam de pelejar e ven
cer na campanha peninsular, quando a guerra havia de cessar
para tornar -se n’um combate pela gloria , e n’um esforço pela
vida, e tudo quanto torna a vida apreciavel, — liberdade, inde
pendencia , casas, mulheres, filhos, e parentes. Pois, n’aquella
sanguinolenta luta recoperavam os portuguezes a sua perdida
reputação, porque se tornaram os soldados d’uma nação antiga
e famosa , praticando feitos d’um valor e intrepidez, que mere
cem mais distincta narração do que a que a parcialidade e o
prejuizo dos historiadores d'elles tem feito.
Foi, portanto , util que Pombal começasse a tomar energi
cas medidas para a organisação e disciplina d’um exercito, pois
que cedo vieram os acontecimentos provar, que Portugal pre
cisava todo o valor de seus filhos, e a forças dos seus gover

nantes , o que provarão os factos, que se seguem .


Durante cerca d'um seculo anteriormente á administração
de Pombal, sustentara a Hespanha e Portngal continuas dis
putas relativamente á Colonia do Sacramento, ou Nova Colo
nia , situada sobre a margem septentrional do Rio da Prata .
Sempre se comprehendeu e conheceu este rio pela linha limi
trophe dos dominios portuguezes no Brazil ; e uma prova disto ,
entre outras, é que em 1680 tendo o governador hespanhol de
Buenos Ayres tomado posse da Colonia do Sacramento, Car
los II, então rei de Hespanha ,mandou que ella fosse immedia
tamente restituida á coroa de Portugal, com ampla indemnisa
ção pelos damnos, que os colonos houvessem soffrido, sendo o
governador ao mesmo tempo castigado por ter perturbado a
paz , que reinava entre as duas coroas. E , para prova d'este

facto, extrahí da excellente recopilação do visconde de Santa


rém ha pouco publicada, e intitulada « Quadro Elementar , o
que a respeito da satisfação dada pela Hespanha elle escreve:
- « 1680. N'este anno sabendo - se em Portugal a aggressão
152 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

que o governador de Buenos Ayres tinha feito na colonia do


Sacramento , o regente , com todo o vigor, obrigou a corte de
Madrid a emendar o erro d'aquelle Governador ; mandou reti
rar de Madrid o seu Embaixador, o qual antes deixou um pro
testo de que , se não dessem dentro de 20 dias a satisfação
que era devida , tivessem por declarada a guerra , e por este
modo fez que a corte de Madrid mandasse logo a Lisboa um
Embaixador para dar a S. A. a satisfação que pedisse.»
No artigo VI do tratado de Utrecht assignado em 1715 ,
tambem se acha expressamente declarado que a Hespanha re
nunciava a qualquer direito ou titulo á margem do norte do
Rio da Prata, e que o dito territorio pertencia ao rei de Por
tugal, e aos seus successores. Por meio d'este e outro tratado,
cujo cumprimento foi além d'isso garantido pela Inglaterra, fi
cou Portugal na firme posse da referida colonia . Ccmtudo as
interminaveis disputas e contestações continuavam entre os dous
reinos. Portanto, em 1750, teve logar outra vez o tratado de
troca entre Portugal e Hespanha , concluindo -se que ficaria de
finitivamente determinada esta tão longa questão de limites.
Porém , como restasse ainda uma contestação sobre uma gran
de extensão do territorio , desde o Rio Pardo até aos estabe
lecimentos do Paraguay, realisou -se, finalmente, a 12 de fe
vereiro de 1761, o tratado entre as duas coroas, que veiu
por termo a todas as duvidas, e obliterar todos os tratados
precedentes.
Entretanto que os negocios estavam n'este andamento, e os
pontos de contestação pareciam resolver-se, o duque de Choi
seul projectava e formava o celebre Pacto de Familia entre
a França é a Hespanha. Carlos III era então o rei da Hespa
nha , e Choiseul poude persuadil-o de que o meio mais vanta
joso e infallivel de enfraquecer a Inglaterra era atacando Por
tugal. Voltaire chama com alguma rasão a este projecto o maior
golpe politico que a historia moderna regista , mas acrescenta
que, não obstante isso, falhou . Les Anglais ont resisté à l’Es
pagne, et ont sauvé le Portugal.
Comtudo os membros do Pacto de Familia tinham em vista
alguma cousa mais do que simplesmente o abatimento das
forças britanicas. A Hespanha queria tornar a annexar Portu
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 153

gal aos seus dominios ; e a França anhelava por senhorear-se


das suas valiosas possessões ultramarinas. Porém , Pombal,
tendo tomado um minucioso conhecimento de todos estes des
ignios muito antes que se manifestassem , solicitou instante
mente auxilio da Inglaterra como o alliado mais antigo de Por
tugal. E não nos esqueçamos de que isto succedeu em fins de
1761, quando lord Chatham se retirou do ministerio , visto que,
segundo a sua propria expressão , já o não deixavam guiar (to
guide). Suspeitando os planos da França e da Hespanha tinha
proposto que se declarasse guerra a esta, antes que os Bour
bons se preparassem , e os fundos hespanhoes chegassem da
America. Lord Temple foi o unico membro do gabinete que o
apoiou . Tres mezes depois da demissão de lord Chattam , foi
declarada a guerra pelos que lhe succederam no ministerio .
Nas volumosas negociações, que n'esta epoca houve entre a In
glaterra e Portugal, acha-se inteiramente confirmada a rectidão
das vistas de lord Chatham .
Vejamos alguns factos que comprovam estas asserções . A
23 de maio de 1760 o ministro portuguez na corte de Londres,
Martinho de Mello, em vista das ordens, que recebera de Pom
bal, pediu auxilio ao governo inglez , no caso de necessidade,
contra os francezes, cujas intrigas e intenções foram commu
nicadas ao mesmo tempo. Lord Kinnoul, n'um officio de 16
de abril de 1760, manifesta as ideas que Pombal nutria sobre
o objecto em questão , da maneira seguinte : « O conde d'Oeiras
disse-me que a França não pode realmente fazer-nos grande
mal, attendendo á situação em que presentemente se acha . Tem
a marinha arruinada , o commercio decaído ; a população dimi
nuida ; a agricultura abandonada; e o thesouro tão pobre, que
não sabem como hão de acharmeios para fazerem face ás des
pezas necessarias da guerra , isto ao mesmo tempo que o povo
se acha carregado de tributos; que os ministros ignoram os
verdadeiros interesses do paiz, e que os conselhos não seguem
as regras da boa politica II... «Na verdade Pombal não igno
rava que ha vinte annos se formara um plano em Paris , e que
fora apresentado em Madrid convidando a Hespanha a entrar
n’uma guerra offensiva contra Portugal, e propondo a partilha
dos dominios de Sua Magestade Fidelissima, por meio da qual
154 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Portugal e suas ilhas adjacentes ficariam pertencendo á Hes


panha , e o Brazil á França. Segundo a sua opinião parecia
lhe que os ministros do gabinete de Hespanha deviam ser bem
pouco sagazes para jamais cairem em similhante proposta ; por
que não pensassem elles que o resto da Europa permaneceria
de braços crusados, e acceitaria leis da França ; que se esta se
senhoreasse do Brazil e das mais possessões da coroa de Por
tugal, cedo o seu poder se tornaria muito superior ao das ou
tras potencias da Europa , e que a propria Hespanha havia de
sentir os effeitos d'esse poder.»
« O conde d'Oeiras attribuiu a parte, que a França parecia
determinada a tomar n’este trama contra esta corte , principal
mente ao seu intento predominante de arruinar o commercio
da Grã Bretanha . »

Entretanto, com uma duplicidade, que mal se pode compre


hender , o rei de Hespanha escreveu a D. José declarando-lhe,
que nenhumas vistas tinha sobre a coroa de Portugal, e que só
exigia que sua magestade fidelissima fechasse os seus portos á
Inglaterra ; e que, se não tinha forças sufficientes para susten
tar este designio , elle o auxiliaria com o seu proprio exercito.
Escusado é accrescentar que tanto D. José como o seu minis
tro ficaram indignados com tão insolito procedimento , como in
solente proposição .
Mr. Hay, n’um despacho de 9 de fevereiro de 1762, por
occasião dos factos em questão, louva o procedimento de D. José
e do seu ministro, nos termos seguintes : - É do meu dever
confessar que, no meio das reflexões , que de certo hão de sus
citar - se a vista de tamanha calamidade como a que se espera ,
que sobrevirá, tenho sempre observado o Conde com um ar
de perfeita placidez e tranquillidade, firme nos seus principios,
e claro nas suas falas, o que junto ao partido que tomou ,me
confirma o juizo , que tenho formado sobre os elevados talentos
d'este Ministro, os quaes comtudo, se perderiam , se não fossem
sustentados pelo Rei, cujo animo e magnanimidade,mal se pó
dem admirar. Já n'outras occasiões este soberano tem manifes

tado estas virtudes, mas nunca tão conspicuamente como n'este


momento , em que, sem haver causa nem provocação da sua
parte, e até depois das mais ardentes expressões de affecto e
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 155

protestos de amisade do seu cunhado (o rei de Hespanha ), se


vê elle proprio , a sua familia , e os seus vassallos em risco de
serem sacrificados ás perversas maquinações dos conselhos da
França, e o seu reino perfidamente invadido pelos seus mais
proximos parentes. A conservação da propria vida é um prin
cipio natural na occasião do perigo ; e era muito natural quee a
situação d’este paiz , depois de tantos e tão grandes infortunios,
tivesse suggerido medidas oppostas ás d'este excellente Monarcha
que toma um expediente mais nobre, como é um justo resen
timento de tão perfida conducta, e a nobre resolução de oppor
resistencia , auxiliado pela outorga alliada d'esta Coroa , em de
fesa das prerogativas da Europa .»
Lord Tyrawley chegou brevemente a Lisboa ; e, a 16 de
março de 1762, a Corte de Versailles e a de Madrid remette
ram notas á de Lisboa , exigindo uma resposta positiva no es
paço de quatro dias declarando se a intenção de Portugal era ou
não renunciar á alliança d’Inglaterra. A estas notas perempto
rias replicou Pombal dentro do praso especificado nos termos
seguintes :
>>
Que nada podia haver que a Sua Magestade Fidelissima
fosse mais sensivel do que ver ateado tão fortemente o fogo de
uma guerra sanguinolenta entre Potencias, que tanto o inte
ressam por parentesco estreito , amisade intima, allianças de
sangue, e de pactos solemnes, como são os tres Monarchas
hoje belligerantes. — Que Sua dita Magestade Fidelissima de
seja ardentissimamente que os mesmos parentescos, amisades,
allianças, e a neutralidade, que tem observado, o possam habi
litar, para que como mediador lhe seja permittido applicar to
do o seu disvelo , para que renovando -se as conferencias, que
se romperam na Cidade de Londres, em qualquer outro logar ,
que se considere mais proprio, se conciliem n'ellas os interes
ses, e os espiritos, de modo que sem maior effusão de sangue
humano se possa ajustar uma paz reciprocamente agradavel,
e util.
Que tendo com a Coroa de Inglaterra as antigas, e por
tantos annos não interrompidas allianças puramente defensi
vas, e por taes innocentes, que se acham publicas por tantos,
e tão solemnes Tratados : E não havendo recebido a Coroa de
156 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Portugal da parte de Inglaterra alguma immediata offensa, que


legitime Sua dita Magestade, para transgredir os mesmos tra
tados : viria na infracção d'elles a offender a religião , a fide
lidade, e o decoro, que são inseparaveis do espirito da mesma
Magestade Fidelissima, e de todos os Monarchas tão religio
sos , e magnanimos, como o são Suas Magestades Christianis
sima, e Catholica : E viria a nova Liga , que se fizesse, a ser
justamente suspeita , e menos estimavel, levando comsigo o de
zar d'aquella desusada infracção .
«Que a isto accresce, que Sua Magestade Fidelissima
amando os seus Vassallos como Pae , e devendo -os conservar
como Rei, fica facil de ver , que nem os pode fazer entrar em
uma guerra offensiva ; nem os mesmos Vassallos se podem
achar n'esse estado, depois do muito , que tem padecido nas
calamidades , que lhes trouxeram , primeiro os oito annos da
enfermidade do Senhor D. João V ; depois o Terremoto do pri
meiro de novembro de 1755 ; e ainda depois as desordens da
Conjuração, que abortou o sacrilego desacato de 3 de setem
bro de 1758.3

O embaixador de França e o de Hespanha , depois d'algu


mas infructuosas tentativas, retiraram -se inopinadamente de
Lisboa em fins de abril, sem se depedirem .
Entretanto Pombal não se descuidou em preparar os meios
de defensa. O conde d'Unhão foi nomeado governador d'Elvas ;
o marquez de Louriçal tomou o governo do Algarve; D. João
de Lencastre teve o commando das tropas da provincia do Mi
nho, e José Felix da Cunha das da Beira . A D. Rodrigo deNo
ronha, irmão do marquez de Marialva , e que em Portugal go
sava a mais subida reputação militar, foi confiado o posto de
tenente general, e foi chamado a Lisboa . Os recrutas affluiam
das provincias, e as munições chegavam de Inglaterra .
Foi por esta occasião que Pombal disse que, se os hespa
nhoes se mostrassem offendidos por causa d'aquelles preparos
bellicos , dariam n'isso uma prova mais evidente das suas más
intenções ; por quanto um visinho, que se offende, porque o ou
tro fecha a sua porta , póde muito bem ser suspeito da intenção
de o roubar .

Em 5 de maio , sem embargo de não ter ainda sido decla


MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 157

rada a guerra por nenhuma das partes, os hespanhoes, com


mandados pelo marquez de Sarria, entraram em Portugal pela
provincia de Tras-os -Montes , e passados poucos dias, foram -se
successivamente senhoreando de Miranda , Bragança , Chaves e
Moncorvo . O marquez fez espalhar então um manifesto, em
que declarava, que o fim unico, com que entrava em Portugal
era para livrar o Reino do jugo de Inglaterra ; que elle e o seu
exercito vinham como amigos ; mas que, no caso de resisten
cia, empregaria contra os portuguezes as forças, que eram des
tinadas contra os inglezes.

Tão futeis pretextos para occultar a perfidia e a ambição


indignaram a nação inteira . Pombal vio então que eram inevi
taveis as hostilidades, e, sem embargo do estado quasi indefeso
do paiz, declarou ousadamente guerra aos dous Reinos, e fez
cessar toda a correspondencia entre elles e Portugal. Os fran
cezes e hespanhoes residentes nos dominios portuguezes foram
obrigados a sair d'elles no praso de quinze dias, assim como
se avisaram todos os subditos de S. M. F. para se recolherem
á sua patria .
As cortes de Versailles e de Madrid replicaram á declara
ção de guerra, allegando o direito , que lhes assistia de a faze
rem a Portugal por preferir a alliança d’Inglaterra á de Fran
ça e de Hespanha !
Os sentimentos, que então D. José manifestou , são dignos
de serem registados ; pois declarou « que lhe seria menos cus
toso, (ainda n’aquella maior extremidade, que só depende do
Arbitro Supremo) deixar cair a ultima telha do palacio da sua
habitação , e aos seus Leaes Vassallos derramarem a ultima
gota do seu sangue, do que sacrificar Portugal com o decoro
da sua coroa tudo o que ha de mais precioso , e prestar -se por
um tão extraordinario modo a servir de exemplo nocivo a to
das as outras potencias pacificas, para mais não gosarem do
socego , por beneficio da neutralidade, logo que se accender
qualquer guerra com outras potencias, com as quaes tenham
tratados defensivos .»
Nunca Portugal se vio em tão más condições para entrar
em guerra . Todavia as difficuldades desappareceram perante o
poderoso espirito do grande ministro. Com uma rapidez incri
158 NEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

vel se levantou e uniformisou convenientemente um exercito de


36 :000 homens de infanteria , e 6 :000 mil de cavallaria , além
dos corpos demilicia, a que se juntaram 5 :000, que compu
nham a artilheria. A Inglaterra, não desamparando o seu an
tigo alliado, mandou um auxilio de 10 :000 homens, enviando
ao mesmo tempo o celebre conde de Lippe para tomar o com
mando das forças alliadas das duas nações, sendo tambem con
fiado o da artilheria ao principe Carlos de Mecklembourg . Um
exercito como este, animado pelo patriotismo, e provocado pela
perfidia dos hespanhoes, não podia demorar -se muito sem apre
goar a sua gloria . Os hespanhoes eram derrotados por todos
os lados, e foi tal o vigor , com que foram dirigidas as opera
ções , que dentro em pouco os alliados victoriosos os rechaça
ram ante si, e os obrigaram a evacuar os territorios de Por
tugal.
Lord Tyrawley fez uma triste descripção dos estado dos
preparativos bellicos, que encontrou á sua chegada, confessan
do, porém , que « o conde d'Oeyras parece pôr á minha dispo
ção tudo, quanto eu queira.» E n'outra correspondencia com
menta a placidez de Pombal n’estas palavras : 10 conde d'Oey
ras mostra-se inteiramente intrepido vendo os infortunios da
sua patria.
Parece que os hespanhoes tinham 40:000 homens entre
Zamora, Salamanca , e Ciudad Rodrigo. No sitio de Miranda,
a 7 de maio de 1762, houve explosão n'um paiol da polvora ,
de que infelizmente resultou a morte de centenares de homens,
fazendo duas brechas nos muros. O governador rendeu -se no
dia seguinte .
Bragança e Chaves eram cidades, que não tinham outras
defesas álem d'uns muros velhos e arruinados. Porém , as for
tificações de Valença haviam sido inteiramente reparadas ; e o
inimigo encontrou obstaculos em duas partes, sendo uma na
passagem das montanhas de Monte Alegre, entre Chaves e o
Porto, e a outra quando tentou passar o Douro perto do forte
de Moncorvo .
Pombal informa mr. Hay ácerca do primeiro d'estes obsta
culos, como se segue :
O conde de Lippe , que nasceu em Inglaterra , e servio nas
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 159

guardas na sua mocidade, e cujo nome é respeitado na Alle


manha, como o primeiro patrono de Herder e Alet, chegou a
Lisboa no dia 3 de julho de 1762. Passados oito dias partici
pou ao governo Britanico o seguinte : « Desde que aqui cheguei
não se tem passado dia nenhum , em que me não tenha occu
pado em tomar conhecimento do verdadeiro estado dos prepa
rativos militares, que presentemente se fazem n’este paiz. Vi
que muitas cousas excediam demasiadamente as minhas espe
ranças, e com especialidade o trabalho das espingardas. Pol
vora, peças, balas, e obras de fundição não faltam . Só o que
estas cousas carecem é de ordem . Ha tambem excellentes ar
tistas.
Comtudo, uma correspondencia escripta das provincias,
dous mezes depois, modifica um tanto este elogio . « Depois que
cheguei a este exercito encontrei cousas bem differentes das
que esperava encontrar, quando estava em Lisboa, onde os pre
parativos militares, por se acharem quasi debaixo das vistas
immediatas do Conde d'Oeyras, marcham com mais vigor, zelo
e actividade. »

Os promenores d'esta guerra não podem aqui ter logar, e


por isso me limito a dizer, que em 1763 se concluio em fim
um tratado de paz em Fontainebleau declarando o art.° 21.°
do mesmo tratado o seguinte : « As tropas Francezas, e Hespa
nholas evacuarão sem alguma reserva todos os territorios , cam
pos, cidades, praças, e castellos de S. M. F , na Europa, que
possam ter sido conquistadas pelos exercitos de França , e Hes
panha, e os entregarão no mesmo estado, em que existiam
quando foram conquistados, com a mesma artilheria , e muni
ções de guerra , que n'elles acharam ; e quanto ás Colonias Por
tuguezas na America, Africa , ou nas Indias Orientaes, se tiver
acontecido alguma mudança , todas as cousas serão postas no
mesmo estado, em que estavam na conformidade dos tractados
precedentes, que existiam entre as cortes de França , de Hes

panha, e de Portugal antes da presente guerra.»


Ainda que as tropas inglezas se retiraram , o seu general
não as acompanhou. Demorou -se algum tempo em Portugal
ajudando Pombal na disciplina do exercito, e a pôr as fortale
zas do reino em estado de defesa. Elvas foi reforçada com um
160 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

novo forte, a que se deu o nome de Lippe, unica memoria que


em Portugal talvez recorde os relevantes serviços prestados
por aquelle feliz general. D. José, movido pela amisade a Jor
ge III, dirigio-lhe uma carta agradecendo o ter mandado a Por
tugal um homem tão valioso. E ninguem ignorava, que Lippe
era digno das maiores honras e galardões, que Portugal podia
conferir. Comtudo o nobre general não era mercenario : só lhe
bastou a gloria que alcançou , e a posse da gratidão d’um po
vo, recusando por isso remuneração alguma pecuniaria. Alem
de rigoroso na disciplina , infatigavel no commando, e de offi
cial emprehendedor, era mimiamente zeloso do nome de sol
dado ; e diz-se que persistia em que nenhum official devia ne
gar-se a um duello com o pretexto de escrupulos de conscien
cia , sob pena de ser demittido do serviço .
Antes da partida de Lippe informa-nos mr. Hay de que
« ao exercito deu -se um regulamento inteiramente novo, feito
de commum acordo entre o conde de Lippe e o conde d'Oey
ras. Os regimentos, que havia compostos de dous batalhões , fi
caram sendo de um só batalhão , e assentou -se em que , pela
nova organisação , ficariam existindo trinta regimentos de in
fanteria , compondo -se uns de doze, e outros de treze compa
nhias de sessenta praças cada uma, devendo o total elevar-se
a cerca de vinte e quatro mil homens. A cavallaria andará por
seis mil.

No mesmo despacho, de 22 de junho de 1763, fala mr.


Hay dos crimes de dous coroneis suissos. « Dous batalhões de
suissos se revolucionaram durante a campanha do anno proxi
mo preterito . O commando d’um estava confiado a mr. Thor
man , e o do outro a M. de Saussure, ambos officiaes suissos,
que haviam servido n'outros paizes sem nota. Comtudo o porte
d'estes militares não correspondeu ás esperanças do governo .
M. Thorman , depois de haver commettido bastantes faltas, en
tendeu que não fazia mal em abandonar o paiz, sendo por isso
immediatamente julgado por um conselho de guerra , que o con
demnou a ser enforcado em effigie. M.de Saussure , que se
acha preso na torre de S. Julião , tambem foi julgado, sendo a
principal accusação, que tem contra si , as revistas falsas. A sen
tença do conselho de guerra declara -o sem aptidão e habilida
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 461

den
para servir S. M. F. e condemna -o a prisão até reembolçar
a somma de que defraudou o governo .»
Como todos os actos governativos da administração de Pom
bal foram descriptos com cores tão falsas pelos jesuitas, e pelo
resto dos seus inimigos, esta passagem , e outras similhantes
que claramente referem os acontecimentos d'aquella época , se
rão um sufficiente documento, que constituirá uma plenissima
justificação .
É sem duvida uma cousa , que excita a curiosidade, o saber
>

a qualidade dos presentes, que Lippe recebeu por occasião


da sua retirada . « Sua Altesa , o actual conde de Schaumbourg
Lippe , despedio-se da corte , e embarca amanhã (20 de setem
bro de 1764). Sua Altesa recebeu os seguintes presentes: seis
pequenas peças de ouro maciço de primoroso trabalho, tendo
gravadas as armas de Sua Altesa, e montadas em carretas de
madeira do Brasil com ferragem de prata e rodas do mesmo
metal; uma estrella de diamantes para juntar á sua ordem de
Aguia Negra ; o retracto de S. M. F. ornado de diamantes, e
um collar dos mesmos.
Quando consideramos que foi Pombal o author, ou quem
dirigio todas as reformas e negociações, que então se fizeram ,
tanto attinentes aos negocios do reino e estrangeiros, como do
ultramar, não podemos suspender a nossa admiração vendo
como ainda lhe restava tempo e forças para se encarregar da
superintendencia do exercito, visto que , segundo consta da par
te final do despacho de mr. Hay, juntou os deveres de general
em chefe ás suas outras responsabilidades. « S. M. F. toma os
negocios da guerra debaixo dos seus immediatos auspicios, e
em cuja direcção terá o conde d'Oeyras a maior parte .
Restaurada, como vimos, a paz, tratou Pombal de atten
der á marinha, que se achava em mais deploravel estado do
que o exercito antes do começo da sua reorganisação , porque
estava reduzida a dous unicos vasos (!) sendo tal a sua impo
tencia , que os corsarios argelinos habituaram -se a desembarcar
na costa de Portugal, e à saquear os habitantes. Atacavam
tambem os navios mercantes, de sorte que estes se viam obri
gados a demorar-se no porto até se poder reunir uma frota , que
os protegesse d'aquelles assaltos. Foi, pois, debaixo d'estas cir
VOLUME I 12
162 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

cumstancias que Pombal empregou mais de trezentos carpin


teiros inglezes a trabalhar no dique e no arsenal de Lisboa,
sendo tal a prestesa e rapidez com que trabalharam , que em
poucos annos se elevava a marinha portugueza a dez náos de
linha e a um proporcionado numero de fragatas. E , para que as
colonias estivessem tão bem resguardadas como o paiz mãe ,
mandou alguns navios para Moçambique e para o Brazil,com
engenheiros, operarios e materiaes para ali se construirem for
talezas.

A Hespanha inquietava -se á vista da continuação d’estes


aprestos bellicos uma vez que a paz se concluira, e indagava
anciosamente o fim , com que se faziam . Pombal respondia que
os seus aprestos não eram outra cousa mais, do que o que to
dos tinham direito de fazer , isto é, preparar -se para repellir os
assaltos inopinados dos seus inimigos. Porem o governo de Hes
panha só se mostrou satisfeito com a sinceridade d'esta reposta
quando um ministro portuguez chegou a Madrid , e Lippe
partio para Inglaterra . Este general, antes de dizer o ultimo
adeus à Portugal, escreveu a todos os coroneis dos differentes
corpos, fazendo-lhes ver nos mais energicos termos a necessi
dađe de manter a disciplina militar, que elle introduzio ; e pro
vou além d’isso a estima, em que tinha o genio de Pombal, re
commendando - lhes que em todas as eventualidades futuras bus
cassem o parecer e auxilio d'aquelle distincto ministro.
CAPITULO XIII

Medidas fiscaes. São supprimidos vinte e dois mil collectores d'impostos . O im


posto militar é substituido pelo da decima. Admiravel reducção na despeza
da arrecadação da receita publica . Estado das finanças na França anterior.
mente á administração de Sully . Modo de Pombal conservar uma relação do
dinheiro publico . Reformas na Ucharia . Receita e população n'esta épocha .
Henrique IV . e D. José : Sully e Pombal. Anecdotas de Pombal.

Sob um governo inerte e instavel não ha abusos, que mais


custem a reformar do que os que dizem respeito á fazenda e
á arrecadação das rendas publicas. O grande duque de Sully
encontrou mais opposição nas suas medidas financeiras, do que
em todas as suas outras reformas notaveis. Quando a adminis
tração d’um paiz é indeterminada e viciosa , o povo soffre de
predação , e empobrece. Locupletam -se alguns individuos,mas
o erario acha-se sempre exhausto. Pombal vio estes abusos, e
depressa os destruio, ainda que teve que lutar com 22:000
collectores ( tal era o numero que houve segundo provam os do
cumentos ), e uma infinidade de pessoas directamente interes
sadas na perpetuação do pessimo systema da arrecadação e
extravio dos impostos, a que já n'um dos capitulos anteceden
tes mereferi, rematando agora Pombal esta reforma com algu
164 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

mas consideraveis alterações, para o que a invasão hespanho


la lhe proporcionou occasião sendo então abolido o imposto
militar de quatro e meio por cento, e substituido pelo da de
cima.
Por meio de varias e importantes innovações ficou o total
da despesa, que se fazia com as collectas, reduzido a um emeio
por cento : admiravel deducção esta ! Os tributos proporciona
ram -se tambem com mais justiça ás posses de cada classe da
nação, sendo o seu pagamento rigorosamente observado , e obs
tou -se ao mesmo tempo a que os collectores podessem , por
burla ou contemplação, fechar os olhos á falta de pagamento
dos seus amigos, ou intimidando os seus inimigos, extorquindo
lhes mais do que deviam . Hoje os embaraços, que em Portugal
se experimentam no fisco , são inteiramente devidos a um sys
tema vicioso e de parcialidade, que ha nas collectas. Não tenho
a menor duvida em affirmar que um terço dos impostos, que se
recebem , não entra no thesouro da nação.
Permitta -se -me aqui intercalar estas duas linhas para ad
vertir , que a asserção , que acaba de ler-se , foi feita em tempo
que outros ministros , e não os actuaes, dirigiam os destinos de
Portugal, e realmente quando outro genero de constituição era
lei vigente . Comtudo o presente ministerio parece tambem
adquirir a confiança da Europa pelas energicas medidas, que
toma para redusir a despesa
da nação , e restaurar a receita pu
blica .
Aquelle estado de cousas, pois, recorda -nos forçosamente
a época de maior anarchia em França . Sully , emprehendendo
a reforma da fazenda , escreve : « Vi com horror, mas isto au
gmentou o meu zelo , que dos trinta milhões , que o rei recebia,
cento e cincoenta partes eram tiradas ás algibeiras do povo. De
pois d’isto não me admirei mais donde provinha a miseria da
nação.»
Pombal de tal sorte amadurecera os seus projectos, que
em 1761 poude collocar o erario debaixo das mais excellentes
regulações, ao mesmo tempo que introduzia a mais restricta
ordem e economia na despesa publica. Muitas sinecuras e lu
gares superfluos aboliram -se, ou annexaram - se aquella repar
tição. No acto de se tomarem e passarem os recibos observa
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 165

va-se a maior simplicidade, e não se recebia ou dispendia cin


co réis, que não dessem entrada n’um livro , do mesmo modo
que os itens nos livros - caixa d'um negociante ou d'um ban
queiro. Estes livros eram minuciosamente examinados pelo rei
e pelo seu ministro, que fazia que os impostos fossem escru
pulosamente arrecadados, e que se não permittissem atrazos
alguns. Pombal apresentava todas as semanas a el-rei um ba
lanço por escripto, em vista do qual se fazia uma idea geral do
estado da fazenda . Assim dormia D. José com a satisfação de
estar sciente da exacta situação do thesouro .
Já me referi ás reformas de economia, que as despesas da
casa real soffreram . Vejamos como mr. Hay se expressa a este
respeito : — « Como no paço se houvessem introduzido grandes
abusos , e com especialidade na ucharia, entendeu -se que era
conveniente proceder-se a nova reforma. A gente empregada
n’este serviço, que subia a mais de oitenta pessoas, reduzio -se
a vinte, e as diversas mezas da casa , que por negligencia dei
xavam augmentar consideravelmente, acham -se agora sobre
um novo pé. Em vista do que o conde d'Oeyras me contou re
lativamente aos estragos, que n’aquella casa se faziam , e á la
droeira dos cosinheiros e mais criados do paco , quasi custa a
crer que se dessem similhantes factos. E estou bem persuadi
do de que, juntando -se-lhe o novo regimen, se pagaria a todos
os empregados da casa com menos despesa , principalmente
sendo os seus salarios tão pequenos como são .»
« Dantes, » continua mr. Hay , « eram as rendas nos diver
sos districtos arrecadadas pelo thesoureiro de cada districto, o
qual, depois de pagar os ordenados e mais despesas relativas
á sua repartição, ficava responsavel do remanecente para com
a corða . Porem em 1761 foi promulgado um decreto, orde
nando que todos os recebedores das rendas apresentassem no
thesouro o total recebido , e estabelecendo outro systema no
pagamento dos ordenados e outras despesas do estado . Depois
que este novo projecto se acha em vigor não ha a menor que
bra nos rendimentos de sua magestade, dando todos entrada na
thesouraria .»
Na época , a que nos referimos, estava o rendimento dos di
reitos e tributos calculado entre tres a tres e meio milhões de
466 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

libras esterlinas, sendo a população só do continente de Por


tugal, segundo consta , de dous e meio a tres milhões de almas.
D'este modo , por meio de uma serie de reformas, como as
que Henrique IV e o grande Sully empregaram , se enriqueceu
o thesouro, e se alliviou o povo d’uma grande parte dos gran
des tributos, que sobre elle pesavam . Se , como Henrique IV ,
D. José tivesse sido guerreiro e conquistador, teria rivalisado
com aquelle monarcha na grandesa e na fama, do mesmo mo
do que Pombal rivalisou com Sully na legislação e na econo
mia .

Antes de concluirmos este breve capitulo não será fóra de


proposito referir de passagem alguma anecdotas, que a respeito
de Pombal se contam , pois que não tem connexão com época
alguma particular da nossa historia.
Uma d'ellas é bem conhecida em Portugal, e ennobrece
summamente a brandura do genio de Pombal. Certa occasião
apresentou -se -lhe um padre queixando -se d'uma grande injus
tiça, que se lhe fizera , e , entretanto que expunha as suas ra
sões, proferio bastantes expressões , com que offendeu o gover
no e insultou o ministro . Pombal ouvio -o até final, e, sem se
alterar, respondeu - lhe que o negocio não era tanto da compe
tencia da sua repartição, como da do seu irmão, a quem , por
isso, juntou elle , o apresentaria no mesmo instante. « E , disse
elle antes de abrir a porta do outro gabinete , se elle consentir
que lhe diga metade do que acaba de dizer-me, concedo- lhe o
que pretende.» A porta ficou cerrada . Não haviam decorrido
muitos minutos, quando se ouvio uma voz colerica , sendo o in
pertinente supplicante posto fóra a empurrões.
N'outra occasião , achando-se reunido no Rocio um peque
no grupo , em que um dos circumstantes se queixava encoleri
sado de certa injustiça , que lhe fizeram alguns individuos no
seu emprego, e approximando-se um espião desejoso de colher
o fructo do seu desgraçado officio , este se juntou ao mesmo
grupo na esperança de ouvir alguma cousa , que excitasse o
resentimento do governo , e por que fosse louvado e remune
rado. Portanto, confiando no seu incognito, abalançou -se a
voltar a face á conversação de sorte , que podesse conseguir o
que desejava , e começou a expor bem amargos juisos contra
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 167

o rei e o ministro. O primeiro interlocutor, cuja lealdade nun


ca um só instante vacillou , voltou a colera de que estava pos
suido, contra o supposto diffamador do seu soberano, e acabou
por descarregar-lhe um tremendo murro. O pobre espião tra
tou de retirar-se, e apresentando-se a Pombal e expondo-lhe
o caso , queixou -se amargamente do murro que levou . «Meu
amigo,» respondeu o ministro , « esses são os ossos do officio . »
Pombal dizia que só de duas cousas tinha medo , — das
crianças e dos doudos .
Talvez que geralmente se ignore,mesmo em Portugal, que
foi Pombal quem primeiro introduzio no seu paiz o uso dos
garfos. Este simples instrumento de uma utilidade diaria, le
vou -o o ministro d'Inglaterra, quando regressou da corte de
St. James em 1745 .
CAPITULO XIV

O jesuita Malagrida ; sentença da inquisição : é entregue á justiça secular : sen


tença, que lhe dão. Justiça e execução da pena, que lhe é applicada. Obras
escriptas por Malagrida : extractos d'ellas. Nascimento do ultimo Anti- Chris
to . Prejuizos em favor de Malagrida . Extractos dos officios existentes na se
cretaria d'Estado intercalados no Capitulo .

Agora é necessario que voltemos ao impostor jesuita Ma


lagrida , que teve grande parte na conjuração tramada contra
sua magestade, não só por meio dos seus conselhos na quali
dade de confessor da familia dos Tavoras, mas por meio das
pretendidas prophecias, que dictava sobre aquelle aconteci
mento .
A inquisição exigio que em primeiro caso as authoridades
civis lhe entregassem aquelle padre, como ecclesiastico , que
era , para ser julgado perante os inquisidores em consequencia
da propagação dos seus blasphemos escriptos, sendo restituido
ao poder secular depois que lhe foi lavrada a seguinte senten
ça : « Christi Jesu nomine invocato, declaram ao reo o Padre
Gabriel Malagrida por convicto no crime de Heresia, por affir
mar, seguir, escrever, e defender proposições, e doutrinas op
postas aos verdadeiros dogmas, e doutrina , que nos propõe ,
DES ENTES Po Che delle con

AU DIESE

CES PEREZ
she want
Leur can be

SOCESPERTER
FORIS C's tida, da

RETRATOS BOUTE MALAGR


BELES DLANDRE
Panza
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WLADUSIKOI
pagina 168

ATTENTA COMMIS SUR SMLEROI DEPORTUGAL A 123. Sept1758


R
LES JESUITES Principaux CHEFS de la Conſpiration
I
C

SMARRITATE
I
D
I

JAU DIEU PRESERVATEUR ET VENGEUR DES


ROIS
CES PERESa la tête deplusieurs autres de leurs Soci -
eté ayant engage Les Grands delEtat dans leur CONS
PIRATION contre la vie du Monarque pour se venger de
leur expulsion de la Cour,meritee par des forfaits moins,
ont ete'mis dans les fers,ou ils attendent teur Jugement
Poiſon

Ô SOCIETE PERTURBATRICE DE L'EGLISE ET DESROYAUMES.


FORIS Canes, venefici,impudici, homicidæ .& Idolis ſervientes Apa2

RETRATOS DOS JESUITAS GABRIEL MALAGRIDA , JOAO DE


MATTOS E JOÃO ALEXANDRE.
Copia fiel duma gravura publicada durante a prisão dos
mesmos padres.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 169

e ensina a Santa Madre Igreja de Roma; e que foi, e é he


reje da nossa Santa Fé Catholica , e como tal incorreu em sen
tença de excommunhão maior, e nas mais penas em direito
contra similhantes estabelecidas ; e como hereje , e inventor de
novos erros hereticos, convicto , ficto, falso , confitente, revo
gante , pertinaz , e profitente dos mesmos erros : Mandam que
seja deposto, e actualmente degredado das suas ordens, se
gundo a disposição, e fórma dos sagrados canones, e relaxado
depois com mudança, e carócha com rotulo de Heresiarca , á
justiça secular, a quem pedem com muita instancia se haja com
elle réo benigna, e piedosamente , e não proceda a pena de
morte , nem a effusão de sangue .»
Não haveria a menor duvida em attender á costumada re
commendação de clemencia, se a culpa de Malagrida se limi
tasse simplesmente á publicação de suas loucas blasphemias;
porém os outros crimes, de que era accusado, eram de naturesa
tal, que não podia para elles haver perdão, pois que n'elle se
fundariam os partidarios do mesmo padre como prova da sua
innocencia . Portanto, tomando o tribunal na devida conside
ração os seus muitos delictos , e sentindo a necessidade de dar
n’um ecclesiastico um exemplo tal que detivesse os mais de se
guirem os mesmos passos, a 20 de setembro de 1761 proferio
a sua sentença , condemnando -o «a que com baraço e pregão
seja levado pelas ruas publicas d'esta cidade até á praça do
Rocio, e que n'ella morra morte natural de garrote, e que, de
pois de morto, seja seu corpo queimado, e reduzido à pó , e
cinza , para que delle, e de sua sepultura não haja memoria
alguma.»
As intrigas politicas, em que este homem astuto e desleal se
envolvera , a consideração em que muita gente fanatica e super
sticiosa o tinha, e a influencia que adquirio como confessor de
muitas familias nobres, tornaram -no um perigoso alliado e um
implacavel inimigo ; duas qualidades que nos conciliam com a
severidade da pena, que a necessidade dos tempos imperiosa
mente reclamava .
Uma observação que Pombal fez a mr. Hay pelo tempo
d'esta execução , prova exuberantemente o horror, em que n'a
quelles dias se tinha a heresia , sendo mesmo o crime de lesa
170 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

magestade considerado n'uma escala inferior. « O conde d'Oey


ras disse-me depois que, se Malagrida não tivesse sido execu
tado pelo crime de heresia , teria sido processado pelo de lesa
magestade.»
E , todavia , tornou-se um ponto de duvida se encerrando-o
n’um hospital de doudos se teriam preenchido os fins da justi
ça do mesmo modo que fazendo-o acabar no patibulo ; porque
mesmo em quanto durou o interrogatorio , a que teve de res
ponder perante o tremendo tribunal da inquisição , persistio até
final em sustentar a verdade de todas as prophecias, que dan
tes affirmara .Não quiz negar nenhum dos milagres, que d'elle
se contavam , das visões que tivera , e das revelações divinas
com que fora favorecido. Era de facto um fanatico da peior
especie . Entregue á melancolia e a sentimentos vingativos, o
que se tornava em tormento para si e um flagello para a na
ção , a sua monomania (pois a sua loucura só era relativa a
um respeito) levou -o a publicar algumas obras revestidas d’um
caracter irracional e incoherente ; das quaes uma, escripta em
Latim , tinha por titulo Tractatus de vita, et imperio Anti
Christi; e outra em portuguez intitulada Heroica , e admiravel
vida da Gloriosa Santa Anna , mãi de Maria Santissima, di
ctada da mesma Santa com assistencia , approvação, e concur
so da mesma Soberanissima Senhora , e seu Santissimo Filho .
Tendo -me emfim d'este modo detido na descripção do ca
racter e crimes, talvez desgraças, de Malagrida , deve ser ob
jecto d'algum interesse o citarem -se algumas das fanaticas phan
tasias escriptas na sua obra, as quaes, julgo eu , hão de deixar
no espirito dos leitores a impressão de que ao autor nada fal
tava d'um confirmado maniaco . Eil-as:
« Que Santa Anna fôra santificada no ventre de sua mãi ;
assim como Maria Santissima fôra santificada no ventre de
Santa Anna .
« Que o privilegio da santificação no ventre de sua mãi só
fora concedido a Santa Anna, e a Maria sua filha . Que Santa
Anna no ventre de sua mãi entendia, conhecia , amava , e ser
via a Deos, como tantos Santos avultados na gloria. Que Santa
Anna no ventre de sua mãi chorava , e fazia chorar por com
paixão os Cherubins, e Serafins, que lhe assistião . Que Santa
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 171

Anna, estando ainda no ventre de sua mãi, fizera os seus vo


tos; e para que nenhuma das tres divinas pessoas ficasse es
candalisada da sua affectuosa attenção , fizera ao eterno pai o
voto da pobresa , ao eterno filho o voto da obediencia , e ao
eterno espirito santo o voto da castidade. etc.
« Que elle réo ouvira fallar ao eterno pai com a sua clara ,
e distincta voz, ao eterno filho com a sua clara, e distincta voz ,
e ao eterno espirito santo com a sua clara , e distincta voz.
Que a familia de Santa Anna, alem dos senhores , e de al
gumas crianças, consistia em vinte escravos, doze varões, e oito
femeas. Que S. Joaquim tivera o officio de pedreiro, e morava
em Jerusalem com Santa Anna : e que esta fora a mulher for
te, de que fallava Salomão , o qual se havia enganado, por
que no seu povo , e do seu sangue nascera tão ditosa mulher .
« Que Santa Anna fizera um recolhimento em Jerusalem , de
cincoenta , e tres recolhidas; que para o completar se disfarça
rão em carpinteiros os Anjos , e que para o sustento, hia uma
d'ellas, por nome Martha, comprar peixe, e o vendia com lu
cro na cidade. Que das recolhidas de Santa Anna , casárão al
gumas, unicamente para obedecer a Deos, o qual tinha ab
aeterno determinado que aquellas felizes donzellas, educadas
com attenção por Santa Anna , fossem mãis de Santos, Santas ,
e de varios Apostolos, e Discipulos de Jesus Christo : que uma
casára com Nicodemos , outra com S. Matheus, outra com José
de Arimathéa , e que do casamento de outra procedera S.Lino ,
successor de S. Pedro .
( Que Maria Santissima estando no ventre de Santa Anna

proferira estas palavras: Consolare mater mea amantissima,


quia invenisti gratiam apud Dominum ; ecce concipies, et pa
ries filiam , et vocabitur nomen ejus Maria , et requiescet super
eam Spiritus Domini, et obumbrabit, et concipiet in ea , et ex
ea Filium Altissimi, qui salvum faciet propulum suum . E affir
mava com juramento na dita obra, que a mesma Senhora isto
lhe revelara , e juntamente que no Paraiso celeste se festejava
por oito dias aquelle primeiro passo, ou milagrosas palavras.
« Tambem affirmava como revelado , que Deos lhe dissera
não duvidasse engrandecer a Senhora usque ad excessum , et
ultra ; nem tivesse receio usar, e communicar -lhe os attributos
172 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

proprios do mesmo Deos, a saber = immenso , infinito , eterno,


e omnipotente .
1.« Que o Sacratissimo Corpo de Christo fôra formado de
uma gotta de sangue
do coração de Maria Santissima: que o
mesmo se augmentara pouco a pouco com a virtude e o ali
mento da mãe, até estar perfeitamente organizado , e capaz de
receber á alma; mas que a divindade, e personalidade do ver
bo já se tinha unido aquella gotta de sangue no mesmo ins
tante, em que sahio do coração para o purissimo ventre da
Senhora . Que as tres divinas pessoas tiverão varias consultas,
questões, e pareceres entre si e sobre o tratamento, que se ha
via dar a Santa Anna ; e convierão em que fosse superior a
todos os anjos, e mais Santos : Que a Cidade santa represen
tada ao evangelista , e discipulo amado, quando disse Vidi ci
vitatem sanctam Jerusalem novam descendentem de coelo , sicut

sponsam ornatam viro suo, se devia reputar por hum sordido ,


e vil monturo em comparação da alma de Santa Anna.»
D'estes e outros absurdos similhantes abundavam as duas
obras de Malagrida , por isso que não seria inutil,mas não ha
veria o menor interesse em transcrever outros, á excepção ape

nas da sua prophecia seguinte : « Que hão de ser tres os Anti


Christos, e que assim se devem entender as escripturas, a sa
ber pai, filho, e neto ; e que o ultimo ha de nascer em Milão
de hum frade e de huma freira no anno de 1920 , e que ha de

casar com Proserpina uma das furias infernaes.»


Sem embargo das blasphemias e allucinações d'este homem ,
não houve pouca gente, que o considerasse como santo, che
gando mesmo mais tarde a affirmar gravemente , que se lhe
achou o corpo intei
ro e incorrupto . Um padre Gallini, jesuita ,
viajando na Italia pouco depois d’este acontecimento , perdeu
duas caixas. As alviçaras de cem sequins promettidas a quem as
achasse, e a anxiedade que expressava quem as perdeu , foram
a causa de que as achassem e remettessem ao padre inquisi
dor de Bolonha, que, abrindo -as, n’ellas encontrou uma quan
tidade de gravuras representando Gabriel Malagrida com o
moto Tyranico peremptus martyrio . Juntamente com as mes
mas gravuras se encontraram tambem muitos exemplares d’uma
obra intitulada « Apologia do padre Borouyes ,» que havia pou
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 173

co se imprimira , e cuja publicação fôra terminantemente pro


hibida pelo papa, provando -se portanto por este facto o muito
pouco respeito, que os jesuitas tributavam as determinações de
Sua Santidade.

A execução d’este notorio impostor, produzio uma consi


deravel sensação ainda fóra dos dominios portuguezes, como
prova o extracto seguinte d’uma correspondencia do ministro
portuguez em Vienna , de 29 de novembro de 1761. « Tendo
chegado a noticia da execução do impostor Malagrida ao Col
legio dos jesuitas de Bolonha , suscitou -se uma tão renhida con
tenda entre os jesuitas portuguezes e os italianos, que termi
nou espancando- se . Esta maliciosa companhia abraçou a poli
tica de impedir que as familias suas confessadas se liguem por
meio do matrimonio com outras, a quem a mesma companhia
não consegue dirigir. Agora mesmo tratam de impedir , por
este motivo , um casamento entre duas familias da mais eleva
da consideração em Vienna. )
Correram na Europa muitos boatos falsos por occasião do
supplicio de Malagrida, especialmente a respeito da crença re
ligiosa de D. José, escrevendo por isso mr. Hay ao seu gover
no o seguinte : « Vejo que correu , e se publicou em todas as ga
zetas estrangeiras a noticia de que hia formar-se um synodo
geralde ecclesiasticos em Portugal. Fallando com o conde d'Oey
ras sobre este assumpto , disse-me confidencialmente que n'es
se sentido lhe fôra feita uma proposta ,mas que, como não po
dia tender senão a causar uma dissensão entre o clero , e não
tendo S. M. F. a menor intenção de alterar nenhum ponto da
>
religião , fôra portanto rejeitada .
Entre outros casos que, na época a que nos referimos oc
correram , vemos os que se seguem . Em 1761, o marquez de
Fronteira, camarista da rainha teve ordem de retirar-se para
Gouvea, na provincia da Beira , por ter incorrido no desagra
do d’el -rei: No anno seguinte , D. Rodrigo de Noronha, gene
ral da infanteria portugueza , foi preso para a fortalesa de Pe
niche.
A filha segunda de Pombal contrahio o matrimonio com
D. Christovão de Vilhena, sobrinho de D. Luiz da Cunha .
Em março de 1764 esteve Pombal em Salvaterra com
174 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

uma doença bem grave , estando outra vez no mesmo anno re


colhido em tratamento , em consequencia d'uma contusão de
que lhe resultou a juncção d’uma grande quantidade de pus
n'uma perna.
Em maio do mesmo anno ardeu a alfandega sendo os es
tragos do fogo no valor 500:000 libras.
Em agosto do referido anno casou o filho primogenito de
Pombal com D. Maria Antonia de Menezes .
Em dezembro do mesmo anno de 1764, foram demittidos
seis juizes da Relação de Lisboa , e dez da do Porto por terem
incorrido em varias faltas.
A 22 do dito mez escreve mr. Hay : « Acabam de ser pu
blicamente executados muitos criminosos, que foram ha tempo
remettidos de Cabo Verde, e julgados perante o presidente do
supremo tribunal da Relação, por haverem , em 13 de dezem
bro de 1762, assassinado João Vieira d'Andrade, juiz d'aquel
las ilhas. O principal individuo implicado n’este barbaro assas
sinato foi o coronel Antonio de Barros Bezerra d'Oliveira , que,
havendo já tentado envenenar o juiz , mas não o tendo conse
guido , se juntou a muitos outros individuos, os quaes todos
The assaltaram de noute a casa, precedendo arrombamento, e o
mataram e roubaram . Foi condemnado a ser levado pela cida
de preso á cauda d'um cavallo para o patibulo, sendo depois
ahi enforcado. Nove dos mesmos foram enforcados no mesmo
dia , e um morreu na cadeia . As cabeças de todos estes réos
hão de ser mandadas para a ilha , e expostas ao publico na
cidade da Villa da Praia . Sete foram condemnados a acoutes

pelas ruas, outros tantos a degredo, e um absolvido. Ordenan


do a sentença tambem a confiscação dos bens, dignou -se por
isso S. M. F. conceder os mesmos á viuva e aos filhos do fal
lecido juiz .
CAPITULO XV

Industria e capitaes portuguezes transplantados para o Brazil; circumstancias,


que concorreram para a declaração da independencia do Brazil : estado presente
da agricultura em Portugal ; os seus verdadeiros recursos : a cultura do trigo
animada por Pombal; decreto para este fim ; terras tornadas proveitosas . E
nomeado um inspector para informar sobre o estado da agricultura na provin
cia do Alemtejo : tractado de Methuwen ; Portugal esgotado do seo ouro : quan
tidades immensas importadas desde 1696 até 1726 ; os gallegos : medidas para
impedir a exportação do ouro .

Não ha portuguez nenhum que seja dotado de intelligen


cia, que não admitta que a acquisição das colonias da Ameri
ca meridional, e o descobrimento das minas de ouro, como já
se observou , foram a origem da decadencia do seu paiz. Por
quanto , as fabulosas quantidades dos preciosos metaes que to
dos os annos chegavam do Brazil, fizeram que o povo deixasse
de prestar-se ao constante progresso e melhoramento dos seus
productos naturaes, visto que os mais emprehendedores e di
ligentes abandonavam os seus lares em busca d'aquellas fortu
nas rapidamente accumuladas, que as modicas operações d'u
ma industria continuada não promettiam nem produziam . Foi
n'este estado oscillante que Pombal, como já vimos, encontrou
o seu paiz , estando as terras inteiramente incultas, ou , se arro
teadas, pela maior parte abandonadas; e os recursos naturaes
176 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

despresados ou esquecidos de tal sorte, que Portugal, que dan

tes fornecera trigo ás mais nações , precisava então que ellas


lhe fornecessem aquelle indispensavel genero alimenticio.
Além do plano d’estas memorias não o comportar, não é
este o logar proprio para intentar as descripções das causas e
meios por que o Brasil baniu o jugo de Portugal. Basta uma
minima reflexão para conhecermos quanto era impossivel, que
uma nação desfalcada e decadente conservasse sob o seu do
minio uma colonia consideravelmente povoada, prospera e in
dustriosa, que por isso precisava ter um governo que a sus
tentasse , e talvez para poder existir . E é talvez por este lado
que podemos descobrir sufficientes motivos, que determinaram
a declaração da independencia , sem se ir escogitar causas mais
remotas, como são as allegadas intrigas do governo britanico,
a que a clamorosa opinião politica de muitos portuguezes at
tribue a causa do desmembramento d'aquelle imperio , o que
constitue um dos numerosos absurdos proferidos pelos portu
guezes antagonistas da Inglaterra , que nada desejam mais ar
dentemente do que verem acabada a alliança de Inglaterra e
Portugal, e a sua patria presa da invasão estrangeira ou da
anarchia intestina . E como referindo-me ao estado, em que o
paiz se achava proxima e anteriormente ao ministerio de Pom
bal, este assumpto recahio sobre a agricultura , a primeira e
mais util das sciencias — abalançar-me-hei a expor algumas
observações acerca da sua condição em Portugal, para que por
ellas se veja , qua a maior parte da miseria , que opprime a na
ção , é devida á falta de industria e de conhecimento , e não , co
mo ha quem em vão imagine, a naturesa do solo , ou ás intri
gas d’Inglaterra .
Custa a crer, mas é facto, que a agricultura se ache quasi
na sua primeira infancia. Os varios meios, que a sciencia tem
descoberto , e a experiencia confirmado, para melhorar e fer
tilisar o terreno, são inteiramente ignorados. Todos os instru
mentos de lavoura são de uma forma antiquissima e rude; o
chão raras vezes é cavado , e insufficientemente adubado , en
tretanto que as pobres terras tem de ficar algumas vezes por se
mear annos consecutivos.Nas provincias do norte , onde se acha
animada a agricultura das vinhas, que é a mais apropriada ao
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 177

terreno, anda este bem amanhado e em muitas partes com per


feição, achando-se por consequencia bem povoadas e tendo
muitas villas. No Minho , segundo o censo de 1801, era o nu
mero de almas de 341 para cada milha quadrada italiana, em
quanto que na Estremadura só era de 90 , e no Alemtejo de
39 : e comtudo não falta a estas duas provincias chão bastan
te e fertil, donde podesse tirar-se sustento para uma grande po
pulação , com tanto que se desenvolvessem completamente os
recursos, que tem em si . De facto, as pessoas encarregadas de
formarem estas estatisticas, cuja opinião deve respeitar -se, as
seguram que Portugal tem terreno sufficientemente proporcio
nado á producção do sustento de dez milhões de habitantes ;
e comtudo, presentemente , apenas metade das terras producti
vas andam cultivadas.
Nos territorios circumjacentes do Porto, tão particularmen
te adequados á cultura das vinhas e á producção dos vinhos
mais delicados, foi o estabelecimento da companhia do Douro
que deu grande impulso á agricultura . Comtudo esta compa
nhia acha -se já abolida , e podemos dizer sem receio de que
seja refutado o nosso juiso , que este passo não beneficiou nin
guem , em quanto que foi a ruina de muitos.

Pombal, entretanto , que animava a agricultura das vinhas,


não se esqueceu de empregar todos os meios para que o seu
paiz cessasse de depender dos paizes estrangeiros no abasteci
mento dos cereaes. Vio que algumas das melhores terras de la
voura, que de modo nenhum serviam para aquelle genero de
cultura , estavam reduzidas a vinhas , que apenas davam um vi
nho de insignificante valor. Para obstar a que tão máo em
prego se desse a tão valioso terreno, lançoumao d’uma anti
ga lei de 17 de março de 1691 para a restituir ao seu uso
primitivo. Esta lei estabelecia , para que assim se semeassem ,
o genero de plantação e de semeadura que era proprio de
todas as terras nas margens do Tejo , comprehendendo to
das as campinas e lezirias a ellas annexas. Os lavradores po
rem , procuraram illudir esta lei; e a terra , que de outro modo
teria fecundado e crescido em valor , tornou -se esteril e impro
ductiva por culpa da ignorancia dos mesmos .
Para fazer que estes terrenos voltassem ao seu uso primi
VOLUME I 13
178 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tivo , publicou Pombal o seu celebre alvará de 26 d'outubro


de 1765 , ordenando que no praso de tres mezes, a contar da
referida data , fossem arrancadas todas as mencionadas vinhas ,
sendo as terras semeadas de pão . Não se supponha que um
acto revestido de arbitrariedade e de coerção , a não serem os
motivos e razões, que devidamente investigados e ponderados
levaram Pombal a este extremo, passasse sem ser commenta
do e censurado . Portanto , foram bastantes as aggressões, e re
petidas as arguições contra o ministro, sendo muitas futeis, ou
fras dictadas pela inveja , e todas caracterisadas pela injustiça .
Pois devemos lembrarmo-nos da naturesa e constituição do go
verno de Portugal na época , a que nos referimos, e que em
certas conjuncturas se tornavam absolutamente necessarios os
meios da prerogativa , tanto para o bom governo, como para a
conservação do estado; e que esta não era nenhuma lei nova
de Pombal, mas simplesmente a execução da que fôra promul
gada muito antes do seu tempo. Todavia este caso não passa
de ser um dos muitos, em que certos escriptores tem inconside
radamente censurado este estadista sem devidamente analysa
rem os factos, e condemnado as suasmedidas sem comprehen
derem os fins, com que foram tomadas; mas não é para admi
rar que os nescios dessem prompto credito ao que os malicio
sos inventaram . As terras que d’este modo se ordenou que
fossem reduzidas a lavoura de pão foram as margens, campi
nas, logares de paul ou lezirias desde o rio de Sacavem até
Villa -Nova da Rainha ; as margens do Tejo , e campinas de Val
lada, de Santarem , e da Golegã ; e tambem as margens dos
rios Mondego e Vouga. As quintas, montes e serras, e outros
logares, em que as vinhas eram bem reputadas, não foram
comprehendidas n’esta lei. Os donos das terras que, nas refe
ridas margens dos rios e campinas, se não achassem desde lo
go habeis para produzir pão, foram constrangidos a plantar
nas frentes d'ellas contra o rio Tejo, e suas enchentes, pelo
menos duas ordens de arvores . Assim , restituindo estes terre
nos á sua cultura natural, se substituio uma pessima e impro
ficua vindima por uma abundante e preciosa colheita .
Se fosse possivel ter-se mostrado (o que, segundo o costu
me, nunca se tentou ), que as vinhas em questão eram susce
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 179

ptiveis de melhoramento, e que podiam vir a dar um vinho


mais rico e generoso ; ou , que por meio de novos tratados e
judiciosas allianças com outras nações , podia Portugal ter dis
posto de sua grande quantidade de vinhos, teria isto sem du
vida contribuido tanto para a gloria do ministro como para o
interesse do paiz, concentrando todas as forças da agricultura
n'aquelle ramo d'industria. Comtudo Pombal vio que tanto uma
como outra cousa eram impossiveis ; e lembrando -nos de que
os vinhos criados n’estes terrenos eram d'uma qualidade infe
rior e sem merecimento algum , podemos com rasão concluir
que o ministro fez quanto estava ao seu alcance para bem do
paiz, olhando ás circumstancias em que se achava .
Para dar ainda maior impulso á lavoura do pão , creou e
nomeou Pombal a Luiz Ferrari, com o ordenado de dous con
tos de reis , intendente geral dos exames, calculações , e medi
ções das terras da provincia do Alemtejo em beneficio da agri
cultura, e plantações da mesma provincia ; de sorte que se po
desse conhecer a capacidade, que n’ellas havia para as produc
ções das differentes especies de sementes, e arvoredos uteis .
Estasmedidas adoptaram -se não só para se colher um relato
rio tão exacto que em vista d'elle podesse Pombal introduzir
na agricultura todos os melhoramentos possiveis, e d’estemodo
desenvolver as fontes latentes do paiz ; mas tambem como
designio de lançar-se uma capitação em todas as provincias do
reino.

Os portuguezes, segundo já observei, no tempo em que


eram senhores de ricas colonias, como o Brazil, que, como
seu ouro, lhes proporcionava os meios de acudirem a todas as
necessidades da vida, não curaram de animar as suas manu
facturas ; de sorte que no reinado de D. João V. assimilhavam
se mais a uma corporação de frades e freiras, do que a um
povo commercial. Os generos alimenticios assim como os pan
nos vinham do estrangeiro; e, pelo celebre tratado de Methuen em
1703 , concedeu -se a Inglaterra a importação dos seus lanifi
cios em Portugal, com a condição de receber em troca os vi
nhos portuguezes, pagando menos tres por cento de direitos do
que os de França .
Não se julgue, porém , que todo o ouro de Portugal ia pa
180 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

ra Inglaterra ; ao contrario , esta recebia de Portugal em troca


das mercadorias que lhe exportava mais productos naturaes
d'aquelle paiz do que todas as mais nações juntas. Entretanto
é innegavel que Portugal estava pobre e quasi exhausto . Entre
outros, foi o papa um dos que tiveram maior quinhão. Dezoito
mil cruzados, a titulo de donativo, eram todos os annosmanda
dos ao successor de S. Pedro ; e a este respeito melhor nos es
clarece lord Kinnoul n’um despacho de agosto de 1760 : « A
somma dos interesses, que o papa tirava deste paiz, subira , se
gundo o calculo que se fez, a 200 :000 libras annuaes.» Para
que se ajuize das enormes quantidades de ouro com que Por
tugal, no espaço, que decorreu de 1696 a 1726 , abasteceu as
mais nações da Europa , basta acrescentar, que entraram nos
seus portos cem milhões de libras esterlinas ; e todavia em
1754 não chegava a um milhão todo o dinheiro, que havia no
reino, ao passo que a nação estava sobrecarregada com uma
divida de tres milhões. Hoje mesmo, segundo se diz, cerca de
meio milhão é exportado todos os annos pelos gallegos, que,
tanto na capital como nas provincias, fazem o serviço, que os
portuguezes não podem ou não querem fazer .
Pombal, tendo-se iniciado na administração dos negocios
publicos, não tardou em empregar alguns meios para obstar a
esta continua sahida de dinheiro do reino . Portanto foi promul
gado o alvará que prohibio que o ouro e pedras preciosas im
portadas das colonias fossem exportadas sem licença , esperan
do assim obrigar os negociantes estrangeiros a levar productos
portuguezes em troca das suas mercadorias. Todavia o princi
pio , sobre que fundou as suas esperanças, foi frivolo, porque
não se tirou bom resultado do projecto. Outro plano para sus
tentar o medium da circulação no paiz, fundado sobre mais
sabios principios, se poz em execução em 1755 , depois do
grande terremoto , e o qual surtiu algum effeito. Refiro-me ao
exemplo que o rei e os fidalgos da sua corte deram vestindo
se de saragoça nacional, o que de certo modo deu impulso aos
productos industriaes do paiz, pois que os pannos, em geral,
estavam então por um alto preço .
CAPITULO XVI

Queixas dos negociantes estrangeiros residentes em Lisboa : systema judicioso de


Pombal; extractos dos despachos de mr. Hay : Pombal estima a alliança in
gleza ; recusa reconhecer as pretensões dos negociantes inglezes; mr. Lyttleton
è enviado a Lisboa para appresental -as ; natureza dos aggravos, a que Pombal
responde: seu máo estado de saude por este tempo : modo de dirigir os nego
cios do governo; libellos escriptos contra Pombal : mr. Robert Walpole substi
tue mr. Littleton .

As queixas feitas pelos negociantes estrangeiros em Portu


gal, em quanto durou a administração de Pombal, formam uma
parte importante das difficuldades, que elle tinha de encontrar.
A fundação da companhia dos vinhos e d'outras mais, desper
tou a raiva e a inveja incessantes de todos aquelles que, não
tinham parte directa nos lucros. Maços e maços de represen
tações, como Pombal mesmo nos informa, dirigiram os nego
ciantes e logistas inglezes estabelecidos em Lisboa e no Porto .
ao seu governo , as quaes se tornaram o objecto de repetidas
controversias entre o ministro portuguez e os enviados brita
nicos, sustentando sempre Pombal em todas ellas com inflexi
bilidade os seus planos, e o systema, que adoptou quando to
mou posse do ministerio. Mr. Hay, n’um officio que dirigio ao
secretario de estado dos negocios do departamento do sul,
182 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

elucida os projectos do governo portuguez da maneira se


guinte :
Em 18 de março de 1763. Tendo -vos dado a substancia
das conferencias que tenho tido com o conde d'Oeyras sobre o

que respeita ao commercio, tomo a liberdade de expor- vos o


systema, que me parece elle ter adoptado .
« O conde d'Oeyras, logo no começo do seu ministerio , to
mou em consideração o estado do commercio de Portugal. Vio
que os tratados commerciaes com as nações estrangeiras foram
todos feitos pouco depois da enthronização da casa de Bragan
ça , e portanto n'uma época em que o rei, como precisasse do
apoio e da protecção d'outras potencias para sustentar -se con
tra a Hespanha, fez muitas concessões n'esses tratados, pouco
vantajosas para este paiz. Vio que se acham estabelecidos em
Portugal homens de todas as nações , aos quaes vem consigna
das as mercadorias
para as venderem aos portuguezes, assim
para o consummo do interior como para o do Brazil, de sorte
que em quanto a si os negociantes portuguezes não são aqui
mais do que caixeiros dos estrangeiros, e os do Brazil commis
sarios ou feitores dos mesmos. Além d'isso os negociantes in
glezes do Porto compravam os vinhos aos proprios lavradores,
e disfructavam sós aquelle ramo de commercio colhendo todo
o seu lucro .
Eis portanto o que levou este ministro a conceber o pro
jecto de collocar o commercio nas mãos dos portuguezes, e fa
zer que fossem elles os que importassem e recebessem as fa
zendas estrangeiras, e que ficasse em suas mãos o producto
proveniente da exportação dos vinhos. A difficuldade estava
em encontrar homens bastantemente energicos e acreditados
para emprehenderem este grosso commercio , e, como quasi ne
nhuns encontrasse, lembrou -se de formar companhias mercan
tis. A do Maranhão e Grão Pará foi a primeira , e logo se lhe
seguio a de Pernambuco. As companhias gosam de muitos
privilegios e poderes extraordinarios, que as animam . Todos
aquelles, que n'ellas compram acções, tem o apoio e a protec
ção do governo , e, ao contrario , os que as recusam são olha
dos d'uma maneira muito desfavoravel. Resta saber se d’estas
companhias se colherá bom fructo em tempo de paz, e n'este
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 183

caso vem ellas sós a importar todos os artigos estrangeiros, e


a fazer que d'este modo , chegue tempo em que a nenhum
negociante estrangeiro convenha residir n’este paiz.
« Parece que a fundação da companhia dos vinhos do Alto
Douro se funda sobre o mesmo plano, qual o de fazer que este
ramo de commercio passe para as mãos dos portuguezes. E tão
extensivos são os privilegios e estatutos da referida companhia,
que dão logar a que os estrangeiros só negociem do modo que
ella julgar conveniente.
«Parece, pois , evidente que se trata de estabelecer um com
mercio activo entre os portuguezes , e de fazer que elles não
precisem dos feitores estrangeiros. E , até hoje , todos os ex
traordinarios acontecimentos, que durante este reinado teem so
brevindo,-acontecimentos que teem estado longe de darem
alguma idea de independencia , não puderam comtudo distra
hir este ministro de proseguir no seu designio de crear um acti
vo commercio .

« Elle não nega que a Inglaterra é a unica e primeira al


liada que convem a Portugal, e tambem admitte com justiça,
que os tractados defensivos compensam o seu paiz da desvan
tagem dos tractados commerciaes .»

«Este ministro é indubitavelmente dotado depreclarissimos


e manifestos talentos ; mas receio cheguemos a ver que os ali
cerces, sobre que tem que erigir o edificio, sejam estreitos de
mais para sustentarem o peso da fabrica . Aos portuguezes
faltam os fundos sufficientes para por sua conta dirigirem o
commercio
Taes eram os patrioticos designios de Pombal, nos quaes
proseguio inabalavel até á hora derradeira da sua administra
ção, tendo-os levado a cabo, apesar dos receios que vemos ex -
pressos na parte final d'este officio .
N'outro officio , de 18 de fevereiro de 1766 , acham -se ain
da mais amplamente descriptos e patentes o caracter e desi
gnios de Pombal. «Não conheço,» diz mr. Hay . « outro homem
dotado de maior firmesa , nem que mais pugne pela alliança
da Gran - Bretanha e Portugal, de que o conde d'Oeyras.
«Logo no começo da sua carreira ministerial tralou de mu
184 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

dar a face ao commercio collocando -o em melhor terreno, e ,


ou julgasse que os estrangeiros em geral, ou os inglezes em
particular, disfructavam muito, e os portuguezes quasi nada,
o que é certo é que tem feito muitas innovações. Porém , estou
intimamente convencido de que a sua opinião é, que nenhu
ma deliberação tem tomado que não esteja dentro dos limites
do direito, que todo soberano tem de fazer executar den
tro dos seus proprios dominios, independentemente de quaes
quer tratados. Muitas d’estas organisações são prejudiciaes
até aos portuguezes, mas é tal a constancia com que trabalha
nos seus planos, que ha de nelles presistir até final. No seu
systema politico mostra -se do mesmo modo inabalavel. Muitas

vezes me tem dito que muito o penalisa que Portugal não pos
sa bastecer o Brasil , por isso que tem de recorrer a outro paiz,
e que nenhum se acha mais no caso do que a Gran Bretanha ,
que sempre foi a natural alliada de Portugal, e que se interes
sa em sustentar a mesma alliança , que outras nações despre
sam . A sua affeição aos francezes não é grande, e a idea da
independencia fal-o cerrar os ouvidos a quaesquer propostas
de estreitas relações com os hespanhoes. E um genio , como o
de Pombal, não esquece facilmente o despreso com este reino
foi tratado , tornando-o o primeiro e immediato objecto do Pa
cto de Famillia . »

O valor que Pombal dava á alliança ingleza acha-se ainda


mais completamente demonstrado n'outro officio posterior de
1 de março de 1766.« O conde d'Oeyras disse em primeiro
logar, que durante o tempo em que esteve ao serviço do seu
rei, soube de muitas tentativas que se fizeram para desfazer a
alliança de Portugal e Inglaterra, e que era este um projecto,
que os francezes, desde o tempo de Luiz XIV , sempre tiveram
em vista, e que quasi viram realisado em 1745 por meio d'u
ma negociação, que elle impedio se effectuasse, regressando no
mesmo anno d’Inglaterra com licença do seu governo .»....
«Em conclusão disse que estas cousas não admittiam difficul
dade alguma ; que a Inglaterra e Portugal eram como marido
e mulher, que poucas disputas domesticas deviam ter entre si,
mas que, se alguem mais viesse perturbar a paz da familia , se
deviam unir para a defender.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 185

« A parte que o rei, desde o começo do seu reinado , tem


tomado na presente questão, tem sido firme e inalteravel. E
conde d'Oeyras, que ha vinte e oito annos, trabalha em nego
cios publicos, conhece perfeitamente o valor da alliança da
Gran Bretanha, e tem muitas vezes dito, que é ella a unica na
ção que mostra um interesse constante em ser alliada de Por
tugal, pelo que elle se tornou reciproco. Os francezes nenhum
podem ter.
« O conde d'Oeyras tem em sua mão toda a direcção dos
todas as
negocios d’este paiz . O seu poder é grande , e faz que
classes do povo o temam , pelo que , segundo o costume , ha de
ter sobejos inimigos. Todavia conserva a inteira confiança de
El-Rei seu amo, e, falando a verdade, sem embargo de quaes
quer faltas, é o unico que n'este paiz é capaz de dirigir os ne
gocios publicos. O seu estado de saude é actualmente melhor ,
do que o era antes da grave doença que ultimamente teve ; e
como é homem de robustez natural, pode viver ainda muitos
annos, porque , segundo calculo , ha de ter cerca de sessenta e
seis annos.

« É talvez difficultoso dizer quem lhe succederia, se algum


accidente sobreviesse ao conde, ou a face que os negocios do
paiz tomariam . Por conseguinte, parece que o actual syste
ma governativo depende tanto da vida do rei, como de Pom
bal.
Entretanto que, por
meio d'estes extractos, vemos o subi
do gráo, em que Pombalapreciava a alliança ingleza , pelo lado
politico , vemos tambem claramente que estava firmemente de
terminado a sustentar as companhias mercantis que fundára,
e o direito, que ao seu governo assistia de independentemente
dirigir os negocics internos do seu paiz. Baldadas eram as re
presentações de mr. Hay , e do mesmo modo as pretenções
com que os negociantes inglezes clamavam- Pombal era inex
oravel. Afinal foi mr. Lyttleton enviado a Lisboa com minu
ciosissimas instrucções do seu governo, afim de pedir que se
desse remedio a varios e especificados prejuisos de que os sub
ditos britanicos se queixavam .

Pouco depois da sua chegada a Lisboa, em agosto de 1767,


logo este ministro apresentou uma extensa relação das queixas
186 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

que havia contra certos decretos, promulgados no reinado de


D. José, e certas innovações, que o commercio do paiz soffreu .
Como uma grande parte dellas eram futeis, e muitas inadmis
siveis , Pombal respondeu a ellas por vezes, e exonerou habil
mente o seu governo da arguição de ter arbitrariamente inter
vindo nos privilegios e immunidades, que por meio de tratado
ou outra via qualquer, os inglezes alcançaram para terem com
mercio em Portugal, não deixando comtudo de firmemente ne
gar-se, ao mesmo tempo , a reconhecer quaesquer privilegios
ou isenções incompativeis com a constituição e independencia
do seu paiz, ou com as leis que era preciso estabelecer para a
administração dos negocios nacionaes. Declarou mais que os
casos insolitos rescindem todos os contractos e promessas an
teriores; e que a necessidade publica, quando tem logar, cons
titue a lei suprema .

Das interminaveis queixas, que os negociantes inglezes de


Lisboa quizeram que se preferissem , uma das principaes foi a
que teve por alvo o estabelecimento da companhia do Mara
nhão e Gran Pará , e da de Pernambuco e Paraiba, e é como
se segue :
«Que as companhias do Pará , e Maranhão, Pernambuco
e Paraiba causaram tanta diminuição nas mercadorias, que a
Nação Britanica fornece para o consummo das terras do Bra
zil, que achando -se o commercio do Maranhão tão florente ,
antes da Instituição da companhia do Pará , que empregava
pelo menos 15 , ou 16 navios por anno, se acha actualmente
reduzida a 3, ou 4 navios somente ; seguindo-se daqui a con
sequencia de que os negociantes portuguezes, a quem osmer
cadores britanicos tinham dado as suas fazendas a credito para
fazerem o negocio d'aquelle estado, por haverem sido excluidos
delle , ficaram impossibilitados para poderem pagar as suas di
vidas. »
A similhantes arguições respondeu Pombal mui cabalmen
te da maneira seguinte :—Primeiramente, é facto notorio que
a corte de Lisboa não teve alguma intenção de esterilisar, ou
diminuir o commercio com o estabelecimento das companhias;
pois não as formou para a Bahia e Rio de Janeiro, onde o
mesmo commercio estava florecente em commum beneficio ;mas
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 187

sim para os paizes, onde o mesmo commercio, ou não tinha


nascido, ou se achava quasi inteiramente arruinado. O Pará e
Maranhão não eram paizes de grosso commercio , como se in
formou : muito pelo contrario , estavam reduzidos aos cada
veres das cidades de S. Luiz , e de Belem , onde não havia nem
cabedal, nem gente , que consumisse mercadorias dignas de at
tenção. Tudo o mais eram sertões habitados por homens bru
tos, e silvestres, que os jesuitas conservaram na infeliz igno
rancia de que havia outros homens civis, que andavam vesti
dos e calçados. E este facto igualmente notorio basta para fazer
ver que n’aquelle estado não podia haver agricultura, nem
commercio ; mas tão somente escravidão, calamidades, e mise
rias, que a clemencia de S. M. F. soccorreu , differindo á cla
morosa representação dos pobrissimos moradores da cidade do
Pará , com o transporte dos 3 regimentos d'infanteria paga , com
que reforçou as milicias d'aquelle paiz ; com a fundação da
companhia, e com os outros transportes de muitos casaes de
povoadores, que successiva e publicamente se tem visto em
barcar no Rio Tejo para o referido paiz , desde a fundação da
dita companhia ; por serem estes os meios, que se costumam
applicar para fazer ferteis , e uteis ao bem commum do com
mercio , os paizes barbaros e incultos, como aquelles eram , an
tes da applicação dos referidos meios, que ao mesmo tempo o
foram ja para se fazer no Pará e Maranhão um consummo de
mercadorias incomparavelmente maior do que aquelle, que an
tes não havia permittido a pobresa, e barbaridade d'aquellas
terras. Antes da companhia não foram , nem podiam ir ao Ma
ranhão n’aquellas circumstancias os 15 , ou 16 navios cada
anno , como se allega ; muito pelo contrario só 3, 4 até 5 pe
quenas e insignificantes embarcações iam annual ou biennal
mente buscar os cacaos, e mais fructos silvestres que os je
suitas faziam extrahir dos sertões mais remotos pelo Indios nus,
e descalços, que gemiam debaixo do jugo da sua escravidão ;
e trazer cabedaes, que os mesmos jesuitas Portuguezes remet
tiam pelos ditos sertões ; e outros jesuitas Hespanhoes de muito
remotas distancias, para fugirem de as levar a Cadiz. Depois
da fundação da dita companhia , e do consideravel augmento
que ella tem feito na agricultura , e no commercio, o facto é
188 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

que este emprega mais de 20 bons navios, que estão patentes


aos olhos de todo o mundo , em continuo giro no Rio Tejo . O
ultimo facto tambem evidentemente publico , e notorio é, que
não podendo produzir o reduzido continente de Portugal,
nem a oitava parte do que é necessario para o consummo de

seus vastos dominios , e não podendo por isso as companhias


fornecer -se a si proprias, estão continuamente comprando aos
mercadores estrangeiros quasi tudo o que necessitam para o
consummo dos referidos paizes, resultando d'estas verdades
manifestas tres consequencias. Uma é, que o consummo actual
da mesma companhia do Pará e Maranhão é desproporcional
mente maior do que nunca o fôra o dos poucos, escuros, e
desconhecidos particulares , que antes mandavam áquelles pai
zes algumas encomendas. Segunda, a da outra differença na
segurança dos pagamentos dos vassallos de Sua Magestade
Britanica ; porque os grandes pagamentos da dita companhia
são certos e infalliveis , com hypotheca solida, quando os insi
gnificantes pagamentos dos particulares não tinham , nem po
diam ter alguma segurança . Terceira e ultima consequencia ,
que da união dos referidos factos vem a resultar outra claris
sima demonstração de que tudo que pertenderam persuadir os
referidos informantes,passa pelo contrario ; sendo interesse phy
sico e manifesto o que
elles quizeram figurar prejuiso dos vas
sallos d'El- Rei da Grã Bretanha , a respeito da companhia de
Pernambuco , e tambem publico e notorio, que n’aquelles es
tados, se passava, com pouca differença, o mesmo que se pas
sou no Maranhão ; de sorte que todos os que habitam esta ci
dade de Lisboa, conhecem plenamente, por inspecção occular,
o extraordinarto consummo, que se augmentou n'aquelles pai
zes , depois que foram civilisados pela referida companhia,
que o commercio d'elles emprega successivamente , e sem in
terrupção, vinte e tantos navios, a maior parte d'elles de boa
lotação ; e que todo o referido augmento de consummo accres
ce ao commercio externo , pela mesma rasão de não ter a dita
companhia com que possa fornecer os moradores dos referidos
paizes, e dos seus vastissimos sertões, que já consomem os ge
neros da Europa , que antes eram da maior parte d'elles igno
rados. Ultimamente, nenhuma das ditas companhias exclue os
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 189

vassallos Britanicos, e se julgaram não lhes ser proveitoso en


trar n’ellas, não deviam arguir as Instituições, que os admitti
ram ; mas sim a repugnancia que tiveram em concorrer com
os portuguezes.
Pelo artigo secreto do tratado de 1654 entre Inglaterra e
Portugal, fora estipulado « que as gentes, e habitantes de In
glaterra, etc. não pagarão mais direitos, e tallas , senão da
maneira seguinte: Que as fazendas, mercadorias inglezas, e
manufacturas na sua avaliação a pagar direitos, nunca ex
cedão de 23 por cento , e sejam favorecidamente avaliadas,
conforme o regimento da alfandega, e das antigas leis do rei
no, etc.)

Pouco depois do terremoto , propozeram , de seu motu pro


prio, os principaes negociantes portuguezes, que todos os ge
neros importados pagassem o direito de 4 por cento , sendo o
seu producto unicamente applicado á reedificação da alfan
dega e dos outros edificios principaes e publicos que fica
ram destruidos.Tambem se declarou que o referido direito
seria em relação ao valor real das fazendas, e não á antiga
avaliação.
Os inglezes declararam que isto ia de encontro ao que re
sava o citado tratado ; mas Pombal com tal habilidade respon
deu aos seus argumentos, referindo -se á tarifa dos direitos ta
xados, os quaes ao presente tão favoraveis se tornaram para
os inglezes, visto que o valor do dinheiro declinara , que, ven
do elles que tocavam em terreno perigoso , abandonaram ajui
sada e completamente esta questão .
As outras queixas versavam sobre a coarctação da autori
dade do juiz conservador : sobre o alvará que mandava que
as acções das companhias commerciaes tivessem validade legal
no pagamento de dividas : sobre o augmento das taxas lança
das aos navios inglezes, e dos ordenados de varios emprega
dos publicos : sobre o alvará que prohibia a exportação do ou
ro: finalmente sobre uma infinidade de aggravos de identica
naturesa , os quaes, ou sejam reaes ou phantasticos,não devem
deter-nos mais .
Em todas as occasiões, em que sobre o presente assumpto
o ministro britanico conferenciou com Pombal, não cessou este
190 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

nunca de ligar a maior importancia á alliança e boa intelligen


cia com Inglaterra . Foi depois d'uma d'estas que mr. Lyttleton
escreveu : - « O mutuo interesse, que liga Inglaterra e Portugal,
fórma na opinião do conde d'Oeyras uma união tão estreita ,
que se torna para nós uma garantia superior a todos os trata
dos . Diz elle que, concluidos quaesquer tratados, os principes

que os fazem , consultam o interesse geral dos reinos, e não os


livros-caixa dos negociantes. Que, sabendo os sentimentos que
a sua côrte nutria , não era possivel haver qualquer séria diver
gencia com a Grã Bretanha , apesar das queixosas representa
ções de certos individuos, que se julgavam affectados nos seus
proprios interesses. E que nenhuma duvida via em que, obran
do fundados no principio d'essa amisade nacional, cedo arran
jassemos tudo de modo satisfatorio.»
O máo estado de saude de Pombal foi então causa de que
tanto se demorasse a conclusão d'estes negocios, que tanto tem
po havia estavam pendentes. Esteve durante alguns annos sof
frendo das pernas ; e em janeiro de 1768 esteve bem mal com
um tumor n'um tornozelo , attribuido a uma lesão proveniente
do estribo ao montar a cavallo em Azeitão, e que despresou
deixando -a chegar a um estado tal, que tornou indispensavel
os cuidados d’um cirurgião. Durante cerca de quatro mezes,
que esta doença durou, foi Pombal algumas vezes sangrado do
que lhe resultou tão grande enfraquecimento, que de modo ne
nhum poude continuar as suas conferencias com mr. Lyttleton ,
e ninguem era capaz de supprir o seu logar. Na verdade, em
vista d'um breve extracto de outro despacho, ver-se-ha que a
administração de todos os negocios do paiz , tanto internos co
mo externos, estava toda nas mãos de Pombal, e sob a sua
unica direcção .
« Não deixará de vir a proposito informar-vos sobre a ma
neira, como aqui se dirigem os negocios. O conde d'Oeyras pos
sue toda a confiança do rei. Luiz da Cunha nunca dá um mi
nimo passo sem primeiro combinar com o conde. Não ha aqui
sub -secretarios, e nenhum dos empregados é admittido a con
fidencia alguma, além dos papeis que se lhes põe diante , não
devendo cada um saber do que o outro trata. O ordenado es
tipulado a estes amanuenses anda muito proximo de duzentas
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 191

libras annuaes, sendo o de official de trezentas, além das gra


tificações que se dão aquelles encarregados d'algum trabalho
particular. De sorte que ha empregados que percebem por an
no seiscentas, oitocentas, ou mil libras. Mas aquelle, em quem
recair suspeita de ter violado a confiança de que era deposita
rio , só tem a esperar um carcere. D'este modo lodos os nego
cios estão em poder do conde, e as amplas remunerações que
dá aos seus empregados, juntamente com o temor que o casti
go lhes incute , fecham totalmente a porta por este lado a todas
as esperanças de qualquer intelligencia secreta , além da que o
conde communicar .)
O maior e mais predilecto desejo , que Pombal sempre nu
trio , foi o de deixar a sua patria n'um estado de mais perfeita
independencia possivel ; e foi por este lado que os seus inimi
gos constantemente procuraram deprimil-o ,representando Por
tugal como escravo d’Inglaterra , da mesma sorte que certo par
tido faccioso tem em nossos dias procurado desfazer os laços
que prendem os dous paizes. Publicaram -se bem acerbos folhe
tos que bastantes vezes circularam em Londres, com o fim de
lançar o odioso sobre o procedimento do governo portuguez.
Pombal queixou -se a mr. Lyttleton de que os seus inimigos
« enchiam as gazetas de invectivas contra Portugal para que a
mais antiga e constante alliada da corôa d'Inglaterra se tor
nasse tão odiosa ao povo britanico, como a Grã Bretanha se
teria tornado odiosa ao povo portuguez , pela falta de conheci
mento competente, se S. M. F. não o tivesse a tempo suppri
mido :» alludindo a certo folheto politico que os jesuitas qui
zeram fazer circular em Portugal.
Mr. Lyttleton não poude chegar a um accordo n’estas ques
tões commerciaes antes de retirar -se, e, em janeiro de 1772 ,
foi substituido por Robert Walpole , que partio para Lisboa
com um documento que continha 127 paginas, intitulado,
«Minuta d'uma Resposta que deve ler-se n'uma conferencia
com o ministro . »
Não seguiremos o fio das negociações. A prolongada
doença de Pombal obstou consideravelmente a que se con
cluissem . A naturesa das exigencias, e os volumosos officios
por que foram sustentadas, occultavam de certo modo á pos
192 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

sibilidade d'um proximo accordo. Todavia Pombal empregou


n'esta questão todas as suas forças, até que afinal, passados
annos, tendo -se concordado n’uns pontos de parte a parte,
e abandonado outros, passaram as causas de questão para
as mão d'outros governantes a quem estas memorias se não
ligam .
CAPITULO XVII

Dissenção com a corte de Roma; vas pretenções da dita corte. Tentativas mali
ciosas dos jesuitas. São-lhes confiscados seus bens em Portugal.Desintelligen
cia entre Portugal e Hespanha. Insulto feito a D. José pela Curia Romana. In
dependencia de D. José . Descoberta devida ao acaso das doutrinas e praticas
dos jesuitas. A bulla Apostolicum Pascenti Munus. Má politica do Papa . Osje
suitas são olhados em Vienna com desfavor. É declarado um sophisma - a in
fallibilidade do Papa . A celebre these do padre Pereira. Propostas para uma
reconciliação . Procedimento do arcebispo d'Evora . A bulla in Coena Domini é
supprimida . Morte de Clemente XIII. Succede-lhe Ganganelli. Resolve -se uma
reconciliação . A ordem de Jesus é finalmente abolida. Regozijos. Chega o nun
cio a Lisboa. O Papa elogia Pombal, e manda -lhe presentes. Extractos dos
officios existentes na Secretaria do Estado intercalados no capitulo .

Tendo-se vigorosamente executado a ordem , que em 1760


se expedira para que todos os portuguezes abandonassem os
estados da Egreja, e os subditos de Sua Santidade sahissem de
Portugal, era impossivel, ao que parecia , uma reconciliação
entre as duas corðas, e sobre tudo, porque não era permittida
communicação nem correspondencia alguma entre ellas, e por
que fôra expressamente prohibido que se recorresse á santa
Sé por motivo de bulla ou dispensa qualquer.
As armas espirituaes, com que os papas estavam costuma
dos a infundir terror nos animos dos seus adversarios, come
VOLUNE I 14
194 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

çaram no seculo XVIII a perder muito da sua original influen


cia . O direito , de que se arrogavam de poderem intervir dire
ctamente em « todos os reinos da terra ,» era tão frivolo e futil,
como as pretensões do imperador da China ao seu parentesco
com o sol e com a lua .
Os mais servis aduladores do poder, esses mesmos come
çam a despresar pretenções altivas, quando são incongruentes
as bases, sobre que ellas se fundam . O principe, que assume a
grandesa , ou aspira ao poder politico , e nem as fontes aurife
ras da riquesa , nem as forças de um exercito possue, torna -se
forçosamente o ludibrio dos seus amigos e o alvo dos seus ini
migos. Quem ha que, ainda que venere a authoridade espiritual
do papa , ouse sustentar á clara luz do dia d'este seculo intel
ligente , como com toda a gravidade fizeram os escriptores an
tigos, que « Papa est supra jus, contra jus, et extra jus;» ou
que « potest de injustitiâ facere justitiam ? » Podia a força da
loucura ir mais longe ? E assim , deverá admirar, quando
tão monstruosos sentimentos se prégaram e sustentaram , que
o pontificado de Roma tivesse caido na sua actual insignifican
cia, ou que o successor de S. Pedro tivesse sido levado capti
vo para um paiz estrangeiro por um corsico aventureiro ?
Em toda a Europa, mas com especialidade em Roma, não
se descuidaram os jesuitas de trabalhar em denegrir o caracter
de D. José e o do seu fiel ministro . Falsidades, libellos, saty
ras, calumnias,-emfim , não houve meio que a malicia fosse
capaz de suggerir, de que elles não lançassem mão para con
seguir o seu fim ; e entretanto estes padres rebeldes publicavam
escriptos successivamente uns apôz outros sob o pretexto de se
justificarem , quando o verdadeiro fim era lançarem o odioso
sobre o governo de S. M. F.
N’um officio do ministro portuguez em Vienna , de 8 de
abril de 1759, acha-se a seguinte informação sobre os passos
com que elles avançavam : « As falsidades propagadas pelos je
suitas em Roma, e em outras partes da Italia , acharam cami
nho para Vienna. Quinta feira proxima passada contou -se que
o exercito se sublevára em Lisboa ; que tinha incendiado a ci
dade obrigando El- Rei a refugiar-se em Inglaterra ; e que o
sr. José de Carvalho fôra morto . E n'outro de 3 de agosto de
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 195

1760 diz o mesmo: «Os jesuitas contam que a causa da sua


perseguição em Lisboa foi terem -se opposto a abolição da in
quisição , e ao consorcio da Princeza com o duque de Cumber
land .» E para ainda melhor mostrar o gráo a que chegaram
as suas diffamatorias calumnias, escreve o embaixador ao seu
governo n'um despacho posterior de 8 de março de 1761 : «Os
jesuitas inventaram e falsificaram , conforme o seu costume, e
teem propagado o boato de que El- Rei nosso soberano convo
cou todos os prelados para um synodo em Lisboa , a fim demu
dar a religião do paiz .
Taes foram , pois, os meios de que se serviram para tor
narem D. José e o seu ministro odiosos a toda a Europa , e foi
d'estas fontes que nasceram as obras, que se publicaram refe
rindo a historia l'estes acontecimentos. Todavia estas obras
jazem presentemente em tão profundo e imperturbavel lethar
go como os seus authores .

Nem as intrigas, nem as ameaças espirituaes dos jesuitas,


causaram o menor abalo a D. José ou ao seu ministro, nem lhe
fizeram abandonar a posição, que haviam tomado. Lord Kin
noul, n’um officio de 21 de junho de 1760 , expõe habilmente
os sentimentos, que Pombal então nutria :-0 conde d'Oeyras
disse-me que elle proprio escrevera em particular ao enviado
de Portugal na curia romana , para transmittir ao cardeal se
cretario Torregiani, que se Sua Santidade preferisse fazer que
as cousas chegassem á ultima extremidade rompendo com o rei
de Portugal, a unica consequencia , que teria o rompimento, era,
que, quando houvesse de ser enviado a Lisboa algum nuncio ,
este seria recebido n’esta capital com a mesma authoridade, que
em Paris ou em Vienna; que o rei havia de sustentar a auto
ridade da sua corða ; que seriam extinctas todas as usurpações
que a sé apostolica e os seus nuncios fizeram em Portugal; que
não estavamos no seculo XV ; que os limites do poder eccle
siastico e do temporal, assim como as suas respectivas juris
dicções eram bem conhecidos, sendo por isso muito facil esta
belecel-os; e que finalmente em quanto á maneira como se ha
via regular a distribuição dos beneficios ecclesiasticos, já a corte
de Hespanha tinha dado um bom exemplo . Creio que este pas
so tem confundido e admirado a muita gente, que nunca ima
196 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

ginou que havia de ver tomar-se similhante medida em Por


tugal; e ha duvide , que os ministros de D. José o pos
quem
sam fazer sair bem d'esta dissenção com a curia romana. Com
tudo , em quanto a mim , sou de opinião, que, se o conde d'Oey
ras se conservar no poder (do que não duvido, em quanto o
rei e elle viverem ), ha de levar vantagem á curia romana (a
qual, com tanto que o rei permaneça inabalavel, se verá obri
gada a ceder) e ha de abater a authoridade, de que o papa se
arroga em Portugal. E eu disse -lhe que, se assim procedesse ,
alcançaria para a corða nova honra e authoridade, e contribui
ria mui consideravelmente para a felicidade de seus concida
dãos, e para a prosperidade do paiz .»
Pombal não perdeu um só momento na escolha dos meios
com que devia pôr em execução os fins patrioticos, que se
acham expressos na parte final do precitado officio . Em 17 de
fevereiro de 1761 ordenou em um alvará a confiscação de todos
os bens pertencentes aos jesuitas em Portugal, ao mesmo tem
po que se entabolaram negociações com outras cortes da Euro
pa para a extincção da sociedade de Jesus em seus dominios .
Entretanto offerecia ancioso o governo de Hespanha a sua me
diação para restabelecer a concordia entre a corte de Lisboa
e a curia romana . Algumas esperanças se nutriram de que este
offerecimento teria bom resultado, visto que era por occasião
do nascimento do principe da Beira , occasião em que D. José
escreveu a Sua Santidade sobre o acontecido, e em que rece
beu a resposta do estylo. Foram , porém , de repente interrom
pidas as negociações pela desintelligencia , que se suscitou en
tre a Hespanha e Portugal, e que terminou em hostilidades. E ,
alem das causas que já apontámos ,nasceram outrasmais, que
vieram aggravar a divergencia que reinava entre o governo
portuguez e o pontificio .
Devemos recordar-nos que uma das causas de queixa, que
continha a Deducção , que foi mandada apresentar pelo gover
no portuguez a Sua Santidade , versava sobre a demissão vo
luntaria do arcebispo da Bahia e sobre a apresentação do seu
successor, pois que o papa não quiz dar fé ao primeiro ponto
não obstante affirmal-0 D. José de seu proprio facto, e negou
o segundo . Todavia Pombal estava determinado a sustentar a
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 197

authoridade e independencia do seu soberano , e portanto man


dou que o novo arcebispo partisse immediatamente para a sua
diocese, preenchendo ao mesmo tempo a vacatura da cadeira
episcopal de Angola , a que dera logar a transferencia do que
a occupava para o arcebispado da Bahia . Assim , um e outro
prelado se dirigiram ao seu destino , indo porém só revestidos
da authoridade de vigarios geraes até a sua eleição ser confir
mada pelo pontifice.
Foi por este tempo , em 1765, que se deu um caso, que
mais rematadamente revelará a torpeza dos principios, e a in
famia das intrigas dos jesuitas. Quando o galeão hespanhol
« Hermione » foi tomado pela fragata ingleza « Active » na costa
de Portugal, deitaram delle uma caixa de papeis ao mar, que
as vagas fizeram ir parar ao porto de Lagos, no Algarve. Esta
caixa foi logo enviada a Sua Magestade, que a fez abrir na
sua presença. Entre outros officios, que o provincial dos jesui
tas do Perú mandava ao geral da ordem , encontrou -se um
masso, cujo sello o proprio rei quebrou . Sem entrar em quaes
quer particularidades, basta dizer que este documento encerra
va os mais importantes, os mais perniciosos , e os mais secre
tos mysterios da sociedade.
Podemos aqui transcrever parte d'um officio de mr. Hay,
escripto no decurso d'este anno, vista a imparcialidade com
que n'elle se refere o estravagante fanatismo, por que os apo
logistas dos jesuitas pretendiam desacreditar as effecientes e
uteis medidas do ministro.
« Os agentes secretos dos jesuitas trabalham por dominar
os animos do povo , persuadindo -o de que o castigo da provi
dencia paira sobre este reino , e , por isso, é possivel sobrevir
lhe alguma tremenda calamidade . Que os soffrimentos do Sal
vador foram pela redempção da humanidade, da mesma sorte
que os actuaes soffrimentos dos jesuitas são para que Portugal
se emende dos seus erros presentes, e que não se salvará , se a
elles (jesuitas) não recorrer. Estes, e outros absurdos de egual
naturesa , exercem uma consideravel influencia n’um povo igno
rante, cujos preceptores não passam da massa insciente do
clero, mas a que os ministros parecem determinados a obstar
tanto quanto lhes for possivel.»
198 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Todavia , sem embargo da tormenta que em Portugal se


preparava contra os jesuitas, e que depressa tomou proporções
n'outras partes da Europa , e sem embargo tambem da mani
festa necessidade da abolição da sociedade, que pelas suas pre
tenções, intrigas e crimes se tornara notoria e odiosa ; tiveram
os seus filiados a habilidade de alcançar , em 1765 , de Cle
mente XIII a famosa bulla Apostolicum Pascendi Munus, que
confirmava não só a instituição da ordem , mas tambem a va
lidade das bullas e breves, que por decreto do parlamento de
Paris se mandaram queimar publicamente : e, apesar da ex
pressa prohibição de quaesquer correspondencias entre Portu
gal e Roma, descobriram meios de introduzir alguns exempla
res da referida bulla n’aquelle paiz . Esta desacertada tactica
do papa augmentou o material da combustão. A sua politica e
o seu interesse, n'um momento critico como aquelle, em que a
aniquilação da sociedade era certa e inevitavel, exigiam que
elle se encarregasse de dar- lhe complemento , e que por meio
de medidas judiciosas supprimisse sem arruido uma corpora
ção , que não podia sustentar -se mais , e cujo comportamento e
obras foram , além de prejudiciaes á humanidade, hostis á re
ligião, cujo chefe supremo continuava a protegel-a. Tal é, po
rém , a cegueira e a obstinação dos reis e governantes, que
poucos ha que, no momento justo , saibam a maneira como hão
de ceder ás pretenções dos seus vassallos !
Convem talvez saber os juisos, que se formavam dos jesui
tas, e a maneira como, durante tão importante época da sua
historia , o governo austriaco os olhou . Vimos já, n’um dos ca
pitulos precedentes, os meios de que o ministro de Maria The
resa se servio para os privar da educação da mocidade em
seus dominios ; e ninguem haverá que, ainda que penda a fa
vor da referida corporação de religiosos, seja capaz do pôr em
duvida a justiça e utilidade das medidas, que então se toma
ram .
N’um despacho de 2 d'abril de 1758, escreve o enviado
portuguez de Vienna : « O imperador fallou -me a respeito dos
jesuitas do Brazil, e declarou que os seus crimes eram muito
horrendos . »

Em 25 de fevereiro de 1759. «Os jesuitas não fallam em


MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 199

Vienna com a mesma liberdade como em outras partes ( sobre


a conspiração do duque de Aveiro ), porque teem medo d'esta
côrte . »
Em 4 de março de 1759. «Os jesuitas empregaram as
súas diligencias para se dar ao publico uma traducção falsa da
sentença do duque de Aveiro e dos mais conspiradores , na Ga
zeta de Vienna . O arcebispo , conde de Migazzi, mandou cha
mar o editor, e ameaçou -o que o havia de punir , se não publi
casse immediatamente uma versão verdadeira .
Em 18 de março de 1759. « O arcebispo, tendo prohibido
que nos pulpitos e confessionarios da sua diocese se fizesse a
minima allusão aos jesuitas, mandou sair de Vienna um pre
gador que desobedeceu ás suas ordens . O conde de Choteck ,
presidente do banco, contou -meque os jesuitas teem 400,000
lorins no banco de Vienna . »
Em 8 de maio de 1861. « A imperatriz ordenou , que to
das as universidades, que os jesuitas teem até hoje dirigido nos
seus dominios hereditarios, fossem postas nas mesmas condi
ções, em que estava a de Vienna , isto é , com lentes Benedicti
nos, Dominicanos, e Agostinhos. Esta determinação, executa
da na Bohemia e Hungria, tem dado muito grande mortifica
ção á companhia .»
Em 18 de dezembro de 1763. « Uma carta dos estados de
Munich diz que o Eleitor expulsou o seu confessor jesuita, por
se ter mettido nos negocios civis e politicos.)
Em 1 de agosto de 1767. « 0 duque de Modena pediu á
imperatriz para receber quinhentos jesuitas hespanhoes em
seus dominios italianos. Foi- lhe negado.»
Em 30 de maio de 1767. « A imperatriz despediu o seu
confessor jesuita.»
Em 2 de setembro de 1769. « Fugiu de Praga um jesuita
com a filha do conde de Stirum .»
Ainda que apresentados ao leitor d’um modo destacado ,
estes extractos merecem ser aqui insertos, visto que tendem a
provar quão geral era o juiso que se formava do máo porte da
sociedade, e quão indispensavel se tornara a reforma ou a abo
lição d'ella .
Voltemos ao assumpto. O governo papal continuava a ma
200 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

nifestar-se inflexivel relativamente á confirmação da nomeação


do arcebispo da Bahia , e á publicação da mal dictada bulla.
Achando -se os negocios n’este ponto chamou o procurador da
corða , n'uma extensa petição de recurso, a attenção de Sua
Magestade para este recente exemplo da obstinada opposição
da curia romana aos intentos de sua magestade; compendiava
os varios exemplos da má conducta , intrigas e malvadez dos
jesuitas, e concluia com vastos argumentos deduzidos da his
toria ,mostrando que a infallibilidade do papa era um sophis
ma apenas tolerado. E nem tão pouco faltavam na historia de
Portugal previos exemplos comprovativos da resistencia , que
os seus primeiros monarchas oppozeram ousadamente ás pre
tenções e ameaças do governo pontificio . Duas vezes esteve
Portugalno seculo XIII sob um interdicto, tendo o segundo du
rado doze annos ; e o proprio rei D. Affonso, que quiz repri
mir o poder do clero, foi excommungado.
Tendo D. José ponderado as rasões adduzidas n’este docu
mento deu por nulla e incoherente a bulla pontificia, e man
dou que para este fim se lavrasse formalmente um decreto que
seria publicado em todo o reino. O celebre padre Antonio Pereira
fez tambem imprimir a sua famosa these provando que a infalli
bilidade do papa não era, nem nunca foi considerada como ar
tigo de fé catholico. Semelhante asserção , no tempo em que
foi escripta, era tão pasmosa quanto era inopinada; mas hoje
não ha catholico, que ligue alguma importancia ás expressões
do papa, que admitta que a sua authoridade em materias de
fé seja independente da authoridade do concilio geral.
Þ’esta obra deu , ao tempo da sua publicação, mr, Lyttle
ton noticia na sua correspondencia de 27 de julho de 1769
nos termos seguintes : «Acaba de publicar-se um livro , cuja
substancia é uma demonstração theologica do direito, que teem
osmetropolitanos de Portugal para confirmarem e consagra
rem os bispos suffraganeos nomeados pelo rei , e do direito que
teem os bispos de cada provincia para confirmarem e consagra
rem os seus respectivos metropolitanos tambem nomeados por
sua magestade, mesmo no caso de não haver rompimento com
a curia romana .Num paiz onde, antes do actual monarcha , o
poder do clero não tinha limites, e onde as classes inscientes
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 201

do povo ainda conservam todos os seus velhos prejuisos e su


perstições, é isto grande ousadia ; porém , creio que o governo
não tem intenção alguma de fazer nenhumas alterações em
pontos de fé, e que só se limitará aquellas, que precisas forem
para que a corôa se torne tão absoluta nos negocios ecclesias
ticos como nos civis : portanto, quando chegue a realisar algu
ma reconciliação durante o actual governo , estou persuadido
de que será em termos, de que a corte de Roma pouco poderá

vangloriar-se. »
Seria fastidioso entrar em mais minuciosidades relativa
mente aos breves e promulgações, respostas e replicas, que nas
duas cortes se succederam umas a outras com rapidez. A dis
sensão continuava sem embargo das diversas tentativas da cu
ria romana para induzir o monarcha portuguez a ceder parte
dos seus direitos, e sem embargo tambem das diligencias, que
em 1767 fizeram o conde Piccolomini e o cardeal seu irmão ,
por intermedio da senhora de Tarouca , para que o ministro
portuguez em Vienna se empenhasse em conseguir uma recon
ciliação , recusando-se este a enviar communicação alguma
n'este sentido ao seu governo , quando a elle lha não entregas
sem por escripto. Parece que o cardeal Torregiani era quem
obstava a qualquer accommodação das partes.
O publico começava já a falar da separação ; e quanto mais
se fala n’um assumpto, por atterrador e repulsivo que seja em
principio , mais depressa nos familiarisamos com as suas cir
cumstancias, e perde a supposta importancia e imaginario hor
ror, em que era tido ; e, d’este modo , os portuguezes olhavam
com indifferença para um acto , de que viam ir-se approximan
do cada dia a realisação , porque era inevitavel e portanto in
deploravel. O clero depressa partilhou este sentimento, e o ar
cebispo d'Evora não hesitou em dar o exemplo na concessão
de dispensas de casamentos sem a intervenção da curia de Ro
ma. A primeira , que concedeu, foi em 1767 ao conde de Vi
meiro para poder casar com sua prima D. Theresa de Mello .
Todos os mais bispos lhe seguiram o exemplo , e o governo
passou ao mesmo tempo a preencher os varios beneficios vagos
desde 1760 .

Mr. Lyttleton , alludindo posteriormente a esta notavel in


202 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

novação sobre as prerogativas exigidas pelo pontifice , assim


se expressa : « O assentimento do cardeal patriarcha na con
cessão das dispensas é um meio de se salvarem grandes cabe
daes, que era costumemandarem -se para Roma, onde taes gra
ças se obtinham pormeio de pessoas qualificadas. Foi-memesmo
dito que elle o faz sem vistas nenhumas pecuniarias, para com
os contrahentes, prescrevendo-lhes em seu logar o cumprimen
to de leves penitencias. D. Diogo, filho do marquez deMarial
va, está para casar com a filha do duque de Cadaval, e em
vez de pagar trezentas ou quatrocentas moedas em Roma pela
dispensa, foi-lhe prescripto pelo cerdeal patriarcha, que assis
tiria durante dois dias ao enfermeiro do hospital real d'esta
cidade. >
A determinada opposição á usurpação do papa tornou -se
quasi geral então. Não só o soberano de Portugal, mas a maior
parte dos soberanos catholicos, em 1767, supprimiram nos
seus estados a famosa bulla In Coenâ Domini ; e no anno se
guinte ordenou -se que fossem entregues ao governo todos os
exemplares, que se achassem em Portugal sob pena de crime
de lesa-magestade.
Esta bulla, que emanou de Pio V , costumava ler -se com
grande ceremonia em cada quinta feira santa . Não só excom
mungava todas as pessoas, que ousassem propor algum conci
lio futuro, ou ellas fossem seculares, ou ecclesiasticas, ou de
qualquer outra cathegoria ;mas prohibia aos reis ou seus pro
curadores, aos parlamentos ou tribunaes superiores, que obri
gassem o clero a pagar tributo, de qualquer naturesa que fos
se, ao estado : e do mesmo modo se achavam comprehendidos
na mesma pena nesta immensa bulla , juntamente com todo e
qualquer transgressor, todos os parlamentos e funccionarios de
qualquer cathegoria, que de qualquer modo se opposessem á
disciplina do concilio de Trento.
A indignação geral foi novamente excitada por um breve
fulminado em janeiro de 1768 contra o duque de Parma, por
causa dos editos, que promulgara regulando a disciplina eccle
siastica. Alguns monarchas, feridos pelas expressões injuriosas
em que abundava , declararam -no por obrepticio , sedicioso , do
loso, perturbativo da paz, e socego publico, e offensivo da li
Terfeito fac-simile da
Pestre
poota a participação of
XIV,a que se refere a
proprio poruho do Marque

O Breuer dado umearuneiona a

fawykinima nout bugie de conclave


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Jevoto, comece Elevadohica , Crndoala

Deiva de San Pekeri hume Farbpintel

Concorains, parnej
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hu

for Bestem cfithso nija


ka

Papa Clement

Byeriberta

I groga dedel .
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 203

berdade dos thronos. E em consequencia do insulto feito pela


curia romana ao duque de Parma, o rei de Napoles , de accor
do com os membros da familia compacta , fez marchar as suas
tropas para a fronteira pontificia .
Logo ao mesmo tempo Pombal, por ordem de D. José, pu
blicou dois alvarás : um , a 2 de abril de 1768, supprimindo
a bulla In Coenâ Domini; e o outro, a 30 do mesmo mez ,de
clarando o breve de excommunhão contra o duque de Parma
a incompativel com o apostolico espirito do santissimo padre
Clemente XIII, e diametralmente opposto ás suas paternaes, e
pias intenções, e á sua santissima vontade.»
E indubitavel que o exemplo dado por Pombal contribuiu
naturalmente para inflammar as esperanças , ou excitar a in
disposição, que então se espalhou por todas as cortes catholicas
da Europa occidental contra a ordem geralmente proscripta :
por quanto, as cortes de Madrid, Versailles, Napoles e Parma
já se haviam dirigido ás de Vienna e Turim pedindo -lhes que
solicitassem do papa a dissolução da ordem dos jesuitas. Pom
bal disse ao ministro inglez que era inutil recorrerem á de
Vienna , porque, ainda que a imperatriz era princeza magna
nima e possuia optimas intenções, havia ali uma cabala de
mulheres com grande influencia , as quaes eram governadas
pelos jesuitas.
Entretanto, quando todas as cousasmarchavam d'este mo
do para um rompimento universal com a curia de Roma, n'um

momento bem critico para a unidade e integridade da egreja


catholica, falleceu , em 2 de fevereiro de 1769, Clemente XIII,
que teve por meritissimo successor, no primeiro de maio se
guinte, o celebre Ganganelli, que tomou o nome de Clemen
te XIV .

Por morte de Clemente XIII, o collegio sacro participou


immediatamente ao rei de Portugal o importante acontecimento
que acabava de ter logar, e a resposta de sua magestade fez
conceber toda a esperança de effectuar-se uma reconciliação
deniro em pouco entre as duas côrtes. O novo papa era ho
mem muito atilado, e dotado de mais sagacidade politica do
que o seu antecessor. Estava ancioso particularmente por evi
tar qualquer schisma na egreja , e pormitigar os males, que nas
204 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

ceram de passadas dissensões, conhecendo perfeitamente quan


to o schisma se torna destructivo para a unidade e perfeição
da egreja christã .
Depois d'algumas negociações poude Almada voltar a Ro
ma como ministro de Portugal ; e a 18 d'agosto teve uma lon
ga entrevista com Sua Santidade, que terminou do modo mais
satisfatorio, prova de que o rompimento fora motivado pela
obstinação do ultimo papa , e não por quaesquer pretenções
injustas por parte de D. José. Clemente, para patentear o ar
dor, com que desejava a paz e harmonia , logo depois da sua
eleição escrevera a Pombal instando -o a que tratasse de uma
reconciliação, e recordando- lhe os primeiros serviços que pres
tára á egreja, quando esteve em Vienna . Ao mesmo tempo fo
ram novamente collocadas as armas de Roma e de Portugal
sobre a porta da casa de Almada com as ceremonias do esty
lo , e, para que nenhuma honra possivel se omittisse n’aquella
occasião de jubilo , houve illuminação por tres noutes.
Clemente não parou aqui. Havia muito que via a necessi
dade da abolição da ordem jesuitica, e portanto , em 21 de ju
lho de 1773 , publicou para esse fim , com geral satisfação da
christandade, a sua famosa bulla « Dominus ac redemptor nos
ter Jesus Christus,» que , logo que chegou a Lisboa , foi con
firmada por D. José em 19 de setembro do referido anno ; e o
patriarcha celebrou um solemne Te Deum na sé patriarchal a
que o rei assistiu com toda a côte. O mesmo se praticou na
egreja do nuncio , ao Loreto , nas mais egrejas de Lisboa , e
em todo o reino, e houve festejos e illuminação por tres dias.
Pouco depois que se effectuára a reconciliação entre as
duas cortes, Conti, arcebispo de Tyro , foi enviado a Lisboa na
qualidade de nuncio, onde foi recebido muito distinctamente .
Clemente , quando soube da recepção que se fizera ao seu en
viado, de modo tal exultou de prazer, que publicamentemani
festou o mais illimitado jubilo, prodigalisando osmaiores louvo
res ao seu « amado filho em Christo, D. José.» Pouco depois ele
vou ao cardinalado o arcebispo de Evora. A mesma honra foi
tambem conferida a um dos irmãos de Pombal; porém , antes
de chegar a Lisboa o breve nesse sentido , cessara de existir o
novo cardeal.
***
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 205

A nunciatura , pouco depois que o nuncio chegara a Lis


boa , abriu -se novamente, e o papa recebendo tal noticia tor
nou a manifestar publicamente o seu jubilo , e não se esque
ceu tão pouco de pagar um justo tributo de gratidão a Pombal
pela parte que tomou em concordar com as vistas da curia
romana , uma vez que deixaram de ser incompativeis com a
honra, dignidade, e independencia do seu paiz . « Devemos,»
diz o pontifice, «ao nosso querido filho o nobre conde d'Oey
ras, secretario d'estado de S. M. F., que, entre outras virtudes,
tão conspicuamente mostrou por esta occasião o seu affecto á
santa Sé, e o seu zelo e a sua fidelidade ao seu soberano, etc.
Para prova ainda maior da estima particular e alta consi
deração e respeito em que tinha o caracter de Pombal, man
dou -lhe um annel com o seu retrato , e este n'uma curiosa mi
niatura feita a oleo , e duas pequenas esculpturas de prata .
Porém o que para Pombal se tornou mui lisonjeiro aos
olhos de todos os bons catholicos foi a dadiva de quatro cor
pos inteiros de santos, dos quaes tres, Santa Leonor, Santa
Victoria e S. Burcio , o actual herdeiro de Pombal conserva
cuidadosamente na capella do seu palacio em Oeyras. O quarto,
Santa Prima está na casa de Redinha .
A 17 de setembro de 1770, Pombal, até então conde
d'Oeyras, foi agraciado com o titulo de marquez em paga de
seus numerosos e importantes serviços ; e seu filho primogenito
tomou o titulo que seu pai deixára .
As correspondencias do ministro inglez durante este tempo
referem algumas occurrencias, que elle proprio testemunhou .
N’uma diz elle que teve logar um auto de fé que consistiu , não
n’uma fogueira de judeus ou herejes,mas simplesmente na cor
recção publica de criminosos condemnados pela inquisição, cu
ja jurisdicção , como já observei, não excedia a de um tribunal
ordinario .
«Novembro de 1765. Houve um auto de fé nos claustros

do convento de S. Domingos, a que os enviados estrangeiros


foram convidados para ouvirem os delitos e sentenças dos de
linquentes, que, em numero de trinta homens e sete mulheres,
foram levados em procissão da inquisição para o convento de
S. Domingos. Os crimes principaes eram de bigamia, despreso
206 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

do tribunal da inquisição , superstição , delitos fanaticos e sedi


ciosos. Não houve nenhum >>
crime de pena capital.

Entre as poucas particularidades que se sabem da vida


de Pombal, devemos a estas correspondencias algumas breves
informações da sua repetida doença. Na mesma data, a que
acabamos de alludir , escreve mr. Hay : « O conde teve um vio
lento ataque , em que perdeu a fala por algumas horas. D'aqui
lhe resultou uma grave febre de que esperam cural-o , não
obstante, segundo julgo, dever esta doença ser perigosa n’um
homem d'uma idade avançada de setenta annos.» A 16 de de
zembro do mesmo anno achava-se Pombal em progressivo res
tabelecimento .
N’uma das conferencias que teve com mr. Lyttleton disse
Pombal que os jesuitas tinham formado um plano de dominio
mais absoluto e universal do que jamais Mahomet concebeu .
O irmão de Pombal, seu adjunto nos negocios do reino ,
falleceu em 15 de novembro de 1769, sendo este logar preen
chido por Martinho de Mello, ministro então na corte d’Ingla
terra . O irmão , que lhe restava , falleceu d'uma hydropisia no
peito em 18 de janeiro seguinte, pouco antes de chegar de Ro
ma o barrete de cardeal que lhe estava destinado.
Já vimos o jubilo com que o papa recebeu a noticia da che
gada do nuncio a Lisboa, e da lisonjeira recepção que encon
trou , mas o que não dissemos foi que por essa occasião obser
vou Pombal ao ministro inglez , « que, ainda que estava resol
vido a admittir o leão (o nuncio ), era com as unhas cortadas
e os dentes arrancados. Felizmente o enviado de Roma era
de uma disposição pacifica e affavel, e com poucas apparencias
de dar motivo de aggravo ao governo portuguez .
«Um dos pontos essenciaes de negociação entre esta corte
e a de Roma,» diz mr. Lyttleton , « é uma definitiva reforma
sentimento do papa na imposir que aqui ha ; e outro é o as
na imposição dos tributos ao clero na mes
ma proporção dos do povo, e a reducção do grande numero
de dias sanctificados, que actualmente se guardam em Portugal
e seus dominios. »
O arcebispo d'Evora, que desempenhou um papel tão im
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 207

portante nos embaraços suscitados nos negocios ecclesiasticos,


era membro da familia dos Tavoras, e por isso trocou o appel
lido pelo de Cunha para satisfazer á lei, que
todos os vestigios d'aquella familia. Mostrou -se até final amigo
firme de Pombal; e, conforme já disse , foi agraciado com o
barrete de cardeal, de que mr. Lambertini foi o portador.
A famosa bulla In Coena Domini, cuja suppressão já vi
mos ter logar nos estados de tantos soberanos da Europa , ain
da que não foi definitivamente extincta pelo novo papa , deixou
comtudo de publicar-se nos estados pontificios. O imperador
José mandou que fosse destruida ou riscada em todos o rituaes
em seus dominios.
CAPITULO XVIII

Estabelecimento do Collegio dos Nobres. Methodo que deve observar-se no estu


do das linguas vivas. Prohibição de fallar Latim . Animam -se as invenções.
Lei curiosa relativa ás viuvas. São declarados livres os escravos, que chega
rem a Portugal. Leis sumptuarias. Regulações e reformas militares . Introduc
ção de manufacturas. Decretos favorecendo o commercio . Estado florecente
da marinha. Projecta-se uma conspiração . São punidas muitas pessoas. Regu
lações relativasao negocio de retalho. Estabelecimento da Real Meza Censoria .
Impressão Regia. Leis para restringir os legados ás egrejas. Tribunaes refor
mados . Doença grave de Pombal. Înverno rigoroso e extraordinaria tempesta
de de granito em Gibraltar. Abre-se o Collegio dos Nobres. Prisão do Conde
d'Ega . Os Puritanos. Anecdota do Duque de Lafões. Auto de Fé. Politica de
Pombal. São restituidos os bens possuidos illegalmente. Occurrencias na fami
lia de Pombal. Observações sobre a educação feitas por Pombal.

Voltemos agora a attenção para os negocios interiores do


reino, e examinemos algumas d'aquellas instituições fundadas
ou reorganisadas por Pombal. Uma das mais importantes foi
a fundação do collegio dos Nobres para melhor educação da
nobresa . As leis e estatutos concernentes a este estabelecimen
to foram inteiramente feitos por Pombal: tal era a vastidão do
seu genio , que não havia mal, que flagellasse e deprimisse o
seu paiz, que elle não podesse perceber e que não remediasse .
Como ainda se observava o antigo costume de se falar em la
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 209

tim , com grande prejuizo do bom gosto e da bộa latinidade,


ordenou que os estudantes d’ali em diante fallassem em qual
quer dos idiomas portuguez, francez, italiano ou inglez, e nun
ca em latim ; pois , observa elle muito acertadamente , o uso
familiar d'esta lingua morta tendemais para os ensinar a bar
barisar » do que a facilitar o seu conhecimento .
Relativamente aos idiomas vivos fôra estabelecido que ( as
lições seriam pela maior parte de viva voz , sem que os profes
sores carregassem os discipulos com multidão de preceitos des
necessarios em linguas que são vivas, e que se aprendem muito
mais facilmente , e melhor , lendo, e conferindo , e exercitando
em repetidas praticas, devendo os livros para estas applicações
ser sempre correctos , uteis, e agradaveis.» Quão longe estamos
de seguir tão valiosos preceitos, devendo os pais sentil-o mui
tas vezes, quando , depois de seus filhos estudarem ostensiva
mente o francez, durante annos n'um collegio inglez. saem
d'elle ignorando tanto os seus principios, e tão incapazes de o
falar, como se nunca tivessem aberto uma grammatica france
za . Mas isto ainda não é tudo, porque o facto é, que mui
tos em Inglaterra entram para um collegio falando o francez
com desembaraço, e, sem embargo de elle lhes ser ensina
do por um francez , voltam todos os seis mezes sabendo cada
vez menos d'aquella lingua, e acabam finalmente por esque
cel-a de todo. E donde nasce isto senão do deficiente systema
d'ensino na maior parte das casas d'instrucção ?
N'este mesmo anno foi concedida aos estrangeiros licença
para introduzirem invenções novas e obras de reconhecida uti
lidade em Portugal: esperando Pombal que as artes haviam
de se aperfeiçoar por meio do progresso das outras nações, e
procurando ao mesmo tempo admittir artistas estrangeiros nos
trabalhos do paiz.
Foi por este tempo que se promulgou um alvará muito cu
rioso . Havia um costume de fecharem as senhoras nobres as

janellas de suas habitações por occasião da morte de seus ma


ridos, e encerrarem -se ao canto de quartos escuros, muitas
vezes por um anno inteiro, dormindo no chão, e não receben
do visitas algumas. De um modo tão absurdo em usar o nojo
quando enviuvavam , nasciam muitas vezes graves doenças, que
VOLUMBI 15
210 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tinham um termo fatal. Portanto foi ordenado pelo referido al


vará que « as viuvas não fossem encerradas em camaras escu
ras, e privadas do uso decente dos seus leitos , ou reclusas ain
da em todas as casas das suas respectivas habitações por tanto
tempo como se praticava : e que logo no dia do fallecimento de
seus maridos, se retirassem para qualquer casa da corte , ou do
campo, tendo para isso commodidade : e que no caso de a não
terem , e de ficarem por isso nas mesmas casas da sua residen
cia , se não podessem n’ellas fechar as janellas, nem estender
se o nôjo a mais de oito dias; nem o encerro em casa a mais
de um mez ; nem se podessem servir de luzes, e camas aos
cantos das casas, ou no chão.»
Este singular decreto e a sua causa hão de provavelmente
excitar alguma admiração nos leitores : todavia offerece -nos um
curioso esclarecimento dos costumes d'aquelles tempos. Não
posso dizer a opposição ou queixas que nasceram d'esta lei sa
lutar: porém custa a crer que as viuvas do seculo passado se
conformassem de melhor grado com a abolição d'aquelle costu
me, e que as da presente geração annuissem ao seu renasci
mento .
Uma das provas mais evidentes e notaveis do genio liberal
e humano de Pombal, foi a lei de 19 de setembro de 1761
que declarava, ipso facto, homens livres todos os escravos que
pisassem o solo de Portugal.
No anno seguinte expediu -se uma lei sumptuaria prohibin
do o uso , nas carruagens, de mais de uma parelha dentro de
uma legua de Lisboa , com pena de multa. E attendendo á ne
cessidade de pôr cobro ao luxo crescente e despesas superfluas
dos militares no exercito , foi-lhes tambem prohibido, entre ou
tras muitas cousas, o uso de baixellas de prata e de louça da
China , e a grande quantidade de pratos cobertos .
Concluida a paz com a Hespanha em 1763, foi o exercito
reduzido e fixado em 30 : 000 homens effectivos; acabou -se com
o antigo modo de pagar á tropa e reformaram -se muitos abu
sos que se tinham introduzido no exercito. N’uma correspon
dencia escripta por aquelle tempo declara mr. Hay, « que a
maior parte dos regimentos d'infanteria estão bem disciplina
dos, e apresentam um bello aspecto. Todas as regulações re
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 211

lativas ao exercito saem do conde d'Oeyras; e a elle prin


cipalmente se dirigem os generaes e officiaes nas differentes
repartições, em que estão .»
Entre outras reformas, que então tiveram logar , uma hou
ve, por necessaria , que foi a prohibição do pernicioso e teme
rario abuso com que grande numero de homens vadios e mal
feitores se serviam dos uniformes militares e armamentos com

que se permittia sahirem das tropas aquelles a quem se dava


baixa . Ésta util medida foi tomada por um ministro portuguez
em 1763 ; sendo por isso curioso que haja ainda bem poucos

annos que ella se tivesse tomado em Inglaterra .


Para manter uma disciplina rigorosa no exercito, e para
effectuar taes reformas, como exigia a naturesa do serviço , era
necessario muito animo e energia. E de certo se não consegui
ria este fim sem a applicação de tão severas como necessarias
penas a diversos officiaes de patentes superiores empregados no
serviço de Portugal. Em outubro de 1765 , o regimento real
de estrangeiros, composto na sua maxima parte de suissos, teve
ordem de abandonar o quartel, que tinha em Abrantes e mar
char para Lisboa. Poucos dias depois de aquichegar foram os

officiaes superiores presos , e o corpo, em numero de 800 ho


mens, foi desarmado. Tiveram ordem de vigiar constantemente
este desgraçado regimento uma guarda de cavallaria com ou
tra de infanteria. O coronel, que tomara o nome de Graneron ,
foi julgado por um conselho de guerra , e fusilado, em janeiro
seguinte, perante dous regimentos. O tenente coronel, Kinloch ,
suisso de sangue escocez, foi expulso do reino ; o major demit
tido por infamia , e o regimento dissolvido.
Os effeitos da excellente direcção do exercito encontram -se
na seguinte correspondencia, em que se vê que tanto Lippe
como Pombal tinham grande confiança na disciplina militar.
« Em 4 de dezembro de 1767. Conversando uma occasião
com o conde d'Oeyras sobre a situação militar d'este paiz, dis
se-me elle que, se se desse o caso de tornar a rebentar a guer
ra com a Hespanha, Portugal apenas pediria á Grã - Bretanha
um pequeno auxilio de tres mil e quinhentos ou quatro mil
homens, e isto para excitar principalmente a emulação na gente
nacional; pois era de parecer que seria quanto se precisava , e
212 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

que o conde de Lippe era da mesma opinião.» (Este militar


estava então em Portugal.)
« Disse mais que commettera um grande erro, pouco depois
da acclamação de D. José, em aconselhar este monarcha a pre
ferir os officiaes portuguezes, então existentes, que já tinham
entrado em campanha , a outros que ainda não entraram , por
quanto, aquelles tendiam muito a pegar-se a velhas noções, ao
passo que a arte da guerra sofria incessantemente grandes al
terações ; e que o rei da Prussia derrotara a casa d'Austria, na
primeira guerra por causa da posse da Selesia , com as tropas
de seu pai, que estavam admiravelmente disciplinadas, mas
que nunca tinham entrado em campanha , em quanto que as
da rainha da Hungria consistiam na maior parte de soldados
antigos : todavia , admitte a final, que, dado o caso de dous
exercitos se acharem em identicas circumstancias de disciplina
e organisação, e que um tenha entrado em campanha e o ou
tro não , aquelle leva vantagem a este.»
As tentativas para a producção de artefactos nacionaes co
meçaram então a vingar , sendo isto o resultado natural do pro

gresso commercial e da prosperidade agricola do paiz. Não


tendo Portugal nada de que a França carecesse para lhe offe
recer em troca das suas manufacturas, foi a importação d'es
tas rigorosamente prohibida . Em 1764 , o celebre Jacome Ra
ton estabeleceu uma grande fabrica de tecidos d'algodão . De
pois abriu a primeira fabrica de chapéos que houve no reino ;
uma outra de papel e uma terceira bem consideravel de fiação
e tecidos d'algodão em Thomar.
Um alvará de 10 de setembro de 1765 deu novo impulso
á marinha mercante, permittindo que os navios saissem de Lis
boa em todo o tempo, que lhes conviesse, para os portos do seu
destino, sem esperarem pelo tempo marcado a que dantes eram
obrigados. Concedeu -se-lhes tambem terem commercio directo
com a Bahia , Rio de Janeiro e todos os mais portos, que não
eram com especialidade exceptuados em favor das companhias
privilegiadas. As leis antigas não só pozeram obstaculos á in
dustria e deprimiram as operações commerciaes,mas animaram
a fraude, e causaram graves perdas aos negociantes . O estado
da marinha de guerra achava-se tambem florescente , e n’um pé
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 213

igualmente respeitavel como o das outras potencias maritimas.


Portugal, n'esta época da sua historia , podia dispor d’uma es
quadra de treze náos e seis fragatas.
No decurso de 1765 deu - se em Lisboa um caso , cujas cir
cumstancias se acham felizmente referidas n'uma carta que
Pombal escreveu a Martinho de Mello , ministro portuguez na
côrte d’Inglaterra. Esta correspondencia , datada de 30 de mar
ço e escripta em francez , é a seguinte :

30 DE MARÇO DE 1763

« Approveito -me da partida do paquete para vos participar


ainda , que os inimigos d'esta , e não menos da corôa da Grã
Bretanha , dão -nos diariamente repetidas provas da urgente
necessidade que existe de obstar antecipadamente a seus am

plos projectos; e de approveitar os dias e as horas para as


inutilisar ; em quanto ainda é tempo de dar algum remedio .
Pois é evidente que ao passo que procuram entreter a Grã
Bretanha por meio de boas palavras, não cessam de avançar
com todo o vigor contra seus reinos e suas colonias ..
Pombal queixa -se então dos preparos de guerra feitos pe
la França e Hespanha na Europa , e depois continua :
«Em quanto vemos todos estes temporaes no exterior ap
proximarem -se visivelmente de nós, nossos visinhos não per
dem occasião d’inquietar-nos no interior. Reinam as maximas
de Philippe II, e reinarão sempre na Hespanha. Acabâmos fe
lizmente de descobrir uma conjuração que não nos levava a
menos do que a uma conspiração , debaixo do pretexto de re
ligião, começada e dirigida pelo Geral da Ordem dos Domini
cos Hespanhoes, de combinação com o Geral dos Jesuitas: am
bos patrocinados e protegidos pela corte de Madrid .
Eis o caso :
«Existe em Lisboa um convento de religiosas da ordem de
S. Domingos, conhecidas debaixo da invocação do Santissimo
Sacramento, governadas immediatamente pelo seu Geral. Em
nome d’estas Religiosas, pois, fez o referidoGeral aqui, por in
termedio tambem d’um frade Dominicano, e por alguns outros
da mesma ordem , conhecidos em Portugal pelo titulo de- Re
244 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

forma da Serra de Montejunto , passar algumas cartas cheias


d'estas maximas: Que nós eramos herejes, impios, e profana
dores do Santissimo Sacramento : que por meio da communi
cação e união intimas, que tinhamos com os mesmos herejes ,
participavamos e adoptavamos suas impiedades; e que para
bem e appoio da Religião era mister vingar o Santissimo Sa
cramento offendido pelos profanadores e pelos impios.
«Os frades Dominicos e seus associados fizeram chegar estas
cartas á mão de todos os bispos e prelados das Ordens Reli
giosas para as indisporem contra os pretendidos hereticos, e
combinaram por ultimo que em a noite de 24 do correntemez
de março, fariam abrir todas as egrejas de Lisboa : que das 8
para as 9 horas da manhã tocar -se-hiam todos os sinos a fim
de congregar o povo, e que então o exhortariam a vingar o
Santissimo Sacramento e a Religião contra os sacrilegos e con
tra os hereticos.

«Os vereadores da Cidade de Lisboa, representantes do po


vo , tendo conhecimento d'esta horrivel conjuração quatro dias
antes de arrebentar, vieram immediatamente, com a fidelidade
de que sempre deram provas em identicas occasiões, dar parte

á Corte; e o provincial Dominicano , que não tomava parte na


obstando a que vissemos na
conspiração, praticou o mesmo,
egreja de S. Domingos uma repetição da tragedia , que em 1506
encheu de horrores a Cidade de Lisboa .

O ministro inglez, mr. Hay , confirma o que fica exposto , e


congratula a nação por ter escapado a outro S. Bartholomeu .
Não devemos, portanto, surprender-nos ao ver que os crimi
nosos processados durante este procelloso reinado foram na
maior parte ecclesiasticos. A pena ultima era rara ; mas a de
prisão , aos vinte e trinta por implicados em conspiração ou ou
tros delictos sediciosos, era ordinaria . Nos paizes, em que os
tribunaes de justiça não são publicos, e as circumstancias dos
processos . se guardam com inviolavel segredo , é sempre im
possivel vindicar os actos particulares d’um ministro : mas de
veriamos ao mesmo tempo abster -nos de condemnal-o. Que se
abram as prisões de Spielberg, e que se deixem sair os seus
miseros habitadores : e acaso não encontrariamos hoje mesmo
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 215

nos mais moderados dos governos absolutos e com os ministros


mais humanos á sua testa , desgraçados que encheriam o mun
do com os promenores da duresa do seu destino , e do despo
tismo de seus juizes ?
Foi preso um jesuita por ter publicamente declarado que
era certo ter um anjo do céo dado os tiros em D. José ; e ao
reitor do collegio da sociedade em Santarem succedeu -lhe o
mesmo por querer queimar os papeis pertencentes ao estabe
lecimento , quando a força militar o cercou : isto contrasta com
o acto de justiça que Pombal praticou, e que é bem sabido em
Portugal, mandando prender um ferreiro por denunciar os je
suitas falsamente. Realmente, era tão difficil escapar á vigilan
cia d'este ministro activo , que levou mr. Hay a dizer, fallando
d'um inglez suspeito que chegara a Lisboa : « vem para muito
má terra para viver de tricas.» O homem estava já no Li
moeiro .
No reinado de D. Manuel fundou - se em Lisboa um excel
lente estabelecimento para remediar as más consequencias da
escacez dos cereaes, conservar um bastecimento regular, repri
mir o monopolio , e impedir os prejuizos introduzidos pelo pro
cedimento dos negociadores sem credito. Porém o resultado
d'esta instituição não coroou as suas intenções, comomereciam ;
e não só ellas estavam frustradas antes do reinado de D. José,
mas o detestavel procedimento dos negociadores de retalho
augmentou o prejuizo ,misturando ingredientes deleterios , con
sistindo pela maior parte em trigos avariados, cevada e outros
grãos inferiores, com a farinha, que vendiam por um preço ex
horbitante ao consumidor. Para destruir um abuso tão doloso
e prejudicial á saude, foi promulgado um alvará em 1768 ,
prohibindo a todos quantos contractassem em cereaes, a venda
de qualquer qualidade de grão farinaceo em seus estabeleci
mentos, e só unica e exclusivamente no mercado publico. Foi
em consequencia d'esta e d'outras disposições similhantes , que
Pombal creou tantos inimigos, que anhelavam por derrubal -o

do poder na primeira opportunidade que se lhes offerecesse .


Outra medida relativamente a liberdade do commercio, um
tanto similhante á precedente,mas fundada em excellentes mo
tivos, foi causa de muitas invectivas contra o ministro , e até a
216 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

apontavam como prova do despotismo do governo. Muitos es


trangeiros, e especialmente os inglezes, possuiam grande parte
no commercio de retalho em Lisboa, dirigindo-o em nome de
portuguezes que a isso se prestavam . Ora, sem embargo de um
alvará de 1759 ter prohibido que ninguem poderia ter duas
lojas, os inglezes, com espirito carecteristico, fizeram -se donos
ou socios occultos de muitas. Para prevenir esta evasão da lei
publicou a Junta do Commercio um edital, mandando que fos
sem fechadas todas as lojas, cujos donos não provassem que
metade dos seus fundos de bona fide lhes pertenciam . Foi d'a
qui que naturalmente nasceu uma das numerosas queixas, a
que alludi n’um dos capitulos antecedentes .
Em1768 foi abolido o Index Expurgatorius, um dos res
tos da superstição clerical ; e fundou -se a Real Mesa Censoria ,
composta de um presidente , sete deputados ordinarios e dez
extraordinarios , a que se conferiu o poder de conceder ou ne
gar a publicação de quaesquer obras scientificas ou instructi
vas, assim nacionaes como estrangeiras.
No mesmo anno foi instituida a Regia Officina Typographi
ca , cuja superintendencia foi commettida a Nicoláo Pagliarini,
typographo romano, expatriado por haver impresso obras con
tra os jesuitas. Antes d’este periodo era tão deploravel o esta
do da typographia , que quasi todas as obras portuguezas eram
1

impressas em paizes estrangeiros.


Outra lei importantissima que então se promulgou , foi a
que prohibiu a essa gente fanatica e imbecil legar todos os
seus bens aos conventos e estabelecimentos religiosos com de

1 É completamente falso o que o author assevera relativamente ao estado


deploravel , em que se achava a arte typographica entre nós, antes do estabele
cimento da regia officina typographica. Com o fim de evitarmos uma longa lista
de obras, que certamente não desacreditam o paiz , bastará citar o 2.0 vol. da
Chronica da Conceição por fr. Pedro de Jesus Maria José, impressa em Lisboa
na officina de Miguel Manescal em 1760, obra que incontestavelmente rivalisa
com tudo quanto haja demelhor saido dos prelos da regia officina nos primeiros
annos depois da sua fundação .
A verdade é que em Portugal desde 1495 , em que apresentamos a magnifica
edição da Vita Christi, traduzida por fr . Bernardo de Alcobaça (4 vol. in folio ),
até hoje apparecem obras em todas as épocasmuito bem , e detestavelmente im
pressas, sendo isto devido a varias causas ; e a varias causas se deve tambem a
publicação de muitas obras portuguezas em pajzes estrangeiros, o que sempre ha
de acontecer, seja qual fôr o grau de primor, que a arte typographica attinja
n'este , e em qualquer paiz .
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 217

trimento de seus parentes . Este costume tornara -se communis


simo causando indescriptivel prejuizo , e promovera um repre
hensivel espirito de litigio .
Vejamos como mr. Lyttleton se expressa sobre este assum
pto : « Publicou -se uma lei n’este paiz prescrevendo varios e no
vos preceitos attinentes ás ultimas vontades testamentarias ; e
encontram -se n’ella clausulas, que obstam os subditos de sua
magestade, ou seja por disposições testamentarias ou por ou
tro qualquer meio ou causa , a que onerem os seus bens com
o pagamento de quaesquer quantias por missas ditas por alma
dos defunctos : mal este que tinha tomado grandes raizes, se
gundo o alvará declara . Ninguem poderá tambem em futuro
edificar mesmo uma capella, senão no caso de n'essa occasião
possuir legitimamente o dinheiro necessario para esse fim ,adver
tindo ainda assim que não o fará sem previa licença regia.
«Promulgou -se tambem outro alvará para emendar a lei, e
restringir as suas consequencias, pelas quaes nenhum paiz na
Europa se tem mostrado tão incansavel como este ; e apesar do
alvará se reduzir a poucas paginas, o conde d'Oeyras, que é o
seu principal autor, espera que coroará tão bem os fins a que
se propõe, como ao codigo de Frederico aconteceu na Prussia ,
ou ao de Christiano V da Dinamarca , considerando -o além d'isso

como um dos principaes ornamentos da sua administração.


A fama d'estes feitos espalhou -se por outros paizes. Um
habitante de Vienna disse que o imperador José elogiava sum
mamente o conde d'Oeyras, e que se mostrava sobre maneira
versado em todos os promenores relativos a Portugal.
Já n'outro capitulo me referi ás graves doenças que Pom
bal soffreu por varias vezes. Em janeiro de 1764 teve uma
paralysia, que causou a D. José serios cuidados, e inquietou
toda a nação. Passados dous annos teve outro ataque tão gra
ve , que foi sacramentado . É impossivel descrever a consterna
ção , que mostrou o rei'e a nação inteira, quando se publicou
esta afflictiva noticia. Talvez em tempo algum a vida d'um ho
mem se tornasse ou tão cara ao seu soberano e ao seu paiz . Fe
lizmente foram ouvidas as preces, que se fizeram pelas suas
melhoras, e um solemne Te Deum em todo o reino se celebrou
em acção de graças pelo seu restabelecimento.
218 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

A descommum severidade da estação n’aquella época foi


talvez uma das causas do excessivo soffrimento e do imminente

perigo de Pombal. Mr. Hay escreve: “Não ha lembrança d'um


inverno mais frio do que o que temos tido agora em Portugal.
A neve começou a cair pelo natal durando perto de seis sema
nas.» £ o general Irwin , que era então governador de Gibral
tar, n'um officio que enviou ao governo britanico datado de 1
de fevereiro de 1766 , faz uma descripção bem medonha dos
effeitos da estação : e, se não fosse vir por via tão authentica ,
faria sem duvida suppor alguma exageração.
« Perto da noute de 30 do proximo passado foi tanto o
granizo , que caiu , e que sacudiu a rocha com tal violencia, que
causou a destruição de muitas pessoas, gado e algumas casas .
Como os canos fossem repentinamente obstruidos, assim como
as plataformas, que limitam a parte mais baixa da cidade ,
acha -se esta quasi submersa, e muita gente afogada em suas
casas, tendo outra escapado com difficuldade pelas janellas mais
altas. Os prejuizos que causou são immensos, além de duas
brechas, que fez na muralha, e receio que terá arruinadomui
tos logistas. Todavia tenho empregado todos os esforços para
que todos trabalhem , e espero desobstruir em breve a ci
dade .

Entre os acontecimentos notaveis , que então tiveram logar,


póde citar-se a abertura do collegio dos nobres no dia de S. Jo
sé, em 19 de março de 1766 , sendo proferido um discurso em
honra d'el-rei. No decurso do anno foi conferida a Pombal a
jurisdicção da villa e territorio d'Oeyras, e foi nomeado alcai
de-mor da cidade de Lamego .
Em dezembro do anno seguinte tendo regressado da India ,
onde estivera oito annos na qualidade de vice-rei o conde
d'Ega, foi immediatamente mandado preso para a fortalesa de
Outão em Setubal. “ O que é singular, escreve mr. Hay, « é
que tendo o conde d'Ega conservado muitos annos intimas re
lações d'amisade com o conde d'Oeyras, e não podendo tão po
deroso protector valer -lhe, o seu procedimento deve ter sido
muito culposo. Este fidalgo foi substituido no logar que occu
pava por D. João de Lancastre, depois conde de Lousan , e es
teve preso até 1769, quando, por intercessão de Pombal, e at
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 219

tendendo el-rei aos serviços que primeiramente prestára , al


cançou a liberdade.

A este tempo produziu certa sensação geral a prisão de


dous ecclesiasticos do patriarchado, os monsenhores Sampayo
e Magalhães, o que deu logar a muitos commentos por parte
dos Jesuitas. Provou -se que estes, com outros muitos, incorre
ram na culpa de manterem correspondencia illicita com a or
dem proscripta, e foram por isso condemnados a algum tem
po, pouco , de prisão .
À nobresa de Portugal era muito diminuta, e com especia
lidade a de sangue puro , mas, apesar d'isso , distinguira-se en
tre ella uma certa classe exclusiva de seis ou sete casas conhe

cidas pelo nome de puritanos, que não queriam alliar-se com


as outras. Para destruir este prejuizo, por sua naturesa absur
do e fundado em falso orgulho , o rei, usando da prerogativa ,
que então gosava, negou a concessão de taes allianças, e man
dou que os cabeças de familia ditos puritanos casassem seus
filhos com os da mais nobresa. Nos fins do seculo passado só
havia cincoenta e tres casas, incluindo as dos barões, que cons
tituiam a jerarchia mais elevada da fidalguia .
Mr. Hay, n’um despacho de 1767, põe -nos ao facto d’um
caso curioso ,mas tragico , que Pombal lhe referiu . «Contou -me
uma anecdota relativa ao ultimo duque de Lafões, dizendo-me
que fóra sem duvida envenenado ; por quanto, tendo conserva
do muitos annos relações d'amisade com a familia dos Tavoras,
a marqueza de Tavora lhe propozera o projecto do regicidio,
a que o duque não quiz annuir , porque era homem , a quem
a sua illibada honra levaria a descobrir o trama. Esta recusa ,
porém , desorientou a marqueza , que, para evitar que elle re
velasse o sigillo impellido pelo remorso ou por outro motivo ,
sendo , como era , affecto á familia real, o envenenou ; mas o
veneno em vez de produzir o seu rapido effeito com a morte
subita, atacou -lhe o cerebro privando -o da rasão, do que veio
a morrer pouco depois.)
Este duque e seu irmão , D. João de Bragança, eram filhos
de D. Miguel, filho natural de D. Pedro II ; e sua affinidade
não era ignorada por D. José, que os tinha em grande estima,
bem como toda a nação. D. João de Bragança era almirante da
220 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

marinha portugueza , e militou muitos annos ao serviço aus


triaco .
No mesmo anno, a que nos referimos, teve logar em Lisboa
um d'aquelles sacrificios feitos á justiça , chamados autos da fé ;
mas estes espectaculos pela brandura e humanidade de Pom

bal, já não eram ensanguentados. Refere-o assim mr. Hay :


« No domingo celebrou -se aqui um auto da fé, em que onze
homens e tres mulheres foram processados. Nem um foi con
demnado a pena ultima , e em muitos d'elles provaram -se de
lictos, pelos quaes lhes teriam sido applicadas maiores penas ,
se fossem julgados pelos tribunaes civis. Desde que Sua Ma
gestade Fidelissima subiu ao throno , cessou o uso das fo
gueiras para os herejes.»
Em todo o tempo d'esta longa administração maravilham
t nos a tactica e ingenuidade com que Pombal combatia os pre
juizos d'aquelle seculo e d'aquelle paiz, ou os aproveitava para
sustentar a sua autoridade. Ao passo que não fazia senão as
reformas, que julgava necessarias, para a prosperidade do seu
paiz, não abolia uso algum de que resultassem effeitos benefi
cos, por pouco coherente que fosse com a rasão na sua theo
ria. Por este lado foi o mais eminente, o maior legislador con
servativo, que conheceu , que a difficuldade do progresso não
está em resolver o que deve estabelecer -se, mas em escolher o
que deve destruir -se. Tudo quanto constitue qualquer institui
ção deve ser modificado por meio de variadas circumstancias,
que dependem tanto da naturesa do paiz e da disposição e pre
juizos do povo , que é custoso introduzir uma reforma ou cor
rigir um abuso n'um governo estabelecido sem damnificar todo
o edificio .
Este principio da não - intervenção é, ao que parece, o que
se adopta nos vastos dominios do imperador d'Austria ; mas
todos aquelles que tem occasião de formar o seu juizo , sabem
quanto o illustre estadista , que dirige os negocios d'aquelle im
perio , tem , ha muitos annos, modificado gradualmente a seve
ridade das leis, e feito melhorar e consolidar as instituições in
coherentes e antiquadas do seu paiz . N’um estado visinho, o
rei da Prussia , pela naturesa das circumstancias, tem podido
mais francamente adiantar as instituições liberaes do seu rei
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 221

no, e preparal-o para a diffusão d'aquellas opiniões, e para a


posse d'aquelles direitos, que no seculo seguinte serão prova
velmente reclamados É na historia da nossa
por toda a Europa.
experiencia que os ensaios modernos para a introducção de
systemas de governo popular tem particularmente sido até hoje
infelizes ; e seria um tanto proveitoso investigar as causas de
tantas decepções.
Por causa das muitas expropriações que no reinado ante
cedente, se fizeram , foi creada em 1769 uma junta para exa
minar estes abusos ; e a todas as pessoas, que disfructavam
bens da coroa, qualquer que fosse o tempo de quando datasse
o seu uso fructo, foi -lhes ordenado que fossem confirmal-os
perante esta junta .
Em junho de 1769, D. Antonio de Saldanha d’Oliveira,
depois conde de Rio Maior, desposou a filha mais nova de Pom
bal, D. Maria Amalia de Carvalho .
D. Isabel Juliana de Sousa Coutinho fôra contractada em
casamento, em 1768, segundo o costume do paiz, com o filho
segundo de Pombal. Porém , quando se approximou o tempo ,
em 1772, da celebração das nupcias, expressou ella tal repu
gnancia pelo matrimonio , que julgaram prudente deixal-a re
tirar-se a um convento até saber-se a determinação de seu pai,
que estava então embaixador em Paris. É com summa satisfa
ção que podemos contradizer as muitas infundadas historias
que a este respeito circulavam , algumas das quaes seriam na
verdade objecto de divertimento para os leitores. N’uma cor
respondencia de mr. Walpole se encontra a explicação da rea
lidade do caso. Logo em seguida á recusa da noiva, e a sua
reclusão no convento ,mandou Pombal um mensageiro a Pa
ris para informar o pai d'ella sobre o occorrido , e passados
dois mezes, a 16 de julho de 1772 , foi o casamento decla
rado de nenhum effeito, ficando os noivos desligados dos seus
votos .
E singular que este filho de Pombal, conde de Redinha ,
desposasse depois uma sobrinha do marquez de Tavora, sen
do d’este consorcio , realisado em 24 de setembro de 1776 ,
que descende o actual marquez de Pombal.
Em 3 de setembro de 1769 deu -se um facto que ia cau
222 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

sando um serio abalo em todo o reino : foi um attentado in


fructuoso de regicidio .
N’um domingo , em que el-rei em Villa Viçosa, com a sua
numerosa comitiva, saia do palacio para uma caçada, tendo
atravessado o pateo do palacio , e quando transpunha a cha
mada porta do nó , foi inopinada e furiosamente aggredido por
um malvado armado de um pesado pau . A cabeça foi o alvo
da pancada, mas o rei com admiravel prestesa e presença de
espirito aparou -a no braço ; e o homem alçando logo o pau ,
deu uma segunda no cavallo . A este tempo ja a comitiva tinha
passado a tal porta , acercando nomesmo instante o assassino ,
que não cessava de defender-se com desusada coragem e reso
lução , dando com o pau por todos os lados, de que resultou
ficar o conde do Prado grandemente maltratado . Comtudo foi
a final vencido e preso, proseguindo o rei na sua projectada
caçada.
Este aggressor, natural da villa de Fundão, era vulgarmen
te conhecido pela alcunha de Migas Frias. O que é extraordi
nario é que este attentado contra a vida do monarcha se desse
no anniversario do da conspiração do duque d'Aveiro , e que
tanto um como outro fossem perpetrados no dia de S. Francis
+ * co Xavier, um jesuita tão celebre.
Pelo mesmo tempo ( em dezembro) esteve a vida do rei
outra vez em imminente perigo pelo insolito procedimento d'um
individuo , cujos actos foram attribuidos ao que em portuguez
se chama loucura parcial. Mr. Lyttleton descreve os promeno
res d'este facto da maneira seguinte :
« Pelas 10 horas da mesma noute em que estive com o
conde d'Oeyras, saindo el-rei do theatro e dispondo- se a en
trar na carruagem para d’ali se dirigir ao paço d'Ajuda, apre
sentou -se um homem em trajos communs, de espada á cinta ,
dizendo aos criados de Sua Magestade, que precisava falar ao
mesmo senhor , porque tinha cousas a dizer -lhe da parte de
Deus. Os criados não lhe consentiram approximar-se da car
ruagem , mas transmittiram o que ouviram , pelo que lhes foi
ordenado que procurassem o homem , a quem encontraram no
mesmo ou perto do mesmo logar, em que o viram , e o mandas
sem ir ao paco, onde, tendo ido, o recebeu o marquez de Ma
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 223

rialva , estribeiro mór de sua magestade, e lhe perguntou o que


pretendia , respondendo a isto o homem que tinha uma petição
a fazer a sua magestade. O marquez disse -lhe que elle proprio
a levaria perante sua magestade, e que por isso lha declaras
se, mas o homem replicou que queria falar pessoalmente a el
rei. Foi portanto preso immediatamente e remettido debaixo de
escolta ao conde d'Oeyras, para ser mais minuciosamente in
querido, cousa d'uma hora depois que o deixei.»
Farei finalmente mais uma d'essas narrativas dos perigos
que ameaçavam o paiz com a perda de seusgovernantes, feita
por sir John Hort, consul geral d'Inglaterra em Lisboa, n'um
despacho de 11 de setembro de 1771.
Sexta feira pelo meio dia foi commettido um attentado ,
de igual audacia e loucura (ao que se fez contra o rei ), contra
Pombal á entrada do paço, no meio de tres companhias de tro
ра de infanteria e de cavallaria . Um homem ordinario , descal
ço, atirou uma pedra ao ministro quando este passava na sua
sege , e, como errasse a pontaria , atirou outra . Felizmente ne
nhuma d'ellas acertou , mas foram arremessadas com tal força,
que uma, segundo dizem , quebrou um dos pilares que susten
tam o tecto da carruagem . O malvado foi no mesmo instante
preso , mas negou -se obstinadamente e com sangue frio a fazer
revelação alguma sobre a causa ou cumplicidade do crime.Ou
tros actos recentemente por elle praticados, que não sei se se
rão verdadeiros, levam algumas pessoas a julgal-o doudo.»
O homem esteve em risco de ser sacrificado á indignação
popular, se Pombal, com a sua habitual animosidade e presen
ça de espirito, não se apressasse a valer - lhe.
Parece-me que melhor não poderia concluir este capitulo
do que expondo alguns dos sentimentos de Pombal sobre a
educação moral do povo, sobretudo tendo já alludido aos meios
de que se serviu para melhorar o systema de ensino que então
estava em uso . Encontram -se elles no alvará de 30 de setem
bro de 1770 , que o rei promulgou , e que diz assim :
«Sendo a correcção das linguas Nacionaes um dos objectos
mais attendiveis para a cultura dos Povos civilisados, por de
penderem d'ella a claresa, a energia , e a magestade, com que
devem estabelecer as Leis, persuadir a verdade da Religião,
224 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

e fazer uteis , e agradaveis os Escritos :Sendo pelo contrario a


barbaridade das linguas o que manifesta a ignorancia das Na
ções ; e não havendo meio , que mais possa contribuir para po
lir , e aperfeiçoar qualquer Idioma, e desterrar d'elle esta rude
za , do que a applicação da Mocidade ao estudo da grammati
ca da sua propria lingua ; porque sabendo - a por principios, e
não por mero instincto , e habito, se costuma a fallar, e escre
ver com pureza , evitando aquelles erros, que tanto desfiguram
a nobreza dos pensamentos ; e vem a adquirir -se com maior
facilidade, e sem perda de tempo a perfeita intelligencia de ou
tras differentes linguas ; pois que tendo todas principios com
muns, acharão n'ellas os principiantes menos que estudar to
dos os rudimentos, que levarem sabidos na Materna ; de sorte
que o referido methodo e espirito de educação foi capaz de ele
var as linguas Grega, e Romana ao grao de gosto , e perfeição ,
em que se viram nos formosos Seculos de Athenas, e Roma, o
que bem testemunham as excellentes, e inimitaveis Obras, que
d'elles ainda nos restam : Conformando-me Eu com o exemplo
d'estas e de outras Nações illuminadas , e desejando , quanto em
mim é, adiantar a cultura da lingua Portugueza n'estes meus
Reinos , e Dominios, para que n'elles possa haver Vassallos
uteis ao Estado : Sou servido ordenar que os mestres da lingua
Latina , quando receberem nas suas classes os discipulos para
lha ensinarem , os instruam previamente por tempo de seis me
zes, se tantos forem necessarios para a instrucção dos alum
nos, na Grammatica Portugueza, composta por Antonio José
a
dos Reis Lobato , e por mim approvad para o uso das ditas
classes, pelo methodo, clareza , e boa ordem , com que é perfei
ta . E por quanto me constou , que nas Escolas de ler, e escre
ver se praticava até agora a lição de processos litigiosos , e
sentenças, que somente servem de consumir o tempo, e de
costumar a mocidade ao orgulho, e enleios do Foro : Hei por
bem abolir para sempre um abuso tão prejudicial.»
JAPITULO XIX

Influencia da superstição. Nova seita dirigida pelo Bispo de Coimbra. Suas opi
niões. Piedade de Pombal. Livros prohibidos pelo Bispo. É deposto de sua Sé,
e lançado n'uma prisão. Representação do Tartufo, em Lisboa. Seabra. Estado
do Ministerio em 1772. Resultados das medidas de Pombal. Despacho de mr.
Walpole . Morte de Clemente XIV . Opiniões ousadas e livres de Pombal. Con
cessão unica na historia da Egreja feita por Clemente XIV . Eleição do novo
Papa. Appendice . Extracto de um despacho.

Jamais deixou de observar -se em todos os estados chris- ;


tãos, que a liberdade declina na mesma proporção em que a
influencia do clero augmenta , quando este é mal instruido e
por consequencia supersticioso e servil. Todavia , apesar de ser
grande o seu poder, e até certo tempo irresistivel, não é por
isso insuperavel; e a prova a temos já, porque, sem embargo
da tremenda preponderancia que os jesuitas conseguiram ter
sobre os espiritos do povo em Portugal, a sua influencia foi
destruida, a sua ordem aniquilada , e os seus vastos bens con
fiscados, só pela energia , politica e genio d’um grande homem .
Tal é a influencia da virtude sobre o seu simulacro, a hypo
crisia .

Aquelle que lastima que a mascara da hypocrisia fosse ar


rancada aos jesuitas, vive realmente n’um erro .
VOLUME I 16
226 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

A religião lança melhor as suas raizes no espirito , é as


suas maximas implantam -se mais facilmente, quando os que
a ensinam exemplificam os seus preceitos com a santidade d'u
ma vida honesta e virtuosa. Porem a hypocrisia

O unico mal que a todos é


Invisivel, menos aos olhos de Deus ,

é um vicio que , descoberto, (e quão difficil é descobril-o!) des


acredita e destroe a propria causa, que com tanto ardor simu
la sustentar.

Depois da expulsão dos jesuitas surgiu logo uma seita le


nominada dos sigellistas ou jacobeus, que attrahiu muita atten
ção ; e um Gaspar da Incarnação, um d'aquelles

Que obravam falsamente com mostras de santos ,

era conhecido por cabeça e director espiritual d'ella : em breve


adoptou os seus principios e defendeu a sua doutrina o proprio
bispo de Coimbra , da casa de Povolide. Estes puritanos cla
mavam alta e abertamente contra os abusos da egreja em Por
tugal, e contra a iniquidade geral da nação. Pretendiam mos
trar grande piedade, e abnegação de todas as amenidades da
vida revestindo-se d'uma grande simplicidade exterior e d’um
modo austero de viver .
Se estes insensatos se houvessem contentado com o goso
exclusivo dos seus principios e das suas doutrinas, teriam con
tinuado a viver tranquillos. Porém não era essa a sua inten
ção, porque trabalhavam para o que diziam ser uma reforma
geral na egreja e no estado, sem se mostrarem escrupulosos na
escolha dos meios para conseguirem a execução dos seus pro
jectos . O bispo de Coimbra , o seu principal apoio , e um dos
seus mais salientes sectarios, era um fanatico desesperado e de
um genio atrabiliario, a quem a continua excitação, a que esta
va entregue, levou a commetter o arrojo de espalhar escriptos
sediciosos e libellos provocativos, até que a sua repetida pu
blicação obrigou o governo a tomar medidas energicas para a
sua suppressão. Na maior parte dos seus escriptos sustentava
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 227

ousadamente que Pombal não só era inglez na sua politica ,mas


tambem na religião , e que tinha a alma contaminada pela he
resia. Porém , não satisfeito com ataques tão absurdos como
maliciosos, ajuntou que a heresia caminhava a passos largos
e precipitados para o proprio throno, e que a nação toda cor
ria risco. Tão falsa como imprudente imputação não podia dei
xar de constituir uma offensa directa feita a D. José, cuja pie
dade real e illibada , bem como a do seu ministro , se paten- *
teava em todos os actos da vida de ambos . A accusação de im
piedade dirigida a Pombal pode facilmente ser refutada em
vista d'uma passagem da apologia que, passados annos, escre
veu , e a que ainda temos occasião de nos referir, e é co
mo segue: « A maior affronta que se pode fazer a um homem
Christão e honrado, é a de o infamarem de irreligioso ; por isso
os meus gratuitos, e já perdoados inimigos, procurando ferirem
me no mais intimo do coração ,tentaram penetral-o com o mor
tal golpe d'esta inventada calumnia , sem terem reflectido em
que, de nenhuma sorte, a poderiam fazer applicavel aos meus
procedimentos.»
Depois de impugnar com indignação estas infundadas im
putações, e de enumerar as repetidas provas que tinha dado
da sua fidelidade á egreja catholica, junta : «Não pertencendo
nem aos homens, nem ainda á mesma egreja prescrutar os se
gredos do coração humano, porque são immediata e privativa
mente reservados a Deus, é necessario que reduzam os seus
juisos, e as suas decisões ao que lhes póde constar pelos factos
externos . »
O bispo de Coimbra , ao mesmo tempo que com taes in
vectivas fulminava o rei e o ministro , dirigiu tambem uma pas
toral a todo o clero e povo da sua diocese , em que, empregan
do uma linguagem inconveniente , prohibia a leitura das se
guintes obras por elle classificadas de hereticas e corruptas : 0
Espião Turco. Cartas cabalisticas. Cartas chinezas. Cartas ju
dias. Cartas sobre a necessidade da religião essencial ao ho
mem . Obras do Philosopho de Sans Souci. Pintura do seculo.
Ensaio sobre a historia geral, por Voltaire . Henriada, por Vol
taire. Resumo de Ecclesiastes e do cantico dos canticos. Espi
rito de Voltaire . Encyclopedia . O Espião nas cortes da Euro
228 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

pa , por Thomaz Kouli Kain. O Contracto social. Philosophia


da Historia. Discurso sobre a desegualdade do homem , por Ros
seau . Diccionario Philosophico. Despotismo Oriental. Dupin ,
sobre a disciplina da antiga egreja. Dissertações historicas. A
Donzella de Orleans, por Voltaire. Sobre o estado da egreja e
legitimo poder do Pontifice Romano. Belisario, por Marmontel.

« Vêde agora e attendei, irmãos e filhos carissimos, acres


centa o bispo , que o designio d'estes autores parece ser de ar
rancar dos corações dos fieis pela raiz as regras puras dos cos
tumes , a doutrina mais santa da lei, os dictames mais solidos
da moral, e introduzir o indifferentismo e o fanatismo, capaz
de fazer que muitos naufraguem na fé, e de pôr em maior ris
co as preciosas vidas dos reis e dos principes, e de alterar a
boa harmonia , que deve haver entre o sacerdocio e o imperio ;
– Ex sacerdotio et regno (diz Isidoro Pelusiota, no liv . 3,
epist. 239 ) rerum administratio conflata est ; quamvis enim
per magna differentia sit, ad unum tamen et unicum finem ten
dunt, hoc est, ad animarum salutem .»

« É verdade que estes falsos profetas não lançam os alta


res por terra , mas impedem com suas erradas doutrinas se ado
re o verdadeiro Deus, que quer ser adorado em verdade e em
espirito ; e elles não tiram a vida corporal aos fieis com o ferro,
mas se applicam a privar os mesmos fieis com o veneno da sua
sciencia , ou para dizermos melhor, da sua ignorancia , de ou
tra vida mais nobre, que é a do espirito .» etc. etc.
Tudo isto e muito mais foi exposto ao rei e ao ministro ,
que resolveram deixar passar em silencio . Além do que acaba
mos de ver, havia tambem todas as provas de que o bispo fôra
cumplice n’uma das muitas conspirações que constantemente
existiam na forma latente,mas que Pombal pela sua vigilancia
fazia abafar, á nascença , mandando prender a tempo os cabe
ças. O bispo aspirava provavelmente a honras do martyrio,
mas por este lado foram - lhe frustradas as esperanças.
Todavia a 9 de dezembro de 1768, pouco depois da pu

blicação da pastoral, dirigiu el-rei um decreto ao deão , digni


dades e cabido da egreja cathedral de Coimbra , declarando
que, tendo o bispo de Coimbra D. Miguel da Annunciação fei
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 229

to espalhar debaixo de simulados titulos, differentes papeis se- x


diciosos e offensivos dos mais sagrados direitos da coroa, e do
socego publico , e tendo incorrido nas penas da lei pelo crime
de lesa-magestade, ficava reputado por morto , e o governo
d'aquelle bispado vago , e orfão de proprio pastor, que podesse
dirigil-o .
O bispo foi preso, e assim se conservou até á morte de
D. José, sendo os seus partidarios , os jacobeus, todos exclui
dos da universidade pelo alvará de 14 de dezembro do mesmo
anno .

Pombal para metter a ridiculo a hypocrisia d'esta seita, e


mostral- a com as suas verdadeiras cores, mandou então tra
duzir o « Tartufo,» e pôl-o em scena no theatro, a cuja repre
sentação o rei e toda a familia real assistiu . O Tartufo appa
recia em trajo de jesuita , e foi representado muitas vezes sen
do muito applaudido e tendo grandes enchentes: assim se es
clarecia o moto do palco, castigat ridendo mores.
Comtudo , n'um d'estes espectaculos foram presos tres in
dividuos por fazerem allusões muito livres ao que se passava
em scena .

Convem aquimencionar um caso, que se deu por este tem


po, porque trouxe depois consequencias muito importantes na
historia da administração de Pombal. Em junho de 1771 , José
de Seabra, procurador geral da corða , foi nomeado secretario
d'estado adjunto ao Marquez de Pombal. Este cavalheiro, só
pelo seu talento, sem o auxilio dos predicados da riquesa e do
nascimento , caira muito em graça ao Marquez de Pombal, e
collocado em tão elevada posição com esta nomeação , recom
pensa da sua experimentada fidelidade, deu muitos passos no
progresso . Mil conjecturas se formaram sobre o futuro d’este
novo ministro .
Um despacho de mr. Robert Walpole, de 4 de julho de
1772, nos habilita a tomar conhecimento das scenas que en
tão se passaram , e das intrigas, que se preparavam para sola
par o poder do ministro tão depressa se offerecesse occasião
opportuna . Este documento dá -nos uma idea clara da posição
de Seabra anteriormente aos acontecimentos, que cavaram a sua
ruina .
230 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

« O Marquez de Pombal, pelo credito que possue. no con


ceito de S. M. F., e que certamente sustentará até final, pos
sue inteiramente o governo d'este paiz; e no caso de sobrevir
alguma fatalidade a sua magestade, é provavel que d'aqui pro
venha a sua demissão , porque é sabido que a rainha de Por
tugal e o resto da familia real, que tem uma grande deferen
cia pelos sentimentos d'aquella senhora, são grandes adversa
rios do Marquez de Pombal.
Martinho de Mello foi primeiramente tido em grande con
sideração e estima pelo Marquez de Pombal, tanto que este o
recommendou muitas vezes a S. M. F., oO que fez que este se

nhor, fallecendo um dos irmãos de Pombal, o mandasse vir


d'Inglaterra , sem a este respeito consultar o marquez ; e pare
ce que foi por persuasão da rainha que el-rei deu este passo .

« O Marquez de Pombal recebeu o sr.Mello com os braços


abertos, e em principio nada parecia mais cordeal do que a
amisade dos dous ministros. Porém o sr. Mello depressa rom
peu a precipitada presumpção do grande conceito que gosava
com algumas indiscripções relativas a Pombal ; e, apesar dos
negocios em geral serem dirigidos com a união , ou antes pelas
indicações do marquez e a coadjuvação de Martinho de Mello ,
necessario era haver cordealidade entre ambos.
« O sr . Seabra , secretario d’estado adjunto ao Marquez de
Pombal, estudou a advocacia , e antes de ser promovido ao lo
gar que occupa , era procurador geral da corða . O Marquez de
Pombal foi muito relacionado antigamente com o pae d'este ca
valheiro, e sempre conservou relações d'amisade com a fami
lia . O sr. Seabra tem tido uma grande parte nos livros que se
tem escripto e compilado contra os jesuitas debaixo da inspec
ção do marquez, e cuja publicação tem sido em nome do mes
mo sr. Seabra .
«Formando portanto o marquez um grande conceito d’este
cavalheiro , e depositando n’elle summa confiança, deu -lhe en
trada no gabinete fazendo-o secretario d'estado seu adjunto ; e ,
por outro lado parece que a nomeação do sr. Mello foi uma
medida um tanto acertada, porque a edade e saude do marquez
obrigam -no algumas vezes a escusar-se para com el-rei de não
assistir aos conselhos, e com especialidade de não acompanhar
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 231

S. M. nas jornadas, que faz a Salvaterra e a outros logares ,


aonde os ministros o acompanham . D. Luiz da Cunha, sendo
um homem honrado e pacifico , sem outra ambição além da de
não sair da esphera das suas attribuições, não podia o Mar
quez de Pombal depender muito d'elle, pois não tem por sua
naturesa energia sufficiente para exercer outras funcções, que
não sejam as comprehendidas nos deveres do seu cargo.
« Esta promoção de Seabra foi por conseguinte uma me
dida acertada e reflectida do Marquez de Pombal, que d'elle
podia depender para na sua falta proseguir o plano e systema
de governo na plenitude dos seus desejos, como para reprimir
ao sr. Mello, e tambem por causa da sua capacidade e da con
fidencia e amisade, que ha muito tempo existe entre elles.
« Porem , apesar d’isto, ainda era preciso alguma cousa mais
para ter seguro el-rei, e obstar a que o contacto e conselho
das pessoas reaes oppostas ao marquez em nada podesse in
fluir ; e isto não podia fazer Seabra , que como secretario adjun
to não tem o privilegio das audiencias privadas de S. M. F.,
mas só no mesmo tempo e em commum com os mais secreta
rios d’estado em occasião de conselho e de despacho, sendo o
Marquez de Pombal o unico ministro a quem é permittido pro
curar o rei para falar-lhe sempre que lhe seja preciso .
« Sendo porém uma prerogativa dos cardeaes serem admit
tidos á presença dos reis e dos principes sempre que lhes con
venha , aproveitou o Marquez de Pombal este recurso, que se
lhe offereceu , fazendo que o cardeal Cunha fosse nomeado mi
nistro d'estado . O marquez , tendo feito o seu amigo cardeal
Cunha sciente do despacho de todos os negocios em geral,
tem mais uma vantagem , que é, quando não possa comparecer
perante el-rei, poder encarregar o cardeal de qualquer negocio
para com S. M., quando não julgar conveniente leval-o perante
o conselho .
« A meu ver é isto uma sabia medida do Marquez de Pom
bal; porque , se acontecer durante a vida de S. M. F. fallecer

o marquez, deixa este um amigo que, com toda a probabilida


de, lhe póde succeder como primeiro ministro, e que, qualquer
que seja a face que a politica tome, terá ainda sufficiente cre
dito para proteger os bens e parentes do marquez contra quaes
232 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

quer perseguições. E no caso de fallecer S. M., qualquer que


haja de ser a mudança de ministros, o caracter geralmente
apreciado e o credito do cardeal serão egualmente uteis ao
marquez para retirar -se incolume.

a Digo o caracter geralmente apreciado do cardeal, porque


é estimado de todos por todos os motivos. Não é homem de

grande capacidade, mas é honrado e bom ; e se não tem par


ticular confiança da Rainha, é porque basta ser amigo do Mar
quez de Pombal para os mais não gostarem d'elle.
«Julgo que esta promoção do cardeal não agrada muito ao
sr. Mello , apesar d'este por outro lado mostrar certa deferen
cia para com o cardeal. O gabinete de S. M. F. compõe -se
actualmente do Marquez de Pombal, do çardeal Cunha, de
D. Luiz da Cunha , de Mello e de Seabra . É provavel que em
caso de escolha o sr. Mello fosse excluido ; porque, ainda que
D. Luiz da Cunha não gosta do Marquez de Pombal, é dotado
d'um genio tão pacifico , que o marquez nada tem que receiar
d'elle .
Quando teve entrada no gabinete de ministros o cardeal,
permittiu S. M. que os ministros d'ahi em diante se conservas
sem sentados em sua presença , sendo costume até então esta
rem de pé ou de joelhos todo o tempo , que duravam as deci
sões dos negocios com S. M.,
Vimos já o feliz exito das negociações de Pombal com a
Curia Romana para a aniquilação dos jesuitas. O governo de
Portugal foi o primeiro que descobriu as perniciosas e perfidas
intrigas d'estes homens, e desde o principio até final trabalhou
exclusivamente só : por quanto , ainda que a França e a Hes
panha, influidas pelo exemplo de Portugal, tomaram conheci
mento das cabalas da ordem , e descobriram o seu systema
pernicioso, tomando desde então sobre si uma parte na causa
commum contra os jesuitas; Portugal, em todos os seus passos
contra a sociedade , e em todas as suas disputas e constesta
ções com a corte de Roma, continuára a trabalhar só, e nunca ,
mesmo nunca , se associára, n’um ou n'outro caso , a qualquer
dos outros governos .
Pombal estava justamente orgulhoso da obra , que empre
hendera , vendo em fim os seus projectos sanccionados pela au
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 233

toridade pontifical. O ministro inglez não faltou com o seu


tributo de louvor n'esta memoravel e importante occasião ex
pressando-se d'esta sorte :
« A nova da abolição total da sociedade dos jesuitas pelo
papa foi aquirecebida pela corte , como v. ex.“ facilmente ima
ginará , com a maior satisfação possivel; e o Marquez de Pom
bal, em particular, está summamente satisfeito com este ultimo
passo para a extincção d’uma corporação com quem , ha tantos
annos, luta, e mostra-se feliz por ver plenamente justificado o
procedimento d’esta côrte contra os jesuitas, sobre tudo porque
The cabe a gloria de ser o primeiro n’este seculo, que ousou
atacar francamente uma sociedade, que tanto prestigio tem tido
em muitas côrtes, e com particularidade n’esta até á acclama
ção do actual monarcha. D
Clemente XIV não sobreviveu muito tempo a estes acon
tecimentos. A sua morte causou uma perda irreparavel á egreja
catholica ; e toda a Europa anhelava por saber, n’este critico
momento, quem seria o seu successor. Pombal tinha seus re

é
ceios das consequencias d’uma eleição imprudente, porque
o que se pode inferir da conversação , que teve com mr. Wal
pole ; e que o ministro inglez assim refere :
«Na correspondencia que teve (conforme me disse o mar
quez ) com o duque de Choiseul durante o pontificado de Cle
mente XIII , o Marquez de Pombal não hesitou dizer que não
ficava bem ao governo francez mostrar-se supplicante para com
a Curia de Roma ; que a França devia ter feito marchar parte
das suas tropas para Roma; e, depois de separar o papa do
geral dos jesuitas e dos outros seus maus conselheiros, tratan
do -o com a honra devida ao seu caracter sagrado , metter to
dos estes em prisão . Se a França tivesse feito isto, disse elle ,
teria livrado o papa dos receios e apprehensões que tinha por
causa dos jesuitas, e a Europa ficaria expurgada de similhante
casta de gente, continuando tambem o duque de Choiseul a
dirigir os negocios da França.»
“ Não duvido,» continua mr. Walpole , « que o Marquez de
Pombal ainda julgue (sem embargo da extincção dos jesuitas),
que umamedida, como a que recommendou ao duque de Choi
seul, venha ainda a ser precisa para constranger à Curia Ro
234 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

mana a ter a attenção devida á dignidade e autoridade dos


principes catholicos da Europa.
« O Marquez de Pombal, conversando ha tempo com o mi
nistro da Sardenha, disse que devia opinar-se pela eleição d’um
papa , cujo genio e caracter tendessem a estabelecer um syste
ma, que approximasse a egreja catholica da protestante, no que
haveria geral e publica vantagem , essencialmente para as cor
tes que, professando doutrinas differentes e estando ligadas
pela amisade, desejavam alliar-se por vinculos mais estreitos .
A corte de Turim , por exemplo, havia de preferir sem duvida
a familia real da Gran -Bretanha a qualquer outra em materia
de casamento, se fossem removidos certos impedimentos reli
giosos. Cito isto unicamente como exemplo das idéas liberaes
do Marquez de Pombal em quanto a materias religiosas, o que
se tem patenteado em muitos particulares, sendo por isso hoje
muito menos 'a superstição n’este paiz , e por outros muitos mo
tivos, do que o era ha uns tantos annos.
« As relações entre esta corte e a de Roma estabeleceram
se tão amigavelmente desde a ultima reconciliação, que Cle
mente XIV estava disposto a dar o seu assentimento em todas
as medidas, que a este governo aprouvesse apresentar-lhe, ten
do dado uma prova bem notavel d'esta asserção não muito an
tes da sua morte, com a exoneração do bispo de Coimbra, al
legando em termos geraes no preambulo da bulla , a edade do
bispo, e as rasões que elle (papa ) bem conhecia . Entendo que
as palavras nolente etiam ac invito se acham insertas no ins
trumento, por quanto o bispo, apesar de preso, tem recusado
tenazmente resignar o seu bispado. Este acto do ultimo papa
é um caso unico d'este genero na historia da egreja .»
A esta prova inequivoca da condescendencia do papa em
annuir aos projectos de Pombal póde juntar-se outro caso,
para mostrar o prestigio que parecia ter em Roma. O officio
seguinte, de lord Rochford að ministro britannico em Lisboa ,
explicará muito melhor os pormenores do facto .
« Em 30 de novembro de 1773. Participaram -me d'Italia
que foram ultimamente encontrados certos papeis no collegio
de Santo André dos jesuitas em Roma, attinentes aquella hor
rorosa e execravel conspiração , cujo material era à polvora ,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 235

que tinha por fim subverter esta feliz constituição , e que, sen
do levados ao papa , que os sellou com o sello da inquisição,
foram depois remettidos á deputação dos cardeaes, à quem
exclusivamente está confiada a gerencia de tudo quanto tem
connexão com os jesuitas. Como é provavel que o Marquez de
Pombal, valendo -se das relações que tem em Roma, possa obter
estes documentos curiosos concernentes aos jesuitas, e , que
S. M. Britannica deseja ver, podeis expressar o desejo , sem
mencionardes o nome do rei, de que empregue o seu poder
para o fim referido, ao que me parece elle não deixará de
prestar-se, attendendo a que o Marquez é um inimigo declara
do da companhia de Jesus, e que não pouparia por isso esfor
ços alguns para expor os seus membros á geral animadversão.»
Todos os extractos precedentes são de interessante e ex
traordinaria importancia , e demonstram a energia de Pombal,
e os designios ainda mais vastos que de certo teria concebido
e executado , se a esphera d'acção em que se movia tivesse sido
mais ampla. Pouco depois chegou a noticia da eleição do novo
padres anto , não parecendo em principio que aquelle, em quem
ella caira , fosse obnoxio á côrte de Lisboa, porque Pombal
disse ao nuncio, em ar de gracejo , que, se soubesse que o que
elegeram era propicio aos jesuitas, o teria visto (a Pombal) fa
zer - se lutherano .
CAPITULO XX

Educação . Notavel prophecia de Pombal. É nomeado reformador da universi


dade de Coimbra na qualidade de logar-tenente de S. M. Reformas. Criam - se
as faculdades de inathematica e de historia natural. Corrigem -se abusos. Es
tabelecimento de museus. Estabelecem -se oitenta cadeiras. Reputação que os
novos estatutos ganham na Europa. Carta de Pombal ao reitor da universi
dade. Sua despedida e fala por esta occasião . Criam -se oitocentos e oitenta e
sete professores secundarios e primarios em varias partes dos dominios por
tuguezes. Fim util d’estas medidas. Infortunio de José de Seabra. Opinião so
bre o acontecido.

Já mais d’uma vez alludi aos ardentes desejos, que Pombal


sempre mostrou, e aos esforços que empregou para alargar os
elementos da educação e da liberdade civil e religiosa do
povo. Era por este meio , que elle esperava assentar os alicerces
sobre que n'uma época futura podesse ser erigido o edificio d'um

governo livre. Bem sabia elle que os governos populares, para


não passarem d’uma sombra , devem ter por fundamento a sa
bedoria do povo. Não desconheceu que seu paiz, sem o auxilio
da instrucção, não podia ter nenhuma d'aquellas formas de go
verno livre, pois que , sendo o povo ignorante, confere as mais das
vezes um poder absoluto a facções, que gosam o bem para que
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 237

os outros trabalharam . Aquelle que fracos conhecimentos tem


da historia e tanto desconhece a naturesa humana , que ima
gina que as constituições se moldam e remoldam , e se fazem
com a mesma facilidade e regularidade que uma machina ina
nime; não é esse que pode altamente apreciar os talentos d'a
quelle estadista. Pombal percebeu que o espirito de revolução
despontava já em seus dias, e que o progresso era lento mas
firme; por isso desejava que os seus concidadãos se preparas
sem para o seu advento . Presentindo os males que ameaçavam
os seus successores , exclamava muitas vezes : «Os meus filhos
ainda poderão viver descançados, mas ai de meus netos !» Esta
notavel prophecia tem -se com muita verdade cumprido com os
desastres, que tem atribulado e continuam a atribular o Por
tugal d'outr ora rico e feliz .
Para dispor, pois , os seus concidadãos para as mudanças
que como inevitaveis via na Europa, procurou leval-os ao mes
mo gráo d'instrucção , que então gosavam alguns povos euro
peus. Porém diversos obstaculos lhe impediam o progresso , e
embaraçavam os seus mais bem dirigidos esforços. A universi
dade de Coimbra tinha estado muito tempo debaixo do domi
nio dos jesuitas, que tinham um systema d'instrucção acanha
do e anti -liberal. O numero de livros, cuja leitura era permit
tida, era extremamente limitado, e ainda assim eram só os in
dispensaveis para as apertadas e estreitas noções da sciencia
e da litteratura . Entre outras obras tambem obnoxias haviam
muitas de pretendidos prophetas, cujas prophecias coincidiam
singularmente com os acontecimentos que a companhia de Je
sus queria ver realisados. Os abusos tinham -se ali tornado tão
notorios que D. sé, em agosto de 1772, mandou Pombal a
Coimbra na qualidade de seu logar-tenente para visitar e re
formar a universidade em tudo quanto entendesse ser necessa
rio fazel-o. O seu primeiro passo foi publicar um relatorio do
estado da universidade, quando os jesuitas ali se introduziram
e usurparam o seu dominio, em que exhibiu as mais claras e
evidentes provas de que foi desde então que começou a rapida
decadencia da litteratura , da sciencia e da philosophia em Por
tugal. Pode formar -se uma idea do atraso a que reduziram os
estudos, pelo facto de haver, em 1766 , só sete estudantes de
238 *
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Grego, sendo perto de seiscentos os matriculados nos registos


da universidade.

Pombal, tendo logo percebido as causas dos males que


corroiam esta antiga fonte de sciencia , applicou - lhes immedia
tamente os remedios precisos. A primeira cousa que fez foi
escolher professores de reconhecida capacidade e de mais vas
tos conhecimentos, sem attender ás solicitações d'aquelles ocio
sos, que fruiram tanto tempo os proventos de sinecuras. Fo
ram creadas duas novas cadeiras, sendo uma de historia na
tural, e a outra de mathematica. Esta excitou a opposição do
clero, que a declarou heretica . Não se deu porém attenção ás
suas representações: approximava -se o termo do seu dominio.
A disciplina da universidade foi tambem inteiramente reor
ganisada. Em vez de largos espaços de tempo que se consu
miam a titulo de ferias, estabeleceram -se apenas dous mezes
para esse fim . Em quanto a esta parte podiam as nossas pro
prias universidades tirar algum proveito das uteis regras de
disciplina de Pombal. Insistiu -se na regularidade do tempo dos
exercicios e lições, salvo o caso, de doença , ou quando outro
motivo urgente fosse allegado . A primeira e a segunda falta era
applicada a pena de multa , e a terceira a de prisão. Por meio
d'estas sabidas disposições viram -se os preguiçosos obrigados
a desarriscar -se, baixando dentro em pouco o numero de es
tudantes a seiscentos ou setecentos, d'alguns milhares que ha
via . Anteriormente a estas medidas passavam o tempo fóra da
universidade muitos que n'ella estavam matriculados, e só ali
compareciam , quando iam buscar os seus diplomas, que se con
cediam como cousa insignificante . Pombal prohibiu rigorosa
mente este abuso , estabelecendo que não poderia passar-se
nenhum diploma, sem que se houvesse procedido a um exame
minucioso e imparcial, e que em particular não seria passado
conferindo o grau de doutor em theologia , sem o pretendente
ter o conhecimento do latim , do grego e do hebraico.
Para se poder fazer a idea mais exacta possivel dos me
lhoramentos, que tiveram logar, basta dizer que se fundaram
museus de historia natural, de medicina , e de instrumentos
chimicos, como tambem um observatorio. Foi tal a celeridade
com que marchou a obra do progresso, que foram creadas n’um
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 239

curto espaço de tempo oitenta cadeiras ; todas as sciencias que


suavisam a vida ou melhoram a condição do homem se ensina
ram , e do mesmo modo as linguas tanto mortas como vivas, a
historia , a rhetorica , a logica , a poesia , a architectura , o dese
nho e a musica. Tão subida reputação grangearam na Europa
os estatutos e regulamentos de Coimbra, que os adoptaram ou
tros governos no intuito de melhorarem as suas universidades .
A carta que se segue prova com quanto escrupulo Pombal
escolhia entre o necessario e util, e o inutil e ostentoso .

AO REFORMADOR REITOR DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA SOBRE A CONS


TRUCÇÃO DO JARDIM BOTANICO DELINEADO PELOS LENTES ITALIANOS
DAS SCIENCIAS NATURAES, QUE SE ACHAVAM NA UNIVERSIDADE NO
PRINCIPIO DA REFORMA .

« Ex.mo Sr. - Reservei até agora a resposta sobre o plano ,


que esses professores destinaram para o Jardim Botanico , por
que julguei preciso precaver a v. ex." particularmente sobre
esta materia . Os sobreditos professores são italianos, e a gente
d'esta nação acostumada a ver deitar as centenas de mil cru
zados de Portugal em Roma, e cheia d'este enthusiasmo, julga
que tudo, o que não é excessivamente custoso , não é digno do
nome portuguez , ou do nome d'elles. D'aqui veio que ideando
elles n'esta corte, junto ao palacio de Nossa Senhora d'Ajuda,
em pequeno espaço de terra , um jardim de plantas, para a cu
riosidade, quando menos esperava achei mais de 100 :000 cru
zados de despeza tão exorbitante como inutil. Com esta mesma
idea trabalharam pelas medidas da sua vasta fantazia, o dila
tado plano que se acha descripto na referida planta ; o qual vi
que sendo á imitação do pequeno recinto, do outro Jardim Bo
tanico , de que acima fallo , absorveria os meios pecuniarios da
universidade antes de concluir -se . Eu porém entendi até agora ,
e sempre entenderei que as cousas não são boas por serem mui
to custosas e magnificas, mas sim , e tão somente porque são
proprias, e adequadas para o uso que d'ellas se deve fazer; isto
que a razão me dictou, sempre vi praticado especialmente nos
Jardins Botanicos d’Inglaterra , d'Alemanha , e de Hollanda ; o
mesmo me consta que succede em Padua, porque nenhum d'es
240 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tes foi feito com dinheiro portuguez. Todos estes jardins estão
reduzidos a um pequeno recinto, cercado de muros com as
commodidades indispensaveis, para um certo numero de ervas
medicinaes, e proprias para o uso da faculdade medica, sem
que se excedesse d'ellas a comprehender as outras ervas, ar
bustos, e ainda arvores de diversas partes do mundo, com que
se tem derramado a curiosidade já viciosa, já transcendente dos
sectarios de Linneo , e que hoje tem arruinado as suas casas,
para mostrarem um malmequer da Persia, uma assucena da
Turquia, e uma geração , e propagação de aloes com differen
tes appellidos, que as fazem pomposas. Debaixo pois d'estas re
gulares medidas deve v. ex.“ fazer delinear este plano, redu
zido somente ao numero de ervas medicinaes, que são indispen
saveis aos exercicios Botanicos, e necessario para dar aos es
tudantes as noções precisas, para que não ignorem esta parte
da medicina , como se está praticando em outras universidades
acima referidas com bem poucas despezas. E para tirar toda a
duvida, pode v. ex.a determinar por uma parte, que S.M.não
quer jardim maior, nem mais sumptuoso que o de Chelsea , da
cidade de Londres, que é a mais opulenta da Europa ; e por
outra parte, que debaixo d’estas idéas se marque o lugar e fa
ça a planta d'elle com toda a especificação de suas partes, e se
calcule , por justo orçamento, o que ha de custar o tal jardim
de estudo de rapazes, e não de ostentação de Principes, ou de
particulares , e d'aquelles extravagantes, e opulentes que estão
arruinando grandes casas para mostrarem Bredos, Beldroegas,
Poejos da India , da China, e da Arabia .

Deos Guarde a V. Ex.a etc.,

Marquez de Pombal. »

Pombal, depois de concluir a importante tarefa da nova


fundação da universidade, recitou a seguinte fala na sala pu
blica da mesma, por occasião de sua despedida em 22 d'ou
tubro .
« A Benignidade, e magnanimidade d'El-Rei meu Senhor
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 241

nunca se manifestaram mais poderosas do que se fizeram ver ,


quando se serviram de um instrumento tão debil como eu, para
consummarem a magnifica obra da fundação d'esta Illustre uni
versidade. Fazia esta , ha mais de vinte e dous annos, um dos
primeiros objectos, entre os grandes e continuos , em que se
empregava aquella Paternal, e Augusta Providencia ; mas foi
necessario profligar, e debellar com as forças do seu potente
braço tantos monstros domesticos, e tantos inimigos estranhos,
antes de poder chegar á ametade da sua gloriosissima carreira ;
e ella constituirá agora um dos maiores, e mais dignos moti
vos, com que, no regio espirito de S. M., se pode fazer com
pleta a satisfação, que tem de seus fieis Vassallos , vendo au
thenticamente justificado pelas contas da minha honrosa com
missão , que n'este louvavel corpo academico se haviam ja prin
cipiado a fundar os bons, e depurados estudos, desde a pro
mulgação das' Sacro -santas Leis , que dissiparam as trevas,
com que os inimigos da luz tinham insuperavelmente coberto
os felizes genios dos Portuguezes.
« Este fiel testemunho, de que em Coimbra achei muito
que louvar e nada que advertir , será na alta mente de S. M.
uma segura caução das bem fundadas esperanças, que ha de
conceber , dos progressos litterarios de uns dignos academicos,
que de tal sorte preveniram as novas leis dos Estatutos com o
fervor , e aproveitamento dos seus bem logrados estudos ; de
pois de se acharem soccorridos , desde a eminencia do Throno,
com as sabias direcções ; e com os regulares methodos, que em
Portugal jaziam sepultados debaixo das ruinas de dous secu
los de funestissimos estragos.
«No meu particular tenho por certo hão de corresponder em
tudo á expectação regia. Esta plauzivel certeza é que só pode
suavisar de algum modo o justo sentimento, com que a urgen
cia das minhas obrigações na corte faz indispensavel que eu
me despeça d'esta preclara academia ; augurando -lhe felicida
des eguaes aos consummados adiantamentos litterarios, pelos
quaes tenho previsto , que ha de resuscitar , em toda a sua an
terior integridade, o explendor da Egreja Lusitana, a gloria da
corôa d'el-rei meu senhor, e a fama dos mais assignalados va
rões, que honraram com as suas memorias os fastos portuguezes.
YOLUMKI
242 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

« Com estes faustissimos fins deu o dito senhor á Univer


sidade o digno prelado, que até ao presente a governa como
reitor, com tão feliz successo, que do dia daminha partida em
diante a ha de reger como reformador; confiando juntamente
das suas bem cultivadas letras, e das suas exemplares virtu
des, que não só conservará com a sua perspicua attenção a
exacta observancia dos sabios estatutos , de caja execução fica
encarregado , mas tambem ao mesmo tempo ha de illuminar
com as suas direcções , ha de edificar com a sua consummada

prudencia, e ha de animar com as suas fructuosas applicações


a tudo que for de maior adiantamento e de maior honra para
todas as faculdades academicas. »
Porém não foi exclusivamente á instrucção das classes su
periores que Pombal attendeu. Em 6 de novembro do mesmo
anno de 1772 foram creados 837 professores publicos d’ins
trucção primaria e secundaria, sendo 94 d'elles nomeados para
o ultramar e ilhas.
A todos se impoz a obrigação de remetterem um mappa
annual declarando o adiantamento dos discipulos. Professores
primarios foram creados 440 no reino , 24 no ultramar, e 15
nas ilhas ; de latim foram 205 no reino , 21 no ultramar , e 10
nas ilhas ; de grego 31 no reino , 4 no ultramar, e 3 nas ilhas ;
de rhetorica 39 no reino, 7 no ultramar, e 3 nas ilhas ; e de
philosophia 28 no reino, 4 no ultramar e 3 nas ilhas: todos
os quaes começaram depressa a derramar em todo o reino os
felizes meios d'uma instrucção gratuita . Para se fazer face á
despesa , que d'aqui nascia, foi lançado um pequeno tributo , de
nominado imposto litterario, em varios artigos do consummo.
Taes foram pois os meios que Pombal empregou, isto é
derramando a instrucção até as partes mais remotas dos domi
nios portuguezes, para que o seu paiz se preparasse para ter
um governo livre. Nem elle podia descortinar outros melhores
que illustrassem os seus concidadãos, demodo que podessem
ver atravez do espesso veo da politica por que,no systema re
presentativo , a ambição procura occultar muitas vezes os seus
designios , meios e fins.
Vimos já que em 1771 foi confiada a Seabra parte do go

verno, e que isto deu logar a muitas conjecturas. O destino


MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 243

subsequente d'este homem infeliz é ainda muitas vezes objecto


de conversação e de argumento em Portugal. O seguinte des
pacho de Mr. Walpole tende de algum modo a esclarecernos
sobre a causa da sua queda.
«Em 22 de janeiro de 1774. Seabra, secretario d'estado
adjunto ao Marquez de Pombal, está perdido.
( Terça
feira, conforme o costume, foi para a repartição do
Marquez de Pombal, e, depois de expedir alguns negocios, en
trou no gabinete do Marquez, que de parte d’el-rei lhe apre
sentou a ordem de demissão e de desterro no paiz. O Marquez
fez -lhe sentir que devia ficar na mente de que el-rei tinha mo
tivos sufficientes para dar este passo , e que elle , o Marquez ,
tinha tanto sentimento em ver -se obrigado a significar-lhe as
ordens d'el-rei em similhante conjunctura , como de satisfação
tivera em apresental-o a sua magestade; e afinal concluiu di
zendo - lhe que devia ser grato á bondade de S. M., que lhe

permittia retirar-se a uma fazenda que fôra de seu pae (de


Seabra ,) na distancia de quarenta e tantas leguas de Lisboa ,
ao pé de Vizeu .
« Portanto Seabra partiu quarta feira de madrugada com
sua esposa ; e, apesar de se não dizer se alguma gente de jus
tiça o acompanhou, crê- se que o governador do districto, onde
deve permanecer, tem ordem de observal-o com muita vigi
lancia .

« A ordem de S. M. era dirigida ao doutor José de Seabra


sem mais titulos nem distincções, de sorte que foi exonerado
de todos os cargos que exercia como procurador da corôa, se
cretario d'estado e guarda -mór da Torre Tombo ; e não apon
tava rasões algumas d’uma tal determinação .
«Este caso é de tal naturesa , que a todos surprehendeu ; e
por qualquer das faces, que se considere a situação de Seabra ,
custa a conceber como elle chegou a esta desgraça .
É homem de talento , muito assiduo, de vastos conheci
mentos, e versado n'algumas linguas estrangeiras; possuira mui
tos annos a confiança do Marquez de Pombal, e, primeiro como
procurador da corða , e depois como secretario d'estado , foi se
nhor de grandes segredos d’estado d’este paiz . Além d'isto era
quem todos esperavam que, com a maior probabilidade, suc
244 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

cedesse na administração da maior parte dos negocios d'esta


nação , por fallecimento do Marquez de Pombal. Os seus ven
cimentos eram bem consideraveis, pois percebia 25 :000 cru
zados annuaes como secretario d'estado , 6000 como guarda
môr da Torre do " Tombo, e o rendimento de 12 :000 cruzados
tambem annuaes, proveniente d'uns bens, que pertenceram aos
jesuitas. A sua idade anda pelos quarenta.
« Dava expediente aos negocios com geral satisfação , e
parecia -me d’um caracter affavel e d’uma franquesa e lhanesa
no seu todo com que se fazia bemquisto : consta -me mesmo
que depois que foi apresentado na corte, o seu procedimento
lhe grangeou o affecto da rainha e do infante D. Pedro, irmão
do rei, que em principio não sympathisavam com elle .
« São diversos os modos de interpretar a causa da sua que
da, e não se pode ao certo crer em nenhum d'elles,porque não
posso assegurar que fossem referidos por pessoa competente .
« Seabra tinha a seu cargo a expedição e jurisdicção dos
negocios ecclesiasticos, e , segundo se diz, parece que em 2
annos e 4 mezes que foi secretario d’estado, passou , sem co
nhecimento de sua magestade, 2 :922 licenças para a orde
nação d'igual numero de padres nos differentes bispados do
reino , tendo recebido por cada uma, dizem , 10 moedas, o
que podereis julgar que deve ter subido a uma consideravel
quantia.
a Diz - se tambem que fizera clausurar um mancebo n'um

convento , com o fim de obrigal-o a tomar o habito religioso


para o estado herdar os seus bens, sem embargo d'elrei ter
mandado que o mancebo fosse posto em liberdade .
« Não se pode realmente crer por ora no que se diz ; por
quanto ha quem attribua a sua quedá não só á imprudencia ,
de, pelo lado politico, mostrar-se opposto ao Marquez de Pom
bal, o que este muito tempo levara com paciencia , mas a pro
curar formar um partido de amigos independentes do Marquez ;
assumindo
por outro lado muita presumpção pela posição em
que se achava collocado.

« Qualquer porém que seja a verdadeira causa dos seus in


fortunios, receio que não parem aqui. Se os seus crimes são
grandes, o Marquez de Pombal, segundo penso, não ha de
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 245

querer que se diga, que por amisade o livrara do degredo, que,


em identicas circumstancias, teria sido o destino d'outro qual
quer : e se a sua desgraça for simplesmente o effeito da inveja,
é provavel que seja tratado com severidade para que o publi
co creia , que suas culpas são de medonha naturesa.
« A meu ver a demissão de Seabra não peza a Martinho
de Mello , principalmente porque me parece que tem ultima
mente ganho terreno, expedindo os negocios a seu cargo com
satisfação do governo, e portando-se com prudencia e discri
ção . Este acontecimento leval-o -ha sem duvida a fazer por
ganhar a confiança do Marquez de Pombal. Não acompanhou
el-rei a Salvaterra, o que é indicio de que se acha muito ocu
pado com o Marquez de Pombal.»

N’um despacho posterior ao antecedente, refere -seMr. Wal


pole ainda a este caso .
« Em 23 de março de 1774.Só me resta informar - vos so
bre os infortunios de Seabra. Presentemente reina completo si
lencio a seu respeito, e por ora não parece que haja disposi
ções de lhe darem outro destino. Este acontecimento não pro
duziu effeito algum em prejuiso do Marquez de Pombal, sendo
pelo contrario considerado como um novo exemplo da grande
confiança , que n'elle deposita S. M. F.; por quanto crêem todos
que o proprio monarcha apontou ao Marquez de Pombal exem
plos da ingratidão e desattenção com que Seabra se houvera
para com elle rei. )

No decurso do anno foi Seabra degradado para o ultra


mar.
E -nos impossivel decidir quaes seriam os verdadeiros mo
tivos da punição d’este cavalheiro , que, por todos os respeitos ,
não só gosava a confiança e protecção do ministro, mas a es
tima geral de todos que o conheciam . Se fosse o peculato a
verdadeira causa, apesar de ser este um crime commettido en
tão em quasi todo o reino , Pombal não era homem que dei
xasse similhante abuso impune naquelle a quem já enchera de
riquesas e honras, e em quem tanto descançava .
Corre muito em Portugal outra versão sobre a queda de
246 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Seabra . A successão na corôa foi sempre objecto de grande


difficuldade e anciedade , e alguns consorcios convenientes com
os varios membros da familia real tinham dado logar a muita
intriga tanto domestica como nas cortes estrangeiras. O rei te
mendo as consequencias que, por sua morte, podiam resultar
da accessão de sua filha ao throno , mulher fragil e fanatica ,
que já dera indicios d'aquella demencia , que em tempo futuro
a obrigou a abandonar as redeas do governo , resolveu , a exem
plo de Carlos VI, imperador d'Allemanha , alterar a successão
em favor de seu neto, o principe da Beira. Dizem que tudo es
tava já combinado com o ministro sem que ninguem possuisse
este segredo senão Seabra, quando se soube que a princesa
fôra informada das intenções de seu pai, recusando depois re
solutamente, aconselhada e exhortada pelos seus amigos, an
nuir de modo algum á desistencia do throno. Não nos detere
mos em examinar o direito, que tenha o monarcha d'um paiz
qualquer e alterar a successão ao throno , ou a justiça que
possa assistir - lhe para fazel-o : comtudo a opinião deve ser uma
só com referencia á propriedade do castigo applicado ao trai
dor dos segredos do seu soberano .
CAPITULO XXI

Erecção da estatua equestre de D. José: seu tamanho colossal: conclue-e nos


dia do anniversario natalicio do rei. Festejos publicos: distincções dadas a
Pombal. Attentado de assassinio : machina infernal. Descobre- se o assassino
e é morto. Acções de graças geraes pelo livramento de Pombal. Observações
escriptas por Pombal por occasião da inauguração da estatua equestre.

Aquella bella estatua equestre collocada no centro da prin


cipal praça de Lisboa, prova exuberantemente que as artes
não foram despresadas durante a administração de Pombal.
Esta praça , uma das mais bellas da Europa , foi feita natural
mente com a idea de n’ella erigir alguma memoria, que com
memorasse o reinado prospero e glorioso , em que tantas e tão
grandes empresas tiveram principio e fim . Toda esta parte de
Lisboa era um montão de ruinas indistinctas anteriormente á
edificação da praça . Foi portanto determinado que se erigisse
uma estatua colossal de bronze representando D. José a caval
lo , collocada sobre um pedestal de marmore ornado de figuras
allegoricas. Um brigadeiro portuguez , chamado Bartholomeu ,
homem de grande engenho , foi encarregado da execução d'este
248 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

projecto e da direcção de todos os trabalhos. Foram necessa


rias 8 juntas de bois para ser conduzido da pedreira, que fica
va a 2 milhas de distancia, o magnifico pedestal, que, antes de
promptos os trabalhos de esculptura , custou 24 :640 $443 réis.
Para a fundição d'esta soberba estatua, que é talvez maior
do
que nenhuma obra moderna d'este genero, foram precisos
oitenta e tantos mil arrateis de bronze derretido, com
com que , de
um só jacto e no espaço de 8 minutos, ella foi moldada com
feliz exito . A descripção dos preparativos para os 3 dias de
festejos, diz uma testemunha occular, encheria um volume. As
partes da praça , onde se levantou a estatua, que ainda não
estavam acabadas, foram rematadas com madeira , para d'este
modo se representar o plano completo da espaçosa praça . A
despesa total foi culculada por mr. Walpole em 200 :000 li
bras incluindo o custo da estatua .

A 6 de junho de 1775 estando tudo preparado, e sendo


este o dia do anniversario natalicio do rei, a cortina que até
então occultava a estatua, foi corrida pela mão de Pombal com
grandes ceremonias e festejos publicos, em presença do rei ,
da corte, dos embaixadores estrangeiros e de toda a cidade.
Os regozijos publicos duraram tres dias durante os quaes
toda a sorte de divertimentos derramaram alegria geral. Fogos
de artificio , festas, illuminações, procissões allegoricas e arcos
triumphaes, banquetes e bailes, e tudo quanto a imaginação
póde conceber de aprazivel e o genio inventar, se prodigali
sou liberalmente ao povo, e proclamou a opulencia e felici
dade da nação . Foram cunhadas medalhas para commemorar
este dia glorioso, e, á excepção dos criminosos de estado e dos
que eram accusados de crimes graves , todos os presos foram
soltos.

Por esta occasião de triumpho o rei e a familia real assis


tiram a um baile , em que os fidalgos dançaram . O conde d'Oey
ras, filho de Pombal distribuiu aos ministros estrangeiros me
dalhas d'ouro representando d’um lado a estatua com as pala
vras Magnanimo Restitutori, e do outro figuras allegoricas re
presentando a edificação de Lisboa depois de destruida pelo
terremoto , com as palavras Post Fata Resurgens Olisipo. De
ram -se medalhas de prata do mesmo theor aos encarregados de
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 249

da es
negocios estrangeiros, a quem se distribuiram gravuras
tatua equestre, bem como aos mais ministros.
D. José, para mostrar a distincção em que tinha o seu mi
nistro, dignou -se mandar que uma effigie d'elle em bronze, in
alto relievo , fosse collocada no pedestal aos pés da sua esta
tua. Este monumento d’um reinado feliz e florescente será pa
ra o povo , durante seculos, uma recordação da epoca mais glo
riosa da sua historia ; e, á proporção que for passando o tem
po , que a todos faz justiça , assim o nome de Pombal irá sendo
proferido com maior respeito , admiração e gratidão por todos
os portuguezes, em cujos corações houver logar para abrigar
um sentimento d'honra pela sua patria.
Porem estes regozijos tiveram precedentes, que bem perto
estiveram de mudar o caracter da scena , convertendo a alegria
publica em tristesa , e uma festa de jubilo n’uma occasião de
effusão de sangue e de crime. Foi o caso um attentado diabo
lico para Pombal ser assassinado no primeiro dia dos festejos.
A descoberta prematura da conspiração obstou á execução das
intenções dos malvados, e a prudencia com que sobre isto se
guardou segredo durante aquelles dias, fez que os referidos
festejos não fossem adiados, e que Lisboa não fosse theatro de
consternação e horror. O autor principal da maquinação era
um italiano chamadº João Baptista Pelle , que, havia tempo,
residia em Lisboa. É de então que podemos datar a origem
d'aquellas machinas infernaes, que tanto damno e alvoroço tem
ultimamente causado em França. Ora, o segredo com que o tra
ma foi urdido não foi tanto , que Pombal não viesse a sabel-o ;
e , dada busca á casa do cabeça do attentado no começo da
n'oute do dia , em que devia ser posto em execução o referido
trama, encontrou -se -lhe no quarto uma machina de destruição
formada por 3 tubos metallicos com arratel e meio de polvora
cada um , 4 garrafas com um arratel de polvora cada uma, e
uma pequena barrica muito forte contendo tambem 4 arrateis
de polvora. Junto a este engenho horrivel estava uma mecha
de tal sorte disposta, que havia durar 15 horas accesa antes de
communicar o fogo á polvora. Foi tambem encontrado no quar

1 Uma d'estas medalhas d'ouro acha-se hoje em poder de A. J. B.Hope. Esq .


250 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

to de Pelle um papel com o desenho da chave da cocheira , em


que estava guardada a carruagem de Pombal, além de 2 mol
des de cera da mesma chave. A intenção dos conspiradores
era collocarem esta machina infernal debaixo do assento da
carruagem de Pombal, na noute, que precedia o dia da inau
guração da estatua equestre, para que a explosão rebentasse
durante o transito da grande procissão, que então havia de ter
logar. A consequencia de tão damnadas intenções, se se hou
vessem realisado, teria sido a morte infallivel não só de Pom
bal, mas de quantos lhe estivessem proximos. Comtudo a pro
videncia mallogrou a infame machinação, e determinou que o
seu autor fosse entregue nas mãos da justiça. O malvado foi
depois processado, e confessou a final todo o crime. Soffreu
portanto a execução a 9 d'outubro do mesmo anno, sendo es
quartejado e exposto o corpo á vista do publico .
Pela feliz e anticipada descoberta da conspiração foi a vi
da de Pombal salva d’um dos attentados evidentemente mais
infalliveis , para destruir qualquer individuo, que a historia nar
ra . Foi celebrado um Te Deum em acção de graças pela con
servação de tão preciosa vida , e o mesmo fez toda a nação d’um
modo publico e solemne. Prégaram -se sermões em louvor da
administração de Pombal, e expressando o prazer geral pelo
seu livramento. N’um d'elles, pregado em presença do rei, en
contram -se os seguintes lisonjeiros encomios: « Se nas vossas
provincias, ó rei afortunado , se tem creado fabricas ; se o nu
mero dos vasos da vossa marinha tem crescido ; se a agricul
tura do vosso paiz abunda nos fructos da terra ; se as artes, se
as sciencias, se o exercito -- que direi mais ?—Sim - se a re
ligião florece, deve toda a sua força , a sua unidade e a sua pu
resa ao muito illustre marquez de Pombal, etc. etc.

« E vós, o povo feliz , que vèdes a cada instante crescer a


vossa gloria , a vossa tranquillidade, a vossa abundancia, a vos
sa sciencia e a vossa força, deveis implorar humildemente ao
todo poderoso que conserve a vida, a sempre necessaria vida ,
do vosso primeiro ministro, etc. etc.»
Dias depois da inauguração da estatua entregou Pombal
as observações que se seguem a D. José, as quaes S. M., de
pois de lel- as, depositou no armario contiguo á mesa do seu
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 251

despacho, dizendo que era justo que ali ficassem perpetuadas


para norma e direcção dos futuros reinados e ministerios d'elles .

« Observações secretissimas do marquez de Pombal, Sebas


tião José de Carvalho e Mello na occasião da Inauguração da
estatua equestre no dia 6 de junho de 1775 , entregues por
elle mesmo, 8 dias depois ao Senhor Rei D. José I.

« 1. A grande cortina, que no felicissimo dia 6 do cor


rente mez de junho de 1775 , descobrio a regia estatua d'el
rei meu senhor, veio a manifestar nos dias successivos ao claro
conhecimento de todos aquelles, que não parando na superficie
dos objectos, que lhes presentam á vista , passam a investigar,
e comprehender a substancia das coisas, que S. M. não só
tem inteiramente dissipado as trevas, e reparado as ruinas em
que achou sepultados os seus reinos,mas que além d'isso tem
feito appareceroutra vez em Portugal o seculo feliz dos senhores
reis D. Manuel, e D. João III para os exceder com os progres
sos das suas paternaes,magnanimas, e infatigaveis providencias .
« 2.° Pois que dados os principios, que a economia do es
tado , e arithmetica politica estabeleceram para que por elles
se possa formar uma completa idea do estado da civilidade ,
da politica, da opulencia, e das forças de qualquer nação cul
ta , seus effeitos se viram apparecer em publico com esta faus
tissima occasião , na corte de Lisboa , causando assombro a to
dos os nacionaes e estrangeiros.
« 3.° E o primeiro dos ditos exemplares, o caracter com
mum da letra de Mão, pois quando até o anno de 1750 era
rara a pessoa que escrevesse uma carta com boa letra , ha hoje,
parece , a mesma raridade de achar quem escreva mal em Lis
boa, de sorte que de cada vez que se quer nomear um escri
pturario para qualquer das contadorias do real erario, das jun
tas da fazenda, dado commercio, das companhias geraes, e
das outras repartições publicas, apparecem quasi resmasde pa
pel inteiras em memorias, e petições de letras perfeitissimas.
« 4.° É o segundo principio o estado das artes fabris, ou
officios mecanicos, que são os braços e as mãos de todos os
estados ; e quando antes tudo, o que elles ( estrangeiros) costu
252 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

mavam fabricar, entrava pela barra , vindo dos reinos estran


geiros, se vio agora, quanto as manufacturas nacionaes flore
cem ; porque fabricaram em obras de ouro, e de prata, de lã ,
e de seda , de ferraria , de marcenaria , de correeiria ; etc. tudo
o necessario para os vestidos e galas de ambos os sexos ; para
ornato das casas, e mezas, e para as ricas e numerosas car
ruagens de uma tão brilhante funcção, sem que viesse de fóra
cousa alguma: porque até os espelhos, placas, e vidros de be
ber , foram feitos nas fabricas do reino por vassallos de vossa.
magestade .
«5.
1 É o terceiro principio , o do estado das artes libe
raes ; e depois de se haverem manifestado as muitas, e boas
pinturas do insigne Francisco Vieira , e dos muitos discipulos,
e imitadores, em que hoje abundamos ; depois de haver à aula
do commercio feito de tal sorte vulgar a arithmetica que para
o lugar de um guarda livros, que antes se mandava buscar a
Veneza, e a Genova , com 1 conto de réis , e 3 :000 cruzados
de emolumentos, succedendo agora vagar. se apresentam logo
vinte e mais oppositores habilissimos em todas as arrumações
de livros mercantis, e em todas as mais difficeis reducções de
pezos e medidas, de solidos e liquidos, de todos os cambios, e
de todas as differentes moedas que correm nas praças da Eu
ropa : depois de terem os sumptuosos e bem delineados edifi
cios de Lisboa acreditado tanto a architectura : a portentosa

estatua equestre, e o soberbo e delicado pedestal d'ella ; a ele


vação e collocação d'aquelles incomportaveis pezos, e a primo
rosa estampa que successivamente manifestou ao publico os

10 magnifico retrato do marquez no tamanho natural, que a casa possue,


prova sufficientemente o impulso que as artes receberam . Ao lado representou
o pintor o embarque dos jesuitas em Belem , e um sorriso de satisfação se divisa
no rosto de Pombal apontando n’aquella direcção. Foi d’este quadro que se ti
rou uma bella gravura completa tendo na parte inferior a seguinte inscripção :
Sebastiano Josepho Carvalio Melio MarchioniPombalio . Maximianimi, et con
silii Viro ob Regis auctoritatem , Lusitani Populi felicitatem auctam , Rempublicam
temporibus difficillimis bene ac fortiter gestam , atque optimis legibus constitu
tam , David Purry et Gerardus de Visme, grati laetique hanc effigiem exprimi
curarunt. Ex autographo pedes septem et pollices sex alto , ac es novem et
pollices sex Parisienses lato, quod Henrico Josepho Carvalio Melio Comiti Oey
rensi Filio dicarunt. Olisipone MDCCLXXII .
Na invasão dos francezes já este quadro estava a bordo para ser transportado
para o Louvre, mas foi felizmente retomado.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 253

merecimentos d'aquellas difficillimas obras, todas feitas por


mãos dos portuguezes, mostraram bem vivamente aos estran
geiros, que nenhuma inveja podem causar a Portugal, nem os
seus dezenhadores, nem os seus pintores,nem os seus mais fa
migerados fundidores, nem os seus mais peritos, e habeis ma
quinistas.
« 6. É
o quarto principio, o do estado de Filosophia ou
das bellas letras, que servem de base a todas as sciencias, e á
multidão de prosas e de poesias, que appareceram na mesa cen
soria , compostas nas linguas portugueza, latina , grega , he
braica , e arabica, com pureza de estilo e elegancia dos secu
los dos Demosthenes, dos Homeros, dos Tulios, dos Virgilios,
e dos Horacios em Roma; e dos Teives, Andrades,Gouveas, Re
sendes , Barros, Camões, e Bernardes em Portugal. Tambem
fizeram ver demonstrativamente que estes estudos preparato
rios se não acharam mais florecentes ao tempo da invasão dos
jesuitas, do, que hoje se acham .
« 7. É o quinto principio o estado das scienciasmaiores ,
e a restauração da Universidade de Coimbra , pelo estabeleci
mento do seu opulento e perduravel patrimonio ; pelo outro es
tabelecimento de tantos e tão magnificos edificios : pelo outro
estabelecimnto de tantos e tão eruditos professores de todas as
sciencias, e dos estimulos para animar os d'aquelles , cujos es
tudos são mais arduos e mais escabrosos ; pelo outro estabele
cimento das sacrosantas leis, que abolindo os expurgatorios
Romano -Jesuiticos, fecharam aos livros perniciosos as por
tas, que abriram aos de saã , e util erudição, e encheram estes
reinos de clarissimas luzes, em que hoje abundam ; e pelo outro
estabelecimento da importantissima mesa censoria , que com
incansavel desvelo vigia continuamente sobre a exacta execu
ção das referidas leis em commum beneficio . Todos estes esta
belecimentos constituem outros tantos testemunhos authenticos ,
não só dos rapidos progressos , que todas as referidas sciencias
tem feito n’este reino e seus dominios, mas tambem da justiça
com que todas as universidades da Europa estão olhando com
admiração para a de Coimbra , e com que Portugal levantou
um tão excelso monumento ao seu augusto restaurador, para
perpetuar o seu illimitado reconhecimento até o fim do mundo.
254 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

« 8. É o sexto principio, o do estado do commercio in


terior. E observando -se por uma parte, que tudo quanto se
tem manifestado nas ruas, nas praças, e nas janellas de Lis
boa foram productos dasmanufacturas das lojas dos mercado
res nacionaes, e dos trabalhos de artifices portuguezes ; obser
vando -se pela outra parte, que as fabricas, e as lojas se des
pejaram inteiramente, até lhes não ficar cousa alguma que po
dessem vender: que todos os artifices não bastaram para sup
prirem os trabalhos de que foram encarregados, sendo o nu
mero d'elles presentemente tal e tão extraordinario , como nunca
o foi: e observando -se pela outra parte a importancia de ca
bedaes que por todas as referidas vendas, e obras de mãos gi
que por

raram dentro em Lisboa pelas mãos dos habitantes d’esta po


pulosa capital; logo se comprehende o grande numero de mi
lhões que em si contem o mesmo commercio interior !
9. É o setimo principio, o estado do commercio exter
no . E reflectindo -se tambem por uma parte no grande numero
de milhões que tem entrado em Portugal por diamantes que
até o anno de 1753 não tinham extracção nem consummo : por
outra parte os assucares, até ao ponto de faltar na alfandega
para o consummo do reino este importantissimo genero , que
até o dia 27 de janeiro de 1751 empachava todos os arma
zens sem haver ja na cidade alguns em que se recolhesse. Por
outra parte o outro tambem importantissimo genero do tabaco ,
que até o regimento de 16 de janeiro de 1751 se achava igual
mente inutil, e a fazenda real condemnada em 4 : 000 cruza
dos, para a queima d'elle. Por outra parte no sal, que se achava
quasi aniquilado , em quanto S. M. não deu as providencias
que trouxeram e trazem sómente ao porto de Setubalmais de
300 navios de carga cada anno. Por outra parte em vinhos,
que somente do Douro fazem o giro de mais de 4 milhões an
nualmente. Por outra parte em fructas de espinho , que a fre
quencia dos navios estrangeiros faz extrahir , de sorte, que só
mente, em Cintra ,Collares, qualquer pomar de limão se reputa
uma mina de oiro. Por outra parte em cacau, café, arroz, al
godão , gengibre, cravo grosso e fino , e outros muitos generos
do Pará e Maranhão , de que antes das providencias de S. M.
não tiravam algum proveito os vassallos do dito senhor . Pela
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 255

outra parte em Pau Brazil, e nos outros diversos, que tanto


aproveitam para as tinturarias, e nas urzellas, de que se tem
tirado tanta utilidade. E pela outra parte na novissima, e uti
lissima restituição do commercio da Azia aos vassallos do dito
senhor, que com as suas inexhauriveis providencias abriu aos
seus vassallos, sem sujeição ao monopolio de uma companhia
e sem o desembolço da moeda nacional, da que antes nos pri
vavam as náos, que iam a.Goa, e o abrio e franqueou de tal
sorte, que n’este ultimo anno despachou Portugal para o oriente
11 navios, quando para elle Inglaterra não mandoumais de que
13: de sorte que de tudo o referido vim concluir por uma de
monstrativa consequencia , que S. M. tem feito o seu commer
cio externo mais feliz e opulento do que foi n'aquelle seculo dos
senhores reis D. Manuel e D. João III, porque as drogas da
India que os dois referidos monarchas tiveram em monopolio
no seu seculo , quando o Brazil lhes não produzia cousa algu
ma que fosse significante, se acham com muitas vantagens ex

cedidas pelas referidas preciosissimas producções da America,


que são proprias do reino , quando ao mesmo tempo lhe não
faltam as da Azia , quando hoje se acham divididas por todas
as nações da Europa .
« 10. É o oitavo principio, o da sociedade entre os dif
ferentes estados, e entre as ordens, classes, e gremios d'elles :
e agora se tem manifestado a harmonia e consonancia , em que
se viram concordes a primeira nobresa com a civil, e ambas
com a plebe, sem que no concurso de todos houvesse em tan
tos e tão numerosos ajuntamentos a mais leve alteração . O
mais foi porem concorrerem na praça mais de 150 :000 pes
soas de infima especie do povo miudo em confusão e aperto
sem que se ouvisse soar uma só voz de queixa ou clamor: e
sem que se visse atrever -se qualquer pessoa do sexo masculino
a attentar, nem levemente, contra a modestia de qualquer ou
tra pessoa do sexo feminino por palavras, ou obras, nem ainda
d'aquelles , que a galanteria tolerava ha bem poucos annos nas
portas e nos concursos das Egrejas.
« 11. É o nono principio , o estado da opulencia dos vas
sallos : e todos os estrangeiros que viram com a devida refle
xão concorrerem ao mesmo tempo por uma parte os muitos
256 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

milhões que tem custado , e valem os edificios publicos , e par


ticulares de Lisboa , levantados dentro em tão poucos annos
sobre as funestas ruinas do horroroso terremoto do 1.° de no
vembro de 1755. Que viram por outra parte formar dentro em
menos de 6 mezes, uma tão magnifica praça , que excede na
grandeza e formosura , a todas as que conhece a Europa , com
tantas e tão importantes despezas de materiaes, e de jornalei
ros, pagos para trabalharem de dia-e de noite. Que viram eri
gir no centro da mesma praça um tão custoso, e nunca até ago
ra visto collosso. Que viram o senado da camara dar ao publico
não só umas tão custosas, e magnificas assembleas, em um sa
lão tão amplo e tão rico , e primorosamente guarnecido, qual
nunca tinham visto os viventes ; mas tambem uma igualmente
magnifica cea , em outro salão soberbo , e decorado com ex
quisito gosto , e extraordinario custo , com ornamentos feitos
somente para aquella funcção , sem que possam ser de uso para
outra alguma que se intente fazer : sendo a mesa servida com
grande exactidão e delicadeza de pratos para400 pessoas , com
copiossima baixella de prata nacional, sem entrar nem uma só
peça de estrangeiros ; que viram as casas da junta do commer
cio tambem preciosamente ornadas, e n'ellas outra abundante
baixella de prata e allumiada com grande numero de castiçaes
e serpentinas do mesmo precioso metal: que viram outra res
pectiva superabundancia d'elle em todos os tribunaes da corte
em castiçaes, salvas, bandejas, e todas as mais peças com que
foram servidos os seus respectivos refrescos ; que viram a casa
dos vinte e quatro , ou dos gremios das artes fabris, fazer as
mesmas apparatosas despezas em ornamentos de casas, comi
das, e serviços de prata ; que viram redundar a mesma abun
dancia de pratas, e refrescos em todas as casas dos negocian
tes portuguezes , e até nas dos habitantes das ruas da passa
gem de uma tão augusta funcção ; que viram o mesmo juiz do
povo , e os seus deputados pôrem aos olhos do publico , á sua
propria custa, e espontaneamente em signaes de amor e de re
conhecimento ao seu augusto bemfeitor, 7 carros triumfantes
allegoricos, tão bem entendidos , como dispendiosos: que viram
não só as janellas da primeira nobreza , e todas as varandas da
nobreza civil, em um até agora desconhecido numero, cheias
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 257

de custosissimas galas, e de importantissimos diamantes, e pe


dras preciosas ; que viram outro respectivo e extraordinario nu
mero de carruagens novas, e de bom gosto , que as ruas da ci
dade sendo tão amplas, não poderam conter em si, fazendo -se
preciso mandal-as accommodar em distancias remotas: que vi
ram o sexo masculino á mesma imitação ricamente vestido e
ornado, desde os individuos da primeira nobreza até aos da
ultima plebe . Todos os estrangeiros , que viram , digo, com a
devida reflexão aquelle completo de riquezas, que concorreram
ao mesmo tempo em uma tão augusta funcção , não poderão
deixar de ficar convencidos de que a capital, e o reino se acham
constituidos na propriedade da maior opulencia.
« A união , e complexo das nove observações que deixo
indicadas, vieram pois constituir-me na plausivel certeza , de
que os effeitos d’ellas não podem deixar de ter causado nos
estrangeiros, que presenciaram uma tão magnifica funcção , os
effeitos seguintes.
« Primeiro effeito. As nações que com arrogancia , vanglo
ria , e superioridade olhavam antes para a portugueza como bi
zonha , rude, inerte, e destituida de todos os elementos, e prin
cipios das artes fabris , e liberaes, e dos verdadeiros conheci
mentos das sciencias maiores, acabaram agora de ter o ultimo
desengano , de que a respeito das primeiras, nos achamos com
elles igualados, e a respeito das segundas excedemos a maior
parte d'ellas, como os italianos, e francezes não tem ja feito
ceremonia de confessar muitas, e repetidas vezes, respeitando,
e imitando as leis e resoluções de S. M. pedindo , e invejando
os estatutos da Universidade de Coimbra , e encommendando
aos seus correspondentes em Lisboa a remessa de todos os es
criptos que se tem publicado, e publicarem n'este glorioso rei
nado : até por esses mesmos estrangeiros cognominado felicis
simo.

« Segundo effeito . O desprezo que as mesmas nações faziam


do nosso commercio interior, e externo, tambem acabou agora ,
não só de cessar, mas de se converter em outro incentivo da
sua emulação : porque depois de terem visto , que em nenhuma
Côrte da Europa se ensinou até agora o mesmo commercio por
principio, em uma escola politica e magnifica , de que sahem
VOLUME I 18
258 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

300 negociantes peritos, e habeis no fim de cada triennio , vi


ram agora ocularmente por uma demonstração fisica , c inne
gavel , consummados os progressos que a referida aula tem
til .
feito na propriedade brilhante do corpo mercan que encheo
de luzimento a praça real do commercio, e ruas de Lisboa .
« Terceiro effeito . Havendo sempre tido as referidas nações
a Portugueza por barbara , feroz , e insociavel, ellas agora com
assombro descobrem seu erro , e se acham não sómente egua
ladas, mas até excedidas. É notorio , que na corte de Londres .
commette a plebe , a cada passo , frequentes desordens que to
dos sabemos , logo que se ajunta em numero de trez a quatro
mil individuos. Em Pariz vimos ha pouco tempo , que as fes
tas do cazamento do conde de Provença causaram mais de
300 mortes desastradas, entre os disturbios da referida plebe.
Pelo que, todos os estrangeiros bem informados não podem dei
xar de confessar que estamos muito mais sociaveis do que el
les, tendo visto por uma parte todas classes superiores em Lis
boa unidas na mais perfeita harmonia, e mutua boa vontade
nas ultimas festas e reuniões : E tendo visto pela outra parte
mais de 150 :000 pessoas de ambos os sexos da infima plebe,
e especie do povo miudo em confusão e aperto na praça real
do commercio , por tardes, e por noites inteiras com a mesma
tranquillidade, e silencio , com que poderiam estar em uma
igreja fazendo oração : tratando-se aquelles numerosos indivi
duos, uns aos outros como se fossem outros tantos irmãos, e
unindo -se todos ao fim de concorrerem , quanto n’elles esteve,
para as demonstrações de amor, e de reconhecimento com
que viam applaudir a inauguração da real estatua de S. M.,
facto que não teve até agora exemplo , nem terá nas outras na
ções facil imitação.
« Quarto effeito . Persuadiam -se as mesmas nações, de que
entre ellas tudo era abundancia , e em Portugal tudo pobresa ,
quando não ha quem ignore, que a Inglaterra está implicada
com a horrorosa divida de mais de 1 : 300 milhões de cruza
dos ; e que em França, depois de se exhaurirem o Real Erario ,
e o credito publico , se fundiram as baixellas de prata da côrte,
e dos particulares, e se passou ao excesso de se demolirem pa
lacios reaes para se venderem os materiaes, e ornamentos d'el
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 259

les. E a profusão , e redundancia quemanifestou a dita magni


fica funcção de joias, baixellas, vestidos, carruagens, mezas, e
desembolços de moeda corrente , fizeram tambem mudar tanto
de parecer aos mesmos estrangeiros , que publicamente confes
sam , que nunca haviam entendido que Portugal em tão poucos
annos houvesse accumulado riquesas tão superiores á sua com
prehensão .
« Quinto effeito . Quando a consistencia do governo da maior
parte das cortes da Europa se acha enervada e enfraquecida ,
ou com discordias, e diversões intestinas, como está succedendo
em França , e Inglaterra , ou com sedições clandestinas e siza
nias brotadas pelas venenosas raizes jesuiticas, que não pode
ram arrancar até agora, como está succedendo em Hespanha ,
Saboya, Roma, e grande parte de Italia, e Allemanha ; depois
de terem visto os estrangeiros pelo contrario que em todo o Por
tugal e seus dominios não soam outras rasões que não sejam
as que baixam do real throno de S. M. que d'elle são ouvidas
com summa reverencia , por se acharem os vassallos do mesmo
senhor constituidos na firmissima fé, de que elle só resolve e
determina o que é mais util aos seus vassallos, e de que a to
dos os ama e ampara como a filhos , e não como a subditos ;
acabou de ver agora , que antes de amanhecer o dia em que se
devia pôr em movimento a quasi incomportavel estatua eques
tre para se transportar, appareceram na casa de fundição, o
juiz do povo , e todos os mais consideraveis artifices dos seus
24 gremios vestidos de gala, para serem elles os que preferis
sem , como preferiram , no transporte , levando a mesma estatua ,
como em triumpho , tirada pelos fortissimos calabres que o pezo
della fez precizos. Que assim continuaram pelos 4 dias que
esteve no caminho a mesma estatua . Que na collocação d'ella
distribuio dinheiro aos soldados das guardas, e pipas de vinho ,
e carradas de comestiveis aos trabalhadores. Que nos dias das
festas da inauguração, teve nas casas, em que se fazem as suas
sessões, assembléa publica , e mezas abundantes e delicadas ,
para todas as pessoas dos referidos gremios, exultando á mes
ma imitação toda a universidade de gente do povo miudo de
Lisboa sem que houvesse n’elle individuo em cujo semblante
se não vissem os signaes da maior alegria , e do maior amor
260 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

ao seu clementissimo e benignissimo monarcha . De tudo o re


ferido vimos a tirar por claras consequencias , que a estimação
nacional está inteiramente restabelecida ; que o credito publico
se acha consolidado ; que o conceito commum das forças politi
cas , de que depende conservação das militares de El-Rei meu
Senhor confirmará agora muito mais os alliados na amizade, e
união de S. M. e reportará os seus sempre figurados inimi
gos, vendo por uma parte, que um rei de vassallos taes, que
só por amor , e reconhecimento , dispendem voluntariamente
tantos cabedaes para o applaudirem , sacrificarão facilmente to
dos os que lhes restam á necessidade da sua defeza se o virem
atacado. E vendo pela outra parte o bom estado das tropas, e
da marinha, e que não faltam para o dito senhor as manter e
augmentar quando fôr necessario .
«Devo ultimamente protestar que não foi a vaidade que
nunca tive , a que me deu motivo para escrever estas observa
ções ; porque na prosperidade do reino que ellas manifestam ,
e no gloriosissimo governo a que ellas se devem , reconheço
que não tive algum merecimento , mas sim , e tão somente a in
comparavel fortuna de S. M. haver confiado na minha fideli
dade , zelo, e amor ao seu real serviço , a execução das suas
illuminadas, e providentes resoluções e ordens, sendo aliás o
meu unico objecto deixal-as escriptas aosmeus successores para
recommendação do exactissimo cuidado com que devem con
servar tudo o que o dito senhor tem estabelecido no seu feli
cissimo reinado ; porque em quanto se governarem pelos mes
mos principios e pelas mesmas maximas, é certo que terão
sempre os mesmos felicissimos successos, fugindo ás novidades
com que ordinariamente costumam , os que entram de novo,
querer emendar o que está bem ,para que esteja melhor, quando
a experiencia tem mostrado , que semelhantes novadores, em
logar de conseguirem o que cuidam que é melhor, arruinam
assim o que estava bem , com irreparaveis ruinas da coroa , a
que servem , e dos vassallos d'ella .
CAPITULO XXII

Continuam as disputas entre Hespanha e Portugal. Os hespanhoes conservam


ainda o Rio Grande. Opiniões politicas de Pombal. A Inglaterra offerece
sua mediação. Disturbios em Madrid . Por causa d'estes cessam as hos
tilidades entre Hespanha e Portugal. Renovam se estas em 1774. Os hes
panhoes attacam os portuguezes e são derrotados. Tropas enviadas de Por
tugal para a America do Sul. Confiança de Pombal nos recursos do paiz.
Carta de Pombal a mnr. Walpole. A Inglaterra offerece sua intervenção .
Pombal insiste em que seja executado o tratado de 1763. E queixa-se de
que o governo inglez está enganado pelas declarações de mr. Grimaldi. A
Inglaterra não mostra desejos de fazer guerra á Hespanha . Sentimentos de
Pombal. Propoe um congresso em Paris. É elogiado por lord, Weymouth e
mr. Walpole. Continuam as hostilidades na America do Sul. É concluida fi
nalmente a paz . Appendice. Extracto d'um despacho existente na Secretaria
dos Negocios estrangeiros.

Sem embargo das estipulações do tratado de 1763 , que


poz termo a todos os pontos de discordia entre Portugal e Hes
panha, o governador hespanhol de Buenos Ayres continuou
ainda na posse d'algum territorio portuguez na America meri
dional, pretextando que estava situado no lado pertencente á
Hespanha indicado pela linha de demarcação traçada pelo pa
pa Alexandre VI : e, sem embargo tambem de todos os antigos
tratados terem sido confirmados pelo de 1763, não queria este
262 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

governador conformar-se com elles, sustentando que logo que


tinham sido feitos antes da guerra, esta os extinguira.
Quando em Lisboa se soube a morte de Gomes Freire de

Andrade, conde de Bobadella e governador do Rio de Janeiro,


disse Pombal a mr. Hay que a causa da sua morte foi o pro
fundo pesar
que sentiu por ver a vergonhosa deserção da Co
lonia do Sacramento, ou nova colonia, feita pelo governador.
Este territorio foi entregue pelos hespanhoes, mas a provincia
do Rio Grande ficou ainda em poder do general hespanhol D.
Pedro de Cevallos.

Não tardou muito que as aggressões dos hespanhoes na


America do Sul se tornassem o objecto de serios cuidados pa
ra Pombal, e de frequentes conferencias com o ministro brita
nico . É n’uma d’estas, referida pelo ministro inglez , que encon
tramos as opiniões politicas de Pombal um tanto desenvolvi
das.
« Em 21 de fevereiro de 1765. Tive hontem uma larga
conferencia a este respeito com o Conde d'Oeyras, que começou
por fallar-me do antigo projecto de desligarem Portugal da Gran
Bretanha , delineado desde o reinado de Luiz XIV , pela casa
de Bourbon , continuado depois pelo cardeal Fleury, e ultima
mente manifesto pelo «Pacte de Famille.» Em seguida passou
a dizer -me que se havia iniciado muito no systema actual dos
negocios politicos da Europa , por meio d'uma negociação en
tabolada com a córte de Vienna para a profundar sobre a dis
posição em que se achava relativamente ao casamento do rei
de Roma com a princesa de Portugal. Que o fim principal com
que este casamento era intentado, era fazer que a corte de Vien
na voltasse ao antigo systema d'alliança com a Gran Bretanha
e Portugal; mas viram que a imperatriz mãe era inaccessivel.
Que a declaração formal, que o conde de Seilern fizera á Gran
Bretanha, de que a sua corte não adherira ao Pacto de Fami
lia , era absolutamente falsa. Colligada d'este modo a casa d'Aus
tria com a de Bourbon , nada havia que lucrar com o casamento
d'uma princesa de Portugal com o rei de Roma, além d'alguns
dispendios, que a empobreceriam . Que a côrte de França e a
de Hespanha constrangeram a imperatriz mãe a optar pela Sa
xonia ou Baviera na escolha d’uma princesa, mas que sendo a
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 263

da Saxonia de tal modo feia, que o rei de Roma não queria ou


vir fallar n’ella , caiu por isso a escolha na da Baviera. Deplo
rou muito a situação da casa d'Austria , imputando toda a cul
pa aos conselheiros da imperatriz , sendo um d'elles o conde de
Caumitz , que, disse elle, era primo de sua mulher, e procuran
do provar que a presente alliança da França e Hespanha com
a referida casa faria que esta estivesse sujeita a maiores per
das, do que quando aquellas eram suas inimigas. Sendo porém
uma das condições do Pacto de Familia que os pactuantes de
vem partilhar as acquisições que houverem de fazer-se, o con
de parece firmemente persuadido de que a promessa feita á
corte de Vienna é a conquista dos Estados Confederados, que
então hão de annexar-se aos Paizes Baixos da Austria ; de que
a França e a Hespanha, incansaveis na fortificação dos seus por
tos da America , embarcam continuamente grandes troços de
tropa na Galliza para as Indias Occidentaes hespanholas ; de
que os francezes tem um grande corpo militar em Cayenna, e
que estando os hespanhoes presentemente na posse absoluta do
Rio da Prata , em quanto conservarem o Rio Grande de S. Pe
dro, governam necessariamente toda a costa meridional da Ame
rica até o Rio de Janeiro , podendo por consequencia introdu
zir-se nas terras limitrophes do Brasil, quando lhes convenha.
Que é portanto evidentissimo, que a intenção da França e da
Hespanha é não só attacarem Portugal, mas invadirem tambem
os dominios de S. M. F. na America , entrando os hespanhoes
pelo sul, e os francezes por Cayenna e pelo Cabo do Norte .
O conde passou depois a dizer que sendo este plano muito vas

to, nem a França nem a Hespanha estavam ainda preparadas


para pol-o em execução ; e por conseguinte o que actualmente
mais temem , é que a corte de Londres chegue a alliar-se com
as de S. Petersburgo, Berlim e Varsovia. Ora, em face da pre
sente situação da Gran Bretanha , S. M. Britannica póde, diri
gindo uma energica representação á corte de Madrid, conseguir
que ella mande restituir as colonias portuguezas, que os hes
panhoes tem retido em seu poder, impor- lhe a necessidade de
cumprir todas as clausulas do tratado de Paris, e mostrar- lhe
as consequencias que hão de necessariamente resultar do con
trario, que é uma guerra geral na Europa. Afinal affirmou que
264 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

uma nota n’estes termos, e feita na epoca presente pelo embai


xador britannico , havia produzir o effeito desejado, e que , se a
deferissem , prolongar-se-ia a negociação entre as côrtes de Por
tugal e Hespanha até o tempo de pôrem remate aos designios
das cortes de Madrid e Paris . »

A Inglaterra , em vista d'estas representações, offereceu a


sua mediação entre as duas coroas na esperança de conseguir
um accordo amigavel sobre as divergencias a que ella, por um
dever imperioso e por tratado , estava obrigada a pôr termo.
Ora , deu - se a este tempo um caso, que fez esperar, pelos bons
sentimentos que Portugal patenteou , uma reconciliação e um
concerto em todos os pontos de discordia . Tendo -se suscitado
serios disturbios em Madrid em 1766 por causa de certas re
gulações policiaes relativas ao uso dos chapeos d'abas grandes,
expediu Pombal immediatamente um expresso a S. M. Catho
lica offerecendo-lhe todo o auxilio ,de que precisasse para re

primir os insurgentes, e mandou que o exercito, que se achava


na fronteira, se preparasse para marchar em soccorro do rei de
Hespanha , se este o requisitasse. Pombal, com a demonstração
d'estes sentimentos d'amisade, esperou conseguir brevemente
um concerto amigavel com a corte de Hespanha . Finalmente,
depois d'algumas negociações, concordou -se de facto em que
ambas as nações expediriam ordens aos seus respectivos gover
nadores na America para que suspendessem as hostilidades, e
repozessem as cousas no estado , em que estavam em 28 de
maio de 1767, dia em que n'isto se concertou .
Tal era o estado dos negocios relativos ás colonias até
1774 , anno em que a Europa chegavam noticias de que cer
tas pendencias se tinham suscitado entre os portuguezes e hes
panhoes nas possessões da America . E d'um despacho de mr.
Walpole , de 4 de junho do referido anno, que colhemos o se
guinte: « Quinta feira fallei com o Marquez de Pombal sobre
os ultimos boatos, que correm acerca das hostilidades , que os
hespanhoes praticaram ou quizeram praticar no Brasil, e per
guntei -lhe se descobria na corte de Hespanha alguma intenção
hostil: ao que elle respondeu que não percebe que n'aquella
parte intentem a guerra, mas que, se o governo hespanhol nu
trir taes idéas, lhe parece que terá de arrepender -se, porque o
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 265

Rio de Janeiro tem mais do que sufficientes provisões de todo


o necessario , não tendo por isso Portugal nada que receiar por
esse lado.

Bem pouco tempo tinha decorrido, depois que teve logar


esta conferencia , quando logo chegou a Lisboa uma participa
ção da America informando o governo, de que o governador
hespanhol fizera uma proclamação no Rio Pardo , em que decla
rava que todo aquelle territorio pertencia á Hespanha , ficando
por isso todos os portuguezes que ali se achassem considera
dos como intrusos e violadores. Além disso , para ainda se ag
gravar mais a causa de discordia entre as duas nações, parti
ciparam tambem que os hespanhoes tinham tomado dous na
vios portuguezes no Rio Grande de S. Pedro, e que, tendo-os
o governador da referida provincia reclamado, o de Buenos
Ayres, não só os não restituira , mas marchara logo para os es
tabelecimentos portuguezes do Rio Pardo com uma força con
sideravel, proveniente dos contingentes de Buenos Ayres, Mon
tevideo e Maldonado , a qual, reunida á gente que recrutou no
caminho , subia a seis mil homens ; e, ao mesmo tempo que
executava estas manobras, tinha mandado ao commandante,
que estava em Corrientes, que avançasse com um corpo for
mado da gente tirada das varias povoações das terras do Rio
Pardo. Em vista d'estes movimentos parece que o plano con
sistia em o commandante atacar os portuguezes no Rio Pardo
por um lado , ao mesmo tempo que o governador de Buenos
Ayres fazia outro tanto pelo outro . Porém , como o governador
portuguez fosse avisado a tempo das manobras dos hespanhoes,
e como soubesse que elles as tinham começado atacando e to
mando um pequeno posto formado por alguns soldados e pai
zanos, poz -se immediatamente em movimento, e marchou com
um destacamento muito inferior ás forças hespanholas de Cor
rientes, composto, segundo se presumiu , de seis ou setecentos
homens. Teve por consequencia logar um combate , a 3 de ja
neiro de 1774 , entre os dous partidos, proximo do rio Pigui
ri, em que os hespanhoes foram derrotados com muitos mortos
e feridos, e ficando muitos prisioneiros, incluindo o comman
dante e um capitão, em poder dos portuguezes, além de 1010
cavallos, 300 mulas e muitas munições. Em poder do com
266 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

mandante foram encontradas as instrucções, que o governador


de Buenos Ayres lhe mandara , concebidas n'um estylo proprio
d'um inimigo deshumano. No dia immediato ao referido houve
outra acção , em que os hespanhoes tambem ficaram derrotados.
Logo que em Lisboa houve noticia d'estes acontecimentos ,
mandaram -se dous vasos de guerra para o cruzeiro , sendo um
de quarenta e quatro bocas de fogo e o outro de sessenta e
quatro, e varios navios de pequena lotação com
tropa para ser
reforçada a que existia na America do Sul, que se compunha
de tres regimentos europeus, dous regimentos regulares de in
digenas, e da cavallaria , artilheria e milicia provisoria do paiz,
forças estas, cuja totalidade se calculava em seis a sete mil ho
mens effectivos.
Pelo tempo , em que se deram estes factos, disse Pombal ao
ministro inglez, que não era intenção do governo de Portugal
imputar ao de Hespanha a culpa do que succedera , mas sim
ao insolito procedimento do governador de Buenos Ayres: pois
não queria admittir a idea de que o rei de Hespanha mandas
se aos seus officiaes militares obrar d'um modo tão hostil em
tempo de profunda paz, e que portanto Portugal nada mais ti
nha a fazer que repellir os hespanhoes.
Accrescentou , porém , que, se a Hespanha tivesse guerra
com Portugal na Europa, lhe parecia que o estado do paiz em
quanto ás suas forças era tão lisongeiro , que o muito que re
quisitaria d'Inglaterra seriam seis mil homens, conforme as es
tipulações do tratado, e talvez alguns officiaes experientes para
operarem debaixo do commando do marechal conde de Lippe,
a quem S. M. immediatamente mandaria vir , e que além d'isso
el-rei podia em pouco tempo reunir quarenta mil homens. Isto
prova que Portugal se achava então n'uma situação muito dif
ferente da de 1762.

Como o fim do governo portuguez n'esta epoca fosse indu


zir a Inglaterra a interessar-se na luta, que se approximava ,
foram entregues ao ministro britannico varios documentos para
provar a perfidia dos hespanhoes, e a injustiça das suas exi
gencias. Estes documentos eram acompanhados da seguinte
carta de Pombal:
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 267

Belem , 18 de junho de 1774 .


Incluso achareis o summario das infracções , violencias e
usurpações praticadas pelos hespanhoes na Parte Meridional
do Brasil, que fazem o objecto do armamento e da expedição,
que a corte de Madrid se apressa em fazer sair do Ferrol com
a maior promptidão.
Não se hesita aqui um só momento em acreditar que a con
frontação do mesmo summario com as outras duas peças, que
tive a honra de remetter - vos ultimamente, não façam muito cla
ramente vêr a S. M., o rei da Grã - Bretanha , e a seu digno mi
nisterio , d’um lado a indignação , com a qual se deve olhar o
dito plano de perfidia e de crueldade, em que os hespanhoes
sempre proseguiram sem interrupção desde o Tractado de Paz
de 1o de fevereiro de 1763 até agora para se apoderarem de
toda a America Meridional Portugueza ; do outro lado o inte
resse reciproco, que ha, tanto em destruir o mesmo plano de
iniquidade e de insolencia , como em anniquilar completamente
os meios, que se pretendem empregar para o sustentar em des
peito d’uma Alliança tão respeitavel como a que subsiste tão
felizmente entre nossos augustos soberanos : e por outra parte
quanto é necessario obviar (em quanto o tempo permitte ) ao
engrandecimento no Ferrol d'uma marinha hespanhola , cujo co
meço torna já assaz intoleravel uma nação por sua indole or
gulhosa, e ainda mais soberba e mais cubiçosa não só pela sua
intima união com a França , mas tambem pela facilidade que
julga haver para fazer passar os navios de Marseille e de Tou
lon para Brest e St. Maló , com o fim de por esta forma fechar
a bahia de Biscaia , e dominar por este meio em todo o Ocea
no Atlantico .
É sobre isto que vossa corte deve reflectir com suas luzes
bem claras, e com a illustração de seu discernimento, que exi
ge tanto maior precaução, quanto a corte de Paris começou seu
novo governo por chamar para seu ministerio conselheiros ha
beis .
Pelo que diz respeito á informação das medidas tomadas
pelo rei para defender por terra no Brasil com a causa com
mum seus proprios estados, reporto -me ao que vos confiei ul
timamente por ordem do rei, sem a menor reserva. S. M.con
268 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

fia em tudo quanto diz respeito ao mar na grande superiorida


de das forças navaes de S. M. Britannica . E tem motivos suf

ficientes para esperar que a cubiça , perfidia e iniquidade terão


de se arrepender abysmadas na maior vergonha .
Tenho a honra de ser com a mais perfeita consideração

Vosso humillissimo e obedientissimo servo

Marquez de Pombal.

Ao sr . Roberto Walpole, Enviado Extraordinario e Plenipo


tenciario de S. M. o Rei da Grã - Bretanha .

Em vista d'esta carta prometteu S. M. Britannica empenhar


se com a corte de Madrid , para o que foram expedidas instruc
ções a lord Grantham , então embaixador em Madrid . Comtudo

o governo inglez evitou entrar em quaesquer compromissos com


Portugal, os quaes, conforme foi declarado, ficariam dependen
tes das circumstancias particulares que se suscitassem .
Pombal confessou que bem pouco esperava d'este bom em

penho ; por quanto não se devia esquecer que a Hespanha , quan


do concebia algum plano contra Inglaterra , se portava com a
mais affectada amisade para com Portugal, como succedeu por
occasião de executar os seus designios relativos ás ilhas Fal
kland ; e, ainda mais , que não duvidava que a corte de Madrid,
entretanto que aggredia Portugal, desejasse conservar as me
lhores relações com a Inglaterra .
Pombal, confiando pouco no resultado de negociações e do
bom empenho , continuava a insistir no cumprimento do trata
do de 1763, e sustentava que os hespanhoes augmentavam
constantemente as suas forças na America . Sentiu que os mi
nistros inglezes se dessem por satisfeitos com as declarações
do marquez de Grimaldi, que já os tinha illudido ; e disse que
pouco seria preciso para se ver se, o que Grimaldi dissera das
forças embarcadas para Buenos Ayres, era ou não verdade; e
que, se os hespanhoes tornassem a atacar os portuguezes, fa
ria que S. M. F. pedisse auxilio á Gran Bretanha em virtude
do tratado de 1703.
Fazemos aqui uma breve interrupção para de passagem
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 269

transcrevermos o que mr. Walpole n'um despacho de 24 de


janeiro de 1776, expõe acerca do juiso que Pombal formava
sobre o caracter e principios do marquez de Grimaldi: « O Mar
quez de Pombal diz que tendo -se a corte de Hespanha inquie
tado, por fallecimento do ultimo pontifice, por causa da eleição
do que havia de succeder -lhe, recorreu a esta corte para que,

concorrendo na causa commum , obstasse a que elegessem al


gum que fosse odioso e perigoso . Esta corte seguindo os seus
immutaveis sentimentos no que respeita ao absurdo de ser elei
to um pontifice em despeito dos monarchas catholicos, ordenou
ao seu enviado em Roma, que representasse ao conclave que,
se não elegessem um papa isento de quaesquer propensões des
favoraveis , ver -se -hia na necessidade de manifestar as instruc
ções particulares, que já recebera do seu governo. Esta lingua
gem firme e positiva perturbou o conclave , fazendo que sus
pendesse a eleição : porém , apesar d’isso , dividiu -se em dous
partidos , um de realistas e outro de zelantes , o que o Marquez
de Pombal tomou por um insulto feito a todos os soberanos
catholicos. Ora , o marquez de Grimaldi ordenou ao enviado
hespanhol em Roma que , por intermedio do cardeal Pallavici
ni, sobrinho do mesmo Grimaldi, reconciliasse os partidos, do
que resultou a eleição do actual pontifice: e d'aqui vem porque
o marquez deGrimaldi tem sacrificado os interesses do seu so
berano aos jesuitas, não tendo havido nunca jesuita mais affer
rado do que o referido pontifice , que tem posto em liberdade
individuos que estavam presos pelo seu criminoso procedimen
to contra Hespanha e Portugal, e que até teria estendido a
mesma graça ao fallecido geral dos jesuitas, se este tivesse vi
vido algum tempo mais .»
Em vista pois de todas as negociações que vimos, parece
quo os ministros inglezes não tinham vontade de envolver-se
n’uma questão com a Hespanha pelo motivo de assegurarem a
Portugal a posse das suas colonias, e por isso recommendavam
medidas de reconciliação com a corte de Madrid . Porém , ven
do Pombal que o seu paiz era insultado, replicou que a re
putação era o espirito vivificante de todas as monarchias; e que
apesar de S. M. desejar muito a paz, não lhe ficava bem orde
nar ao seu embaixador que, n'uma côrte donde recebera tão
270 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

publicas e inauditas offensas, procedesse com humiliação, o


que podiam tomar por supplicas.
Comtudo estas difficuldades foram vencidas pouco depois,
e ambos os governos concordaram em mandar instrucções aos
seus respectivos governadores da America meridional para que
suspendessem as hostilidades. E Pombal, para pôr termo a es
tas prolongadas negociações, propoz um congresso em Paris.
Os sentimentos nobres que Pombal mostrou por esta oc
casião, fizeram que as partes déssem o seu unanime asssenti
mento ; e o seguinte extracto d’um officio de lord Weymouth a
mr. Walpole, confirmará a verdade d'esta asserção .
«Em 18 de fevereiro de 1776 , S. M. Britanica teve im
mensa satisfação em vêr que o usar -se certa attenção n'estes
negocios, não impedira Pombal de tomar medidas convenientes
para que o senhor Sousa , embaixador de Portugal em Madrid ,
podesse entrar na negociação. Este procedimento provou a sin
ceridade e integridade de Pombal, e deu inequivocas provas
do desejo que tinha de aplanar as differenças, que existem en
tre as duas cortes, por meio d’uma negociação. As propostas
apresentadas por Pombal são novas provas da rectidão das
suas intenções. »
Mr. Walpole respondeu : « Não posso deixar de observar
a v. ex." que encontro no Marquez de Pombal cada dia maio
res desejos de pôr termo aos negocios entre as duas côtes, de
maneira que acabem todas as hostilidades , e mesmo as appre
henções d'ellas, n'aquellas remotas regiões.
Todavia Pombal não despresou os meios de defesa, que se
fariam precisos no caso que o seu paiz fosse invadido. Desen
volveu -se a maior actividade no alistamento de recrutas para
o augmento de tres companhias em cada regimento d'infante
ria , doze praças em cada companhia de cavallaria, e quatorze
em cada uma dos dois corpos navaes, do que proveiu um aug
mento de oito mil homens no exercito .
Estes preparativos não eram inuteis , comomuito bem po
derá julgar-so pelo final do seguinte extracto d'um officio de
lord Weymouth dirigido a mr. Walpole em 31 de dezembro
de 1776 : « A honra e dignidade
dignidade de Pombal —-0 que deve a
de Pombal
felicidade da nação, em cujo desenvolvimento de prosperidade
MÉMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 271

ha tantos annos e tão louvavelmente trabalha -e as obriga


ções que ha para com os alliados, que tão ardentemente se in
teressem pela honra e superioridade de Portugal, o obrigam a
recommendar esta medida (a reconciliação com a Hespanha ).
Isto torna -se hoje importantissimo, porque se julga com muito
fundamento que a Hespanha não limitará as suas vistas á Ame
rica , tendo talvez a intenção de invadir Portugal.»
Estas negociações, porém foram inefficazes: e é difficil di
zer até onde chegava a sinceridade da côrte de Madrid nos
desejos de paz ; por quanto, no mesmo anno se receberam em
Lisboa noticias da America , de que os hespanhoes destruiram
nove navios portuguezes no Rio Grande, tomaram e fortifica
ram varios fortes portuguezes, e commetteram muitos excessos
violando desaforadamente o em que se tinha concordado .
Portanto , quando o vice-rei do Brasil, o marquez de La
vradio , recebeu instrucções positivas para fazer cessar todas
as hostilidades , ficou indeciso sobre o que faria. Dias depois
de ter expedido as ordens necessarias para os diversos gover
nadores que estavam debaixo da sua jurisdicção , estes lhe par
ticiparam que os hespanhoes , em 19 de janeiro, 26 de março
e 1 e 2 d'abril de 1776 , tinham repetido as suas aggressões
contra as forças portuguezas , e que por este motivo não po
diam de maneira alguma seguir as suas instrucções sem aban
donarem inteiramente as possessões.
Entretanto a Hespanha continuava a embarcar tropa para
as suas colonias; e no seguinte mez de novembro partiu D. Pe
dro de Cevallos, da Europa para Buenos Ayres com um exer
cito de doze mil homens. Nada podia resistir a uma força tão
formidavel . A ilha de Santa Catharina foi tomada aos portu
guezes, e pouco depois teve amesma sorte a posse tanto tempo
disputada da Nova Colonia. Foi passadas algumas semanas le
pois da demissão de Pombal que chegou a Lisboa a noticia
d'estes acontecimentos , não passando então os seus inimigos,
sem bem alto lhe imputarem a causa d'estas desgraças da Ame
rica , emquanto que a unica causa da guerra foi, de facto , a
má fé com que o governo hespanhol andou.
Tendo Pombal considerado sempre a Hespanha como na
tural inimiga de Portugal, por isso se mostrou sempre adverso
272 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

a qualquer intima alliança com aquelle paiz , bem certo, como


estava , de que a politica hespanhola tinha constantemente o

fito n’uma segunda conquista de Portugal, o que bem demons


trou a proclamação publicada em 1772, á qual D. José res
pondeu com tanta energia . E não ha ninguem que conheça o
caracter d'aquellas duas nações, para quem não seja evidente ,
que jámais poderão ser estreita e perduravelmente governadas
por um mesmo monarcha , sem que a nacionalidade d’uma d’el
las desappareça.
Finalmente, pelos tratados de 1 de dezembro de 1777 e
de 11 de março de 1778 entre Hespanha e Portugal, se pôz
termo a esta guerra e se estabeleceu o direito que cada um ti
nha á posse das disputadas colonias. Porém , como o ministe
rio de Pombal cessou na primeira das referidas épocas, é inu
til entrarmos em quaesquer pormenores da negociação .
CAPITULO XXIII

Breve Pontificio para a suppressão de nove conventos . Suas rendas são trans
feridas para o convento de Mafra. Varios éditos. Casa de Pombal em Oeiras.
Canal em Oeiras. Real Companhia de Pescarias. Villa Real de Santo Anto .
nio. Decreto a favor dos christãos novos. Observação d’um embaixador in
glez . Manuel Fernandes de Villa Real. Conto popular. Varios decretos. Es
tabelecimento d’um novo hospital. Inquerito acerca das prisões particulares
dos conventos. Morte de D. Luiz da Cunha. Decretos. Estado do commercio
em 1774 e 1775. Extensa plantação de amoreiras. Fabrico das sedas. Asma
nufacturas são protegidas Tratado com Marrocos. Morte do Cardeal Salda
nha. Doença de D. José. Casamento do principe da Beira com sua tia. Morte
do Rei. Appendice. Extractos de despachos da Secretaria dos Negocios es
trangeiros.

A actividade, o animo e a energia ainda se não desmen


tiam apesar do peso dos annos, que então o opprimia. Em 1771
vemol- o alcançar do papa o breve para a suppressão de nove

conventos de conegos regulares, passando as suas rendas para


o convento de Mafra , onde se instituira um collegio destinado
á instrucção d'aquella ordem de clerigos. Parece que Pombal
desejava formar uma corporação , que, n’este vasto e agora inu
til edificio, se dedicasse com especialidade ao estudo da litte
ratura . Para a realisação d'este projecto se completou uma va
liosa livraria para se juntar ás riquesas do convento . No mes
VOLUME I 19
274 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

mo anno foram abolidas todas as irmandades do reino, á ex


cepção de quatro, sendo os seus rendimentos applicados a
obras de caridade ; e foi promulgado um alvará pelo mesmo
tempo ordenando que os bispos não concedessem licença aos
contrahentes para se receberem em matrimonio, sem apresen
tarem documentalmente o consentimento de seus paes .
Pombal, entretanto que formava , superintendia e executa
va os innumeraveis projectos e reformas, em que toda a sua
administração abunda , e que tantos volumes de decretos e leis
regias sobejamente attestam , não esquecia a economia dos seus
proprios bens, cujo valor augmentava todos os annos com a sua
excellente direcção. Ao mesmo tempo que concebia os maiores
e mais complicados projectos , podia attender ás circumstancias
menos importantes da vida de cada dia, e vigiar os negocios
particulares de sua casa . Em Qeyras era onde augmentava con
sideravelmente a que ali ainda existe , tornando -a uma das mais
vastas e bellas residencias de Portugal, e onde ainda se vê , no
seu estado primitivo, o pequeno aposento, aonde D. José cos
tumava retirar -se durante a visita, que de verão fazia ao seu fiel
ministro . Os embellesados jardins e pomares de laranja desco
brem -se n'uma escala extensa e real, e a disposição economica
que em tudo reina , dá exemplo d'aquellas vastas medidas de
utilidade, solidez e duração, que Pombal sempre revelou em tu
do quanto emprehendeu . Entre outras cousas nota -se a magni
fica adega de vinhos com os seus pertences, que é visitada pe
los estrangeiros como objecto d'interesse e curiosidade . Em 1772
creou -se uma feira n’este logar ; e pouco depois , para que Oey
ras ficasse em communicação com o mar , construiu - se um ca
nal, em cujas obras, com o espirito e perseverança habituaes
de Pombal, trabalhavam de dia e de noute. O canal acha-se
hoje entulhado , o producto das vinhas, para cujo transporte elle
foi construido, tem degenerado alguma cousa do que era, e Oey
ras existe como uma pequena villa sem importancia.
Em 1773 estabeleceu -se a companhia real de Pescaria do
Algarve, que deu muita vida e animação á industria d'aquella
provincia , surgindo ao mesmo tempo uma villa de palacios na
boca do Guadiana para receber a côrte , que protegia esta em

presa maritima. Bellas casas foram edificadas pela nobresa n’um


MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 275

plano regular dado por Pombal: porém a magnifica Villa Real


de Santo Antonio acha -se hoje deserta e cheia de ruinas !
Um alvará de 1768 tinha ordenado que fossem destruidas
todas as relações e copias d'ellas, que existissem dos christãos
novos, nome este com que eram designados os descendentes
dos judeus convertidos. Em maio de 1773 foram abolidas por
um novo alvará todas as distincções que havia entre os chris
tãos novos e os velhos ; distincções estas da mais injusta na
turesa : pois tinham impossibilitado muitos vassallos portu
guezes de exercerem empregos publicos , ao mesmo tempo que
faziam que a união entre elles se tornasse um objecto de
irr isã o, ex po nd o -os ta mb em mu it as vez es a vex açõ es e cas
tig os da inq uis içã o . Ent re os por tug uez es gir a mu it o sangue
hebreu , sem exceptuar mesmo muitas familias da mais alta
jerarchia . Um embaixador inglez d'aquelle tempo notou judi
ciosamente , que encontrou metade da nação esperando pela
vinda de D. Sebastião , e a outra pela do Messias. Parece que
houve antigamente em Portugal alguma tendencia para a re
ligião israelitica ; e é sabido que em 1650 , um Manuel Fer
nandes de Villa Real, representante de Portugal em Paris , foi
condemnado na capital a ser queimado por abraçar a reli
gião de Moysés . Comtudo o historiador, desdizendo -se de
pois , refere que foi só estrangulado ! Conta - se em Portugal que
D. José insistira uma vez em que, todos aquelles em quem de
qualquer modo houvesse sangue hebreu, usassem um chapeo
branco como signal de distincção, ou antes de opprobrio , e que
para esse fim mandara logo lavrar um alvará . Pombal oppoz
os seus argumentos, mas em vão : e, vendo que a rasão não
produzia effeito , mostrou acceder , e apresentou -se ao rei com
o alvará , tirando ao mesmo tempo debaixo da capa dous cha
peos brancos, que collocou sobre a mesa. O rei, admirado , per
guntou o que queria aquillo dizer ; ao que Pombal respondeu :
« Venho unicamente preparado para obedecer ao decreto de
V. M., trazendo um chapeo para V. M. e outro para mim .»
D'este modo deu a entender por um facto bem conhecido que
nem a mesma familia real estava inteiramante isenta da man
cha imaginaria . O rei riu -se, e deu por acabada a questão .

Só para enumerar as medidas empregadas por Pombal pa


276 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

ra enriquecer e civilisar o seu paiz, seriam necessarios muitos


volumes. Cada lei exigiria em particular algumas paginas para
nos fazer conhecer os abusos, que pediam a sua promulgação ,
ao passo que muitas outras se encheriam para esclarecerem os
seus effeitos beneficos. A descripção d’estes pormenores perten
cia com mais propriedade a uma historia da legislação portu
gueza . Portanto , dispenso -me d'essa tarefa, e contento -me com
enumerar, para conhecimento d'aquelles, a quem a curiosidade
despertar maior interesse nas investigações, alguns decretos e
leismais notaveis, que illustraram o reinado de D. José e admi
nistração de Pombal. Temos por exemplo o de 1774 , de que
resultaram varias reformas importantes no exercito , e o de 1775 ,
quemandou restituir muitos bens valiosos a seus naturaes e le
gitimos donos, de que a má fé e o dolo os haviam injustamente
despojado . No mesmo anno se introduziram reformas em Goa
e nas mais colonias da India , para que o governo d'ellas fosse
mais bem dirigido . E diremos aqui, com a brevidade d’um pa
renthesis , que sabemos por um despacho , que existe no archivo
do estado, que se começaram negociações em 1772 com os es
tados geraes para a venda da referida colonia de Goa, pare
cendo existir a principal difficuldade no calculo do seu valor ,
que devia satisfazer a nação nas vantagens, que em troca se
obtivessem , e em se encontrar um comprador, que quizesse
dar-lhe o valor correspondente á cifra portugueza .
Foi promulgada uma lei, fundada na justiça e humanida
de, que prohibiu que fossem presos os devedores , que de bonâ
fide não podessem pagar aos seus credores, sendo d'este modo
arrancadosmuitos desgraçados da cadeia , onde a infelicidade
os mettera , e a crueldade os detivera . No mesmo anno de 1775
foram decretadas e executadas muitas regulações importantes
com referencia ás leis do tabaco , e ás terras da provincia do
Alemtejo, e tambem certas medidas contra os contrabandistas
que infestavam o paiz. Deram -se providencias essencialmente
para a limpesa da cidade. Alguns annos havia que se tornara
necessario ordenar que, qualquer pessoa que encontrasse ani
maes suinos soltos nas ruas, os podia tomar como legitima pre
sa para si .
Tinha-se introduzido nas pessoas devotas o costume de tes
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 277

tarem os seus bens aos conventos e outras casas religiosas , com


sacrificio de seus filhos e parentes proximos. Para se obviar es
te abuso se promulgou uma lei limitando estes legados a uma
terça dos bens do testador, salvo o caso de quererem deixal- os
á santa casa da misericordia e aos hospitaes publicos.
Foi n'esta epoca, que teve logar a fundação do novo hos
pital. O edificio tinha sido n’outro tempo o principal estabele
cimento dos jesuitas ; mas Pombal, depois da extincção d'esta
companhia , destinou -o a um fim de maior caridade e utilidade
do que aquelle, para que os jesuitas o tinham aproveitado . Em
abril de 1775 verificou -se , com grandes ceremonias, a que as
sistiram Pombal, a nobresa , o clero e os funccionarios publi
cos, a abertura d'este monumento de caridade, em que foram
recebidos oitocentos doentes, sendo conduzidos em solemne pro
cissão e principalmente nas carruagens dos fidalgos, que por
sua espontanea vontade as prestaram , e depois alojados nas
respectivas enfermarias.
No mesmo anno se tomou uma medida salutar mandando

se que fossem investigados os carceres dos conventos , onde se


praticavam muitas e horrorosas crueldades.
D. Luiz da Cunha , que tinha exercido tantos annos o car
go de secretario d'estado, falleceu em junho do referido anno,
e succedeu -lhe, na pasta dos negocios estrangeiros e da guerra ,
Ayres de Sá .
Um alvará de julho de 1776 (tendo as colonias inglezas a
este tempo declarado a sua independencia ) mandou que se não
désse pratica ou entrada em nenhum dos portos do reino de
Portugal e seus dominios a navio algum dos rebeldes « deven
do um exemplo tão pernicioso interessar até os principes mais
indifferentes para negarem todo o favor, e auxilio, directo , ou
indirecto , a uns vassallos tão publica e formalmente subleva
dos.» Devemos recordar-nos de que o monarcha francez pagou
bem caro, por observar um genero de politica opposta , menos
generosa e cautelosa .
As leis em favor de Aveiro , Penafiel, Monchique, Alagoa ,
Alcoutim , etc. etc. etc., testemunham os esforços que Pombal
empregava para fazer recrescer a prosperidade do seu paiz.
As numerosas fabricas de tecidos , vidros , seda etc., etc., que
278 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

estabeleceu , provam a attenção , que prestou a um ramo d’in


dustria que se tornava uma fonte inexhaurivel de riquesas ;
podendo ao mesmo tempo ajuisar-se do estado florescente do
commercio maritimo em vista dos seguintes registos d'entrada
no porto de Lisboa :

Navios entrados no Tejo Portuguezes Inglezes D'outras nações


Em 1774 ... 104 ... 348 ... 193
Em 1775 ... 121 .. 371 ... 168

Esta epoca pode ser considerada como a idade de ouro da


industria portugueza em todos os ramos de commercio ; e, pa
ra prova ainda mais evidente d'esta asserção, basta apontar o
facto de terem sido importadas de França , em 27 de maio de
1771 , 19 :996 pés d'amoreiras para se plantarem nas abas de
Lisboa, tendo custado ao governo 5 :500$ 000 réis . No anno
immediato ao referido receberam -se mais 19: 361, incluindo
5000 para uso particular de Pombal, que as mandou plantar
em Oeyras, onde tambem mandou fazer uma espaçosa casa pa
ra a creação do bicho de seda . Em consequencia d'esta anima
ção as requisições de seda em rama, fio e casulo , da fabrica
real, que até 1770 não tinham excedido de 16 :000 arrateis , su
biram n'um anno a 40:000, e no seguinte a 44:000 arrateis.
Vejamos qual foi o producto annual da fabrica durante seis an
nos officialmente relatados :

Annos Peças de seda de differentes


padrões e qualidades
1769 .... 1482
1770 ... 1513
1771 ... 1807
1772 .. 2159
1773 ... 2220
1774 .. 2485

Pombal não animava só os principios das artes fabrís , ali


mentava-os: porém , não o fazia excluindo os competidores es
trangeiros, e obrigando a nação inteira a pagar as manufactu
ras nacionaes por um preço superior aquelle , que ellas custa
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 279

riam sendo importadas do estrangeiro , mas fazendo empresti


mos judiciosos a artistas emprehendedores, que confiavam no
seu saber e industria para competirem com os estrangeiros na
qualidade e baratesa . O governo, em vista do apontamento que
se segue, augmentava successivamente os seus abonos :
Réis
Para fabricas de linho.. 53:0008000
Para ditas de chapeos .. . 17:0008000
Para fundição de ferro em Paço d'Arcos. . . 1 :0008000
Para fabrica de vidros de vidraça . 250 $ 000
Para dita de louça de ferro estanhado e de folha
de Flandres ... 1 :5008000
Para dita de velludo d'algodão, bombazina e fos
tões d'algodão . 2 :500 $ 000
Para uma dita de vidros crystalinos na Marinha
Grande a Guilherme Stephens.... 32:000 $ 000
Para tecelagem e estamparia de algodões .. . 12:0008000
Para uma fabrica de pannos de lã em Cascaes . 10 :0008000
Idem de botões de metal e fivelas . 2 :0008000
Idem de tapeçaria.. 4 :0008000

0 que se torna curioso é que o maior d'estes emprestimos,


considerando -os com relação ao numero de individuos a quem
se faziam , fosse feito a um inglez, sendo esse o unico estran
geiro : concluindo-se portanto d'aqui com muita claresa que, o
que Pombal pensava a este respeito, era, que empresas de tal
naturesa deviam ser animadas em Portugal, quando se visse
que toda a nação tirava beneficio d’ellas, e não quando não
passassem d'um projectado manancial de interesses para um
individuo isoladamente , quer fosse ou não estrangeiro.
Havendo algum tempo que Portugal sustentava guerra com
Marrocos, Pombal, depois de reflectir maduramente, concluiu
a paz com aquelle imperio ; e, pondo de parte todas as diffi
culdades da etiqueta, grilhões que prendem os espiritos fracos,
fez um tratado commercial com o imperador, muito vantajoso
para Portugal. Não tardou nada que fosse enviado a Lisboa um
embaixador com presentes para D. José. Esta foi a primeira re
lação d'amisade, que teve logar entre Portugal e Marrocos.
280 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Em 10 de novembro de 1776 falleceu o cardeal Saldanha ,


que sempre se conservou nas mais firmes e estreitas relações
d'amisade com Pombal, e que foi muito estimado e bemquisto
de D. José. A saude do rei começava já a declinar, e , doús dias
depois da morte do cardeal, foi accommettido d’uma apoplexia ,
sendo- lhe então administrada a uncção e a benção pontifical.
O Marquez de Pombal, guiando -se pela serenidade de espirito
que o rei continuava a mostrar, persistia em que, n’aquelle es
tado moral, não podia o perigo ser tão imminente que fossem
precisas estas ceremonias, e censurou a ignorancia dos medi
cos, que tinham sido de opinião de que , no estado em que o
rei se achava , era indispensavel a uncção . Quando, pelo exigi
rem os sentimentos de D. José, se resolveu isto em conselho ,
o Marquez sustentou o mesmo parecer, mas concordou em que
se fizessem as ceremonias como actos de devoção. A 4 de de
zembro foi a rainha nomeada regente por meio d'um alvará ,
durante a doença do rei. A 4 de fevereiro de 1777 teve outro
ataque, e a 20 manifestou o desejo de vêr celebradas, antes da
sua morte , as nupcias de sua filha a infanta D.Maria Francisca
Benedicta com seu neto D. José, principe da Beira , que era o
unico que, segundo se diz, elle desejava que por direito The
succedesse no throno . Este principe contava apenas dezeseis
annos d'idade, emquanto que a princesa tinha já trinta e um .
Como houvesse as dispensas necessarias, tiveram logar os des
posorios entre tia e sobrinho no dia seguinte. Dizem que a corte
de França anhelava porque o principe da Beira desposasse ma
dame Isabel, irmã de Luiz XVI; mas que , sendo D.José, fun
dado em rasões politicas, contrario a esta alliança , se deu pres
sa á celebração do casamento .
D. José continuou a peiorar , até que, depois d’um reinado
de vinte e sete annos , expirou em 24 de fevereiro de 1777 ,
deixando os seus vassallos deplorando a sua perda , e o seu ve
lho e fiel ministro exposto á perversidade e intrigas dos seus
inimigos .
N’um despacho de mr. Walpole, de 26 de fevereiro do re
ferido anno, se lè o seguinte : 0 rei de Portugal expirou se
gunda feira entre o meio dia e a uma hora . S. M. soffreu muito
durante algumas semanas por causa da sua doença , que nos
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 281

ultimos diastinha degenerado n'uma hydropisia, e que augmen


tara consideravelmente até domingo, não havendo então já es
peranças de salval-o .
« A princesa do Brasil, que se tinha recolhido ao seu apo
sento para descançar, sendo logo informada da morte do rei,
preparou - se para receber os ministros d’estado, e admittiu - os
á sua presença para lhe beijarem a mão como soberana .
«Ayres de Sá, que tem a pasta dos negocios estrangeiros,
informou no mesmo dia , por ordem da rainha, osministros es
trangeiros d'este successo, como tambem de que a corte deita
va luto por um anno, como vereis na carta inclusa . O funeral
do rei faz -se esta tarde coma pompa e ceremonias do estylo .
« Não se nos fez declaração alguma relativamente ao tra
tamento que deverá dar- se ao infante D. Pedro, marido da rai

nha, apesar de se dizer que os de sua casa lhe dão o de «ma


gestade» , e que nas orações da missa o rei é mencionado jun
tamente com a rainha, mas em segundo logar ; tambem se pre
sume que a rainha lhe dará parte no governo como rei.»
CAPITULO XXIV

Acontecimentos posteriores á morte de D. José. Pombal requer sua exoneração .


Seus haveres . Estado florescente do erario regio . Renova sua petição. Carta
á Rainha . Decreto real Recompensas concedidas a Pombal, quando foi exo
nerado . Ultimas vontades de D. José. Despachos de mr. Walpole. Occorren
cias extraordinarias. Caracter da Rainha. O Rei. Mudanças ministeriaes. Pom
bal retira-se da capital. Malicia de seus inimigos . Arrancam sua effigie do
pedestal da estatua equestre. Curiosas circumstancias, que aguardavam sua
recollocação . São soltos das prisões e recompensados muitos fidalgos. Effec
tuam -se grandes mudanças. Decretos a favor do conde de S. Lourenço e de
de outros. Extracto de alguns despachos.

Com a vida de D. José expirou o ministerio do Marquez


de Pombal. A nação inteira esperava anhelante saber quando
e como permittiriam ao grandeministro descer do auge do
po
der a uma posição particular. Os seus inimigos eram incansa
veis em preparar todos osmeios, que a falsidade podia inven
tar, e a perversidade propagar, para conseguirem uma vin
gança tal, que d'ella resultasse o seu total aniquilamento.
A enfermidade de D. José tinha preparado toda a Europa
para alguma grande alteração no curso dos acontecimentos , e
os ministros e enviados estrangeiros, que se achavam em Lis
boa , tinham ordem dos seus respectivos governos de participa
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 283

rem o mais leve conhecimento , que tivessem da forma d'uma


nova administração .
Pombal tambem não deixou de prever as ruins paixões, que
contra elle se levantariam , e que, sem o apoio do seu sobera
no,não poderia resistir á vingança dos seus inimigos,nem frus
trar- lhes a sua malicia. Sabia que havia de surgir uma legião
de adversarios, que accusassem a justiça da sua administração ,
havendo entre elles alguns provados delinquentes de familias
titulares, que estavam ainda soffrendo o castigo de seus crimes,
e teve por isso sobejas rasões para anticipar os seus designios,
primeiro que elles obtivessem o apoio das partes influentes
no governo , e achassem mesmo protecção no proprio throno.
Ainda mesmo que fossem infundadas as suas apprehensões ,
era natural que um ministro, que durante vinte e sete annos
lutara com as difficuldades do officio, aproveitasse a opportu
nidade, que se lhe offerecia pela morte d'aquelle soberano , cuja
confiança tanto tempo gosara, para retirar-se do governo . Por
isso , Pombal, em 5 de fevereiro de 1777 , pouco tempo antes
de fallecer D. José, — cheio de annos, mortificado pelos seus
padecimentos, e exhausto pelos cuidados — apresentou a se
guinte supplica á regente.

SUPPLICA APRESENTADA Á SERENISSIMA SENHORA RAINHA MÃE


D. MARIANNA VICTORIA , NA SUA REGENCIA

Senhora. - Em diversas occasiões representei a el-rei meu


senhor humillissimamente prostrado aos seus reaes pés, que
ainda que julgava, que os meus curtos talentos nenhuma falta
fariam no seu regio serviço; comtudo achando-me já muito
perto de cumprir oitenta annos, e em uma successiva , e
apressada decadencia de forças, julgava incompativel com a
minha honra , com o meu zelo , e com as minhas obriga
ções, em quanto vassallo , e em quanto ministro, omittir os
rogos, com que supplicava a S. M. que désse a providencia ne
cessaria , para que se não sepultassem comigo (talvez quando
menos se esperasse) os importantes conhecimentos , quede lar
gas experiencias de quasi quarenta annos de ministerios publi
cos, e de difficillimas, e gravissimas negociações, e resoluções,
que n'elles occorreram , me tinha resultado.
284 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Achou o dito senhor, que era digna da sua real attenção


aquella minha humillissima representação. Quando porém se
tractava de a effectuar, sobrevieram os intempestivos acciden
tes , que accrescendo a minha referida decadencia , ao meu re
ferido receio, e á grande impressão que os invernos tão des
abridos como o presente costumam sempre fazer na velhice,
fizeram que com todas as sobreditas causas, de tres mezes a
esta parte, me tenho visto tanto mais rendido, e quebrado nas
forças naturaes, e na actividade ministerial, que não só não
posso já hoje fazer em mais de um dia , omesmo trabalho para
o qual me bastava antes uma hora, mas em cada noite que me
vou recolher, em logar do descanço encontro motivos de espe
rar que a manhã seguinte me ache na eternidade.
A consideração do perigo que sempre estou vendo immi
nente de que assim me haja de succeder, sem que, na minha
inopinada falta , se ache prevenido quem (com conhecimento
de causa ) possa continuar o serviço dos muitos, e muito im
portantes logares, que tenho a honra de occupar, me estão cada
hora affligindo, e accelerando mais o ultimo fim da vida , que
poderá respirar com mais alguns alentos que a dilatem , sendo
V. M. servida nomear-me sem mais perda de tempo substitu
tos, aos quaes eu desde logo informe dos principios, progres
sos, e ultimos estados de tudo o que toca a todas , e a cada
uma das importantissimas repartições de que me acho encar
regado. Porque só assim se poderão remover , em quanto eu
fôr vivo, todas e quaesquer duvidas, que no exercicio das mes
mas repartições se possam vir apresentar aos que de novo as
servirem , sendo impossivel que sejam aclarados depois da mi
nha morte , e sendo manifesto o damno irreparavel que d'isso
resultaria ao real serviço. As ditas repartições são pois as que
se seguem .
« A primeira d'ellas comprehende tudo o que toca ao logar
de inspector geral do erario regio , que desde o anno de 1762
constitue a base fundamental do credito publico ,da reputação
da coroa , de todas as forças d'estes reinos, e seus dominios, e
consequentemente a segurança d'elles.
« A segunda é a que abraça tudo o que pertence aos ar
senaes, e á economia do exercito, que S. M. achou aniquilado,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 285

e que desde o dito anno de 1762, até agora se tem regido , e


conservado com regular disciplina , com promptidão no paga
mento das tropas, e sem algum empenho .
« A terceira é a inspecção sobre o outro arsenal de mari
nha ou sobre a economia das construcções, e provisões da Ri
beira das Naus, e dos armazens d'ella , que o mesmo senhor
achou tambem , não só vasios, mas empenhados em mais de
quatro milhões, e hoje nada devem .
«A quarta é a da outra extensa inspecção sobre o com
mercio geral, que com tão rapido progresso tem enriquecido
Portugal, e o Brazil; e tem reedificado (com magnificencia di
gna do augusto espirito de S. M.) a capital do reino, antes im
propria corte de um tão grande monarcha; e tem levantado a
praça mercantil de Lisboa desde a summa pobresa á maior
opulencia de cabedaes e creditos.
“ A quinta é a da outra inspecção sobre as manufacturas,
estabelecimentos, adiantamentos, e progressos das artes mecha
nicas, as quaes tão felizes e abundantes tem feito os povos e
vassallos, que o dito senhor achou na mais lastimosa penu
ria , e que hoje estão engrossando tanto , como é notorio a massa
geral, e os cabedaes de toda a monarchia .
« A sexta é a de outra inspecção sobre as obras publicas
da referida cidade de Lisboa , para que hajam de continuar em
ser o glorioso objecto da emulação de todas as outras mais
celebres capitaes da Europa .
« A septima é a da outra inspecção sobre os lavores das
preciosas minas do Serro do Frio ; e sobre a extracção dos dia
mantes d'ellas, que S. M. achou extinctos, em quebra, e sem
meios de se continuarem os primeiros, e de se proseguir a se
gunda desde o anno de 1753 , entrando desde então annual
mente n’este reino, de um milhão até milhão e meio de cruza
dos, que d'elle deviam sair em moedas de ouro, que ficam gi
rando nas mãos dos portuguezes, e não havendo mais falta
de cabedaes para a mineração desde aquelle anno .
A oitava é a da outra inspecção sobre a universidade de
Coimbra, novamente fundada, que constitue o mais forte , e
inexpugnavel baluarte com que Portugal e os seus vastos do
minios , se hão de sempre defender dos tremendos ataques d'a
286 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

quella pestilente ignorancia que por mais de dois seculos, accu


mulou n'elles as muitas, e muito deploraveis e notorias ruinas,
até os reduzir a dois montões de estragos; confundindo o sa
cerdocio com o imperio , os privilegios e isenções do clero com
o respeito devido aos seus reis, naturaes senhores, e os atten
tados da curia romana , com o legitimo poder do papa , e da
egreja, e com a impreterivel e inabdicavel authoridade regia.
« A consideração d'aquelle grande risco que estou em to
das as horas vendo correr as referidas oito repartições, é pois
o que me afflige e atormenta ; e continuará sempre em affligir
me, e em atormentar-me até que de todo me acabe a vida bre
vemente, se não vir que V. M. toma a resolução de precaver ,
como lhe tenho supplicado tão funestos desastres.
« Para assim o esperar tenho por certo, que o dito senhor
reflectirá com as suas clarissimas luzes, em que nem póde estar
em mim dilatar-me a propria vida , que vejo proxima ao seu
ultimo termo: nem , no caso de me faltar a mesma vida antes
que haja dado a providencia dos referidos substitutos, pormais
superiores que todos elles possam ser aos meus limitados ta
lentos, não poderão comtudo entrar no manejo pratico de lão
extensos, e intrincados negocios, senão (como vulgarmente se
diz ) ás cegas, e sem acharem caminho nem carreiro ; principal
mente quando se trata de umas fundações tão novas, que es
tão em pouco mais do que nos seus principios; nem os mes
mos substitutos hão de nascer, nem podem deixar de sair dos
que estão nascidos n’este reino, em edade competente , nem se
devem ir buscar aos reinos estrangeiros.
«Os sobreditos caminhos e carreiros são pois os que eu
facil e brevemente poderei agora mostrar aos que mesuccede
rem ; porque todos jazem como em uns terrenos, que eu por
vinte e seis annos tenho pisado, e trilhado, com incessantes e
continuos trabalhos.

«Ao mesmo tempo supplico a V.M. que por grande e es


pecial mercê me escuse de interpor parecer sobre a eleição das
pessoas dos sobreditos substitutos. Protestando que nenhum
dos que o dito senhor houver por bem nomear, achará no meu
animo a menor repugnancia; mas que antes irei dar a todos
gostosos parabens, logo que forem nomeados; e me ficarei appli
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 287

cando a informal-os e ajudal-os com tanta cordialidade, zelo,


e abertura, que nada lhes fique para desejar no que couber nos
meus conhecimentos praticos , e antigas experiencias, com as
quaes poderei assim conservar-me servindo, sem occupar loga
res, no que V. M. ordenar, que eu de fóra d'elles possa ser de
algum tal ou qual prestimo, no pouco tempo que merestar de
vida .
Aos reaes pés de Vossa Magestade
O Marquez de Pombal.»

Nota . Na mesma manhã procurei livrar a dita senhora


do cuidado, que considerei que poderia causar- lhe o receio de
que estivesse exhaurido o seu real erario : apresentando -lhe um
calculo do que n'elle existe em dinheiro ; e outro do thesouro de

diamantes , que o senhor rei D. José deixou no seu gabinete.»

Os cabedaes, que havia então , juntos no thesouro subiam a


setenta e oito milhões de cruzados, segundo se lê na nota de
Pombal no final da supplica .
Se tivesse sido possivel effectuar os designios expressos no
referido documento, teria sido uma felicidade para o paiz. Po
rém a continuada doença de D. José, e o termo fatal, que teve
obstaram a que a regente satisfizesse os desejos de Pombal,
tendo comtudo conservado as suas sabias instrucções até ao
tempo da acclamação de D. Maria I.
Em 1 de março de 1777 renovou o Marquez a sua sup
plica para ser exonerado, na seguinte petição apresentada á
rainha .
« 1 de março de 1777 .
« Senhora . - Quando puz nas rease mãos da Serenissima

Senhora rainha mãe (para a fazer presente a el-rei , que Deus


chamou á sua santa gloria ) a humillissima supplica , cuja -copia
terá chegado por el- rei meu senhor á real presença de V. M.
não podia prever os inesperados successos, que agora me con
duzem aos reaes pés de V. M.
« O grande Duque de Sully , fundador da monarchia de
el-rei Henrique IV que achou'reduzida a não ter o dito mo
narcha, nem com que sustentasse a sua mesa , indo por isso
comer fóra do seu palacio, nem com que fizesse um vestido
288 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

de gala; depois da infausta morte do dito monarcha, se achou


aquelle grande homem de estado,e de guerra,nos funestos termos
que elle mesmo refere no tomo 8.º das suas illustres Memorias -
« Isto foi, ver logo armados contra si um numeroso partido
dos descontentes do governo de el-rei seu amo; outro de inve
josos, que unindo-se ambos, immediatamente trataram de desfi

gurar, fazer odiosos, e destruir todos os estabelecimentos d'aquel


le glorioso governo. Trataram de espalhar contra elle as maio
res imposturas, as maiores falsidades, e as mais negras calum
nias. Trataram por todos aquelles miseraveis meios de converter
os relevantes serviços de um tão assignalado ministro em deli
ctos atrozes. E trataram de concitar contra elle o odio univer
sal de todo o povo , de sorte que não podia ir para parte alguma
da corte, e da cidade, que se não achasse cercado de inimigos ,
e em proximo perigo de ser a cada momento assassinado.
« Representou com todas estas causas á rainha regente que
a sua grande alma, e a sua grande veneração á memoria do
grande rei seu esposo não permittiriam que ella deixasse ter tão
desgraçado fim um ministro, que com tanto amor e zelo tinha
servido o rei, e o reino ; nem que se visse reduzido aos ultra
jes da nobresa , e da plebe, um homem que o mesmo rei havia
honrado tanto : supplicando á dita princesa que lhe désse licen
ça de sair do paco e da corte para as suas terras.
Não pretendo, senhora, comparar-me com o duque de Sul
ly no merecimento. É porém certo , e publico, em todo o paço
de V. M. e em toda a cidade de Lisboa , que me acho egual com
elle na desgraça , e nos motivos com que recorro á real clemen
cia de V. M. supplicando -lhe que se sirva de me verificar a
escusa . que tenho pedido de todos os logares, que occupei até
agora, e de me permittir a licença de ir passar em Pombal o
ultimo espaço de tempo que me restar de vida. Tendo por certo
que na superioridade incomparavel com que as reaes virtudes
de V. M. se exaltam sobre as da rainha Maria de Medicis , não
poderei deixar de encontrar , pelo menos , aquelles mesmos ef

* Em 1596 escrevia Henrique IV a Sully : «Mes chemises sont toutes dechi


rées, etc. etc. etc. Depuis deux jours je dine chez les uns et les autres ; ines pour.
voyeurs disant n'avoir plusmoyen de rien fournir pour ma table.. Memorias de
Sully, tom . 3. (NOTA DO ESCRIPTOR .)
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 289

feitos de benignidade, que n'aquella princesa acharam os rogos


do duque de Sully.
Aos reaes pés de Vossa Magestade

O Marquez de Pombal .

Parece que a vida de Pombal, logo que D. Maria I tomou


posse da coroa, se viu , pela perversidade de seus inimigos ,
constantemante cercada de perigos , devidos, não ao temor que
tinham da sua influencia futura , mas a perseguição , que lhe fa
ziam por abjecto espirito de vingança . Foi talvez este motivo
que de algum modo concorreu tambem para que elle resignas
se os seus cargos. Comtudo , como quer que fosse, o velho mi
nistro foi exonerado da responsabilidade do governo em vir
tude do seguinte decreto :
Tendo consideração á grande, e distincta estimação , que
el-reimeu pae, que santa gloria haja, fez sempre da pessoa do

Marquez de Pombal; e representando -me o mesmo Marquez,


que a sua avançada idade, e molestias, que padecia, lhe não
permittia continuar por mais tempo no meu real serviço, pe
dindo-me licença, para demittir todos os lugares e empregos,
de que se achava encarregado, para poder retirar-se á sua quin

ta de Pombal: attendendo ao referido, sou servida acceitar - lhe


a dita demissão , e conceder- lhe a licença que pede : E hei ou
trosim por bem , que durante a sua vida fique conservando os
mesmos ordenados, que tinha como secretario d'estado dos ne
d'elles lhe faço mercê por graça espe
gocios do reino ; e além
cial da commenda de S. Thiago de Lanhoso do arcebispado de
Braga da Ordem de Christo , que se achava vaga por falleci
mento de Francisco de Mello e Castro . Palacio de Nossa Se
nhora da Ajuda em 4 de março de 1777.»
Em vista do teor d'este decreto , e dos beneficios com que

a rainha , fóra do respeito devido á memoria de seu pae, con


tinuava a encher Pombal, era natural deprehender-se que o
deixassem passar o resto de seus dias no goso da paz e felici

dade domesticas. Porém antes de acompanharmos Pombal até


o seu retiro , permitta-se -nos por um momento passar em revista
os successos , que tiveram logar desde a enfermidade de D. José .
Este bom e grande monarcha , ao que parece, tinha arden
VOLUME I 20
290 MEMORIAS DO MARQUEZ DES POMBAL

tes desejos de estender a seus inimigos aquelle perdão, que


esperava lhe fosse depois concedido no supremo tribunal divi
no : apesar de que era de esperar , que o principio do novo rei
nado havia de abundar em exemplos de clemencia real. Porém ,
como vissem que se tornava muito censuravel na rainha a pre
ferencia dos conspiradores contra a vida de seu pae como prin
cipaesmerecedores da sua graça , recorreram a certosmeios pa
ra fazerem attribuir a soltura dos presos a um cumprimento
das ultimas vontades d'el -rei. Não é possivel dizer -se o gráo
até que D. José authorisou que chegasse este acto repentino de
clemencia : todavia podémos tomar conhecimento , por meio do
seguinte despacho de mr. Walpole de 26 de fevereiro de 1777 ,
de alguns dos boatos que então corriam como ao diante se vê.

« Domingo, de tarde, foi solto o bispo de Coimbra , sendo


em seguida conduzido ao paço para ver sua irmã, que é cama
reira mór da rainha regente, e diz -se que o infante D. Pedro
se encontrou com elle e o abraçou . A liberdade dada a este bis
po ha de sem duvida ser agradavel á curia romana .
«Fallara -se alguns dias que a liberdade do bispo estava
em discussão, empenhando -se provavelmente o confessor do rei
para obter de sua magestade esta concessão ; assim como se
pretendia que elle insistia tambem com el-rei para que man
dasse soltarmuitos fidalgos, que ha muitos annos estavam pre
sos por serem implicados na conspiração de 1758 , ou por mo
tivos (verdadeiros ou suspeitos) de guerrearem o governo : e
apesar de se ter quasi por certa a maneira como el-rei signifi
cava as suas ordens, dão-lhe diversas versões . Uns asseguram
que a regente significara ao Marquez de Pombal na noute de
sabbado, de um modo positivo, a vontade do rei com relação
ao objecto em questão, tendo o Marquez, conforme se diz , obje
ctado que não devia haver precipitação em se ordenar que
les fossem soltos, porque seria conveniente que um tal passo
fosse precedido d’um perdão ; outros affirmam que o infante
D. Pedro, na manhã de segunda feira, dera um papel a seus
criados, suppondo -se tel-o el-rei entregado ao seu confessor, e
em que se acha declarado que se soltem os presos, se paguem
as dividas do rei, e se acabe a egreja começada em memoria
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 291

do seu livramento em 1758. O que é certo , é, que segunda


feira se contou no paço alguma cousa que tem analogia com o
que acabo de expor, porque o marquez de Angeja , camarista
do rei, cujo irmão, o conde de S. Lourenço , se acha preso com
muitos outros fidalgos na Junqueira, dirigiu -se pelo meio dia á
prisão para communicar esta agradavel noticia , que em breve
se propagou de tal modo , que muita gente , e entre ella os pa
rentes dos fidalgos presos, se ajuntou ao pé das prisões espe
rando o resultado d’este rumor, e conservando - se ali até ás no
ve horas da noute, sendo então obrigada a dispersar, e os pa
rentes informados de que os presos seriam remettidos a suas
respectivas familias logo que os soltassem . Porém as esperan
ças do publico não foram por ora satisfeitas. A demora em os
soltarem não é certamente devida a outra causa , senão aosmeios,
que é preciso ter em vista n’um negocio d'esta naturesa ; pois,
em quanto a mim , não pode haver duvida de que se lhes dará
a liberdade.
« Foram soltos muitos ecclesiasticos.
Estes factos tem dado causa a rumores de que a mesma

graça se estenderá a dous principes , filhos naturaes de D. João V ,


que se acham reclusos n'um convento do reino, e querem mui
tos que se expediram ordens para elles virem para Lisboa. Es
pera - se tambem o regresso de D. João de Bragança , irmão do
duque de Lafões, que ha muitos annos se acha fóra do paiz ,
tendo vivido muito tempo em Vienna , servindo no exercito aus
triaco , e viajado ultimamente por differentes partes da Europa.
Foi-lhe ordenada a saída do reino por motivo , segundo as sup
posições que então se formaram , de ciumes do rei ultimamente
fallecido. Dizem que manteve intimas relações d'amisade com
o infante D. Pedro, e crêem que será designado para tomar
parte no governo dos negocios d’este paiz .
Do que deixo exposto , póde v. ex . facilmente inferir que

em tudo transparecem os symptomas da decadencia do credito


e influencia do Marquez de Pombal no novo governo ; e, ainda
que na verdade não é por ora tempo de poder -se affirmar com
precisão alguma cousa a este respeito , crê- se geralmente que
será permittido ao Marquez de Pombal retirar-se.
ao clero parece conceber grandes esperanças de voltar ao
292 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tempo do seu poderio n’este novo reinado ; e a nobresa lison


jeia -se de que recuperará a sua antiga consideração e impor
tancia .

« Os padres do convento das Necessidades, a quem tinham


sido cortados todos os direitos, tiveram licença para prégar e
confessar.

Tanto esta como a correspondencia seguinte foram escriptas


anterior e proximamente à demissão de Pombal. Mr. Walpole,
como ao diante se verá , expõe as suas previsões relativamente
ao provavel procedimento do novo governo no curso dos nego
cios .

« Em 1 de março de 1777. Por ora ainda não foram no


meados os ministros, que hão de constituir o novo gabinete, e
julgo que o não farão sem passarem os oito dias do nojo da
rainha ; por isso não posso dizer qual será o destino do Mar
quez de Pombal. Comtudo, em vista dos seguintes promenores ,
póde v. ex . inferir qual seja a indole do novo reinado com re
ferencia ao clero .

« A prisão do esmoler mór (que é parente de Pombal) foi


tecida pelo nuncio .
« O provincial do convento de Jesus, irmão do bispo de Be
ja, tendo continuado na posse do logar , que exercia como pre
ceptor do principe da Beira , ultrapassando o termo de sua no
meação sem nova confirmação , foi d'elle demittido pelo nun
cio, substituindo-o outro preceptor interinamente : são estas
(como diz o nuncio ) as intenções de sua magestade assim n’este
caso , como no do esmoler mór .

« O bispo de Beja deve a sua elevação ao Marquez de Pom


bal, e sempre se lhe mostrou muito affecto. Diz-se que logo
que teve noticia do modo, como se houveram para com o irmão ,
o tomou como um golpe que lhe era dirigido.
« Não vejo probabilidade alguma que confirme que a rainha
confira, por meio de qualquer acto publico, a soberania a seu
esposo : o que dizem , é, que elle terá o titulo de rei, conforme
as leis de Lamego, feitas na restauração da monarchia, que es
tabelecem que, casando a filha do rei de Portugal, herdeira da
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 293

coroa , (na falta de varão ) com algum fidalgo portuguez, usará


este o titulo de rei, tendo affinidade consanguinea com a rainha
por linha varonil, mas que tomará a esquerda d'ella, e não po
derá cingir a coroa .
« A rainha e o rei são muito devotos. A sua obediencia á
sé apostolica não tem limites, assim como os não tem a sua
submissão á jurisdicção do clero nas suas mais vastas preten
sões. A rainha é timida , e por isso facil de ser subjugada pe
los padres, com quem tem tido muitas conferencias ; e foi pro
vavelmente instigada pelos que a rodeam , que tão peremptoria
mente fallou ao Marquez de Pombal relativamente aos fidalgos
presos, quando elle pôz difficuldades em se lhes dar a liberda
de, dizendo - lhe ella, que taes eram as instrucções que recebe
ra de seu pae, e que seria obedecido. Ella tem muita deferen
cia por seu marido, e elle tem -na em tanta veneração, que falla
d'ella como d'uma santa . O rei é dotado de acanhada intelli
gencia , ouve tres ou quatro missas de manhã no maior extasis ,
e assiste ás orações da tarde por devoção . E liberal nas esmo
las, e falla muito em preceitos de clemencia e de justiça : po
rém , como não tem conhecimento algum da humanidade e dos
negocios, facilmente o governam , bem ou mal, aquelles que o
cercam , sobre tudo se pertencerem á egreja.
« O marquez de Marialva, o marquez de Angeja e o visconde
de Ponte de Lima, todos conhecidos por inimigos do Marquez
de Pombal, são, segundo se diz , os mais consultados pelo rei.
« Dizem que os fidalgos não acceitam a liberdade sem que
sejam julgados.
« Tambem dizem que contaram á rainha uma variedade de
historias, que nasceram do rigor da administração do Marquez
dePombal; a nobresa trabalha com actividade em perseguil-o .
Porém julga -se que o rei, que mostra ser dotado d’um genio
humano , não consentirá que se pratique qualquer violencia
contra o Marquez de Pombal, salvo se a isso fosse impellido
para vingar a causa da egreja .»

Pouco deve admirar que estes fidalgos não quizessem ac


ceitar a liberdade sem que fosse declarada a sua innocencia ,

pois bem sabiam elles quanta facilidade tinham em conseguil-o.


294 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

O caracter da rainha , como o do rei, responde por quaesquer


concessões que os seus interessados conselheiros dictassem , va
lendo -se da fraquesa da soberana .
Vejamos ainda alguns esclarecimentosmais, que outro des
pacho de mr. Walpole nos fornece, e que tendem a explicar
melhor os successos que então se deram .

« Em 19 de março de 1777. O marquez d'Angeja foi no


meado inspector geral do thesouro, e o visconde de Ponte de
Lima, secretario de estado com a pasta dos negocios do reino .
Eram estes os dois principaes logares que o Marquez de Pom
bal occupava. Mello permanece, como d'antes, na posse da
pasta da marinha , e Ayres de Sá continua com a dos negocios
estrangeiros.
« Os negocios ecclesiasticos, que o Marquez de Pombal col
locava , em muitos pontos e de certo modo , debaixo da depen
dencia do governo , voltam ao seu antigo estado, ficando sob a
jurisdição do nuncio no que respeita ao clero regular , e ficam
isentos da autoridade temporal em tudo que toca ao clero secular.
«Obispo de Penafiel, frade carmelita e confessor da rai
nha ; o confessor do rei, frade franciscano, e o secretario do
rei, tambem ecclesiastico, são os que principalmente se occu
pam dos negocios da egreja.
«Os primeiros actos do novo reinado foram não só demit
tir ou punir os clerigos, a quem fôra permittido obrar indepen
dentemente dos preceitos da egreja , mas pôr em liberdade os
que tinham sido presos só pela autoridade temporal.
« Em consequencia das recommendações que D. José fez
a sua successora , tem sido soltos muitos presos seculares e ec
clesiasticos. Porém os fidalgos ainda o não foram apesar de
suppor-se que não tardará que o sejam , havendo muita curio
sidade em saber-se de que maneira o farão, e se se fará algu
ma declaração em seu favor. Outros que foram degredados
(entre elles Seabra , que foi secretariod'estado, e que agora
está em Angola ), tem licença para regressar a Portugal.
« O papel incluso, que é das recommendações, elucida o
que por aqui se tem contado serem as ultimas vontades do rei;
mas como não tem data deixa -nos suspensos sobre o tempo
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 295

em que foi assignado. O sr. Mello disse-me que foi assignado


um dia antes do fallecimento de sua magestade ; mas outros
asseguram que foi escripto pelo tempo em que pela ultima vez
foi sacramentado , cousa de quinze dias antes de morrer.»

Interrompamos um momento o despacho de mr. Walpole


para transcrevermos o conteúdo do papel a que o ministro in
glez acaba de alludir , e que hoje é geralmente reputado falso .
É o seguinte: — Em primeiro logar confio muito da sua gran
de virtude, que governará o meu povo com muita suavidade ,
paz e justiça, promovendo a sua felicidade, assim temporal,
como eterna, zelando a observancia das leis divinas e huma
nas, protegendo a verdadeira religião, conservando asregalias
da minha corða, concordando sempre o imperio com o sacer
docio. Em segundo logar da mesma sorte confio da sua grande
virtude que tratará sempre com omesmo amor a sua mãe e ir
mãs, e lhes fará todo o bem , que eu lhes fazia, segundo o
grande amor que sempre lhes tive e lhes tenho . Em terceiro
logar lhe recommendo , que completará a egreja da Memoria ,
que prometti a Deus fazer , e se acha meia feita, em agradeci
mento do beneficio que me fez , e que foi notorio a todo o reino.
Em quarto logar, que pagará as minhas dividas, o que eu até
agora não pude fazer, por temer uma guerra proxima e vio
lenta , e serem -me precisas grandes sommas para os aprestos
d'ella. Em quinto logar, que se lembrará dos meus criados, es
pecialmente d'aquelles, que sabe me tem servido com amor e
fidelidade. Em sexto logar, que perdoará a pena legal aquelles
criminosos de estado, que julgar dignos de perdão : em quanto
á culpa , que commetteram contra a minha pessoa ou contra o
estado, a todos tenho já perdoado, para que Deus me perdoe
os meus peccados.»
Continuemos com o despacho de mr. Walpole.
« Farei agora por dar a v . ex.a uma idéa do caracter das
pessoas, a quem se acha confiada a direcção dos negocios do
novo governo.
« O marquez d'Angeja , que era camarista do rei D. José ,
foi o fidalgo que o referido monarcha sempre teve em melhor
conceito ; e, durante toda a administração do Marquez de Pom
296 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

bal, soube haver-se com tanta sagacidade, que este ministro


confessou algumas vezes que, de todos os fidalgos, era elle o
unico que não podia penetrar. É tido por homem habil, e es
timado pela nobresa e pelo seu talento . Anda hoje pelos ses
senta e seis annos , não podendo provavelmente entregar -se a
grandes trabalhos ; e, na verdade, ainda que as attribuições
do logar que occupa são muitas por sua naturesa , acham -se
tão bem repartidas, que, funccionando as repartições inferio
res como devem , não lhe dão muito que fazer . Foi n'outro tem
po empregado na fazenda publica , quando ainda não era ad
ministrada pelo novo systema introduzido pelo Marquez de
Pombal. Além do credito , que o marquez d'Angeja tinha junto
do rei D. José, a sua elevada gerarchia e a reputação , que gosa

entre os fidalgos (desejando o rei actual estar em harmonia


com elles ) é talvez o que essencialmente concorre para lhe da
rem parte no governo. No logar que occupa póde prestar gran
des serviços á nobresa, que geralmente depende muito da co
róa por causa de grande parte de seus bens.
« O visconde de Ponte de Lima era camarista da rainha

mãe , e é o unico fidalgo, que jámais se achou em contacto com


o Marquez de Pombal, apesar do ensejo a que este ministro
algumas vezes e por varios modos dera logar, e em particular
pelo consorcio do seu filho segundo com um membro da fami
Tia dos Tavoras, que era uma casa da primeira nobresa do
paiz , sendo n'essa occasião conduzidos todos por elle a sua
casa , excepto a pessoa em questão, que, ainda que aparentado
com muitas familias com quem o Marquez de Pombal, por
meio dos casamentos de seus filhos, se ligava , se conservou
constantemente de fóra. Parece que attribuia ao Marquez as
desgraças de seu pae, que morreu preso em 1763. A rainha
mãe, a actual rainha e seu esposo tiveram -no sempre em sua
graça . Mostra possuir sentimentos honrados e justos, é devoto
e dizem que adquiriu alguns conhecimentos por meio do estudo ,
esperando-se tambem que, em vista do seu genio e inclinação ,
será activo no expediente dos negocios. Ora, como nunca oc
cupou logar algum , é provavel que não saia da esphera das
attribuições do seu cargo , ou que não intervenha nas das ou
tras repartições. Está adjuncto ao marquez d'Angeja .
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 297

« O sr. Mello , pela pratica e experiencia que tem tido dos


negocios tanto internos como externos, foi muito consultado e
occupado nos primeiros dias do novo reinado, em cousas que
pertenciam directamente a sua repartição. Apesar de o consi
derarem como um tanto desfavoravel ao clero ou á sua pre
ponderancia, não sendo por isso visto com muito bons olhos
na nova corte, é provavel que continue sem quebra de credito,
já porque ha no paiz poucas pessoas sufficientemente habilita
das para supprirem o seu logar, já porque nunca deixou de
achegar-se ao marquez d'Angeja no reinado anterior ; e sobre
tudo se usar da prudencia de não se intrometter nos negocios
ecclesiasticos, ao que talvez seja indifferente , se os padres não
fizerem influir as outras partes do governo na execução dos
seus intentos. É activo no desempenho das suas funcções co
mo ministro da marinha, e trabalha com zelo por apresentar
uma esquadra respeitavel. Falla com respeito do marquez de
Angeja , e parece ter o visconde de Ponte de Lima em grande
conta .
« Ayres de Sá , ainda que muito obrigado ao Marquez de
Pombal, é geralmente estimado pela sua probidade e bom ca
racter , e pode continuar na posse do cargo que exerce, em
quanto lhe convenha, porque dizem que tem vontade de reti
rar-se. Apesar de ter sido durante muitos annos empregado em
negocios tanto internos como externos, não gosta de encarre
gar-se de trabalhos complicados, sendo porém muito expedito
em materias usuaes. Tem tambem a seu cargo a repartição do
é

ministerio da guerra , mas parece-me que, por vontade sua,


o sr. Mello que interiormente a dirige até que officialmente
conste o que se haja determinado.
« O cardeal Cunha não é mais do que o que dantes era :
um simples algarismo tanto no estado, como na egreja. Ainda
que o visconde de Ponte de Lima gosa de grande valimento da
rainha , é provavel que o sr . Mello tenha muita influencia na
decisão dos negocios, com os quaes está já muito familiari
sado . »

Pela demissão de Pombal, foi nomeado presidente dos mi


nistros o visconde de Villa Nova de Cerveira, operando -se uma
298 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

mudança quasi completa nas diversas repartições do governo ,


e no paço . Foi porém permittido ao Conde d'Oeyras conservar
o seu logar de presidente do desembargo do paco.
Pombal, sem perda de tempo, retirou -se para a villa d'este
nome, poupando-se -lhe felizmente a dor de testemunhar os in
juriosos triumphos dos seus inimigos, e a decadencia e degra
dação do seu paiz.

« Chegou aquella terra, diz uma correspondencia do en


viado britanico , depois d'algumas difficuldades provenientes
do máo estado dos caminhos. Passa sem novidade, e creio que
o deixarão ali permanecer. Não obstante a liberdade, com que
muita gente falla do rigor da sua administração , julgo que os
ministros actuaes não estão dispostos a animar quaesquer vio
lencias contra elle . »

Porém os seus perseguidores não descançavam na execu


ção da sua vingança. Em abril de 1777 foi a sua effigie de
bronze arrancada , durante a noute, do pedestal da estatua
equestre de D. José, sendo substituida pelas armas da cidade.
E facil apreciar a politica e o principio donde nasceram os mo
tivos que os levaram a praticar esta triste baixesa. Os inimi
gos de Pombal queriam fazer desapparecer da vista do povo
tudo quanto podesse contribuir para conservar a memoria
d'aquelle ministro, que constantemente empregara os seus es
forços em beneficio do seu paiz ; e esperavam com este ultrage
publico, que podia sem duvida ser tomado como uma expres
são do desagrado régio , indispor o publico contra elle . Não
podemos com certesa asseverar quaes foram os verdadeiros
sentimentos de Pombal, quando lhe foi contado este caso . O
que vulgarmente se conta é provavelmente verdadeiro ; e é,
que o grande ministro se riu da maliciosa imbecilidade de seus
inimigos, e se mostrou satisfeito dizendo que era justo , que
um retrato tão pouco parecido com o seu original se sumisse
da vista do publico. Isto , verdade ou não , tende ao menos a
provar a opinião geral em que sempre foi tido o genio affavel
è a disposição de brandura de Pombal. Todavia , passados ses
senta annos, tornava a effigie a ser collocada no seu respectivo
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 299

logar, e debaixo tambem de circumstancias notaveis: tal é a


mutabilidade das cousas humanas.

Vejamos n’algumas linhas, e fazendo uma breve pausa, as


particularidades, que tem connexão com este facto. O artista ,
que moldou a estatua equestre, foi, como já dissemos, um bri
gadeiro chamado Bartholomeu , a quem depois encarregaram
de destruir a effigie de Pombal, para o que recebeu ordens
muito positivas. Comtudo este homem , depois de arrancal-a ,
não se entregou ao vandalismo da destruição ; porém , temendo
as consequencias, que podiam resultar, se se descobrisse que
cumprira á risca as ordens que recebera , concebeu e executou
o plano de, auxiliado por um sobrinho e por um criado de
confiança , transportal-a secretamente para o arsenal, onde, fa
zendo uma escavação n'uma parede, ahio metteu cobrindo ou
tra vez com cal a mesma excavação . Este militar e o criado
desceram á sepultura com o segredo. Porém o sobrinho , que
depois foi official de engenheiros, acompanhando n’esta quali
dade o marechal, hoje duque de Saldanha , a Montevideo ,
quando foi tomar o commando d'uma divisão militar em 1817 ,
pareceu -lhe que era inutil guardar por mais tempo o segredo.
Por conseguinte descreveu com tanta certesa e exactidão o es
conderijo da effigie , que o marechal viu que podia, quando re
gressasse a Portugal, descobrir o thesouro , que tanto tempo es
tivera occulto. Grandes acontecimentos politicos,de que resul
tou a emigração e a guerra civil, obstaram a que o marechal
durante muito tempo se certificasse da verdade do que referira
o dito official. Finalmente, depois que foi collocada no throno
D. Maria II , o marechal fez o duque de Bragança, D. Pedro ,
sciente do caso . D. Pedro manifestou logo o desejo que tinha

de que a effigie outra vez fosse posta no seu respectivo logar ,


e determinou que o dia designado para este effeito fosse o do
seu anniversario natalicio. Assim , foi o acaso que fez a Pom
bal esta tardia justiça , e foi tambem o mesmo acaso que fez
que um neto de Pombal fosse o instrumento que havia de ef
fectual- a .

O decreto , que se segue foi o que se promulgou por essa


occasião , pagando -se d'este modo um tributo de gratidão á me
moria de Pombal:--- « Sendo geralmente reconhecido que o Mar
300 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

quez de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello , fôra o


Portuguez que mais honrou a Nação no seculo passado; que
distincto pelos seus conhecimentos variados, firme pelo seu ca
racter, instruido pelas suas meditações, e pelas suas viagens,
e sobre tudo, dotado de um amor da Patria , de um zelo do
bem publico, e de um interesse pelo decoro e independencia
nacional, que sempre o levava nobremente a promover o bem
do seu paiz , e a naturalisar n'elle as vantagens da industria ,
da civilisação , do commercio , e das artes ; não é menos sabido
que a inconstancia dos tempos, e o capricho dos homens pre
tenderam denegrir na Patria o conceito, que nunca fóra d'ella
foi disputado a tão illustre genio, e fizeram , com ingratidão in
crivel, desapparecer a sua imagem do centro d'aquella mesma
Cidade, que elle tinha feito renascer das cinzas, para ser uma
das mais bellas capitaes da Europa.
« Tomando pois todos estes motivos na devida considera
ção , e Querendo ao mesmo tempo tributar ao grande homem a
justiça que lhe é devida, e apagar os vestigios de uma ingrati
dão, de que a geração presente regeita a responsabilidade, e
desapprova o erro: Hei por bem , em Nome da Rainha , que a
imagem em bronze do Marquez de Pombal, Sebastião José de
Carvalho e Mello , que havia sido arrancada do pedestalda Es
tatua Equestre de meu Augusto Avô , de quem fôra tão leal
servidor, e de quem tão zelosamente procurara sempre hon
rar a memoria, seja reposta no mesmo logar ; e que por lem
brança do dia , em que se praticou este acto de justiça, se lhe
ajunte por baixo , em letras de bronze, a inscripção seguinte
12 de outubro de 1833 = Palacio das Necessidades, em
10 de outubro de 1833. == D . Pedro, Duque de Bragança .
Depressa se manifestou a mudança operada no conselho
da rainha. Em 17 de maio de 1777 foram soltos o marquez
d'Alorna e os tres irmãos do ultimo marquez de Tavora , com
a obrigação de irem viver vinte leguas longe da corte pelo es
paço de tempo preciso para fazer esquecer o crime, que lhes
era imputado. Pouco depois foi Antonio Freire de Andrade de
Enserrabodes , que fora o ultimo chanceller do reino, reinte
grado na posse das suas antigas honras, sendo o bispo de Coim
bra tambem reintegrado no seu bispado. O conde de S. Vi
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 301

cente , cuja reputação se infamára por ter perpetrado um assas


sinato por motivo de ciumes, e o de S. Lourenço , foram tam
bem postos em liberdade. No anno seguinte regressou Seabra
de Angola, sendo declarado innocente de quaesquer faltas, e
agraciado com uma commenda , de que percebia o vencimento
annual de oito mil cruzados.
Não tardou nada que a rainha e os seus conselheiros des
fizessem e destruissem muitas regulações e reformas, em cuja
introducção tão sabiamente se empregaram D. José e o seu mi
nistro durante tantos annos. Entre ellas podemos citar o tribu
nal, que Pombal estabeleceu para limitar e definir o grau de
jurisdicção , que as leis do paiz conferiam á nunciatura em Lis
boa , o qual foi abolido.
Pombal deixara de preencher os logares que iam vagando
na patriarchal, que custava á nação oitenta mil libras annuaes.
A rainha, logo que tomou posse do throno, preencheu todos os
referidos logares. Para Roma foram remettidas quarenta mil
libras para indemnisação das despesas, que os estados pontifi
cios fizeram com a chegada dos jesuitas em Civita Vecchia . Foi
assim que em pouco tempo foram exhauridos os cofres do the
souro , que Pombal, por meio da prudencia e economia , traba
lhara
por deixar bem providos.
Nicolau Pagliarini, que, debaixo da protecção de Pombal,
dirigiu a fundação da impressão regia, foi expulso d'aquelle es
tabelecimento , e abandonou o paiz.
Em 5 de janeiro de 1778 foi ordenada a abertura do com
mercio para o Pará e Maranhão, sendo concedido á companhia
de Pernambuco só o praso de dous annos de privilegio . Não
houve effectivamente nada de que se não lançasse mão para
anniquilar os trabalhos herculeos de vinte e sete annos de sa
bedoria e continuo progresso .
No decurso do anno baixou um alvará declarando a rainha
que o conde de S. Lourenço tinha sempre servido na corte
com zelo , fidelidade e attenção , e que em quanto a seu pro
cedimento não tinha queixa alguma, e que nem se devia en
tender
que elle fora reo da mais leve culpa , que maculasse a
lealdade e reputação com que se distinguiu ; e outro alvará de
clarou tambem que servira sempre a coroa com manifesto ze
302 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

lo, fidelidade , e desinteresse o visconde de Villa Nova de Cer


veira (pae do que era secretario d'estado), que fora embaixa
r
dor em Hespanha, e que tinha sido preso por commette faltas
de que havia
provas.
Este exercicio da clemencia regia , manifesto não só no per
dão dos crimes politicos, mas na reintegração dos proprios de
linquentes nos logares de confiança e autoridade, preparou ,
como era natural, o caminho para a perseguição d'aquelle mi
nistro, que por sua vigilancia descobrira e punira as faltas dos
criminosos em seu principio .

Foi n'esta epoca que se observou um curioso costume, que


bem caracterisa o reinado em que teve logar, sendo por isso
digno de menção .
Em maio de 1779 foi commettido um desacato na fregue
zia de Palmella , pouco distante de Lisboa , sendo roubada a
custodia. Por este motivo tomou luto a corte por nove dias , fa
zendo -se no dia 28 do dito mez uma procissão de penitencia,
que saiu da egreja da Sé para a da Graça, e que a rainha e a
corte acompanhou . Ayres de Sá participou o caso com a devi
da formalidade a todos os enviados estrangeiros, que estavam
em Lisboa.
Sendo , no anno seguinte, descobertos os criminosos, man
daram fazer outra procissão em acção de graças por tão ditoso
successo .
CAPITULO XXV

Pombal, depois de retirar-se dos negocios publicos : como Wraxall o descreve


em 1772. Suas occupações. Reflexões sobre 17 cartas publicadas em Londres
em 1777 .

Recolhido no seu pacifico retiro, e animado pela sociedade


affectuosa de sua esposa e filhas, lisonjeava-se Pombal de que
poderia passar o resto de seus dias no socego e tranquillidade,
que a sua idade e padecimentos exigiam . Jámais a magnani
midade e firmesa, de que era dotado, o abandonaram , nem a
sua brandura se desmentiu pelas graves enfermidades, que o
affligiram , continuando antes a manifestar a sua familia e ao
mundo um nobre exemplo de paciente resignação , o que se acha
confirmado por muitos parentes e amigos seus que o viram na
sua ultima doença, e que viveram em nossos dias. Comtudo a
sua constituição soffreu grandes mudanças em poucos annos .
Wraxall,
que visitou Pombal em 1772, escreve : « Ao tempo
em que o vi, tinha feito setenta e tres annos ; porém a idade
parecia não ter diminuido n'elle o vigor, a frescura, nem a vi
304 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

vesa das faculdades intellectuaes. Emquanto á sua constituição


physica era alto e delgado, de rosto comprido, pallido, magro
e revelando muita intelligencia .»
Outro escriptor contemporaneo descreve-o empregando os
termos de « grande taille , physionomie imposante , très spirituel
et prodigieusement instruit ;; e accrescenta «politesse envers
les étrangers » e « douceur dans la société.» Na verdade, a do
çura da sua voz , a solidez dos seus argumentos, e os encantos
e brilho da sua conversação prendiam a attenção de todos
( estrangeiros ou nacionaes) os que com elle tinham relações
ou intimidade.
Pombal passou muito tempo do que ainda lhe restava em
ordenar os seus negocios, em rever os seus papeis, e em escre
ver sobre varios objectos relativos á sua administração . Dos
poucos escriptos do seu punho, que as guerras civis , a emigra
cão, e outras calamidades deixaram chegar até nós, ha um que
contém reflexões analyticas sobre umas cartas escriptas em in
glez, e publicadas em Londres , em 1777, pelo partido da op
posição em Inglaterra , no intuito de estigmatisar o procedimen
to do governo, de que estava á testa lord Northon . Chegando
pois as referidas cartas á villa de Pombal em janeiro de 1780 ,
arrancaram ao velho ministro o que se acha exposto no seguinte :

« Compendio historico e analytico do juizo que tenho formado


das dezesete cartas continuadas na collecção estampada no
anno de 1777 em Londres no idioma inglez, e recebidas na
villa de Pombal nos principios de janeiro do anno de 1780..

« 1.° As violencias, e inopinadas invasões, que o governador


de Buenos -Ayres D. João José de Vertes e Salzedo, fez no Rio
Pardo, e de Š . Pedro , desde o fim do anno de 1774 á testa de
um exercito de seis mil homens de tropas regulares, e de um
muito maior numero de indios armados, deram urgentes moti
vos ás vivas queixas, que o marquez de Lavradio , vice-rei do
Brasil, mandou á sua côrte , afim de o soccorrer, de sorte que
se constituisse no estado de poder repellir a dita violencia feita
com o maior exercito, que até então se tinha visto n’aquelle
vastissimo continente .
CAPITULO XXV

Pombal, depois de retirar-se dos negocios publicos : como Wraxall o descreve


em 1772. Suas occupações. Reflexões sobre dezəsətə cartas publicadas em
Londres em 1777.

Recolhido no seu pacifico retiro, e animado pela sociedade


affectuosa de sua esposa e filhas, lisongeava-se Pombal de que
poderia passar o resto de seus dias no socego e tranquilidade,
que a sua idade e padecimentos exigiam . Jámais a magnani
midade e firmesa de que era dotado , o abandonaram , nem a
sua brandura se desmentiu pelas graves enfermidades que o
affligiram , continuando antes a manifestar a sua familia e ao
mundo um nobre exemplo de paciente resignação , o que se acha
confirmado por muitos parentes e amigos seus que o viram na
sua ultima doença , e que viveram em nossos dias. Comtudo a
sua constituição soffreu grandes mudanças em poucos annos.
Wraxall, que visitou Pombal em 1772, escreve : «Ao tempo
em que o vi, tinha feito setenta e tres annos ; porém a idade
parecia não ter diminuido n'elle o vigor , a frescura , nem a vi
vesa das faculdades intellectuaes. Emquanto á sua constituição
VOLUME I 21
304 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

physica era alto e delgado, de rosto comprido, pallido, magro


e revelando muita intelligencia .»
Outro escriptor contemporaneo descreve- o empregando os
termos de « grande taille, physionomie imposante, très spirituel
et prodigieusement instruit ;» e accrescenta « politesse envers
les étrangers » e « doceur dans la société. » Na verdade, a do
çura de sua voz , a solidez dos seus argumentos, e os encantos
e brilho da sua conversação prendiam a attenção de todos
(estrangeiros ou nacionaes) os que com elle tinham relações
ou intimidade. 1

1 Grande numero de viajantes estrangeiros, que visitaram este paiz durante


o reinado de D. José, nos fallam do nosso grande Marquez, elogiando- o uns, de
primindo-o outros, conforme a sua maneira de encarar as cousas, mas todos pa
tenteando seu respeito ao homem , que tinha n’aquella epocha tornado Portu
gal um dos mais fallados paizes do mundo. Nenhuma descripção, porém encon.
trámos , nem mais minuciosa , nem mais interessante, que a do duque de Chate
let, hospedado por alguns dias em casa do Marquez de Pombal, e que com elle
conviveo intimamente. As Viagens do duque de Chatelet são muito interessan
tes, e já não vulgares, motivo porque não deixará de agradar a transcripção
n'esta obra, da passagem referida, aproveitando-nos para isso d'um trabalho ine
dito , devido á penna do Sr. Manuel Bernardes Branco e intitulado - Diccionario
dos escriptores estrangeiros, que escreveram sobre assumptos portuguezes, obra
que brevemente verá à luz da publicidade.
Eis a narrativa do duque de Chatelet :

«N’uma das digressões , que fiz em Portugal com o fim de visitar o interior
d'este reino , fui vêr o Marquez de Pombal. Eu lhe era recommendado d’am mo
do particular, motivo pelo qual me recebeu com todas as attenções possiveis. Co
nhecia este ministro de fama, e era inexprimivel o desejo, que en tinha de co
nhecel-o pessoalmente. Cheguei pois á villa de seu nome, e, da minha hospe
daria lhe escrevi com o fim de saber a hora en que lhe poderia entregar as car
tas, que tinha para elle. Alli me dirigi pelas dez horas da manhã, e fui introdu
zido na habitação d'este grande homem . Actualmente está algum tanto melhor
alojado, mas na épocha em que o vi, estava n'uma pobrissima casa, e dorinia
n'um quarto , cujas paredes tinham sido estucadas de novo .
«As maneiras do Marquez de Pombal são agradaveis e attenciosas em extre
mo. Fez -memil perguntas ; affectou ignorar completamente o que se passava pela
Europa. Pediu -me que o informasse dos acontecimentos . Até me fez perguntas
relativas a Portugal, e sobre o estado em que se achava Lisboa. Quiz saber que
motivo, ou acaso me conduzia aquelle logar tão affastado.- Costumado , lhe disse
eu , a viajar desde minha mocidade , visito sempre o interior dos paizes , que per .
corro , não melimitando as cidades principaes, e portos de mar , nos quaes nada
ha de novo a estudar. Mas além d'isto desejava conhecer quem tanto tinha be
neficiado o seu paiz . Entrámos pouco a pouco em conversa : convidou -me a pas
sar com elle oito dias, e fez-me ficar para jantar e cear n’aquelle dia . Exprimi
lhemeu espanto sobre o estado, em que tinha achado Lisboa , attendendo ao pou
co tempo decorrido depois desua catastrophe. Respondeu -me que presentemente
não cuidava em nada d'isso ; achava-se velho, e pensava em descançar ; porém
que, se a Providencia the tivesse conservado seu amo por mais tempo , ter -se -hia
esforçado em continuar com o mesmo zelo a empreza, cuja execução apenas pu
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 305

restava em
Pombal passou muito tempo do que ainda lhe
ordenar os seus negocios, em rever os seus papeis , e em escre
ver sobre varios objectos relativos á sua administração . Dos
poucos escriptos do seu punho , que as guerras civis, a emigra
ção , e outras calamidades deixaram chegar até nós, ha um que

dera esboçar ; e que, sem duvida , teria lançado os alicerces d’um palacio para o
rei. Patenteou -me o magnifico plano, que tinha adoptado para este edificio . Si
tuado n'uma pequena eminencia , perto de Belem , teria dominado o mar e a ci
dade, seria construido no centro d’um grande jardim , cercado de altos muros,
aos quaes estariam de distancia em distancia contiguos os palacios dos principaes
senhores da côrte, e os aposentos das pessoas, que n'elles fossem obrigados a re
sidir por causa de seus cargos.»
10 Marquez de Pombal trouxe comsigo muitos livros : ou lê , ou manda ler
continuamente : os livros são todos francezes. Falla nossa lingua tão facilmente,
como nós mesmos : sabe egualmente bem o allemão, inglez , e italiano. Não pro
nunciava sem grande ternura o nome de seu respeitavel amo. « Honrava -me, di
zia elle, com sua confiança. Perder seu rei e seu amigo ! É uma prova forte de
mais para eu poder resistir a ella ! Por isso o sol para mim perdeu o brilho de
seus raios ! Nada , nada me pode indemnisar da perda, que padecil, A isto al
gumas lagrimas caíam de seus olhos. Em vão procurava desviar a conversa para
um outro assumpto , para este me levava sempre.--Ao menos, continuava elle ,
aqui serei feliz . Vedes esta choupana ? Não éminha : tomo-a de aluguer. Aquelle
homem accusado de não ter pensado mais que ein si, nem mesmo na sua terra
inandou construir um aposento .) — Depoismostrando -me um grande edificio novo
É um armazem pertencente á villa . Mandei-o construir para n'elle se guardarem
os cereaes, dos quaes está cheio . Emfim , á maneira de Sully , viverei mais afor
tunado em meu retiro , que no meio dos grandes e da côrte. Deixaram -me trazer
meus livros, e por isso pouco me resta a desejar .,
Acabava , quando a marqueza de Pombal, sua mulher, chegou : teve a bon
dade de me apresentar a ella . Conserva ainda uma parte de seus dotes pessoaes;
e veste-se com muita arte e gosto . É discreta, sem duvida ; porém não possue a
força , nem o valor de seu marido para tolerar sua situação . No tempo da pros
peridade do Marquez de Pombal tinha a seus pès os grandes e o povo : sua casa
era uma especie de côrte. Quando os homens a iam visitar, punham -se de joelhos
para lhe beijarem a mão, segundo o costume do paiz . Sua vaidade, lisongeada
por tantas adulações, não se pode acostumar ao isolamento , a que foi condemna
da pela desgraça de seu marido. Desamparada de toda a gente , solitaria, n’uma
villa desviada de povoações, a unica satisfação que tem , é de vêr seus filhos , que
algumas vezes vão passar com ella quinze dias. Nascida allemã, tem o orgulho
das grandes familias da sua nação , e, depois de ter tido tanto de que lisongear.
se, geme em segredo na expiação. Tentou disfarçar suas máguas, mas não o pô
de conseguir por muito tempo . Passados dez minutos de conversação , achavam
se seus olhos arrasados de lagrimas. « Aquillo e proprio de seu sexo, me dizia o
Marquez ; consolal-a é para mim uma outra occupação,mas seguindo meu exem
plo, bem depressa aprenderá a supportar nosso infortunio ., Úm instante depois
Vieram participar, que o jantar estava na mesa . « Vinde, disse -me elle, tomar
parte na comida frugal d’um eremita.. Em vez de comida frugal, que me an
nunciava, encontrei uma mesa bem servida , e na qual nada se resentia de sua
desventura,nem mostrava o sainete da desgraça . Ao todo não passavamos de tres.
A conversa foimuito jovial. Entrei a fallar com a marqueza a respeito de Alle
manha, e por algum tempo fallamos na sua lingua. Foi breve o jantar, ou pelo
menos assim me pareceu : o calor era excessivo. »
Depois de nos levantarmos da mesa , cada um foi descancar por algunsmo
306 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

contém reflexões analyticas sobre umas cartas escriptas em in


glez, e publicadas em Londres, em 1777, pelo partido da op
posição em Inglaterra , no intuito de estigmatisar o procedimen
to do governo, de que estava á testa lord Northon . Chegando
pois as referidas cartas á villa de Pombal em janeiro de 1780,
arrancaram ao velho ministro o que se acha exposto no seguinte :

mentos. Approveitei-me d’este tempo para ir percorrer o logar habitado pelo il.
lustre par . Não é tão desagradavel, como em Lisboa m’o tinham pintado . N'uma
altura estão as ruinas d’um velho castello , offerecendo uma vista bastante pitto
resca ; as aguas são excellentes.)
« Ao sair de casa do Marquez deparei á sua porta com mais de duzentas pes.
soas, a quem se distribuia pão e caldo.D'este modo é que elle tem adquirido um
grande numero de partidarios, que o exaltam mesmo em sua desgraça : pareceu
me ser bem quisto de todos oshabitantes do lugar. Finalmente depois d'um pas
seio de cerca de duas horas, voltei para casa do Marquez, a quem encontrei no
meio de seus livros. Continuamos a conversa . Perguntou -me se tinha visto a ce
remonia da coroação da rainha. Advinhei onde queria chegar : respondi-lhe que
sim , e que me parecia ter-se celebrado com muita pompa e magestade. Quiz sa
ber se eu tinha reparado em todos os encommodos, a que seus inimigos se tinham
entregado para o perderem , e até me pediu alguns pormenores a respeito da ma
neira como o povo tinha procedido . Disse-lhe quanto sabia, e accrescentei que
esta circumstancia era mais um triumpho para elle, porque demonstrava não só
a impotencia de seus adversarios ,mas até sua animosidade. A estas palavras dis.
se-me com a maior vivacidade, a qual lhe fica muito bem — « Avançam um pa
radoxo, fazendo-se interpretes do povo : mandam -lhe dizer que me deteste ! Mas
isso é impossivel : minhas acções, meu procedimento , tudo me assegura do con
trario . O povo portuguez não me pode odiar, e vós ides ouvir a razão. Que é o
portuguez hoje ? Que era elle quarenta annos antes ? Não o puz eu em estado de
já não ter necessidade de seus visinhos ? Não estabeleci eu por toda a parte as
artes, as officinas, o ensino ? Não fiz além d'isso reedificar um terço da cidade
de Lisboa ? Não propaguei a actividade, e não derramei o bem estar por entre
os operarios ? Não : por todos os direitos, que eu creio ter ao reconhecimento
d'esse povo, tenho -o por assaz justo, para me querer devorar : e até não o fez.
Vou dizer -vos quaes os authores de quanto podereis ter ouvido e percebido no
tempo da coroação. Os fidalgos, que se obstinavam em suas insolentes prelen
sões, as quaes eu quiz anniquilar , empregaram todos os meios possiveis para me
perderem . Elles não podiam decentemente mostrar-se à frente do partido perse
guidor. Que fizeram ?'Escolheram algumas de suas creaturas, que disfarçadas em
barbeiros, cosinheiros, marinheiros etc., divagavam pelos lugares publicos, des
accreditando-me, e pintando-me com as mais horriveis cores. O povo , que facil
mente é seduzido , secundou um resentimento, ao qual lhe faziain crer ser um de
ver associar- se . Aborrecia-me, porque lhe diziam que assim era mister. Varias
pessoas, que vós conheceis, accrescentou elle, com o fin de malquistar-me, an
daram por alguns dias debaixo d’um tal disfarce , confundiram - se com a ralé , e
inventaram calumnias, que lhe apresentaram como verdades incontestaveis. Fi
nalmente quanto obrei, foi por ordem de meu amo, e nada tenho de que arre
pender-me. Accusaram -me principalmente de ter sido cruel ; mas obrigaram -me
a ser rigoroso . Quando eu annunciava as ordens do rei, e não faziam caso d'el
las, era indipensavel recorrer á força : as prisões e os carceres foram os unicos
meios, que encontrei para domar esse pavo cego e ignorante."
« D'esta forma passei em casa d'este ministro cinco dias nas conversasasmais
interessantes. Teve a bondade de communicar-me a respeito de Portugal varias
noções e reflexões, de que fiz uso no decurso de minha obra.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 307

C
Compendio historico e analytico do juizo que tenho formado
das dezesete cartas continuadas na collecção estampada no
anno de 1777 em Londres no idioma inglez, e recebidas na
villa de Pombalnos principios de janeiro do anno de 1780. »

« 1.° As violencias, e inopinadas invasões, que o governador


de Buenos -Ayres D. João José de Vertes e Salzedo , fez no Rio
Pardo, e de Š. Pedro, desde o fim do anno de 1774 á testa de
um exercito de seis mil homens de tropas regulares, e de um
muito maior numero de indios armados, deram urgentes mo
tivos ás vivas queixas, que o marquez de Lavradio , vice -rei do
Brasil, mandou á sua corte , afim de o soccorrer, de sorte que
se constituisse no estado de poder repellir a dita violencia feita
com o maior exercito , que até então se tinha visto n’aquelle
vastissimo continente .
« 2.° Logo que chegou a Lisboa o dito aviso , foram as
necessarias consequencias d'elle, a primeira , expedirem -se- lhe,
sem a menor perda de tempo , as ordens vigorosas, em cuja
execução foi o dito marquez vice-rei, soccorrido com as maio
res forças da terra e de mar, que as faculdades do exercito
da marinha, e dos arsenaes, poderam permittir . Segunda, ex
pedir-se ao embaixador D. Francisco Innocencio de Sousa Cou
tinho, as instrucções mais claras, e urgentes, para pedir á corte
de Madrid as reparações d'aquelles attentados commettidos pelo
seu governador, pendente a negociação sobre o cumprimento
do tratado de 10 de fevereiro de 1763. Terceira , expedir -se
ao enviado extraordinario Luiz Pinto de Sousa , outras urgen
tes instrucções para reclamar as fortes garantias daGrã -Breta
nha , estipuladas no art. 21.º da alliança offensiva de 16 de
maio de 1703, no art. 5.° da outra alliança defensiva da mes
ma data ; no art. 20.º do tratado de Utrecht, feito no anno de
1713, entre Hespanha e Inglaterra , e confirmada a garantia
n'elle estipulada pelo artigo passado ao grande sello de Ingla
terra em 8 de agosto do mesmo anno de 1763 ; no art. 22.°
do tratado assignado no mesmo congresso de Utrecht entre Por
tugal e Hespanha , que tambem foi roborado com o mesmo sello
grande de Inglaterra em acto formal de 1715 1.
308 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

« 3.° Só as primeiras das referidas instrucções produziram


os effeitos de suspenderem a torrente das invasões do gover
nador de Buenos Ayres, e de restaurarem as margens meridio
naes do Rio Grande de S. Pedro , com a villa do mesmo nome,
e os territorios a ella adjacentes até ao forte de Santa Theresa ,
aonde os hespanhoes se foram introduzir, e com o Rio Pardo .
«4.° As segundas, foram inteiramente infructuosas ; por
que como não continham em si abandonarmos nós a alliança
de Inglaterra , que tinha feito o ponto principal de todas as vis
tas do marquez de Grimaldi, todos quantos officios lhe passou
D. Francisco Innocencio de Sousa Coutinho, serviram somente
de se ir accrescentando cada dia mais a acrimonia entre as
duas côrtes .
«5. As terceiras instrucções, não tiveram successo mais
feliz, sempre foi um achaque tão pernicioso , como inveterado
no gabinete da corte de Londres , preferirem os ministros d'elle
as suas pessoaes conveniencias de se conservarem nos lucro
sos logares, que occupam , a todos os maiores interesses publi
cos nacionaes, e estrangeiros, com um erro de politica , que fez
a casa de Austria irreconciliavel inimiga da Inglaterra , sendo
sua tão natural e indispensavel alliança com os vinculos mais
estreitos de vantagens reciprocas, e este errado systema, foi o
que arruinou , e frustrou todos os successivos, e urgentes offi
cios, que foram passados por Luiz Pinto de Sousa aos actuaes
ministros do conselho intimo d'el-rei de Grã - Bretanha .
«6. Foram sempre subterfugindo ao cumprimento de to
das as garantias acima declaradas, com as declinatorias, e es
capatorias, mas exquisitas, e estranhas, até que vendo -as con
vencidas com força insupportavel a toda a resposta, que fosse
pelo menos apparente,recorreram ao estranho estratagema, que
vou substanciar.

« 7.° Por uma parte, havia sempre constantemente recebi


do D. Francisco Innocencio de Sousa , as successivas ordens
mais precisas, e apertadas, para reduzir as suas instancias a
1 Tudo o referido se acha manifesto pelas tres grandes collecções , que ao
tempo da minha retirada deixei na secretaria d'estado dos negocios do reino, ao
official maior Clemente Isidoro Brandão: a primeira das instrucções expedidas
ao marquez de Lavradio ; a segunda, de outras instrucções ex pedidas á côrte de
Madrid ; e a terceira , de outras expedidas para a côrte de Londres.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 309

pura, simples, nua , e litteral execução do art. 21.º do tratado


de 10 de fevereiro de 1763, no qual se havia estipulado a res
peito das colonias portuguezas, na America, Africa, ou nas In
dias orientaes, se houvesse acontecido qualquer mudança , to
das as cousas se tornariam a pôr no mesmo pé , sem que com
a dita , pura, simples, nua, e litteral execução se misturassem
questões algumas relativas a quaesquer tratados precedentes.
$ 8.° Por outra parte, porque o marquez de Grimaldi ve
rosimilmente para evadir a força das instrucções, que o dito
embaixador de Portugal lhe fazia na sobredita fórma suppoz
que era duvidoso, e podia fazer um assumpto de comprimen
to , o facto da referida execução, que se acha manifesto , e in
dubitavelmente ligado, se tinha expedido no mez de julho de
1775 , com o dito embaixador , destas palavras: = «Diga a
el-rei seu amo o que quer ? Porque sua magestade ( isto é a ca
tholica) ha de convir inteiramente, ainda que seja com a ces
são do seu proprio direito.» = Sobre a informação d’este facto ,
recebeu o embaixador mesmo as ordens de declarar ao referi
domarquez deGrimaldi, que el -rei seu amo (nos termos d'aquella
exhorbitante boa vontade d’el-rei seu cunhado ) mandaria logo
expedir um navio de aviso ao Rio de Janeiro , com a ordem de
se fazer cessar no sul todas as hostilidades, e de se restituirem
as cousas ao estado, em que se achavam no dia da sobredita
declaração obrigante , e pacifica , no caso, em que sua mages
tade catholica fizesse expedir uma carta reversal, concebida
n'aquelles mesmos termos. Ordem , que o mesmo embaixador
executou logo, passando copia d'ella por officio formal ao so
bredito ministro d'estado seu conferente .
« 9. Por outra parte recebeu o mesmo embaixador de
Portugal, desde o principio do seu ministerio, e por todo o
tempo d'elle, as successivas ordens de obrar de accordo em
todos os passos que fizesse na côrte de Madrid com lord Gran
tham embaixador n’aquella corte d'el-rei de Grã -Bretanha , como
o senhor Ayres de Sá tinha praticado com o lord Rocheford.
« 10.0 E o que se seguiu de todo o referido, foi avisar o
dito embaixador. - Primo: Que contra as suas ditas ordens,
tinha apresentado uma grande deducção , em que envolveu to
dos os tratados antigos , quando estes se achavam já abatidos
310 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

desde a paz de Utrecht. - Secundo: Queo dito lord Grantham , ti


nha tomado a si o ajustamento de todas as differenças. — Tertio :
Que o mesmo lord lhe persuadia, que o unico meio de evitar du
vidas, era o de recolher a sobredita carta de officio , e escrever
no logar d'ella a outra que o mesmo lord lhe dictou , sem deter
minar datas para as restituições. — Quarto: Que elle embaixador,
fiado na fé d'aquelles amigaveis conselhos do dito lord , havia
tomado sobre si o recolher a dita carta , e escrever a segunda sug

gerida , e dictada pelo mesmo lord mensageiro da tal negociação.


11. Havendo-se visto com a admiração , que é facil de
comprehender , todo o referido em conferencias com o senhor
Martinho de Mello e Castro, e o senhor Ayres de Sá e Mello,
pelas largas experiencias, que o primeiro tinha da corte de
Londres, e o segundo da de Madrid , se assentou de uniforme
accordo, como positivamente certo, que todos os escabrosos , e
capciosos conselhos, e passos de lord Grantham manifestavam
n'elle um notorio estratagema do ministro de Londres, man
dado pela sua côrte para subterfugir ás suas innegaveis garan
tias, principalmente á execução do art. 21.º do tratado de 10
de fevereiro de 1763 na confusão de todas aquellas contro
versias, sollicitadas com os antigos tratados abolidos do secu
lo presente , e que com este doloso fim havia o dito lord Gran
tham tomado em um sentido sinistro as ordens, que o dito em
baixador de Portugal tinha recebido, para se regular pelas di
recções do de Inglaterra ao uso, cuja malicia passou de ser
estranha, a fazer -se horrorosa .
« 12. Comprehendendo-se pois á vista d'ella que nada ha
via que esperar dos ministros do gabinete de Londres, lembrou
ao dito senhor Martinho de Mello e Castro , que em termos
muito menos escabrosos, se tinha elle valido no anno de 1762
com impenetravel segredo dos lords da opposição contra a córte,
para obrigar aos ministros d'ella a que nos prestassem os au
xilios estabelecidos pelos tratados de alliança. Que por este
meio indirecto, tinha conseguido os soccorros, que sem elle
não haveria obtido, só por effeito dos seus officios passados á
Côrte pelo modo directo e ordinario : e que não haveria outro
meio que podesse ter a força necessaria para repellir a perfi
dia d'aquelle estratagema.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 311

« 13.° Havendo feito presente ao senhor rei D. José todo o


referido , e havendo sua magestade approvado com as suas reaes
ordens os pareceres das sobreditas conferencias, conseguiu
achar logo meio de abrir com o duque de Manchester (um
dos chefes mais fortes da actual opposição ) uma secretissima
correspondencia , cujas cartas deixei na secretaria d'estado
debaixo da inspecção do official da secretaria José Basilio
da Gama como unico manuense, que tinha sido d'ellas, para
as entregar ao ministro , que fosse nomeado para meu succes
sor .
14.° Por effeito d'aquella correspondencia secretissima,
veiu a assegurar-me o referido duque de Manchester, que esti
vessemos seguros, em que haviamos ter auxilios, porque não
caberia nas forças do ministerio Britanico , negar- nos os soc
corros.
« 15.° 0 que acabo de substanciar acima, era o estado das
negociações com a corte de Londres, até ao dia 5 de março do
anno proximo passado de 1777,em que partida barraca de Nos
sa Senhora da Ajuda para este retiro de Pombal, pois dias depois
vi claramente que as referidas promessas dos lords da opp0
sição, não tinham sido vãs, e que elles estavam na certeza de
haver um proximo rompimento, entre Portugal, e Hespanha , e
de que n'elle nos ia logo soccorrer a Inglaterra .
« 16.° Porque havendo eu chegado a esta villa de Pombal
com a minha familia no dia 15 d'aquelle mez, entraram n'esta
casa no dia 19 d'elle (dirigidos pelo enviado extraordinario
Luiz Pinto de Sousa com cartas suas para me entregarem , sup
pondo -me ainda na secretaria d'estado ) mr. Blanket, por quem
tinha corrido a negociação com o duque de Manchester , e
lord Carlos de Montagul, irmão do mesmo duque, e tenente co
ronel das tropas britanicas, dizendo-me o primeiro d'elles, que
vinha destinado a servir no exercito de Portugal. O segundo
( quando viu, que eu me escusava de lhe admittir pratica em
cousa alguma pertencente ao ministerio) que vinha ver a nova
Universidade de Coimbra .

« 17.° No mesmo dia, participei á corte o que acabava de


passar com os ditos officiaes, por duas cartas, uma escripta ao
Officialmaior Clemente Isidoro Brandão , remettendo - lhe o masso
312 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

que acabava de receber de Luiz Pinto de Sousa ; outra fecha


da com subscripto para o meu, ainda tão ignorado successor,
referindo o que havia passado com os sobreditos dois officiaes
inglezes para que quando chegassem a Lisboa, não fosse o
ministerio por elles surprehendido.
« 18.0 Não tinha visto , nem ouvido depois d'aquelle tem
po, cousa alguma respectiva ás negociações entre Portugal, e
Inglaterra , nem ás controversias entre o ministerio da corte de
Londres, e o partido da opposição , além do que se publicou
nas Gazetas, quando nos principios de janeiro, recebi de meu
filho o conde de Oeyras, o masso do sobrescripto , dizendo-me,
que o tinha achado entregue em sua casa.
« 19.° Abrindo o referido masso , achei dentro d'elle a carta
demr. Blanket sobredito, e o caderno , que contém a collecção
das dezesete cartas estampadas no idioma britanico, que tinham
feito o seu assumpto .
« 20. Porém , porque os grandes estudos, que me foi ne
cessario fazer na corte de Londres, para me instruir na histo
ria , e na intrincadissima constituição, e legislação d'aquelle
paiz, para não viver n'elle ás cegas, e as graves, e quasi con
tinuas enfermidades, que n'elle padeci, me não haviam nunca
permittido aprender uma lingua tão difficil para os portugue
zes, como é a lingua ingleza , ficou a dita collecção inutil; eu
sem entender o que ella continha , e a marqueza de Pombal
com o maior desejo de saber o que n'ella se conservava , por
não ter aqui outra diversão , que não seja a de lêr as Gazetas,
e papeis publicos, que chegavam a este desviado retiro.
( 21.° Quando meachava no referido caso , recebi uma car
ta do director da fabrica dos vidros cristalinos Guilherme Stef
fens, cujos bons costumes, e docilidade de engenho me fizeram
ha muitos annos a sua pessoa estimavel, e que me tem feito
aqui a boa visinhança, que pode caber n’elle, carta na qual em
data de 16 de fevereiro proximo preterito , me referiu , que es
tava esperando umas cartas impressas em Londres, e que m'as
remetteria logo que as recebesse.
« 22. Julgou a marqueza de Pombal, que poderiam ser
as mesmas conteudas na dita collecção, e consequentemente
me pediu , que as mandasse ao dito Guilherme Steffens, com
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 313

recommendação de as fazer traduzir por pessoa a quem elle

podesse pagar o seu trabalho. Tendo porém sua irmã Phila


delfia Steffens contrahido, com a occasião da visinhança , ami
sade com a mesmamarqueza , tomou por empenho, traduzir as
referidas cartas, e as foi periodicamente remettendo á propor
ção, que as ia traduzindo .
« 23.° Quanto mais fui ponderando , e analisando as refe
ridas cartas, tanto mais claramente fui vendo que ellas não
foram escriptas por um particular erudito, com o fim de in
struir aos seus leitores no conhecimento da historia d'este rei
no, nem de fazerem os meus louvores pessoaes , por que as
apologias das calumnias, que contra mim se publicaram , foram
as que fizeram o objecto da referida obra , como se procurou
dissimular no preambulo da primeira das referidas cartas, com
o artificio notorio de captarem assim os escriptores d'ellas a
maior credulidade do publico, quando as suppozesse escriptas
por pessoas imparciaes, sem outro estimulo, que não fosse o
zelo da verdade, nem as referidas cartas, podiam haver tido
outros objectos, que não fossem os das fortes e terriveis oppo
sições ao ministerio britannico, para lhe destruir inteiramente
a reputação , e o credito ministerial.
Quanto aos authores das referidas cartas, concluo , que
não podiam ser, nem do duque de Manchester , e mr. Blanket
sómente ; mas sim de todo o partido dos lords da opposição
contra a côrte, pelas razões seguintes.
24.° Por uma parte, se vê notoriamente , que as claras,
e depuradas deducções, que se contém nas ditas cartas, da
historia antiga, e moderna d’este reino , das forças, commercio ,
e agricultura d'elle , dos seus tratados com a Inglaterra ; do ul
timo estado das negociações entre as cortes de Lisboa, de Ma
drid , e de Londres, sendo tudo isto reduzido ás suas proprias
epochas, e precisas datas, e aos termos especificos mais justos,
e mais certos, claramente se vê, que só podiam ser obras de
ministros das tres referidas cortes , uma completa noção dos
officios, e negociações de D. Francisco Innocencio em Londres ,
ministro d'estado , digo , que se está vendo com a mesma cla
reza, haverem sido por exemplo o conde de Chatam , antes pri
meiro ministro , o lord Schelburne , antes secretario d'estado;
314 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

o lord Combedem , que sempre teve todos os segredos do conse


lho do gabinete d'el-rei da Grã - Bretanha, e outros, como elle .
« 25.° Por outra parte, havendo combinado as referidas
cartas com os ultimos papeis publicos dos debates do parla
mento que vieram publicados nas Gazetas, achei que o espiri
to , o estylo , e o caracter de escrever , e os objectos das prati
cas dos sobreditos tres lords, são identicamente asmesmas das
referidas cartas, e em toda a boa hermeneutica está a identi
dade nos auctores de uns, e outros escriptos.
« 26.° E pela outra parte , não me fizeram vacilar no so
bredito juizo os manifestos erros, que contém algumas das re
feridas cartas a respeito do santo officio da inquisição, e dos
outros negocios ecclesiasticos d'este reino, porque são ma
terias nas quaes ainda em homens tão grandes, como os so
breditos, se acha a mais crassa ignorancia em todos os paizes
do norte. Não conhecem os direitos, que separam o sacerdocio
do imperio , e os justos limites que Deus Nosso Senhor pres
creveu a um , e outro, contrariamente laboram nas preoccupa
ções, e nos absurdos, que me deram muito , em que trabalhar,
com pouco, ou nenhum fructo , em quanto andei n'aquelles pai
zes, e não ha quem lhes tire da cabeça, que os portuguezes
foram sempre escravos da curia de Roma, e dos ecclesiasticos
por ella governados .
« 27.° Quanto a não haverem sido os meus louvores os
que fizeram os verdadeiros assumptos das ditas cartas apo
logeticas ; ainda que o conde Chatham no seu ministerio , hon
rou muito o meu nome, sem eu ter nunca fallado com elle, e
que conheci, que elle, e os mais lords do seu partido, me po
deriam querer mostrar algum reconhecimento pelo zelo com
que sempre concorri , para que Portugal se conservasse na al
lianca de Inglaterra em quanto me pareceu , que ella era util
ao serviço do meu rei, e senhor natural, e ao bem commum
da minha patria ,de nenhuma sorte pude crer, que no presente
estado do mundo, e na minha actual situação, quando n’ella
não posso fazer nem bem , nem mal aos sobreditos lords, fosse
tão grande, e tão ardente a sua caridade , que um congresso
de tantos fidalgos da primeira ordem d'aquella corte, no mes
mo tempo, em que se achavam occupados, e agitados na maior
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 315

força dos debates do seu partido, tomassem o extraordinario


trabalho de escrever as referidas cartas , com o unico fim dos
meus louvores, e de fazerem a meu favor uma apologia tão la
boriosa , se nada mais houvesse .
« 28.° Estimo, que quando sobre elle discorro attenta e
cuidadosamente com o vagar, que me permitte o retiro , em
que me acho , me salte logo aos olhos, que eu nas referidas
cartas servi somente de pretexto aos sobreditos lords, para fa
zerem o verdadeiro, e certo ponto de vista dos seus fulminan
tes tiros ao actual ministerio de Londres.
« 29.° Isto é,desarmando -o antes de tudo , de todos os pre
textos a que podia recorrer para se escusar com a nação , ani
mando o odio universal d'ella contra o mesmo ministerio , fazen
do ver ao publico , que elle se acha réo dos maiores crimes de
leza magestade, e felonia . Demonstrando-lhe, que o mesmo mi
nisterio sacrificou aos seusparticulares interesses , e paixões pes
soaes a honra , e a reputação nas occasiões , e nos mais consi
deraveis interesses de Inglaterra , no ingrato , e aleivoso aban
dono da alliança de Portugal, e que o mesmo Portugal foi
constituido na extrema necessidade de unir -se á Hespanha, pe
las violentas grosserias, com que a isso o forçou o ministerio
britanico .
Quantos aos sobreditos pretextos de que desarmaram o
ministerio de Londres .
( 30.• Viram os ditos lords, que o primeiro pretexto , com
que o ministerio de Inglaterra tinha procurado fugir do soccor
ro de Portugal nas duas conjecturas do mez de fevereiro de
1735 , e do mez de março de 1762, consistiu em persuadir á
sua nação, que Portugal era uma courela de terra pouco si
gnificante, e que n'ella sendo muito limitada a população, é
consistente em homens preguiçosos, e inertes sem prestimo
algum .
<31.° E para desarmarem este pretexto demonstraram ,
pela primeira carta , que essa pequena terra , e esses poucos
homens inertes, não só se tinham conservado a si por seculos
dentro no seu abbreviado continente, mas tinham feito muito
vastas, e muito gloriosas conquistas, sem que alguem os aju
dasse para ellas em todas as partes do mundo descoberto . E
316 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

pela segunda, que apesar das grandes forças hespanholas, sa


cudimos a sujeição á Hespanha, e restaurámos a nossa liber
dade, manifestando as causas, em que desde a acclamação do
senhor D. João IV , nos conservamos sempre .
«32.° Viram os mesmos lords, que o segundo pretexto,
havia consistido, em se espalhar que a inercia , e a preguiça ,
tinham reduzido Portugal á extrema falta de cabedaes, e de
forças politicas, que se fazia preciso que a Inglaterra o tomas
se sobre as suas costas, como um corpo morto, para o defen
der a sua propria custa.
« 33.0 E desarmaram da mesma sorte este pretexto ; a sa
ber, pela terceira mostrando, que não estava decahida a agricul
tara . Pela quarta , que tambem estavam renascidas a industria
dos portuguezes, e as manufacturas, e fabricas do reino, para
lhe darem forças. Pela quinta , que estava restaurada a boa ar
recadação, e o credito da fazenda real. Pela setima (posto que
segundo as erradas preoccupações do seu paiz ) que a suprema
auctoridade regia se achava em toda a força , que é natural no
governo monarchico. Pela nona , que as sciencias, e artes es
tavam renascidas na Universidade de Coimbra. E pela decima,
que todos os abusos, que antes houveram na administração da
justiça , e arrecadação da fazenda, e exercilo , estavam dester
rados .

« 34 ° Viram osmesmos lords, que o terceiro dos ditos


pretextos, fôra , que em Portugal não havia tropas que fossem
consideraveis para se defender de Hespanha , que as poucas
que havia , estavam na infancia da disciplina militar, e que as
inglezas não viriam soccorrer este reino, mas sim serem n'elle
sacrificadas.
« 35.° Viram , e tambem desarmaram este pretexto , da
mesma sorte, a saber: pela oitava mostrando , que Portugal,
não obstante a necessaria decadencia , em que a dilatada en
fermidade do senhor rei D. João V deixára este reino no anno

de 1750, e não obstante os estragos do terremoto do 1.º de


novembro de 1755, e quando no mez de março de 1762, Hes
panha, e França o quizeram constranger a abandonar a allian
ça de Inglaterra , se sustentou contra duas tão grandes poten
cias com inahalavel firmeza , que pondera com justos elogios a
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 317

referida carta. E que tinha com a união das tropas inglezas re


chaçado o exercito hespanhol, e feito a paz de 10 de fevereiro
de 1763. E pela decima, que o mesmo Portugal, depois d'aquella
guerra , e da que lhe fôra ameaçada no anno de 1776 , tivesse
um exercito de quarenta mil infantes, e de oito mil soldados
de cavallaria .

« 36.° Viram os mesmos lords, que o quarto pretexto com


que se fazia forte o actual ministro, consistia nos clamores e
papeis publicos, com que alguns estrangeiros inimigos da união
entre as duas nações, e alguns pequenos negociantes, parentes
d'aquelles, que não tem outros sentimentos, que não sejam os
das suas abstractas, e pessoaes conveniencias, gritaram aos ou
vidos da bolsa de Londres, e fizeram gritar os papeis publicos
nos annos de 1765, e seguintes, contra o que elles chamavam
infracções de tratados, com que pretendiam persuadir, que Por
tugal havia estabelecido tantas manufacturas, para se fazer in
dependente de Inglaterra , e havia promulgado tantas leis pre
judiciaes ao commercio britanico .
« 37.° E tambem desarmaram egualmente este injusto e
maligno pretexto , a saber pela quarta, mostrando, que todos
os estabelecimentos de manufacturas, e regulações de commer
cio , que Portugal havia feito, foram justos, e necessarios, que
em nada haviam offendido os direitos dos negociantes inglezes;
e que estes estavam antes gosando dos maiores privilegios, que
podiam caber na consideração. E pela quinta, que a diminui
ção, que n'aquelles annos havia tido o commercio de Inglater
ra não fôra causada pelos ditos justos estabelecimentos das fa
bricas, e regulações do commercio em Portugal, que pelo con
trario tiveram as outras diversas, e estranhas causas , que as
signa , concluindo por uma demonstração geometrica, que no
estado presente, é o commercio de Inglaterra , n’este reino maior ,
em dobro, do que o de todas as outras nações da Europa juntas.
Quanto ás fortes e terriveis accusações contra o dito mi
nisterio britanico .
( 38.° Havendo os mesmos lords da opposição tirado das
mãos do ministerio as armas dos quatro pretextos acima referi
dos passaram a atacal-o com as accusações tão fortes, e tão
pungentes, para ferirem a sensibilidade da honra , e do inte
318 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

resse publico de toda a nação britanica, e para fazerem a toda


ella odiosos todos os ministros do gabinete, como se vê das
primeiras cartas (pretendidas apologeticas) nos logares seguintes .
( 39.0 Para accusarem os ditos ministros de escandalosos
infractores dos tratadosmais solemnes, e de notorios transgres
sores da religião dos pactos mais sagrados, até a respeito dos
seus maiores amigos, e mais antigos e necessarios alliados, com
a funesta consequencia , de não acharmais a corte de Londres,
quem d'ella se fiasse : estabeleceram na carta umdecima: Que
o incontestavel limite do Brazil, pela parte meridional d'elle ,
ficou sendo o Rio da Prata desde o artigo sexto do tratado da
paz concluida em Utrecht no dia 6 de fevereiro de 1715 , es
tabeleceram todas as formaes garantias, com que Inglaterra se
gurou o referido limite á coroa de Portugal. Estabeleceram pela
carta doze , que aos hespanhoes nunca pertenceu cousa alguma
do sobredito Rio da Prata para o norte, nem alli tinham en
trado senão os jesuitas hespanhoes da parte do Rio Uruguay.
Estabeleceram mais pela mesma carta doze , que este era no
anno de 1750, o verdadeiro, e pacifico estado das cousas de
uniforme accordo de ambas as duas côrtes de Portugal, e Hes
panha .
«40.° Para accusarem os mesmos ministros de uma per
fidia barbara , e imperiosa a uma nação tão sensivel aos deli
cados pontos da honra, como é a ingleza , fizeram evidentes na
carta treze os inauditos estratagemas da conciliação feita entre
o lord Grantham , embaixador de Inglaterra , e o marquez de
Grimaldi; para ambos mudarem de commum accordo o então
novo embaixador de Portugal D. Francisco Innocencio de Sou
até o precipitarem nos enganos de transgressor ás
ordens da sua corte, de se apartar da pura , e abstracta assis
tencia na execução do art. 21.º do ultimo tratado de 10 de fe
vereiro de 1763 contra o que elles tinham determinado , e de
se confundir a dita execução liquida , e pura em discussões no
vamente inventadas com os pretextos dos tratados antigos, que
tinham expirado muitas vezes, e se achavam sepultados no es
quecimento dos seculos, sem haver depois do dito tratado de 6
de fevereiro de 1715 , lembrança alguma d'elles, e fizeram mais
aggravante , e mais escandaloso o dito estratagema, e conluiação
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 319

com os insultos do governador de Buenos Ayres, substanciados


pela carta quatorze .
«41.° Para accusarem os mesmos ministros da ingratidão
mais negra , barbara , e cruel contra o seu mais antigo, e util
alliado, e mais fiel amigo , introduziram na carta oitava o esta
do da necessaria decadencia , em que a dilatada doença do se
nhor rei D. João V , uma diucturna paz , que tinha inteiramente
destruido o exercito, e espirito militar, a calamidade do horro
roso terremoto do anno de 1755, e a conspiração do anno de
1758 , tinham posto este reino, quando no mez de março de
1762 Hespanha , e França, considerando o mesmo reino im
possibilitado para lhes resistir , fizeram apresentar ao senhor se
cretario d'estado D.Luiz da Cunha , as memorias de 16 demar
ço, e do 1.º de abril proximo seguinte, instando, em que Por
tugal entrasse na sua alliança , abandonando a de Inglaterra,
com a comminação, de que não o fazendo assim , haver desde
logo por declarada a guerra , invadindo este reino com as tro
pas, que já tinham promplas sobre as fronteiras d'elle .
«42.0 Factos, sobre os quaes transcreveram com os devi
dos elogios, a heroica , e obrigadissima resposta, com que o
mesmo senhor secretario d’estado D. Luiz da Cunha, respon

deu em 5 d'aquelle mez de abril em summa: = « Que S. M. F.


deixaria mais facilmente cair a ultima telha do palacio de sua
habitação , e vêr derramar aos seus leaes vassallos a ultima gota
de seu sangue, do que declarar -se contra a Grã -Bretanha .)

«43.° 0 mesmo repetiram nos dois ultimos paragraphos


da carta quatorze, referindo = Que a corte deMadrid , tinha of
ferecido á de Lisboa ceder de todas asquestões do Brasil ,comtan
to que ella deixasse a alliança de Inglaterra ,e que a segunda das
duas cortes, se sustentara sempre por um constantissimo sys
tema, na união, e amisade com a corte de Londres.
a44 .° Para accusarem mais fortemente os mesmos minis
tros, concluem no preambulo da carta dezesete, que Portugal
achando -se desamparado dos auxilios de Inglaterra, que tinha
tão justos direitos para esperar, e achando -se impossibilitado
para poder resistir per si somente a todas as forças de Hespa
nha fôra ultimamente precisado a seguir tudo, que S. M. Ča
tholica lhe quiz propor.
VOLUMET 22
320 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

« 45.° Para mais accusarem os mesmos ministros , e mais


inflammarem contra elles a odiosidade universal de uma nação
que por altivez do espirito por o primeiro principio , e que se
chama a simesma poderosa, e livre na presença de toda a Eu
ropa, e do seu mesmo natural soberano : transcreveram names
ma carta dezesete as proprias palavras das ditas memorias pu
blicas ; e que foram apresentadas em 16 de março, e no 1.º e
23 de abril do dito anno de 1762, ao dito senhor secretario de
estado D. Luiz da Cunha . Memorias nas quaes infamaram os
inglezes de tyrannos e usurpadores dos dominios alheios, deno
minando -os com arrogancia , e com summo despreso , por uns
ilbeos insultantes das outras nações da Europa .
« 46.° E accusaram finalmente os ditos lords do partido da
opposição os referidos ministros, demonstrando na carta dez
esete , desde o paragrapho que principia = Que quem conside
rar bem a situação = em diante , que os mesmos ministros se
acham n’ella accusados ; que depois de haverem privado o seu
rei, e a sua patria , de todos os interesses de honra, e de repu
tação , passaram a sacrificar tambem com elles , outros interes

ses fysicos da negociação, e do commercio de Inglaterra, pro


vando especifica, e demonstrativamente, que elles tem arruina
do inteiramente a mesma Inglaterra .
« 47.° E assim é na verdade, porque todos os que tem al
guma instrucção da sciencia dos gabinetes, e sabem , que no de
Paris desde o reinado do grande rei Luiz XIV , se acha estabe
lecido por maximas, o assento, de que o meio solido, e seguro
para o fim de arruinar de uma vez inteiramente as forças, e o
poder, com que a Grã- Bretanha se tem feito na terra , e no mar
tão formidavel, é fechar-lhe os portos, e o commercio de Por
tugal, e Hespanha , e esses são os proprios termos do caso nas
ditas cartas (chamadas Apologeticas) que fazem demonstrati
vamente claro , que os referidos lords n'ellas empregaram os
seus grandes talentos, e egual litteratura .»
CAPITULO XXVI

Incessantes ataques contra Pombal. Motivos que teve para escrever uma apolo .
gia de seus actos. Publica uma Contrariedade que mandou queimar. Nomeam
se juizes para o interrogarem sobre a sua conducta . Carta de Pombal a seu
filho . Grande interesse sobre o resultado de seu interrogatorio . É pronunciado
injusto e nullo o decreto de 12 de janeiro de 1759. São declarados innocentes
os conspiradores contra a vida de D. José. Decreto contra Pombal. Reflexões
sobre sua injustiça .

Não comportando o plano d’estas Memorias o proseguimento


dos successos do reinado seguinte, por isso nos limitamos ex
clusivamente aquelles que tem intima connexão com o destino
de Pombal. Usurpada a autoridade regia pela nobresa e pelo
clero , depressa o paiz se viu mergulhado em todas as desgra
ças que sempre resultam d’um governo fraco. A rainha, apesar
dos sentimentos de justiça quenaturalmentehavia de possuir, não
podia vencer, e muito menos chegar a destruir, a opposição de
duas classes tão poderosas, que de mãos dadas trabalhavam
por satisfazer o odio e a vingança pessoaes que nutriam pela
desgraça completa do ultimo ministro.
Vimos no capitulo antecedente como Pombal se occupava
nas horas vagas d'aquella vida declinante. Chegava já ao seu
322 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

octagesimo anno, sem que, apesar d'isso , a malignidade de seus


passar no seu retiro os dias que
inimigos quizesse permittir- lhe
lhe restavam sem serem perturbados. Atacaram -lhe o caracter
e os diversos actos de sua administração tão repetidas vezes e
com tanta acrimonia , que, despertado afinal por um justo sen
timento do que á sua reputação e á gloria da sua posteridade
era devido, tornou a lançar mão da penna para o que habil
mente expressa nas seguintes linhas :
«Lembrei-me n’este retiro de Pombal de que nem meus
filhos, e genros, nem os que depois d'elles viessem na minha
familia, podiam , ou poderiam ter no tempo hoje presente, e
muito menos ainda no futuro os conhecimentos claros , e espe
cificos que eu tenho dos factos, e documentos irrefragaveis, e

das rasões demonstrativas que excluem manifestamente as va


nissimas calumnias, que desde o dia do fallecimento do senhor
rei D. José, meu augustissimo amo, e clementissimo senhor e
bemfeitor, se tem contra mim gratuita , e ingratamente espalha
do em todo o povo de Lisboa .
«Esta lembrança me fez reflectir em que se deixasse aquel
las publicas diffamações correr com passos livres reduzindo -me
a um absoluto silencio: por uma parte, ficarão os ditos meus
conjunctos actuaes attonitos com o estrondo d'aquellas injurio
sas declamações, é por isso perplexos, e suspensos, sem atina
rem com o que deviam responder aos seus verdadeiros amigos
que com elles se condoessem de uma tão desmerecida infelici
dade. E pela outra parte, ficariam expostos a deixar-se illudir
com a persuasão de que eu lhes tinha causado, e deixado es
candalos ; quando a verdade é que trabalhei por toda a minha
vida com incessantes disvellos e fadigas para lhes deixar exem
plos que imitassem , no serviço do seu rei, e no zelo , e appli
cação aos meios de concorrerem para o bem commum da sua
patria .
« Com o fim pois de obviar a dois inconvenientes tão gran
des como os referidos, me tenho applicado, e vou applicando
a confutar distincta , e separadamente cada uma das calumnias
de que fui informado, servindo-me para isso das palavrasmais
breves, e innocentes, que a illucidação dos factos podia permit
tir . reduzindo -me aos indispensaveis e moderados termos que
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 323

o grande padre e doutor da egreja S. João Chrysostomo (na


epistola LXIII) deixou doutrinalmente escriptos para os casos
laes como o que se me está actualmente presentando : isto é,
--Convencer e descobrir as calumnias, não com o fim de pro
pria vingança, mas sim e tão somente com os outros pios obje
ctos de fazer manifestar a verdade offendida, e de livrar do en
gano aquelles que se acham illudidos.)
A mais notoria d’estas publicações tendentes a desconcei
tuar Pombal na sua patria e em toda a Europa. foi o celebre
« Libello » saído da penna d'um tal Francisco José Caldeira
Soares Galhardo eMendanha. Este ataque era de tão escanda
losa naturesa, e sustentado por partes tão poderosas, que aca
bou de esgotar completamente a paciencia de Pombal. Sem mais
dilação escreveu a sua defesa em que expendia tão acerbas ver
dades, pondo a descoberto tanta perversidade e ingratidão dos
seus inimigos, que, tomados de indizivel temor, fizeram que , á
força de instantes suasões, a rainha mandasse immediatamente
supprimir todas as copias tanto do Libello como da Defesa ,
sendo para esse fim logo promulgado o seguinte decreto de 3
de setembro de 1779 :
« Tendo subido á minha real presença em consulta da me

sa do desembargo do paço a exposição do que se contém es


cripta na causa de libello de lesão enormissima intentada na
correição do civel da corte por Francisco José Caldeira Soares
Galhardo de Mendanha contra o Marquez de Pombal, que foi
ministro , e secretario d'estado dos negocios do reino, no qual
libello se formaram alguns artigos infamatorios do mesmo Mar
quez, que não eram precisamente necessarios á intenção do
auctor ; e podendo o réo pedir que se riscassem , ou supplicar
me lhe fizesse dar a competente satisfação , muito pelo contra
rio se serviu d'este pretexto para na diffusa contrariedade, e
seus dilatados appensos compor uma obra, que pretendeu dis
seminar, e perpetuar em sete copias authenticas, que requereu
se lhe passassem ; na qual obra , composta com conhecida ira ,
é paixão , tratando pouco do que pertencia á defesa da causa ,
se esforçou em fazer publicas algumas negociações dos seus
ministerios, o que lhe não era licito sem licença minha ; e em
fazer a sua apologia estabelecida em factos menos verdadeiros;
324 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

chegando a pôr em duvida a certesa da innocencia de muitas


pessoas de grande qualidade, virtudes, e de differentes estados,
cuja fama mandei restituir (causa irrisão !); e proferindo mui
tas proposições intoleraveis, reprovadas, e até injuriosas á sau
dosissima memoria d'el-rei meu senhor, e pae, com outros ex
cessos, e absurdos , que se fazem dignos de uma severa de
monstração ; e conformando -me com o parecer da dita mesa , e
de outras pessoas do meu conselho, que fui servida ouvir so
bre esta materia , em quanto não mando dar aos sobreditos res
peitos outras providencias, que sejam mais efficazes : sou servi
da ordenar : que namesa do desembargo do paço se separem dos
ditos autos todos os documentos pertencentes á acção, e defesa
da causa, e se façam entregar ás respectivas partes, ou a seus
procuradores, dando ao autor uma certidão da data , em que
foi a demanda contestada , para na nova causa, que lhe fica per
mittido instaurar, se entender a contestação feita na sobredita
data para os effeitos, que, conforme o direito, haja de operar:
que todo o mais processado, e documentos não necessarios á
questão da lesão , fiquemperpetuamente supprimidos na secre
taria d'estado dosnegocios do reino, aonde se remetterão : etc.)

Ordenou -se por consequencia que fossem entregues sem


demora todas as copias para serem queimadas perante o juiz
da causa e um escrivão, sendo presos os advogados que os ti
nham assignado até segundas determinações.
Pena é que a referida Defesa fosse destruida porque havia

constituir um importantissimo capitulo da biographia de Pom


bal.
Da avidez e diligente cuidado com que trataram de lhe dar
fim , se tira a necessaria conclusão , de que o seu conteúdo refu
tava todas as perfidas e interessadas calumnias de seus inimigos.
Porém D. Maria, não satisfeita ainda com a injustiça e o

ultraje que fizera ao velho ministro de seu predecessor e pae,


poz em obra as suggestões de vingança : usando d’um rigor
inaudito e sem exemplo, mandou dous delegados á villa de
Pombal, revestidos de plenos poderes para inquirirem o ex
ministro em todos os pontos das calumnias com que os seus
inimigos ousaram aggredil-o, ou de que, seguindo os dictames
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 325

da sua politica , julgaram que deviam accusal-o. Estes juizes


começaram o desempenho da sua commissão em outubro de
1779, e, depois d'um prolongado e enfadonho inquerito, vol
taram nos fins de janeiro a Salvaterra , onde então se achava a
côrte , para apresentarem um relatorio da dita commissão .
Póde-se fazer uma idéa ,ainda que superficial,dos soffrimen
tos de Pombal, causados, ou pelo menos recrudescidos por este
deshumano inquerito , em vista da seguinte carta que, no tempo
a que nos referimos, escreven a seu filho , o conde de Oeyras :
« Pombal em 8 de dezembro de 1779 .
«Meu filho do meu coração : tem -me parecido que pruden
temente devia suspender toda a correspondencia epistolar, des
de que chegou a esta villa o deputado da mesa da consciencia

e ordens, José Luiz França , com a commissão regia, que logo


se faria publica n'essa corte , e em todo este reino. Por isso não
terás visto carta alguma minha desde aquelle tempo .
« Agora porém me acho em uma crise, que faz com que
eu , sem ser cruel, te não possa deixar na ignorancia do estado
em que fico . Na manhã de domingo , que se contavam 5 do cor
rente ,

« O juizo que pareceu mais conforme ás circumstancias do


meu presente estado, e ás indagações, e combinações, que po
dem caber na comprehensão humana , foi, que havendo mais
de dois annos e meio que padeço tantos insultos, e tantas ve
xações n'aquella honra, de que sempre fiz idolo , sem outro
desafogo mais que o de estar perdoando caritativamente, não
bastou aquella resignação christã para que a sensibilidade da
natureza (sempre difficilde se conformar com trabalhos d'aquella
penetrante agudeza ) deixasse de formar a congestão, ou a pos
tema, que ha tantos mezes me tem causado tantas, e tão pe
nosas molestias, que agora se manifestam exteriormente pelas
sobreditas erupções.
«Não obstante que aquellas morbozas, e excessivas descar
gas, achando -me já debilitado pelas minhas habituaes moles
tias, e por cincoenta e tantos dias de perguntas, ás quaes te

1 Aqui segue-se uma exposição da molestia e padecimentos do Marquez,


cuja narração se torna bem desagradavel.
326 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

nho sido obrigado a assistir , com sessões de quatro horas emeia,


cinco , seis, sete, e até oito horas e meia ,de que sahi extenua
do pelos quarenta minutos depois da meia noite do sabbado
para domingo proximo precedente, me deixaram tão abatido ,
e prostrado, como é muito facil de crer ; não obstante, digo ,
tudo o referido, me fiz transportar da cama, e levar nos bra
ços de dois de meus criados em um couro á casa das pergun
tas, logo que soube que a ella chegavam os ministros. Imme
diatamente signifiquei ao severo juiz José Luiz França , que eu
lhe havia protestado em outras sessões, que a profunda obe
diencia ás ordens da rainha nossa senhora me faria transpor
tar ao logar em que elle me via , em quanto podesse abrir os
olhos, por maior que fosse a minha debilidade e prostração :
que se na sua presença exhalasse o ultimo suspiro, por uma
parte morreria na obediencia das ordens da mesma senhora ,
com a mesma honra , que sempre havia tido na execução das
de seus augustos paes, e avo ; e que pela outra parte tinha ha
muitos tempos offerecido com resignação a minha vida a Deus
Nosso Senhor , em pequeno sacrificio e satisfação do muito que
era devedor á divina bondade e á divina justiça ; mas que seria
inseparavel de mim o sentimento de morrer torpemente mas
carado pelos meus inimigos, e desconhecido pelos meus legiti
mos soberanos, e pela minha patria , que sempre professei ser
vir com summo zelo , e egual fidelidade. Havendo os ditos mi
nistros visto manifestamente que a minha summa debilidade e
prostação não podiam sustentar o constante espirito d'aquella
minha profunda obediencia,me ordenaram me recolhesse a mi
nha cama; e a ella me transportaram consequentemente os so
breditos criados, na mesma infeliz carruagem , em que me ti
nham conduzido.

Pedi- lhe

(ao medico) que, como philosopho christão e sem a lisonja , que


a meu respeito não podia hoje ter o menor logar , me desen
ganasse, dizendo-me o estado do perigo, em que me conside
rava ; porque ainda que não temia a morte, tremia da conta,
que havia dar a Deus, e queria acabar-me de preparar para
ella no pouco tempo, que ainda me restasse.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 327

Respondeu -me que não podia deixar de me dizer, que


me julgava gravemente enfermo; que elle não podia curar as
causas das vexações, e das paixões d'alma, e das agitações do
animo, que excediam as forças naturaes : que porém , se .....
Sendo este
o meu presente estado, te ordeno positivamente com auctori
dade de pae , e com o affecto de amigo , que de nenhum modo
consintas no pensamento de pedir licença, para me vires as
sistir ; porque primeiro , do
que a triste assistencia que me po
dias aqui fazer, agora deve estar a das tuas honrosas obriga
ções no serviço de nossos augustissimos amos, e clementissi
mos senhores ; porque não deves abandonar , e deixar ao des
amparo essa atormentada, e perseguida casa em uma occasião
tão critica , como a presente; e porque, pelo que pertence ao
cuidado da minha doença tenho dois medicos, cujo numero tu

sabes, que nunca quiz exceder nas minhas mais graves enfer
midades ; e tenho por desveladas enfermeiras, tua mãe, e duas
filhas, que são inseparaveis do meu leito. Somente será preci
so que as venhas buscar, quando eu chegue a fallecer. E adeus,
meu filho, até quando Deus Nosso Senhor for servido ; e o mes
mo Senhor te guarde, e felicite, como cordialissimamente te
deseja teu pae.-Sebastião José de Carvalho e Mello .»

Devo accrescentar que o conde d'Oeyras não poude resis


tir a desobedecer ás ordens de seu padecente pae, apressando
se por isso a reunir-se á sua familia para assistir -lhe no pro
cesso e nas afflicções.
Entretanto guardava -se o mais profundo segredo sobre o
julgamento feito na villa de Pombal, em quanto que a curio
sidade relativa ao resultado de tão dilatado e importante in
querito , recrescia todos os dias. A saude de Pombal continua
va a declinar, e a rainha , apesar dos medicos receitarem as
aguas de Coimbra que no seu parecer lhe fariam beneficio , não
consentia que elle saisse do seu retiro. A vehemente ancieda
de de saber -se o destino que o governo reservava ao salvador
e bemfeitor da patria , agitava o espirito do publico . Os seus
inimigos não descançaram um instante em seus esforços para
conseguirem o seu triumpho com a desgraça de Pombal. A en
328 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

fatuada rainha , para de todo rematar o despreso com que se


pretendia desfazer a justiça de D.José,assignou em 10 de outubro
de 1780 um decreto , mandando que, attendendo ás represen
tações do marquez d'Alorna (em favor da memoria e fama de
seus parentes, e pelo interesse que estes n'isso tinham ), fosse
derogada a sentença de 12 de janeiro de 1759 proferida con
tra os réos da conspiração de 3 de setembro de 1758 , e con
cedendo revista de graça especialissima da dita sentença por
um certo numero de juizes do conselho e desembargo do paco ,
que para esse fim foram nomeados.

As consequencias d'um tal decreto facilmente se podem


prever. Em 3 d'abril de 1781, foram todos os réos, que já não
existiam como os que ainda viviam , directa ou indirectamente
implicados no attentado de regicidio , declarados innocentes
por quinze juizes.
Esta insolita decisão — talvez o mais escandaloso exemplo
de sycophancia que a historia pode apresentar — foi tomada
como a final e perpetua condemnação do caracter de Pombal.
O resultado do processo na villa de Pombal foi pois em tudo
conforme aos desejos da facção aristocratica , que cabalmente
os satisfez vendo, como quiz , pronunciados os actos da admi
nistração do ex -ministro .
Apoz um silencio de dezoito mezes, tempo durante o qual
criminarem , ou
em vão pretenderam buscar a evidencia para o
tornarem odioso perante os seus concidadãos, determinou a
rainha, por voto de seus conselheiros, que se não desse publi
cidade alguma mais do resultado do processo , além d'aquelle
de que se deu conhecimento n'um infame decreto de 16 d'agosto
de 1781. Por muitos volumes que se escrevessem , não podiam

elles fallar mais eloquentemente do que este silencio em favor


da defeza satisfactoria de Pombal , e da pureza , e excellencia
da sua longa e tempestiva administração.

DECRETO

“Por justos motivos que me foram presentes julguei não


convir ao meu real serviço que n’elle continuasse o Marquez
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 329

de Pombal no exercicio de secretario d’estado dos negocios do


reino , ordenando-lhe que saisse da minha corte, e fizesse a sua
assistencia na villa de Pombal; não esperando que depois d'esta
demonstração se atrevesse com affectada e frivola occasião a
formar uma contrariedade em um pleito civil que se lhe mo
via a fazer uma apologia de seu passado ministerio , a qual fui
servida desapprovar pelo meu real decreto de 3 de setembro
de 1779. E mandando- o ouvir e interrogar sobre varios car
gos que contra elle resultaram , não só se não exonerou d'elles ,
mas antes com as suas respostas e differentes averiguações a
que mandei proceder, se qualificaram e aggravaram mais as
suas culpas: O que sendo tudo examinado por uma junta dos
ministros a que me pareceu encarregar este negocio , foi venci
do que o dito Marquez de Pombal era reo, e merecedor de

exemplares castigos ; ao que porém não mandei proceder atten


dendo ás graves molestias e decrepidez em que se acha , lem
brando-me mais da clemencia do que da justiça , e tambem
porque o mesmo Marquez me pediu perdão, detestando o te
merario excesso que commettera . Pelo que sou servida per
doar - lhe as penas corporaes que lhe deviam ser impostas, or
denando- lhe se conserve fóra da côrte na distancia de vinte le
guas em quanto por mim não fôr determinado o contrario , dei

xando porém illesos e salvos todos os direitos e justas preten


ções que possa ter a minha corôa, e fazendo egualmente os
que deviam ter alguns dos meus vassallos para que em juizos
competentes possam conseguir e serem indemnisa los das per
das, damnos, e interesses em que o dito Marquez os tiver pre
judicado ; porque a minha real intenção é só perdoar- lhe a pena
afflictiva da satisfação da justiça , e não a satisfactoria das par
tes e do meu patrimonio real ; podendo as mesmas partes , e os
meus procuradores regios usarem dos meios que forem legiti
mamente competentes contra a casa do referido Marquez assim
em sua vida como depois da sua morte . A mesa do dezembar
go do paço o tenha assim entendido .
«Com a rubrica da rainha . — Queluz, 16 d'agosto de 1781. »

Foi d'este modo que os longos e fieis serviços do Marquez


de Pombal foram pagos e reconhecidos pela sua soberana. O

330 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

fragil véo de humanidade com que vaidosamente pretenderam


disfarçar este decreto , para tornar menos apparente a maneira
como se animava os seus inimigos a o insultarem e denegrirem
como tambem á sua posteridade, é insufficientissimo para oc
occultar os baixos motivos que dictaram esta barbara perse
guição . E possivel que a rainha , respeitando de algum modo a
memoria de seu pae, tivesse hesitado em subscrever a medi
da, em que a condemnação do ministerio era tambem a do rei.
Apenas podemos attribuir a este procedimento uma causa sa
tisfatoria , que o explique , que é o fanatismo e a superstição

que caracterisavam D. Maria I, e que a faziam um autómato


da ambição dos fidalgos e da insidia dos padres que a cerca
vam . N’uma época mais posterior da vida da rainha , o seu fra
co espirito, distrabido pelo frenesi religioso , não poude resis
tir á violencia da indomita imaginação que a subjugava, e ella,
ao cabo d'uma reclusão de muitos annos , morreu n'um estado
de confirmada demencia .

A influencia da pavorosa superstição fez-se sentir mesmo


nos passatempos e recreações da corte e do publico . D. José
tinha creado um excellente theatro lyrico no seu palacio , e os
bellos cantores da Europa , achavam acolhimento na rica e de
liciosa capital de Portugal. Fallecendo este monarcha, a rainha,
sua filha , desterrou da sua corte este e outros progressos simi
lhantes da civilisação . Finalmente para melhor se estigmatisar
o caracter ascetico d'este reinado, prohibiu -se que em futuro
o sexo feminino apparecesse no proscenio .
CAPITULO XXVII

Conclusão . Plano do author. Reflexões sobre D. José e Pombal. Estado do paiz


depois da morte d'este. Seu desinteresse confrontado com o de Sully. Pombal
apresenta á rainha uma relação dos seus bens. Rendimentos da casa . Morte
de Pombat. Suas exequias. Epitaphio que lhe pozeram no tumulo. É manda
do apagar pelo governo. Epilogo: supplica á rainha apresentando -lhe uma re
lação minuciosa dos seus bens, estado d'elles e como os adquirira.

Accompanhamos pois d'esta sorte o marquez de Pombal


quasi até o fim da sua longa e ardua peregrinação. Ora, ainda
que a intenção, com que comecei esta obra, foi de justificar a
memoria d'um homem illustre, preferi antes descrever os actos
da vida de Pombal, taes como se passaram , e as suas respe
ctivas causas, do que tentar uma refutação minuciosa das va
rias erradas interpretações que se fizeram do seu procedimen
to. Foi tal a diligencia com que empregaram a falsidade e a
calumnia durante a sua vida e depois da sua morte, que seria

impossivel entrar nos pormenores das absurdas accusações que


contra elle circularam . O fiel e perduravel affecto quemostrou
ao seu soberano, e a não interrompida e illimitada confiança
que n'elle depositou D. José, offerecem talvez a este respeito o
mais raro exemplo na historia dos governos. « A confiança é
332 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

uma planta que cresce lentamente;» e n'um paiz em que a pos


se do poder depende unicamente da vontade e protecção do
monarcha, e em que pormodo nenhum se obtem corrompendo
e adulando as paixões do povo , o mais que um ministro póde
fazer é por conservar a sua posição , merecendo o conceito do
soberano , e possuindo qualidades com que o possa ganhar. Sen
do pois D. José um principe, cujo caracter particular jámais foi
offendido pela calumnia , e que, mesmo em seus actos publi
cos, não foi envolvido na profusa censura com que vexaram o
seu ministro, podemos concluir que os insultos de origem oc
culta dirigidos ao Marquez de Pombal, nasceram mais do odio
votado abstractamente a sua pessoa e ao seu poder, do que
d'uma bem fundada desapprovação do seu ministerio .
Não temos expressões com que possamos tributar o louvor
que é devido á perseverança do rei durante tão largo periodo ,
pois, o mesmo Henrique IV , com todo o seu talento e juizo ,
não sustentou com tanta constancia, firmeza e resolução o seu
ministro Sully , como D. José sustentou o Marquez de Pombal.
D. José lembrava-se que devia a conservação da vida, e a posse
da corða , ao seu ministro , e impressionado por esta idéa nunca
vacillou no seu juizo, ou se arrependeu na sua escolha .
Porém pela sua morte voltou o reino á mais desgraçada
de todas as condições, ficando uma monarchia absoluta com
um governo fraco .
Tous veulent être souverains,» diz um escriptor francez,
«dès qu'un seul n'est plus digne de l'être.» Pombal, qual um
sol radiante , derramou a luz vivificante da sua intelligencia so
bre um paiz desolado: retirando -se, rapidamente a terra se co
briu d’umas trevas universaes ; e, n’esta obscuridade uniforme,
surgiu uma hoste de falsos pretensores, quaes meteoros transi
torios, para supprir o logar do grande facho luminoso que des
apparecera .
Em todos os paizes da Europa se cita o nome de Pombal
sempre que se falla na extincção da companhia de Jesus. Não
investigamos o merecimento que esta ordem podesse ter nos fins
da sua existencia, as virtudes que os seus membros acaso pra
ticassem , ou o bem que d'elles emanasse, por não ser da com
petencia d'esta obra . Portanto, foi bem a meu pesar que me vi
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 333

na necessidade de recapitular algumas causas da sua suppres


são em Portugal primeiro , e depois em toda a Europa. Com
tudo a deferencia devida á reputação d'um estadista illustre, o
respeito que inspira um rei piedoso, e até mesmo uma idea de
justiça que se deve ter para com um papa esclarecido , pediam
que se expozessem os motivos por que soffreram . A egreja ro
mana não ha de querer deixar de fazer vêr ao mundo que, como
lição proveitosa , está prompta a punir aquelles dos seus filhos
que se desviarem dos sagrados finsda sua missão , sempre que
com exuberante evidencia se provem as suas faltas.
A posse do poder é tão raras vezes separavel do abuso ,
que nada ha no caracter de Pombal que nos inspire maior ve
neração que o desinteresse com que se absteve de todo o en
grandecimento pessoal durante a sua longa administração. É
sabido que Henrique IV accumulou immensas riquezas em seu
valido , Sully, que por este meio continuou a viver n'um fausto
de principe depois da sua exoneração. Porém Pombal regulou
os seus proprios negocios com a mesma economia com que di
rigiu os da nação.
Em abril de 1779 , pouco depois de retirar-se do ministe
rio, mandou por seu filho apresentar á rainha uma extensa e
minuciosa relação de todos os seus bens, do estado d'elles
áquelle tempo e dos meios como os adquirira : anniquilando as
sim todas as accusações populares de cupidez e corrupção , a
que os seus inimigos recorreram para fazerem que o cara
cter de Pombal se tornasse odioso aos olhos do publico. ' Pro
va esta relação que, durante os vinte e sete annos da sua
administração, nunca Pombal recebeu honorarios alguns além
dos de secretario d'estado, e a quantia de 400 $ 000 réis an
nuaes que percebia como secretario da casa de Bragança . De
mais , nunca em tempo algum aceitou as costumadas dadivas,
que os soberanos de vez em quando faziam a seus validos, de
baixo das respectivas denominações de donativos regios, gra
tificações, etc.
A unica coisa que D. José lhe conferiu foi a commenda de
S. Miguel das Minas, que era uma das muitas sinecuras de que

1 No fim d'estas Memorias achará o leitor este curioso documento .


334 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

os soberanos então podiam dispor para com ellas remunerar


os seus agraciados, e que a constituição de Portugal aboliu .
Por morte d'este monarcha fez -lhe a rainha mercê da com
menda de S. Thiago de Lanhoso , como já vimos , quando lhe
deu a demissão.
Como os irmãos de Pombal se conservaram sempre soltei
ros e viveramligados pelo mais estreito affecto e amizade, os
seus bens, por sua morte, vieram juntar -se e engrossar os
d'elle . Póde ver-se no palacio d'Oeiras um bello quadro que
representa os tres irmãos formando um grupo n'uma attitude
que illustra o moto inscripto na margem inferior « Concordia
Fratrum . Durante suas vidas herdaram cerca de vinte e dois
contos de réis cada um , além d’um legado de vinte e dois con
tos de réis que a um d'elles coube por morte de sua mãe.
Vencido finalmente pela edade e enfermidades , Pombal
pagou o seu tributo a natureza deixando este mundo aos 8 de
maio de 1782 , nos braços de sua familia e parentes, e tendo
oitenta e tres annos. Dizem -nos que a sua morte foi revestida
damaior serenidade, sendo animado pela resignação d’um phi
losopho, e pelas esperanças d'um christão ; e, conforme a phrase
d'um celebre auctor, « por aquelle brilho interior da alma que
uma boa consciencia sempre póde dar a si mesma.» Havia
muitos annos que Pombal costumava dedicar o dia do seu an
niversario natalicio a um exame de consciencia , á meditação e
á oração ; escolhendo d'este modo , no meio da multidão das
suas occupações, o dia de festa e alegria , como um dia de pre
paração para a eternidade, e de consolação n'este mundo.
As exequias do Marquez de Pombal foram celebradas com
o respeito devido à sua dignidade : porém o bispo de Coimbra
foi asperamente reprehendido pelo governador do districto por
ter assistido a ellas. sacerdote que pronunciou a sua oração
funebre, como ousasse deplorar a ingratidão de Portugal para
com o maior de seus ministros, foi encerrado n'um convento
das ilhas de Cabo Verde.
Porém a mesma contrariedade menoscabante da corte não
poude impedir que se votasse á memoria de Portugal um jus
io tributo inscrevendo -se -lhe no tumulo o seguinte epitaphio ,
que commemora os principaes traços caracteristicos da sua
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 335

administração , e lembra aos vindouros um brado de admi


ração :
Aqui jaz
Sebastião José de Carvalho e Mello ,
Marquez de Pombal,
Ministro e Secretario de Estado
De D. José 1.0
Rei de Portugal;
O qual reedificou Lisboa,
Animou a Agricultura ,
Estabeleceo as Fabricas,
Restaurou as Sciencias,
Estabeleceo as Leis,
Reprimio o Vicio ,
Recompensou a Virtude,
Desmascarou a Hypocrisia ,
Desterrou o Fanatismo,
Regulou o Thesouro Real,
Fez respeitada a Soberana Authoridade;
Cheio de Gloria ,
Coroado de Louros,
Opprimido pela calumnia ,
Louvado pelas Nações Estrangeiras :
Como Richelieu
Sublime em projectos,
Igual a Sully na vida, e na morte :
Grande na prosperidade,
Superior na adversidade,
Como Philosofo ,
Como Heroe,
Como Christão
Passou á eternidade
No anno de 1782 ,
Aos 83 da sua idade,
E no 27 da sua administração.

Tendo lido attentamente as ultimas paginas d’estasmemo


rias, não deve o leitor surprender-se sabendo, que o governo ,
perseguindo a memoria do fallecido ministro com o mesmo es
pirito de vingança com
que lhe amargurou os ultimos annos
da sua vida , mandou apagar do seu tumulo o epitaphio que
acabamos de vêr .

Antes da definitiva conclusão d'esta obra é natural que o

leitor deseje saber alguns promenores acerca da descendencia


d'este grande estadista, cujo sangue hoje gira em tantas fami
lias nobres de Portugal.
Henrique, seu filho primogenito, que, quando D. Maria I
subiu ao throno , conservou , como vimos, o logar de presidente
VOLUME I 23
336 MÉMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

do desembargo do paço , herdou o titulo , commendas, e amaior


parte dos bens de seu pae. O titulo de Pombal é um dos pou
cos que em Portugal são hereditarios, porque talvez que nem
todos saibam que os titulos n’aquelle paiz são concedidos por
uma, duas ou tres vidas. Todavia o soberano costuma, por es
pecial mercê , renovar os prasos.
Este fidalgo, depois da morte de seu pae, viajou muito
tempo frequentando varias cortes da Europa, onde o seu por
te distincto e maneiras polidas o tornaram notavel. Durante
o tempo da sua residencia na corte de St. James fez um diario
das suas observações e passatempos, que o actual marquez
conserva com todo o cuidado. Entre varias passagens curiosas
que contem , e que nos exclarecem sobre os costumes e usos
do seculo passado , acha -se narrada uma circunstancia que
póde interessar aos admiradores de Thomaz Lawrence.
Em 1783 descreve o conde d'Oeyras a pessoa e habitos
do joven Lawrence, que então contava quatorze annos de edade
e que residia em Bath , como se segue : « É um galante rapaz
de bonitas feições e olhos vivos, e todo o seu aspecto respira
um ar de agradavel innocencia . Apezar da sua pouca edade
sustenta seus paes e irmão com o producto do seu pincel ;
e o seu quarto, arranjado com elegancia, está decorado com
suas proprias obras. »
O conde d'Oeyras era recebido em toda a parte com os si
gnaes da maior distincção , e chegou a ser nomeado embaixa
dor em Paris. O seu diario continua em varias épocas , levan
do -nos o seguinte extracto de 29 de julho de 1808 ao ultimo
periodo da sua vida : « Recebi hoje d’Inglaterra cartas do du
que de Sursex e do principe Castelchicala recommendando -me
M. Humboldt.» Depois acompanhou D. João VI quando emi
grou para o Brazil, onde morreu sem filhos em 1812 , passan
do o seu titulo e bens a seu irmão, o conde de Redinha.
Já no capitulo XVIII nos referimos ao consorcio d'este fi
dalgo com a sobrinha do marquez de Tavora : ora, em vista
d'este facto, podemos julgar que os representantes mais proxi
mos de Pombal que hoje existem , por uma d'aquellas singula
res revoluções que algumas vezes resultam dos casamentos en
tre familias antigas, conservam um onus separado e talvez ir
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 337

reconciliavel, entre a gloria ou a deshonra de duas progenies


rivaes. O filho e successor do conde de Redinha casou com uma
neta do Marquez de Pombal, de cuja união nasceu o actual
marquez , filho d'um neto e d’uma neta do fundador da casa .
Antes de terminar esta breve noticia da descendencia de
Pombal, permitta -se -me alludir mais claramente a um outro
membro da mesma familia , que tão distinctamente se famige
rou . O marechal duque de Saldanha é filho de Antonio de
Saldanha de Oliveira , conde de Rio Maior , e da filha mais no
va de Pombal. Destinado ao serviço militar, concluiu , na eda
de de dezeseis annos, os seus estudos, em que ganhou todos
os premios. Aos dezenove annos já tinha sido condecorado com
duas medalhas, uma dada pelo principe regente d’Inglaterra, e
a outra pelo regente de Portugal, ambas ellas em premio de
valor com que se portou na celebre batalha do Bussaco , que o
duque de Wellington ganhou ao marechal Massena. Depois de
entrar em todas as principaes acções da guerra peninsular,
D. João Carlos de Saldanha, tendo vinte e dois annos, com
mandou em 1814 a decima brigada do exercito portuguez ,de
baixo das ordens de Wellington .Marechal na edade de qua
renta e um annos, occupou -se com diligencia n'uma guerra que
durou seis annos no sul da America, e na prolongada lucta ci
vil por causa da restauração de D. Maria II no throno de Por

tugal, tendo então a felicidade de derrotar oito generaes dos


que commandavam o exercito de D. Miguel , entre os quaes po
demos citar o general Clouet, e o marechal Bourmont.
O marechal duque de Saldanha não só tem servido o seu
paiz comomilitar ,mas como governador das provincias do norte
em Portugal, como capitão-general no Brazil, deputado e par do
reino , primeiro ministro , conselheiro d’estado , tendo tambem
sido encarregado de varias missões diplomaticas de importan
cia , e conciliando sempre a estima e o respeito d'aquelles que se
achavam sob as suas ordens, ou que gosavam a sua companhia .

Finalmente apresento, para remate das presentes Memo


rias, uma traducção da carta dirigida pela imperatriz Maria
Thereza á marqueza de Pombal, que, devemos lembrar -nos,
era austriaca , e sobrinha do marechal Daun , a quem aquella
338 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

princeza devia, conforme confessa, a conservação da monar


chia . Só os dois ultimos paragraphos estão escriptos com letra
autographada da imperatriz.Esta carta que com o maior cuida
do conserva a actual amavelmarqueza de Tavora, foi acompa
nhada dos retratos de Maria Thereza e de seu filho, os quaes
sua magestade imperial mandou como signal da estima e lem
brança em que tinha á familia de Pombal.

« Schonbrum 16 de junho de 1770.— Minha querida du


queza d'Oeyras : Para dar uma prova maior da consideração
em que tenho o cavalheiro Lebzeltern, nosso enviado na côrte
de sua magestade fidelissima, prestei-me com a melhor vonta
de a ser madrinha de baptismo da creança que sua esposa bre
vemente terá . Conheço muito bem os vossos antigos sentimen
tos e do duque d'Oeyras a meu respeito, para que duvide um
só momento de que haveis de acceitar com prazer esta com
missão ; e, pelo que me toca ,não posso deposital-a em melho
res mãos do que nas das duas pessoas por quem conservo uma
estima particular. Portanto muito me apraz que vós e o vosso
marido me representem nessa occasião. Se fôr menina , ponde
lhe o nome de Maria Thereza ; e se fôr menino , o de Francis
co José. Em retribuição asseguro -vos que não diminuirá em
mim o desejo de provar em todas as occasiões o meu antigo e
constante amor para comvosco .
« Conhecestes, bem como vosso esposo, o joven monarcha ,
mas não a rainha mãe. Portanto mando- vos, com o joven mo
narcha, a velha mamã, que não conservando sua vivacida
de e actividade, só conserva a sua ternura para com os seus
parentes e velhos amigos. A estima em que sempre tive vosso
marido só acabará com meus tristes dias, bem como aquella
em que sempre tive as vossas virtudes e merecimentos, e os
da familia de Daun ", a quem devo a conservação da monar
chia. Crede-me sempre vossa muito affecta — Maria Thereza .

« Recommendo -vos os Lebzelterns. Hão de estar muito sa


tisfeitos com o benevolo acolhimento que recebem . O mesmo
a respeito da joven baroneza por quem me interesso . »

10 marechal conde Daun foi o primeiro que (sem ser principe) teve a ordem
de Maria Thereza .
SUPPLICA

DIRIGIDA Á RAINHA NOSSA SENHORA

D. MARIA I

POR SEBASTIÃO JOSÉ DE CARVALHO E MELLO

MARQUEZ DE POMBAL

NA QUAL, EXPÕE E DEMONSTRA CABALMENTE COMO FORAM ADQUIRIDOS


UONRADAMENTE , E SEM PREJUIZO ALGUM DA REAL FAZENDA , NEM
DOS PARTICULARES , OS AVULTADOS BENS DE QUE FORMOU A SUA CASA

SENHORA :

Em supplica do primeiro do corrente mez de março, repre


senlou humillissimamente, prostrado aos reaes pés de Vossa Ma
gestade , o Marquez de Pombal, que não pretendendo compa
l'ar-se com o duque de Suly nos merecimentos, era comtudo
certo, e era publico, que se achava egual com elle na desgraça
das imputações que se lhe machinaram pelos descontentes do
governo d'El-Rei seu amo, e pelo outro grande numero de in
vejosos da sua fortuna, convertendo -se todos em outros tantos
inimigos, para diffamarem e fazerem odiosos os relevantes ser
viços , que elle duque tinha feito á monarchia de França a qual
antes do seu ministerio se achava inteiramente exhausta de ca

bedaes em todas as repartições das suas finanças, e fallida de


credito .
Refere aquelle grande homem d'estado, e de guerra , e cons
340 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

ta por ou'ros escriptos d'aquelle tempo, que pouco depois de


haver chegado ao seu retiro de Suly soubera , que aproveitan
do-se os seus inimigos das vantagens que lhes dava a sua au
sencia , declamavam contra as suas grandes riquezas, vocife
rando e espalhando em publico :
Que havendo elle duque entrado em barão de Romey,nos
« logares que acabava de occupar, com seis mil libras de ren
« dimento annual, somente saía d'elles com o demais de cento
« e cincoenta mil libras, e que um tão grande e extraordinario
«accrescentamento de rendas, não podia deixar de ter saído
«dos cofres d'El-Rei Henrique IV .»
Estas mesmas identicas declamações, que no anno de 1611
se fizeram soar em Paris contra o referido ministro, fundador
do erario d'El- Rei Henrique IV constou ao supplicante, ainda
antes de chegar ao Pombal, que se estavam contra elle difun
dindo com a maior acrimonia, não só em toda a capitalde Lis
boa , mas tambem dentro do palacio de Vossa Magestade.
E sendo a culpa que foi imputada ao dito assignalado mi
nistro, a mesma que agora se imputou ao supplicante, será tam
bem a defeza d'este , na real presença de Vossa Magestade, a
mesmade que aquelle grande varão usou na presença da Rainha
de Médicis , incomparavelmente excedida por Vossa Magestade
nas virtudes da justiça , e da clemencia , com que entre todas
aquellas estimulosas accusações, contemplando a memoria de
seu augusto esposo , na pessoa de seu primeiro ministro, hon
rou tanto , como é manifesto , os serviços e as justificações do
referido duque.
Na sua defeza contra as suas accusações, não se reduziu
sómente a chamar por testemunhos do seu zello e fidelidade á
lembrança da Rainha regente, os serviços que tinha feito ao Rei
e ao reino , desejos ardentes, que sempre mostrara de deixar a
seus successores exemplos de isenção e de economia nas recei
tas e despezas da fazenda real.
Passou a declarar que não podia , nem pretendia com isso
dispensar de dar contas miudas, não só á mesma Rainha re
gente, mas a todo o publico , das acquisições que tinha feito no
seu acabado ministerio .

Consequentemente fez um compendioso inventario dos


MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 341

meios que tivera para haver os bens que tinha adquirido , e dos
mesmos bens adquiridos de novo, especificando quaes , e quan
tos elles eram , com os preços que lhe tinham custado, concluin
do, que para todo o referido , e para estabelecer as suas con
sideraveis rendas, se valera das applicações que tinha feito a
economia domestica , que sempre foi venerada entre as virtu
des dos grandes homens de todas as nações antigas, e moder
nas , e do bom uso que fizera das mesmas economias.
Esta é tambem a mesma identica defeza , que o supplicante
offerece contra asactuaes declamações das suas arguidas rique
zas, declarando antes de tudo, o que não teve e poderia ter se
o quizesse possuir , passando depois a especificar os meios que
teve para adquirir bens muito maiores, e mais importantes do
que são aquelles que possue, especificando ultimamente quan
tos e quaes fossem estes ditos bens adquiridos, pendente o seu
ministerio .

Quanto ao que o supplicante não teve, e poderia ter


se o quizesse adquirir .

Não teve algum outro ordenado, que não fosse o mesmo


que de secretario d'estado , além de quatrocentos mil réis , que
recebia como secretario da Casa de Bragança .
Tambem não recebeo propinas contingentes, proes ou per
calços alguns dos grandes logares que teve a honra de servir ,
porque sempre que se tratou d'estas materias de conveniencias,
supplicou e obteve ser dispensado d'ellas , como desnecessarias,
pelas razões abaixo declaradas nos SS seguintes.
Não teve nunca da fazenda real donativo, gratificação, ou
ajuda de custo em dinheiro, nem ainda com os motivos das des
pezas que fez da sua propria bolsa , assim nas duas jornadas
em que foi preciso passar ao exercito , como na outra jornada
em que foi com o caracter de plenipotenciario regio á univer
sidade de Coimbra , fazer as funcções publicas do estabeleci
mento dos novos estudos, que n’ella se estão praticando . E isto
quando lhe era manifesto que o referido duque declara que a
compra dos bens de raiz , em que tinha engrossado o seu pa
trimonio , fora na maior parte feita com ordenados dos mui
342 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tos e grandes logares, que El-Rei seu amo tinha accumulado


na pessoa d'elle duque para utilisal-o.
Não teve casa , quinta, ou fazenda alguma, das muitas e
muito consideraveis importancias, que nos annos de 1758 e
1759 passaram ao fisco e camara real, pelos atrocissimos cri
mes de leza -magestade, cujos escandalos serão lastimosamente
indeleveis na fidelidade portugueza, havendo bastantes, entre
aquelles bens, que podiam fazer grandes objectos de cubiça .
E sendo facil de compréhender que o supplicante podia ter
muitos meios de os haver, se os quizesse possuir, e se não hou
vesse suspendido nas muitas occasiões que se lhe appresenta
ram , com seus humilissimos rogos, os amplos e benignos effei
tos de boa vontade e clemencia comque o senhor Rei D. José ,
que Deus chamou ao ceo, lhe quiz accumular grandes mercês
d'aquelles e outros bens.
Considerando Sua Magestade, que não seria decoroso ao
seu caracter regio que a casa de um primeiro ministro , de quem
tinha confiado os maiores negocios do seu reinado, ficasse con
fundida entre as menos consideraveis de Portugal, contra os
exemplos que os Reis Henrique IV , Luiz XIII e Luiz XIV
haviam praticado com o referido duque de Suly com o car
deal Richelieu , com o cardeal Mazarino e contra o que outros
grandes monarchas haviam tambem praticado em casos seme
Thantes.

Humilissimos rogos, que sempre se fundaram , por uma


parte, nas reconhecidas repetições do graciosissimo decreto que
o dito senhor, no dia 6 de junho de 1759, mandando chamar
á sua real presença o supplicante lhe entregou em publico , pela
sua propria , regia e larga mão , conferindo -lhe n'elle (além das
honras) as uteis rendas de Oeiras, a que no anno seguinte deu
foral, é a commenda de São Miguel das Tres Minas, que se
achava havia muitos annos vaga , pela morte de D. Gregorio de
Castello Branco , sem deixar descendentes .
E pela outra parte nas contas que ao mesmo supplicante
continuou a tomar graciosamente do estado dos seus bens e ren
das particulares, o dito Monarcha seu clementissimo senhor e
bemfeitor , dignando -se dizer repetidas vezes:
« Que visto cuidar tanto o Marquez no augmento do erario
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 343

« d'El- Rei, era justo que El-Rei não perdesse de vista a casa
«do Marquez.)
Benignidades e expressões regias, que bastando por si só
mente para premiarem serviços muito maiores que os do sup
plicante, fizeram com que este não ousasse jámais dizer ao
graciosissimoMonarcha, que se achava gravado em dividas, por
não tentar a sua regia magnificencia ao pagamento d'ellas.
Não teve o mesmo supplicante interesse algum no commer
cio interior d'estes reinos e seus dominios , ou no dos paizes
estrangeiros , e por isso nada entrou pela barra de Lisboa que
lhe pertencesse , e nada despachou nem na alfandega grande ,
nem na casa da India , como n’ellas sempre foi publico, e será
notorio, exceptuando só uns poucos de castiçaes de cobre bran
co , que o piloto Dionizio Ferreira lhe trouxe na sua ultima via
gem da China, em retorno de vinte e oito mil e oitocentos réis ,
que para contental-o, lhe havia mandado dar na sua despedi
da , depois de muitos rogos seus, para aquelle insignificantissi
mo emprego .
Não teve donativo algum de qualquer especie que fosse,
ou de commerciantes, ou de outras pessoas de profissões diver
sas ; nem o seu nomese achará por isso notado em livro algum
de casa de negocio, com partida alguma de despeza , que con
tenha dadiva feita ao mesmo supplicante .
Não teve nunca diamantes consideraveis, dixes de valor
e cousas preciosas, ou quaesquer outras peças que fossem de
importancia , exceptuando somente um habito de Christo, que
a etiqueta da côrte de Vienna d'Austria o obrigou a fazer n’ella
para os dias de galla , e que depois das partilhas que o suppli
cante fez dos seus bens, deu a seu filho o conde de Oeiras, pa
ra o desmanchar e unir a outras pedras, que a condeça sua
esposa tirou das suas poucas joias para formar o outro habito
de que o sobredito conde usa nos dias mais festivos; sendo aliás
o que recebeu do supplicante, de tão pequena estimação , que
na referida partilha foi avaliado em seiscentos mil réis .
Não teve alguma d'aquellas grandes, custosas e delicadas
baixellas, que sempre tiveram os ministros que occuparam os
importantes lugares que o supplicante serviu . Sómente conser
vou a de que tinha usado nas cortes estrangeiras com alguns
344 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tão insignificantes acrescimos, que na sobredita partilha foi


avaliada toda a sua prata em onze mil cruzados com pouca
differença.
De sorte que em todas as occasiões que o supplicante era
obrigado a dar algum jantar ou ceia, que excedesse ao nume
ro de vinte e cinco pessoas, foi preciso pedir o seu mordomo
porções de baixella emprestada ao cardeal Cunha, e aos dois
secretarios d'estado D. Luiz da Cunha e Martinho de Mello e
Castro .
Não teve emfim carruagens, vestidos ou cousa alguma que
parecesse ostentação , ou luxo, antes a este, como a todo o mais
respeito, se reduziu sempre nos termos de toda quanta mode
ração podia permittir a decencia de qualquer particular, da
sua , e talvez menor graduação .

Quanto aos meios que o supplicante teve para adquirir os bens


e rendas que lhe accresceram depois do seu ministerio.

Teve o patrimonio de sua casa com o qual ajudou a de


cencia com que viveo nas cortes estrangeiras, onde não po
diam chegar os reduzidos ordenados, que então eram do cos
tume d'esta corte , e com o qual sustentou ao mesmo tempo em
Lisboa com o tratamento decoroso a seus dois irmãos Francis
co Xavier de Mendonça e Paulo de Carvalho de Mendonça ,
emquanto necessitaram viver do rendimento da casa do suppli
cante, e com o qual este, desde que foi nomeado secretario e
ministro d'estado, se ficou tambem auxiliando até aonde che
gava , pois que já então não podia bastar- lhe para figurar em
publico no concurso dos embaixadores e ministros estrangeiros
e nas extraordinarias despezas de umameza para todos os que
a ella queriam ir, como foi obrigado a conservar desde o ter
remoto até ao dia em que saiu da sua casa para a barraca da
calçada da Ajuda , de sorte que por um calculo justo e obvio
lhe veio a sobejar, para fazer os empregos dos bens que lhe
accresceram depois do ministerio, tudo o que importaram os
rendimentos do patrimonio, que tinha antes d'elle .
Teve os grandes auxilios dos ordenados, beneficios e bens
patrimoniaes, que foram accrescendo aos seus sobreditos irmãos,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 345

importando em vinte e dois contos trezentos e sessenta mil réis


ou quasi cincoenta e seis mil cruzados de rendimento annual,
além de vinte e dois contos de réis, que Francisco Xavier de
Mendonça herdou de sua mãe D. Thereza Luiza de Men
donça .
Rendimento e herança que os sobreditos irmãos do suppli
cante empregaram sempre em accrescentar a casa em que nas
ceram , vivendo sempre com o supplicante na mesma casa, co
mendo da sua mesma cosinha, e sustentando as suas bestas na
mesma cavalhariça ; de sorte que só faziam as modicas despe
zas dos seus vestidos, dos ordenados dos seus criados, e das es
mollas que não deixaram nunca de repartir a orphãos e neces
sitados.

Teve as outras consideraveis importancias dos valores das


muitas quintas, fazendas e outros bens de raiz, pertencentes ao
morgado da sua casa, que achando-se dispersos em differentes
logares e em diversas provincias, foram vendidos pelo suppli
cante com provisões regias, com boa e sã consciencia, para
empregar, como empregou , o preço d'elles em Lisboa , e Dei
ras, accrescentando assim a mesma casa aquella grande força
de renda , que todo o mundo instruido sabe que sempre resul
tou da união de muitos predios pequenos em um grande.
Assemelhando -se as fazendas ás pedras preciosas, cujo va
lôr sobe ao galarim , á mesma proporção dos quilates que so
bem no peso .

União e força que tem constituido as grandiosissimas ren


das das opulentissimas casas de Alemanha , e que constituiram

as causas finaes , com que El-Rei , que Deus chamou ao ceo ,


mandou promulgar a lei da união dos predios, com a outra causa
superior de engrossar a substancia do reino em beneficio dos
vassallos d'elle , e consequentemente as rendas reaes das deci
mas e sisas, vendas que constituiram a importante somma de
sessenta e seis contos setecentos e vinte cinco mil réis.
Teve a quantia de cincoenta e tantos mil cruzados que seu
tio o arcipreste da santa egreja patriarchal, Paulo de Carvalho
e Mendonça e Athaide, deixou vencidos na mesma egreja , que
dos cofres d'ella foram entregues aos procuradores do suppli
cante, e que foram por este empregados (em concorrente quan
344 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tão insignificantes acrescimos, que na sobredita partilha foi


avaliada toda a sua prata em onze mil cruzados com pouca
differença .
De sorte que em todas as occasiões que o supplicante era
obrigado a dar algum jantar ou ceia , que excedesse ao nume
ro de vinte e cinco pessoas, foi preciso pedir o seu mordomo
porções de baixella emprestada ao cardeal Cunha , e aos dois
secretarios d'estado D. Luiz da Cunha e Martinho de Mello e
Castro.
Não teve emfim carruagens, vestidos ou cousa alguma que
parecesse ostentação , ou luxo, antes a este, como a todo o mais
respeito, se reduziu sempre nos termos de toda quanta mode
ração podia permittir a decencia de qualquer particular, da
sua , e talvez menor graduação.

Quanto aos meios que o supplicante teve para adquirir os bens


e rendas que lhe accresceram depois do seu ministerio.

Teve o patrimonio de sua casa com o qual ajudou a de


cencia com que viveo nas cortes estrangeiras , onde não po
diam chegar os reduzidos ordenados, que então eram do cos
tume d'esta corte , e com o qual sustentou ao mesmo tempo em
Lisboa com o tratamento decoroso a seus dois irmãos Francis
co Xavier de Mendonça e Paulo de Carvalho de Mendonça ,
emquanto necessitaram viver do rendimento da casa do suppli
cante , e com o qual este , desde que foi nomeado secretario e
ministro d'estado, se ficou tambem auxiliando até aonde che
gava, pois que já então não podia bastar- lhe para figurar em
publico no concurso dos embaixadores e ministros estrangeiros
e nas extraordinarias despezas de uma meza para todos os que
a ella queriam ir , como foi obrigado a conservar desde o ter
remoto até ao dia em que saiu da sua casa para a barraca da
calçada da Ajuda, de sorte que por um calculo justo e obvio
lhe veio a sobejar, para fazer os empregos dos bens que lhe
accresceram depois do ministerio , tudo o que importaram os
rendimentos do patrimonio , que tinha antes d'elle .
Teve os grandes auxilios dos ordenados, beneficios e bens
patrimoniaes, que foram accrescendo aos seus sobreditos irmãos,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 345

importando em vinte e dois contos trezentos e sessenta mil réis


ou quasi cincoenta e seis mil cruzados de rendimento annual,
além de vinte e dois contos de réis, que Francisco Xavier de
Mendonça herdou de sua mãe D. Thereza Luiza de Men
donça .

Rendimento e herança que os sobreditos irmãos do suppli


cante empregaram sempre em accrescentar a casa em que nas
ceram , vivendo sempre com o supplicante na mesma casa, co
mendo da sua mesma cosinha , e sustentando as suas bestas na
mesma cavalhariça ; de sorte que só faziam as modicas despe
zas dos seus vestidos, dos ordenados dos seus criados, e das es
mollas que não deixaram nunca de repartir a orphãos e neces
sitados.
Teve as outras consideraveis importancias dos valores das
muitas quintas, fazendas e outros bens de raiz, pertencentes ao
morgado da sua casa, que achando -se dispersos em differentes
logares e emdiversas provincias, foram vendidos pelo suppli
cante com provisões regias, com boa e sã consciencia, para
empregar, como empregou , o preço d'elles em Lisboa , e Dei
ras, accrescentando assim á mesma casa aquella grande força
de renda , que todo o mundo instruido sabe que sempre resul
tou da união de muitos predios pequenos em um grande.
Assemelhando -se as fazendas ás pedras preciosas, cujo va
lôr sobe ao galarim , á mesma proporção dos quilates que so
bem no peso .

União e força que tem constituido as grandiosissimas ren


das das opulentissimas casas de Alemanha , e que constituiram
as causas finaes, com que El-Rei, que Deus chamou ao ceo,
mandou promulgar a leida união dos predios, com a outra causa
superior de engrossar a substancia do reino em beneficio dos
vassallos d'elle, e consequentemente as rendas reaes das deci
mas e sisas, vendas que constituiram a importante somma de
sessenta e seis contos setecentos e vinte cinco mil réis .

Teve a quantia de cincoenta e tantos mil cruzados que seu


tio o arcipreste da santa egreja patriarchal, Paulo de Carvalho
e Mendonça e Athaide , deixou vencidos na mesma egreja, que
dos cofres d'ella foram entregues aos procuradores do suppli
cante, e que foram por este empregados (em concorrente quan
346 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tia ) nos bens deraiz , que uniu ao morgado instituido pelo di


to seu tio, ao qual pertence a referida somma.
Teve o dote de sua primeira mulher D. Thereza de Noro
nha, por elle vinculado, que além dos bens de raiz, importou
em dinheiro seis contos duzentos e um mil quatrocentos e qua
renta réis que o supplicante empregou tambem na compra que
fez ao visconde de Barbacena , da quinta deOeiras, arruinada
pelo terremoto, onde hoje se acha a adega .
Teve as outras consideraveis quantias, quedesde o anno de
1792 em diante importaram os productos das rendas de Oei
ras e seu termo doados ao supplicante pelo graciosissimo de
creto de 6 de junho do dito anno , productos que nos dezoitos
annos que teem decorrido , sempre o mesmo supplicante appli
cou a bemfeitorias e edificações empregadas em Lisboa e em
Oeiras a beneficio dos morgados do dito seu tio e irmãos .
Isto foi depois de haver applicado para a sustentação da
sua publica casa e numerosa familia :
Primeira, os ordenados que vencia de secretario d'estado
dos negocios do reino e casa de Bragança .
Segunda, os rendimentos da commenda de São Miguel das
Tres Minas.

Terceira , os productos do antecedente patrimonio, que a


sua casa tinha e tem nas cidades de Lisboa e suas visinhan
ças.
Quarta , os productos que mandava vir das suas fazendas
visinhas e remotas, com que fazia todos os provimentos gros
sos da sua despensa, e fornecia todos os mantimentos e forra
gens para a sua cavalhariça , e de seus irmãos, até onde che

gava , fazendo somente comprar os que faltavam .


Teve emfim tudo o que foram annualmente produzindo os
alugueres das casas edificadas em Lisboa , porque a porporção
que se foram edificando umas, foram as acabadas ajudando
com os seus rendimentos as obras das outras que a ellas se se
guiram .
Teve as novidades annuaes de pão, vinho e fructas d'espi
nho , que tambem com o trabalho e com o tempo se foram ca
da anno fazendo mais rendosas e uteis a beneficio da massa
geral da casa do supplicante .
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 347

Quanto aos bens, que o supplicante possue, e não adquiriu


depois do seu ministerio, em Oeiras, Cintra e Lisboa.
EM OEIRAS

Não adquiriu o supplicante de novo com o seu cabedal a


casa nobre hoje chamada = quarto velho = nem a quinta a ella
adjacente, nem as vinhas e terras nos solões , hoje chamados
Solão pequeno.

Nem as outras vinhas e terras no Marco (hoje chamadas


a Quinta de Santo Antonio ).
Nem os casaes, terras e mais bens que foram do arcipreste
da santa egreja patriarchal, Paulo de Carvalho de Mendonça
e Athaide, porque este deixou vinculado todo o referido e o mais
que possuia em Oeiras e seu termo no testamento com que fal
leceo no anno de 1737 .

Nem adquiriu, nem o outro quarto nobre da referida quin


ta chamado o quarto novo com a sua ermida, imagens, prata ,
e mais alfayas.
Nem as obras e fontes feitas por baixo do quarto velho, e
jardim d'elle , nem as amplas officinas de lagares, adegas e sel
leiros.
Nem as loiças e nobres vasilhas d'ellas, nem a considera
vel quinta, chamada hoje de S. José, que jaz ao nascente da
ponte e estrada que vae para Cascaes.
Nem a outra quinta chamada de Santo Antonio, nem as
outras fazendas, casaes e terras sitas nas visinhanças da mes
ma villa de Oeiras, e seu termo, porque todas as sobreditas
bemfeitorias e fazendas foram compradas e fabricadas pelos dois
irmãos do supplicante, e por elles vinculadas e unidas ao mor
gado do sobredito seu tio com as pias causas por elles decla
radas nas suas instituições.
Prova-se primeiro pela sentença de quitação da conta do
mesmo testamenteiro , proferida no juizo dos residuos em 10
de novembro de 1665 em autos de que foi escrivão José Ber
nardino de Castro Corrêa. Segundo por outra sentença , tam
bem proferida no mesmo juizo em 4 de março de 1770 , es
crivão José Torcato Leão Moraes de Madureira.
Prova-se primeiro pelas ditas sentenças. Segundo pela ou
348 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

tra sentença das contas do testamento dos irmãos do suppli


cante, proferida em 29 de maio de 1770 em autos de que foi
escrivão o dito José Torcato Leão , que mostra vinculado tudo
o que os sobreditos possuiram até aos seus fallecimentos .
Não adquiriu nem a outra quinta , que jaz ao occidente do
rio , em cujas ruinas se edificaram
as sobreditas officinas, e se
fabricou a horta ajardinada , porque foi sobrogada com os vis
condes de Barbacena, por um padrão comprado com o dinhei
ro do dote de D. Thereza de Noronha , primeira mulher do sup
plicante, que tambem deixou os seus bens vinculados e unidos
ao morgado do mesmo supplicante. Nem as bemfeitorias na dita
quinta, porque o foram com dinheiro pertencente ao morgado
principal instituido pelo sobredito arcipreste.
Prova-se da sentença de quitação da conta do testamento
do sobredito , proferida nos residuos em 31 de agosto de 1765
em autos de que foi escrivão João Soares de Aguiar.
Prova-se pelas tres sentenças de quitação das contas do
dito testamento do tio do supplicante o arcipreste Paulo de Car
valho de Mendonça e Athaide.
Prova - se da dita sentença de contas do seu testamento ,
proferida nos residuos em 10 de novembro de 1764 .

EM CINTRA

Não adquiriu o supplicante nem as casas principaes da


villa e seus quintaes, e pomares, porque foram do dito seu tio
Paulo de Carvalho de Mendonça e Athaide, por elle vinculadas
com os casaes de Ouressa , Leyão , Caspolima e Cassilhas.
Não dispendeo cousa alguma nas bemfeitorias e acrescen
tamentos que se fizeram nas ditas casas, e seus quintaes, por
que todos se fizeram á custa dos alugueres e fructos dos mes
mos casaes e pomares a ella adjacentes , sendo para esse effeito
consignadas ao consul Daniel Gil de Meester, desde o anno de
1763 até ao de 1771 para tudo disfructar com tanta utilida
de sua, como tem sido manifesto .
Prova -se pelas duas escripturas de arrendamento e consi
gnação celebradas na dita villa, e notas do tabellião Manuel
Caetano de Sousa Prego em 27 de maio de 1769 e 5 de se
tembro de 1774 .
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 349

Não adquiriu nem os casaes da Granja , Fevença e outros


d'aquelle termo, nem as bemfeitorias feitas no primeiro d'elles,
sobrogado com o senhor D. João , e com a meza prioral do Cra
to , pelo sobredito Paulo de Carvalho de Mendonça e Athaide,
irmão do supplicante, porque ficaram da mesma sorte vincu
lados e aggregados ao morgado do dito seu tio Paulo de Car
valho de Mendonça e Athaide.
Nem a quinta do sitio de São Bento, porque tambem foi
comprada com dinheiro do mesmo instituidor, e por sua morte
vinculada .
Prova -se pelas mesmas sentenças de vinculo proferidas nos
residuos a 10 de novembro de 1765 e 24 de maio de 1770 ,
e se prova ainda mais adiante.
Prova -se pela segunda sentença das duas acima indicadas
na nota procedida .
EM LISBOA

Não adquiriu as casas sitas entre a Ribeira Nova e a Praça


de São Paulo , porque foram do mesmo Paulo de Carvalho de
Mendonça e Athaide, ficando por sua morte imperfeitas, e man
dando elle que se acabassem para o morgado , pelos seus ren
dimentos, e que tudo fosse unido ao seu vinculo, como com ef
feito se acabaram com cincoenta mil cruzados tomados de em
prestimo no cofre do deposito dos bens do ausente João Fer
nandes de Oliveira , filho , o qual foi certamente pago pelos alu
gueres das referidas casas, e das outras do mesmo vinculo abai
xo declaradas .

Prova-se pelo livro da receita do dito deposito .


Não adquiriu as outras casas contiguas ao mosteiro das re
ligiosas de Santo Alberto, nem as bemfeitorias que n’ellas acres
ceram , porque as primeiras arrematou o mesmo Paulo de Car

valho de Mendonça e Athaide, no mez de julho de 1768 , pe


los juizo dos residuos, escrivão Manuel Miranda Rebello , em
preço de doze contos de réis , para cujo pagamento consignou
tres mil cruzados cada anno na mão do inquilino Daniel Gil de
Meester .

E as segundas foram feitas á instancia do mesmo Gil de


Meester, para casar seu filho, e tiveram em pagamento a re
missão absoluta de todos os alugueres que se fossem vencendo
350 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

até o fim do anno de 1782, de sorte que nem o sobredito Paulo


de Carvalho de Mendonça e Athaide chegou a perceber cousa
alguma das ditas casas, nem d'ellas recebeo , ou hade receber
o supplicante rendimento algum até o anno de 1782 em que
se hade findar o embolso do dito inquilino .
Prova -se pelas duas escripturas publicas, celebradas nas
notas do tabellião Ignacio Corrêa de Sousa e Andrade em os
ditos annos .

Não adquiriu , finalmente, as outras casas sitas entre as


ruas da Princeza e Magdalena, porque sendo o solo ou terre
no d'ellas pertencente ao morgado da Rua Formosa , conven
cionou Francisco Xavier de Mendonça , com o supplicante seu
irmão , fabricar as ditas casas, para desfructar em sua vida os
alugueres d'ellas, e para ficarem , como ficaram , depois unidas
ao morgado referido , depois de serem pagos trinta e dois mil
cruzados, em que depois da sua morte ficaram empenhadas á
meza da Misericordia de Lisboa .

Prova -se pela escriptura de contracto celebrada nas notas


do dito tabellião em 5 de setembro de 1768 pela sobredita
sentença de quitação da conta do testamento do mesmo Fran
cisco Xavier de Mendonça, proferida em 24 de maio de 1770
na provedoria dos reziduos.
Não adquiriu ultimamente o supplicante as bemfeitorias fa
bricadas, e outros bens comprados com o deposito dos usos
fructos reservados pelos ditos seus irmãos a favor do morgado
por elles instituido , cujo cumulo se liquidou importar nos an
nos que vieram a quantia de trinta contos e seiscentos mil réis,
pelos quaes se fizeram em Oeiras as obras das adegas, laga
res, cavalhariças e cocheiras.

Se levantou a cascata sobre o tanque grande , se acabou de


pagar em Cintra, a pequena quinta de S. Bento, e se compra
ram na mesma villa de Oeiras os pequenos pomares de Guilão ,
do Anjo e da Lagem , ficando ainda ao supplicante no mesmo
deposito a reserva d'aquelles usos-fructos de importante quan
tia de dinheiro, que sempre foi empregando, nas outras mais
importantes obras que foram occorrendo nas causas occorrentes.
Prova -se pela ultima sentença de 24 de maio de 1770 .
Prova - se da sentença de emenda da conta do testamento
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 351

do arcipreste Paulo de Carvalho de Mendonça e Athaide, pro


ferida em 4 de março de 1770, e da ultima de 24 de maio
do dito anno .
Ultimamente para se estabelecerem os referidos dois fa
ctos, isto é, do morgado instituido , e ampliado pelo tio e ir
mãos do supplicante, por sua primeira mulher, e pelo mesmo
supplicante, na occorrente quantia de sua terça , e de que os
mesmos bens acima indicados são os mesmos bens identicos,
pertencentes ao dito morgado , bastaria reflectir-se que os mes
mos dois factos foram corroborados e reborados em forma es
pecifica e authentica pelo diploma, ou carta de confirmação,
que se passou em resolução de 29 de dezembro de 1769, to
mada em consulta da junta das confirmações geraes, e com to
das as formas assignada pelo senhor Rei D. José, que Deus
chamou á sua presença, em 9 de janeiro de 1770 , e foi regis
tada na chancellaria mór da corte e reino, na data de 24 do
mesmo mez de janeiro do referido anno.

Quanto aos outros bens comprados pelo supplicante , e obras


por elle feitas depois da morte dos ditos seus irmãos, com
dinheiro das quintas e fazendas dos seus morgados que ven
deu para utilisal-as, e com os seus proprios desembolços.
OBRAS EM OEIRAS

Sómente , Senhora se lembra o supplicante de haver feito as


obras, que fossem consideraveis , com desembolço d'aquella
natureza , o pateo rustico e casas de adegaria fabricadas no ca
sal do Arneiros, antes sobrogado em Manoel Vaz Luiz Sequeira ,
pelos outros dois casaes de Linda -a - Velha, e Alcolena , o ac
crescentamento do pequeno jardim debaixo , a escada nova, que
desce d'ella , para a quinta .

A ponte de pedra ,por onde se passa á gruta do norte , e a


mesma gruta, cujas despezas se fizeram com o dinheiro do pão
e vinho , e das frutas de espinho, sem prejuiso das outras des
pezas da cultura que augmentava o rendimento .
COMPRAS 'NO TERRENO DE CINTRA

Comprou o directodominio do casal de Poyanos, sobrogado


por outro padrão do capital de quatro contos de réis.
VOLUME 24
352 MEMORIAS DO MARQUEZ DE PONBAL

Comprou outro casal, ou casaes de Odrinhos, Fayão ,Alco


bambal, e Alqueirão, com suas visinhanças, pela quantia de
quatro contos quinhentos e noventa e seis mil, e quatro centos
réis.

Prova -se pela escriptura de compra celebrada em Lisboa ,


aos 4 de outubro de 1775 , nas notas do tabellião Ignacio
Corrêa.

Prova -se pela outra escriptura de sobrogação , celebrada na


mesma cidade , em 21 de maio de 1776 , nas notas domesmo.
Prova -se pelo escriptura , celebrada tambem em Lisboa a
4 de setembro de 1776 , nas mesmas notas , relação n .° 4 .

OBRAS EM LISBOA

É notorio , que não chegando ao supplicante, nem todos os


dias da semana nem uma grande parte das noites para cum
prir com as obrigações dos seus honrosos empregos, e honro
sos cargos, só costumava reservar para os seus negocios fami
liares, nas manhãs dos domingos, aquellas poucas horas, que
medeiam entre a missa e o jantar , que somente n’ellas é que
conferia com seus bons e zelosos criados sobre as economias

geraes das obras, de que cada um d'elles se achava encarrega


do , sendo aliás impossivel que no tempo domesmo supplican
te , coubesse entrar no miudo detalhe das referidas obras.
Economias geraes, que reduzindo-se ao que consta a re
lação n .° 4 junta a esta supplica, produziram o effeito de fazer
o mesmo supplicante os consideraveis edificios abaixo decla
rados, com despesas muito menores do que aquellas que á vista
d'elles se poderão julgar.
Os estragos do terremoto do anno de 1755 , fizeram neces
sario que o supplicante reparasse as casas da rua Formosa das
ruinas que padeceram em algumas paredes divisorias, e que
reedificasse desde os fundamentos as outras consideraveis pro
priedades, que a sua casa ha muito possuia n’aquella rua e
suas visinhanças, com as despezas de trinta e cinco contos se
tecentos noventa e nove mil, novecentos e noventa e sete réis,
além das reparações , que era obrigado fazer, como adminis
trador do morgado, a que pertenciam as referidas casas.
Prova -se pelos dois livros das contas das referidas obras,
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 353

e certidão dos quatro mestres n'ella declarados que as avalia


ram .
Além das referidas obras, cuja separação impossibilitou a
confusão d'aquella funesta conjunctura, fazendo -se preciso que
ao mesmo tempo, se trabalhasse em differentes partes, fabricou
mais o supplicante os tres edificios seguintes :
Foi o primeiro d'elles , a propriedade fabricada em terreno
do morgado do supplicante, que jazna rua Direita da Sé Velha ,
entre as ruas de São Crispim , e de Santo Antonio, custando
acabada a quantia de 55 : 180 $ 944 réis, de rendimento de doze
mil cruzados, cada anno , com pouca differença .
Prova -se da relação n .° 5 , que consta do summario do livro
em que se acha encadernada a colleção das férias , e aviamentos.
Foi o segundo dos mesmos edificios, o que se fabricou na
rua Direita de S. Paulo , junto á Ponte Nobre, o qual custando ,
feito e acabado a quantia de 33:752$780 réis produz o outro
rendimento annual, pouco mais ou menos, de cinco mil cru
zados.
Prova -se pela certidão e relação n.º 6 , que contem o sum
mario, ou titulo do livro da despesa , que se fez na dita obra .
Foi o terceiro dos mesmos edificios, o que em outro terre
no do morgado do supplicante , sito na praça contigua ao con
vento dos Carmelitas Calçados de Lisboa , ficou somente aca
bado em umameia parte, tendo custado até ao tempo , em que
o supplicante saiu de sua casa a quantia de 41:4529727 réis,
e produzindo annualmente seis mil cruzados de aluguer.
Prova -se pela relação n.º 7 que contem o summario do
livro da despeza que se fez com a dita obra.
OBRAS NOS SUBURBIOS DE ALCANTARA DE BAIXO

Fazendo actualmente um tão grande vulto a união das re


feridas obras, e fazendo por isso um apparente objecto de im

portantes despezas do supplicante, logo que se passar pelos


olhos a relação compendiosa d'ellas, (n.° 8 ) se achará á luz
das mais claras e evidentes verdades, o seguinte :
Achar-se-ha evidente, que a larga ponte e util canal, que
d'alli corre até ao mar , foram mandados fazer depois do ter
remoto, pelo Senhor Rci D. José, com a despesa das obras pu
354 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

blicas, para desembaraçar e fazer decente a communicação que


estava impedida e indecorosa entre a corte de Belem e a cidade
de Lisboa , para se introduzirem com modicos desembolços os
materiaes que deviam servir na edificação do novo palacio de
Campo de Ourique, então delineado, e para chegarem aos jar
dins d'elle e d'elle sairem os escaleres reaes, na conformidade
da magnifica planta, que o architecto Carlos Mardel, deixou
feita e acabada, mandando o supplicante demolir em beneficio
das ditas obras, um moinho de seis pedras, com a sua ampla
caldeira, que ali possuia, sem pedir ou receber equivalente al
gum , que o indemnisasse, e sem lhe poder por então vir ao
pensamento , outros objectos, que não fossem o gosto d'aquelle
monarcha e a utilidade publica .
Achar-se -ha evidente, quanto as primeiras duas obras, dos
fornos publicos, das tercenas, que jazem ao nascente do sobre
dito canal, e doze armazens com seus altos e baixos, sitos ao
sul da caldeira, que todos foram edificados pelo hahil e provi
dente negociante Duarte Lopes Rosa, para com elles fazer os
grandes interesses, que constam da dita relação , contratando
as obras d'elles com o procurador do supplicante , para ser pa
go , como foi, pelas consignações declaradas nas escripturas pu
blicas das ditas convenções .
Achar -se -ha evidente, quanto a terceira obra , que as ve
xações que trouxe comsigo o inopinado accidente da guerra
no mez de março de 1762, a indispensavel urgencia de man
ter o exercito com munições de bocca e forragens, a impossi
bilidade que as experiencias das duas ultimas guerras, e o pru
dente arbitrio do conde Schomberg Lippe,mostraram que ha
viam em
se entregarem os ditos fornecimentos nas mãos dos
assentistas geraes, sem uma total ruina das tropas, do exercito,
do erario real, e das provincias do reino , deram necessarios
motivos aos factos seguintes.
Por uma parte ao regio e fundamental decreto do 1.º de
julho de 1768, que estabeleceu a junta das munições de bocca ,
e forragens debaixo da inspecção do erario regio .
Por outra parte , reconhecer, e representar ao dito monar
cha a referida junta , que não cabia na possibilidade , que ella
cumprisse com aquellas obrigações, sem um grande deposito
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 355

geral, estabelecido em Lisboa, com edificação á borda d'agua ,


de mais de dezoito armazens, com seus altos, e baixos, no lado
occidental do mesmo canal de Alcantara , fabricados por conta

da mesma junta, para ser paga a despeza pelo supplicante , com


a consignação notoriamente util á fazenda real, que a mesma
junta apontou , demonstrando, as extraordinarias utilidades, que
d'aquella obra proviriam á mesma real fazenda .
E pela outra parte , o deferir Sua Magestade, com pleno
conhecimento de causa , depois de lhe haverem sido presentes,
todos os referidos motivos, mandando edificar os ditos dezoito
armazens, por decreto de 10 de março de 1769, depois de ha
ver commettido tudo o que pertencia ao expediente d’este ne
gocio ao secretario d'estado D. Luiz da Cunha, em razão de se
ter d'elle excusado o supplicante, por dizer respeito aos seus
interesses particulares, por mais que tivesse conhecido a noto
ria utilidade, que avançava a mesma fazenda real, somente na
obra da referida edificação, e os muitos centos de mil cruzados,
que a mesma edificação lhe havia produzir .
Achar-se -ha evidente, quanto á quarta obra , que a referida
junta sobre a experiencia das avultadas despezas, e prejuizos
que á fazenda real estavam causando, a multiplicação dos feito
res, e armazens pela terra dentro , para recolher as palhas das tro
pas, os palheiros do campo , e os carrêtos das entradas, e saidas
pelo inverno , tornou a representar ao dito senhor, em 3 de abril
de 1774 especialmente sobre as grandes utilidades, que rece
beria aquella administração, de fazer edificar á borda d'agua,
e no lado do nascente do dito canal de Alcantara um grande
palheiro, que em si contivesse vinte mil panos de palha, pelo
menos, para ser tambem pago pelo supplicante , com a mesma
vantagem da real fazenda assim indicada.
pela outra parte , que SuaMagestade, com o mesmo pleno
conhecimento das referidas causas , tornando a commetter o
negocio ao dito secretario de estado dos negocios do reino,
D. Luiz da Cunha , mandou baixar pelo seu expediente , o outro
decreto do 1.° de junho d'aquelle anno , em cuja execução se
celebrou na data de 20 d'aquelle mez, a escriptura do con
trato, por eſteito do qual se procedeu á edificação d'aquelle pa
lheiro, agora existente , que constitue a dita quarta obra.
356 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

E se achará em fim claro, e evidente, que nenhuma das


referidas quatro obras, trouxe prejuizo algum a fazenda real,
nem aos particulares, nem n’ellas houve dolo algum , sendo to
das feitas com causas justas, que trouxeram comsigo as con
sequencias dos tempos, com motivos indispensavelmente neces
sarios, e com os titulos mais legitimos, e authenticos que se po
diam desejar .
É

portanto certo que os referidos quatro edificios, ajuntan


do-se aos outros que o supplicante havia mandado fabricar, e as
compras que fez , e unindo -se tudo aos bens do vinculo insti
tuido por seu tio , e ampliado pelos sobreditos irmãos, constitui
ram o grande fundo, que deu motivo ás sobreditas declamações ,
espalhadas contra as riquezas do mesmo supplicante.
Sem que comtudo se averiguasse primeiro, nem se os titu

los das ditas riquezas, eram tão legitimos como o supplicante


tem manifestado , nem se para ellas tinham havido as superve
nientes e manifestas causas accidentaes , e innocentes, que as
accrescentaram .
Pois que se aquellas, justas, e necessarias averiguações
houvessem precedido, é certo que a resulta seria o ter-se acha
do, que para o dito accrescentamento de rendas, bastaria só
mente o augmento , a que o commercio geral, e manufacturas
d'este reino tem subido desde o terremoto , sendo na arithme
ue nin
tica politica , e economica d'estado , uma regra certa de q
guem duvida ha muitos annos na Europa instruida, que tanto
valem annualmente as rendas das terras, fazendas, e alugue
res de casas, quanto importam tambem annualmente as pro
ducções do commercio , e manufacturas , andando umas e outras
em egual equilibrio .
Regra certa , e infallivel , que na mesma cidade de Lisboa
9

se está vendo verificada , não sómente na casa do supplicante ,


mas tambem no grande numero d'ellas, que foram estabeleci
das desde o terremoto, pelos negociantes, e cidadãos de boa
economia , que hoje se acham com rendas muito e muito mais
avultadas do que podia caber na imaginação das gentes , em
quanto o mesmo commercio, e as mesmas manufacturas não
floresciam n'este reino , como actualmente florescem .
Bastaria tambem considerar-se, as mercês com que o Se
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 357

nhor Rei D. José, honrou , e utilisou ao supplicante, os bens


patrimoniaes da sua casa, que vendeu para unir em Lisboa ,
e Oeiras, os rendimentos dos seus proprios bens, e dos que
herdou de seu tio, e irmãos, as uteis opportunidades com
que as contingencias do tempo , o ajudaram , e a boa eco
nomia domestica , que sempre observou para se reconhecer
que possuia, e possue o proprio , sem jamais haver attentado
contra o alheio .

E sobre tudo isto , que a Providencia Divina poderia ser ,


que pelas multiplicadas diligencias que o supplicante havia sem
pre feito, para a conservação , e fundação demuitas casas alheias,
The accrescentasse a propria .
E pela outra parte, que o ter muito não é coisa repre
hensivel, mas sim muito util á corôa, e aos vassallos d'ella ,
quando se não faz dos muitos bens o mau uso que o suppli
cante nunca fez .

Antes muito pelo contrario , não havendo tido por muitos


annos , mais que as poucas horas das manhãs dos domingos,
proximas ao jantar, para tratar dos seus negocios particulares,
logo que pelo mez de junho do anno proximo passado poude
desembaraçar -se alguns dias, para n’elles dar um balanço ge
ral aos seus bens, e rendas, foi immediatamente dar conta d'elle
ao dito monarcha seu senhor, e bemfeitor, representando- lhe ,
que a Providencia Divina , e a real clemencia de Sua Magesta
de, e a sua grande economia , e de seus irmãos, o fizeram achar
com uma casa de bens patrimoniaes, nunca por elle esperada.
Que esse accrescentamento lhe seria muito menos estimavel
que honroso se o não convertesse ( quanto n’elle cabia ) no
serviço de Sua Magestade, e bem commum , e utilidade publi
ca de seus vassallos. Que lhe parecia cumprir com um e outro
objecto , dividindo amesma casa em duas, e fundando a segun
da d'ellas em seu filho José Francisco de Carvalho e Daun , pelo
bem commum que sempre resultou da multiplicação das casas
nobres, e opulentas.
Representação , que o mesmo senhor ouviu , approvou , e
honrou tanto , coma sua costumada benignidade, e grandeza
de animo, que logo ordenou fosse posta por escripto, accres
centando que o novo instituido , era seu afilhado da Pia , e que
358 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

o queria abençoar com um titulo egual ao de seu primogenito


irmão, de qualquer villa que se achasse mais propria.
Representação, que sendo n’aquelles termos habeis , re
duzida a petição formal, fez a base do graciosissimo decreto
do 1.° de julho do mesmo anno proximo precedente, lançado
no alto d'ella , e deu assumpto a outro decreto da mercê do ti
tulo de conde da Redinha .
Ao mesmo tempo é publico, e notorio, que o supplicantè ,
nunca teve dinheiro em caixa, e que antes saiu ultimamente
gravado de sua casa , com mais de cento e vinte mil cruzados
de dividas, e que todos os pagamentos pecuniarios que recebeu

foram sempre espalhados de verão e de inverno por artifices,


trabalhadores, e jornaleiros , que chamavam patrimonio seu á
casa do supplicante, como é publico, e notorio.
Finalmente,Senhora, não pretende o supplicante interrom
per os preciosos momentos de Vossa Magestade, com esta ex
tensa , é humilissima supplica , a fim de esperar novas mercês,
por meio d'ella , por que seriam intempestivos depois de haver
recebido da regia clemencia , e magnanimidade de Vossa Ma
gestade, não só a conservação dos ordenados, e a gratificação
da nova commenda a que nunca aspirou , mas além d'estas, a
maior graça , que já antes tinha pretendido alcançar de El-Rei

augusto pae de Vossa Magestade, era a de lhe permtttir , que na


edade decrepita, e no abatimento de forças, em que se achava,
lhe concedesse, que sem prejuizo do real serviço, pudesse o sup
plicante metter entre o tempo e a eternidade, aquella abstenção
de applicações a negocios politicos, que a razão e a christan
dade, fazem desejar a todos os homens, que discorrem livres
das preoccupações, que os prendem ao mundo, e de que o mes
mo supplicante está actualmente gosando n’este retiro do Pom
bal, por beneficio da mesma clementissima graça de Vossa Ma
gestade .
Tambem não passou, nem o supplicante espera, que sem
desamparo da Mãe de Deus, haja de passar pelo seu pensa
mento outro fim de redarguir , ou recriminar aos que tanto o
tem injuriado , e diffamado ; porque na presença de Deus, e de
Vossa Magestade, protesta que tem perdoado , e perdoa liberal
mente a todos aquelles que o tem offendido , desejando desde
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAI. 359

o intimo do seu coração, que Deus conceda a todos tantos bens,


quantos tem sido os males que intentaram fazer - lhe.
O maior objecto do supplicante, é a alta contemplação da
augusta memoria da illuminadissima comprehensão, e do finis
simo discernimento dos seus grandes monarchas, um d'elles
glorioso avô , e outro glorioso pae de Vossa Magestade, os
quaes honraram tanto ao supplicante.
O primeiro , confiando-lhe, depois das delicadas e impor
tantes negociações, de que o tinha encarregado nas cortes de
Londres, e de Vienna d'Austria , as duas pacificações da im
peratriz rainha com o Papa , e do sacerdocio com o imperio ,
não sem a gloria de se ultimarem , ambas as ditas pacifica
ções, pelos officios da sua realmediação .
O segundo , servindo-se, e ajudando-se do mesmo suppli
cante, para supportar consternações, reparar os estragos do
terremoto de 1755 ; para prevalecer contra a sacrilega, e hor
rosa conjuração do anno de 1758; para prevenir , e praticar os
difficultosos meios, e modos com que repelliu , a inopinada, e
escabrosa guerra , aberta no mez de março de 1762; para res
tauração das armas, e das letras, do commercio , e da agricul
tura d’estes reinos, e seus dominios (que constituem as quatro
columnas, sobre que descançam os estados politicos) com os
aproveitamentos, que tem sido notorios ; para erigir na paz na
cidade de Lisboa, uma capital , que fosse tão digna de seus
grandes monarchas, como a quehoje se acha levantada sobre os
estragos do referido terremoto, e sobre os vestigios da outra
antiga, e indecente cidade, que por aquelle funesto phenomeno
ficou arruinada ; e emfim para todos os outros gravissimos ne
gocios, que são inseparaveis de um primeiro ministro .
Os outros objectos menores (posto que de grande impor
tancia) com que o supplicante recorre a Vossa Magestade, con
sistem :

Primeiro , em não deixar denegridos ao pé do regio throno


de Vossa Magestade, os grandes logares que se lhe confia
ram .
Segundo , na natural, e indispensavel defeza da sua pro
pria honra.
Terceiro , em não deixar a seus filhos, e conjuge, escanda
360 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

los, depois de haver trabalhado , quanto n'elle esteve , por lhes


deixar exemplos. Em attenção de tudo o referido.
Pede a Vossa Magestade, se sirva de fazer digno da sua
regia e benigna attenção, este humillissimo recurso, no qual o
supplicante entende ter mostrado, que nunca adquiriu , nem
possuiu riquezas, com prejuizo , ou da sua real fazenda , ou dos
particulares, attendendo Vossa Magestade tambem , aos pode
rosos objectos a que o mesmo recurso é dirigido . E. R. M.*

Relação dos rendimentos dos beneficios, e bens patrimoniacs,


que annualmente recebia o cardeal Paulo de Carvalho de Men
donça e Athaide, e seu irmão o secretario d'estado Francisco
Xavier de Mendonça, no tempo dos seus fallecimentos.

PAULO DE CARVALHO DE MENDONÇA E ATHAIDE

De prior de Guimarães . 4 :8008000


Do conselho geral do santo officio .. 1 :0008000
Da executoria da bulla patriarchal.. 600 $ 000
De commissario da bulla da cruzada. 1 :000 $ 000
Das provedorias das capellas de El-Rei D. Af
fonso IV ..... 2008000
Do beneficio de Coruche.. 240 $ 000
Do beneficio de Santa Maria de Cintra . . 120 $ 000
De presidente do senado..... 2 :000 $ 000
De presidente do conselho da rainha... . 400 $ 000

Réis ... 10 : 360$ 000

Deve aqui lembrar-se, que havendo sido o presidente, e


priorado de Guimarães , considerado , e servido pelos antece
dentes priores, como um beneficio simples, não obstante que o
dito Paulo de Carvalho de Mendonça e Athaide, assim o co
nhecesse , comtudo, logo que se achou n'elle collado , foi bus
car immediatamente o excellentissimo, e reverendissimo se
nhor Cardeal Patriarcha , e desistiu nas suas mãos de réis
1:600 $ 000 annuaes, que até ali recebia, emquanto monsenhor
da santa egreja patriarchal; ponderando- lhe, que não podia
caber comsigo embolsar os frucios de uma egreja , que bem
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 361

não podia servir, pelos embaraços de outros logares, que oc


cupava.
Por que posto que lhe eram presentes os exemplos dos
disfrutaram aquelles quatro mil cruzados, em logares diversos ,
se não podia ainda assim aproveitar dos mesmos exemplos, por
não ter necessidade alguma que a isso o obrigasse, e effectiva
mente desistiu do rendimento , sem embargo das instancias, que
o dito emminentissimo Cardeal Patriarcha lhe fez para o con
servar.

Vem da lauda antecedente ... 10 : 360 $ 000


Das suas casas, que erigiu , e edificou , junto á
cgreja de S.Paulo em quanto n’ellas não fez
as maiores obras, que depois accrescentou .. 2 :4003000

Réis ... 12:7608000

Francisco Xavier de Mendonça , nunca pediu , nem acceitou


ajuda de custo, ou ordenado algum em todo , ou em parte do
emprego de vedor da fazenda da repartição dos armazens, que
o senhor Rei D. José, que Deus tem , o mandou servir , com o
titulo de inspector da marinha , de cujo emprego deu a boa con
ta , que é a todos notoria .
Tambem não recebeu ajuda de custo, ou gratificação algu
ma, nas occasiões, em que o dito monarcha, quiz com elle usar
da sua magnanimidade, supplicando - lhe, que houvesse por bem
suspender os effeitos d'ella ; por que elle Francisco Xavier de
Mendonça , se achava lão superabundantemente provido, para
um filho segundo, que fazia obras do que lhe sobejava, depois
de cumprir com as obrigações da sua decencia , e da christan
dade, com o ordenado que recebia , como secretario d'estado,
importando este, em réis... 9 :600 $ 000
Que com as rendas de Paulo de Carvalho de
Mendonça .. 12 : 760 $ 000

Réis ... 22 :360$ 000


É

para notar , primó, que além das sobreditas rendas an


nuaes receberam , e applicaram a compras, e obras os sobre
ditos dois irmãos, cincoenta mil cruzados, que herdaram de sua
362 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

mãe D. Thereza Luiza de Mendonça, na maior parte em di


nheiro apurado, e liquido , como consta do seu inventario , em
autos de que foi juiz commissario , o desembargador João An

tonio d'Oliveira . Secundó , que ambos os ditos seus irmãos vi


veram sempre com o Marquez de Pombal, na mais intima
fraternidade, como se fossem filhos-familias, comendo dames
ma cosinha , sustentando as suas bestas na mesma cavallarica ,
não fazendo outras despezas, que não fossem as dos seus ves
tidos, e dos ordenados dos seus creados, e das esmolas que é
notorio em Lisboa, e Oeiras, que não deixavam de repartir
pelos orphãos, e necessitados. Tertió, que depois de se deduzir ,
da totalidade da sobredita receita, aquelles tres artigos de des
peza , que não podiam chegar, nem ainda a uma quinta parte
dos rendimentos dos referidos dois irmãos, tudo o mais foi por
elles empregado, a saber : nas compras que fizeram em Oei
ras, e na Granja , nas bemfeitorias d'aquellas duas fazendas,
nas outras compras que ambos foram fazendo , e na edifica
ção das uteis propriedades de casas, que fizeram fabricar em
Lisboa .
E computando-se os annos, que os sobreditos viveram com
aquellas importações e rendimentos, e as dividas, que contrahi
ram Francisco Xavier de Mendonça , trinta e dois mil cruzados
que tomou a juro á Misericordia de Lisboa , para acabar as ca
sas juntas á Conceição Velha , como é publico , e notorio na re
ferida mesa , e Paulo de Carvalho de Mendonça e Athaide , de
trinta mil cruzados, que para supprir a outra obra de S.Paulo,
tomou tambem de emprestimo ao cofre do deposito do ausente
João Fernandes d'Oliveira , filho , como tambem consta dos li
vros do referido cofre, fica muito mais facil de comprehender ,
que n'aquelles rendimentos, e n'aquelles dois emprestimos, não
podiam deixar de ter os ditos dois irmãos do Marquez , os meios
necessarios, para as sobreditas despezas, com que augmenta
ram a casa em que nasceram , usando dos seus cabedaes pro
prios, sem attentarem contra os que eram alheios.
E isto ainda comprando por preços excessivos, a maior par
te dos pedaços de terra , e casas que uniram á quinta de Oeiras,
entre cujos moradores, se consideravam remediados , e até ri
cos aquelles que possuiam , algumas pequenas porções de pre
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 363

dios, que partissem com a casa de Oeiras, como é publica voz,


e fama n’aquella villa , e seu termo.
Principalmente quando os sobreditos nas uniões que fize
ram de seus bens ao morgado da casa , em que nasceram , re
servaram os usos fructos d'elles com os quaes se fizeram tam
bem as outras obras, e compras de que se deu conta na pre
vedoria dos residuos. = Pombal 29 de março de 1777.

Relação das quintas, terras, e outros bens de raiz patrimoniaes


da casa do Marquez de Pombal, que foram vendidos para se
empregarem os preços d'elles, nas obras, e compras com que
se ampliou , e bemfeitorisou o morgado da sua casa, que scu
lio o arcipreste da santa egreja patriarchal, Paulo de Carva
lho de Mendonça e Athaide, havia instituido de todos os seus
bens, no testamento com que falleceu no anno de 1737, sen
do a parte principal, ou cabeça d'elle, a quinta de Oeiras, o
fazendas a ella unidas pelo mesmo testador.

Ajuntam -se em supplemento da mesma relação, os outros


meios para as obras e acquisições que fez durante o seu mi
nisterio .
Pela venda feita a D. José de Menezes de Cas
tro e Silva , da quinta sita no fim do Campo
Grande , defronte do marquez de Valença, co
mo constará da escriptura d'ella 4 :400 $ 000
Pela venda feita de outra quinta sita na Portel
la, a João Fernandes de Oliveira, como tam
bem constará da escriptura segundo lembran
ça não foi menos de.... 2 :800 $ 000
Pela venda de um pomar sito na villa de Po
vos, feita ao desembargador Romão José, o
que constará da escriptura , que segundo me
moria que d'ella ha não foi menos tambem
de ... 1 :800 $000
Pela outra quinta nobre, e fazenda sita na fre
guezia dosOlivaes, subrogada com o marquez

9 :000 $ 000
364 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Transporte... 9 :0008000
de Louriçal, com faculdade e provisão regia ,
na quantia de .. 10 :0003000
Pela venda de outra pequena quinta , chamada
dos Regos, e fazendas a ella annexas, sitas
na villa de Montemor-o -Novo , feita a Anto
nio da Silva Laboreiro ,mercador na mesma
villa , o que consta da escriptura , que segun
do lembrança que ha , não foi menos de.... 1 :8003000
Pela venda de outra quinta da Barroca , sita na
Panasqueira , vendida a Joaquim Ignacio da
Cruz Sobral, com provisão regia , por ser de
morgado, como tambem constará da escriptu
ra de venda.. 10 : 0003000
Pela venda de outra quinta, sita no Carregado ,
feita com provisão , por ser tambem perten
cente a morgado , ao provedor dos armazens
José Joaquim de Larre.. 10 :0003000
Pela venda de umas apolices da companhia de
Pernambuco, pertencentes ao morgado de Lu
· cenas, vendidas a Polycarpo José Machado ,
para empregar em bens de raiz, para o mes
mo vinculo ... 4 :0858000
Pelas fazendas, e armazens do porto de Villa
Velha , vendidos a Francisco José Caldeira ,
por provisão regia, por serem tambem vin
culados, como constará da escriptura a quan
tia de.... 10 :000 $ 000
Pelas vendas dos prasos da Ega , e Alencarse,
e pelas terras das lezirias sitos no campo
da Villa de Pereira , junto a Montemor -o- Ve
iho , feitas com provisão regia ao desembar
gador João Pereira Ramos de Azevedo Cou
tinho , para as reunir as outras consideraveis
fazendas,que tem n'aquellas partes pela quan
tia de .... 6 :4009000

61: 2873000
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 305

Transporte...... 61:285 $ 000


Pelas vendas de umas lezirias sitas no Cam
po de Vallada , e Casalde Carneira ,no limi
te do Porto de Muge, feita por escriptura pu
blica a João Rodrigues Caldas pela quantia
de..... 4 :800 $ 000
Pela venda de umas terras sitas no limite da
villa de S. João da Pesqueira, vendidas por
ser morgado por outra escriptura , e provisão
a Manuel Leme de Sande e Castro, morador
na sobredita villa tudo por .... 2:800 $ 000
Por outra venda de umas terras , sitas no limi
te da villa de Sernacelhe , feita da mesma
sorte , por serem tambem demorgado, a Fran
cisco de Moraes de Figueiredo da mesma
villa , por.. 1 :600 $ 000

Réis ... 70 :485 $ 000

SUPPLEMENTO

A elles accresceu a quantia de cincoenta e tantos mil cru


zados, que o arcipreste da santa egreja patriarchal Paulo de
Carvalho de Mendonça e Athaide, deixou vencidos na mesma
egreja, ao tempo do seu fallecimento, a qual quantia em exe
cução do seu testamento, foi entregue ao supplicante, e por elle
applicado a favor do morgado instituido pelo dito seu tio.
Accresce o dote de sua primeira mulher, D. Thereza de
Noronha, que além dos bens de raiz , importou em dinheiro a
quantia de 6 :201 $ 440 réis que o supplicante empregou na
compra , que fez ao visconde de Barbacena, da quinta de Oei
ras arruinada pelo terremoto , onde hoje se acham a horta ajar
dinada, e a adega , como consta da sentença de quitação da
conta do testamento da mesma D. Thereza de Noronha , pro
ferida na provedoria dos residuos aos 31 de agosto de 1765 ,
em autos de que foi escrivão José Anacleto de Aguiar.
Accrescem as consideraveis quantias, que desde o anno de
1759 em diante importaram os productos das rendas de Oei
ras, e o seu termo doados ao Marquez de Pombal, pelo gra
366 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

ciosissimo decreto de 6 de junho , do dito anno, producto, que


nos dezoito annos que tem decorrido, sempre o mesmo Marquez
applicou a bemfeitorias, e edificações, empregadas em Lisboa,
e Oeiras a beneficio dos morgados instituidos pelo seu tio , e ir
mãos, depois de applicar á sustentação da sua familia e casa .
Primó,os ordenados que vencia como secretario de estado dos
negocios do reino , e casa de Bragança . Secundó , os rendimen
tos da commenda de S. Miguel das Tres Minas. Tertió , os pro
ductos do antecedente patrimonio da sua casa , que tem na ci
dade de Lisboa. Quartó, os fructos que mandou vir das suas
fazendas visinhas e remotas, com os quaes fazia todos os pro
vimentos grossos da sua despensa , e fornecia todos os manti
mentos , e forragens, para as suas cavallariças, e de seus ir
mãos, até onde chegavam , fazendo comprar somente os que lhe
faltavam .
Accresceu emfim a tudo o referido , o que tambem foram
annualmente produzindo os alugueres das casas que se foram
edificando em Lisboa, e as novidades de pão , vinho , e fructa
d'espinho, que tambem com trabalho, e com o tempo , se foram
fazendo cada anno mais rendosas, e uteis.-- Pombal, 29 de
março de 1777. = 0 contador da casa , Estevão Antonio de
Montes.

DIVIDAS DAS OBRAS DAS PROPRIEDADES DE LISBOA,


QUE NÃO VENCEM JUROS

Ao mestre José Antonio Monteiro , do resto de


muitas madeiras que se lhe compraram , para
as obras, e reedificações das propriedades das
casas que tenho em Lisboa , por cujos rendi
mentos se lhe costumava ir pagando o referi
do mestre.. 10 : 2308719
Aos contratadores do paço da madeira , Antonio
Francisco , e seus socios , de taboados que sahi
ram da sua estancia para a reedificação das
casas do Carmo, que tambem se devia pagar
dos rendimentos d'ellas a quantia de....... 3 :600 $ 000

13:8309719
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 367

Transporte .. 13:8308719
Ao mestre serralheiro, Gonçalo José, das obras
de seu officio , que fez para as sobreditas ree
dificações , se achou agora dever-se-lhe de res
to .... 9008000
Ao mestre canteiro, Manuel Vicente, de outro
resto de pedrarias que forneceu para a obra
fronteira a Santa Maria Magdalena ... 2598272
A Guilherme Weingarthen , de umas cancellas de
ferro, que se ignorava acharem -se ainda por
pagar . 8698700
A Manuel Caetano de Mello , de umas duzias de
planchas que vendeu para as ditas obras ... 152$ 000
A Antonio Rodrigues Martins do resto das plan
chas que costumava comprar por minha con
ta na cidade do Pará (note-se que este di
nheiro se deve entregar a João Antonio Pinto
da Silva , que sempre se empregou, e recebeu
n'esta corte o dinheiro das planchas, queman
dei comprar pelo dito Antonio Rodrigues Mar
tins, para elle remetter, em razão de corres
pondencia que ficou conservando com o so
bredito desde que se recolheu d'aquelle esta
do a este reino ).
Á fabrica do engenho demadeira, que tambem
se ignorava . 600 $ 000
A Manuel José de Figueiredo , que tem loja de
bebidas na Rua Nova de El-Rei, os quaes lhe
pediu o contador do marquez, Estevão Anto
nio de Montes , na confiança da amizade que
com elle tem , e da sua abundancia de cabe
daes, para não pararem os pagamentos das
ferias das obras do Carmo, e dos jornaes dos
artifices, que n'ellas trabalhavam . 600 $ 000
A DanielGil deMeester, pelo valor de um adere
ço de diamantes, que se lhe comprou para o

17:2118691
VOLUME 20
368 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Transporte . 17:211$ 691


casamento do conde da Redinha , e de que tem
escripto de obrigação assignado pelo marquez. 4:420 $ 000
A Antonio Roger , cravador de diamantes, do
resto de outras pessas que fez do seu officio . 200 $ 000
A Manuel José de Carvalho, por uma conta de
fazendas brancas ... 174 $ 750
A João Antonio por outras, a quantia de . 244 $ 360
Ao mestre correeiro Manuel José Gonçalves, do
resto dasmuitas obras do seu officio , que tem
feito para a minha casa, depois demuitos annos 468 $ 760
A diversos outros artifices da minha casa por di
vidas que se ignoravam , e agora appareceram 1:000 $ 000
A Francisco José Lopes, de premios de seguros
que fez das minhas casas em Lisboa, a quan
tia de .. ·450 $000
A David Pury, que se está pagando pelos alu
gueres das casas da Rua Formosa 3:000 $ 000

Somma.. 27 : 169 $ 561

DIVIDAS QUE VENCEM JUROS

Aos religiosos Agostinhos descalços do conven


to de Santa Rita . 5 :600 $ 000
Aos Mariannos . 7 : 200 $ 000
Aos religiosos de Santo Agostinho do convento
da Graça ... 1:600 $ 000
Aos religiosos da collegiada de Santo Antão .. 1 :246 $ 000
Aos herdeiros de Sebastião Pedro de Mello de
Povoas .. 2:000 $ 000

Somma .. 17 :646 $ 000


RESUMO
Dividas das obras que não vencem juros...... 16 :611 $ 691
Dividas de outras que tambem não vencem juro. 10 :5578870
Dividas que vencem juros.. 17:646 $ 000

Réis .. 44 :8158561
Pombal, 29 de março de 1777.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 369

N.° 4

Relação das economias geraes que o Marquez de Pombal


praticava e mandava praticar nas suas obras.

Primó, mandar coser a cal por sua conta, no grande forno


que a sua casa tem no logar de Paço d'Arcos, onde lhe sahia
cada moio pelo moderado preço de 700 réis .
Mandar transportar dos seus pinhaes das Vendas Novas,
todos os vigamentos, e todas as outras madeiras miudas, que
servem para tecer frontaes.
Mandar vir da cidade do Porto, onde são mais baratos, todos
os páus grossos, e todos os vigotes de castanho , que se acha
vam promptos, e todos os arcos das pipas, para os fasquiados
dos estuques, pagando tudo o referido com os vinhos de Oei
ras, vendidos á companhia do Alto Douro, sem nunca excede
rem o preço da lei taxado pela instituição d'ella , é dando-lhe
ao mesmo tempo a superioridade, que sempre tiveram os seus
vinhos, sobre os dos inglezes, os quaes em muitas occasiões
mandaram offerecer ao marquez 80 , 90 e 100 mil réis por
cada pipa do seu dito vinho de Oeiras, por que só um almude
d'elle bastava para tingir e espiritualisar uma pipa de outro vi
nho do Douro, muito menos coberto , e mais fraco , querendo
o mesmo Marquez dar aquella vantagem á companhia que ha
via fundado .
Mandar vir do norte toda a outra pregaria miuda pelos
seus inquilinos Thomaz Mayne, e Henrique Wermelchle, para
se pagarem , como tem pago d'ellas, pelos alugueres das casas
em que vivem .
Mandar trabalhar caritativamente por todos os mezes do
anno , em fazerem ferragens os serralheiros de Oeiras, os quaes,
e as suas familias recebiam assim grandes adjutorios. As obras
tinham sempre com antecipação promptas todas as ferragens
em pequenas parcellas, sem se acumular.
Mandar praticar o mesmo a respeito das pedrarias, a be
neficio dos mestres d'ellas Manuel Vicente, e da sua familia
moradores na mesma villa de Oeiras , para auxiliar ao mesmo
tempo aquella familia .
370 MEMORIA3 DO MARQUEZ DE POMBAL

Mandar praticar o mesmo a respeito do mestre carpintei


ro Christianno Duarte, e os seus officiaes em trabalharem de
verão, e de inverno, em portas e janellas, e em irem prepa
rando taboado.
Mandar prevenir as compras dos vigamentos , que não po
deram sahir dos seus pinhaes, dos taboados,dos madeiramen- ,
tos de castanho , do tijolo , da telha , do azuleijo, nas conjunctu
ras dos tempos em que se achavam mais baratos .
Mandar conduzir em bois , e carros seus, mandados vir de
Oeiras, e da Granja , todos os materiaes, para d'elles não pa
gar os carretos, que se costuma avaliar, em uma terça parte da
despeza da obra .
Mandar pagar aos artifices, e trabalhadores, e mais jorna
leiros successivamente, e sem interrupção as ferias dos sabba
dos, sem ficarem os jornaes, e os miudos aviamentos por pa
gar de uma semana para a outra , com que tiveram sempre as
obras do Marquez os melhores jornaleiros, e se buscavam va
ledores para trabalhar n'ellas, quando algum faltava , ou era
preciso accrescentar o numero d'elles.
Não se principiar obra de propriedade alguma, sem se
achar prompto, por uma parte o dinheiro proporcionado á renda
dos bens deraiz, que se iam fazendo , e pela outra parte se acha
rem desembaraçadas, livres para receberem os alugueres das
propriedades que se acabavam , para que estes ajudassem
com os seus rendimentos as despezas de outra obra que se ia
a principiar.
Mandar assistir sempre ás referidas obras, e a tudo que a
ellas pertencia , os seus fieis, zelosos, e honrados creados Vas
co José de Aguiar, Feliciano Correia de Lima, e Manuel Anto
nio do Coito, que exactamente, executaram com o maior cui
dado o referido , como elles mesmos poderão depor, se neces
sario fôr.
Pombal, 28 de março de 1777.
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 371

N.° 5

Relação summaria da despeza do edificio fabricado na rua direita


da Sé Velha, entre as ruas de S. Chrispim e de Santo Anto
nio , extrahida da collecção das referidas despezas.

Pela importancia das folhas dos jornaes, e mate


riaes pagos no dia 13 , e na semana finda em
27 d'este mez de março de 1774 , como cons
ta das ditas folhas ... 1 : 2928250
ABRIL . — Por ditas pagas nas semanas 3, 10 ,
17 e 23 , a quantia de... 1 :279$ 785
MA10. — Por ditas pagas nas semanas de 1 , 8 , 15 ,
22 e 29 , a quantia de 2 : 151$ 380
JUNHO.- Por ditas pagas nas semanas de 5 , 12,
19 e 26 , a quantia de..... 2 : 151 $580
JULHO . Por ditas pagas nas semanas de 3 , 10 ,
17 , 24 e 31, a quantia de.... 2 :283 $ 020
AGOSTO. — Por ditas pagas nas semanas de 7 ,
14 , 21 e 28 , a quantia de .... 2 :905 $ 880
SETEMBRO.—Por ditas pagas nas semanas de 4 ,
10 , 18 e 25 , a quantia de.. 1 :874 $ 810
OUTUBRO.- Por ditas pagas nas semanas de 9 ,
16 , 23, e 30 , a quantia de.... 2 :5138620
NOVEMBRO. — Por ditas pagas nas semanas de 6 ,
13 , 20 e 27 , a quantia de .. 2 :1159810
DEZEMBRO.— Por ditas pagas nas semanas de 4 ,
11, 18 , 25 e 31, a quantia de.... 2 :2133097

JANEIRO.- Pelas ditas pagas nas semanas de 8,


15 , 22 e 29, a quantia de . 1 :810 $ 275
FEVEREIRO.- Pelo mesmo de 5 , 12 , 19 e 26 ... 3:0248803
MARÇO.—Pelo mesmo de 6 , 13 , 20 , e 26 ..... 4 : 108 $ 117
n

ABRIL . — Pelo mesmo de 2 , 9 , 16 , 23 e 30 ... 3 :641$ 202

33 : 365 $629
372 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Transporte . 33: 365 $629


MAIO . — Pelo mesmo de 7 , 14 , 22 e 29 . 2:456 $ 275
JUNHO . — Pelo mesmo de 4 , 11, 18 e 24 . 1 :8199920
JULHO . - Pelo mesmo de 9 , 15 e 22. 1 :449 $640

Total... 39 :091 $ 464

Materiaes comprados para a obra do mesmo edificio,


que não vão incluidos nas folhas da dita despeza

Por importancia do vigamento e taboado de pi


nho de Flandres, comprado a diversos, como
consta das relações das ditas compras juntas
á collecção da despeza do dito edificio..... 10 : 748 $450
Por dita de ferro e ferragens, compradas a di
versos, a quantia de. 1 :470 $ 160
Por dita de pregos da terra, comprados para a
dita propriedade, como consta da conta e re
ceita junta á minha collecção, a quantia de. 1 :4709870
Por dita de pregos da terra , por dita de estima
ção e valor, que os mestres da referida pro
priedade, arbitraram as madeiras cortadas
nos pinhaes das Vendas Novas, para a dita
obra , como consta do extracto junto á mes
ma collecção .. 2 :400 $ 000

Somma.. 16 :089 $480


Com... 39:091$ 464

Rs... 55 : 1808944

O contador da casa , Estevão Antonio de Montes.


MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 373

N.° 6

Relação summaria ou resumo da despesa do edificio fabricado


na rua Direita de S. Paulo, junto a Ponte Nobre, extrahida
da collecção do livro da referida despesa .

1970

SETEMBRO.- Por importancia de uma conta de


tijolo , comprado antecipadamente para a obra
do referido edificio 2068331

1771

DEZEMBRO.— Por importancia das folhas dos jor


naes e materiaes pagos desde da semana fin
da em 3 demarço até 22 do dito mez de de
zembro, como consta das mesmas folhas e
documentos juntos ... 19:051$ 495

1772

JANEIRO . — Por dita de uma conta de vidros, e


redes d'arame, comprados para a dita obra ,
como consta das receitas . 4128761
DITO.— Por importancia de resto das grades de
ferro para o dito edificio, e se vê da conta , a
quantia de ... 2138750
FEVEREIRO.- Por dita da conta de custo e valor

da pedraria para a dita obra , que consta da


certidão e receita junta . 3 :4158477
DITO.- Por importancia de ferragens ou prega
ria comprada a diversos, para as ditas obras
a quantia de... 5538555

1773

JANEIRO . — Por importancia de folhas dos jornaes


e empreitadas de carpinteiros e algumas fer

23:8538369
374 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Transporte .... 23 :853 $ 369


ragens, e outras miu lezas para a minha obra
das semanas findas em 28 de março de 1771,
até á de 8 de janeiro de 1773, como consta
das ditas folhas e documentos juntos na refe
rida collecção .. 4 :8338311
DITO.- Por dita do valor e estimação em que
foram arbitradas as madeiras cortadas nos pi
nhaes da casa, sitas no logar da Amora , co
mo consta do extracto junto a mesma collec
ção, a quantia de ... 1: 9638600

1774

JANEIRO. — Por dita de custo de cal, comprada


para o dito edificio, consta da relação junta á
mesma collecção . 1 :402 $500
Por porção de terreno , que se adjudicou pela
arrematação feita pela inspecção do bairro
de Remolares, ao chão do morgado da casa ,
que n'esse sitio possuia , e no qual se edificou
a referida propriedade, como consta da con
ta junta á collecção. 1 :700 $ 000

Réis .. 33:752 $ 780

O contador da casa , Estevão Antonio de Montes .

N.° 7

Relação summaria da despesa com o edificio do Largo do Carmo,


extrahida da collecção da referida despesa .

AGOSTO.— Pela importancia das folhas dos jor


naes e materiaes pagos nas semanas de 5 ,
12, 19 e 26 ... 443$ 300

4438300
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 376

Transporte... 443$ 300


SETEMBRO.—Pela importancia das semanas de 2 ,
9 , 16 , 23 e 30 ..... 554 $ 700
OUTUBRO. — Pela importancia das semanas de 7 ,
14 , 21 e 28 ... 1 :194 $ 100
NOVEMBRO.-- Pela importancia das semanas de 5 ,
12, 19 , 25.... 5393385
DEZEMBRO . — Pela importancia das semanasde 3 ,
10, 17, 24 e 31 . 4958377

1976

JANEIRO.- Por importancia das semanas de 5 ,


12, 19, 26... 692$ 817
FEVEREIRO. — Por importancia das semanas de
4 , 11, 18 e 25 ..... 1 :832 $ 787
MARÇO.- Por importancia das semanas de 3, 10
17 , 24 e 31... 4 :345 $ 123
ABRIL . — Por importancia das semanas de 7 , 14 ,
21, 28 ... 2 :9248750
MAIO . — Por importancia das semanas de 5 , 12 ,
19, 26 .... 3:3478346
JUNHO. — Por importancia das semanas de 3, 10 ,
17, 24 e 30 ... 3 :420 $445
JULHO . — Por importancia das semanas de 6 , 14 ,
21 e 26 ... 2 :498 $ 910
AGOSTO.- Por importancia das semanas de 2 , 9,
-16 , 22 e 30.... 3:018 $646
OUTUBRO.- Por importancia das semanas de 6 ,
13, 20 e 27 .... 1 :8758731
NOVEMBRO. — Por importancia das semanas de 3 ,
10, 17 e 24 ... 1 :219 $ 763
DEZEMBRO . – Por importancia das semanas de 8 ,
15 , 22 e 29. 1 :539$ 980

JANEIRO. — Por importancia das semanas de 8 ,


15 , 22 e 29. 1 :539 $ 980

31:4838140
376 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

Transporte .. 31:4838140
FEVEREIRO. — Por importancia das semanas de 2 ,
9 , 16 , 23 e 29.. 2 :454 $ 137
Por importancia de vigamento e taboado de pi
nho de Flandres, comprado a diversos, e de
madeiras das terras dos pinhaes das Vendas
Novas , como consta da collecção junta á re
lação da despeza do dito edificio , que se não
incluem nas folhas .... 6 :799 $600
Por importancia de porção de terreno que se
adjudicou por arrematação feita pela inspec
ção do Bairro Alto ao chão do morgado da
casa , que n'esse sitio possuia . 7158850

Somma.. 41:452 $ 727

RESUMO GERAL DAS TRES PROPRIEDADES

Total do edificio da rua Direita da Sé Velha,


a quantia de... 55 : 1808944
Do da rua Direita de S. Paulo , a quantia de . 33:752 $ 780
Do do largo do Carmo... 41:452 $ 727

Somma. 130:386 $ 451

O contador, Montes.
N.° 8

Relação compendiosa das cinco obras que se fizeram no suburbio


de Alcantara, e nos lados da ponte e canal a ella adjacente

É notorio , que ao tempo do terremoto do 1.° de novem


bro de 1755 , possuia o morgado do supplicante n’aquelle su
burbio , além das casas e armazens, que ficou conservando ,
um grande moinho de seis pedras, com a sua ampla caldeira ,
de que hoje existe em Lavradio uma grande porção.
É notorio que o Senhor Rei D. José, que Deus chamou á
Gloria , com a causa do dito terramoto, ordenou primeiro , pou
cos dias depois d'elle ao tenente general Manuel da Maya, que
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 377

com o supplicante fossem delinear , como delinearam no domi


nante Campo de Ourique, o terreno destinado para o seu pala
cio, cuja magnifica planta deixou Carlos Mardel, perfeita, e
acabada . Segundo, que para livrar a communicação entre a
Côrte de Belem , e a cidade de Lisboa do perigo , e da indecen
cia que daria na passagem , que vae do mesmo suburbio , se
abrisse até ao mar o canal de communicação que d'ella se
devia com dois objectos tão uteis, como foram um , o introduzi
rem -se pelo canal com modicas despezas, todos os materiaes
necessarios para a edificação do referido palacio. Outro, o sair
do jardim d'elle, o mesmo senhor, e a mesma real familia , nos
seus escaleres para o mar, pelo dito canal, na conformidade
da planta .
E egualmente notorio, que não se podendo executar o re
ferido , sem que o dito moinho, e caldeira d'elle se destruissem ,
preferindo logo o supplicante ao seu particular interesse, o gosto
do dito senhor, e a causa publica , mandou immediatamente,
demolir o referido moinho , e cortar o canal pela caldeira d'elle ,
sem para isso esperar ordem alguma superior, e sem pedir, ou
receber algum equivalente que o indemnisasse.
N'estas circumstancias pois , é que se foram fabricando as
referidas obras na maneira seguinte :

PRIMEIRA OBRA

Pretendeu o habil e esperto negociante Duarte Lopes Ro


sa , estabelecer na cidade de Lisboa , uns fornos publicos, se
melhantes aos que ha em todas as cidades grandes da Europa,
os quaes ao mesmo tempo servissem de biscoitaria para os na
vios mercantes, com as tercenas necessarias para recolher os
trigos pertencentes á referida fabrica , achou commodidade pa
ra tudo isto no terreno que jaz no lado do nascente do dito
canal; ajustou-se com o administrador das rendas do suppli
cante, Feliciano Correia Lima, a fazer as ditas obras pela con
signação das rendas, que o mesmo supplicante tinha então
n'aquelle logar, e por ellas veiu a ser pago e satisfeito , como
se vê abaixo .

Por escriptura celebrada em Lisboa a 4 de agosto de 1769


na nota do tabellião que hoje serve Ignacio Correia de Sousa.
378 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

SEGUNDA OBRA

Arrematou o mesmo Duarte Lopes Rosa as manufacturas


de pão de munição , com grande rebate no preço d'elle , consi
derando sabiamente , que fazendo a fabrica em Alcantara, o
referido pão sem carreto algum , lhe bastaria ganhar n’elle a
importancia das grossas despezas por elle calculadas em vinte
mil cruzados, que os outros assentistas faziam em carretos,
desde o caes do Carvão até ao alto do Campo de Santa Clara ,
onde se achava estabelecida, depois de muitos annos a fabrica
de pão de munição .
N'estes termos, não lhe bastando já os armazens que tinha
tornou a ajustar com o mesmo Feliciano Correia Lima, a edi
ficação dos doze armazens, que jazem com seus altos e baixos,
e com as condições, que nem elle Marquez lhe poderia pedir
alugueres alguns até ao fim do anno de 1767,nem elle inqui
lino lhe poderia pedir bemfeitorias, depois que esperasse o re
ferido tempo. Contracto cujo ajustamento foi findo e acabado
com a viuva do mesmo Duarte Lopes Rosa .
TERCEIRA OBRA

A grande vexação da guerra que Castella declarou a Por


tugal no mez de março de 1762, quando este reino se achava
sem meios alguns para se defender , deu urgentissimo motivo
ás continuas e incessantes fadigas, com que se pretenderam
descobrir todos os meios e modos que melhor podiam servir
para se sustentar o exercito , que devia defender a liberdade
d'esta corða e reino .
Sendo tão essenciaes entre elles o do prompto provimento
e fornecimentos das munições de boca , e forragens das tropas ,
se achou pelas historias, anedoctas ou noticias manuscriptas, e
até pelas impressas e pelos mais exactos calculos militares, e
mercantis , que era impossivel que se podessem fazer pelos
contractos geraes dos emprezarios , chamados assentistas.
Porque se mostrou evidentemente, pelos factos das duas
guerras da acclamação do Senhor Rei D. João IV e da succes
são de Hespanha.
Primeiro, que os ditos assentistas geraes d'ella absorveram
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 379

em si uma importantissima parte da substancia do reino, já


gravando os almoxarifados da coroa com os quantiosos pa
drões de juros reaes, que hoje os opprimem , já fazendo -se
senhores das maiores, e mais nobres quintas, e rendosas fazen
das, das quaes umas passaram pelo fisco ás muitas casas prin
cipaes d'este reino, que hoje as possuem , outras conservavam
em ostentação a posteridade dos sobreditos adquerentes.
Segundo , que os dinheiros da coroa, que receberam sem
pre adiantados, vexaram as provincias, e reduziram a nobreza ,
e povos d'ellas, ás mais deploraveis miserias.
Terceiro, que ao mesmo tempo arruinaram irremediavel
mente com trigos, e cevadas podres a infanteria e cavallaria ,
pondo -as em estado de encherem os hospitaes de enfermos, e
de não poderem servir o exercito.
Quarto, que além d’isso, eram os contratos feitos com os
ditos assentistas geraes, enormissimamente lesivos á corða e
eram leoninos, por que se o pão, e forragens valiam baratos,
ganhavam sommas de dinheiro exorbitantes, e se valiam caros,
quebravam , faliam de credito , e deixavam impossibilitada a fo
me do exercito, a defeza do reino , e isto em razão de excederem
as penas de uns assentos geraes todas as faculdades de parti
culares, quaesquer que elles fossem .
Quinto , que havendo assentistas geraes, era indispensavel
mente necessario , que por elles, e seus feitores , se relaxassem ,
e fizessem publicos, os melindrosos segredos, com que sempre
se occultam , em quanto é possivel, os armazens de mantimen
tos, e forragens que se mandam estabelecer, e se fazem preve
nir dos transitos das marchas dos exercitos , e dos destacamen
tos d'elles.
Sexto , e finalmente, que com estes motivos, baviam extin
cto os soberanos da Europa , que melhor entenderam os seus
interesses, os ditos emprezarios, e tinham mandado prover as
suas tropas por commissarios da sua fazenda.
Depois de se haverem conferido , e calculado com o habi
lissimo conde reinante de Schomberg Lippe , todos os sobre
ditos motivos, mandou o Senhor Rei D. José expedir , o seu
real, e fundamental decreto do 1.° de junho do referido anno
de 1768 , no qual com os motivos que a sua regia providencia
380 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

julgou que bastava , fossem então declarados, encarregou a


mesa do seu real erario, da inspecção sobre as munições de
boca , e forragens da tropa, por conta da sua real fazenda.
E as administrações, correspondencias epistolares, e con
tas d'ellas, ás quatro contadorias do mesmo real erario, cujos
contadores geraes , com o thesoureiro -mór, e com o escrivão do
seu cargo , constituiram a junta, que ficou regendo aquelles pro
vimentos depois do anno de 1768 até agora.
E isto com uteis effeitos, de ser então fornecido abun
dante, e opportunamente, um exercito de 40:000 infantes, e
6 :000 cavallos, e de se não haver assentado depois d'aquella
guerra, nem ainda um pequeno padrão de dez mil réis de juro
em alguma das repartições da fazenda real.
Com todos os sobreditos motivos, tomou a si os fornos, e
armazens, que Duarte Lopes Rosa havia edificado no canal de
Alcantara , pelo mesmo preço, em que andavam de renda , ac
crescendo assim a fazenda real o grande lucro de poupar car

retos de tantos, e tão pesados generos, fazendo -os desembarcar


ás portas dos mesmos armazens.

QUARTA OBRA

Com todos os sobreditos motivos , tomou experiencia , de


que não bastavam os ditos armazens edificados por Duarte Lo
pes Rosa , para preencherem todos os uteis objectos acima indi
cados e sobre este claro conhecimento, representou assim á dit:
junta o administrador d'aquellas fabricas Thomaz Caetano Foi -
tier, expondo -lhe todos os motivos da necessidade das tropas ,
e dos interesses da fazenda real acima referidos, e mostrando
que elles faziam preciso o accrescentamento de mais dezoito
armazens, no lado do poente do mesmo canal, com seus bai
xos, e altos.
Recorreu a mesma junta ao dito senhor em 22 de feverei
ro de 1769 , fazendo- lhe presente aquella representação de seu
administrador, e por que ella dizia respeito ás Tercenas per.
tencentes ao supplicante, pedindo este ao mesmo senhor, que
o dispensasse de fazer figura em negocio que podia parecer do
seu interesse , commetteu Sua Magestade o conhecimento e ex
pedição d'elle ao secretario d'estado D. Luiz da Cunha , em de
MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL 381

creto de 10 de março do mesmo anno cujo theor é o se


guinte :
DECRETO

Lavre - se instrumento d'este contrato na conformidade da


proposta do administrador das fabricas de Alcantara, e da mi
nuta da escriptura, que baixa assignada pelo secretario d'esta
do D. Luiz da Cunha. = Nossa Senhora da Ajuda , em 10 de
março de 1769. = Com a rubrica de Sua Magestade.
Decreto , em cuja observancia se lavrou entre Feliciano Cor
reia Lima, procurador do supplicante, e a referida junta , a es
criptura do contracto , pelo qual se accrescentaram os sobredi
tos armazens com seus baixos e altos, e casas de administra
ção , contiguas com a ponte, com as quaes,debaixo da vista de
um só administrador, e de uma só chave, se regem todas aquel
las fabricas, e armazens a ella pertencentes.

QUINTA E ULTIMA OBRA

Veiu a mostrar ainda mais com a mesma experiencia que


as avarias dos caminhos, e as avultadas despezas que se fa
ziam com a multiplicação de feitores de palhas, em alugueres
de armazens, pela terra dentro para as recolher , com palheiros
de campo, dos quaes se perdia a maior parte com carretos de
entradas, e saidas, pelo inverno, fazia necessaria a edificação
de um palheiro á borda d'agua, que podesse conter em si, pelo
menos 20 :000 panos de palha , para d'elle serem soccorridos
os quarteis da corte , e os demais de fóra d'ella .
Assim o representou o dito administrador Thomaz Caetano
Fortier, apontando o lado do nascente do canal, que se acha
va livre para o referido edificio , com a minuta do contrato, que
a respeito d'elle se podia celebrar.
Poz a mesma junta na real presença do dito senhor todo
o referido, tornando Sua Magestade a commetter com as justas
razões acima declaradas, o conhecimento , e explicação d’este
negocio ao mesmo secretario d'estado , D.Luiz da Cunha , man
dou baixar pelo seu expediente á mesma junta, com todos os
referidos papeis, por elle assignados no 1.° de junho do sobre
dito anno , o outro decreto , cujo theor é o seguinte.
382 MEMORIAS DO MARQUEZ DE POMBAL

DECRETO

Lavre - se o instrumento d'este contrato , na conformidade


da proposta do administrador das fabricas de Alcantara , e da
minuta da escriptura que baixa assignada por D. Luiz da Cu
nha, ministro e secretario d'estado. = Nossa Senhora da Ajuda,
no 1.° de junho de 1774.= Com a rubrica deSua Magestade.
Decreto , em cuja execução se lavrou a escriptura do con
trato, entre a mesma junta , e o dito procurador Feliciano Cor
reia Lima, e se edificaram ultimamente os palheiros agora exis
tentes. = Pombal, 29 de março de 1779.

FIM
INDICE

PAGI
CARTA AO EX.no sR . ROBERTO PEEL VI

PROLOGO . IX

CAPITULO 1 - Primeira grandesa de Portugal; constituição livre ; queda da


liberdade ; empresa maritima e commercial; descobrimento da ilha da
Madeira , dos Açores e Cabo Verde; Vasco da Gama, sua viagem dobran
do o Cabo da Boa Esperança ; embaixada ao Preste João ; Magalhães ;
descoberta das minas d'ouro ; D. João II; introducção dos jesuitas em
Portugal; estabelecimento da Inquisição ; rapida decadencia da primeira
prosperidade; D. Sebastião ; usurpação de Philippe II ; cruel proscripção ;
Malaca , Ceylão, e outras possessões tomadas pelos hollandezes ; expulsão
dos hespanħoes; D. João IÙ ; reunem -se as cortes ; D. João V ; sua fraquesa
e fanatismo ; estabelecimento do Patriarchado ; é concedido aos reis de
Portugal o titulo de «Fidelissimo» ; fundam -se immensos edificios ; Mafra ;
licenciosidade de D. João V ; excessos do clero e da nobresa ; construcção
do celebre Aqueducto ; morte de D. João V ; estado lastimoso de Portu
gal ..... 1
CAPITULO II Accessão de D. José ao throno ; reflexões sobre o nascimento
de Pombal ; seus primeiros passos ; alista -se no exercito ; seu casainento ;
sua nomeação de ministro na córte de Inglaterra ; sua feliz diplomacia ;
obtem uma satisfação por lhe prenderem o seumedico ; sua saída de Lon
dres ; desintelligencias entre a curia de Roma e a côte de Vienna; Bene
dicto XIV procura a mediação de Portugal ; Maria Theresa escolhe para
arbitro Pombal ; missão d'este em Vienna ; morte de suamulher ; casa com
a sobrinha do general Daun ; carta autographa de Maria Theresa ; aspecto
physico de Pombal; opinião de mr. Blondel ácerca de Pombal ; este sáe
de Vienna e chegando a Lisboa é nomeado secretario de estado dos nego
15

cios estrangeiros; caracter de D. José....


CAPITULO I Reflexões geracs ; Pedro da Motta ; os jesuitas ; o commer
cio é animado ; estado do sul; as ruas de Lisboa , de Londres e de Vien
VOLUMET 26
384 INDICE
PAG .
na ; as rendas publicas ; as colonias; estabelecem -se companhias mercan
tis ; os indios são declarados livres na America; Pombal cria inimigos ;
consegue conservar a confiança do rei.... 27

CAPITULO IV - Extracto dos escriptos de Pombal ; observações geraes sobre


o estado de Portugal; o calamitoso terremoto de Lisboa do 1.° de novem
bro de 1755; miseria geral; perda de muitas vidas e bens; a Familia Real
salva -se ; magnanimidade de Pombal ; seu memoravel apophtegma ; medi
das para alliviar a miseria ; proclaina-se a lei de guerra , restabelece -se a
ordem ; extractos dos officios que existem na secretaria do estado; os cor
sarios argelinos ; intrigas dos jesuitas ; Lisboa é reedificada por Pombal . 37
CAPITULO V -Effeitos fataes em Portugal das minas de ouro ; tra'ado de
commercio com Inglaterra ; importancia da alliança ingleza ; juizos de
Pombal sobre a economia politica ; o erario regio em 1754 ; extractos dos
officios da secretaria de estado intercalados no capitulo ... 49

CAPITULO VI — Formação da Companhia dos Vinhos do Alto Douro ; as gran


des vantagens que conferiu á agricultura e commercio ; é virtualmente
abolida pelo governo constitucional; tumultos no Porto em 1756 secreta
mente instigados pelos jesuitas; apologia de Pombal sobre a fundação e
progressos da Companhia ; extractos dos officios da secretaria do estado
intercalados no capitulo..... 63
CAPITULO VII Estabelecimento dos jesuitas em Portugal; Simão Rodrigues ;
sua elevação ; os jesuitas tratam de senhorearem -se da direcção da univer
sidade; os seus projectos e obras; contraste entre os papas Pio V e Gre
gorio XIII ; Gaspar de Saul; os jesuitas dirigem um vasto commercio na
America meridional ; troca de territorio entre Portugal e Hespanha ; op
posição dos jesuitas ; desastres dos alliados ; medidas decisivas de Pom
bal; demissão do confessor do rei; queixas ao pontifice contra os jesuitas ;
o cardeal Saldanha é nomeado reformador da companhia de Jesus ; pri
meiras prohibições impostas aos jesuitas; são suspensos de confessar e
prégar ; extractos dos officios da secretaria de estado intercalados no ca
pitulo .. 76

CAPITULO VIII Observações sobre a perigosa posição dos principes; honra


devida ao caracter de D. José ; a conspiração do duque de Aveiro ; cum
plices principaes ; attentado de regicidio ; segredo rigoroso em descobrir
os criminosos ; prisão dos conspiradores ; seu processo e sentença ; execu
ção ; severidade justificada ; sorte do resto dos conspiradores ; anedocta
do conde de S. Lourenço ; Malagrida; erige -se uma igreja em memoria
do livramento milagroso do rei; extractos dos officios da secretaria do
estado intercalados no capitulo .. 86

CAPITULO IX - Prisão de oito jesuitas ; Malagrida ; os bens da companhia de


Jesus são sequestrados; é determinada a sua expulsão de Portugal ; me
morial dirigido a Clemente XIII ; questão entre a curia de Roma e a côte
de Lisboa ; Sua Magestade publica uma deducção em que relata minucio
samente os motivos de queixa que tinha contra a curia romana. 102
CAPITULO X - Deducção que o governo portuguez manda apresentar ao pa
pa ; este nega audiencia ao ministro portuguez ; Almada entrega a De
ducção ao cardeal Orsini ; queixas contra o cardeal Acciajuoli; sua expul
são de Lisboa ; rompimento entre a curia de Roma e Portugal; conse
quencia das pretenções do papado sobre o governo temporal de outros
paizes ; o cardeal Torregiani ; conceito em que o nuncio mostra ter D. José
INDICE 385
PAG .
e Pombal ; extraclos dos officios da secretaria do estado intercalados no
capitulo . 107
CAPITULO XI - Regulações para Lisboa ser reedificada ; abolição da mesa dos
homens de negocio ; estabelece-se nova mesa ; os seus fins ; é concedido á
nobresa entrar na companhia do Maranhão e Pará ; varios decretos ; civili
sação dos indios ; meios excellentes que Pombalemprega ; creação da aula
do commercio ; funda-se a companhia de Pernambuco e Paraiba ; meios
de ensino ; estes mesmos adoptados em Vienna ; os jesuitas começam a
perder a sua influencia n'aquella capital; lord Kinnoui é enviado a Lisboa
para dar satisfação da conducta do almirante Boscawen ; alguns conven
tos extinctos e outros reformados ; extractos dos officios da secretaria do
estado intercalados no capitulo ... 136

CAPITULO XII – Estado do exercito quando D. José subiu ao throno ; victo


rias ganhas outr'ora pelos portuguezes ; as mesmas ganhas na guerra pe.
ninsular ; causa da dissensão entre Portugal e Hespanha; continuação da
mesma; projecta - se o pacto de familia ; os seus fins ; exigencias de Fran
ça e de Hespanha; resposta ; os hespanhoes invadem Portugal e fazem uma
proclamação ; indignação geral que esta causou ; Portugal declara guerra
å França e á Hespanha; memoraveis sentimentos de D. José por esta oc .
casião ; estado indefeso de Portugal ; Inglaterra manda auxilio de tropa e
de munições ; o conde de Lippe chega a Portugal e toma o commando
das forças alliadas; os hespanhoes são obrigados a evacuar os territorios
portuguezes ; conclue-se a paz em Fontainebleau ; o artigo 21.0; valiosos
serviços prestados por de Lippe; Pornbal cria uma esquadra ; partida do
conde de Lippe ; conselho que dá aos officiaes ; extractos dos officios da
secretaria do estado intercalados no capitulo.... 149

CAPITULO XIII — Medidas fiscaes ; são supprimidos vinte e dois mil collecto
res de impostos ; o imposto militar é substituido pelo da decima; admi
ravel reducção na despesa da arrecadação da receita publica ; estado das
finanças na França anteriormente á administração de Sully ; modo de
Pombal conservar uma relação do dinheiro publico ; reformas na Ucharia ;
receita e população n’esta epocha ; Henrique IV e D. José : Sully e Pom
bal ; anedoctas de Pombal . 163

CAPITULO XIV - jesuita Malagrida; sentença da inquisição ; é entregue á


justiça secular ; sentença que lhe dão ; justiça e execução da pena que lhe
é applicada ; obras escriptas por Malagrida, extractos d'ellas ; nascimento
do ultimo Anti-Christo ; prejuizos em favor de Malagrida ; extractos dos
officios existentes na secretaria do estado intercalados no capitulo ...... 168
CAPITULO XV – Industria e capitaes portuguezes transplantados para o Brazil;
circumstancias, que concorreram para a declaração da independencia do
Brazil: estado presente da agricultura em Portugal ; os seus verdadeiros
recursos : a cultura do trigo animada por Pombal ; decreto para este fim ;
terras tornadas proveitosas. É nomeado um inspector para informar so
bre o estado da agricultura na provincia do Alemtejo : tractado de Me.
thuwen ; Portugal esgotado do seu ouro : quantidades immensas importa
das desde 1696 até 1726 ; os gallegos: medidas para impedir a exporta
ção do ouro . 175

CAPITULO XVI — Queixas dos negociantes estrangeiros residentes em Lisboa ;


systema judicioso de Pombal ; extractos dosdespachos de mr. Hay ; Pom
bal estima a alliança ingleza ; recusa reconhecer as pretenções dos nego
ciantes inglezes ; mr. Lyttleton é enviado a Lisboa para apresental-as ;
386 INDICE
PAG
natureza dos aggravos, a que Pombal responde ; seu mau éstado de sau -
de por este tempo ; modo de dirigir os negocios do governo ; libellos es
criptos contra Pombal ; mr. Robert Walpole substitue mr: Littleton .... 18
CAPITULO XVII — Dissenção com a côte de Roma ; vas pretenções da dita
Côrte ; tentativas maliciosas dos jesuitas ; são-lhes confiscados seus bens
em Portugal ; desintelligencia entre Portugal e Hespanha ; insulto feito a
D. José pela Curia Romana ; independencia de D. José ; descoberta devi
da ao acaso das doutrinas e praticas dos jesuitas ; a bulla Apostolicum
Pascenti Munus; má politica do Papa ; os jesuitas são olhados em Vien
na com desfavor ; é declarado um sophisma - infallibilidade do Papa ;
a celebre these do padre Pereira ; propostas para uma reconciliação ; pro
cedimento do arcebispo de Evora ; a bulla in Cæna Domini é supprimi
da ; morte de Clemente XIII; succede-lhe Ganganelli; resolve-se uma re
conciliação ; a ordem de Jeslis é finalmente abolida ; regosijos ; chega o
nuncio à Lisboa ; o papa elogia Pombal, e manda-lhe presentes ; extra
ctos ..
dos officios existentes na secretaria do estado intercalados no capi
tulo ... 193

CAPITULO XVIII — Estabelecimento do Collegio dos Nobres. Methodo que


deve observar- se no estudo das linguas vivas ; prohibição de fallar latim ;
animam -se as invenções; lei curiosa relativa ás viuvas; são declarados li .
vres os escravos que chegarem a Portugal; leis sumptuarias ; regulações e
reformas militares; introducção de manufacturas; decretos favorecendo o
commercio ; estado florescente da marinha; projecta -se uma conspiração ;
são punidas muitas pessoas; regulações relativas ao negocio de retalho;
estabelecimento da Real Mesa Censoria; impressão regia ; leis para restrin
gir os legados ás igrejas; tribunaes reformados; doença grave de Poinbal;
inverno rigoroso e extraordinaria tempestade de granito em Gibraltar ;
abre-se o Collegio dos Nobres; prisão do conde d'Ega ; os puritanos; ane .
docta do duque de Lafões; auto de fé; politica de Pombal; são restituidos
os bens possuidos illegalmente; occorrencias na familia de Pombal; obser
vações sobre a educação feitas por Pombal 208

CAPITULO XIX - Influencia da superstição; nova seita dirigida pelo bispo de


Coimbra ; suas opiniões; piedade de Pombal; livros prohibidos pelo bispo;
é deposto de sua Sé, é lançado n’uma prisão; representação do Tartufo,
em Lisboa ; Seabra; éstado do ministerio em 1772; resultados dasmedidas
de Pombal; despacho de mr. Walpole; morte de Clemente XIV ; opiniões
ousadas, e livres de Pombal; concessão unica na historia da igreja feita
por Clemente XIV ; eleição do novo papa; appendice; extracto de um
despacho 225

CAPITULO XX -- Educação; notavel prophecia de Pombal; é nomeado refor


mador da universidade de Coimbra na qualidade de logar-tenente de El.
Rei; reformas, criam - se as faculdades de mathematica e de historia natu
ral; corrigem - se abusos; estabelecimento de museus; estabelecem -se oi
tenta cadeiras;-reputação que os novos estatutos ganham na Europa; carta
de Pombal ao reitor da universidade; sua despedida e falla por esta occa
sião; criam -se oitocentos e oitenta e sete professores secundarios e pri
marios em várias partes dos dominios portuguezes ; fim util d'estasmedi
das; infortunio de fosé de Seabra ; opinião sobre o acontecido . 236
CAPITULO XXI · Erecção da estatua equestre de D. José, seu tamanho co .
lossal; conclue-se no dia do anniversario natalicio do rei; festejos publi
cos: distintções dadas a Pombal; attentado de assassinio , machina infer
pal: descobre -se o assassino e é inorto: acções de graças geraes pelo li
INDICE 387
de ses PAG .
Dellos& vramento de Pombal; observações escriptas por Pombal por occasião da
eton .... inauguração da estatua equestre ..... 247

CAPITULO XXII Continuam as disputas entreHespanha e Portugal. Os hes


eus bei panhoes conservam ainda o Rio Grande; opiniões politicas de Pombal; a '
> feito Inglaterra offerece sua mediação; disturbios em Madrid ; por causa d'estes
ta det cessam as hostilidades entre Hespanha e Portugal; renovam - se estas êm
stolicy 1774 : os hespanhoes atacam os portuguezes e são derrotados ; tropas en :
viadas de Portugal para á America do Sul; confiança de Pombal nos re
Papa cursos do paiz ; carta de Pombal a mr. Walpole; a Inglaterra offerece sua
intervenção ; Pombal insiste em que seja executado o tratado de 1763. E
primi queixa -se de que o governo inglez está enganado pelas declarações demr.
na 16 Grimaldi; a Inglaterra não mostra desejos de fazer guerra á Hespanha .
legal Sentimentos de Pombal; propõe um congresso em Paris ; é elogiado por
extra Jord Weymouth e mr. Walpole ; continuam as hostilidades na America do
capi Sul; è concluida finalmente a paz; appendice; extracto de um despacho
..... existente na Secretaria dos Negocios estrangeiros .... 261

- que CAPITULO XXIII - Breve Pontificio para a suppressão de nove conventos ;


etin ; suas rendas são transferidas para o convento de Mafra ; varios editos; casa
osli. de Pombal em Oeiras; canal em Oeiras; Real Companhia de Pescarias; Villa
Diese Real de Santo Antonio ; decreto a favor dos christãos novos ; observação
100 de um embaixador inglez ; Manuel Fernandes de Villa Real; conto popu
1o; lar; varios decretos; estabelecimento de um novo hospital; inquerito ácer
ho; ca das prisões particulares dos conventos; morte de D. Luiz da Cunha ;
decretos; estado do commercio em 1774 e 1775 ; extensa plantação de amo.
reiras; fabrico das sedas; as manufacturas são protegidas; tratado com
Marrocos ; morte do cardeal Saldanha ; Doença de D. José ; casamento do
principe da Beira com sua tia; inorte do Rei; appendice; extracto de des
pachos da Secretaria dos negocios estrangeiros ... 273

E18 CAPITULO XXIV Acontecimentos posteriores á morte de D. José ; Pombal


requer sua exoneração ; seus haveres; estado florescente do erario regio;
renova sua petição ; carta á Rainha; decreto real; recompensas concedi
das a Pombal, quando foi exonerado; ultimas vontades de D. José; des
pachos de mr. Walpole; occorrencias extraordinarias; caracter da Rainha ;
o rei; mudançasministeriaes; Pombal retira -se da capital; malicia de seus
inimigos; arrancam sua effigie do pedestal da estatua equestre; curiosas
circumstancias, que aguardavam sua recollocação ; são soltos das prisões
e recompensados muitos fidalgos : effectuam -se grandesmudanças; decre
tos a favor do conde de S. Lourenço e de outros ; extracto de alguns des
pachos 282
CAPITULO XXV - - Pombal depois de retirar -se dos negocios publicos, como
Wraxall o descreve em 1772; suas occupações; reflexões sobre 17 cartas
publicadas em Londres em 1777 ... 303

CAPITULO XXVI — Incessantes ataques contra Pombal; motivos que teve para
escrever uma apologia de seus actos; publica uma Contrariedade queman
dou queimar ; nomeam -se juizes para o interrogarem sobre a sua condu
cta ; carta de Pombal a seu filho; grande interesse sobre o resultado de
seu interrogatorio ; é pronunciado injusto e nullo o decreto de 12 de ja.
neiro de 1759 : são declarados innocentes os conspiradores contra a vida
de D. José; decreto contra Pombal; reflexões sobre sua injustiça .... 321
CAPITULO XXVII – Conclusão ; plano do author ; reflexões sobre D. José e
Pombal; estado do paiz depois da morte d'este ; seu desinteresse confron
388 INDICE
PAG .
tado com o de Sully ; Pombal apresenta á rainha uma relação dos seus
bens, rendimentos da casa; morte de Pombal; suas exequias; epitaphio
que lhe pozeram no tumulo ; é mandado apagar pelo governo; epilogo :
supplica á rainha apresentando-lhe uma relação minuciosa dos seus bens,
esiado d'elles e como os adquirira ... 331

Supplica dirigida á Rainha nossa senhora D. Maria I, por Sebastião José


de Carvalho e Mello, marquez de Pombal, na qual expõe e demonstra ca
balmente como foram adquiridos honradamente, e sem prejuizo algum da
real fazenda, nem dos particulares, os avultados bens de que formou a
sua casa . 339
G.

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