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Tradução
Mary Cardoso
Título original norte-americano:
THE FINAL CONCLAVE
Este livro foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos por
Stein and Day/Publishers
Tradução
Mary Cardoso
Capa
desenho de Carlos Reluz
Revisão de provas
Jorge Maurflio Pinto
Impresso no Brasil
Pois sâfo tímidas as deliberações dos mortais,
e inseguros nossos planos.
... quem conheceu jamais o teu conselho, salvo que
tivesses dado Sabedoria e mandado, do alto, teu espírito santo?
E assim se fizeram retos o£ caminhos daqueles sobre a terra
Sabedoria 9: 14, 17 e 18
Nota do Autor
O COMEÇO ............................................................................................. 11
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refletido. O vento desarruma os cabelos e as roupas. As águas do Jordão mur
muram por trás das vozes do pequeno bando de homens que caminha subindo
o Hermon.
Jesus, como sempre conduzindo o grupo, atira por cima do ombro uma
pergunta aparentemente inocente, tal como faz, às vezes, a propósito dos fala
tórios do lugar:
— Quem é que vós dizeis que eu sou?
O impetuoso Simão deixa escapar o primeiro sentimento que o domina:
— Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo.
Jesus pára bruscamente. A gente imagina seus olhos firmemente presos ao
olhar de Simão.
— Tu és abençoado, Simão! Não foi um simples ser humano quem te dis
se isso. Foi meu pai que está no Céu quem te revelou isso. Agora te digo, so
lenemente, atta kefa: Tu és pedra! E sobre ti, como sobre uma rocha, cons
truirei de tal modo a minha Igreja que toda a força de Satã não poderá des
truí-la. A ti darei as Chaves do Reino do Céu. Seja o que for que proíbas na
Terra, será aquilo que o Céu proíbe. Seja o que for que permitas na Terra, se
rá aquilo que o Céu permite.
Estas são as palavras que revelam o curso infinito do poder de Deus entre
os seres humanos, e a batalha sem fim contra ele travada por “toda a força de
Satã” . Jesus tranqüiliza Pedro e todos que a ele pertencem —hão de usufruir,
finalmente, um Triunfo e uma Bênção especiais. O Triunfo será o triunfo de
Jesus e o de sua Igreja, sobre Satã. A Bênção será a universalidade: todos os
homens e mulheres aceitarão a salvação de Jesus e acreditarão nele. Mas nem
o Triunfo, nem a Bênção, será conquistado por Jesus sozinho. Ele se vincula
a Pedro, à sua Igreja, a todos os sucessores de Pedro e a todos os homens e
mulheres.
João, Jaime, Judas e os demais imediatamente reagem ao simbolismo
de Jesus, voltando os olhos para a rocha do Hermon, depois olhando para o
rosto de Jesus. Eles o conhecem muito bem! Está dizendo e fazendo alguma
coisa significativa. Mas não o compreendem. “Aquilo estava escondido de
nós” , escreveria Marcos, anos depois do fato acontecido, “e tivemos medo
de lhe fazer perguntas sobre aquilo tudo”.
Dentre todas as escolhas que Jesus poderia ter feito para o primeiro che
fe de sua Igreja, Simão teria que ser a menos indicada. Em sua traição de Je*
sus em perjúrio público, Simão só ficaria abaixo de Judas Iscariotes, que, na
realidade, iria vender Jesus a seus inimigos por dinheiro. Ao primeiro sinal
de dificuldade, aquela “rocha” correria para proteger-se, como um coelho
assustado. Contudo, anos mais tarde, ele seria martirizado e não fraquejaria
em seu amor oii em sua devoção.
Mesmo naquele dia, perto do Hermon, Jesus sabe aquilo de que Simão é
capaz, tão claramente quanto percebe o zombeteiro desprezo do Príncipe por
aquela “rocha” humana. Pois é no contexto de sua memória sem paralelo que
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Jesus fala com Simão como chefe da Igreja, sobre a Igreja, sobre a ameaça de
Satã, interminável, incansável. E é no contexto dessa memória de Jesus, que
tudo abrange, que aquilo que ele diz a Simão diz também ao Papa Paulo VI,
assim como a todo Papa que vier depois dele.
Aqui, a verdadeira chave da compreensão é a memória de Jesus e esta não
é memória no sentido insignificante em que a compreendemos:
“Dizes que tua sabedoria e tua força te dão direito a uma posição exalta
da? Pois muito bem. Tua humilhação será completa. Vou te vencer e des
truir finalmente e para sempre, precisamente através do que é o mais fra
co, do que é quase imbecil, do que é desprezível a teus olhos.”
Em outra noite, uns trinta anos mais tarde, em Roma, Simão Pedro, finalmen
te, vê tudo como tudo foi visto por Jesus desde o começo! Mesmo então, Si
mão vê as coisas de um ângulo confuso. Ele e mais um outros dois mil cristãos
tinham sido amarrados a cruzes de cabeça para baixo, numa barranca coberta
de grama que circundava os Jardins Imperiais no Monte Vaticano. Tinham si
do untados com pez. Esta noite, irão ser tochas vivas, ululantes, agonizantes.
O Imperador Nero, sua encantadora concubina Popéia e os convidados de
ambos terão luzes sob as quais comerão e verão coisas sobre as quais farão pi
lhérias. Cada cristão morrerá fazendo o sinal clássico de Satã —a cruz inverti
da.
Embaixo do Monte Vaticano, do outro lado do Rio Tibre, um escravo
chamado Lino está de pé, calado, observando. Um dia Simão Pedro batizou-o.
E então, naquela manhã, quando vieram buscar Simão Pedro para morrer nos
Jardins, este chamou Lino e nomeou-o seu sucessor.
— Tu és a rocha agora, Lino. —Simão Pedro disse isso a Lino na presença
de todos os chefes cristãos. ~ Tu és Pedro... Conduze-os, como eu os conduzi.
Em nome de Jesus. Minha morte não tem importância. Breve o Senhor virá.
De onde está agora, Uno pode ver escravos correndo entre as cruzes,
ateando fogo aos corpos com rápidos golpes com as tochas ardentes em cada
uma das cabeças.
Sem que Lino possa ouvir, Simão Pedro continua murmurando as últimas
palavras que tinha dito a Jesus: “Senhor, eu te amo. Sabes que eu te amo. Eu
te amo.” Em meio ao cheiro, à fumaça e à gargalhada romana. “Sabes que te
amo, Senhor.” Simão Pedro espera sua vez.
E aí, naquele enevoado, Simão Pedro pôde perceber o vulto grande de
um centurião de pé diante dele, as pernas bem separadas, o manto vermelho
pendente para o lado esquerdo. À luz das chamas, Simão Pedro tem a visão
do brilho da espada curta, segura na mão direita, imóvel, mas pronta para o
golpe.
- Pela graça de Afranio Burro, judeu, ~ murmura o Centurião discreta
mente, respeitosamente, enquanto contrai o corpo para golpear. Simão Pedro
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nâo vai arder. Burro, um cristão convertido e com influência nos altos círcu
los, conseguiu como último favor a Simão Pedro que ele morra pela espada.
Em meio a todo o horror, fogo e fumaça, gritos dos que morriam, a músi
ca, as risadas dos convivas, há para Simão um instante de luz. Tudo está claro.
O sorriso frio daquela lâmina. A contração dos dedos do Centurião em volta
do cabo. Os músculos que se enrijeciam no pulso e no braço. 0 apoio daque
las duas pernas. O lado direito do corpo recuando na medida certa. A consci
ência de Simão Pedro inunda-se de lembranças. Perdoa-os... Abençoa-os... Re
za por eles... Ama-os... Faze-lhes o bem... O que quer que permitas nesta Ter
ra, será o que o Céu permite... O que quer que proíbas na Terra, será o que o
Céu proibe... Tu és Pedro... Ele vê, mais uma vez, a face de seu adorado Jesus,
como acontece com todos os Papas, na hora da morte, e agora, pela primeira
vez, penetra na memória de Jesus, onde tudo é conseguido —o pleno Triunfo
de Jesus, a Bênção plena de Jesus —tudo num lampejo, enquanto a lâmina fu
ra entre suas costelas e vara pulmão e coração a dentro. Todos os homens e
mulheres. Nem judeus. Nem gentios. Tudo uma coisa só. Não só a Palestina.
Não Roma apenas. Mas todas as terras. A terra. Os céus. O começo. O fim. O
pecado. O Príncipe do mundo rindo com sarcasmo. Jesus no Calvário. Jesus
na glória...
Quando a espada sai, traz sangue após si como se fosse uma fita vermelha
ondulando, Um corte impecável, feito por um especialista. O Centurião vê
uma devastadora máscara de agonia e terror cair por um momento, como uma
garra opressiva, sobre o rosto de Simão Pedro, unindo num todo só cada um
de seus traços, num nó de sofrimento. Um momento em que o corpo se toma
rígido, duro, reto, tão teso quanto a estaca que o sustenta, vibrando por den
tro, dos pés à cabeça, num último esforço interior. Depois desmorona, contor
cendo-se, os olhos revirando, o rosto relaxando, naquela resignação inexpressi
va, naquele abandono que só a morte confere, sangue e muco escorrendo da
boca, no gemido abafado de um último suspiro, urina e excremento caindo no
chão.
Na semana seguinte, o corpo de Simão Pedro é recobrado por Lino e pelos ou
tros cristãos. Na escuridão da noite, cavam apressadamente sua sepultura,
num ponto para a extremidade norte do Monte Vaticano. Entre os cristãos, o
ponto sobre a sepultura de Pedro ficará sendo conhecido como a “memória”
de Pedro.
A notícia espalha-se através das linhas clandestinas de comunicação entre
os cristãos, até as pequenas comunidades cristãs em Milão, em Marselha, nas
cidades gregas, na Síria, Palestina e África: “Pedro está morto. Lino é sua es
colha.”
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Hoje, nessa mesma parte norte do Monte Vaticano, a “memória” de Pedro es
tá agora na cripta central de uma enorme Basílica, a de São Pedro, construída
em torno do lugar em que Pedro morreu, durante o banquete de Nero. Ao la
do da Basílica, há um complicado edifício de mil aposentos, o Palácio Apos
tólico.
No quarto pavimento de uma ala desse Palácio, a uns trezentos e cinqüen
ta metros da “memória” de Pedro, ocorre a morte do Papa Paulo. As horas e
os dias do declínio de Paulo são zelosamente vigiados pela poderosa burocra
cia do Vaticano, e acompanhados pelo rádio e pela televisão por centenas de
milhões de pessoas, em todas as partes da Terra.
Paulo encontra algum conforto. Como todos os Papas, ele fez suas adap
tações na mensagem de Jesus e agora, com a morte se avizinhando, a visão de
Jesus é também o seu lote. A entrada de Paulo na memória de Jesus, seu mo
mento de absoluta, infinita claridade.
Até onde alcança a memória de Jesus, é o mesmo, tanto a morte de Si-
mão e a designação de Lino, quanto a morte de Paulo VI e a designação do
sucessor de Paulo. Apenas para nós, tal como foi um dia para Simão Pedro, os
detalhes são perturbadores.
A uns quinhentos metros da “memória” de Simão Pedro, o sucessor do
moribundo Paulo VI e de Simão Pedro será designado pelos votos dados nu
ma reunião especial chamada Conclave. Cerca de cento e vinte Cardeais da
Igreja Católica Romana, cada um com mais de cinqüenta e menos de oitenta
anos de idade, irão encontrar-se no Monte Vaticano, no Salão de Reuniões
denominado “Nervi” . Não na Sistina, cujas paredes englobam séculos de his
tória romana, cujos afrescos, em silenciosos matizes, falam do gênio de anta
nho e de etema fé. Não na Sistina. No Nervi, cujo cimento fluiu para os mol
des há menos de quinze anos, cujas quatro paredes são nuas, o teto ondulado
e o chão inclinado abrindo-se como um estômago pronto a receber milhares
como se não passassem de uns poucos. Nada de afrescos. Nada de telas pinta
das a óleo falando de Deus, do Céu, de Cristo, da eternidade. Apenas, embu
tidas numa parede, as cabinas sem olhos para as equipes de TV e de rádio. O
Nervi. Logo do lado de fora da colunata que cerca a Praça de São Pedro. Flan
queia —mas não toca —a majestosa muralha de mil e quatrocentos anos que
circunda a Cidade do Vaticano. Não toca na Basílica de São Pedro. Ou no Pa
lácio Apostólico.
O Nervi. Assim decretou Paulo VI, antes de sua morte. A brusca ruptura
com a tradição da Sistina não é uma artimanha do acaso, um ardil do tempo,
fora de sintonia. A entrada desses Cardeais-Eleitores nesse salão, sem raízes
nem paralelo no passado, toma visível o rompimento com a história, que esses
Cardeais e todo o povo do mundo estão vivendo e do qual não podem fugir.
***
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Quando, mais tarde, algum historiador vier a escrever um registro desse
Conclave, o mesmo por certo se intitulará O Livro da Aposta. Mas, a menos
que seja cristão, talvez não compreenda que o que esses homens fizeram foi
feito apesar do poder temporal que eles detinham e de suas ambições pessoais,
por causa de sua confiança na promessa de Jesus, de que “toda a força de Satã
não destruirá a minha Igreja”, e porque ouviram Jesus dizer “Tu és Pedro” .
Bm termos de sabedoria temporal e de uma política pragmática, apostaram no
impossível. Em termos de sua fé, nada além disso poderiam fazer.
Quando o próximo Papa for eleito aqui no Nervi, saberá que vai reger
uma Igreja que um dia foi una e monolítica, mas que agora está partida de al
to a baixo e para os lados, num ziguezague, em relação a tópicos fundamen
tais, em matéria de crença, de prática religiosa e de moral individual. A Igreja
que vai chefiar já se encontra, ela própria, num mundo totalmente diferente
daquele que seus predecessores conheceram.
Quando o próximo Papa for eleito aqui, já deverá saber que não pode
mais esperar viver permanentemente em Roma. Ele, e cada um dos seus su
cessores, sempre afirmarão serem o Bispo de Roma, o sucessor de Pedro, o
Vigário de Jesus, seu representante pessoal entre os humanos. Mas seu papel
assumirá o aspecto de uma viagem, de uma peregrinação. Em parte livremente
escolhida; em parte lhe será imposta.
A ruptura com o longo passado já é completa. E ele saberá disso.
Habitará em lugares jamais vistos por outro Papa. Tomará providências
que nenhum antecessor jamais levou em consideração. Terá que decidir assun
tos e problemas críticos que nenhum Papa antes dele nem mesmo jamais so
nhou. Porque, de nenhuma outra forma, será ele capaz de ser Papa. E acabará
por compreender sua missão papal de um modo tão diferente da compreensão
dos Papas do passado, e tão desconcertante, aos olhos dos crentes, que muitos
deixarão de crer. Em sua peregrinação, os mais fracos nunca partirão com ele.
Os mais fracos jamais o conseguirão. Só os fortes o acompanharão até o fim.
Posto o problema em termos simples, reconhece-se agora que a Igreja Ro
mana, seu Vaticano e sua hierarquia espalhada pelo mundo inteiro, acumula
ram uma bagagem política, diplomática e financeira de que precisam se des
fazer: seus investimentos financeiros, que chegam a alguns bilhões de dólares;
sua riqueza em imóveis e valores concretos, representando garantias que atin
gem valores muito além de centenas de bilhões; sua posição pertinaz e eficien
te no mundo da diplomacia, da política estabelecida e do poder industrial; e
finalmente —o mais doloroso de tudo —seu conceito funcional de “Igreja”,
governo e autoridade e poder da Igreja na salvação de todos os seres humanos.
Só muito poucas vezes, na história de duzentos e sessenta e três Papas,
surgiu um momento igual; talvez nunca uma escolha tão audaciosa tenha esta
do iminente. Esses poucos Papas romanos que poderiam ter dado salto seme
lhante recusaram essa opção tão cegamente quanto Simão Pedro recusou fa
zer o batismo dos não-judeus. Cada um deles se aferrou à idéia do poder tem-
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poral tão teimosamente quanto Simão Pedro esperou que Jesus estabelecesse
um reino político na Palestina. Mas, ao contrário de Pedro, que recebeu de
Jesus uma mensagem especial dizendo-lhe que admitisse os não-judeus no ba
tismo e na salvação, não houve, para esses Papas, mensagem especial.
Somente agora houve outra espécie de mensagem de Jesus à sua Igreja —
veio ela na força irresistível de uma revolução já hiaie inequivocamente visível
aos realistas do Vaticano. Com base nessa revolução,*stão eles fazendo novos
planos.
Essa revolução, que vêem já bem em marcha, não é de natureza política,
mas afetará a política de todas as nações. Diretamente, nada tem a ver com
marxismo ou com a democracia ocidental, salvo que, ao que parece, prenun
cia o fim de ambos, tal como os temos conhecido. A revolução, no entender
do Vaticano, tem suas origens naquele nível de vida e de valor em que Jesus e
Satã lutam e têm lutado através de todas as idades do homem e pela alma da
humanidade.
Esse tipo de Conclave e essa linha de pensamento constituem a herança
direta de Paulo VI. Apesar de suas deficiências e de seus insucessos iniciais, fi
nalmente ele compreendeu a revolução e, em seus últimos dias, fez o melhor
que pôde para preparar a Igreja para ela.
Nem todos concordarão em que ele tenha tomado o lado certo. Na verda
de, no final de sua vida, Paulo VI tomou-se inaceitável a todas as quatro fac
ções existentes entre os Cardeais-Eleitores de sua Igreja, os cento e dezoito
homens - é mais ou menos esse o número —que irão estabelecer as normas
e eleger o Papa, depois da morte de Paulo.
Todos os problemas dos últimos dias de Paulo VI emanaram dessas fac
ções, que constituem uma bem espetacular formação de pensamento e opi
nião, da extrema esquerda à extrema direita. Nenhum dos limites máximos
desses extremos, em tais grupos, representa uma maioria no pensamento ecle
siástico. Mas, mesmo assim, um extremo seriamente ameaça cisão, enquanto
o outro ameaça revolução — até revolução violenta. E tais facções, que en
frentaram Paulo, serão as facções do Conclave.
A facção Progressista compõe-se de três grupos: os marxistas-cristãos, os
“novos teólogos” e um bom número de carismáticos.
Os marxistas-cristãos advogam uma estreita aliança, política e de outra
natureza, entre cristãos e comunistas. Entre eles e o Papa Paulo VI ardeu sem
pre uma inimizade imorredoura.
Os “novos teólogos” e intelectuais sustentam que praticamente tudo na
Igreja Romana —autoridade papal, sacerdócio masculino, condenação do ho
mossexualismo e do aborto, a idéia de Deus, a crença na ressurreição e na di
vindade de Jesus, até o conceito de igreja paroquial e o bastimo da criança re
cém-nascida — tudo está superado e precisa ser equacionado em novos ter
mos. Esses “novos teólogos” acreditam que somente com um Papa progressis
ta e de mentalidade aberta pode a Igreja ser salva da desintegração total.
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Os carismáticos, adotando uma nova interpretação da Bíblia e apoiando-
no exercício de novos dons —chamados os dons do Espírito Santo - insis
tem em que somente através do exercício de tais dons pode a fé ser salva. Em
conseqüência, introduziriam a prática carismática em cada fase da vida ecle
siástica. Mas isso, em si mesmo, seria uma força desintegradora, porque uma
dtu convicções centrais dos carismáticos é a de que o Espírito Santo se comu
nica, direta e pessoalmente, com cada indivíduo. A autoridade geral e o poder
magisterial do Bispo e do Papa ficam ultrapassados. É claro que os carismáti
cos alegam representarem eles o espírito da Igreja Cristã, primitiva e original.
A facção Tradicionalista coloca-se no extremo oposto aos Progressistas.
Afirmam os Tradicionalistas que a Igreja Romana foi corrompida, nos últi
mos doze anos, principalmente pelos marxistas-cristãos e pelos “novos teólo
gos”. Denunciam Paulo VI como herético. Insistem na reversão de todas as
mudanças verificadas na Igreja, desde os anos sessenta, sob a direção de Paulo.
Consideram Paulo, em seu pior aspecto, como um traidor e, na melhor das
hipóteses, como desorientado e enganado pelos ardis de Satã. Há homens po
derosos nesse campo e é daí que o sério perigo de cisma tem ameaçado, há
mais de dez anos, Paulo e a Igreja.
A facção Conservadora, em Roma e em toda a Igreja, opõe-se abertamen
te aos Progressistas - sejam eles marxistas-cristãos ou “novos teólogos” - e
opõe-se igualmente aos Tradicionalistas. Desejam os conservadores estabelecer
um curso firme, com algumas adaptações feitas gradativãmente, mas sem uma
mudança profunda na estrutura básica do governo e da fé Católica Romana.
Os conservadores não acham que Paulo tenha errado ao permitir a mudança,
mas acreditam que ele foi longe demais e andou muito depressa.
Finalmente, a facção Radical acredita que a Igreja Romana precisa dar
um passo numa direção específica: despojar-se de todos os interesses sócio-
políticos e financeiros e, ativamente, empunhar e usar apenas as armas do po
der espiritual. Os radicais acusam Paulo de não ter tomado a iniciativa de pas
sos audaciosos e imaginativos para libertar a Igreja de todos os envolvimentos
com interesses políticos e financeiros, seja qual for sua cor ou seu tipo. 0 fato
de serem chamados “radicais” faz lembrar a opinião de um Papa do século
XVI, Alexandre VI, que devia saber o que estava dizendo: “A laiz(radix) de
todos os males que afligem hoje em dia o Trono de Pedro é nosso poder tem
poral, aliado a nossa riqueza e a nosso prestígio internacional.”
Constitui um bem acatado julgamento dos 263 Papas anteriores dizer
que, embora a maior parte deles tenha filtrado o poder e o ensinamento de Je
sus através da mentalidade que prevaleceu no tempo de cada um, nenhum de
les, afinal, identificou a salvação de Jesus com soberania territorial e com in
fluência política. O erro deles consistiu em aliar essas duas coisas. Mas mesmo
no perfumado jardim do sucesso mundano, a tradição de Pedro, que constitui
a herança de todo Papa, os tomou capazes de perceber o mais leve estalido de
barbaridade a afiar seus punhais. E, quando tudo em volta deles se transfor
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mou num ululante coro de dor, geralmente os homens encontraram o mais
importante cidadão de Roma já de pé, diante de alguma porta ainda não aber
ta, a mão colocada sobre a aldrava. “Portanto, quando falhares”, Jesus disse
a Pedro, “terás a capacidade de te arrepender de teu erro, e darás a todos
aqueles que forem ligados a ti novas razões para continuarem a ter fé.”
E assim tem sido com Paulo VI. E ele transmitiu sua opinião e seus senti
mentos em relação ao fututo aos principais Cardeais-Eleitores, que se reúnem
por trás das portas trancadas do Conclave 82 —um Conclave que não seria
igual a nenhum outro antes dele,
Dos próprios Eleitores, bem como de nós, que os visualizamos em Con
clave, é exigido um esforço especial. Compreender na fé. Crer com compreen
são. Jesus não revelará seus propósitos definitivos, nem mesmo os pormenores
de nossa história imediata, a esses Eleitores. Não revelou o futuro imediato a
Simão Pedro e a seus companheiros, perto do Hermon. Nós, no entanto, co
mo filhos de uma geração muito posterior a Pedro, sabemos alguma coisa
além daquilo que ele sabia no Hermon. Sabemos, por exemplo, que Jesus viu
muito além da Palestina, além do judaísmo, além da Roma Imperial e além
daquilo que vemos mesmo agora, quando disse: “Tu és Pedro.”
Agora percebemos isso. Mesmo assim, hoje é preciso que haja humildade
e fé, para que os Eleitores e todos nós possamos ver, como Jesus o faz, mui
to além até mesmo dos extremos do vasto mixtum-gatherum do Catolicismo
e da Cristandade: para além dos monges gregos do Monte Atos; dos monges
beneditinos na Inglaterra; dos mexicanos de joelhos diante da Senhora de
Guadalupe; do pão bento dos poloneses; dos aborígines australianos cantan
do a missa; dos trevos da Irlanda; das cúpulas douradas dos árabes; para além
dos esquimós insculpindo a Ave Maria em ossos de baleia e dos gongos chine
ses fazendo soar o Angelus; para além das grinaldas do advento alemão; dos
tambores africanos tocando um requiem; dos ícones russos na bagagem da
Sra. Gromyko; das moças escandinavas usando a coroa de Santa Lúcia; das
capelas católicas japonesas parecendo templos zen; das cruzes do cruzado
maltes; das escoteiras holandesas catequizando as prostitutas de Amsterdã;
das freiras da Califórnia limpando os leprosos em Seul; dos Cardeais assinan
do cheques em Roma para os gnomos em Zurique; das freiras morrendo co
mo guerrilheiras na Guatemala; e para além dos luteranos, dos presbiteria
nos, dos batistas, dos adventistas, dos metodistas e das mil e uma outra sei
tas cristãs. É preciso humildade e fé, para que se veja além de todo esse de
lírio e de todo esse caos —e para passar além de tudo isso, mesmo quando
Jesus abrange isso tudo em sua memória e isso tudo transcende.
Para esses Eleitores, é a tarde do Conclave, como de fato o é uma cer
ta tarde para a Igreja estabelecida, para Roma e seu Vaticano. O sol de glória
e poder humanos que lhe iluminou os dias passados desapareceu. Os grandes
afrescos já não contemplam esse Conclave, das paredes e do teto da Sistina.
Muitos dos antigos cânticos, tal como o latim antes a todos imposto, emude
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ceram e já não são mais ouvidos. Neste nosso mundo moderno, há um senti
mento de inquietação, de que a vida se vai limitando, de que a graça está sen
do corroída das horas de cada dia, de que o encanto está desaparecendo, de
que as sensações se estão desbotando à luz forte do modernismo, com o impu-
dor desse modernismo. Hoje em dia todos os cristãos experimentam essa sen
sação. Mas por toda a Igreja de Jesus, audível, está a voz da salvação de Jesus,
falando de seu amor por todas as coisas humanas e de sua irrevogável decisão
e promessa de que nada poderá anular tal salvação, ou saciar esse amor.
Com a autoridade de Jesus, esses Cardeais irão escolher um, entre eles
próprios, para ser o 264? sucessor de Simão Pedro. E, tal como na designação
de Simão Pedro, próximo ao Hermon, os mesmo principais personagens esta
rão presentes: Jesus, repetindo “Tu és Pedro” ; o Príncipe, sempre vigilante,
decidido a fazer dos Cardeais e da particular escolha de seu Papa “um simples
brinquedo e um instrumento”.
A batalha continua.
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O PRIMEIRO DOS
PAPAS PEREGRINOS
Ql homens e as mulheres do século XXI serão fascinados pela figura de Gio-
vanni Battista Montini, que se tomou o Papa Paulo VI em junho de 1963.
Nossos rostos estão achatados de encontro ao vidro e não vemos as coisas se-
nlo de forma imprecisa. Eles estarão a uma distância suficiente para julgar
«quilo que ele fez.
Olharão para trás, para poderem ver que tipo de homens eram os que pri
vavam de sua intimidade, seus auxiliares de confiança; quais eram os motivos
que o impeliam; se sua teologia era tão sábia quanto sua piedade era genuína;
ie fazia o jogo do poder político secular usando a autoridade de Jesus; se en
trava em fatais combinações com aqueles que encarava como menores inimi
gos de sua fé, para sobrepujar os que considerava inimigos maiores; se permi
tia que a amizade pessoal por uns poucos interferisse com seu julgamento de
questões de vida e morte, envolvendo milhões de crentes.
Verão, como não podemos fazer, se a visão que o Papa Paulo tinha do sé
culo XXI era correta — tão brilhantemente correta que eles, nossos descen
dentes, se maravilharão com sua presciência —ou tão desanimadoramente in
correta que seu nome e seu pontificado e suas idéias serão detestados e rejeita
dos como infâmia. Será uma coisa ou a outra. Porque foi Montini, com mais
dois ou três homens de nosso tempo, quem, com obstinada vontade, fez sua
Igreja Romana de 715-milhões de membros voltar-se oficialmente para olhar
numa direção que a grande maioria não aceitava e não compreendia.
Por nossos descendentes, ele poderá bem ser considerado um inovador
tão gigantesco quanto Pedro, o Grande, da Rússia, ou Mao Tse-tung, da Chi
na. Poderão dizer dele: viu acima da cabeça de todo mundo, viu além de seus
limitados horizontes, e era um grande entre pigmeus. E poderá ser o quarto
Papa na história a ser cognominado “grande” . Paulo, o Grande, como Leão,
o Grande, Gregório, o Grande e Nicolau, o Grande.
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Essa gente do século XXI —e n2o nós - compreenderá o duplo papel que
vimos o Papa Paulo representando. Irá vê-lo como o último dos velhos Papas,
firmemente apoiado numa tradição papal de mil e oitocentos anos, tão lamu-
riantemente imperioso e tão insistentemente monárquico quanto qualquer Pa
pa vindo antes dele. E irá vê-lo como o primeiro dos Papas Peregrinos, homens
que agiram como se a Igreja a que pertenciam tivesse sido exilada da socieda
de humana e como se quisessem fazer a velha penitência da peregrinação —
em nome de todos os cristãos —para que uma vez mais Jesus, seu Vigário e
sua salvação, fossem aceitos no contexto do regime humano.
Paulo nunca foi realmente bem recebido pelos romanos, por aqueles burocra
tas do Vaticano, que um irritado Papa Pio XH uma vez descreveu como “os
Bourbons, que aprenderam pouco e não esqueceram nada”. Paulo era um na
tivo do Norte da Itália, que fizera nome como eclesiástico em Milão, durante
nove anos. Pelo que dizia respeito aos romanos, o homem nascido e batizado
lá no Norte, em Concessio, como Giovanni Battista Enrico Antonio Maria
Montini bem que poderia ter continuado por lá, com os outros bárbaros, no
exílio para onde o tinha mandado o Papa Pio XII, ao tirá-lo do Vaticano.
Mas Montini voltou como o Papa Paulo VI, em 21 de junho de 1963, e
trouxe consigo uma batelada de nortistas: arquitetos, financistas, clérigos de
diversas tendências, editores, projetistas, artistas e os aderentes que todo Car
deal de sucesso conquista. A “Máfia de Milão”, conforme os clérigos romanos,
adulterou o caráter exclusivamente romano do Vaticano, que Pacelli (Pio XII)
estimulou durante os quase vinte anos de seu reinado.
Nos anos de Milão, e depois em Roma, os elementos de fora repararam na
reverência, no quase terror, com que os membros da “Máfia de Milão” enca
ravam Montini. Sempre houvera uma camaradagem especial entre eles, e a
hostilidade encontrada em Roma apenas os unira mais.
Um fato a notar a respeito da corte papal de Paulo e da administração do
Vaticano em sua época é o de que partilharam do caráter “horizontal” da
maioria dos governos modernos. O pessoal era medíocre. Nenhum gigante
projetou-se acima do nível da massa em geral.
E, no entanto, Montini tinha em redor de si homens tão cheios de colori
do e de inteligência quanto qualquer outro Papa na história. O Secretário Don
Pasquale Macchi, nem sempre sábio em sua escolha de amigos, mas em todas
as instâncias leal a Paulo; o stakhanovista Benelli, ríspido em sua fé, ávido em
seu zelo por um imaterialismo sobrenatural; o inveterado fumante que é o
Cardeal Villot, que desenvolveu sua competência burocrática através de uma
vida inteira de pequeninas negociações; o impassível, retraído Willebrands, ho
mem de paz, perpetuamente surpreendido com seu próprio sucesso, receoso
de mover-se em qualquer direção e que, como caçoavam os romanos, só fica
va aflito com a reação luterana dos alemães diante de qualquer coisa romana
30
— ainda que fosse um enguiço no sistema de canalização do Vaticano; o Car
deal Vagnozzi, de inteligência rápida e seguro de si, que Paulo sempre achava
que tinha “dito Bom-dia! ao Diabo e saíra levando a melhor” ; o veterano
Cardeal Ottaviani, parecendo um gnomo que guardasse energia, que escondes-
te velhas verdades, sempre prevenindo Paulo de perigos; o Cardeal Wright, de
um egocentrismo torrencial, onipresente, um gourmand cheio de eloqüência,
que na esperança de herdar a terra se declarou humilde, mas que afinal se ele
vou a pináculos de fé que seus contemporâneos jamais pensaram haver dentro
dele; o Arcebispo Casaroli, o caixeiro-viajante de Paulo em matéria de Ostpoli-
tík do Vaticano, o homem do futuro, que conhecia os segredos de todo mun
do.
A chave para o caráter do pontificado de Paulo VI está na reação de Pau
te A visão que o Papa João XXIII tinha da Igreja e na decisão que, a esse res
peito, tomou. Nas mentes e de acordo com a política dos Cardeais-Eleitores
que fizeram Giovanni Battista Montini papa, no Conclave 81, em junho de
1963, Montini deveria implementar aquela visão.
O aspecto inovador e peculiar da visão de João está em sua superioridade
lobre qualquer coisa que, antes dele, possamos encontrar nos Papas. De fato,
num sentido, nenhum Papa teve, jamais, a visão de João.
O antecessor imediato de João, Pio XII, chegou perto disso. Depois de
n u s erros e fantasias iniciais sobre Romanità —o poder de Roma como cen
tro da Igreja — e sobre a persistência do poder do velho “bastião” Católico
Romano na Europa meridional, Pio XII chegou, realmente, a uma visão do ta
buleiro de xadrez da história. Finalmente transcendeu detalhes insignificantes
de geografia e de problemas locais, de modo que seu olhar se fixou na luta bá-
Uca entre Jesus e Satã. Mas também ele, prontamente, identificou o inimigo
como marxismo. Até aí foi a visão de Pio. E, nesse ponto, ele morreu.
Angelo Roncalli, como João XXIII, não padecia dessa estreiteza de en
foque. Tão ferozmente contrário ao marxismo quanto sempre o fora Pio XII,
6 enfoque de Roncalli era mais amplo. Embora acreditando na origem satáni-
01 do marxismo, João não aceitava o ponto de vista de Pio, que partia do
pressuposto de que uma força exterior e oposta —o marxismo —estava ten
tando mudar a sociedade e a Igreja de Jesus. A principal contribuição de João
foi a simples intuição de que uma mudança já se tinha verificado, e que ape
nas restava a aparência das coisas anteriores, como o arcabouço de edifícios
prestes a ruir. João viu que o mundo de Pio XII, de Pio IX, de Clemente VII,
de todos os Papas anteriores, estava morto e enterrado. A luta contra o mar
xismo era considerada por João como uma escaramuça de menor importância,
que logo estaria terminada, num conflito cósmico muito mais profundo.
A essência da mudança vista por João foi a seguinte: todas as fronteiras
sociais, políticas, ideológicas, étnicas e intelectuais que, durante séculos, ha
viam dividido os seres humanos tinham perdido sua validade. Não havia quem
pudesse explicar isso, mas era certo que do cenário da vida humana desapare
31
cera alguma persuasão fundamental, alguma convicção profunda. Por causa
dessa convicção, os homens haviam preservado tais fronteiras até o exato mo
mento de João XXIII na história. Mas agora, uma nova, desconhecida e assus
tadora unidade humana estava emergindo. £ todas as velhas fronteiras, todas
as coisas que homens e mulheres tinham compreendido e pelas quais tinham
vivido, estavam desaparecendo.
Para Joio, como para Pio XII e Paulo VI, a essência do conflito cósmico
estava nos planos e contraplanos de dois personagens: Jesus e Satã. Era um jo
go mortal, disputado no tabuleiro de xadrez do universo humano. O tabulei
ro era cósmico. Os problemas eram cósmicos. Os jogadores eram cósmicos.
A intuição de João dizia-lhe que, na esteira da enorme mudança que se
tinha verificado, a religião em geral e a Cristandade em particular corriam pe
rigo de ser superadas; que Satã fizera sua jogada para anular tudo aquilo que
Deus havia conseguido. E, na verdade, era fácil ver que a Cristandade estava
sendo superada, que estava cada vez mais isolada e eliminada da vida política,
civil, intelectual e cultural de homens e mulheres.
Da mesma forma que sua intuição era simples, simples foi a solução prá
tica adotada por João: abrir janelas e portas; derrubar as barreiras; deixar que
o espírito, já presente, voasse por sobre a face da Humanidade. Daí o seu Con
cílio - o Concílio Vaticano II. Daí sua atitude, paternal e amorosa. E daí o
sentimento espontâneo e universal que João, esse Papa Romano de setenta e
sete anos, originou, no curto período de apenas três anos e seis meses: o senti
mento de que nenhum bem era mais impossível e de que não havia mal que
não pudesse ser dominado; um sentimento de que, de alguma forma e inespe
radamente, a graça fora derramada, de que todo o ódio poderia ser dissolvido
por essa graça e de que poderia haver a esperança do melhor das coisas. ‘T u
do mudou”, João disse à sua geração. “Vinde ao nosso Concílio e celebrai e
fazei planos junto conosco.” E aí João morreu.
Quando Paulo VI calçou as sandálias do Papa, traduziu a visão cósmica
de mudança que João tivera, e desenvolveu suas próprias e novas políticas, de
acordo com sua capacidade pessoal e com sua própria visão.
Desde os distantes anos trinta que Giovanni Montini, como um jovem
clérigo, havia sido profundamente influenciado por uma única atitude que,
trinta anos mais tarde, muito contribuiria para fazer dele um Papa diferente
de qualquer outro Papa anterior. Foi uma atitude primeiro popularizada e
depois repudiada por um filósofo francês de grande apelo popular, Jacques
Maritain. Na realidade, Montini espontaneamente escreveu um intróito para a
edição italiana do Humanismo Integral\ de Maritain.
“Dê o seu testemunho através de serviço”, propõe a noção, “mas não
pense que nenhuma outra iniciativa é possível, prática ou indicada.” Em ter
mos práticos, o que o humanismo integral tem a dizer é que todos os homens
e mulheres são naturalmente bons; reagirão ao bem e rejeitarão o mal, se lhes
mostrarem a diferença. A função da Igreja de Jesus, neste estágio da história
32
Humana, é apenas dar o testemunho dessa diferença, não fazer esforços sobre
humanos para “catolicizar” a Política, a Economia, a literatura, a Ciência, a
Educação, a vida social ou qualquer dos outros aspectos da sociedade huma
na. Simplesmente dar o testemunho através do serviço prestado a homens e
mulheres —sem qualquer distinção de credo ou raça —esta é a tarefa da Igre
ja no mundo de hoje, onde emergiu uma nova unidade entre os seres huma
no»; um mundo que deliberadamente exclui a Cristandade e a autoridade cen
tral do Papa como Vigário de Jesus e centro da unidade mundial.
Assim, do ponto de vista de Paulo, o Papado e a Igreja teriam que se em-
ptnhar, uma vez mais, em atrair para a fé homens e mulheres, mas por um ca
minho diferente. Teriam que sair de seu isolamento, um isolamento que era,
•m grande parte, devido a suas próprias deficiências. Deveria haver um novo
•iforço para irem de novo ao encontro de homens e mulheres, para permane
cerem com eles e se tomarem aceitáveis por eles.
Quando Paulo falava de si mesmo como um peregrino e de seu Pontifica
do como uma peregrinação, estava se referindo a esse esforço. Via isso como
tando em parte uma penitência, pelos malogros dos Homens da Igreja do pas-
lido, em parte uma busca daqueles seres humanos que ainda não conheciam
Jaius, a Igreja e Jesus, a salvação de Jesus.
Esse humanismo integral de Paulo VI permeou toda a política de seu
Pontificado. Até que ponto foi ele capaz de encaminhar sua Igreja avante nes
ta via de peregrinação — ficará para julgamento de uma geração subseqüente.
Enquanto isso, podemos tomar nossas próprias medidas de seu sucesso verifi
cando como agiu Paulo em três ocasiões de capital importância, relacionadas
aitreitamente com a diplomacia da Igreja, as finanças da Igreja e a fé da Igreja.
4 de outubro de 1965
O Vôo n9 2.800 da Alitalia, que Paulo fazia, tocou o Aeroporto Interna
cional Kennedy conduzindo o Papa Paulo VI, sete Cardeais, dez ajudantes do
Vaticano, sessenta jornalistas, comentaristas, técnicos de som e luz e duzentos
mil envelopes contendo novos selos comemorativos do Vaticano.
Paulo seguiu de automóvel, a uma velocidade de uns vinte quilômetros
por hora, num Lincoln, modelo 1964, preto, de teto transparente à prova de
balas, de bandeiras tremulantes, luz fluorescente, forração de couro, lotação
de sete passageiros. Foi visto por uma centena de câmaras de TV e por mais
de dois milhões de nova-iorquinos, que se dispunham ao longo do percurso de-
quarenta quilômetros, até a Catedral de São Patrício, em Manhattan.
O trajeto estava defendido, preparado e facilitado por quinze mil policiais
da Cidade de Nova Iorque, pelo Corpo de Bombeiros, pelo Serviço Secreto e
de Repressão de Roubo, por detetives à paisana, cinco mil barreiras, quarenta
alto-falantes de grande potência, vinte e sete carros-reboques, treze ambulân-
33
cias, um caminhão antibomba, duas lanchas a motor no Rio Este e dois heli
cópteros sobrevoando.
Ele falou a onze Cardeais, a Arcebispos e a Bispos, e a quatro mil pessoas,
na Catedral. Encontrou-se com o Presidente Johnson e conversou com ele e,
no Hotel Waldorf Astoria, a Sra. Johnson e Luci, a filha adolescente, lhes fo
ram apresentadas, almoçou com o Cardeal Spellman e seus auxiliares, e avis
tou-se com uma porção de visitantes, autoridades e gente amiga.
Por fim, o Papa Paulo dirigiu-se às Nações Unidas. Essa era a razão de sua
peregrinação: “Dá ensejo à oportunidade de promover a causa da paz, tão pró
xima a Nosso coração e, ao mesmo tempo, de propiciar maior compreensão
entre as nações do mundo”, Paulo escrevera a U Thant, em 19 de março de
1965. “Daria”, respondeu U Thant a Paulo, em 16 de abril do mesmo ano,
“um novo e vigoroso impulso aos esforços dos homens de boa vontade, onde
quer que estejam, no sentido de preservar e fortalecer a paz mundial... trazen
do a Humanidade para mais perto da realização de suas legítimas aspirações.”
U Thant deu as boas-vindas a Paulo às 15 horas e 13 minutos da tarde,
naquele dia de outubro de 1965. Primeiro conduziu Paulo até a sala de Medi
tação: um aposento trapezóide, sem janelas, sem mobiliário, medindo nove
metros por cinco e meio, as paredes simétricas inteiramente nuas, salvo por
um afresco do artista sueco Bo Beskow, todo em padrões geométricos em
azul, amarelo, cinzento, castanho e branco. No centro da sala, um sólido blo
co de pedra e minério de ferro atingindo a altura da cintura. A única ilumina
ção, um feixe de luz amarela, esmaecida, que incide sobre a superfície treme-
luzente da rocha.
Depois U Thant levou Paulo à Assembléia Geral, que faria sua milésima
tricentésima septuagésima quarta reunião.
Foi tirada uma fotografia colorida da Assembléia Geral, durante a fala
de Paulo, às 15 horas e quarenta e cinco minutos: o Salão da Assembléia é
um vórtice inclinado de onze círculos regulares, contido num estático mo
mento fotográfico em um inevitável movimento descendente, para o lugar em
que Paulo, o Monge de branco, permanece de pé. Todo o peso do Salão con
verge para sua pequenina figura, como para um fulcro. Três mil ouvintes, de
pescoço esticado, o observam. Não há movimento visível, salvo da cabeça e
dos ombros de Paulo. É um momento eletrizante de atenção, uma vigília de
nações.
“Temos uma mensagem a transmitir a cada um de vós.”
Paulo tem para si os ouvidos do mundo. Sua mensagem conta com tradu
tores cheios de boa vontade para passá-la para mais de trinta e cinco idiomas;
é ouvida - e mesmo vista —literalmente, em toda parte do mundo. A gente
quase espera ouvir Paulo dirigir-se à raça humana: “Filhos dos homens! Na
ções da Terra! Povos de todos os países! Este é agora o caminho de vossa sal
vação...” Neste momento universal de atenção, Paulo poderia ter afirmado
brandamente, sem surpreender ninguém de maneira indevida: “No dia 29 de
34
junho, das Festividades dos Apóstolos Pedro e Paulo, o Senhor Jesus Cristo
pessoalmente Nos disse que isto é o que os homens terão que fazer para resol
ver seus problemas...” ;ou “Pretendemos resolver os persistentes problemas da
oposição de Este e Oeste, de ter e não ter, de brancos e pretos, da seguinte
maneira...”; ou “Nós, homens, podemos deter agora a letal corrida armamen-
tista, reconciliar árabes e judeus, trazer a China à razão, no convívio da famí
lia das nações, dissipar as nuvens do holocausto nuclear, alimentar, educar e
consolar os bilhões de seres do mundo através de...”.
Mas não aconteceu nada disso tudo. Paulo como Papa, como Apóstolo,
não tinha alternativas a oferecer. Não pregou nem anunciou a mensagem do
Evangelho, como Pedro e Paulo haviam feito mil e novecentos anos antes pe
rante o romano, o grego e o semita. Cristo, fosse crucificado ou ressurreto,
não foi a carga de suas palavras.
Paulo disse: “Desejamos que Nossa mensagem seja uma ratificação sole
ne e moral desta alta instituição... com a Nossa experiência em Humanidade,
trazemos a esta organização as vozes de Nossos finados antecessores, as de to
do o episcopado católico, e Nossa Própria voz, convencidos como estamos de
que esta Organização representa o caminho obrigatório da civilização moder
na e da paz mundial.”
0 silêncio inerte de alguns segundos antes chega ao fim. Passou o momen
to de magia. Agora, sentem todos, o resto das palavras de Paulo será um be-
nigmo testemunho do endosso de suas existências, do reconhecimento de suas
dificuldades.
Todos os principais participantes e protagonistas dos ódios recíprocos e
das guerras previsíveis estão sentados em fileiras semicirculares, diante de Pau
lo. Teias de intriga, de oposição e de interesses pessoais os vestem tão segura
mente quanto o fazem seus ternos escuros e suas vestimentas típicas.
A eles Paulo diz: “Vós confirmais o grande principio de que as relações
entre os povos devem ser regidas pela razão, pela justiça, pela negociação -
não pela força, pelo medo ou pela fraude. ”
Somente no vindouro ano de 1966, por motivos previstos e excluídos pe
la Carta das Nações Unidas, haverá supressão de liberdades humanas no Haiti
(2* fila) e na África do Sul (6? fila); guerrilhas, guerra civil e conflitos em am
bos os Congos ( 10? fila), índia (2? fila), República Dominicana ( 11? fila),
Guatemala (l?fila) e Indonésia ( 2? fila). Os negros se sublevarão em quarenta
e três cidades americanas, protestando contra a discriminação. Serão muitos
os refugiados da guerra e da opressão: 12 mil cubanos na Espanha e 200 mil
nos Estados Unidos; 15 mil refugiados da Guiné portuguesa no Senegal; 700
mil na Europa Ocidental, vindos dos países da Cortina de Ferro; 50 mil tibe-
tanos no Nepal e na Ihdia; 1 milhão e 100 mil chineses em Hong Kong e 80
mil em Macau, oriundos do continente comunista; 800 mil refugiados árabes
no Líbano, na Síria, no Iraque e na Jordânia; 12 mil sul-vietnamitas no Cam
boja; 575 mil africanos deslocados por guerras civis e por rebeliões. Por volta
de setembro de 1966, 300 mil pessoas terão sido mortas na guerra civil indo
nésia. Até dezembro, somente norte-americanos terão morrido 6.644 na
guerra do Vietnã.
No entanto, Paulo diz "não há necessidade de longos discursos para pro
clamar os propósitos desta instituição
Diante de Paulo estão sentados os representantes de nações que elevarão
a novos níveis, com vistas à futura violência e à morte, a acumulação de ar
mamentos. No ano fiscal de 1966, o Reino Unido (7? fila) terá um orçamen
to militar de 6.081 bilhões de dólares; a França (l^fila), de 4.465 bilhões de
dólares; o Japão (33 fila), de 946 milhões de dólares; a URSS (7? fila), de
14.208 bilhões de dólares; os Estados Unidos da América (8?fila), de 57.718
bilhões de dólares. As duas últimas nações fornecerão aos países árabes e a
,íárael o material que iria tomar possível a guerra de junho de 1967. O Paquis
tão (5? fila) aceitará da China Comunista as armas com que lutará contra a
índia.
Paulo continua “É suficiente recordar que o sangue de milhões de ho
mem, que'incontável e inauditos sofrimentos, que inúteis massacres e ruínas
terríveis selaram o pacto que vos une, com um voto que deve mudar a história
futura do mundo:Nunca mais Guerra! Guerra, nunca mais!”
***
Depois de seu discurso, Paulo ficou de pé, no início de uma fila de tre
zentos homens, que o recepcionavam na extremidade norte do salão de re
creio dos delegados, de frente para um grande mapa-múndi cor de chocolate.
Todos caminharam até ele de boa vontade, cumprimentaram-no de maneira
agradável, alguns reverentemente: as Grandes Potências, a China Nacionalista;
os aliados e satélites dos soviéticos; o Terceiro Mundo, não comprometido.
Para todos eles Paulo tinha uma palavra. Os observadores tomaram nota dos
momentos extras que gastou com Gromyko; da reverência da Sra. Gromyko;
do carinhoso aperto com as duas mãos para Arthur Goldberg; dos africanos e
asiáticos que beijaram o anel de Paulo; de sua gentileza com Jacqueline Ken-
nedy.
No fim, Paulo dirigiu um último olhar aos convivas reunidos. Mais não-
europeus do que europeus. Mais não-cristãos do que cristãos. Essa a lição que
lhe ficou na memória.
Quando o avião que conduzia Paulo e sua comitiva, seus presentes e cin
qüenta e dois repórteres fez um arco no céu por sobre Manhattan e as Nações
Unidas, Paulo mal contava dois anos de reinado. Contudo, no âmago da lição
que aprendera estava a sinistra intuição da irreversibilidade da nova condição
de sua Igreja, a que os Papas haviam resistido durante mil anos. Paulo falaria
a muitos sobre tal intuição, nos anos que estavam por vir.
Uma nova mentalidade humana estava-se formando, por enquanto ape-
36
nas despontando na multidão heterogênea das Nações Unidas. E quanto mais
depressa se preparasse a Igreja para despojar-se de tudo aquilo que adquirira
através de regionalismo, de nacionalismo e de cultura, mais pronta e adapta
da estaria ela para sobreviver, para florescer e, finalmente, prevalecer entre os
humanos como o único portal de revelação divina.
Mas para o observador superficial, a mensagem fundamental da visita de
Paulo não era lá grande coisa: “Nós, a Igreja, ficamos na segunda linha*’, sua
visita parecera dizer. “Como organização, sabemos que não temos voz nos
seus negócios. Contudo, queremos lembrar-lhes que estamos aqui.”
Essa foi a primeira expressão, concreta e obstinada, do humanismo inte
gral de Paulo.
Primavera de 1969
É tarde da noite, no gabinete papal do terceiro andar do Palácio Apostó
lico. Momento e lugar nenhuns, mais isolados, seguros e secretos, foram en
contrados por muitos dos Papas anteriores para reuniões ultra-sigilosas.
A reunião dizia respeito às finanças do Vaticano. Tais encontros têm sido
parte dos negócios papalinos há mais de mil anos.
Não há registro oficial sobre a reunião no livro de compromissos de Paulo
- e nunca houve. Em todas as semanas de todos os anos, na história dos Pa
pas, da mesma forma que na história dos primeiros-ministros, dos presidentes,
dos reis e dos chefes das grandes empresas, sabemos da existência dessas “não-
reuniões”.
Paulo chega a um acordo, apondo sua assinatura como Papa num docu
mento bilateral, num contrato. Os arquivos do Vaticano estão cheios de do
cumentos desse tipo.
Em conseqüência dessa assinatura, Paulo vincula e compromete uma par
te considerável dos recursos financeiros do Vaticano e do dinheiro papal. Os
Papas sempre se consideraram —e acertadamente —os únicos administradores
responsáveis por aquilo que sempre se chamou em Roma de “patrimônio de
Pedro” .
A cena é excepcional apenas num único ponto. Com sua assinatura, o Pa
pa Paulo autorizava o financista a vender o controle acionário do Vaticano
(350 milhões de dólares) no enorme conglomerado Società Generale Immobi-
liare. Com aquela assinatura, Paulo permitia igualmente o acesso de Sindona a
outros recursos do Vaticano, para ulteriores investimentos.
Os centros financeiros da Europa e dos Estados Unidos passarão anos
cheios de histórias inacabadas, de relatos deturpados, de informações desvai
radas e de versões incompletas daquilo que veio a ser um prejuízo financeiro
de proporções aparentemente enormes para o Vaticano. 77 crack Sindona —a
catástrofe Sindona - não é um caso simples. Que a assinatura ocorreu naque
las circunstâncias entre o Papa Paulo e Michele Sindona é, agora, um fato ad-
37
mitido. De início, o Vaticano negou-o, declarando que a assinatura fora entre
Sindona e o Cardeal Guerri, um membro do Vaticano, de alto gabarito.
As lembranças que Paulo tinha de Sindona recuavam até bem antes da
primavera de 1969, até seus próprios anos iniciais como Arcebispo de Milão.
Suas preocupações com a administração financeira e com a polítíca geral do
Vaticano remontavam a data mais recuada ainda.
Como Vice-Secretário de Estado do Vaticano sob Pio XII, Montini já ha
via lutado pela reforma da administração financeira do Vaticano. Conhecia,
em primeira mão, os casos de corrupção e os corruptos. Em 1954, redigiu um
relatório citando os nomes e as atividades dos próprios sobrinhos de Pio XII
(Cario, Giulio e Marcantonio Pacelli), que Pio havia colocado na direção das
finanças do Vaticano. A reação de Pio ao relatório foi violenta e rápida. Mon
tini viu-se num trem, a caminho de Milão, em exílio e desfavor. Uma das lem
branças mais amargas de Paulo, naquela longa viagem de trem que não era de
ida-e-volta, foi a de um dia, logo depois do fim da segunda guerra mundial,
quando ele ouvira Pacelli falando do balcão exterior de São Pedro, em Roma,
acusando certo padre iugoslavo, Ernesto Cippico, de ter “trazido escândalo
para a Igreja”. Cippico dera um desfalque de alguns milhares de dólares em
fundos destinados a refugiados da Europa Oriental. Mesmo enquanto escutava
aquelas palavras, Montini sabia que lá no Quirinal, além, nas magníficas vilas
situadas no campo, dentro do Vaticano, por trás das costas de Pacelli, havia
homens e mulheres que diariamente manobravam com milhões de dólares da
Igreja — o “patrimônio de Pedro” - comprando guerra, vendendo paz, rio
abaixo, cinicamente, escandalosamente. O que faltava a Cippico era, apenas,
a proteção de gente importante. Montini quase podia ver, por trás da questão
toda, uma careta satânica.
Mais tarde, como Papa, um dos primeiros pronunciamentos importantes
de Paulo, em 1967, foi o Populorum Progressio, em que atacava o capitalismo
liberal e criticava o “imperialismo internacional do dinheiro” , através do qual,
no fim, “os pobres sempre continuavam pobres e os ricos tomavam-se sempre
mais ricos” . O Vaticano, como parceiro internacional de negócios, estava in
cluído naquilo que atacava. No fundo do coração, Paulo desejava tomar me
didas radicais, devolver aos pobres tudo aquilo que era deles. Quando “ajuda
mos os pobres”, afirmou, citando Santo Ambrósio, “nunca damos aos pobres
aquilo que é nosso; apenas lhes devolvemos o que a eles pertence” . 0 Pontifi
cado de Paulo perdeu muitos amigos altamente colocados no Vaticano, na
Europa e nas Américas, quando o Populorum foi publicado.
Não obstante, pela época dessa publicação, Paulo tinha decidido quanto
às linhas gerais de uma reforma nas finanças do Vaticano e quanto a uma me
ta definitiva: o despojamento da Igreja de sua carga financeira, eliminando as
sim esse elemento do “Príncipe deste mundo” .
Nos últimos anos da década de 60, de acordo com os dados mais fidedig
nos, o orçamento anual do Vaticano ficava entre 25 e 40 milhões de dólares.
38
Seus investimentos subiam a mais de 4 bilhões e 800 milhões de dólares. Na
gerência do investimento dessas imensas somas, havia dois importantes de
partamentos de administração financeira.
O primeiro, o Institute for Religious Works — IRW (Instituto para Obras
Religiosas), a essa época sob a direção do venerado Cardeal di Jorio, fora es
tabelecido durante a primeira guerra mundial. Fazia o pagamento dos salários
da burocracia vaticana e ocupava-se das contas e dos investimentos do Vatica
no em favor de outras instituições católicas, de cerca de mil cidadãos vatica-
nos, e de “uns poucos amigos da Igreja (italianos e não-italianos), em número
reduzido, e selecionados”, como explica um funcionário. Seu patrimônio, em
termos conservadores, era estimado em mais de 3 bilhões de dólares. Paulo
descobriu, porém, que jamais fora apresentado qualquer balanço geral. O IRW
movimentava enormes somas por todos os mercados financeiros do mundo,
operando livre de quaisquer normas de controle cambial dos diversos países.
Havia, mesmo, transferido dinheiro de um lado para o outro, entre os belige
rantes, durante a Segunda Guerra Mundial. Era óbvio que o IRW havia estabe
lecido consideráveis negócios em moeda estrangeira e gozava de confiança.
Toda vez que Paulo precisava de dinheiro para cobrir despesas do Vaticano, di
Jorio simplesmente o retirava da conta de Paulo (n? 16/16).
A Special Administration o f Holy See Property - SA (Administração Es
pecial das Propriedades da Santa Sé) datava de 1929, ano em que o governo
de Mussolini pagou 2 bilhões e 400 milhões de dólares, a título de reparação
pelos bens pontifícios italianos tomados pela República Italiana, em 1870.
Era dirigida por alguns competentes banqueiros leigos (tendo a seu lado a as-
sessoria de eclesiásticos) e tinha a assistência técnica de J.P. Morgan, de Nova
Iorque, dos Hambros Bros., de Londres, e de Rothschild, de Paris.
Pelo fim dos anos 60, recursos oriundos tanto do IRW, quanto da SA es
tavam investidos em todos os setores da indústria e do comércio da Itália.
Nos conselhos de administração das companhias em que o Vaticano tinha in
teresse, havia sempre um homem da '‘família” vaticana, alguém como Massi-
mo Spada ou Luigi Mennini.
Um dos empreendimentos comerciais em que o Vaticano passou a ter
interesse majoritário foi a gigantesca, multinacional Società Generale Immo-
biliare (SGI). Seu presidente era o Conde Galleazzi, antigo governador da Ci
dade do Vaticano e parente do médico particular de Pacelli, e quatro dos
membros mais importantes de seu conselho eram homens da “família” vati
cana. A SGI era altamente diversificada, tendo propriedades como edifícios
de escritórios, companhias construtoras, terras, áreas residenciais, etc., nos
dois lados do Atlântico ~ o Hilton de Roma, o edifício da Pan Am nos
Champs Elysées, em Paris, o complexo do Watergate, em Washington, D.C., e
a Bolsa de Valores de Montreal, no Canadá, figuravam entre os exemplos de
bens imobiliários.
Paulo, convencido de que a Europa estava caminhando .para um eclipse
39
total de sua autonomia, decidiu que era chegada a hora de uma mudança.
Afora as considerações de natureza geopolítica, havia outras razões: ele fora
avisado da aproximação de um período de recessão e de inflação; as despesas
correntes do Vaticano haviam aumentado enormemente, desde o Concílio Va
ticano, principalmente em razão dos novos Secretariados e Comissões, com
grandes orçamentos de despesas; algumas companhias sob controle do Vati
cano estavam tendo pesadas perdas (a fábrica de farinha e massas, Pantanella,
perdera 2 milhões e meio de dólares e precisava de um refinanciamento de
4 milhões e 800 mil); a força de trabalho do Vaticano aumentara de um terço,
desde 1963, e triplicara, desde 1948; os pensionados do Vaticano chegavam a
cerca de mil. E, para coroar esse panorama, o Vaticano estava empenhado nu
ma batalha perdida com as autoridades fiscais italianas, girando em tomo de
sua pretensão de conseguir isenção de impostos sobre os dividendos auferidos
em 1962, com base na Concordata assinada em 1929 com o governo.
Tal como na situação configurada quando Paulo visitou as Nações Uni
das, as razões para ação estavam ali mesmo.
O primeiro movimento franco de Paulo nas principais áreas financeiras do
Vaticano foi estabelecer, em 1968, um novo instrumento de administração.
A Prefecture o f Economic Affairs (Prefeitura para Assuntos Econômicos), a
PECA, como é conhecida, foi instituída para coordenar as políticas de inves
timento, fiscalizar as despesas e preparar o até então desconhecido balanço
geral do Vaticano. E, seguramente, pela altura dos anos 70, a PECA apresenta
va previsões orçamentárias e um balanço geral consolidado.
A PECA foi dirigida, por pouco tempo, pelo Cardeal Angelo DelTAcqua.
Depois Paulo confiou-a aos cuidados de um diplomata de carreira, o Cardeal
Egidio Vagnozzi, de 62 anos, que voltava de nove anos como representante
do Vaticano em Washington. Vagnozzi era um arquiconservador e aliado de
poderosos e veteranos auxiliares como os Cardeais Ottaviani e Siri. Como
assistentes de Vagnozzi estavam os Cardeais Cody, de Chicago, e Martin Htif-
fner, de Colônia, na Alemanha.
Paulo deu, também, uma nova chefia ao 1RW, o Padre Paul Marcinkus, um
sacerdote da arquidiocese de Chicago. Natural de Cicero, no Illinois, e nascido
na segunda geração de uma família lituana, ordenado em 1947, com estudos
de pós-graduação no North American College (Colégio Norte-americano), de
Roma, posteriormente membro da seção de língua inglesa da Secretaria de
Estado do Vaticano, com 1,90m de altura (os italianos o apelidaram ilgorillá)
e muito bem apessoado, MarÕinkus tomou-se amigo de Macchi, secretário de
Paulo. Acompanhou Paulo em suas viagens ao redor do mundo e tomou-se
um bispo com o salário básico de 6 mil e 400 dólares, como chefe do IRW.
O primeiro objetivo de Paulo e de seus assessores foi a extinção do sistema
pelo qual o Vaticano controlava interesses em empresas italianas, visando à
sua retirada dos mercados financeiros da Itália, para entrar, como “estrangei-
40
ro”, no mundo promissor das blue chips do eurodólar e dos lucros de ultra
mar.
Entre todos os homens disponíveis para fazer tSo grande transferência de
tão grandes somas, nenhum parecia tão conveniente e tão adaptado à situa
ção quanto alguém que Paulo já conhecia, Michele Sindona.
Michele Sindona fizera-se, na realidade, uma pessoa adaptável a tSo impor
tante encargo. Desde quando comprara um caminhão e com este começara
um lucrativo comércio com as forças armadas dos Estados Unidos na Sicília
dos tempos da guerra, passara um pouco mais de vinte anos preparando-se pa
ra aquela triunfal e noturna assinatura. Nascido em 1917, na cidade de Patti,
perto de Messina, na Sicília, educado pelos jesuítas, bem-sucedido estudante
de Direito na Universidade de Messina, Sindona deixou a Sicília em 1947, le
vando consigo esplendorosas recomendações do Bispo de Messina (que só ti
nha conhecimento das generosas doações de Sindona à Igreja) para as autori
dades arquidiocesanas em MilSo. Aí abriu ele um escritório especializado em
assessoramento fiscal relacionado com o mercado do dólar.
Pela altura de 1959, Sindona estava adiantado no bom caminho, com êxi
tos evidentes já atrás de si. Por aquela época, já adquirira o Banca Privata Fi-
mnziaria (BPF) e uma fundição (que vendeu à American Crucible Company) ;
estabelecera uma companhia controladora, a FascoAG, no refúgio contra im
postos que é o Liechtenstein e através da Fasco obtivera o controle acionário
do Finabank Geneva; fundara uma firma corretora de moeda estrangeira, a
Moneyrex, dirigida por Cario Bordoni; conseguira estabelecer estreitos relacio
namentos com Luigi Mennini, alto funcionário do IRW, do Vaticano; com
Massimo Spada, homem da “família” vaticana (que se tomou diretor no BPF
de Sindona) e com Don Pasquale Macchi, secretário particular e confidente do
Arcebispo Montini.
Na época em que despertou a atenção especial de Montini, Sindona já era
assessor jurídico do grupo têxtil SNIA-Viscoa (do qual Spada era um dos dire
tores), presidente da Keyes Italiana, da Mediterranean Holidays, da Philips
Carbon Black Italiana, diretor-administrativo da Cheseborough-Ponds e mem
bro do conselho de administração da Remington Rand Italiana.
O que consolidou a estima de Montini por Sindona, já em 1959, foram os
2 milhões e 400 mil dólares que este levantou para Montini nos círculos co
merciais de Milão, para o financiamento de um abrigo para pessoas idosas —a
Casa Madonnina.
Em 1966, o Vaticano perdeu sua batalha de seis anos com as autoridades
fiscais italianas e sofreu as penalidades conseqüentes. Havia chegado o mo
mento para o salto. E Sindona estava pronto a ajudar o Vaticano a saltar.
No decorrer daqueles segundos próximos à meia-noite, na primavera de
1969, quando Sindona, e depois Paulo, se inclinaram e assinaram seus nomes
no acordo, foi dado a Sindona o controle de enormes recursos em moeda es
41
trangeira. Em todos os mercados de capitais do mundo, portava ele, agora, o
imprimatur do Vaticano para todas as suas transações.
Enquanto Sindona se curvava para beijar o anel de Paulo e saía na escura
manhã romana com tanto poder financeiro quanto o de muitas nações da Ter
ra, por um momento Paulo o viu, por assim dizer, transfigurado —seu temo
escuro, a gravata preta, a camisa branca, a maneira urbana, a deferência sorri
dente, a satisfação óbvia —todos os detalhes pareciam refletir um outro po
der, estranho ao que Paulo exercia por força daquele Anel do Pescador, que
Sindona acabara de beijar com tão grande naturalidade. Não era tanto pelo
fato de se dizer que Sindona pertencia à maçonaria. Era, antes, que Paulo sen-
tia que Sindona era um instrumento nas mãos de poderes desconhecidos. Des
se momento e até 1977, essa impressão iria crescer, na medida em que as notí
cias foram chegando até Paulo.
Sindona agiu rapidamente, em diversas frentes. Transferiu o equivalente a
40 milhões de dólares para o Banco de Luxemburgo, o Paribas Transcontinen
tal (subsidiário da Banque de Paris et des Pays-Bas —Banco de Paris e dos Paí
ses Baixos); desse total, 15 milhões de dólares foram adquiridos pela Gulf and
Western, sediada na Califórnia (Paulo teve um pequeno estremecimento,
quando ficou sabendo que a Gulf and Western era proprietária da Paramount
Pictures Corporation), cujo presidente, Charles Bludhorn, de 44 anos, passou
a fazer parte do conselho de administração da SGL Sob a direção de Marõin-
kus, o IRW adquiriu um grande lote de ações do Finabank, de Sindona. O Va
ticano reteve 5% de controle sobre a SG1, mas continuou a desembaraçar-se
das empresas italianas, como a Condotte d’Acqua (em 1969), a Pantanella
(em 1970), e a Serono (uma fabricante de pílulas anticoncepcionais, em
1970). Diversificou, também, em companhias estrangeiras: General Motors,
General Electric, Shell, Gulf, IBM e algumas empresas de aviação.
Sindona tornou-se presidente de sete companhias italianas, vice-presidente
de três bancos e comprou um lote majoritário de ações do Banca Union (BU),
vinculado ao Vaticano, desse modo pelo menos triplicando suas operações
no setor bancário de Roma. Mais tarde iria fundii seu antigo BPF e o BU,
criando o Banca Privata Italiana (BPI). Através da movimentação de fundos
efetuada por Sindona, o Vaticano adquiriu a participação de 20% no BPI, des
sa forma habilitando Sindona a estabelecer ligações com o Hambros (25%) e
com o Continental Bank, de Illinois (15%). O presidente do Continental, Da-
vid Kennedy, que foi secretário do Tesouro dos Estados Unidos ao tempo do
Presidente Nixon, mais tarde veio a ser membro do conselho da Fasco AG.
Todo mundo se surpreendeu quando, em 1972, Sindona inesperadamente
se transferiu, juntamente com a família, para os Estados Unidos, onde tomara
um apartamento de condomínio no Hotel Pierre, em Nova Iorque, em nome
de sua esposa, Katerina. Comprou o controle acionário do vigésimo maior
banco dos Estados Unidos, o Franklin National. Ofereceu um milhão de dóla
42
res como contribuição eleitoral anônima para a reeleição do Presidente Nixon,
mas Maurice Stans recusou-a.
Menos de um ano depois, tomou-se evidente para todos a primeira racha
dura no império de Sindona. O órgão americano Securities and Exchange
Commission —SEC (Comissão de Títulos e Bolsas) suspendeu todas as transa
ções da Vetco Offshore Trading Industries, quando descobriu que Irving Ei-
senberger, um assessor de investimentos de Los Angeles, havia adquirido 25%
de ações não-integralizadas da Vetco (numa violação dos regulamentos vigen
tes sobre segurança econômica). Veio a publico, também, que 20% das ações
e das opções da Vetco haviam sido compradas por Eisenberger em nome do
IRW, através dos Fiduciary Investment Services —FIS (Serviços Fiduciários
de Investimento), sediados no Liechtenstein, que contavam com uma agência
no complexo de escritórios de Sindona em Roma. O IRW possuía muitas
ações e opções nos FIS. Pelos meados de março de 1973, o IRW adquirira
454.000 ações da Vetco, parte de um lote de 714.000 ações da Vetco vendi
das pelos FIS, o maior lote jamais negociado na Bolsa de Valores Americana.
O Vaticano pagou 320 mil dólares, a título de penalidade, como com
pensação por essa transação ilegal, e as autoridades italianas começaram um
longo inquérito sobre os negócios de Sindona. Outra rachadura no império.
Quando Villot informou Paulo do inquérito e quando este soube, por
Vagnozzi, da penalidade sofrida, a memória pontifícia de Paulo foi perturba
da pela velha inquietação: teria ele deixado a Igreja sem defesa? Tê-la-ia envol
vido mais do que nunca com os poderes do mundo?
Em 1973, e durante mais dois anos de angústia, Villot e outros funcioná
rios levaram ao conhecimento de Paulo notícias de desastre após desastre no
caso Sindona. O BPI de Sindona suportou prejuízos em moeda estrangeira no
valor de 48 milhões de dólares, em 1973, e de mais 150 milhões, em 1974.
Depois foi descoberto que o Franklin National Bank tinha pelo menos 43 mi
lhões de dólares de prejuízos escondidos como “lucros falsos” , em negocia
ções em moeda estrangeira com bancos suíços controlados por Sindona.
Outros bancos, controlados por Sindona ou a ele vinculados, começaram
a desmoronar —Wolf, Herz, Herstatt, Aminot —com os conseqüentes prejuí
zos do Vaticano. Por volta de outubro de 1974, as autoridades italianas esta
vam prontas para agir contra Sindona, Spada, Mennini e outras pessoas, cujos
nomes não eram revelados, envolvidas no golpe. A acusação: falsificação das
contas do BU, em 1960. A possível penalidade: quinze anos de prisão para ca
da uma delas.
Em 9 de janeiro de 1975, as autoridades suíças fecharam o Finabank, de
Sindona, o qual havia sofrido perdas, em moeda estrangeira, de pelo menos
82 milhões de dólares. Sindona fez um último e infrutífero esforço para le
vantar capital (cerca de 300 milhões de dólares), oferecendo para venda novas
ações preferenciais de uma pequena companhia controladora, a Finambro.
Mas Guido Carli, Governador do Banco da Itália, liquidou a idéia.
43
Os prejuízos do Vaticano foiam enormes. Em janeiro de 1975, Spada de
clarou que, até então, o Vaticano havia perdido 10% de todos os seus bens.
As fontes bancárias suíças faiam em alguma coisa na casa dos 240 milhões de
dólares. Apesar das declarações públicas de Vagnozzi, feitas em abril de 1975,
de que os investimentos do Vaticano naquele caso atingiam os 500 milhões de
dólares (ele confirmou uma grande transferência de investimentos vaticanos
da Itália para os Estados Unidos) e de que os prejuízos da Igreja n’/7 crackSin-
dona eram mínimos, persistem as informações de que tais perdas bem podem
ter ultrapassado a marca do bilhão de dólares.
A lembrança que Paulo guardou do caso Sindona continuou sendo agri
doce, através de seus últimos anos. Mostrou-lhe, mais claramente do que nun
ca, a extensão em que a Igreja, institucional e hierática, estava acorrentada a
um sistema monetário internacional que pertencia, na teoria e na prática, ao
espírito do “Príncipe deste mundo” . Mas, com todos os seus desastres, toda a
aventura Sindona não bastou para despedaçar aquelas correntes.
Duas coisas sSo certas, no que diz respeito à aventura de Paulo com Mi-
chele Sindona. Ele queria alinhar o Vaticano e as finanças da Igreja com os
interesses dos Estados Unidos. Também queria desligar sua Igreja, na Europa,
de seu envolvimento no velho bastião em que a mesma tinha ocupado posição
predominante e desempenhado o papel de principal potentado, desde que
Constantino, o Imperador Romano, se convertera ao Cristianismo, no sécu
lo IV e, com os enormes donativos e benefícios concedidos ao Papa de então,
Silvestre I, demarcara os passos de todos os Papas que vieram depois no cami
nho do poder econômico e político. Silvestre foi o “primeiro pai rico” da
Cristandade. Na mente de Paulo, ele próprio gostaria de se tomar o primeiro
Papa pobre, depois de tanto tempo.
Mas isso não iria acontecer enquanto Paulo vivesse. “Talvez’’, observou
Paulo em fevereiro de 1977, “talvez só a mão de um opressor seja capaz de
Nos livrar e de livrar a Igreja de tudo isso. Talvez Satã possa passar por cima
de si mesmo. O dote de Constantino é grande demais para ser carregado no
mundo de hoje.” Paulo, o humanista de muita leitura, conhecia o seu Dante
bem demais para não se recordar dos versos que finalizavam o Inferno:
A decisão de Paulo quanto a Lefebvre, seu discurso e sua atitude nas Nações
Unidas e sua aventura com Michele Sindona foram, cada um deles, parte de
sua mais fundamental decisão tomada em relação à sua Igreja. Nada senão
uma completa mudança nas atitudes da Igreja, sustentava ele, poderia garantir
o futuro dessa Igreja.
E essa conclusão básica chegou a Paulo em conseqüência de uma vida in
teira passada no serviço do Vaticano, toda entrelaçada numa teia complicada
de lembranças, lições, pesares, alegrias, sucessos, malogros, especulações, teo
rias e interpretações envolvendo homens, mulheres e crianças; abrangendo
cidades e nações e comunidades e continentes e - já bem tarde em sua vida —
sobre o planeta Terra em relação a outros planetas e a outras galáxias. O mi
lagre de Paulo VI é que, considerados os antecedentes de sua experiência de
vida, tenha realmente atingido tamanha largueza de mente. A pergunta deci
siva a seu respeito é: teria ele ido longe demais?
0 que os de fora viam como contraditório em sua maneira de tomar de
cisões era, na realidade, o resultado de seu escrupuloso cuidado para não per
der completamente o equilíbrio, na corda bamba devastadora dos nervos em
que fora chamado a caminhar quase a partir do dia em que se tomara Papa,
entre a maioria tradicionalista e a minoria progressista. O mundo em que Pau
lo nascera fora o dos “absolutos infinitos”, de Croce. Fora formado por uma
longa lista de gênios hoje desconhecidos da maioria dos homens e das mulhe
res —Tomás de Aquino, Boaventura, Dante, Petrarca, Giotto e Signorelli, Ra
fael e Ticiano, Miguelangelo e Bramante, da Vinci e Galileu, Vico e Mazoni,
Vivaldi e Verdi, o Papa guerreiro, Julio II, o metediço Pio IX, o intransigen
te Pio X, e aquela encarnação de Romanità, Pacelli. Paulo fez todo o seu ca
minho desde esse mundo morto até o ponto em que pôde visualizar um fim
para as estruturas da civilização, da cultura e da Igreja que semelhante litania
de antigos génios tornou possível. Esta é a verdadeira medida de Paulo. Pio
XII não conseguiu isso, nem mesmo o adorado Papa João XXIII, muito me
nos qualquer dos Pontífices precedentes. A maior parte dos líderes atuais
nâo o conseguiu. Paulo viu o fim. Agiu de acordo com isso. Foi sábio assim
fazendo? Só o tempo dirá.
Onde Paulo certamente fracassou e onde deixou uma nada invejável he
rança para os Cardeais-Eleitores do Conclave 82, foi num ponto capital. No
contexto da estrutura política de Paulo, a Igreja não tinha alternativa ante
as forças desencadeadas a seu redor. A Nave de Pedro, na opinião de Paulo,
simplesmente deveria flutuar com as marés e as correntes. Ao abrir sua Igre
ja a todas as influências exteriores, não criou iniciativa alguma, dentro da
Igreja. Através disso tudo, permitiu e algumas vezes fez com que as fontes
tradicionais da iniciativa eclesiástica fossem sufocadas» de modo que, no
fim de seu reinado, prevalecia a semi-escuridãò da hora do crepúsculo.
E, assim> os Cardeais-Eleitores do Conclave 82 precisam, primeiro, per
guntar a si próprios não qual dentre eles será o Papa, mas se ainda lhes resta
alguma iniciativa no mundo moderno. Devem eles, agora, apenas flutuar ao sa
bor da maré? Devem adotar uma nova política, para um Papa atuante e ativa
mente católico romano? Ou constitui seu dever optarem por uma política de
contenção e por um Papa zelador, um Papa de transição?
Seja o que for que decidam, a advertência que Paulo lhes fez foi clara. Às
vezes chamava a si próprio de Peregrino. Viu-se a si mesmo parado no limiar
da antiga morada católico-romana, que brevemente seria abandonada por ser
incompatível com o mutável cenário do mundo. Dali acenou para os fiéis, e
para os que orava para que viessem a ter fé. E rogou aos “homens de pensa
mento, homens do poder, homens do trabalho e do cansaço... que uma vez
mais encontrem significado para seus esforços em Jesus e em Seu Sacrifício”.
No século XXI, lembrem-se os homens e as mulheres de Paulo como gran
de ou como ignóbil, olharão para trás e lembrar-se-ão dele na manhã chuvosa
54
da Páscoa de 1977, uma figura frágil, movendo-se devagar e com dificuldade,
carregando uma cruz de madeira pelas ruas de Roma, de pé sob um guarda-
chuva, para dizer mais uma vez sua mensagem, na voz profunda e decidida de
um homem velho, que acreditava com todo o seu coração.
55
A FASE ANTERIOR
AO CONCLAVE:
Os Boletins
Pré-Conclave, 1970-1977
Série Um — 1970
61
Série Dois — 1971
66
Série Três — 1972
Nenhum dos planos do Papa Paulo para alterar o governo da Igreja nem
ao menos chegou perto de um sucesso relativo. Sua pretendida renúncia seria
catastrófica, no que toca a seus planos de mudança decisiva.
Primeiro, o Colégio de Cardeais. A nova determinação de Paulo, que afas
tou os Cardeais de oitenta anos e mais da participação nos Conclaves, elimi
nou os grandes capitães da velha guarda: Ottaviani, Parente, Roberti, Tisse-
rant, Zerba. Mas uma grande maioria dos Eleitores seria ainda composta de
tradicionalistas: Cardeais como Samorè, Siri, Traglia, Vagnozzi. Há toda uma
hoste de italianos e a maior parte dos Cardeais dos Estados Unidos, Alema
nha, Espanha, Portugal, Irlanda, Inglaterra, Áustria e Polônia, que são tradi
cionalistas. A mesmíssima coisa pode ser dita de YüPin, da China, e Kim, da
Coréia, de Razafímahatratra, de Tananarive, e de todos os Cardeais africanos.
Os resultados das sondagens de Paulo, embora ainda incompletos, o con
vencem de que não podia persuadir número suficiente de Cardeais tradiciona
listas a aceitar seu plano. A renúncia, nessas circunstâncias, seria o fim, certo
e rápido, de sua política pontifícia.
Culminando tudo isso, naquele ano haviam aparecido os primeiros genuí
nos sinais de séria revolta entre o clero e os leigos contra as novas leis “libe
rais” de Paulo em matéria de culto, as quais modificaram quase todos os as
pectos da vida religiosa católica. A ponta de lança da revolta é um Arcebispo
de mentalidade tradicionalista, coisa que Paulo considerava tão essencial mo
dificar: Mareei Lefebvre. Nos dias de hoje, os Arcebispos não fazem muitas
manchetes. Mas esse prova que é uma exceção.
A pregação de Lefebvre é que a versão revista de Paulo da missa romana
67
é inspirada por Satã. Acusa o Vaticano de ter sido infiltrado de comunistas e
ateus e corrompido pelos protestantes. É a voz, o foco e a nova substância da
facção tradicionalista da Igreja. E está-se equipando para criar um movimento
de retorno, na Igreja da Europa e das Américas.
Paulo, por seu lado, está tão consciente quanto Lefebvre de que a maior
parte dos católicos romanos não aprova suas novas formas de culto, nem o
caminho tomado pela teologia.
Pelo menos dois Cardeais extremamente poderosos odeiam Lefebvre:
Villot, o Secretário de Estado do Vaticano; e o Cardeal Garrone, francês co
mo Villot e Lefebvre. Esses dois insistem com Paulo para que continue como
Papa, de modo a combater Lefebvre e todo o movimento tradicionalista.
Por cima desses problemas, leves palhas trazidas pelo vento começam a
deixar Paulo inquieto sobre o progresso de seu plano para a transferência ma
ciça dos investimentos do Vaticano. Tanto o Cardeal Vagnozzi, chefe dafre-
feitura para Assuntos Econômicos (PECA), como o Bispo Marõinkus, chefe
do Instituto de Obras Religiosas (IRW), lhe apresentam informações perturba
doras sobre a administração dos recursos financeiros do Vaticano, nas mãos
do financista italiano Michele Sindona.
68
PA ULO CONSIDERA NOVA DA TA POSSÍVEL PARA A
RENÚNCIA, QUANDO AS NOMEA ÇÕES DE NO VOS CARDEAIS
DESLOCAM O EQUILÍBRIO DO PODER DO REDUTO DA VELHA
GUARDA. COMEÇAM APARECER OS PAPABILI
70
Série Quatro — 1973
75
Série Seis — 1975
O caso Sindona, com o qual Paulo andava preocupado, mas ainda espe
rançoso, assumia agora proporções desastrosas. Antes que esteja terminado, o
Vaticano terá perdido, conforme estimativas fidedignas, bem mais de um bi
lhão de dólares e muito de seu crédito, nesse grande malogro que os italianos
chamarão d’/7 crack Sindona. Informa-se agora a Paulo que Michele Sindona é
membro da Maçonaria. O conselho de Villot a Paulo é firme e claro: antes que
nossos prejuízos vão além de todo o nosso poder de medir e controlar, antes
que se alterem e nos destruam, vamos sair dessa confusão miserável.
Serão necessários outros dois anos, até que Paulo possa rearrumar as coi
sas. Enquanto isso, somente aquela desordem torna impossível, no momento,
a renúncia de Paulo.
Paulo percebe agora que as coisas que diz sobre a renúncia e sobre sua
morte, juntamente com o interesse generalizado dos Carde ais-Eleitores no fu
turo Conclave, puseram em ação várias providências pré-Conclave. Da parte
de alguns Cardeais dos Estados Unidos, surge uma iniciativa —ainda não com
preendida por Paulo, salvo quanto ao fato de que está em desacordo com seus
planos pessoais —de fotjar uma aliança entre Cardeais poloneses e alemães.
78
Já há, articulado, um pacto entre alguns Cardeais latino-americanos e ou
tros da Europa Oriental. Tal acordo é, algumas vezes, jocosamente menciona
do como o pacto do “Ostkardinalaat Latino-Americano” (pacto do Cardinala-
to Oriental —Latino-Americano).
E há a Nova Aliança, formada em tomo do Cardeal Leo Suenens, da Bél
gica, cuja motivação emana exatamente dos teólogos progressistas surgidos a
partir do II Concílio Vaticano. Tem o apoio de muitos bispos que, por sua
vez, encontram muito encorajamento nos chefes das principais igrejas não-ca-
tólicas. Gostariam de abrir a Igreja a toda espécie de influências —o governo
da Igreja, a atividade da Igreja, a doutrina da Igreja e o envolvimento dessa
Igreja, para a solução dos problemas sócio-econômicos.
É claro que ainda há os tradicionalistas, centralizados, sobretudo, na pró
pria casa de Paulo, o Vaticano, os quais pretendem contar com a lealdade de
muitos bispos e cardeais pelo mundo todo.
Todas essas facções - a Iniciativa Americana, os membros do Ostkardi-
rnlaat Latino-Americano, o grupo da Nova Aliança e os tradicionalistas -
têm um traço comum: a oposição aos planos de Paulo para a reforma do Con
clave e ao papabile favorito de Paulo, o Cardeal Sergio Pignedoli.
84
Série Sete — 1976
86
ESPERA-SE QUE O CONCLA VE SEJA COMPLEXO.
HÕFFNER, DE COLÔNIA, SURGE COMO POSSÍVEL CANDIDA TO
0 futuro Conclave 82 promete ser muito mais complicado do que qual
quer outro deste século, de que se tenha lembrança. Na medida em que as opi
niões dos futuros Eleitores e atuais fazedores de Papas vão chegando, com re
comendações sobre a política pontifícia que deveria ser seguida pelo futuro
ocupante do trono de Pedro, são elas analisadas e coordenadas numa epítome
geral. Parece não haver como se harmonizarem as diferentes facções —tão di
vergentes são seus pontos de vista e tão inseguras as condições econômicas e
políticas esperadas para os dez anos seguintes.
Aos poucos, as reações aos Documentos sobre a Situação e aos Relatórios
Especiais são reduzidas a um Documento de Política Geral. Para espanto de
todo mundo, e para satisfação de Villot, o consenso geral parece orientar-se
no sentido da escolha de um Papa italiano que não seja um homem da Cúria.
Todos tendem a considerar que o próximo papa deve ser previsto para um
pontificado de dez anos. Essa conclusão mais ou menos determina que a es
colha deverá recair num candidato com uma expectativa de vida e saúde cor
respondente a esse prazo.
A despeito dessa aparente concordância de opinião, permanece, no cen
tro das coisas, no Vaticano, a sensação de que os roncos e os movimentos
subterrâneos, dos quais lá se tem consciência, só se definirão no Conclave. A
possibilidade de uma arrancada por parte da mentalidade da “abertura para
os marxistas1’ e do Terceiro Mundo, exigiu dos conservadores um plano de
emergência na direção de um candidato pan-europeu. E, de fato, todos esses
que estão impulsionando a idéia de um candidato pan-europeu são, principal
mente, conservadores com uma tintura tradicionalista.
Mais de um Eleitor conservador, em principio pouco disposto a ser indi
cado como um papabile, revelou que concordaria em ser candidato em duas
circunstâncias. Primeiro, se assim pudesse desalojar a candidatura de alguém
apresentado pelos progressistas; ou, segundo, se pudesse frustrar uma tentati
va da Cúria para conseguir a eleição de um verdadeiro tradicionalista italiano.
Há uma terceira circunstância: embora ainda não seja cardeal, o Arcebispo Be-
nelli, atual Subsecretário de Estado e íntimo colaborador do Papa Paulo, será
cardeal antes da morte de Paulo. Para bloquear a candidatura de Benelli, mais
de um conservador estaria disposto a se ver indicado.
89
Série Oito — 1977
Isso é uma clara advertência aos Estados Unidos de que o Vaticano já to
mou sua própria decisão; de que os Estados Unidos deveriam respeitar o ideal
democrático de uma eleição livre, na Itália, que conduzisse os comunistas ao
poder, e que não deveriam interferir nos assuntos internos da Itália.
Em 19 de setembro, Paulo recebe uma delegação do regime comunista
da Checoslováquia, chefiada por Karel Hruza, Diretor do Secretariado para
Assuntos Religiosos, do Conselho de Ministros da Checoslováquia. Juntos,
Paulo e Hruza examinam novos acordos entre o Vaticano e aquele país, e Pau
lo está a caminho de conseguir maior liberdade para os onze milhões de cató
licos romanos do país e a suspensão da interdição em vigor sobre os quinhen
tos e quarenta sacerdotes sujeitos a uma lei de silêncio e inatividade, que lhes
fora imposta pelo regime comunista.
Quando o enviado pessoal do Presidente Jimmy Carter a Paulo VI, o ad
vogado de Miami David M. Walters, se avista com o Papa para uma palestra de
uma hora de duração, em 6 de outubro, as respostas e as observações de Paulo
a Walters são diplomaticamente orientadas, mas claras: Nós não somos contra
a participação marxista no governo, aqui ou em outro qualquer lugar.
Quando o programa de direitos humanos do Presidente Carter surge co
mo tópico das conversações romanas, as autoridades mostram-se cautelosas.
Afinal de contas, assinalam, Carter acaba de receber Julius Nyerere, da Tan
zânia, e o saudou como “um político soberbo, que detém a chave da futura
paz, da igualdade de tratamento e da liberdade na África”. O governo dos Es
tados Unidos sabe, naturalmente, que Nyerere: redistribuiu a metade da po
pulação camponesa; queimou-lhes as casas, espancou e matou aqueles que
opuseram resistência; não admite o direito de greve, nem a imprensa livre;
mantém mais de 7.000 presos políticos em cadeias imundas; e usa a tortura
e o assassinato para se conservar no poder sem uma oposição eficiente.
Se ainda há qualquer dúvida sobre a posição do Vaticano, Monsenhor
Virgilio Levi, Vice-diretor do Osservatore Romano, escreve na primeira pági
na da edição de 27 de outubro:
“O marxismo parece estar mudando e os católicos precisam que a Igreja
91
os ensine a julgar quando devem colaborar com os marxistas para o bem
comum...”
Os católicos devem ser instruídos de maneira tal que se tomem “sensíveis
à evolução sócio-política, onde tal evolução esteja ocorrendo, que sejam capa
zes de compreender aquilo que é válido, no que estiver sendo proposto,mas
capazes também de ser firmes na avaliação do que se desvia de Cristo e da ati
tude cristã diante da vida e da conduta...” . Assim, visando à colaboração com
os marxistas, a Igreja deve formar cristãos que estejam “prontos a colaborar,
com franqueza e objetividade, onde a colaboração seja requerida pelo bem
comum”.
O fato brutal é que, nas eleições parlamentares do ano anterior, os comu
nistas italianos conquistaram 34,4% dos votos. Os democratas-cristãos conse
guiram 38,7%. Os comunistas oferecem estabilidade, num país em que o po
vo, já de há muito, abandonou a idéia cristã de que o governo fosse o defensor
e o promotor do bem comum. O poder político na Itália —como em toda
parte - é visto como um meio de garantir o bem econômico pessoal dos polí
ticos. “Sendo assim, vamos aceitar o governo com marxistas”, conclui o po
vo. O Vaticano de Paulo está de acordo com isso tudo. Não há outro caminho.
96
PA ULO TEM RENO VADAS ESPERANÇAS DE EFETUAR
UMA MUDANÇA REVOLUCIONÁRIA
J06
Boletim Especial
Tradicionalistas 50
Conservadores 35
Progressistas 26
Radicais 7
118
109
O catalisador para essa situação que não conduz à vitória é a sempre cres
cente pressão dos bispos católicos romanos progressistas, na Europa, na Amé
rica Latina e, em menor proporção, nos Estados Unidos. Há a possibilidade de
uma aliança entre conservadores e progressistas, dando uma maioria simples
de 61. Nas idas e vindas das manobras eleitorais do Conclave, seria relativa
mente fácil a uma maioria simples de 61 arrebanhar os dezoito votos restan
tes, exigidos para a maioria de dois terços mais um.
Para eliminar essa possibilidade, os tradicionalistas (50) estariam dispos
tos a fazer um acordo com os conservadores (35), desse modo produzindo
mais do que a maioria absoluta necessária para a eleição. O ponto principal
sobre que os tradicionalistas se dispõem a entrar em acordo é o do caráter
eclesiástico do Papa seguinte —deveria ser um italiano, mas não um homem
da Cúria (isto é, não ser membro de qualquer Ministério Vaticano), nem um
romano (isto é, não deveria ser pró-Cúria em suas simpatias).
Se necessário, os conservadores consentirão em apoiar um europeu não-
italiano —o chamado papabile pan-europeu. Um candidato assim dividiria os
progressistas, reduzindo-lhes o número a, pelo menos, metade de seu efetivo
atual. Só em caso de extrema dificuldade e do perigo real de ver o Conclave
descambar violentamente para a esquerda, é que os tradicionalistas apoiarão
um candidato pan-europeu.
O mais provável candidato pan-europeu é um holandês, o Cardeal Jan
Willebrands. Tem 69 anos, o rosto redondo, usa óculos, esse holandês meio
calvo, que goza da confiança de tradicionalistas, de progressistas, de conser
vadores e de radicais — principalmente porque não ofende nenhum deles.
Pode ser uma garantia para a ortodoxia progressista, ao mesmo tempo que um
pai tolerante face à experimentação de arrojadas idéias progressistas. Durante
quinze anos, chefiou o centro de ecumenismo do Vaticano, o Secretariado pa
ra a Unidade Cristã. Cardeal já há nove anos, nomeado Primaz da Holanda em
1976, tem sido apelidado de “Holandês Voador” . Ainda atua no centro de
ecumenismo de Roma, enquanto viaja para exercer as funções de Primaz da
Holanda. Willebrands tem-se equilibrado com delicadeza entre as funções que
lhe cabem como Primaz da Igreja da Holanda, que se mantém praticamente
em cisma com Roma, e as de elemento do Vaticano, gozando da confiança
do Papa Paulo e de muitos progressistas italianos.
Surgindo mais e mais freqüentemente nas conversações como um possí
vel azar na corrida, há Giovanni Benelli. Apelidado por seus inimigos como
“Gauleiter”, “Cossaco”, “IlD uce'\ “Carrasco”, Benelli foi extremamente po
deroso como Subsecretário de Estado, sob Villot, e destruiu mais de um ni
nho de proteção política, de empreguismo, de favoritismo, na burocracia do
Vaticano. Foi Benelli o responsável pela remoção de Monsenhor Bugnini, em
certo tempo a mão forte do Vaticano nos assuntos referentes a liturgia e a
culto. Mesmo então, os amigos de Bugnini eram tão poderosos e os inimigos
de Benelli tão fortes que o Papa Paulo não pôde fazer nada pior contra Bugni-
110
ni do que o mandar como Delegado Apostólico para a Teerã do Xá, um posto
de escol na lista diplomática. Mas, pelo menos, foi ele alijado dc qualquer po
sição importante no Vaticano.
Esse episódio veio a ser o começo da queda de Benelli. Vulnerável como
sabidamente simpatizante do Arcebispo Lefebvre, em oposição a Villot, e
vulnerável como sendo aquele que derrubara Bugnini, como um simples Arce
bispo e auxiliar do Vaticano Benelli finalmente tornou-se a presa de seus per
sistentes e poderosos inimigos. Não havia maneira pela qual mesmo o Papa
fosse capaz de proteger a posição dele em Roma. Na verdade, somente a ação
inesperada e unilateral do Papa impediu Benelli de ser exilado e neutralizado
definitivamente. Paulo fez dele Cardeal e Arcebispo de Florença. O Papa con
cluiu que Benelli ainda teria uma oportunidade de voltar. Estava perto de Ro
ma, e teria um voto no Conclave. “É claro que Benelli verá seu dia chegar”,
disse Paulo a Villot.
Por instigação de Paulo, Benelli pôs-se em campo para reavivar a idéia de
uma Europa unificada. O sucesso nesse esforço poderá ser o último marco que
Benelli vencerá em seu caminho até o Pontificado.
A formação das coligações progressista e radical é de data tão recente
que nenhum dos Cardeais-Eleitores se destacou ainda como líder dos progres
sistas, ou dos radicais. As informações que correm em Roma parecem indicar
que um “azarão” é o principal organizador, tanto de progressistas como de ra
dicais. Embora ninguém tenha certeza, o nome de um Eleitor africano é men
cionado como sendo o líder progressista, ao mesmo tempo em que o de um
Cardeal anglo-saxão é referido como o do verdadeiro organizador dos radicais.
111
Boletins Especiais —
Da Morte de Paulo até
a Abertura do Conclave 82
Para o novo Papa que será eleito no Conclave, alfaiates do Vaticano pre
param três conjuntos de vestes talares: conjuntos de tamanhos grande, médio
e pequeno, compostos de batinas brancas; calçados brancos bordados com
uma cruz de ouro, solidéus brancos, sobrepelizes vermelhas, capas vermelhas,
estolas vermelhas.
“Nós também fazemos o voto e juramos que quem quer de nós, sob a
Providência Divina, que venha a ser eleito, terá por nós defendidos e pro
tegidos, para ele, os direitos temporais e espirituais e a liberdade da Santa
Sé. E, se necessário, que continuaremos, para sempre, defendendo esses
direitos e essa liberdade.
120
“Eu,--------------- prometo e juro desempenhar meus deveres com dili
gência e religiosidade, de acordo com as regras estabelecidas pelo Sumo
Pontífice e as normas traçadas pelo Sacro Colégio dos Cardeais.”
121
O CONCLAVE FINAL
A Tarde da Instalação
Na primeira tarde do Conclave 82, assim que todo o pessoal que dele participa
faz o juramento de preservar o segredo do Conclave, o Camerlengo tem umas
poucas palavras a dizer, antes que todos se reunam na Sessão Preliminar. Num
latim tranqüilo, distintamente pronunciado, diz simplesmente: "Meus Senho
res Cardeais, temos uns vinte minutos, antes de nossa reunião preliminar que,
como sabeis, será realizada na Capela Sistina. Comecemos nosso trabalho com
confiança na bênção e na orientação de Deus. Espero que vossas acomodações
estejam a vosso contento, e que nossas assembléias diárias no Auditório Nervi
sejam frutíferas e rápidas.” Lança os olhos sobre o jovem Monsenhor que está
a seu lado: “O Monsenhor estará sempre aqui, para vos ajudar em tudo que se
ja possível.”
Salvo em raras ocasiões durante as Sessões do Conclave, esse tom de voz,
medido e tranqüilo, é a regra não-escrita das conversações e da conduta do
Conclave. O tom é baixo. Sem pressa. Confiante. Sem paixão. Apenas insinua
do. Em contrário a isso, fora das Sessões, os Eleitores poderão se comunicar
como desejarem —com veemência, apaixonadamente.
Agora, quando o Camerlengo termina, os Cardeais começam a deixar a
Capela e se agrupam fora das portas principais. Ao fazê-lo, o sino do Conclave
toca com uma sonoridade aguda, em meio-tom; são dezoito horas e quarenta
e cinco minutos, agora. Em um quarto de hora, a reunião inaugural do Con
clave 82 estará sendo realizada.
Do lado de fora, no largo corredor, ladeado por paredes altas cobertas de
afrescos, o teto igualmente pintado, os Cardeais demoram um pouco. A maior
parte deles estudou a programação. Um ou dois perguntam ao vizinho que sig
nifica o toque do sino, mas acima de tudo como um meio de aliviar a tensão,
ou de quebrar o gelo. Os Cardeais Kand, Franzus e Ni Kan dirigem-se ao Ca-
125
merlengo, que parou para uma conversinha com Delacoste e Borromini. Os
três têm aJgo a perguntar ao Camerlengo. Delacoste e Borromini afastam-se.
Inclinando-se da altura que o torna desajeitado para poder ouvir os três Car
deais, o Camerlengo sacode vigorosamente a cabeça. Depois curva-se num
cumprimento na direção de todos, lança um rápido olhar de reconhecimento
a uns poucos rostos mais familiares, faz um sinal de cabeça ao jovem Monse
nhor seu assistente, que ficará e responderá às perguntas, e depois desaparece,
descendo o corredor para seus aposentos, seguido por Kand, Franzus e Ni
Kan.
Dois ou três pequenos grupos de Cardeais continuam conversando. Cal-
der e Eakins, dos Estados Unidos, estão com Bonkowski, da Polônia. Um gru
po de latino-americanos — entre eles Lynch e Ribera —conversa, excitada
mente, com os Cardeais espanhóis. Adiante, num canto, Hopper, da África, e
alguns Cardeais da Comunidade Britânica — Hartley e Copley - ouvem o
que dizem Coutinho e os outros hindus, Chera, Desai, Constable. Os italianos
formam pequenos aglomerados de seis ou sete em torno de duas ou três figu-
ras-chaves —o velho e combativo Riccioni, o efervescente Lombardi e Dome-
nico, de Roma.
Aos poucos, na proporção em que todo mundo vai indo embora, o jovem
Monsenhor fica ali sozinho, o silêncio crescendo em tomo dele. Quando todos
se vão, ele abre uma das portas da Capela Sistina, para verificar ainda uma vez
que tudo está em ordem. Sorri, ao perceber o vulto leve ajoelhado do lado di
reito do altar: “Domenico”, murmura para si mesmo. “Quem mais poderia
ser!”
Fecha a porta silenciosamente e caminha pelo corredor abaixo, para o ga
binete do Camerlengo.
A Sessão Preliminar
Uma vez na Domus Mariae, onde estão alojados, nem todos os Cardeais
vão cear —o que, de qualquer maneira, é facultativo. Os grupos começam a
formar-se nos corredores e nos aposentos. A árdua atividade daquela longa
noite começa a tomar forma. Franzus desaparece, com Thule, Lynch e Buff,
entrando no apartamento de Thule, onde vão forjar a estratégia do grupo;
143
Kand é seguro por Garcia, o espanhol; Karewsky, da Europa Oriental, junta-se
a eles. Entram no apartamento de Kand. Ni Kan é visto com Motzu, o asiáti
co, entrando nos aposentos de Yiu. Há uma reunião de Cardeais alemães nos
aposentos do Cardeal Hildebrandt, da América Latina, Os mexicanos e alguns
dos outros latino-americanos espaiharam-se por diversos cômodos.
Pela altura das 9 horas, os empregados já deixaram a Capela. A Capela es
tá silenciosa. Há uma lâmpada ainda acesa. E uma pequena luz vermelha indi
ca o Tabernáculo, onde fica a Eucaristia.
Pela altura das 9:15, termina a ceia. Mais Cardeais juntam-se aos que já
se coordenaram nos diversos aposentos, fazendo reuniões, mandando chamar
outros grupos para informações, para contatos, para explicações.
Cerca das 9:30, o Camerlengo vai com seu jovem assistente inspecionar a
Capela da casa e certifícar-se de que o trabalho dos técnicos da vigilância foi
feito. Quando os dois entram na Capela, percebem um vulto ajoelhado, ape
nas visível à luz da bruxoleante lamparina vermelha diante do Tabernáculo. É
Domenico, Está ajoelhado sem apoio algum, a cabeça erguida, os olhos fecha
dos. O Camerlengo estaca.
Depois, ambos notam que uma outra pessoa está na Capela. É o Cardeal
Henry Walker, ainda sentado em seu lugar, ereto e imóvel, o corpo volumoso
enchendo a cadeira, as costas esticadas, a cabeça atirada para trás, o rosário
passando conta após conta através dos dedos. Todo mundo sabe que o Car
deal detesta ser encontrado rezando e, mais ainda, ser olhado enquanto reza.
— Mais tarde, —o Camerlengo diz baixinho ao Monsenhor. - Venha,
mos trabalho a fazer. —Deixam Domenico e Walker em paz. —Os eminentes
membros do Colégio dos Cardeais jamais cessam de me espantar, - diz o Ca
merlengo, sem falar com ninguém em particular, quando entra em seu gabine
te acompanhado do Monsenhor.
Durante esta longa entrevista com Lohngren, do outro lado do recinto fecha
do do Conclave três Cardeais estão sentados, no apartamento de Kand —o
próprio Kand, Karewsky e Garcia, o ibérico. Estão examinando rapidamente
o Relatório sobre a Situação, que Kand ainda não tinha visto.
Aos setenta e oito anos de idade, Kand é um veterano da perseguição na
zista e das prisões stalinistas. Cardeal desde 1975, um peão no jogo desespera
do que o Vaticano vem jogando há doze anos com o regime comunista de seu
158
país de origem, Kand resistiu a tudo isso; e, na terra natal, sua diocese está
agora mesmo enfrentando uma das mais odiosas perseguições anticatólicas. O
rosto cansado, os vincos profundos em torno da boca e dos olhos, o corpo frá
gil ainda ativo, mas constantemente cheio de dores, os tons de sua voz —tudo
isso fala de um profundo sofrimento e da continuada exposição à amarga ini
mizade.
Embora Kand seja Cardeal, os comunistas não permitirão que seja oficial
mente designado arcebispo. Sua tarefa consiste em chefiar seus milhões de ca
tólicos e dar-lhes alguma esperança e alguma direção.
Jan Karewsky, sentado no grupo, é outro tipo de homem. Tem apenas
sessenta e um anos, é animado, sutil, ativo, perspicaz, versado em leitura, de
sembaraçado, bem humorado; Cardeal desde 1966, chefia uma diocese impor
tante, está completamente consciente dos problemas com que se defronta a
Igreja, tanto do Leste quanto do Oeste —e não tem ilusões. Entre ele e Kand,
a diferença é mais do que uma diferença de idade. É uma questão de experiên
cia pessoal e de caráter. Karewsky nunca esteve preso. Nem sofreu nas mãos
dos agentes do KGB. Kand tem sido um mártir em vida. A atmosfera para os
católicos, em seu país, é inteiramente diferente da que prevalece na terra de
Karewsky: uma é relativamente suportável, a outra é mortal. E, antes e acima
da experiência pessoal, Karewsky é uma pessoa naturalmente otimista, expan
siva. Kand é um homem quieto, não é um lutador, mas é profundamente leal.
O terceiro homem do grupo, José Garcia, um Arcebispo de setenta e qua
tro anos, é Cardeal há sete. É um caráter forte, metido num corpo sólido. Pro
gressista em mentalidade, mas cauteloso em assuntos de dogma e de crença,
conservador nas questões de conduta moral, aberto a idéias novas, Garcia não
tem tolerância com esperanças sem base, Tem toda a explosiva altivez de seu
país, a franqueza direta que é característica de seus nobres ancestrais e a ca
pacidade de sentir simpatia pela fraqueza e de aceitar a transigência. Não o
atinge qualquer mácula quanto ao Partido Falangista, nunca namorou os co
munistas ou os socialistas, e tem uma reputação pessoal imaculada. “Se Gar
cia fosse italiano” , consta que o Papa Paulo disse um dia, “certamente que se
ria Sumo Pontífice.”
— E se nós começássemos pelo Documento de Política Gerall — diz Ka
rewsky a Kand. —Baseia-se em todos os outros Documentos sobre a Situação.
E passaremos da Estrutura Geral a determinadas passagens de cada Documen
to, individualmente, quando isso for útil ou necessário para informá-lo de
maneira satisfatória. Enchi a minha cópia de traços vermelhos. Sublinhei os
parágrafos do primeiro capítulo da Estrutura Geral que se referem às condi
ções internas do catolicismo romano e às perspectivas de expansão mundial
num futuro próximo. Vá passando os olhos neles, enquanto eu os examino
rapidamente, junto com o senhor.
— No que diz respeito às condições atuais do catolicismo, a análise pode
ser resumida em duas palavras: declínio e fragmentação. No decurso da déca
159
da subseqüente do II Concílio Vaticano, não houve apenas um sério declínio
no número de padres e freiras. Mais propriamente, o que decaiu, de maneira
funesta, foi a prática, o modo de professar-se a doutrina católica tradicional,
que em alguns lugares desapareceu.
— Quanto a pontos reveladores da prática: o uso de anticoncepcionais,
o aborto, as operações de histerectomia e de vasectomia, como meios de evi
tar a concepção; o divórcio e novo casamento; o casamento consensual; a to
lerância em matéria de pornografia; na prática de votar-se contra a consciên
cia e a lei católica; a aceitação de outras religiões como tão válidas quanto o
catolicismo; a recusa da autoridade magisterial do Papa e dos bispos; a negli
gência dos sacramentos — especialmente do sacramento da penitência e da
Eucaristia. Em todos esses aspectos, não há país rio mundo inteiro em que o
quadro seja animador. Mas o que é sobremodo sintomático é o óbvio declí
nio da crença religiosa realmente ativa, por parte do clero —cardeais, bispos
e padres.
De vez em quando, os olhos de Karewsky voltam ao exemplar do Docu
mento de Política Geral cheio de marcas, que está diante dele. Mas ele sabe
muito bem aquilo que está dizendo.
— E mesmo isso não é tudo, —continua o Cardeal fazendo o resumo pa
ra Kand.
— O Relatório analisa longamente o novo e bem arraigado movimento
visando a eliminar toda e qualquer distinção entre o sacerdote e o leigo; entre
a Igreja e o agrupamento social comum; entre o sagrado e o profano; entre a
terapia psicológica e a prática da devoção religiosa. Essa tendência, essa confu
são, é estimulada por uma nova geração de teólogos, os chamados teólogos da
liberação, que equiparam a missão da Igreja à atividade social e seu ideal reli
gioso à melhora das condições materiais de vida. Parece que esses novos teólo
gos abandonaram os princípios essenciais da filosofia cristã tradicional. Os
Cardeais Lynch, Manuel, Marquez e muitos bispos comuns estão profunda
mente envolvidos nisso.
— O que o senhor ouviu esta noite nos comentários de Lynch foi apenas
a ponta do iceberg. Homens como Gutierrez, Küng, Schillebeeckx, Laurentin
vêm habilmente agindo e persistindo em sua ação de dentro da Igreja, nestes
últimos doze anos, ou coisa assim. Têm trabalhado com tanta eficiência que
doutrinas básicas como a divindade de Jesus, sua Ressurreição, o perdão dos
pecados, o privilégio de Maria, a Virgem, o poder e a autoridade magisteriais
do Papa como sucessor de Pedro, e a vida depois da morte em outra dimen
são existencial que se denomina sobrenatural —tudo isso parece ter desapa
recido da mente e da visão desses teólogos! E das mentes de muitos - de mi
lhares e milhares —seres que têm influenciado.
— Essa massa de mudança e deterioração é impulsionada por algumas
poderosas forças desagregadoras. Há um grande movimento filosófico indivi
dualista, de acordo com o qual o ego de cada um representa a norma final e
160
ii única aceitável daquilo que é verdadeiro c daquilo que é certo ou errado,
para cada pessoa. O exemplo católico romano mais importante é o movimen-
; tu católico carismático. Esse movimento não apenas visa a desintegrar a Igre
ja estabelecida. O próprio narcisismo de seus adeptos os torna adequadamente
preparados para aceitar os embustes desses cristãos que procuram identificar
os esforços da Igreja com os objetivos do marxismo. Bem, isso não é exato em
relação a cada um dos carismáticos. Mas é verdadeiro, em relação ao movi
mento como um todo.
- Em seguida a essa filosofia individualista, há a subversão gerai, pelos
novos teólogos, da formação sacerdotal nos seminários. Todo o treinamento
\ dos jovens padres, agora, está completamente dissociado das doutrinas tradi-
l cionais e inclinado para o enfoque que enfatiza problemas urbanos, proble
mas populacionais, direitos políticos, desenvolvimento étnico e um tipo ambí
guo de fé e devoção religiosa que admite qualquer forma de crença religiosa.
Mas com um “estimulante” especial: em toda essa chamada liberdade, a cren
ça tem que se adaptar à teoria política específica denominada “socialismo
democrático” . Küng, Lynch e essa turma reaparecem no quadro, a esta altura.
Os autores dos Documentos não vêem diferença intrínseca entre esse socialis
mo e a estrutura de qualquer regime comunista regular. Como disse Santiago
Carillo, o líder do Partido Comunista Espanhol, em novembro de 1977, não
há diferença fundamental entre um eurocomunista e um socialista. E o senhor
c eu, meu querido Kand, podemos ver melhor do que a maioria o que é que o
futuro reserva, se semelhante tendência, no final, sair ganhando. —Kand le
vanta as sobrancelhas e encolhe os ombros.
— Quanto à expansão do catolicismo romano num futuro próximo, a Es
trutura Geral diz, em poucas palavras, que não há esperança à vista, agora ou
nesse futuro próximo —até o ponto em que. humanamente, são capazes de
julgar - de qualquer rápida ou generalizada expansão do catolicismo —ou
mesmo do cristianismo —na África, China, Sudeste da Ásia, índia ou nos paí
ses islâmicos. Nesse ponto, ninguém discorda. A conclusão é unânime. Os Do
cumentos sobre a Situação, de 9 a 11, deixam isso claro.
Karewsky procura uma frase na Estrutura Geral e logo a encontra:
Angélico tinha ido procurar seu velho amigo, o Cardeal Domenico. Domeni-
co dissera a Angélico que o apanhasse na Capela, se precisasse dèle. Quando
os dois vão saindo, passam por Walker, ainda sentado, teso, em seu trono.
— Está nos vendo? —murmura Angélico.
— Como numa resposta, Walker abre os olhos, encara-os por um instan
te, depois levanta a mão direita e faz no ar o sinal da cruz. Seus olhos de novo
se fecham.
— Provavelmente, essa é a bênção dele, —Domenico diz baixinho, com
suavidade.
— Isso seria novidade, — responde Angélico sem rancor, quando alcan
çam o corredor. —A proprósito, não há motivo especial para esta visita, além
da obtenção de um pouco de orientação pessoal. - Chegam ao apartamento
de Domenico e sentam-se um em frente do outro. Angélico fala calmamente.
— Acabei de ser tocado outra vez por alguma espécie de mão invisível,
negra, Pai, e meu espírito ainda está tremendo, por alguma razão impenetrá
vel.
Há anos que Angélico encara Domenico como “Pai”. O cardinalato de
Domenico, que lhe foi conferido depois do de Angélico —quando este esta
va com cinqüenta e dois anos e Domenico com sessenta e quatro - não alte
rou coisa alguma entre esses dois homens. Agora, Angélico quer explicar por
que é que se sente inquieto.
— Tivemos uma conversa ligeira, — prossegue Angélico, —os africanos
e eu. E, no final, uma sugestão - uma simples sugestão, repare bem, nada
mais, e até mesmo uma sugestão honesta, feita por Azande —trouxe de volta
todos os meus velhos temores. Lembra-se?
Domenico iembra-se. Conhecia esses temores. Desde que Angélico viera
para o Vaticano, a chamado de Paulo VI e que fora trabalhar com o Papa,
Domenico passara a ser um receptor regular de suas confidências —a maior
parte delas a propósito de seus temores. Angélico fora um favorito de Paulo
e durante dez anos, até que se tomara demasiado vulnerável para continuar
no Vaticano, tinha trabalhado como ajudante da Cúria. Sem recear aquilo
que as pessoas pudessem pensar a seu respeito, Angélico fora usado por Paulo
187
VI para promover algumas das mais sensacionais mudanças jamais vistas nos
mais altos escalões da burocracia vaticana. No Vaticano, quando os inimigos
que se consegue fazer são centros de poder individual tão bem estabelecidos
como o venerável Cardeal Ottaviani —homens cujas opiniões têm muita in
fluência até no presente Conclave, apesar do fato de que já estão “aposenta
dos” —não se consegue dormir facilmente.
Os dias de Angélico no Vaticano não foram, pois, dias felizes. Mas, em
alguns aspectos, foram bem inebriantes. O poder é inebriante. E corruptor.
Angélico aprendeu esta grande lição, dolorosamente.
— O senhor não acha, acha, —pergunta-lhe Domenico, —que há alguma
possibilidade de que seja escolhido para indicação? Acha?
Angélico começa a sacudir a cabeça, depois pára:
— Não exatamente, Pai. —Contrai as sobrancelhas, intrigado. —A menos
que Thule sabote, realmente, a Política Geral e comece uma corrida para a di
reita. Nesse caso... —depois, interrompendo seu solilóquio e voltando a olhar
para Domenico. —Não, Pai. Não é tanto esse perigo. — Agora seu rosto não
tem mais a expressão intrigada, como se ele tivesse deixado de lado um pro
blema desagradável. — Fui formado e treinado para lidar com essas coisas.
Não. É apenas o velho fantasma. Nunca pensei que pudesse me deprimir tan
to.
Angélico passara por uma profunda crise pessoal, em seus primeiros doze
meses no Vaticano. Foi uma crise que poucos de seus confrades e nenhum de
seus subordinados podiam adivinhar. O jovem monsenhor que ele era então
parecia tão cheio de força, tão seguro de si, tão implacável e objetivo, quando
se tratava de decisões concretas sobre questões pessoais e de implementação
de política. Mas o súbito acesso ao poder, o contato diário com todas as prin
cipais peças no vasto tabuleiro de xadrez sobre o qual o Vaticano faz o jogo de
nações com a política, com as finanças, com a religião, com dinastias pessoais,
com os interesses mundiais da Igreja: tudo isso, aliado ao profundo envolvi*
mento que tinha na elaboração, na apresentação, na organização e na imple
mentação de variadas decisões do Papa Paulo VI - fora o peso dessa responsa
bilidade que provocara a crise.
Angélico não conseguia harmonizar aquele profundo e pesado envolvi
mento com suas atitudes anteriores. Não podia voltar facilmente todas as
noites às suas devoções particulares, depois de ter passado o dia na violenta
interação de personalidades, de manobras de poder, de problemas mundiais,
de ciumadas mesquinhas, de casual corrupção e de franca hostilidade que seu
trabalho acarretava.
Domenico o ajudara a atravessar aquela primeira crise; mas sabia que as
feridas de Angélico eram mais profundas do que ele próprio suspeitava.
— Que é, exatamente, que o incomoda agora —ou sabe mais ou menos
o que é? —pergunta Domenico, depois de uma pausa.
— Pai, é apenas uma extensão do meu velho problema. No que me diz
188
respeito, minhas crenças e minha devoção pessoal a Nosso Senhor exigem
que eu acredite que qualquer das minhas ações poderia ser ou deveria ser —
não ditada pelo espírito de Cristo, como nos recomendam os velhos livros —
mas precisaria ser praticável inteiramente pelo próprio Jesus, como suas pró-
rias ações. O senhor costumava dizer : de que outra maneira pode Jesus ser
universal? Não é através desse caráter em nossas ações? E de serem assim
as ações do maior número possível de seres humanos? Para que suas ações
sejam homogeneizadas e assimiladas às ações e ao comportamento de Jesus,
a tal ponto que sua graça possa tomar suas todas as ações dessas pessoas, na
verdadeira ordem do efeito moral e da graça sobrenatural? Isso significa a
constituição do corpo místico de Cristo em sua dimensão integral, o senhor
costumava dizer.
— Bem, a simples menção do poder central da Igreja de Cristo em direta
relação comigo —até mesmo naquela pequena conversa com os negros —isso
me fez estremecer! Como pode um Sumo Pontífice salvar sua alma? Ter o es
pírito de Cristo, é o que quero dizer? E isso se aplica também aos que traba
lham perto dele, como eu tive que trabalhar e como provavelmente terei que
fazer de novo. Mesmo na encantadora Turim, ou em Florença, ou Veneza,
acho difícil, mais difícil cada dia que passa. —Angélico está atacando direta
mente o problema central da “Igreja de Constantino” —a mistura do poder
mundano com a Igreja e do Poder da Igreja com os negócios do mundo.
— 0 poder não agrada ao senhor?
— Não, Pai. Não agrada. Pensei que agradasse. Não agrada. Absoluta
mente.
— Muito bem. Vamos falar francamente. Não seríamos sinceros, se não
admitíssemos que o poder aqui em nossa Roma é exatamente como o poder
em, digamos, Washington, em Moscou, em Pequim, em Zurique. Tal como
acontece em Washington, o poder repousa, aqui, num código de ética, numa
fé racionalizada, expressa em dogmas deste sucesso mundano. Tal como em
Moscou e Pequim, nosso poder vibra com uma paixão vinda do coração, uma
motivação espontânea e emocional, que nos dá tantas razões para viver como
para morrer. E, é claro, esse poder que existe em Roma, o poder da burocra
cia, submete todo mundo a um mecanismo impiedoso, impessoal e, às vezes,
até mesmo maligno.
— Sim! Sim! — Angélico apreende o pensamento do outro homem. —
Exatamente! São essas forças que considero quase demoníacas. São demasia
do cegas para terem piedade, grandes demais para serem controladas por al
guma coisa tão insignificante como a ambição pessoal, demasiado fascinantes
para serem deixadas de lado pelo destino prosaico da simples sobrevivência.
Quase demoníacas! Porque tais forças não fazem distinção entre o certo e o
errado, não tomam conhecimento de tudo aquilo que é fraco, não têm tem
po a perder com sentimento, constantemente forçam a inteligência a consul
tar o resultado final da auditoria de cada ano, ditam as decisões políticas de
189
acordo com a pergunta inexorável "citi bono” (quem é que vai lucrar com es
ta medida?), consideram a morte como sendo um erro, e vão rasgando as lon
gas e brilhantes avenidas de seus sucessos por sobre as insignificantes e dura
mente construídas carreiras e por sobre as personalidades de todos aqueles
que, por um momento, possam ser elevados com seu impulso, mas que são
inevitavelmente soterrados na esteira que elas fazem.
Angélico levanta-se e começa a andar de um lado para o outro.
— Deixe-me fazer-lhe uma pergunta, Pai. O senhor pode não querer res
ponder a ela. Mas está na minha mente. — Pára de caminhar e olha para o
chão. —Quantos membros do Colégio dos Cardeais saem de tudo isso sem da
no para o próprio espírito?
— Eu sei, —inteivém Domenico um pouco desalentado. —Eu mesmo fiz
o cálculo, de vez em quando. Homem por homem. Acho que se poderia dizer,
seguramente, que um mínimo de quarenta por cento dos Eleitores são crentes
firmes e genuínos na fé cristã. Acreditam que há um só Deus, que o Filho de
Deus foi e é Jesus de Nazaré, que Jesus morreu pelos pecados de todos os ho
mens e de novo ergueu-se vivo, depois de ter estado verdadeiramente morto;
que todos os que crêem em Jesus viverão eternamente com Deus, depois de
sua própria morte, e que somente através de Jesus pode qualquer ser humano
atingir éssa felicidade; que Jesus, antes de desaparecer da vista dos homens,
estabeleceu entre estes uma presença eclesial, para durar tanto quanto dure o
universo humano; e que essa presença eclesial está centralizada em tomo do
Bispo de Roma, que é e será sempre o único Vigário de Jesus, oficial e pes
soal, existente entre os homens.
— Outro grupo de Eleitores, mais ou menos uma terça parte do total,
não acredita, realmente, em nada disso. Fazem voto de lealdade a essas cren
ças, mas isso é apenas uma questão de palavras, embora encarem essa confor
midade exterior como necessária e valiosa. Afinal de contas, permitiu que flo
rescessem, como personalidades, e como forças que devem ser levadas em con
sideração. Para esses, sua posição de cardeais e suas funções de eleitores do Pa
pa têm o valor de cartões especiais de filiação a um clube altamente privilegia
do, de mística própria. E, nesse alto nível de poder, uma mística é extrema
mente útil para afogar os escrúpulos de consciência, ou para evitar a monoto
nia desse poder.
— No meio desses dois grupos há um mínimo de, digamos, uns vinte por
cento que esconde o jogo. Nunca estão ansiosos para mudar, mas também
nunca se mostram tão estreitos de mentalidade a ponto de lutarem por um
perpétuo status quo. Em teologia, conservadores, em política, abertos a uma
evolução gradual. Em moralidade, cautelosos. Em heroísmo, de pouco entu
siasmo. Esses são os que, de fato, não sabem, — Domenico frisa a palavra —
de modo que são os brandos, por serem prudentes agnósticos, que esperam es
tejam corretos os ensinamentos de sua fé. Provavelmente escolheriam morrer
antes de negar esses ensinamentos. Mas prefeririam continuar vivendo o maior
190
tempo possível, porque afinal de contas todos esses ensinamentos podem não
significar exatamente aquilo que parecem dizer.
Angélico está imóvel, encarando Domenico, no rosto a expressão da mes
ma perplexidade anterior. Mas já vai aparecendo nele um leve sinal de algum
alívio, também:
— Tantos assim têm a mesma crise em sua fé? - murmura ele.
— E alguns não conservam a fé. O senhor conserva. Fique satisfeito. Ago
ra acho que é melhor que volte a seus aposentos. Vai receber visitas. Se mais
tarde dispuser de algum tempo, chame-me ao telefone. Se eu não responder,
sabe onde me encontrar. —Domenico tem outras orações a fazer. Estará na
Capela.
— Enquanto isso, —Domenico levanta-se, —leve consigo este pensamen
to: seja quem for que se eleja Papa, seja a pessoa que for, o senhor, eu e todos
os demais conhecemos a realidade triste, mas simples. O novo Papa pode fazer
muito pouca coisa além de exercer a supervisão de desenvolvimentos que não
inicia nem dirige, e cujo fim raramente vê. A coisa é grande demais, para a
amplitude mortal de qualquer um. —Caminham lentamente em direção à por
ta do apartamento de Domenico. —Muito poucos Papas —e o senhor sabe
disso tão bem quanto qualquer outro homem —fizeram qualquer diferença
real no que concerne à substância da Igreja. Um Papa desses a Igreja consegue
uma ou duas vezes em cada quinhentos anos, ou coisa assim. E assim mesmo!
Domenico abre a porta e olha para a extensão do corredor, como se esti
vesse mirando algum salão imaginário, cheio de candidatos a Papa, presentes e
passados.
— Os melhores candidatos geralmente nunca concorrem à eleição. Os
piores raramente conseguem vencer uma. Os mais santos poucas vezes foram
eleitos. Os satisfatórios nunca passaram de bons administradores. Tivemos al*
guns realmente vergonhosos, os “Papas negros” . Mas, ha verdade, pouco dano
causaram ao patrimônio e ao bom nome da Igreja, fizeram um mal imenso a
inúmeros espíritos e o mais triste dos males a suas próprias almas Os mais sá*
bios -- a propósito, nem sempre os mais santos, —Domenico lança um olhar
a Angélico - puderam, no máximo e em seus melhores momentos, observar
cuidadosamente. Como um pescador poderia vigiar, esperando um leve movi
mento de mudança nos ventos, esperam uma mensagem do Espírito que im
pulsiona a comunidade dos crentes. E então, com muito trabalho, deslocam
o leme do estado uns poucos graus nesse ou naquele sentido, a fim de se ajus
tarem à nova direção.
Domenico, o sábio pai espiritual, conselheiro de tantos grandes homens,
falou a espécie de verdade simples que reúne todas as complexidades e todas
as ruidosas questões e que permite que as mesmas repousem, em silêncio, por
um instante apenas. Depois ele olha novamente para Angélico:
— Depressa! Vai-se atrasar. Mantenha contato!
— Quem já ouviu falar de um bolonhês que fosse um bom marinheiro
ou um bom pescador? — Angélico sorri satisfeito da caçoada que faz de si
mesmo e vai andando na direção de seus aposentos.
Domenico sorri ante a recuperação de Angélico, cruza de volta a soleira
de sua própria porta.
Em espírito, ambos voltaram às realidades do Conclave.
Por uns poucos momentos, Domenico fica ali parado. Depois vai até a mesi
nha de cabeceira junto à cama, olha o catálogo dos números, apanha o fone
e disca. Uma voz responde:
— Fala Uccello.
— Eminência! Domenico! O senhor pode me dar alguns momentos, an
tes de se recolher?
— Momentito, Eminência! —Domenico pode ouvi*lo falando a alguém;
depois:
— Imediatamente, Eminência! Imediatamente!
Domenico desliga, fica de pé um momento, pensando, depois senta-se.
Poucos minutos depois, Uccello chega.
— Pois bem, Eminência, em que está pensando?
Uccello tem sessenta e quatro anos, foi Bispo de Maleto, é Cardeal desde
1974 e agora ocupa um cargo numa grande cidade. A tarefa de fazer alguma
coisa por seus 4.106 sacerdotes, seus dois milhões de católicos, suas igrejas e
conventos, deu a Uccello um profundo conhecimento dos problemas sociais
com que se defronta o Vaticano na vida urbana de nossos dias. Sua cidade é
um microcosmo de todas as outras grandes cidades que têm população cató
lica. Tradicionalista moderado em sua teologia, ele está, não obstante, de'há
muito convencido de que algumas mudanças precisam ser feitas. Mas a trans
ferência para uma metrópole, saindo da calma de Maleto, deu-lhe uma idéia
muito mais urgente das dimensões do problema da Igreja.
— Paolo, — começa Domenico em tom de familiaridade. - Preciso ser
franco com você. Angélico acaba de sair daqui.
— Ah! — exclama Uccello em tom calmo, como se estivesse ouvindo a
solução de um enigma. —Appuntof Agora compreendo.
— Acredite-me, filho, não acho que compreenda, ou que possa com
preender inteiramente. Angélico não tem ambições, pelo menos não do tipo
que nos interessa a todos, presentemente. Mas talvez esteja enfrentando uma
crise grande demais. Digo isto como seu guia espiritual. Paolo, fale-me sobre
os Relatórios Secretos. — Uccello prende a respiração, subitamente apanhado
desprevenido.
— Bem, ao perguntar sobre os Relatórios, —continua Domenico, —não
estou falando apenas, ou mesmo principalmente, como guia espiritual de
quem quer que seja. Mas acho que eu deveria saber. No ponto em que estão as
coisas, é muito tarde e muito perigoso para um grande número, dentre nós,
192
ser apanhado de surpresa. Vocé sabe, suponho, que mais de uma surpresa é
possível amanhã? —A hesitação permanece no rosto de Uccello. —Creia-me,
acho que devo ser esclarecido. —Domenico mantém a pressão.
Uccello expele o ar dos pulmões como quem se rende. Aqui não vai ser
possível nenhuma negociação. Confiança é coisa rara nas circunstâncias, mas
Domenico é um homem raro, e Uccello julga que é necessário que ele saiba,
com urgência, o que está pedindo que the digam.
O telefone de Domenico interrompe. Ele ergue o fone:
— Prontol Sim, Sua Eminência... Não! Não. Ainda não. Na realidade,
Eminência, estou aqui com um amigo comum... Como é?... Bem, francamen
te, isso é precisamente o que estamos discutindo agora... Ao contrário, acho
que Sua Eminência deveria... Bem, traga-o também... Sim! Sim! Agora... De
modo algum, Eminência.
Domenico desliga o telefone e volta-se para Uccello:
— Ni Kan e Yiu estão vindo aí - não se preocupe! Eles têm conheci
mento desses Relatórios. Vão ajudar.
Num minuto ou dois, um leve toque na porta anuncia a chegada de Ni
Kan e Yiu.
— Sentem-se, Eminências. Os senhores todos se conhecem, creio eu. E
nesta noite, sou eu o ignorante. Fico calado,'mas cheio de pergu:itas.
Um dos grandes dons de Domenico é sua capacidade de pôr todo mun
do a vontade e de criar uma atmosfera de confiança e de calma. Rapidamente
põe Ni Kan e Yiu a par de tudo e depois volta-se de novo para Uccello:
— Francamente, — diz Uccello com um gesto desanimado das mãos,
não sei o quco Camerlengo vai dizer ou fazer. Sei que não quer que haja cir
culação dos Relatórios, nem de quaisquer notícias sobre eles. Mas, com as
devidas reservas, eis aqui o-que eu sei.
— Desde junho de 1977 que o Secretariado está de posse desses Relatô-
rios — quatro, para ser exato. Um sobre os Sovietes, um sobre a América La
tina, um sobre os comunistas italianos e um sobre as condições e as projeções
financeiras.
— Temos conhecimento disso, — Ni Kan faz-lhe um aceno afirmativo
quase como quem pede desculpas. —Mas também sabemos que existe um Re
latório preparado para o Camerlengo por ordens expressas dele.
Uccello está, evidentemente, surpreso, quando se vira inteiramente para
encarar Ni Kan:
— E o senhor sabe qual é o assunto dele?
— Sua Eminência o Cardeal Thule e os teólogos, —responde Ni Kan sem
pestanejar.
— Vi uma cópia, —acrescenta Yiu. —Acho que é muito importante.
— Assim, vamos começar por esse Relatório mencionado por último,
Eminência, —diz Domenico. Uccello não o viu. Todos têm os olhos fixos em
Yiu.
193
O Relatório, diz-lhes Yiu, é o resumo de uma proposta de estratégia ela
borada com base em contribuições dadas por vários teólogos europeus e ame
ricanos, alguns dos chamados “novos teólogos”. Tais contribuições vieram sob
a forma de anotações teológicas e começaram em 1972, ano em que os trinta
e quatro desses “novos teólogos” —entre eles os mais extrovertidos da última
década, Hans Küng e John Baptist Metz, da Alemanha, o holandês Edward
Schillebeeckx, Charles Curran e John L. McKenzie, dos Estados Unidos, Gre-
gory Baum, do Canadá, entre outros —emitiram uma Declaração sobre aquilo
que denominaram as “estagnações” da Igreja. Nessa Declaração, definiram
cinco caminhos para eliminar tal estagnação. Em resumo, da maneira pela
qual Yiu compreendia a coisa, esses teólogos estavam aconselhando todos os
católicos romanos a se organizarem de maneira tal que pudessem se infiltrar
dentro da Igreja, de onde forçariam o Papa, sua Cúria Romana e os cardeais a
introduzirem mudanças fundamentais.
A tática consistia em poder confrontar as autoridades com o fait accom-
pli, que não poderia ser desfeito. Tal coisa deveria ocorrer em tantas áreas da
fé, da moral e das práticas religiosas, que viria revolucionar totalmente a Igre
ja antes que a maior parte do clero e do povo leigo pudesse compreender o
que havia acontecido. Se, por exemplo, alguns bispos católicos pudessem ser
levados a ordenar mulheres como sacerdotes e a lhes permitir agirem como
sacerdotes, então esse fait accompli viria, na opinião deles, determinar a refor
mulação das atitudes do Vaticano.
Essa estratégia e essa tática deveriam ser aplicadas aos elementos mais
fundamentais da fé e da prática católico-romana, afetando os próprios Sacra
mentos, sem deixar elemento algum intocado. Deveriam ser apücadas, como
um teste, ao caso do celibato dos padres; e então, depois de ter tido sucesso
na abolição do celibato religioso como uma lei universal, passariam a aplicar-
se a todos os outros temas —a infalibilidade do Papa, o aborto, a homosse
xualidade, a intercomunicação com outros cristãos e assim por diante. E, afas-
tando-se por um momento da substância do Relatório, Yiu acrescenta:
— Sabemos que na Holanda e na França, e em outros lugares, padres
se casaram e, violando a lei da Igreja, ainda continuam em seus postos, nas fre
guesias em que os paroquianos os aceitam em sua condição de casados.
Depois do sucesso do teste feito com a questão do celibato dos padres, a
estratégia requeria a formulação de uma espécie de pacto de união com as
igrejas protestantes. Isso poderia ser conseguido passo a passo: deixando em
suspenso todos os dogmas definidos em relação à Virgem Maria (Assunção e
Imaculada Conceição); relegando a questão da infalibilidade papal a discus
sões posteriores e não exigindo que ninguém a professasse, agora, como artigo
de fé; declarando que os cristãos podem “acreditar” na Bíblia, negando ao
mesmo tempo que a Bíblia lhes conte coisa alguma da verdadeira história do
passado; declarando aberta a uma nova interpretação toda a questão da Pre
sença Real de Jesus no Sacramento da Eucaristia; permitindo o divórcio, as
194
medidas anticoncepcionais, a masturbação e a homossexualidade, sob certas
condições; declarando a vasectomia e a histerotomia formas legítimas de anti-
concepção, o sexo pré-marital permissível, sob certas condições; declarando
que o capitalismo não se pode harmonizar com a idéia de cristandade.
Dentro da Igreja haveria a exigência do desmantelamento da Cúria Roma
na, transferindo-se para os bispos, individualmente, em suas próprias dioceses,
todas as decisões que afetassem as respectivas localidades. Decisões mais im
portantes, afetando muitas dioceses e toda a Igreja, seriam tomadas por um
sínodo internacional, presidido pelo Papa. Haveria uma completa reestrutura
ção do Papado, indo da forma pela qual o Papa é eleito até a negação integral
de sua função primordial como Vigário de Jesus e Bispo de Roma, favorecen-
do-se algo assim como a função de um presidente de conselho de administra
ção, mas sem que a mesma se revestisse mais de autoridade pessoal e de infa
libilidade.
Yiu resume suas informações conferindo a agenda segundo a qual se con
seguiria tão vasta mudança:
1. Obter o controle dos negócios paróquia por paróquia, diocese por dio
cese, de modo que, finalmente, a maioria dos padres e dos bispos vies
se a estar de acordo com os objetivos do programa.
2. Obter o maior número possível de adesões entre os professores univer
sitários e de seminários, entre editores e redatores, repórteres e colabo
radores de revistas e jornais diocesanos.
3. As Conferências de Bispos, nacionais, internacionais e regionais, deve
riam ser objeto de especial atenção. Quanto mais fossem atingidos os
membros participantes de tais conferências, sejam vindos de todas as
partes de um mesmo país e, em alguns casos, sejam oriundos de mui
tas partes do mundo, mais rapidamente sua influência se espalharia.
4. Organizar reuniões, primeiro a nível nacional, depois em níveis inter
nacional e regional, das quais um número cada vez maior de padres e
bispos participaria juntamente com leigos. Nessas reuniões, seriam
expostos e discutidos os elementos de formulação do novo modelo
para a Igreja. Os encontros dos católicos carismáticos e de outros
cristãos, das Congregações Gerais das Ordens Religiosas, essas e outras
situações semelhantes seriam assistidas por “observadores” devotados
ao programa.
5. De determinadas reuniões, a níveis nacional e internacional, só partici
pariam padres e bispos. A idéia era tornar essa tática uma “bola de
neve”, até um dia em que pudessem realizar um encontro internacio
nal equivalente, quanto ao comparecimento de bispos —e, pelo me
nos, de alguns cardeais —à composição de um Concílio Geral da Igre
ja. Só que nesse caso não seriam a Cúria Romana e o Papa que convo
cariam tal Concílio. E essa seria a mais grandiosa variação da tática do
fait accompli, pois, diante de tamanha insurreição, que é que Roma
poderia fazer? Excomungar todo mundo? Ridículo!
Quando Yiu termina seu relato, Ni Kan acrescenta suas próprias observa
ções:
— O que nos impressionou — a mim, a Sua Eminência Yiu e a nossos
amigos — foi a freqüência e a importância com que o nome de Meu Senhor
Cardeal Thule, Meu Senhor Cardeal Lynch, Meu Senhor Cardeal Buff e Meu
Senhor Cardeal Antonello aparecem uma e outra vez nas páginas do Relató
rio. Não estou surpreso - nem os senhores ficariam —por encontrar Arceo,
de Cuemavaca, Helder y Camera, de Recife, Gerety, de Nova Jérsei, nos Es
tados Unidos, Hurley, da África do Sul, Enrico Bartocelli, de Lucca, John
Zoa, dos Camarões, e bispos desse tipo. —Esses homens são todos conhecidos
como bispos “liberais”. Mas o que surpreendeu Ni Kan foi encontrar a menção
de cardeais como estando envolvidos, e ele acrescenta que qualquer pessoa fa
miliarizada e alerta para as táticas usadas pelo governo de Mao, na China, vi
sando a desligar o clero chinês de Roma e a destruir a influência de Roma so
bre o povo, não se deixaria iludir pela falsidade e pelo propósito final desse
programa e dessa estratégia.
— Bem, agora, todos nós sabemos o que Thule pretende, - observa Do
menico, num tom tão mordaz que as outras três cabeças se voltam bruscamen
te, sem acreditar: Domenico raramente usa tom depreciativo em relação a
quem quer que seja, muito menos quanto a dignitários da Igreja.
— Os senhores acham, realmente, que eles estão tentando forçar um Con
cílio sobre o Papa e a Cúria? - a pergunta de Uccello é dirigida a todos.
— Olhe, Paolo, - Domenico está calmo e sério. —Isso já foi tentado mui
tas vezes, antes. Houve um homem chamado Marsilius, de Padua, que morreu
em 1343. Ele afirmava que um Concílio da Igreja era superior ao Papa. E, de
pois dele, John Gerson, o todo-poderoso chanceler da Universidade de Paris,
que morreu em 1429, tinha a mesma idéia. E depois tivemos aqueles galica-
nos, nos séculos XVII, XVIII e XIX, todos eles tentando difundir a mesma
coisa. Você sabe que, no ano de 1682, nada menos que sete arcebispos, vinte
e seis bispos e trinta e oito teólogos, todos franceses, declararam estar o Papa
à disposição —e sujeito à destituição - de um Concílio Geral? E diziam que a
autoridade e a infalibilidade do Papa eram apenas a autoridade e a infalibilida
de dos bispos da Igreja, quando você os põe todos juntos. O Papa Alexandre
VIII condenou todos eies. E hoje esses homens todos estão esquecidos, e
aqueles que ignoram toda a história da Igreja estão de novo fazendo a mesma
coisa. Se você ler história, vai encontrar uma porção de teólogos - Theodoric
de Niem, Theodoric de Vrie, Herman de Langestein e muitos, muitos outros
- todos hoje tão mortos, e esquecidos quanto os Currans e os Baums e os
Küngs e os Metz e os Schillerbeeckxs estarão dentro de cem anos.
— O que me aborrece é a presença de Sua Eminência o Cardeal Thule e
196
dos outros Cardeais desse lado da cerca. Isso já foi muito mais longe do que
eu imaginava. —Há um breve silêncio entre os Cardeais.
— Quando reúno esta informação àquilo que sei ou que ouvi sobre ou
tros Relatórios Secretos, - diz Uccello finalmente, quebrando o silêncio, -
não acho, realmente, que o Camerlengo saiba o que está fazendo! Ou está
querendo ser muito mais esperto do que convém.
— Idéias claras e precisas, ein? - É Yiu, com um lampejo de humor.
— Seriamente, meus Irmãos! —exclama Uccello com paciência, —seria
mente ! Os senhores dois —olhando para Ni Kan e Yiu —ao que parece leram
os Relatórios. Sua Eminência - falando a Domenico —não leu. Esses docu
mentos criam um problema e tanto, quando reunidos àquilo que acabamos de
saber do meu Senhor Cardeal Ni Kan.
O Relatório sobre os Sovietes, de fato, contém uma substancial e avassa
ladora proposta, que os Sovietes fazem ao Vaticano, partindo não só indireta
mente, através de seus fantoches na Checoslováquia e na Hungria, e também
diretamente, vinda de Moscou. Pacto de paz, aliança, acordo sobre desengaja-
mento mútuo —pode ser chamado de qualquer coisa que agrade.
Os Sovietes prometeriam maior liberdade para os sacerdotes, desmante
lamento de todas as organizações anticatólicas, a cessação de toda propagan
da anti-religiosa. Em troca disso, os Sovietes querem que o Vaticano permita
e, de um modo ou de outro, abençoe os esforços dos marxistas-cristáos e que
— no mínimo —cuide para que os católicos romanos nos países satélites dei
xem de alimentar a impressão de que as idéias marxistas são mais irreconciliá
veis com o catolicismo do que o capitalismo. Querem no mínimo uma mora
tória quanto a qualquer oposição e crítica franca por parte do Vaticano.
— Que acham que eles têm agora? —pergunta Ni Kan maliciosamente e
com uma amargura nascida da experiência.
— Bem, seja o que for. — Uccello continua. —O Relatório sobre os Co
munistas Italianos acompanha essas mesmas linhas, só que se refere, particu
larmente, aos comunistas italianos e, em menor proporção, aos comunistas
franceses. É um apelo feito pelos marxistas para a colaboração na unificação
do povo, visando a uma completa reforma econômica e a uma renovação
industrial e social desses dois países. É distintamente antiamericano, mas su
gere uma posição de não-alinhamento em relação á URSS. Em troca, prome
tem que os bons comunistas podem ser bons católicos. E vice-versa.
— Agora, acho que conheço o Relatório Latino-americano melhor do
que qualquer um aqui, — interrompe Yiu. — Os Cardeais Franzus e Thule
têm estado — estão — trabalhando sobre mim. Não sei quais são as fontes
desse Relatório, mas alguém reuniu uma coleção de declarações de padres,
bispos e uns quatro ou cinco Cardeais latino-americanos. Todas as declarp-
ções constituem reações e comentários sobre o conteúdo dos Relatórios so
bre os Sovietes e sobre os Comunistas Italianos.
197
- Quem deu conhecimento desses Relatórios — ou de seu conteúdo —
aos latino-americanos? —pergunta Uccello.
- Não. —Domenico responde como se tivesse acabado de ouvir uma su
gestão de alguém. —Não. Não é Giacomo. — O Arcebispo Giacomo Belli,
Núncio Apostólico na região, poderia ter sido, aos olhos de todo mundo, o
mais lógico suspeito, por causa de sua localização.
- Na realidade, não foi um latino-americano, —prossegue Yiu. ~ Os Re
latórios vieram através de missionários —padres e freiras —de El Salvador.
- De que tipo foram as reações e declarações? —pergunta Domenico.
- Na maior parte, favoráveis. Em determinadas condições, o clero lati-
no-americano concordaria com as mesmas propostas gerais do marxismo.
- Que condições?
- Apenas duas: que haja concordância por parte de nossos Irmãos Car
deais da Europa Oriental; e que semelhante aceitação, por parte do Vaticano,
de uma ampla aliança não destruísse imediatamente a posição econômica da
Igreja. Todos eles dão ênfase ao aspecto imediato na condição.
- Acha que Franzus e Thule viram esses Relatórios? —Domenico está
insistindo, agora.
- Acho que posso responder a isso, —intervém Yiu, —porque sei que
essas cópias passaram por Manilha, a caminho de Pequim. E, se foi assim, po
dem estar certos de que tais cópias estão em Moscou. E, se estão em Moscou,
podem ter certeza de que Franzus as viu. E se Franzus as viu, Thule as viu.
Domenico ainda não estabeleceu a relação, que está tentando entender.
Dois pontos o intrigam. Ou antes, faltam-lhe respostas para duas perguntas.
Primeiro, está o grupo de Thule contando com o efeito desses Relatórios pa
ra forçar a decisão do Conclave acima e além da Política Geral, sobre a qual
se tinha entrado em acordo? Essa idéia é grave. Segundo, por que é que o
Camerlengo não está transmitindo parte alguma dessa informação aos Elei
tores?
Uccello conhece o Camerlengo e seu caráter melhor do que a maioria.
- O Camerlengo está inteiramente confiante —pelo menos estava, esta
manhã ~ em que é mais que provável que um candidato da Política Geral pos
sa ser eleito sem muita dificuldade. Ou, falhando isso, algum bom pan-euro-
peu, como Lohngren ou Garcia, ou mesmo como Witz, pode ser indicado e
eleito.
- Preciso agradecer muito, muito a Suas Eminências. Acho que devemos
inferir que qualquer aliança entre Thule e Franzus procurará tirar proveito
desses Relatórios. —Domenico levanta-se. —Os senhores todos foram extre
mamente francos; sabem que não trairei o caráter confidencial das minhas
fontes. Por que é que não vamos todos descansar um pouco?
Yiu e Ni Kan já estão de pé e movem-se na direção da porta. Uccello é o
último a sair. Os dois asiáticos já se foram, quando ele se volta para encarar
Domenico:
198
— Diga-me, Pai, pode imaginar alguma circunstância em que teria que fa
zer uso, quero dizer, fazer uso publicamente dessa informação?
Os olhos de Domenico têm uma expressão grave:
— Só se viessem a ocorrer as mais absurdas das coisas.
— Compreendo. Considera essa possibilidade agora? Neste Conclave?
Amanhã, por exemplo?
Domenico vai até uma mesinha, sobre a qual estio seu Breviário e seu
Crucifixo.
— Estamos vivendo no mais extraordinário dos tempos, Paolo. Há um
estranho espírito em liberdade, vagando solto dentro da Igreja, não apenas
nas ruas da cidade, mas na chancelaria, na sacristia, no palácio do bispo, na
casa do Papa, até mesmo no próprio Santuário. —Faz uma pausa. —A fuma
ça de que falou o Papa Paulo, você sabe... —pára e olha para Uccello. Paulo
VI tinha falado sobre a “fumaça e as trevas de Satã penetrando na Igreja”. -
Clérigos de alta hierarquia, bispos, e cardeais, parecem mudar de rumo sem
qualquer aviso. - Depois, desviando o olhar: - cada um de nós deverá fazer
o que tiver que fazer. Você. Eu. Thule. Todos nós. Perante Jesus, responde
mos apenas individualmente.
Uccello percebe a mágoa e a determinação que há por trás do raciocínio
do homem mais velho. Vira-se para sair. Na porta vê que tem Domenico atrás
de si.
— Acho que vou fazer umas orações, Paolo.
“A religião já não tem mais funções reguladoras da vida social, nem iden
tidade associativa, nem legitimidade política. E isso ocorreu porque to
do controle social, socialização e identidade associativa estão racional
mente coordenados no ambiente impessoal e anônimo, inevitável nas
sociedades industriais e pós-industriais. Mais acentuadamente, os domí
nios da família e da fé pessoal constituem áreas recessivas: constante
mente invadidas e diminuídas por seu ambiente. E qualquer avaliação
serena nos diz que, com exclusão de uma volta mítica e impossível â Ida
de da Pedra, esse processo não pode sofrer reversão. Só pode continuar
avançando em sua tendência numa só direção.”
“No período que se aproxima, essa descrença cada vez maior, já um fato
consumado, vai-se tomar um problema agitado, dividindo a Igreja, pri
vando-a de muitas inteligências de boa qualidade e de muitos especialis
tas treinados, da mesma forma que de muitos elementos dentre a gente
comum. Já não haverá mais o antigo sentimento de uma discrepância
entre aquilo que se diz e aquilo que se sabe. Mais ainda, a posição do
Santo Padre passará, necessariamente, por uma severa revisão: a organiza
ção da Igreja e a hierarquia descendente da autoridade e da disciplina tor-
nar-se-ão mais diversificadas - para que possam sobreviver de uma manei
ra ou de outra. Grandes grupos de cristãos não-católicos buscarão aproxi
mar-se e tentar associação ou fusão com católicos, dessa forma tomando
necessárias adaptações no papel do Pontífice. A desromanização do cato
licismo romano, que é um fato desde a invenção do telégrafo, será acele
rada até que se complete. A Igreja de Constantino está-se despedindo dos
negócios humanos.”
Kand levanta os olhos. Há silêncio entre os três homens, por alguns mo
mentos. Depois, cheio de incredulidade, quase zangado, Kand diz:
— Mas, em nome de Deus, sobre que é, então, que Masaccio e Vasari es
tavam falando na reunião? Eles leram este material todo. Assinaram isto tudo
juntos, não assinaram?
— Que acha que Thule e Lynch e Franzus estão discutindo agora mesmo,
meu amigo? — diz Garcia, olhando-o inquisitivamente. —Os dois primeiros
realmente não sabem o que fazer e querem manter uma atitude firme. Essa
coisa de sustentar a posição. Mostrar em público a melhor face possível. O
que quer que o senhor prefira. Apenas uma boa vontade ignorante com uma
pitada de ambição pessoal. Os outros acham que sabem o que nós deveríamos
fazer. Estão correndo atrás dos modismos da época. Francamente, não sei que
atitude é mais idiota.
— Bem, Eminências, —Karewsky olha para o relógio, —é quase um quar
to para as onze. O Cardeal Kand pode ter esquecido, mas ele e eu temos que
comparecer a uma reunião. —Os Cardeais da Europa Oriental deve rio realizar
um encontro político às onze horas.
— Assim como e u ,—diz Garcia afavelmente.
Quando Thule volta a seu apartamento, encontra Buff, Franzus e Francís ain
da sentados. De volta do encontro com o Camerlengo, Thule tinha chegado a
uma decisão. Senta-se. Os outros permanecem calados.
— Estive pensando no clima da Sessão Preliminar, na tarde de hoje, —
começa ele, —e a mim me parece que, diante de nossa recente conversa com
Azande e os outros, teremos que decidir sobre um lance muito audacioso.
— De minha parte, parece-me, —diz Franzus, ~ que se não agirmos ra
pidamente, perderemos um certo impulso já configurado. Mais ainda, não
confio inteiramente na simplicidade e na amabilidade de Domenico- Angéli
co, eu sei —todos nós sabemos —é previsível. Mas Domenico! Bem, aí está
um homem que pode levar a gente jardim abaixo, todo sorrisos, todo conces
sões, todo simplicidade e desprendimento de sábio. E então, na hora em que
nos preparamos para elogiar o jardim, de repente é provável que nos encon
tremos do lado de fora, com Domenico rindo para nós através das grades.
—Rindo não, amigo, — acrescenta Buff sombriamente. - Rindo não.
Pior que isso. Oferecendo à Virgem uma prece de agradecimento!
~ Bem, seja lá como for, as coisas não chegarão a isso. — Thule está
cheio de uma tensa autoconfiança. Que é contagiosa. Os outros relaxam.
— Muito bem, — Buff torna-se prático. - Que é que está na nossa agen
da?
— Primeiro, — diz Thule, —quero que Sua Eminência aqui, —indicando
Franzus, —nos diga qual foi ou é o resultado final das manobras latino-ameri-
canas e do Ostkardinalmt, em que Eakins e Tobey e outros estavam envolvi
dos. Muita coisa depende disso. —O que Thule procura é atualizar-se no que
se refere aos esforços para forjar-se uma aliança entre os Cardeais latino-ameri-
canos e os Cardeais da Europa Oriental.
— Ê simples. É claro, —diz Franzus, —que o senhor sabe o que Eakins e
Tobey tentaram combinar. Acho, realmente, que Bronzino, Braun e o Camer
lengo estavam por trás daquilo...
— De fato, sabemos que estavam, Irmãos, —a observação de Buff é fei
ta com um levíssimo traço de cinismo.
— Seja como for, — Franzus continua, —eles supuseram que tudo esta
va arranjado. Que, na verdade, os Cardeais da Europa Oriental ficariam ao la
do dos latino-americanos —e vice-versa —apoiando um candidato da Política
da Estrutura Geral, uma vez que este fosse uma espécie de... como é que cha
marei isso? Oh, uma espécie de híbrido, um conservador que fosse progressis
ta e um progressista que fosse conservador. — Interrompe-se e por um mo
mento olha para os outros, em tomo. — Provavelmente está tudo naqueles
Relatórios, é claro. Não que eu os tenha visto. De qualquer maneira, não to
dos eles...
— 0 senhor não tem necessidade de vê-los, —diz Thule apressadamente.
—Uma confusão. Mas, continue. E quanto a Kand?
— Oh, ficou fora disso. Disseram-me que o deixasse de fora.
— Por que é que o Camerlengo e companhia queriam que ele ficasse de
fora?
— Ele não, —Franzus engole em seco. —Compreende, esse tempo todo
eu estive conversando com nossa própria gente... —faz uma pausa, olha para
Thule, —e aah... aah...
— Seja claro, Eminência!
— Seja! —Franzus dá ao “s” o som de um “z” germânico e isso diz aos
outros volumes inteiros. — Nesse meio tempo, por um outro caminho, che
guei aos latino-americanos. — Volta*se para Thule. —Devemos nos lembrar
dos bons ofícios de Menendez Arceo, nesse particular. Mais tarde, sabe? —
Bispo de Cuemavaca, no México, Menendez Arceo é um dos mais ostensivos
propagadores do movimento em prol do socialismo democrático. “Sou um
revolucionário social”, diz-se que o Bispo declarou abertamente. E foi cita
do como tendo dito que Chou en-Lai deveria ser canonizado como santo
da Igreja.
— E? —Thule insiste na pergunta.
— Eles concordaram em desviar-se da Política Geral, se lhes fosse aberto
um caminho viável. A questão é, poderemos nós abrir um caminho assim?
— Acho que sim. —Thule é definitivo. —Eis aqui o que proponho. Pri
meiro vou procurar Lowe e explicar-lhe que a coisa de que precisamos agora
não é do estilo pontifício pan-europeu. Isso, como sabem, foi considerado
como uma transição entre um Papado de feição italiana, tal como tivemos
até aqui, e um Papado realmente internacional, um Papado que fosse não-
nacionalista, não-congregacional, não-hierárquico, não-limitado etnicamente,
não-determinado em termos de geografia. E foi uma boa idéia. Mas temos
uma força nova, agora. Puxa! Que chance, livrar definitivamente a Igreja da
“Igreja de Constantino”... se é que posso dizer assim, paradoxalmente...?
— Nós compreendemos, Irmão. Acredite em mim! Nós compreendemos.
— Subitamente, Franzus toma-se arrebatado, enfático. — Nós compreende
mos até bem demais!
Thule continua animadamente:
206
— Conseguimos que Lowe concorde em nSo ser indicado. N5o! Não!
Acreditem em mim! Lowe será o primeiro a compreender. —Está reagindo à
expressão de descrença no rosto de Franzus.
— Muito bem, —continua Franzus. —Mas, e quanto a Yiu?
Thule, silenciosamente, faz que sim com a cabeça:
— Yiu, Eminência! Yiu como o candidato apresentado pelos progressis
tas como eu e por aqueles que são a favor de uma ampla e completa apertura
para o “Leste” ! —Thule está-se referindo ao grupo favorável à aliança com os
marxistas. —Yiu será nosso candidato de coalisão!
— De certo. — Buff está satisfeito. —Yiu seria perfeito. Atrairá muitos
votos europeus e italianos. Sua cotação com os africanos é alta, de modo que,
apesar da rixa com Azande, eles podem votar conosco com a consciência tran
qüila.
— E não se esqueça, —acrescenta Thule, —Yiu é, por natureza, conser
vador. Apenas, notaram todos, quando o impulso se transforma em empurrão,
ele pode agir tão rapidamente com a facção esquerdista como qualquer um de
nós. — A história de Yiu em seu país natal tem sido, realmente, desse jaez.
Quando o governo caiu em cima dos dissidentes, Yiu apoiou lealmente as
freiras e os padres que foram presos ou atacados pelas autoridades.
— Além disso, Yiu representa uma grande vantagem. Vai conseguir, au
tomaticamente, os votos de Ni Kan e Koi-Lo-Po e Lang-Che-Ning e os dos
hindus e sabe Deus que mais, em razão de todos esses —oh, esqueci o voto de
Nei Hao, vai conseguir esse também.
Buff olha para Thule:
— Acho que isso dá para resolver o assunto. - Empertiga-se e fica sério.
—É melhor que o senhor procure Lowe antes da Primeira Sessão, amanhã.
— Não se preocupe! Não se preocupe! Isso vai ser providenciado. —Thu
le reflete por um instante, depois acrescenta: —Pensando bem, acho que vou
pedir a Lowe para ficar pronto como uma possível reserva para apoiar a pro
posta de voto. Angélico... bem, nunca se sabe, realmente, não é? — Olha pa
ra Buff.
— Não, acho que não, —diz o anglo-saxão lentamente. —E agora que fa
lou nisso, que tal ter um reserva para o senhor mesmo como propositor do
voto?
— Como quem?
— Como eu!
Thule olha um momento para Buff.
— Sim. Suponho que sim. Nunca se sabe. Alguma manobra pode me dei
xar atado. O senhor? Muito bem. Pode fazer isso, eu sei.
— Certamente! Não tem nada com que se preocupar, —Buff está seguro.
— Então, se tudo está inteligentemente combinado, — Franzus levanta-
se, — ficarei de fora. O senhor propõe a indicação. Supõe-se que Angélico a
apóie —ou, se necessário, Lowe. É isso?
207
A voz de Thule eleva-se, numa advertência:
— Eminência, tenha cuidado: não é essa a maneira de conduzir a coisa.
Angélico... bem, ele pode querei se esquivar. Sempre haverá Lowe, como aca
bamos de concordar, ótimo. Mas tenha cuidado. Não vou começar propondo
uma indicação. Não, Eminência! Oh, não! Temos que esvaziar a Política Ge
ral. O que vou propor é uma outra política. Isso é que votaremos. Se não pu
dermos acabar com a Política Geral, não poderemos acabar com as indicações
da Política Geral! As coisas importantes em primeiro lugar! São os pontos de
debate, não os nomes, que decidem os Conclaves! Pontos de debate! Desta
vez — a questão do conservantismo, consagrado na Política Geral, contra a
questão da “abertura”, da apertura, da Igreja nova e aberta, da cristandade
aberta, do Pontificado aberto e da aberta salvação, como consagrado na Polí
tica de Coalisão f Percebeu?
— Ah! Compreendo! Melhor! Muito mais bem pensado do que eu tinha
imaginado! Mais alcance no raciocínio. Dessa maneira não cortamos nossas
amarras antes da hora!
— Exato!
— A propósito, —Buff está a ponto de sair, quando lhe vem o pensamen
to, —o senhor entregou nossos nomes ao Camerlengo, para garantir amanhã a
ordem em que teremos a palavra?
— Oh, sim. Está tudo em ordem. E lembrem-se, cada um de nós trata de
um aspecto ou questão. Meu Senhor Lynch tem sua própria idéia. Eu propo
rei as linhas gerais. O Meu Senhor Franzus aqui falará sobre como cristãos e
marxistas podem viver juntos —ele deve saber alguma coisa a esse respeito, e
quem pode contradizê-lo? O senhor, Meu Senhor Buff, o senhor terá que usar
sua posição de orador para destruir o que quer que seja que alguns oradores
da oposição tenham afirmado... E pensei que Meu Senhor Francis poderia
acrescentar o testemunho de...
Francis protesta amável mas firmemente, ao mesmo tempo em que se
levanta:
— Meu Senhor Thule, era melhor eu esperar, não era? 0 senhor entregou
meu nome para ser um dos oradores. Mas esta tarde, quando acabei de conver
sar com o Camerlengo sobre um outro assunto, o pobre homem estava tão
assoberbado para encontrar vaga para todos os principais oradores, que eu ce
di a minha prioridade. Além disso, achei que seria uma atitude demasiado
suspeita da minha parte, se fizesse questão dela. Ele insistiu comigo para de
sistir. “Pode fazer um discurso de apoio, mais tarde”, o Camerlengo me disse.
E sei que estava falando como se a Política Geral ainda fosse viável. Achei que
não poderia insistir no assunto, sem...
— Excelente! — Buff decide por todos eles. Thule sorri, aceitando a
idéia. Só Franzus reage, por um instante, de maneira diferente. Mas Francis
percebe:
— Meu Irmão! —diz ele, —não se preocupe! Nós, orientais,estamos ten
208
do a última palavra nos últimos cinco mil anos! Farei o melhor que puder! —
Depois, abre o rosto num sorriso, acena que sim com a cabeça.
Franzus hesita por um momento. Depois ele também abre o rosto num
sorriso e acena que sim com a cabeça. Algumas vezes Francis faz com que ele
se lembre daqueles espertos lavradores de sua terra natal, os quais ninguém
jamais conseguiu que fizessem alguma coisa que não quisessem fazer. Sempre
uma risada. Sempre uma piada agradável. Mas uma vontade igual ao granito.
Quando Francis passa pela porta, há gotículas de suor em torno de seu lá
bio superior. Aquela foi uma saída apertada —esse é o seu pensamento. Em
seus aposentos, ele fecha a porta, levanta o fone do gancho e chama Domeni-
co.
Buff, Franzus e os demais seguem para os próprios apartamentos, para
um pouco de descanso. Thule liga para Lowe e conversa com ele ao telefone
por uns vinte minutos. Depois se levanta e segue para o apartamento do Car
deal Yiu.
Quando Thule entra, Yiu levanta-se rapidamente. Seus movimentos são todos
muito ligeiros, mas não impetuosos, nSo tanto macios, mas sutis. Thule obser
va isso como alguma coisa que tem visto nos orientais. Yiu toma nas suas as
duas mãos de Thule e inclina a cabeça, o corpo ligeiramente curvado na cintu
ra.
— Meu Eminente Senhor Yiu, sinto muito importuná-lo a esta hora tar
dia. Temos um dia ocupado diante de nós amanhã... —Yiu inclina-se um pou
212
co mais e mostra seu bem conhecido sorriso de garoto. Mesmo quando con
duz Thule até uma cadeira de braços, sua atitude tem aquela qualidade ex
perimental que representa um oferecimento, não uma indicação de sua von
tade.
Thule senta-se. Não parece haver necessidade alguma de palavras, da parte
dele. Depois Yiu senta-se com naturalidade, pestanejando devagar, ainda sor
rindo, a cabeça inclinada sobre a mesa de trabalho. Fecha o livro de notas
diante de si, vira o corpo completamente, para ficar de frente para Thule. 0
Cardeal percebe o sorriso que permanece na boca de Yiu e nos pés de galinha
em tomo dos olhos do asiático —mas que não está dentro dos olhos dele. Es
tes pestanejam, observam, pestanejam.
— Eminência, — começa Thule, — acabo de me reunir, para consulta,
com alguns colegas que pensam como eu. Formamos uma coalisão. Porque,
tanto para mim, como líder de um grupo constituído principalmente de eu
ropeus, quanto para meu irmão Franzus, do Leste, parece vital que chegue
mos a um acordo, a fim de tomar mais fácil o trabalho do Espírito Santo...
À menção do Espírito Santo, Yiu faz um ligeiro aceno com a cabeça,
sorri mais amplamente e gesticula com a mão direita. Como quem concorda.
Embora pudesse estar querendo dizer coisa diferente, observa Thule. Mas
continua:
— Desejamos, como grupo, apresentar amanhã o nome de sua Eminên
cia para indicação. —Yiu não está sorrindo, mas ainda pestaneja. —Não até
a Segunda Sessão, naturalmente. Teremos todos que decidir sobre a política,
na Primeira. —Yiu está sorrindo de novo. —A política é tão importante, Sua
Eminência! Decide todas as outras questões, incluindo o candidato-eleito pa
ra ser Papa!
Sua última afirmação é mais uma pergunta. E Yiu de novo alarga o sorri
so, mas nada diz. Àquela altura, qualquer mudança na expressão de seu rosto
vale por um indício.
— Entendo então que Sua Eminência não faz objeção quanto a ser apre
sentada para indicação — eventualmente — como candidato da coalisão? —
Depois, como Yiu continue sem dizer nada, Thule prossegue. —Compreende,
Eminência, como candidato indicado, todos nós temos que lhe pedir que res
ponda a determinadas perguntas, de modo que a maioria fique conhecendo
seu pensamento... —ele se interrompe e olha inquisitivamente para Yiu.
Yiu desvia os olhos, ainda sorrindo suavemente. Fixa o olhar na mesa à
sua frente, mas é óbvio que está refletindo.
— É uma grande honra-... —pronuncia a palavra “honra” de maneira pe
sada, enfática, e levanta os olhos, ainda sorrindo aquele sorriso impessoal,
encontra o olhar de Thule, — ser escolhido, mesmo ser cogitado, Sua Emi
nência. — Silêncio. Depois continua. — Tenho apreço por Sua Eminência e
pelos Cardeais da Europa, de nosso Terceiro Mundo, e das Américas do Nor
te e do Sul. Mas, —baixa de novo os olhos para a mesa, —minha idade e mi
213
nha falta de conhecimento. —Faz uma pausa. Depois vira-se de novo, como
se tivesse tomado uma decisão. — Se nosso limão Cardeal Angélico tomar
parte, será tranqüilizador.
Thule anima-se:
— Precisamente, Eminência! Precisamente! Na realidade, eu — nós, eu
deveria dizer — temos isso em mente. —Espera por outra reação. Yiu sorri
abertamente para ele, outra vez. Isso deve ser bastante para Thule. Conse
guiu um assentimento. A conveniência exige-lhe que não insista.
— Contudo, - Thule apressa-se em tranqüilizar Yiu quanto a outro pon
to, —o que quero que Sua Eminência compreenda é que, se Sua Eminência
desejar, podemos deslocar a votação final para a Terceira, ou mesmo para a
Quarta Sessão. Isso vai significar mais um dia de Conclave, ou mais ou menos
isso, mas não importa! - Depois, como numa reflexão posterior, —há arran
jos que teremos que fazer, o senhor compreende... e, oh, é claro, o senhor
também, Eminência, seus próprios arranjos, também. —Nenhumpapabile en
tra na votação final sem ter combinado com amigo e oponente, a propósito de
determinadas condições que afetam tanto as linhas gerais da política quanto
os detalhes.
Faz-se agora um silêncio suave. Thule levanta-se sem pressa e Yiu faz a
mesma coisa. Inclinam-se um para o outro, cada um sorrindo à sua maneira.
Thule está quase na porta e a mão de Yiu está sobre a maçaneta para abri-la,
quando o asiático diz, como se aquilo fosse parte de uma conversa ainda em
curso entre eles dois:
— E os americanos... —Não é uma pergunta. Não é uma objeção. Nem
mesmo uma simples afirmação. Um pedaço de pensamento.
Thule tem o cuidado de manter-se na corrente:
— Deus Todo-poderoso caminha conosco e com eles. —Essa parece ser
a coisa mais apropriada e inócua, para dizer naquele momento.
Do lado de fora, no corredor, um pensamento inesperado vem à mente
de Thule: “Os americanos?” Os americanos? Quereria ele dizer, os cardeais?
Ou o governo? Ou os latinos-americanos? Ou quê? Olha de novo para a porta
de Yiu, fechada, e sacode levemente a cabeça, depois vai para seu próprio
apartamento. Não está, afinal, certo de haver entendido corretamente em que
posição está o asiático, ou o que irá fazer.
220
O Primeiro Dia
Uma daquelas manhãs romanas amarelo-douradas. Um céu azul sem uma nu
vem, cheio daquela luminosidade que só é vista aqui, nas províncias do Lácio
e nas Ciciadas. O sol dando aquele reflexo de ouro velho e polido aos casta
nhos da terra e às fachadas ocres dos palácios de Roma. Tudo ainda está ver
de, lá em cima no Pincio e na Vila Borghese. Além, no Trastevere, as pessoas
estão pendurando as roupas de cama nas janelas e gritando para os cafés e pa
ra os vendedores ambulantes de café, lá embaixo, pedindo os seus capocinos
matinais. O cortante vento leste, que sopra vindo do mar, abranda na medida
em que o sol se ergue.
Os guardas-notumos de serviço na Domus Mariae acabaram de ser rendi
dos pelo turno da madrugada. O suprimento de legumes e carne para aquele
dia já está sendo descarregado.
— Eh beh!, — murmura o carreteiro com tranqüila irreverência, —che
mangiano bene, i nostri illustrissimi principi! Andiamo! (Bem, que comam
bem, os nossos ilustríssimos príncipes. Vamos embora!)
— Mu andem/ (Vamos embora!) —responde seu companheiro, enquan
to pula para o assento do motorista.
Os três Cardeais cujos aposentos ficam no andar térreo, no nível do Pá
tio, são acordados pelo caminhão que se retira. Dois deíes mudam de posi
ção para dormir de novo. 0 terceiro, Yiu, senta-se e olha para o relógio, de
cide levantar-se.
Nos limites da área do Conclave, muito pouca coisa se move. O desper
tador do jovem Monsenhor o acorda exatamente às 5 horas. Imediatamente
ele telefona para os padres-confessores. Depois apronta-se para o dia de tra
balho. Quando são 6 horas, já rezou a missa, comeu alguma coisa no desje
jum e está indo para o gabinete do Camerlengo.
Quando abre a porta que dá para o corredor principal, ouve o som de
vozes vindo da sala de trabalho do Camerlengo. Numa decisão imediata,
bate na porta e entra:
— Bom-dia, Eminência! Posso-lhe trazer um pouco de café?
O Camerlengo já deve estar acordado há, pelo menos, duas horas. Bar
beado e completamente vestido, está sentado, diante da mesa de trabalho. Em
frente a ele estâo sentados os Cardeais Braun e Bronzino. Os três levantam os
olhos de seus papéis e olham rapidamente pára o rosto moço do Monsenhor.
No colo deles, sobre a mesa do Camerlengo e sobre mesas laterais estão espa
lhados papéis, documentos, listas de números. “As avaliações financeiras” , é
o pensamento do Monsenhor.
— Todos nós apreciaríamos um pouco de café, Monsenhor, —responde
o Camerlengo animadamente. Bronzino e Braun concordam de cabeça.
Depois de ter entregue o café aos três Cardeais, o Monsenhor recebe al
gumas listas para datilografar.
— A propósito, Monsenhor, vamos ter algumas visitas. Os nomes estão
sobre a sua mesa. Deixe-as entrar. Mas mantenha os outros todos à distân
cia por uma meia hora... — Uma batida na porta o interrompe. A porta do
gabinete externo é aberta. Ouvem passos leves, irregulares, e o jovem Cardeal
gago aparece, sorridente e de rosto descansado, à entrada do estúdio.
— Ah! Bom-dia, Eminência! —o Camerlengo é todo sorrisos para ele. Os
demais presentes cumprimentam cordialmente o jovem Cardeal, mas com uma
evidente curiosidade.
— Convidei nosso jovem amigo como um amicus cume — coisa que ele
tem sido e é, nos dois sentidos da expressão. Sabem, tem feito bastante tra
balho privado e confidencial para nós, através dos anos. — Depois, para o
Cardeal: — Venha, venha, Eminência! Sente-se. Estávamos exatamente come
çando. —Os outros Cardeais sentam-se novamente e a reunião prossegue.
— Antes que os nossos outros amigos cheguem, vamos entender a situa
ção como ela é, - O Camerlengo destranca uma gaveta da secretária, retira
um maço de papéis datilografados e o coloca junto à sua mão direita. —Eis
aqui como faiemos isso. Tenho aqui cópias únicas dos documentos financei
ros referentes a 1977/1978, e do orçamento previsto para 1979. As perspec
tivas desse relatório, como os senhores verão, são muito vantajosas para nós.
O material é apresentado à base da comparação com o pano de fundo econô
mico, social e político dos Estados Unidos e da Europa. Acho, nesse particu
lar, que as projeções e a análise são excelentes. —Enquanto ainda está falan
do, ele passa a primeira folha do documento a Bronzino. - Seja como for,
terão uma idéia geral da situação. Todo este material fica entre rtous, por en
quanto.
— Começamos com a situação dos investimentos partindo do outono
de 1977. - Todos esperam que o perspicaz Bronzino faça um exame cuida
doso e ele está apenas verificando o documento —Bronzino sabe mais sobre
222
0 assunto do que qualquer Cardeal no Conclave. Depois entrega o papel a
Braun, que só conhece alguns dos aspectos, e em seguida recebe a segunda
folha do Camerlengo. Em poucos minutos o processo está em pleno anda
mento. Cada vez que uma folha percorreu quatro pares de mãos, o último
homem a coloca virada para baixo sobre a mesa, do lado esquerdo do Camer-
lengo.
Quando a leitura está terminada, ele abre a gaveta da escrivaninha, põe
01 documentos lá dentro, fecha e tranca a gaveta, depois descansa os cotove
los sobre a mesa e baixa os olhos para o seu bloco de papel. Todos os presen
tes percebem, agora, que a saúde financeira do Vaticano depende da higidez
dos Estados Unidos.
— Suas Eminências, sem dúvida, podem agora avaliar a dificuldade —e
as minhas atitudes.
— Posso ver mais do que um simples perigo doutrinário na ação pro
gressista, —comenta Bronzino.
— Pensei, —continua o Camerlengo, —que poderia explicar tudo isso a
ele —a Thule, quero dizer —e assim sustar de vez o movimento.
— E? —pergunta de Braun.
— Oh! Ele parecia ver a mão de Deus, ou coisa equivalente, naquilo tudo.
- Uma pausa. —A mão de Deus, façam-me o favor.
— Bem, que parte de tudo isso explicaremos, daqui a pouco, a nossos
amigos?
— Tudo isso, mas em termos gerais. O bastante para que possam enten
der a gravidade que há no afastamento da Estrutura da Política Geral e/ou,
de uma estreita identificação com Washington. —Levanta os olhos, ansioso:
— Apresentamos isso sempre como uma medida temporária, naturalmente!
Temporária. — Os outros acenam afirmativamente com a cabeça. Abre-se a
porta do gabinete. Aparece o jovem Monsenhor.
— Nossos amigos estão aí? —pergunta o Camerlengo, a voz fazendo-se
ouvir no gabinete externo. —Sim, entrem, Eminências! Entrem! —O asiático
é o primeiro. —Meu Senhor Yiu, que bom que veio! Bom-dia, Pietro! —Ma-
saccio está, obviamente, com seu bem conhecido e sorridente bom humor
matinal. Cumprimenta Lowe, Lohngren e Vasari com igual calor. — Os se
nhores todos se conhecem. —0 Monsenhor traz algumas cadeiras de armar,
abre-as e todos se sentam.
— Agora, meus amigos, esta é, como sabem, a costumeira transmissão
de instruções aos prováveis candidatos, precedendo a Sessão. E achei que nos
sos colegas aqui... —olhando para Braun, Bronzino, Lohngren e o jovem Car
deal, —poderiam nos ajudar, rápida e plenamente, no processo todo. —Com
muita propriedade, ele lembra ao pequeno grupo que o objetivo dessas ins
truções, que têm sido uma praxe dos Conclaves desde os primórdios deste sé
culo, não é tanto a preparação dos papabili para calçarem, provavelmente,
as sandálias do Papa anterior, tanto quanto é o de lhes dar uma idéia dos fato
223
res econômicos e financeiros que governam as ações da Igreja em várias partes
do mundo —ações religiosas, diplomáticas e políticas, assim como eclesiásti
cas. Olha para o Monsenhor. —O Monsenhor lhes distribuirá alguns documen
tos que resumem nossa posição e os fatos, tal como este Ofício os vê. —O Ca
merlengo sempre se refere a si próprio como “o Ofício” ou “este Ofício”. Os
documentos são distribuídos aos quatro, papabili e aos demais.
O Camerlengo olha para sua própria cópia:
— Acho que agora tudo está claro.
Há silêncio, durante alguns minutos, enquanto os Cardeais examinam o
material recebido. O Cardeal Braun é cumprimentado pelas contribuições da
das naquele ano pelos católicos de sua diocese. Lowe quer saber quanto cus
tou ao Vaticano o caso Sindona. Mas Bronzino e o Camerlengo disfarçam,
quanto a esse ponto. Os documentos mostram as enormes transferências de
investimentos, em ações e propriedades, feitas da Europa para os Estados Uni
dos e empreendidas pelo Vaticano no final da década de sessenta.
— Portanto, meus Irmãos, esta é a situação, —diz Yiu, largando os seus
documentos. - Qualquer desvio acentuado do alinhamento político e diplo
mático com o lado atlântico porá em perigo nossa receptividade lá; e foi lá,
precisamente, que fincamos nossos maiores interesses. É esta a conclusão?
— Mais ou menos. Há sutilezas, é claro. —Bronzino mostra-se cauteloso.
—Mas isso pode ser entendido como um bom resumo.
— A mim me parece, na hipótese de ser isso uma política firmada, —ago
ra quem fala é o jovem Cardeal, —que então qualquer coisa fora de um Car
deal italiano favorável à Cúria como candidato —ou de um candidato pan-eu-
ropeu que a Cúria aceite - qualquer coisa fora dessas duas possibilidades fica
eliminada, a menos que queiramos cortejar um grande perigo. E quem quere
ria isso?
O Camerlengo joga o lápis na mesa, numa explosão emocional.
— Exatamente! Essa é a razão, Eminências! Está claro que é por isso que
um tipo qualquer de Política Geral é o aconselhável. Venho dizendo isso a to
do mundo. —Instintivamente, todos se voltam e olham para Yiu. Nenhum de
les fala. Yiu levanta os olhos e, ao falar, careteía. Ê o único papabile, ali, que é
inaceitável, nos termos do Camerlengo.
— Como se essa fosse a única razão contra a minha candidatura, Irmãos!
Vamos ser francos e realistas! Há também a minha idade, os senhores sabem
disso. E a cor da minha pele. Oh, sim! Isso tem importância —e não ajam co
mo se não tivesse. Podem imaginar o que os comunistas italianos e as dinastias
latino-americanas diriam se o Papa fosse um homenzinho amarelo? E o regime
do meu país! Isso também não é um fator? Mas não se preocupem. Jamais se
rei apresentado para indicação com probabilidade de sucesso. Não se preocu
pem!
— Mas temos que nos preocupar, Eminência, —o Camerlengo repreende-
o paternalmente. —Temos que ser realistas. E... —olhando em derredor, —to-
224
dos nós sabemos de que é capaz a fúria do Leste! —A referência a Thule não
diverte ninguém.
— Entendido! — diz Yiu, enigmaticamente. —Entendido! Não se preo
cupem!
— Então, tudo bem, —o Camerlengo levanta-se, seu propósito obviamen
te alcançado com a garantia dada por Yiu, —se já acabamos, estou certo de
que todos temos coisas para fazer, antes da missa das 9 horas. Quero agrade
cer a todos os senhores, Eminências! Muito, muito obrigado. Minha mente es
tá aliviada.
Quando os outros vão se retirando, o Camerlengo faz um sinal ao jovem
Cardeal paia que fique. Durante os serviços confidenciais que o moço fez para
ele e paia o Vaticano, demonstrou piometer muito, aquele rapaz. O Camerlen
go sabe que importante experiência aquele Conclave poderia ser para ele. Se
puder dar-lhe uma pequena orientação, a dará —e com muito gosto.
— Meu amigo, —confidencia, —temos, é claro, um plano alternativo —
se viesse a ser eleito um Papa antiamericano e se se tomasse imperativo cor
tar o laço atlântico. Mas eu não ia falar nisso agora, nem fariam isso Bronzi-
no ou Braun. Estão au courant, naturalmente. Lohngren nada sabe. Só re
correríamos a isso, seguindo esse plano alternativo, se ficar decidido ir até
o fundo do buraco — quero dizer, curvarmo-nos realmente à vontade do
Terceiro Mundo.
— Mas quem decidiria que a engrenagem toda iria, como o senhor diz,
até o fundo do buraco?
A pergunta do jovem Cardeal é, talvez, bastante natural. Mas, nessa ten
tativa de estimulá-lo, o Camerlengo a considera inadequada ao moço. Por
um rápido momento, seus olhos estreitam-se. Depois o rosto se desanuvia e
ele sorri com indulgência:
— Você, meu rapaz, é jovem demais para ficar sabendo todos esses ter
ríveis segredos! Vá-se embora! Deixe-me voltar a meu trabalho. Nunca o aca
barei a tempo. Paz!
O Cardeal sai, passando pelo gabinete extemo, inclina a cabeça para o
jovem Monsenhor e continua para o corredor. O Monsenhor levanta-se e en
tra para ver o Camerlengo.
— Se eu não soubesse das coisas, Eminência, —diz ele naquele tom irre
verente que um empregado de confiança usa com seu patrão, — diria que o
Cardeal não entendeu e ainda está intrigado com alguma coisa vital.
O Camerlengo, que está ocupado escrevendo, não levanta a cabeça. O
Monsenhor conhece o jeito dele e espera. Um sorrisinho esquisito aparece no
canto da boca do homem mais velho. Ainda inclinado sobre o bloco de escre
ver, ele pára, dá uma mirada no Monsenhor por debaixo das sobrancelhas. O
brilho de seus olhos é um sinal revelador do eu interior. Baixa os olhos outra
vez para a linha da escrita em que parou, diz muito secamente:
225
— O cio velho para a estrada, o filhote para o caminho barrento, com
costumavam dizer em Beham. —E começa de novo a escrever. A referência
à sua terra natal parece peculiar ao Monsenhor. O Camerlengo nunca men
ciona isso, nem qualquer assunto pessoal, quando fala a seus subordinados.
Aposentadoria? — O Monsenhor pergunta a si mesmo, quando sai de perto
do chefe. E, depois, outra pergunta a si próprio: será que algum de nós jamais
fica realmente adulto? Ou deixa, jamais, de ser o garotinho desse ou daquele
lugarejo em que nosso coração permanece sempre?
Por volta das 6 horas, Domenico também já rezou a missa e tomou café. Está
de volta a seu apartamento, quando Yiu aparece na porta. Veio diretamente
da reunião no gabinete do Camerlengo. Domenico sacode vagamente as mãos,
quando Yiu se desculpa pela hora matinal.
— Não é cedo para mim, Eminência, garanto-lhe. Não é cedo, absoluta
mente! — Olha para o rosto duro de Yiu. — Adivinho uma coisa. O senhor
foi abordado. - Yiu acena afirmativamente.
— Thule? —Yiu acena afirmativamente.
— Indicação ou... —Yiu acena afirmativamente.
— Antes ou depois da votação da Política?
— Depois. - Yiu mal abre a boca. Seus olhos são fendas estreitas.
— O senhor consentiu explicitamente em ser indicado?
— Sua Eminência entendeu que esse era o caso.
Domenico sorri levemente, ante a resposta de Yiu. Bem pode imaginar a
cena. Dois tipos de ocidentais falam, ou tentam falar, com orientais. Domeni
co reflete rapidamente. Aqueles que pensam que sabem o que os silêncios e
o laconismo do oriental significam. E aqueles que sabem que não sabem.
— Muito bem, Eminência. Eis aqui o que vai acontecer. O senhor será
indicado por Thule —provavelmente na Segunda Sessão. Ele terá que definir
uma política para seu candidato, antes de qualquer coisa. Deverá fazer isso na
Primeira Sessão e conseguir que seja aprovado. Depois indicará o senhor na Se
gunda Sessão. Angélico foi solicitado a apoiar a proposta. Irá levantar-se e fa
lar... mas não vai apoiar...
— Não vai? —Yiu ergue as sobrancelhas.
— Não. Então, quando Thule e seus seguidores perceberem que falharam
quanto a obter o apoio de Angélico, haverá provavelmente uma tentativa para
apressar a sua reindicação e a aprovação. E um velho truque do Conclave,
aliás, e Thule saberá que é a sua melhor chance. Fique quieto. Nunca recuse
direta e explicitamente. Acima de tudo, não fale, a menos que seja obrigado.
Não importa qual seja a tentação de fazer isso. Ou a irritação! Crie dificulda
des. Mas não se deixe envolver na confusão.
226
Yiu olha para Domenico, depois se levanta:
— Ni Kan deveria ser informado. —Yiu e Ni Kan são amigos íntimos.
— Ni Kan sabe.
Às 6:45 da manhã, Angélico telefona para Domenico. Thule passou dez minu
tos com Angélico, antes de ir dizer sua missa particular. Angélico está preocu
pado e não pode esperar para contar a Domenico.
- Sua Eminência Thule esteve comigo agora mesmo, — diz ele, no mo
mento em que Domenico atende.
- E?
- Pediu-me para apoiar a indicação de Yiu, e para unir os radicais a seu
grupo. E eu disse que sim.
- O senhor concordou! Por quê?
- Para ganhar tempo. Desejando ganhar tempo.
- Mas se dissesse “não” , ele ficaria bloqueado por mais uma hora ou
duas e durante a Sessão da manhã.
- Não penso assim. Há outros. Ou, pelo menos, um outro.
- Marquez?
- Sim. Ele seria um. De modo que o fato de eu dizer “sim” agora pelo
menos o impede de procurar por alguém mais que seja mais seguro do que eu.
=~ Faz-se silêncio entre eles, enquanto Domenico revê as várias alternativas.
Angélico é o primeiro a romper o silêncio:
- Podemos assumir o risco de deixar a coisa ir até uma votação de polí
tica na Primeira Sessão? —Seu medo é que Thule seja bem-sucedido quanto a
conseguir que o Conclave aprove a sua política. Uma vez que isso aconteça, o
papabile eleito teria que jurar a implementação de tal política.
- Vai ser apertado, —comenta Domenico.
- Até que ponto?
- Apertado demais para que se possa ficar de mente tranqüila! Mas não
será desastrosamente apertado —pelo menos isso é o que eu acho. Penso que
lempre poderei interromper a coisa.
- Mesmo uma precipitação?
- Sim. Acho que sim. Sim, sim. É sempre um jogo. Mas, de outra manei
ra, nunca esvaziaremos o “movimento Thule” . Pode ir crescendo e crescendo,
mesmo depois do Conclave.
- Bem, então...
- Não. Deixaremos que prossiga. Como dissemos.
- E depois?
- Inscreva-se para falar no começo da Segunda Sessão, —Domenico diz
a Angélico. —Dependendo do que acontecer na Primeira Sessão, decidiremos
o que fazer mais tarde, na Segunda.
227
— Mas, Pai, supondo-se que tudo se encaminhe rapidamente na Primeira
Sessão, e que eu seja chamado para apoiar uma indicação precipitada?
— Não vai chegar a isso. Andei verificando. Há, pelo menos, seis oradores
inscritos, oradores importantes. Thule é o último. Não se preocupe. Só chega
remos à votação da Política.
— O senhor mesmo não falará, Pai?
— Não.
— Por quê?
— Quero que essa corda seja o mais comprida possível. Temos alguns cor
pos pesados para pendurar nela. O mais longos, o mais seguros, o mais petu
lantes, o mais minuciosos em suas explicações que eles se mostrem, mais com
prida e mais forte será essa corda.
— E quanto ao Camerlengo?
— Até que ele veja, finalmente, que sua Política Geral está em ruínas,
nem mesmo começará a se recuperar. —Quando Angélico vai responder, Do-
menico interrompe. Alguém está batendo na porta dele. —Eminência, vá re
zar sua missa. E reze bem. Falaremos depois.
São 8:45 da manhã e o sino está tocando para a missa do Espírito Santo, na
Capela da casa. Nesta manhã, o celebrante será o Cameriengo e espera-se de
todos os Cardeais que estejam presentes, a menos que sua saúde o impeça.
Do lado oposto, na outra ala da área do Conclave, o encontro político
dos Cardeais latino-americanos está acabando. Foi realizado no apartamento
235
de Teofilo e lá também estiveram presentes Zubaran, Hildebrandt, Ribera,
Gris e o jovem Cardeal gago.
Ao soar do sino dispersam-se rapidamente. Alguns voltam aos próprios
aposentos, a caminho da Capela. Outros vão diretamente para a Capela.
O jovem Cardeal vai para seu quarto, ostensivamente para apanhar o
livro de reza e alguns apontamentos. Automaticamente, segura entre os de
dos o rubi da cruz que traz no peito, o que parece ser um gesto seu, habitual
e freqüente. Está refletindo. Aquela não é a melhor das manhãs para o car
deal. He teve um sonho naquela manhã", bem na hora de acordar —ou pelo
menos é o que lhe parece agora. Um daqueles incômodos sonhos repetitivos.
Não consegue se lembrar da seqüência —se é que houve alguma. Tudo que po
de recordar agora é uma perspectiva distorcida, em que alguma coisa delicada
e bela — uma borboleta, uma mariposa —flutuando numa porção de cores,
pousou em sua mão, ou perto dele, num jeito de intimidade. Tem na memória
uma sensação persistente, de fogo, de asas se amarrotando, de cores se dissol
vendo. É tudo de que pode se lembrar. Mas é profunda a sensação de perda.
Ele se apressa, em direção á Capela.
Lá dentro, com exceção de Patti e Morris —ambos se sentindo indispos
tos naquela manhã - todos os Cardeais-Eleitores estão de joelhos. O Camer-
lengo tinha começado a celebrar a missa. Há um ar de tranqüilidade e união
impregnando a Capela. Quando o jovem Cardeal se deixa escorregar para o
banco mais próximo, descobre - que está ao lado de Reynolds, da Oceania.
Uma emoção qualquer, espontânea, não-controlada, mas que não é violenta,
vai crescendo dentro dele. E, durante a missa inteira, fica com ele, como se
fosse a voz de um visitante gentil, pedindo para entrar.
De vez em quando ele faz coro, quando os outros Eleitores recitam as
orações da missa. Cada vez que diz em voz alta algumas daquelas palavras,
sente que o grande marco granítico que o tempo foi para ele até aquela hora
está agora se dissolvendo. A própria Capela abobadada transforma-se como
que num leve papagaio de papel, voando pelo céu na direção do desconhecido.
E todos os seus ocupantes, de alguma forma perturbadora, estão-se tomando,
diante dele, desconhecidos e estranhos. E o santuário, como Camerlengo ce
lebrando no Altar, é uma cripta cheia de sonhos, queimada pelo fogo das velas
do Altar e das duas tremeluzentes lamparinas vermelhas do santuário, perma
nentemente acesas, uma de cada lado. Ele segura o rubi da cruz peitoral e se
lembra de novo da recepção na Embaixada, três meses antes, na qual foi feste
jado e cumprimentado, depois introduzido nos aposentos particulares do Em
baixador. Lá o haviam presenteado com a cruz peitoral, pesadamente craveja
da.
— É especial, — dissera o Embaixador. — Mais tarde explicaremos
respeito dela.
E explicaram. Pedaços imprecisos de sua lembrança do sonho daquela
236
manhi flutuam-lhe na consciência e misturam-se com uma nova sensação de
pena pelo que foi feito por ele, e pelo que vai ter que fazer.
Somente quando o Camerlengo se vira, ao final da missa, só então o Car
deal volta completamente a si. São 9:40 da manhã. Ao levantar-se e fazer a
genuflexão, ele envolve num olhar o Altar, os bancos, os afrescos das pare
des e os Cardeais que o cercam, saindo num passo arrastado. De novo aquela
lensação de estranheza, de não estar mais a vontade. Houve tempo em que
todas aquelas coisas e pessoas costumavam estar próximas dele, intimamen
te próximas, como um véu de ar sagrado, como a intangível alegria do fogo
santo. Agora ele as vê distantes ou, talvez, seja ele próprio quem está distante.
Vira as costas e, junto com os outros, encaminha-se para a porta principal e
para os ônibus.
A PRIMEIRA SESSÃO
Koi-Lo-Po espera um pouco, até que tudo se acalme, depois limpa a garganta:
— Meu Reverendíssimo Senhor Buff!
Buff usa seu tempo para a costumeira prece diante do altar e quando se
vira para enfrentar os Cardeais tem, talvez, a expressão um pouco tensa, mas
aparentemente confiante. Como todos os anglo-saxões falando em público,
dá a primeira impressão de quem recita uma lição. Mas, na proporção em
que se anima com o assunto, toma-se mais descontraído.
— Há um ponto na vida de uma instituição, como na de um indivíduo,
em que seu passado representa tanta coisa —e tanta coisa penosa —que nada
será capaz de acalmar a dor profunda, nada amenizará aquele tédio terrível e
destrutivo que vem deste “sendo demasiado por si mesmo”, como Goethe cer
ta vez observou, nada poderá dar alívio, a não ser um rompimento total com
aquilo tudo em que se tomou. —Buff faz uma pausa e olha em tomo, para ge
rar um silêncio especial para o que se seguirá. Depois: —Para Roma, esse mo
mento está aqui agora. — Há algumas palmas. —Na verdade, muitos diriam
que já está aqui há bastante tempo.
Mais aplausos. Mas agora alguns cardeais estão fazendo comentários em
voz alta:
— Não precisamos que nos digam tudo isso.
— Soluções, por favor.
— Soluções!
— Nada de críticas, por favor!
250
Buff mantém-se calmo, experimentando o ambiente, enquanto passa os
olhos em tomo.
— Digo novamente, agora é a hora da mptura total! Admitir isto é ad
mitir a verdade. É enfrentar um fato cru. Esta burocracia que é o Vaticano.
Esta pompa que é o Papado. Mesmo esta augusta assembléia —nós, todos nós
aqui —estamos aqui não como servos de Deus, não como humildes imitadores
de Jesus lavando os pés dos mais despojados discípulos, mas como grandes
hierarcas, Príncipes, se podeis fazer o favor, Príncipes de uma Igreja dita a
Igreja do Carpinteiro de Nazaré e da vítima sangrante do Calvário, os mais
desprezados e condenados dentre os homens!
As objeções agora estão vindo de todos os lados, sufocando os aplausos,
os “I t a s Riccioni levanta-se de um salto:
— Este antigo e venerável Colégio de Cardeais tem sido objeto de respei
to e genuína reverência da parte de nossos piores inimigos, mesmo...
--Nossos piores inimigos, ein? —Buff corta a palavra de Riccioni antes
que ele possa terminar a sentença. Riccioni não está acostumado a ser inter
rompido, mas antes que possa retomar a iniciativa Buff continua: —Lembro-
me de ter lido numa biografia de John Milton, o poeta britânico, que durante
sua estada em Roma ele costumava assistir às produções teatrais do Papa Bar-
berini, no Palácio Barberini —como faziam todos os romanos e todos os Car
deais, em seus trajes luxuosos e com seus séquitos e criados e agregados. E foi
a visão de todos aqueles Cardeais católicos —seus gloriosos mantos escarlates,
seus arminhos, seu orgulho, sua arrogância, seus olhares desdenhosos, seu
comportamento, como uma casta de gente acima de todos os outros mortais,
todo o conjunto de suas presenças, tudo isso deu a Milton a inspiração para
aquela parte de seu poema Paraíso Perdido, na qual ele descreve o encontro
do Pandemônio —o Conclave de todos os Demônios e Diabos e Falsos Deu
ses. Vós vos lembrais? Lembrais, Meu Senhor Tobey?
Tobey está encantado. Levanta-se pela metade e sacode vigorosamente
a cabeça, como para reforçar tudo aquilo que Milton insinuou sobre os Car
deais romanos e seu Conclave. Ele concorda inteiramente com todas as coi
sas que o Cardeal está dizendo —mas por motivos muito diferentes dos do
Cardeal.
— Como, em nome do doce Jesus, —Buff está agora quase suplicante, —
como foi que chegamos a este ponto de aparente impiedade? Temos que per
guntar como?!
— Desejo, Eminentíssimo Presidente e meus Reverendos Colegas, —Va-
sari levanta*se calmamente, mas rápido, o ros^o tenso com o que alguns re
conhecem como ira, outros como constrangimento, —desejo protestar com
a voz tão firme e caridosa quanto me seja possível, contra o insulto que está
sendo lançado sobre o venerável e sagrado ofício de cardeal. Não porque eu,
uma pessoa sem merecimento, tenha sido escolhido por Deus para esse ofício.
Mas porque, de modo algum, isso ajuda nossas deliberações. Eu protesto, Meu
251
Senhor Cardeal. — Ele se senta, encarando firmemente Buff, que continua,
quase sem fazer uma pausa, ou mudar de tom. Mas Vasari é poderoso demais
para ser ignorado e as palavras de Buff mostram isso:
— Nem desejo eu lançar nenhum insulto sobre qualquer pessoa viva, ou
sobre este sagrado ofício. Eu, também, sou indigno dele. - Ele fixa o olhar
zangado de Vasari. — O ponto que estou salientando, ou tentando salientar,
o mais claramente que me é possível, é simplesmente este: a mentalidade de
nossos confrades não-católicos tem sido condicionada por aquilo que os Car
deais têm sido ou pelo que os Cardeais têm feito —não pelo que os Cardeais
pensaram e pensam sobre si próprios e seu sagrado ofício. —Aplausos e Obje-
ções ameaçam sufocar inteiramente Buff.
— Dignai-vos ouvir-me, Reverendos Colegas! Dignai-vos ouvir-me! Por
que nunca decidiremos adequadamente como abordar nossos irmãos afastados
de nós, a menos que nós nos lembremos de coisas que eles lembram...
— Eles não se lembram do Cardeal Mindzenty, do Cardeal Stephinac, do
Cardeal Slipyi? Por que é que dizeis que se lembram apenas dos maus e não
dos bons? —É Vasari de novo, a cólera e o aborrecimento agora indisfarçados.
— É claro. Mas é assim com os seres humanos. Um dos melhores e mais
famosos poetas e um homem verdadeiramente sábio disse isso melhor do que
eu jamais poderia dizê-lo: “O mal que os homens fazem continua vivo depois
deles.” E assim também é com a idéia que se faz de um Cardeal romano.
Vasari, ainda de pé, interrompe de novo, mas Riccioni domina ambos,
quando se levanta em explosiva impaciência:
— Acho, Meu Senhor Cardeal Buff, que vós sofreis de estranha fantasia
de que todos os não-católicos passam o tempo inteiro regozijando*se com os
nossos passados erros. Não poderia Vossa Eminência falar sobre o que nossos
confrades protestantes sabem, em vez de ser sobre aquilo que Vossa Eminên
cia sabe tão bem?
— Sim, Eminentíssimo Cardeal! Posso, na verdade. —Buff atira-se pela
abertura que, inadvertidamente, Riccioni lhe proporcionou. —Os irmãos de
nós afastados sabem a respeito do Cardeal Richelieu —de sua política cruel,
sua indiferença pelo sofrimento humano. Sabem sobre o Cardeal Cesar Borgia
— o incesto, o assassinato do favorito do pai no próprio colo desse pai. Sa
bem sobre o Cardeal Robert, de Genebra, famoso lanceiro por direito de nas
cença, massacrando toda a cidade de Cesena —seis mil homens, mulheres e
crianças —à testa de sua brigada de lanceiros bretões.
— Certamente, - continua Buff, —muitos Papas ocuparam-se com o tra
balho do Senhor. Mas outros — aqueles que o mundo recorda —conduziram
exércitos, comandaram armadas, empenharam-se em batalhas, acumularam
fortunas para suas famílias, usaram o poder do posto para arranjar casamentos
para as sobrinhas e construir as carreiras dos sobrinhos. Morreram em odor
de santidade. E morreram como ímpios. Em outras palavras, meus Veneráveis
Irmãos, este santo ofício de Vigário de Jesus e esta sagrada ordem de cardeais
252
burocratas e de clérigos têm merecido fundadas censuras. Nem o ocupante
do trono de Pedro, nem os meus Senhores Cardeais —a cujo grupo pertenço e
sinto orguiho em pertencer —podem encarar o mundo, em particular nossos
apartados irmãos, como se não tivéssemos uma herança de culpa.
— Nós escandalizamos todos eles. Perseguimos muitos. Conspiramos con
tra suas vidas e suas liberdades políticas. Massacramos suas populações. Fo
mos supervisores de suas torturas. Pilhamos-lhes os países e as cidades. Casti
gamos como qualquer ditador diabólico, ou como qualquer romano pagão.
E é isso que quero salientar —não pelos fatos em si, mas como uma explica
ção para aquilo que os nossos irmãos não-católicos pensam de nós, e —isto é
crucial - como um condicionador de nosso comportamento, ao nos voltar
mos para eles e sinceramente buscarmos união com eles, em Jesus Cristo.
— Vossa Eminência quereria que nós pedíssemos desculpas, suponho! —
Riccioni prossegue no duelo.
— Sim, quereria! Nós somos devedores de uma desculpa. Não uma expli
cação, mas uma dolorida expressão de nosso pesai...
— Membros da Igreja, —interrompe Riccioni, —certamente têm sido cul
pados. Todos nós lamentamos esse...
— Sim. Lamentamos também quanto a alguns de nossos Papas. Os irmãos
afastados de nós não podem, realmente, nos aceitar, a menos que reconheça
mos o quanto muitos de nossos Papas estiveram longe do comportamento de
representantes de Jesus...
Riccioni, Vasari e uma dúzia de Cardeais se levantam, todos protestando.
E é possível compreender as palavras de aiguns deles, na confusão de vozes.
A essa altura, o Presidente intervém:
— Meus Senhores Cardeais! Não há um de nós que não lamente os erros
passados. Agora, se Vossas Eminências permitirem que o Eminentíssimo Car
deal continue, Sua Eminência passará ao tópico seguinte.
— Agradeço-vos, Meu Senhor Cardeal-Presidente. A coisa de que preci
samos nos lembrar é que, se estivermos desmoralizados, se os homens não
aceitarem nossa mensagem, se nos suspeitarem de deslealdade, se nos conside
rarem instrumentos do mal, se se recusarem a aceitar nossa afirmação de que
somos os colaboradores do Vigário de Jesus, o sucessor de Pedro, se menos
prezarem nosso Conclave e a mudança de Papa feita através dele —seja o Papa
quem for —sabemos que têm boas razões para se mostrarem temerosos, sus
peitosos e mesmo depreciativos.
— E quanto aos Papas e Cardeais que foram santos e mártires? Por que é
que não os mencionais? —Vasari põe-se de pé outra vez.
— É certo que houve santos entre eles. E mártires. Mas houve também os
depravados, os homens cruéis, os homens avarentos. Alguns orientaram suas
ações pela astrologia. Alguns compraram sua entrada no Papado. Outros mata
ram por isso.
Bronzino levanta-se para uma questão de ordem:
253
— Gostaria de lembrar a Sua Eminência que os Borgias já não estão entre
nós. Qual é o assunto prático que Sua Eminência está discutindo?
— Um assunto tão prático, meu querido Irmão, que o Papa Paulo VI, nas
novas regras que baixou em 1976, teve que incluir uma disposição estabele
cendo que, ainda que alguém conseguisse comprar sua ascensão a Papa, teria
que ser aceito como Papa —desde que a eleição fosse válida. Pensai naquilo
que teria levado um Papa, no fim do século XX, a estabelecer semelhante
regra! Pensai, Venerável Irmão!
O Cardeal Walker faz um sinal ao Presidente e levanta-se para falar:
— Eminências, receando que alguém aqui não tenha uma percepção
equilibrada da situação, quero lembrar a todos que aqueles de quem, no pas
sado, somos opositores foram, muitos deles, pessoas de vida infame. O pró
prio Lutero vivia em deboche. Mesmo no último trabalho que publicou, re
velou uma mente nojenta.
— Oh, sim, eu sei. Sei que Martinho Lutero era um libertino, —Buff in
terrompe, —e li o seu último panfleto. A linguagem é absolutamente vergo
nhosa, e a mente que revelou é a de um homem muito lúbrico, vulgar, preo
cupado com o ânus e a genitália, um homem cujas próprias funções corpó
reas parecem dominar as idéias fundamentais que tem sobre Deus, sobre o
ser humano, sobre a conduta moral. Rezo por Lutero todos os dias da minha
vida, porque, embora tenha agido errado, acho que desde o princípio ele foi
um indivíduo muito doente, muito doente...
— E desejais falar desse apóstata sifüítico ao mesmo tempo em que citais
os Papas e Cardeais da Santa Igreja Romana? —Walker faz a pergunta desde
nhosamente calmo.
Buff olha para Walker, contrai os lábios e diz friamente:
— E do único homem, em toda a história da palavra escrita, a quem foi
dedicado pelo autor um livro sobre a sífilis, porque, como o autor escreveu
no livro, esse homem exibiu, em sua augusta pessoa, a esperança de cura da
terrível doença. Essa pessoa era um Cardeal da Santa Igreja Católica Apostó
lica Romana. O meu Eminente Irmão sabia disso?
Domenico ficou de pé agora:
— Quererá, por favor, Sua Eminência nos dizer por que razão nos esco
lheu, nós Cardeais, para este insulto? —Senta-se: uma censura de Domenico
é uma nota má. Buff modera-se:
— Meus Irmãos, por favor, compreendei-me. Se pareço vos censurar —e
a mim próprio. Se pareço lançar feias calúnias sobre nossa classe e nosso sa
grado ofício de cardeal. Não é por desprezo. Apenas o empenho de que nos
vejamos como muitos, muitíssimos de nossos adversários e, igualmente,
muitíssimos homens e mulheres de boa vontade, ao contrário desses atraídos
pela Igreja, nos vêem.
Agora há uma calma atenção entre os Cardeais. Buff insiste em seus argu
mentos:
254
— Quantos de nós vêem a nós próprios, vêem todo o Papado e o Vatica
no como esses homens e mulheres nos vêem? Pensai por um momento num
devoto crente anglicano, na Catedral de Durham, um batista cheio de entu
siasmo, cantando em sua capela em Atlanta, na Geórgia, um piedoso luterano
em Stuttgart, na Alemanha. Crede-me, meus Veneráveis Irmãos, crede-me
inundado de amor e fidelidade, quando vos digo que, em seus lábios, achareis
as palavras que seus ancestrais bradaram contra Roma. Vós recordais as pala
vras de Hütten ao exército de mercenários alemães, às tropas imperiais espa
nholas e aos servos rebelados do Papado Italiano, quando todos eles sitiavam
a Roma de Clemente VII, em 1527: “Levantai-vos! Reclamai os direitos do
Império Alemão. Acabai com o poder temporal dos sacerdotes!”
— E quando saquearam Roma e entraram no Castelo de Santo Angelo,
onde Clemente e seus Cardeais se haviam refugiado, que foi que encontraram?
Encontraram os Cardeais e Clemente chorando pela perda de sua riqueza e de
seu poder! Foi o Bispo Staflleo quem deu a verdadeira razão para o saque e
a destruição de Roma e para os sacrilégios lá cometidos pelos espanhóis e pe
los alemães. Perante a Rota Romana, novamente reunida, ele declarou, em
3 de maio de 1528... — Buff está lendo em suas notas: — “Que foi que des
truiu Roma? Foi o fato de que toda a came se tomou corrupta. Foi porque
não somos cidadãos da Cidade Santa de Roma, mas da Babilônia, a cidade da
corrupção, cheia de sodomia, de tráfico de coisas sagradas, de idolatria, de
hipocrisia, de orgulho, de fraude.” Meus Irmãos, o atual Cardeal-Prefeito des
sa Rota Sagrada poderá dar testemunho da exatidão dessas declarações. E a
questão, meus Colegas, é que temos um passado que, até certo ponto, deveria
determinar o julgamento que hoje fazemos dos irmãos que estão afastados
de nós. NSo é esta uma opinião justa e moderada?
— Não há sentido em permitir-se que a Igreja seja diminuída em sua for
ça por causa do indivíduo e dos erros individuais. Nossa fé exige todos os sa
crifícios em nome da boa reputação da Igreja! —Vasari está zangado.
— Às vezes, ouvindo observações dessa espécie, —diz Buff pacientemen
te, - vem-me à lembrança aquilo que Savonarola disse sobre a Igreja Católica
de seu tempo: “Se a Igreja Romana tivesse que perder 10.000 ducados de suas
receitas, as excomunhões seriam violentamente proferidas, espadas seriam de-
lembainhadas e todos os cristãos seriam conclamados a ajudar. Se 100.000 al
mas se perderem, o Supremo Pastor ouvirá apenas os conselhos daqueles que
pretendem destruir o Catolicismo.” Mas queimaram Savonarola. Sendo assim,
desistirei de citar mais alguma coisa do chamejante sacerdote. —Buff sorri e
há alguns aplausos esparsos.
— Ora vamos, Irmão, vosso propósito não é nos fazer rir de nós mesmos
— embora engraçado e tudo mais isso possa ser. —É Thule, agora tentando
ajudar o orador a voltar aos trilhos e expor seu ponto fundamental.
— Não, meu Venerável Irmão! Mas isso me capacita a chegar à conclusão
que é a atitude geral que, acredito, deveríamos ter nesta questão do ecumenis-
255
mo. Não podemos nos enganar a respeito: os mais altos escalões e os círculos
privados de nossa burocracia romana revestem-se, num traço característico,
de um certo mistério, que os cobre com uma mortalha de pavor.
— Para a mente leiga, como para muitas mentes eclesiásticas, há alguma
coisa assustadora em relação a um grupo de homens como nós: todos celibatá
rios; obedientes como um só homem a vozes invisíveis; homens de dignidade
inviolável, mesmo quando outros nos consideram ridículos; coordenados em
reverência grupai; equipados como que para um culto sacrossanto; movidos
por interesses tão amplos quanto o é o nosso mundo e tão diversos quanto os
negócios em moeda estrangeira envolvendo rublos, dólares, ienes, ou o tama
nho da hóstia da comunhão a ser usada em Ruanda, ou o valor da garantia
que pode ser levantada sobre um edifícío do conjunto Watergate; versados em
frio racionalismo, contudo exercendo, inegavelmente, aquilo que outros con
sideram um domínio irracional sobre os corações e as vidas de milhões, falan
do em sentido literal.
— De vez em quando aparecemos em público recobertos de arminho e
carmesim e das vestimentas douradas das cerimônias cumpridas gravemente,
de acordo com regras milenares e sob o disfarce das imponentes e elevadas do
bras do Canto Gregoriano. No entanto, durante o tempo todo somos protegi
dos da curiosidade dos olhos importunos dos estranhos pela rigorosíssima re
gra do segredo — uma regra reforçada em nossas fileiras pelas mais terríveis
penalidades espirituais, e fora delas por possibilidades punitivas a que nenhum
homem, em juízo perfeito, quererá se arriscar.
— Dizei-me, agora, a simplicidade de Jesus chegou a isto? A nós, que nos
declaramos seus representantes? Não há dúvida a respeito, meus Veneráveis Ir
mãos. Recuai o pensamento — cada um de vós —recuai o pensamento até o
tempo em que éramos, cada um de nós, simples padres, então ainda muito
longe e muito abaixo deste corpo hierárquico, deste santuário interior do po
der romano. Pensai! E lembrai! Porque eu me lembro claramente da minha
primeira impressão dos “lá de cima”, a hierarquia local e as autoridades roma
nas. Quanto mistério! Quanto temor! Que terríveis conotações até um conta
to passageiro com eles produziam em mim —e, estou certo, em cada um de
vós. Não era isso o que nos atraía —em parte, de qualquer modo?
— Porque a conversação deles sempre parecia ecoar um precedente e
uma mentalidade mais misteriosos e maquiavélicos do que eu jamais tinha co
nhecido, ou que jamais seria capaz de sondar facilmente. E, ainda que eu des
cobrisse, ou pensasse descobrir, o sorriso diabólico por trás do sorriso pacien
te de um cardeal, ou se percebesse uma astúcia confiante debaixo da veludosa
maciez da linguagem diplomática do Vaticano e de sua descontraída atitude,
ou se eu experimentasse uma certa falta de caridade, uma insensibilidade nos
ministros católicos - sem nenhum toque humano — mesmo tudo isso não
dissiparia a sensação que tinha de seu secreto poder.
— Aquilo que constituía objeto de negociações no interior desses círcu-
256
los privilegiados de cardeais e ministros vaticanos e autoridades pontifícias
parecia, às vezes, ser o reflexo humano do super-humano, sim, a luta cósmica
entre o Arcanjo decaído, Lúcifer, e Jesus. Em outras palavras, quase parecia
ser a versão cristã do drama semita de Jó, no qual Jesus se volta diretamente
para o Arcanjo Lúcifer como para alguém que conhece pessoalmente e muito
bem, e Lúcifer responde a Deus como uma parte efetiva do próprio universo
divino.
De repente, Buff é interrompido. O Camerlengo pôs-se de pé:
— Afinal de contas, que é que Sua Eminência está tentando dizer ou per
guntar? —protesta ele, a voz num tom de exagerado aborrecimento. Há um
movimento de surpresa, ante este franco sopapo desfechado em Buff.
— Minha pergunta, Vossa Eminência, é uma que todos nós, de certa ma
neira, estamos fazendo: como foi que a Igreja chegou a este ponto? E ainda
estamos todos perguntando mais: se chegou a este ponto, não está na hora
daquele rompimento em que estamos pensando, mas que não mencionaremos
aqui? Esse peso morto da Roma dos Papas Cesarinos não é demasiado, para
ser carregado pelos Papas de Jesus?
— E não pretendo dar resposta a essas dolorosas perguntas, meus Irmãos.
Não pretendo. Porque cada um de nós aqui sabe a resposta.
— O que pergunto a vós é isto —e isto constitui a questão central com
que nos confrontamos neste Conclave. Iremos nós voluntária e deliberada
mente romper com essa carga do nosso passado? Romper com ela de maneira
tal que nenhum batista americano possa falar outra vez do Papa como “aquele
Governante estrangeiro”, nenhum luterano alemão possa pensar em Roma co
mo “a Cortesã do Mediterrâneo” , nenhum devoto protestante possa descobrir
os mistérios do poder demoníaco entrelaçados aos mistérios de Jesus, em nos
sas basílicas romanas e nos órgãos do nosso Vaticano, nenhum marxista pos-'
sa concluir que, fazendo a apologia do Sacrifício de Jesus e do direito exclu
sivo de dispensar o seu amor, estamos comercializando alguma coisa que man
terá o equilíbrio de nossa carteira de rendimentos e nos garantirá as cauções
necessárias para novos investimentos em propriedades imobiliárias?
— Iremos? Iremos fazer isso?
Concluindo na crista dessa pergunta cortante, Buff dirige um olhar de
agradecimento à mesa do Presidente e vai para seu lugar. À sua maneira, pro
jetou sobre os colegas um pensamento perturbador: terá o Papado, na verda
de, conseguido tal reputação que é agora, ele próprio, um obstáculo real à fé
na Igreja? Estará Lynch certo? E o Papado está morto, junto com aquele ve
lho mundo cristão?
“Uma lei especial permanece em vigor: o uso da língua latina é de ser pre
servado nos Ritos Latinos. ”
259
— Estas foram as nossas exatas palavras, —e brande um papel na mão,
como se o estivesse oferecendo a todos os presentes, para que o lessem eles
próprios. —Reparai que nós, bispos, ordenamos isso. Usamos a forma impera
tiva: servetur. Não aconselhamos. Não recomendamos. Não fizemos uma de
claração moderada. Ordenamos. Esta era a nossa vontade. A vontade do Con
cílio. O Concílio Ecumênico. O Cânone da Missa nunca deveria ser dito em
língua alguma, exceto em latim.
— Agora, todos vós sabeis que nós, os bispos do Concílio, fizemos uma
distinção entre as partes presidenciais da Missa — aquelas que dizem respeito
ao sacerdote como sacerdote, como um substituto para Jesus —e as partes
populares — aquelas partes da Missa que envolvem diretamente o povo, tais
como o Evangelho, a Epístola, as preces pelo bem-estar público e assim
por diante. E estipulamos, nesse mesmo Artigo 36, parágrafo 39 da CSL,
que as autoridades competentes deveriam decidir se - reparai na palavra
“se” — a língua vernacular poderia ser usada mesmo nas partes populares.
Em outras palavras, no que dizia respeito a nós, bispos, o vernáculo nunca
precisaria ser usado nas partes populares e nunca deveria ser usado nas pre
sidenciais.
— Repito ainda uma vez, éramos 1.922 bispos, votando sobre essas èxa-
tas palavras. Não poderia ter sido mais claro.
— Ora, que foi que aconteceu realmente com a nossa Missa? Com o nos
so Cânone Latino? E, poderia acrescentar, com o compaxecimento à missa? -
O rosto de Walker reflete pura repugnância. —Bem, hoje em dia há, pelo me
nos, nove diferentes cânones vernaculares. Cânone Latino oficial da Missa não
existe absolutamente! Isto foi o que aconteceu.
— Mas como? Como poderia ter resultado uma coisa tão completamen
te oposta à vontade do Concílio —e, acima de tudo, como poderia isso ter
resultado em nome do Concílio?
— Lembro-me daquele monstro que, em 1965, logo depois da termina
ção do Concílio, foi criado por artifício e maquinação —refiro-me à Comis
são pós-Concílio, instituída para implementar a nossa vontade, a vontade dos
bispos — a essa monstruosa Comissão foi perguntado, por cerca de quinze
diferentes hierarquias e episcopados nacionais da Europa, Ásia, África e Amé
rica sobre o Cânone, o Cânone Latino. Que resposta supondes que a Comissão
lhes deu? Pensai por um momento. Eu deveria deixar essa resposta a cargo
de vossa imaginação, Reverendos Padres. —Walker mostra os dentes, num sor
riso de escámeo. —Mas, se fizesse isso, a coisa provavelmente seria distorcida
pelos inimigos da missa. A resposta que a Comissão deu, consistentemente,
foi: “Permissão para abandonar o latim e traduzir o Cânone nas várias línguas
nacionais nunca será dada.” Isto, se me fazeis o favor, foi o que nos disseram,
de modo que todos voltamos para casa satisfeitos.
O Cardeal Thule põe-se de pé para uma questão de ordem:
260
— Pode o Eminente Cardeal provar estas declarações? —A agitação de
Thule é evidente.
— Tenho a prova aqui, numa carta em papel timbrado em relevo com o
brasão da Comissão e seu endereço romano; está datada de 22 de dezembro
de 1965...
— Os Eleitores não podem ver a carta, Reverendo Irmão...
— Tenho-a em minha mão! —estrondeia Walker, teimosamente brandin
do no ar uma folha de papel, —e vós e os outros podeis dispor de vinte có
pias, a expensas minhas, se quiserdes...
— Sim, mas quem assinou essa carta, Eminente Irmão? Talvez tenha vin
do de algum gabinete de um escalão inferior da Comissão, que...
— Está assinada, - a voz de Walker é uma lixa, - pelo Arcebispo que en
tão chefiava a Comissão. —Ele ergue os olhos e mira os Eleitores com uma
expressão de asco. Há um silêncio mortal entre os Cardeais. O Arcebispo era o
homem que Paulo fora forçado a demitir da Comissão sobre Liturgia. As ra
zões foram muito graves. —E daqui a pouco teremos mais a dizer sobre o Ar
cebispo.
Walker agarra-se de novo a seu assunto principal:
— Como foi então que aconteceu, meus Irmãos, o fato de que a vonta
de expressa da maioria dos bispos foi diretamente contrariada e violada?
Thule está de pé novamente:
— Acho que está muito claro que os membros da Comissão consultaram
os bispos depois que terminou o Concílio e que estes simplesmente manifes
taram um desejo, em termos gerais, de...
— Isso aconteceu, meu caro e Venerável Irmão, —a voz tonitroante de
Walker sufoca a de Thule, —porque foi decidido in camera, entre uma meia
dúzia de bispos isolados, três cardeais — dos quais, aliás, o meu Venerável
Irmão foi um —e um grupo selecionado de teólogos, os periti. Todos vós vos
lembrais dos periti do Concílio? Lembrais? —Walker está olhando agora em
volta, passando os olhos por todos eles. —Lembrais?
Buff põe-se de pé:
— Gostaria de lembrar a meus Colegas que os periti foram escolhidos iso
ladamente pelos bispos tendo em vista sua capacidade em assuntos de tradi
ção e em conhecimentos teológicos. E, além disso...
— Não temos necessidade de uma lição de Sua Eminência sobre o signi
ficado da palavra “periti". — O sarcasmo de Walker é tão imperioso quanto
sua cólera. — “Periti". —Profere a palavra como se a mesma tivesse um som
estranho e um significado mais estranho ainda. — É claro! Alguém versado
numa coisa ou noutra. Neste caso, em teologia. Todos nós, bispos do Concí
lio, tínhamos os nossos periti. Mas os periti nesta reunião in camera eram mais
do que simples assessores em matéria de teologia. A propósito, eu deveria di
zer reuniões —mas houve uma reunião particularmente fatídica, sobre a qual
261
o meu Eminente Irmão sabe mais do que qualquer um de nós. —Olha de novo
para Thule.
Thule tivera um encontro especial com os periti ultraprogressistas, no
Concílio, e entre eles ficara decidido que procurariam introduzir, no texto
dos documentos conciliares, “bombas de ação retardada” em assuntos de
doutrina, que seriam aprovados pelos bispos. Nesse sentido, uma bomba de
ação retardada era uma frase suscetível de mais de uma interpretação. Para os
bispos, uma frase dessas teria um significado. Mas depois, como de fato acon
teceu, a Comissão daria outro —e por vezes totalmente diferente —significa
do à frase aparentemente inócua.
Walker trouxe consternação ao Conclave. Pelo menos quatro ou cinco
Cardeais, quase todos da América Latina, estão de pé, tentando conseguir
permissão para intervir. Um deles, Marquez, consegue:
— Nosso Irmão, o Cardeal Walker, precisa ter certeza de que dispõe de
prova desta grave acusação.
— Está tudo aqui, meu Eminentíssimo Irmão, está tudo aqui. —Walker
levanta no ar outro monte de papéis. Está sorrindo, mas não é um sorriso
agradável. ~ Estes documentos me custaram muito trabalho. Deixai-me ver,
agora, —folheia rapidamente algumas páginas. —Ah, sim! —Uma pausa, en
quanto lê os nomes dos mais controvertidos e mais modernistas dos periti do
Concílio Vaticano.
— Está o nosso Eminente Irmão dizendo, —Marquez insiste na provoca
ção a Walker, —que havia uma espécie de entendimento entre estes homens
e outros ainda não mencionados?
— Sim. Estou! —Muito embora todos os presentes a esta altura já tives
sem compreendido a significação daquilo que Walker estava dizendo, sua afir
mação final de que houvera nada menos que uma trama para aliciar a vonta
de do Concílio ainda constitui uma bomba. O Presidente não consegue manter
a ordem entre os Cardeais e Walker precisa quase berrar, para poder se fazer
ouvido. - Estou dizendo precisamente isso, Reverendo Irmão. Houve um
plano coordenado, predeterminado, estabelecido por um punhado de bispos e
periti, um plano que agora conhecemos em detalhe, um plano que foi seguido
meticulosamente.
— Precisamos saber, Eminentes Irmãos, —Thule é um desafio ostensivo,
—precisamos saber quais são os detalhes dessa —trama, desse plano.
— Muito bem! Primeiro: Colocar as bombas de ação retardada, aquelas
afirmações ambíguas, nos documentos do Concílio. Na nossa CSL oficial, por
exemplo, uma afirmação como a que consta do Artigo 21, que diz: “A Litur
gia compõe-se de elementos imutáveis, de instituição divina, e de elementos
sujeitos a modificação.” Ou, no Artigo 33: "Embora a Liturgia sagrada seja,
acima de tudo, a adoração da Majestade Divina, contém ela, igualmente, abun
dante instrução para os fiéis.” Ou, no Artigo 38: “A revisão dos livros litúrgi-
262
cos deveria permitir variações e adaptações legítimas a diferentes grupos, re
giões e povos, especialmente em zonas missionárias.”
— Ora, Confrades, todas as declarações desse tipo foram entendidas por
nós, os bispos, num sentido, um sentido conservador, tradicionalista. 0 passo
número um consistiu em introduzir tais declarações nos documentos oficiais.
— Segundo passo: Encher a Comissão pós*Concílio, estabelecida para a
implementação de nossas decisões, com gente que faria explodir as bombas de
ação retardada. O secretário-geral da Comissão pós-Concílio era Bugnini, Han-
nibal Bugnini.
— Terceiro passo: Em nome do Concílio —agora já disperso e tendo seus
membros espalhados pelos quatro ventos —expedir uma série de decretos, de
terminando as mudanças. E coordenar esses novos e revolucionários decretos
com mudanças não-oficiais e unilaterais, iniciadas por bispos complacentes e
maquinadores e por periti e padres, em várias dioceses da Igreja...
— Repito: espero que o Eminente Cardeal possa provar tudo isto com
documentos, comprovados e autenticados. — É Thule. E está claramente
agitado.
— Vossa Eminência tem uma cópia de cada documento que tenho nas
mãos, e de cada carta trocada entre Sua Eminência e os periti e o Arcebispo
que chefiava a Comissão e... —O Cardeal Thule levanta-se para interromper
novamente Walker, mas desta vez o Presidente intervém:
— Por favor, permiti que o Cardeal continue. —Walker olha firmemen
te em tomo de si, depois continua:
— Quarto passo: Traduzir o Cânone da Missa, em toda parte, para o
vernáculo. E proibir — repito — proibir o latim, em toda parte. E traduzir
para o vernáculo todos os livros litúrgicos.
— Quinto passo: Adaptar a liturgia da Missa a todas e a cada uma das
regiões e localidades e línguas, de modo que não haja mais uniformidade al
guma, pelo inundo todo. E adaptá-la de modo que, em qualquer lugar, não
seja encarada como uma participação no Sacrifício de Jesus no Calvário. Em
vez disso, que seja considerada como um repasto comunal da congregação,
com ênfase na Bíblia, particularmente no Velho Testamento, e em proble
mas sociais. E deixar que os leigos, não o padre, tenham as funções princi
pais. O padre deveria ser simplesmente um mestre de cerimônias.
— Mas afinal de contas que tem tudo isso a ver com a grave decisão que
temos diante de nós? — É Thule, agora tomando uma direção diferente para
derrubar a argumentação de Walker.
— Meus Irmãos, —Walker faz o apelo quase num grunhido, —na verda
de, por que será que estou vos dizendo tudo isto? Pura e simplesmente para
vos declarar que a vontade do Concílio foi prostituída —e com ela toda a
representação de vossa Fé Católica, o Sacrifício da Santa Missa. E para vos
declarar que não deveríamos, neste momento tão profundamente crucial, de-
263
positar nossa confiança nas proposições daqueles que foram implicados nessa
fraude e nessa corrupção tão monumentais.
— Mas como pode o Cardeal deixar de mencionar a renovação que se
seguiu ao Concílio?
Thule não está preparado para a tempestade que desaba sobre sua cabeça:
— Renovação? —Walker berra a palavra. —Renovação? —Volta-se para
Thule com uma descarga de palavras. — Deixai que vos diga o que é que a
vossa renovação significou. Vamos considerar uns poucos, frios e duros fatos.
—Examina rapidamente alguns dos papéis sobre sua mesa.
— Renovação deveria querer dizer, principalmente, um zelo maior pela
missa, não? Maior comparecimento â missa, não? E maior interesse pelos
Sacramentos, não? E uma função dos padres cada vez mais influentes, não?
Maior, ou pelo menos o mesmo, número de conversões à Igreja, não? Afi
nal de contas, estes são os sinais de renovação. De que outra maneira se pode
falar em renovação a não ser nestes termos?
— Bem, vejamos os fatos, desde 1965, quando esta maldita renovação,
esta chamada reforma litúrgica foi iniciada pelos nosso amigos. O compareci
mento à missa, a partir de 1965, declinou. Enormemente! Na Inglaterra e Pai~
de Gales, em 16%. Na França, em 66%. Na Itália, em 50%. Nos Estados Uni
dos, em 30%. Renovação, ein?
— E as vocações sacerdotais. Aqui também, declínio. Na Inglaterra e País
de Gales, em 25%. Na França, em 47%. Na Holanda, em 97%. Na Holanda! A
Igreja de vitrina —onde todos os seminários estão fechados desde 1970! Na
Itália, em 45%. Nos Estados Unidos, em 64%. Renovação!
— E os batismos. Mais uma vez, declínio. Na Inglaterra e País de Gales,
em 59%; nos Estados Unidos, em 49%.
— Freiras? Um declínio de 24,6% através de toda a Igreja. Desde 1965,
35.000 freiras abandonaram os conventos. E 14.000 padres abandonaram o
sacerdócio.
— Renovação? Preciso continuar? E isto não passa de uma leitura ao aca
so. Qualquer um dos meus Eminentes Colegas pode ter uma cópia destes do
cumentos. —Ele atira os papéis sobre a mesa do Presidente. Depois, volta-se
para encarar Thule e Buff:
— E, quereis saber, há nisso tudo uma distorção engraçada. E não estou
falando sobre missas com música pop, missas com maconha, missas com bis
coitos e uísque em vez de pão e vinho, missas jovens com Coca-Cola e pãozi
nho de Sexta-feira Santa —tudo isso parte de vossa renovação, Meus Eminen
tes Irmãos! Já percebestes que a Missa Latina é a única versão da missa que
não é permitida de modo geral? Só é permitida com permissão especial? Co
mo é que encarais isso? Podeis ter a missa em qualquer língua, EXCETO!!! —
ele ruge a palavra —em latim! E o Arcebispo Lefebvie e seus tradicionalistas
264
são castigados por fazerem objeção a isso, enquanto os conspiradores, -
sim, conspiradores! — nem mesmo são repreendidos. —Walker vê que Buff
e Marquez estão prontos para saltarem de pé, mas levanta a mão: —Termi
narei dentro de pouco tempo. Por favor, deixai-me acabar, Eminentes Ir
mãos.
— Quanto às demais mudanças na missa, tudo surpresas! Cada uma delas!
— Walker está-se referindo às numerosas pequenas modificações em palavras
e no ritual do culto católico, e nas leis da Igreja que foram impostas aos cató
licos romanos nos últimos doze anos. —Nós, bispos, nunca decretamos a Co
munhão na mão, por exemplo. Nunca decretamos que o padre deveria ficar
de frente para o povo. Nunca decretamos que uma mesa —novamente a idéia de
uma refeição e não de um sacrifício sagrado — deveria ser usada em lugar
de um altar. Falamos sobre essas coisas no Concílio e decidimos contra cada
uma delas! Por que é que não nos perguntaram de novo? Quem decidiu ao
contrário? Eu vos direi: aquele pequeno grupo de periti, apoiado por uns pou
cos bispos e por alguns cardeais.
Buff intervém, finalmente:
— Diga o que quisei Vossa Eminência, não acredito que seja prudente
insistir na afirmação de que tais mudanças foram resultado de um plano deli
berado...
— Ora, por que, Eminente Irmão, perseverais em dizer coisas como essa?
Por quê? Estais com medo? E pode ainda algum dos meus Eminentes Irmãos
pensar que tudo isso não foi deliberado?
— Mas sugerir que houve alguma espécie de abominável plano...
— Eu penso, eu penso que foi isso, Eminente Irmão. Sim. Penso. Fa
ço mais do que isso. Aponto o dedo para aqueles bispos e aqueles carde
ais que adquiriram a condição de membros - aliás, proveitosa condição de-
membros — de organizações anticatólicas e anticristãs, clubes e coisas se
melhantes.
Thule põe-se de pé:
— Acho que num caso de tal gravidade não só é necessário uma prova
documental, mas também que Sua Eminência deveria ter alertado as autori
dades há muito tempo.
— Bem, na realidade, —responde Walker, quase estalando os lábios, —na
realidade, tenho a prova documental aqui nas minhas mãos —podeis tê-la, se
quiserdes. E, na realidade, o Camerlengo tem estado de posse dessa prova do
cumental há bem mais de três anos. —Depois, para o grupo todo, —Por que é
que vós não ficastes sabendo disto? Bem... —olha rapidamente na direção do
Camerlengo. —Razões de estado, talvez...
— O Meu Senhor Cardeal Buff nos perguntou, há alguns momentos, co
mo foi que a Igreja chegou a este ponto. Não pretendia, compreendo eu, que
a pergunta fosse respondida exatamente desta maneira, mas creio que vos dei
265
um exemplo da maneira pela qual chegamos a este ponto. E deixai que eu res
ponda à sua pergunta seguinte: sim, está na hora de rompermos com o passa
do. Não como quis significar Sua Eminência, talvez. Mas no sentido seguinte:
que trabalhemos todos nós em absoluta franqueza, durante todo este Concla
ve. —Olha em volta, para todos os rostos. —Porque, que cada um tome co
nhecimento: temos um dever sagrado, o de eleger um sucessor de Pedro e um
Vigário do Senhor Jesus. Estou deliberadamente me coibindo de qualquer
outro comentário, no momento. Mas, digo de novo, que cada um tome co
nhecimento: lutaremos contra qualquer tentativa da parte de qualquer um —
qualquer um, quer dizer, fora do Conclave - para exercer mesmo um mínimo
de influência na eleição desse sucessor e desse Vigário. Assim me permita
Deus!
Esta última afirmação, sua violência e a implicação de conluio entre al
guns Cardeais e poderes exteriores provocam uma onda de murmúrios e de
comentários. Alguém grita lá de trás:
— Vetos à eleição? Estais insinuando que alguém está quebrando a lei
do Conclave, introduzindo um veto em nosso meio?
Na história dos Conclaves, vários governos tiveram a outorga do direito,
dada pelos Papas, de vetar um papabile indesejável, e os Cardeais se apresen
tavam trazendo uma ordem de seu respectivo Rei ou Imperador, no sentido
de que este ou aquele Cardeal não poderia ser eleito Papa.
— Vetos? Vetos? Quem está falando em vetos? E, afinal de contas, que
é um veto? Todos vós não trouxestes algum tipo de veto? O melhor de todos
nós!
— Pensais que o Meu Eminentíssimo Irmão, Meu Senhor Cardeal Artel,
irá sancionar ou trabalhar por um candidato que sabe ser inaceitável pela ad
ministração Carter? Ou que o Cardeal Delacoste vai apoiar alguém inaceitável
pelas pessoas que ocupam o Palácio do Elysée? Ou que o Cardeal Franzus
apóia alguém inaceitável por Moscou? Franqueza, Irmãos! Vamos continuar
com franqueza.
— Agora, é claro que esses Eminentíssimos e Reverendíssimos Cardeais
sabem apenas que alguém é inaceitável. Não foram instruídos por seus gover
nos para tomarem qualquer espécie de atitude. Nenhum funcionário do go
verno lhes disse que vetassem determinado candidato. Mas não sejamos sim
plórios!
— Exijo, Reverendo Senhor Cardeal Presidente, —Marquez está zangado,
ao fazer sua intervenção, —que o Eminente Cardeal esclareça a situação e as
suas palavras. Quer ele dizer que os maçons se intrometeram neste Conclave,
ou que alguma das superpotências está exercendo hoje, aqui, alguma influên
cia por trás de portas fechadas?
— Não. Não estou me referindo primeiramente, nem mesmo secundaria
mente aos maçons, embora, meu Eminente Irmão, quem de nós poderá negar
266
que o Grande Oriente não esteja puxando alguns cordões de marionetes aqui,
dentro deste Conclave?
— Não. É alguma coisa muito mais sinistra. Lá fora, no mundo dos ho
mens, na sociedade dos homens e mulheres, esteja ela nos Estados Unidos,
na Suíça, na Rússia, entre as nações da África e da América Latina, há lá fora
uma organização mais abrangente, mais sutil, de maior alcance, uma organiza
ção de homens de um tipo especial, que não são leais a este ou àquele país,
mas a princípios muito especiais, de acordo com os quais têm em mente um
destino muito especial para —entre outras instituições —esta Santa Igreja Ca
tólica Apostólica Romana. Para tais homens, os maçons são bonecos. E os
marxistas são bonecos, além de se constituírem em obstáculos temporários à
consecução de suas vontades e intenções. —Walker pára. Seus lábios estão-se
movendo, seus olhos por um momento se erguem para o teto do Salão do
Conclave. Enquanto permanece silencioso, o silêncio faz-se também entre os
Cardeais, que estão fascinados e pasmos.
Depois de alguns segundos, Walker fala, com muita calma:
- Que Cristo possa ter piedade de todos nós, para que tomemos a deci
são correta, neste Conclave. Porque de nós e de ninguém mais dependem a
vida e a morte de milhões. E a paz ou a agonia desta Igreja. E a perseverança
de muitos cristãos. Que Deus tenha piedade de nós e nos ilumine.
Ele se inclina para os Presidentes.
Um Cardeal comenta para o vizinho:
~ Pensar que Hank Walker estaria lutando pelas velhas bandeiras! Quem
iria pensar uma coisa dessas? —Ele não é o único a ter esse mesmo pensamen
to. Mas este Conclave é surpreendente em muitos aspectos.
Pelo canto do olho, enquanto caminha de volta a seu lugar, Walker per
cebe a mancha cor-de-chocolate do rosto do Cardeal Coutinho, um velho
amigo seu. Nos rostos de Thuíe, Franzus, Buff e Marquez pode-se ler um
misto de raiva e determinação. A maioria dos Eleitores não absorveu tudo
aquilo que Walker lhe disse. Mas, mesmo assim, há entre eles uma sensação
nova.
Pela primeira vez, desde que o Conclave começou, cada cardeal começa
a sentir a verdadeira pressão e a força de um Conclave Papal. Grandes pro
blemas ocupam agora o primeiro plano de seus pensamentos.
A SEGUNDA SESSÃO
Logo depois das 6 horas, quando Domenico chega a seu apartamento, Angeli
co reúne-se a ele. Quando começam a conversar, Canaletto bate na porta e
329
põe a cabeça para dentro. Seu rosto mostra desapontamento, quando vê An
gélico:
— Oh, perdão, Pai. Voltarei mais tarde.
— Não. Não, —responde Domenico. —Que é?
— Alguns de nós gostariam de vos dar uma palavrinha, Pai...
— Sugiro que esperem todos até terem feito suas leituras, —diz Domeni
co, não desagradavelmente. - E, a propósito, Canaletto - você não vai se
importar que eu diga isto, Angélico - nem eu sou candidato potencial, nem
Angélico o é! Leve de volta a boa noticia! Sabe o que quero dizer. —Cana
letto fica rubro, lança um olhar a Angélico, sorri nervosamente para Domeni
co e retira-se.
Angélico transmite a Domenico alguns retalhos desencontrados de notí
cias. Ao que parece, os Cardeais da Comunidade Britânica deverão reunir-se
com os americanos por volta das 9:15 da noite. Os asiáticos vão-se reunir
todos no quarto de Kinigoshi, mais ou menos à mesma hora. Os poloneses,
alemães, africanos, franceses e espanhóis vão todos politicar separadamente.
Um grupo de italianos vai-se encontrar no apartamento de Riccioni, outro no
de Masaccio, um terceiro no de Canaletto. Angélico teria interesse em ver
Domenico e Azande, depois da ceia, mas Domenico não quer isso - poderia
dar a impressão errada.
— Pela última vez, Eminência, — diz Domenico seriamente para Angé
lico, - gostarieis de concorrer à indicação? —A resposta de Angélico é en
faticamente negativa.
Depois ficam algum tempo conversando. O planodele,explica Domeni
co, é deixar que, agora, as coisas sigam seu curso. Porvolta das 11 horas
poderão estar chegando as primeiras informações sobre a reação dos Eleitores
aos Relatórios.
— Achais que muita coisa será modificada? —Pergunta de Angélico.
— Um bom bocado. Por uma coisa, será fazer ou morrer, agora ou nunca,
pelo menos para uns cinco dos nossos amados Colegas.
■— Franzus? Thule? Lynch? —Angélico o encara.
— Pelo menos esses. Mas também, sinto isso, para Masaccio e Ferro. Lem
bro-me de que seus nomes estão entre os dos leitores desses Relatórios. Sen
do assim, tinham conhecimento deles. E agora todos os Eleitores perceberão
isso.
— E a idéia pan-européia?
— No que diz respeito a Lohngren, está morta. O nome dele também es
tá lá, como um dos leitores.
— E essa coisa Thule-Franzus tem algum futuro agora?
— Muito! É claro! É ainda muito possível! Temos que enfrentar isso
amanhã.
Quando Angélico se levanta, Domenico entrega-lhe um envelope:
— Quando passar pelos aposentos do Camerlengo, dê este envelope ao
330
Monsenhor. Preciso de uma documentação. —Ao ficar novamente sozinho,
Domenico pode trabalhar sem interrupção apenas por alguns poucos minutos,
antes que seu telefone toque. É o jovem Cardeal. Por acaso, estaria Sua Emi-
nência de posse do dossiê secreto?
— Não, na verdade não estou, — responde Domenico. — Lamento. —
Quando o Cardeal desliga, Domenico chama o Camerlengo:
— Pieter, — diz-lhe com familiaridade, — um jovem amigo seu estava
agora mesmo procurando o dossiê secreto.
— Gott! — pragueja o Cardeal-Camerlengo. — Depois: — Não se preo
cupe.
— Não estou me preocupando por minha causa, Pieter...
— Ruzzo está cuidando desse assunto. Vai dar tudo certo.
— Assim espero, —é o pensamento de Domenico, ao desligar o telefone.
Por volta das 7:15, o Monsenhor, suarento, começa a “ronda de entrega”
com as cópias dos relatórios destinadas a Domenico. Coloca as cópias na mesa
de Domenico. Depois:
— Eminência, posso pedir um favor? —Sem esperar pela resposta, con
tinua: —Amanhã, quando anunciarem o nome do Papa escolhido às multidões
na Piazza, posso ficar no balcão? —Domenico o olha fixamente, apanhado
inteiramente de surpresa. Depois, percebendo a expressão de diabrura no
olhar do Monsenhor, desata a rir:
— Fora! — diz com fingida severidade. — Você vai ser denunciado a
Ruzzo!
Domenico gasta uns bons quinze minutos para manusear os Relatórios e
apreender-lhes, de modo geral, a essência, antes que a sineta toque para a
ceia.
O efeito principal da leitura dos Relatórios pelos Eleitores não é, bem estra
nhamente, o de uma grande desilusão, ou de raiva ante o fato de serem en
ganados quanto às verdadeiras situações que predominavam na Igreja. Cada
Eleitor, à sua própria maneira, sempre teve consciência da necessidade do
caráter confidencial e do segredo. O princípio estrutural do governo da Igre
ja sempre foi, afinal de contas, marcado por esses dois traços.
Mas há surpresa. Porque, embora cada Eleitor saiba, por exemplo, que o
Vaticano lida com grandes investimentos, a leitura de registros detalhados,
referentes às transações feitas mês a mês pelos seus representantes, põe
diante dos Eleitores a dura verdade de que a posse e a administração de tanto
dinheiro necessariamente conduzem aqueles que disso estão encarregados a
áreas de atividade, formas de pensamento e centros de interesse freqüente
mente irreconciliáveis com os valores do Evangelho. E, muitas vezes, a posse e
a administração de tanto dinheiro estimula aquele orgulho e aquela desuma
nidade que as leis da religião e da moral proíbem ao cristão - acima de tudo,
à autoridade cristã.
Os Relatórios têm, como efeito primordial, a faculdade de esclarecer o
corpo de Eleitores quanto ao porquê e ao portanto de certos lances, tanto
dentro do Conclave, quanto nos anos que imediatamente o precederam. Um
desses movimentos pré-Conclave foi a voga sócio-política e psicologizante,
surgida nesse período. No decorrer dos últimos cinco anos, foi perceptível
através de toda a Igreja uma ênfase, constantemente ressurgindo, sobre pro
blemas que, anteriormente, os homens da Igreja consideravam como sendo
exclusivamente pertencentes ao domínio dos políticos, dos cientistas sociais,
dos psicólogos, dos assistentes sociais, dos líderes das comunidades, dos entu
siastas da etnia e dos órgãos do governo.
Desde o começo dos anos 70, padres, freiras, frades e bispos pareceram
de todo dedicados a um esforço, não apenas de “participar” de todos os
movimentos civis e políticos de sua região — assim como de se manterem
aucourant de qualquer modismo psicológico que viesse a estar em voga —
332
mas de substituir por essa atividade qualquer pregação especializada da dou
trina cristã e qualquer ensinamento profissional da espiritualidade cristã. Não
é raro nem inesperado, por exemplo, encontrar padres usando grafologia em
lugar de teologia, na preparação para o casamento. Nem há qualquer surpresa
no fato de Bispos americanos organizarem reuniões de caráter nacional para
tratar de problemas como origens étnicas ou posse da terra; ou mesmo no
que toca a bispos que expressamente se identificam de modo franco com
facções revolucionárias.
Mas, raro ou não, inesperado ou não, todo esse modismo foi incompreen
sível para a maioria dos cardeais —salvo para aqueles que, entusiasticamente,
aderiram à voga eles próprios. A essência da incompreensão tem sido a ten
dência preponderantemente esquerdista, que vem marcando este comporta
mento puramente secular dos clérigos cristãos. Dificilmente terá havido uma
aliança visível e reconhecida entre causas direitistas e as autoridades da
Igreja.
Agora se torna claro para cada Eleitor, julgando a partir dos dois Relató
rios —o da Iniciativa Russa e o da Liberação — que todo o processo não foi,
de forma alguma, acidental. Não foi, como continua insistindo Lynch, um
acaso e o movimento do Espírito Santo, mas sim um plano bem orquestrado.
Através de ações discretas e eficientemente coordenadas, na Europa e
nas Américas, grande número de clérigos católicos e de intelectuais, juntamen
te com muitas freiras, frades e ativistas leigos, foi levado a ver uma aliança
“temporária” com o marxismo como coisa aconselhável, e um certo grau de
marxização como um passo inevitável no caminho da “liberação cristã”.
Não pode haver dúvida quanto ao caráter coordenado desse desenvolvimento.
A substância do Relatório sobre a Iniciativa Russa é a sugestão de um
acordo, ou plano prático, entre o Vaticano, por um lado, e a URSS, como
centro operador do marxismo europeu ocidental, e a influência preponde
rante da política esquerdista na América Latina, de outro. A URSS deseja
que o Vaticano tome determinadas providências: que suavize, de maneira
lenta e gradual, quaisquer declarações antimarxistas, explícitas e formais,
em documentos e pronunciamentos oficiais. Que evite qualquer condenação
formal da teologia da liberação, ou da filiação a Partidos Comunistas de qual
quer país europeu (Pio XII havia emitido uma condenação desse tipo, nos
anos 40). Que aumente o número de contatos diplomáticos abertos entre o
próprio Vaticano, por um lado, e a URSS e seus satélites do Leste, por outro,
por medidas como as visitas feitas ao Papa, em 1977, por Janos Kadar, da
Hungria, e Hruska, da Checoslováquia, e as correspondentes visitas de diplo
matas vaticanos a países comunistas.
Sem prever uma abertura imediata (mas certamente futura) de relações
diplomáticas formais entre o Vaticano e Moscou, os contatos deverão ser
multiplicados e os relacionamentos desenvolvidos pari passu, com o enten
dimento diplomático entre o Vaticano e os Estados Unidos, que mantêm
333
apenas um representante pessoal do presidente americano junto à Santa Sé,
mas não um embaixador.
Ao mesmo tempo, o Vaticano deverá reduzir qualquer apoio oficial ca
tólico romano aos regimes direitistas, especialmente na América Latina.
Deverá desencorajar pressões de direita (digamos, oriundas de organizações
direitistas como a Opus Dei e os Cavalheiros de Colombo) na Espanha e na
Irlanda.
Finalmente, deverá o Vaticano sancionar os diálogos marxistas-cristãos
iniciados em diversos países, e assim alimentar uma certa simpatia entre
cristãos amantes da justiça e marxistas entusiastas da renovação política.
Em troca de tais concessões, a URSS aprovaria a restauração da hierar
quia católica nos Países Bálticos, na Checoslováquia e em outros países
satélites. Atenuaria as leis anti-religiosas através de todos esses países, leis
que têm mantido os católicos romanos fora das funções públicas, dos cargos
governamentais e da vida acadêmica. Promete tornar efetiva uma forma
especial de submissão do Patriarcado Ortodoxo Russo de Moscou e do Patriar
cado de Constantinopla ao Papa, como Chefe da Igreja, e ao Vaticano, como
órgão central de governo da Igreja. Na hipótese de que a esfera de influência
russa se estenda para o Oeste, ultrapassando suas fronteiras de 1977, deveria
ser dada uma consideração especial às propriedades da Santa Sé, sendo con
cedidos à mesma privilégios especiais de culto.
O Relatório da Liberação, quando considerado juntamente com a Inicia
tiva Russa, fornece o painel de acompanhamento daquilo que muitos encaram
como um díptico dos planos comunistas russos para facilitar sua tomada de
controle do Ocidente, assim como do lugar previsto pelos atuais planejadores
do Vaticano para a Igreja Católica Romana no contexto daquela nova área
de influência e dominação russa.
O Relatório da Liberação trata principalmente da propagação da teologia
da “liberação”, partindo da América Latina e espalhando-se para o Norte,
atingindo os Estados Unidos e atravessando a Europa. A doutrina essencial
dessa nova teologia, primeiro formulada por teólogos latino-americanos,
é a de que o primeiro e mais importante passo para a salvação cristã da raça
humana é a liberação de todos os homens e mulheres do jugo do capitalismo
— primordial e malevolamente representado pelos Estados Unidos. A Igreja,
de acordo com tal teologia, deveria ser a serva da raça humana e de sua histó
ria. E deveria não apenas permitir, deveria aprovar e fomentar qualquer vio
lência revolucionária (denominada contraviolência justificável) visando a
remover e erradicar os centros do capitalismo.
O Relatório Cristãos para o Socialismo descreve duas organizações —
Padres para a América Latina e o Comitê para Diálogo e Ação na América
Latina —como frentes para a penetração do comunismo russo. Cita nomes de
teólogos como os Padres Gustavo Gutierrez, Giuleo Gerardi, Pablo Richard
e Gonzalez Arroyo, e indica os diversos passos através dos quais essa teologia
334
de “liberação” deve ser propagada: deve ser ensinada em seminários e univer
sidades. Deve constituir o tema das Conferências Episcopais, de congressos e
convenções de teólogos, de cartas pastorais escritas cada ano pelos bispos às
suas dioceses, de livros, panfletos e manuais. Padres, freiras e outros, direta
mente ocupados no ministério religioso, deverão identificar-se com movi
mentos revolucionários e de guerrilhas. Quadros esquerdistas de apoio deverão
ser constituídos em cada paróquia e em cada diocese —sempre sob o disfarce
de ação católica e de apostolado exercido pela Igreja entre os fiéis. Assim,
política e religião deverão identificar-se e confundir-se.
Deverá haver, ao mesmo tempo, o contínuo incitamento de ressenti
mentos de direita, os quais, obviamente, crescerão, provocando sua transfor
mação em violentas medidas repressivas. As ordens religiosas como a dos Do
minicanos, dos Jesuítas e dos Padres e Freiras de Maryknoll deverão ser usadas
para a defesa dos direitos do povo contra regimes repressivos desse tipo. Nas
Conferências Episcopais e em vários congressos regionais e internacionais,
deve-se ter o cuidado de adotar uma linguagem oficial suficientemente ambí
gua para satisfazer as exigências dos crentes e para justificar a violência e os
métodos revolucionários de tomada do poder. Todos os tópicos nacionalistas
(como, por exemplo, o Canal do Panamá) devem ser explorados, devendo os
prelados locais ser conduzidos a uma identificação pessoal com essas causas.
Ao mesmo tempo, é preciso que haja um contínuo esforço no sentido de
impregnar os bispos americanos, o clero e o pessoal leigo dos Estados Unidos
de um sentimento de culpa quanto aos pecados do capitalismo americano e
aos excessos verificados na América Latina, bem como da aprovação dos
princípios práticos da teologia da liberação.
O impulso desse plano deverá localizar-se primeiro na América Latina,
generalizando-se posteriormente. A idéia, na América Latina, é a preparação
para o dia em que seja possível formar o primeiro núcleo dos ESUAL —os
Estados Socialistas Unidos da América Latina; não poderá ter começo a
menos que seja assegurada a colaboração do clero.
Tanto na América Latina quanto na Europa, o tema da “liberação” deve
ser inculcado. Por exemplo, a crença popular principal da América Latina é
a devoção de Nossa Senhora de Guadalupe, como o é o Santuário de Lourdes,
na França, onde a Virgem é também venerada. A aparição da Virgem nesses
dois lugares, a imagem ultravenerada da Senhora de Guadalupe e os milagres
verificados em Lourdes devem ser descritos como “atos de serviço de uma
civilização de amor, da qual deverão ser excluídas a crueldade do capitalis
mo e a opressão da sociedade burguesa”.
Com esses Relatórios nas mãos, muitos Eleitores juntaram dois e dois. E
é Witz quem, finalmente, resume o assunto, quando diz:
— Diplomaticamente, o regime anterior (do Papa Paulo VI) procurou
suavizar a situação dos católicos romanos dialogando com os russos, apoiando
regimes de esquerda e desencorajando - mesmo indiretamente — todos os
335
movimentos direitistas. Na realidade, essa manobra política foi injetada no
crescente esforço de propaganda, como está descrito no Relatório da Libe
ração.
E um Cardeal americano observa para o Cardeal Artel:
— Muitas das políticas sociais e das declarações dos Bispos americanos
de 1965 para cá, foram —sem que muitos deles o soubessem —profundamen
te influenciadas por um insidioso plano destinado a preparar para a marxiza-
ção. Nesse processo, a Igreja Americana tem sido usada e abastardada.
Na proporção em que continua a leitura desses dois Relatórios, surgem
novas indagações sobre o papel de Franzus e sobre seu relacionamento com os
senhores soviéticos de seu país. E, inevitavelmente, a atenção se concentra na
aliança entre Franzus e Lynch, de um lado, e com Thule e seu grupo, de outro.
Porque, para aqueles que estão lendo o Relatório da Liberação, referente
ao movimento doutrinário esquerdista no interior das fileiras católico-roma-
nas, fica evidente que Thule é uma pessoa que, por seu caráter e pelas circuns
tâncias, cai facilmente no papel de testa de ferro e líder desse tipo de movi
mento. Uma coisa é clara: ele conseguiu estabelecer uma extraordinária lista
de contatos e associações com entidades nío-católicas que, até aquele mo
mento, nunca haviam considerado seriamente qualquer idéia genuína de uma
estreita aproximação, e menos ainda de uma união, quer com Roma, quer
com qualquer alta autoridade oficial da Cúria.
Thule, porém, tinha modificado aquilo tudo! Sua força - e seu calcanhar
de Aquiles — naquele quadro todo é seu desejo verdadeiramente ardente de
ver uma união real entre os cristãos. Gostando de dizer que o espírito que
prevaleceu depois do Concílio Vaticano foi algo de único, e que jamais será
gerado de novo, Thule se havia convencido de que o Espírito Santo já foijara
uma nova unidade entre cristãos, e que apenas as estruturas jurídicas e as
mentalidades tradicionalistas impedem que tal unidade se tome a força orien
tadora da forma quase definitiva da Igreja que Jesus fundou.
Num período de dez anos, em seus contatos pessoais, Thule estabelecera
particularmente, com muitos líderes cristãos nãb-católicos, as bases em que
essa unidade poderia ser conseguida. O objetivo não era atingir uma conformi
dade completa ou mesmo geral, quanto à fé, ao culto e às estruturas de go
verno da Igreja. Ele é e sempre fora demasiado realista, para achar que isso
poderia ser alcançado agora, ou num futuro previsível. Cada Igreja, de fato,
deverá conservar sua presente configuração e sua própria formulação de fé,
é o que tem dito.
O principal obstáculo a tudo, no plano da Liberação, é o Papa, o Bispo de
Roma, como chefe tradicional da Igreja Católica —seu primado de autoridade
doutrinal, sua infalibilidade nessa autoridade e sua primazia na jurisdição de
governo.
A maioria dos contatos de Thule nas outras igrejas concorda em que o
Bispo de Roma deverá ter — por força de simples longevidade histórica —
336
uma certa precedência de honra: quer dizer, o Papa deveria ser e seria aceito
como Chefe dos Bispos (nas igrejas com estrutura episcopal), ou como o
chefe de maior antiguidade (em Igrejas desprovidas dessa estrutura).
Não haveria exigência de aceitação de quaisquer dogmas católicos, defi
nidos ou aceitos no Ocidente depois dos primeiros seis Concílios (o ponto de
cisão deveria ser por volta do final do século VII). Isso eliminaria todos os
dogmas católicos sobre o Papado, sobre a Virgem, sobre a Eucaristia, sobre o
clero (o celibato e o clero masculino) e sobre liberdades políticas e a pro
priedade pessoal.
Thule mantivera estreitas vinculações com muitos teólogos, na Europa
e na América, que haviam feito trabalho pioneiro na área das crenças acei
táveis, numa ampla escala, por cristãos não-católicos.
A acrescentar a tudo isso, havia ele planejado, juntamente com seus ir
mãos não-romanos, tanto quanto com teólogos progressistas, a criação de um
novo ministério vaticano, ou Congregação, como são chamados em Roma
todos os ministérios. Será constituído por uma equipe internacional de teólo
gos e incluirá não-católicos. Esse organismo terá poder legislativo e normati
vo —isto é, não apenas assessorial —dentro da Igreja, no que se refere a dou
trina e disciplina. Haverá, de acordo com o novo ecumenismo do plano de
Thule, um pujante esforço no sentido de estabelecer formas comuns de culto,
sendo a tendência e o objetivo a transformação da cerimônia da Missa Cató
lica em alguma coisa aceitável por uma larga faixa de crentes não-católicos.
Este é o tipo de Igreja aberta calculada para permitir “o máximo de liberdade
ao Espírito de Cristo”, para citar uma frase do Relatório.
Se essa política eclesial fosse conjugada à doutrina sócio-política e à
ação delineadas nas propostas russas, entáo se transformaria num plano pelo
qual o cristianismo seria operado “livre” de qualquer “enredamento em siste
mas sociais ultrapassados e formas decadentes observadas pela Igreja, coisas
que se tornaram ossificadas, impopulares e inoperantes”.
O efeito da aliança entre Franzus, Lynch e o grupo de Thule toma-se
dolorosamente claro à luz desses documentos.
Os outros dois Relatórios Secretos são igualmente importantes, em seus
setores específicos. Um diz respeito aos entendinientos do Vaticano com o
Partido Comunista Italiano (PCI). O outro refere-se à situação financeira do
Vaticano, bem como às projeções de suas finanças.
Fica evidente, por esse segundo Relatório, que a presente administração
do Vaticano vinculou as finanças da Igreja aos percalços da economia dos Es
tados Unidos e à idéia do sistema trilateral —Estados Unidos, Japão e Arábia
Saudita —como meio através do qual superar e sobreviver à inflação e à reces
são dos anos 80.
Vários Eleitores, notadamente os asiáticos, sublinham agora o fato de que
a mudança de orientação dos investimentos do Vaticano, começada nos últi
mos anos 60 e nos primeiros da década de 70, sob a direção do financista ita
337
liano Michele Sindona, ainda não se completou; que é um caso em andamen
to. Quatro dos asiáticos dirigem-se ao apartamento de Bonkowski, para conse
guir respostas a algumas perguntas. Afinal, qual a razão da mudança? Qual era
o receio?
Na Cúria Romana, Bonkowski tem a reputação de saber da maior parte
das coisas, mas de só raramente ter falado muito sobre o que quer que seja.
Desta vez, porém, faz uma exceção. Salienta o fato de que, já uma vez
neste século, a Santa Sé enfrentou a bancarrota como iminente possibilidade.
No final dos anos 20, as finanças do Vaticano chegaram a uma situação triste.
A primeira auditoria real na história da total riqueza da Igreja foi conduzida
pelo Monsenhor Dominic Mariana, que informou ao Papa Pio XI, em 1928,
que o Vaticano estava a um passo da insolvência. Um empréstimo de um mi
lhão e meio de dólares em bônus, com vinte anos de prazo, conseguido nesse
mesmo ano pelo Cardeal Mundelein, de Chicago (com a garantia das proprie
dades da Igreja naquela cidade, avaliadas em vários milhões de dólares), afas
tou a temida bancarrota. E, em 1929, foi assinado com o governo de Musso-
lini o Pacto de Latrão.
De acordo com esse Pacto, 90 milhões de dólares foram pagos ao Vatica
no pelo governo de Mussolini, a título de indenização pelas propriedades de
que a Igreja fora despojada pelos italianos, em 1870. Tal soma foi confiada,
para administração e investimento, ao cérebro quase genial de um homem
chamado Bemardino Nogara. Ele a usou vantajosamente, criando um vasto
império financeiro que trouxe ao Vaticano um ativo realizável mais ou menos
igual às reservas oficiais em ouro e divisas possuídas pela França, acrescido de,
pelo menos, dois bilhões de dólares em títulos negociados na Bolsa de Valores
de Nova Iorque e de um capital corporativo bem perto dos vinte bilhões de
dólares. Entre aquela época e os dias de hoje, os investimentos vaticanos pe
netraram em todos os setores da economia italiana, bem como da estrangeira.
No início dos anos 70, ficou evidente que as economias da Europa
estavam em declínio e que, politicamente, a Europa estaria pronta para a
penetração russa pelo fim da década. O Vaticano não tinha intenção de ir à
falência.
Aí, por volta de 1973/1974, prossegue Bonkowski, ficou claro que a
Arábia Saudita estava a caminho de exercer o papel de uma superpotência nos
campos das finanças e da política internacionais —tudo isso com base em suas
insuperáveis e, aparentemente, inesgotáveis fontes de petróleo. Enquanto
isso, a política dos Estados Unidos começou a talhar-se estreitamente na con
formidade do papel ascendente da Arábia Saudita. Os Estados Unidos já não
tinham mais necessidade alguma de manter uma posição de primazia e lideran
ça na Europa Ocidental. Novos mercados precisavam ser buscados e conquis
tados, na África e em outros lugares.
— O outro Relatório, sobre entendimentos entre o PCI e o Vaticano,
conclui Bonkowski, - tem aqui sua relevância. Se, consoante as projeções,
338
a economia da Europa não pode ser reforçada, e se o Vaticano tem que se as
sociar estreitamente à combinação trilateral dos Estados Unidos, Japão e
Arábia Saudita; e se, ao mesmo tempo, os Estados Unidos diminuem seu in
teresse e sua influência na Itália e na Europa, então é quase certo —é claro
que no momento exato e nunca como um choque ou uma surpresa - que o
governo italiano seja parcialmente composto de ministros marxistas e que
venha, afinal, a ser marxista, não apenas em sua composição ministerial, mas
em suas políticas. O Vaticano, porém, permanece e permanecerá na Itália. Daí
as conversações com o PCI.
— Não, — responde Bonkowski a um comentário, - na verdade, não é
realmente esquizofrênico. Apenas parece ser assim, se a gente não percebe as
enormes mudanças que estão ocorrendo na geopolítica.
Os pontos principais do oferecimento feito pelo PCI ao Vaticano são
simples e diretos. Se o Vaticano retirar seu tradicional apoio —financeiro e
moral - aos democratas-cristãos (DC), e se amenizar os ataques oficiais ao
comunismo como sistema econômico, então quando e se o PCI adquirir a
preponderância e o controle no governo italiano, o Partido garantirá à Igreja
três vantagens principais: a posse e o domínio de suas propriedades, em Ro
ma e por toda a Itália; liberdade de manter e desenvolver seus atuais planos e
investimentos financeiros no exterior; e liberdade de doutrinar e pregar con
forme os ditames de sua consciência.
Os asiáticos, que já tinham visto tudo isso antes, no Extremo Oriente,
acham que compreendem o que havia acontecido. Sabem que o processo,
uma vez iniciado, é irreversível.
— Não é pessimismo, - observa Ni Kan. - Realismo! Vossa Eminência.
—E vão-se embora.
Há, contudo, uma violenta discussão sobre todo esse problema entre
vários grupos de italianos que se reuniram:
— Não me importa que Angélico, ou quem quer que seja, declare que “a
coloração comunista que emergirá do caldeirão europeu terá um tom pálido
de rosa” — ou se/a lá qual for a coloração que vocês prefiram! —exclama
Nolasco para aqueles que o cercam no apartamento de Masaccio. —Disseram
isso a propósito dos chineses - como é que poderiam os chineses de cultura
tão antiga, como poderiam eles virar marxistas. E sobre os amáveis cambo-
janos. E os laosianos, tão simples. E os doces vietnamitas. E, podeis acreditar
em mim, hoje tudo isso está de uma maldita, maldita cor vermelha, verme
lha! Por que é que os europeus iriam ser diferentes?
— Como, diabos, podem eles imaginar um regime comunista na Itália -
especialmente se for cercado por outros regimes semelhantes na França,
Espanha e Portugal, e com o apoio de uma esfera de influência russa mais
para o Ocidente, afetando a Alemanha Ocidental, a Suíça e os países do
Benelux? Como é que podem mesmo imaginar que um regime comunista
339
assim iria respeitar quaisquer compromissos? —Canaletto não acredita nisso e
sua pergunta é muito prática.
— Parece contraditório e imprudente, eu sei, — responde Bronzino, —
mas é assim que, muito provavelmente, a coisa iria ser, em semelhante hipó
tese. - E continua: —Nós somos realistas. Todos os planos, é preciso que vos
lembreis, são apenas planos. Agora mesmo está continuando a luta. Há uma
crise que afeta todo mundo. Precisa ser resolvida. Alguém vai sair perdendo.
Alguém vai sair ganhando. Se, como agora parece provável, o PCI acabar ven
cendo - e se os partidos comunistas de outros lugares vencerem —eles tam
bém serão realistas. Da mesma forma que os intrometidos americanos são
realistas e, afinal, resolveram deixar de lado a Europa. Afinal de contas, os
patrões de todos os comunistas, os russos, só permitirão que partidos comu
nistas locais conquistem o poder quando for hora. Bem, eles avaliarão a opor
tunidade da hora em termos puramente econômicos — quando for melhor
para eles, quando precisarem disso. Nem antes, nem depois. Até onde pode
mos julgar, essa hora deverá ser por volta dos cinco primeiros anos da próxima
década, entre 1980 e 1985. Ou por aí. É bem evidente que, mesmo no con
texto dessa configuração, as economias da Europa dominadas pelos russos
precisarão de parceiros comerciais no exterior. E, como um investidor de
estrutura internacional, o Vaticano tem um papel que poderá desempenhar
em tal configuração -- estará fixado dentro da órbita russa, mas terá seus
tendões financeiros fora dela...
345
O Segundo Dia
A TERCEIRA SESSÃO
Sou a Luz da salvação divina, num universo que tomei humano. Esse
universo nunca foi um cosmos fechado, de forças materiais, de estruturas
vitais interligadas, de um emaranhado de entretecidas leis, que governas
sem um universo material no qual não escapa nem uma só partícula, e
no qual se intercambiam toda a matéria e toda a energia —mudando de
posição, encaixando-se, expirando, revivendo, transmudando-se, vindo a
ser, decompondo-se, nascendo.
Para esse cosmos eu vim. Nele interferi. Vindo de fora. E não de acordo
com suas leis de ferro. Contudo, sem violar essas leis. Mas transcenden
do-as.
E sabei que a minha intervenção foi a intervenção de uma força comple
tamente diferente. Porque não sou uma nova fonte de luz. Mas a Luz
incriada. Não sou um ente de amor. Mas o próprio Amor. Não uma for
ça compassiva e salvadora. Mas a Compaixão é o meu ser. E a Salvação é
da minha essência. E tudo isso foi incorporado em carne e sangue, num
útero materno. Em minha carne e meu sangue. Num corpo de bebê, no
arcabouço de um homem —sua vida, seus atos, suas promessas, sua mor
te, sua ressurreição, seu domínio. Assim o meu corpo, a luz da salvação.
Neste mundo, mas não deste mundo.
Vêde o que aconteceu. Vêde como o Príncipe deste mundo, com sua hor
renda força, tenta subjugar-me! Explicar-me! Negociar comigo! Num
momento sou apresentado como o produto de um dos hemisférios da
mente —analítico, digital, lógico, discreto. No outro, sou descrito como
o produto de outro hemisfério — sintético, místico, afetivo. Mas não
pertenço nem a Atenas, nem a Jerusalém, com sua Bíblia e sua Paixão.
Contudo, dentro desse universo humano,passei pela mente bíblica e pelo
povo bíblico e através de Atenas e de seu rebento —a mente ocidental.
Sou o Amor incriado, Luz incriada. Luz e Amor foram sempre. Sempre
serão. Em todos os tempos. Em todos os lugares. Um pertencendo inti
mamente ao outro. Mas sem serem limitados por qualquer tempo ou lu
gar ou sistema ou teoria. E, desde o começo dos tempos, o inimigo tem
conseguido subjugar-me.
379
PAULO CORDEIRO
Imprimiu
Todos os Cardeais se defrontam com •
corrupção acumulada em mais de um
lênio - a Isreja como negociante, como
um conglomerado multinacional envoM"
do na posse e na administração de pro
priedades e, como agente do poder, ne
gociando com países, continentes, e com
a liberdade dos fiéis.
No âmago do livro, Malachi Martin cria
o que, para muitos leitores, será uma ex
periência sem precedentes e inesquecí
vel: o cenário do Conclave 82.0 leitor fi
cará sabendo mais sobre o que se passa
numa eleição papal do que muitos dos
Cardeais-Eleitores, inclusive a maneira pe
la qual são mantidas com o mundo exte
rior comunicações secretas e ilegais.
Quando Lutero pregou sua mensagem
na porta, o resultado foi uma revolução
irreversível. Com este livro, o Dr. Malachi
Martin — antigo jesuíta cuja laicidade foi
concedida pelo Papa Paulo VI — tam
bém, num gesto ousado e polêmico, fi
xou a sua própria mensagem na porta da
Catedral de São Pedro.
E ninguém ficará indiferente ante o que
ele diz em seu livro.
Malachi Martin, antigo jesuíta, professor
do Instituto Bíblico Pontifício de Roma,
estudou teologia em Louvain. Lá recebeu
o doutorado em Línguas Semitas, Ar
queologia e História do Oriente. Estudou
em Oxford e na Universidade Hebraica,
concentrando-se no conhecimento de
Jesus tal como é transmitido pelas fontes
judaicas e islâmicas. Serviu em Roma, de
1958 a 1964, onde trabalhou em estreita
colaboração com o Cardeal Augustine
Bea e com o Papa João XXIII.
À sua vasta e profunda formação cultu
ral, soma-se o talento literário que, em
Malachi Martin, ultrapassa a rotina. O pú
blico brasileiro já o conhece através de
outro livro igualmente polêmico e sedu
tor: Reféns d o Diabo — o mais impres
sionante relato de possessão e exorcis
mo e seu significado em nosso tempo.
É inevitável que muitos leitores fiquem surpresos, tal
vez chocados, ante as revelações contidas na história
deste livro. Pelo seu conteúdo relisioso e pela ousadia da
narrativa, o singular relato de Malachi Martin vai mais lon
ge do que todos os demais romances já escritos sobre os bas
tidores e as personalidades da Igreja Católica.
Salvo os nomes dos personagens fictícios, to
dos os demais aspectos da trama — cujo clímax é a
eleição papal — são baseados em informações
e nos testemunhos recolhidos in loco pelo Autor.
Por ter trazido a verdade ao público, Malachi Martin
viu O Conclave ser definido como um ato de traição — é
o preço que pagou por ter posto a liberdade intelectual
acima dos interesses do poder religioso.
À margem da polêmica religiosa, é um livro que, em
tudo e por tudo, ultrapassa a rotina literária.