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O manto d e seg red o q u e tem a c o b e r­

tado a Igreja Romana mistifica e p erturba


milhões d e católicos, assim co m o p ro te s­
tantes e judeus. Este corajoso livro d e
Malachi Martin revela com o influentes
personalidades da Isreja Católica estão
dispostas a fazer a aco m o d ação com o
comunismo, O p re ç o da sobrevivência
da Isreja, seg u n d o uma dessas corren­
tes, d ev e ser o radical afastam ento das
instituições ocidentais e da forma d e vi­
da vigente em nossa sociedade. A essa
linha d e p en sam en to o põem -se outras
im portantes autoridades, q u e advogam
a restauração d a Igreja em sua a d e q u a ­
do posição. A d ecisão finat, to m ad a p o r
todos esses hom ens, q u e falam em no­
me da quarta p arte da p o p u lação m un­
dial, surge no d eco rrer d o Conclave 82,
no qual é eleito o novo Papa.
Desde o c o m eço do s anos 70 q u e mui­
tos Cardeais vêm pro m o v en d o m ano­
bras eleitorais e, em O Conclave, Malachi
Martin nos p õ e nos bastidores, o n d e se
trava a luta — q u e nada tem d e santa —
para a conquista da coroa d e Pedro e d o
p o d e r terreno d e seu reinado. Ficamos
sab en d o p o rq u e é q u e as violentas mu­
danças ocorridas so b Paulo VI, determ i­
nadas — disso estava ele co n vencido —
para garantir a própria sobrevivência da
Igreja, impeliram os Cardeais a uma d as
decisões mais graves d e nossa história.
Nesta batalha surda, travada nas so m ­
bras e na ap aren te calma d o Vaticano,
p odem os observar os negociadores, os
homens santos, os politiqueiros, as cíni­
cas alianças, en q u an to as várias facções
procuram ganhar o controle da situação.
Malachi Martin

Toda a verdade, lendas e intrigas sobre o que se passa


nos bastidores de uma eleição papal.

Tradução
Mary Cardoso
Título original norte-americano:
THE FINAL CONCLAVE

Copyright © 1978 by Malachi Martin

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá


ser reproduzida ou transmitida de alguma forma ou por qualquer
meio sem o consentimento prévio e por escrito do proprietário,
representado por seu Agente Carmen Balcells Agência literária,
Diagonal, 580, Barcelona 11, Espanha

Este livro foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos por
Stein and Day/Publishers

Tradução
Mary Cardoso

Capa
desenho de Carlos Reluz

Revisão de provas
Jorge Maurflio Pinto

Direitos desta tradução reservados pela


Novo Tempo Edições Ltda.
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Tijuca - Rio de Janeiro, RJ
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Impresso no Brasil
Pois sâfo tímidas as deliberações dos mortais,
e inseguros nossos planos.
... quem conheceu jamais o teu conselho, salvo que
tivesses dado Sabedoria e mandado, do alto, teu espírito santo?
E assim se fizeram retos o£ caminhos daqueles sobre a terra
Sabedoria 9: 14, 17 e 18
Nota do Autor

0 cerne deste livro é a descrição do Conclave 82. Os participantes s&o


fictícios. Mas, em todos os demais aspectos, constitui um cenário
baseado no material formado pela massa de fatos que o precede e em
todos os conhecimentos precisos disponíveis, envolvendo os tópicos
e as facções em operação na escolha do sucessor do Papa.
CONTEÚDO

O COMEÇO ............................................................................................. 11

O PRIMEIRO DOS PAPAS PEREGRINOS............................................. 27

A FASE ANTERIOR AO CONCLAVE:


Os Boletins Pré-Conclave, 1970-1977 ....................................................... 57
Série U m - 1970 ............................................................................... 59
Série Dois - 1971 ............................................................................. 62
Série Três —1972 .......................................................................... .. 67
Série Quatro —1973 ........................................................................ 71
Série Cinco —1974 .......................................................................... 73
Série Seis - 1975 ............................................................................... 76
Série Sete - 1976 ............................................................................ 85
Série Oito - 1977 ............................................................................ 90
Boletim Especial —Como se Dispõem os Votos, nas
Vésperas do Conclave 82 ............................................................ 107
Boletins Especiais —Da Morte de Paulo até a Abertura
do Conclave 82 .......................................................................... 112

O CONCLAVE F IN A L ............................................................................ 123


A Tarde da Instalação........................................................................125
O Primeiro Dia .................................................................................221
O Segundo Dia ................................................................................. 347
O COMEÇO
Lá no alto da rocha plana pousada entre os três píncaros do Monte Hermon,
Jesus e o “Príncipe deste Mundo” —como Jesus algumas vezes o chamou -
tinham-se encontrado frente a frente, alguns anos antes. O cume do Monte
Hermon, a 281.391 metros de altura, ergue-se para sempre acima de todas
as coisas, é visível a olho nu de qualquer parte em torno desta terra: da Síria,
se olhado do Sul; do Mediterrâneo, se do Este; da ponta do Mar Negro, se do
Norte. E, assim, dizem os beduínos, do meio do Grande Deserto, se olhado do
Oeste.
— Tudo que podes ver deste rochedo, —dissera o Príncipe em tom d
adulação, abarcando num gesto grandioso o vasto horizonte de reinos e de ro­
tas marítimas que tinham a seus pés - tudo isto te darei, se te ajoelhares e me
adorares —se fores meu servo!
Poder em troca de poder. Essa era a transação. Entre Satã e Jesus tem si­
do sempre uma disputa pelo poder. O Príncipe perdera aquela rodada.
Agora, de novo perto do Hermon, uns três anos mais tarde, Jesus esfrega
sal na ferida daquela derrota. Não é difícil imaginar. A cena passa-se em algum
lugar fora da cidade síria que é hoje chamada Baniyas, no sopé da montanha
do Hermon, de três píncaros, cobertos de neve. Ali perto, o Rio Jordão brota
e desce, fluindo por toda a extensão da Palestina, enchendo os poços das al­
deias, dando vida aos olivais, às hortas, aos campos de melões, aos pomares re­
pletos de laranjas, de figos, de maçãs, de romãs, e aos campos esmaltados de
flores selvagens. O céu azul sobre a face imóvel do Hermon hospeda o brilhan­
te sol do meio-dia e mesmo os cinzentos-ardósia e os castanhos e os amarelos
da areia e da pedra forçam os olhos a entrefechar-se, contra o resplendor neles

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refletido. O vento desarruma os cabelos e as roupas. As águas do Jordão mur­
muram por trás das vozes do pequeno bando de homens que caminha subindo
o Hermon.
Jesus, como sempre conduzindo o grupo, atira por cima do ombro uma
pergunta aparentemente inocente, tal como faz, às vezes, a propósito dos fala­
tórios do lugar:
— Quem é que vós dizeis que eu sou?
O impetuoso Simão deixa escapar o primeiro sentimento que o domina:
— Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo.
Jesus pára bruscamente. A gente imagina seus olhos firmemente presos ao
olhar de Simão.
— Tu és abençoado, Simão! Não foi um simples ser humano quem te dis­
se isso. Foi meu pai que está no Céu quem te revelou isso. Agora te digo, so­
lenemente, atta kefa: Tu és pedra! E sobre ti, como sobre uma rocha, cons­
truirei de tal modo a minha Igreja que toda a força de Satã não poderá des­
truí-la. A ti darei as Chaves do Reino do Céu. Seja o que for que proíbas na
Terra, será aquilo que o Céu proíbe. Seja o que for que permitas na Terra, se­
rá aquilo que o Céu permite.
Estas são as palavras que revelam o curso infinito do poder de Deus entre
os seres humanos, e a batalha sem fim contra ele travada por “toda a força de
Satã” . Jesus tranqüiliza Pedro e todos que a ele pertencem —hão de usufruir,
finalmente, um Triunfo e uma Bênção especiais. O Triunfo será o triunfo de
Jesus e o de sua Igreja, sobre Satã. A Bênção será a universalidade: todos os
homens e mulheres aceitarão a salvação de Jesus e acreditarão nele. Mas nem
o Triunfo, nem a Bênção, será conquistado por Jesus sozinho. Ele se vincula
a Pedro, à sua Igreja, a todos os sucessores de Pedro e a todos os homens e
mulheres.
João, Jaime, Judas e os demais imediatamente reagem ao simbolismo
de Jesus, voltando os olhos para a rocha do Hermon, depois olhando para o
rosto de Jesus. Eles o conhecem muito bem! Está dizendo e fazendo alguma
coisa significativa. Mas não o compreendem. “Aquilo estava escondido de
nós” , escreveria Marcos, anos depois do fato acontecido, “e tivemos medo
de lhe fazer perguntas sobre aquilo tudo”.
Dentre todas as escolhas que Jesus poderia ter feito para o primeiro che­
fe de sua Igreja, Simão teria que ser a menos indicada. Em sua traição de Je*
sus em perjúrio público, Simão só ficaria abaixo de Judas Iscariotes, que, na
realidade, iria vender Jesus a seus inimigos por dinheiro. Ao primeiro sinal
de dificuldade, aquela “rocha” correria para proteger-se, como um coelho
assustado. Contudo, anos mais tarde, ele seria martirizado e não fraquejaria
em seu amor oii em sua devoção.
Mesmo naquele dia, perto do Hermon, Jesus sabe aquilo de que Simão é
capaz, tão claramente quanto percebe o zombeteiro desprezo do Príncipe por
aquela “rocha” humana. Pois é no contexto de sua memória sem paralelo que
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Jesus fala com Simão como chefe da Igreja, sobre a Igreja, sobre a ameaça de
Satã, interminável, incansável. E é no contexto dessa memória de Jesus, que
tudo abrange, que aquilo que ele diz a Simão diz também ao Papa Paulo VI,
assim como a todo Papa que vier depois dele.
Aqui, a verdadeira chave da compreensão é a memória de Jesus e esta não
é memória no sentido insignificante em que a compreendemos:

“ ... O Conselho de Educação aboliu lições de memorização, por serem


um desperdício do potencial do aluno...”
“Faça um esforço de memória, querida. Onde é que vocé pôs as minhas
abotoaduras?...”
“Esquece que eu te dei este dinheiro, amigo...”
“Por uma simples taxa de 500 dólares, garantimos uma memória fotográ­
fica, ao término de nosso curso de cinco semanas...”
“O IBM 3033 comporta oito megaseqüências de dígitos binários em sua
enorme memória...”

Nas proporções reduzidas de nosso raciocínio, padrão século XX, enten­


demos memória como sendo apenas um computador eletrônico miniaturiza-
do, que recita fatos e números ao longo de nervos e de ligações sinápticas. No
entanto, de alguma forma, muitos de nós podem perceber que, quando damos
as rédeas a nossos ódios, nossos temores, nossas lealdades, nossas esperanças —
áreas de sentimento em que nos deixamos envolver por inteiro —empregamos
memória num sentido maior. Fatos e números, talvez. O passado, também.
Igualmente o futuro. Tudo isso feito presente no contexto do nosso eu cons­
ciente. Somente o sono, o cansaço, a proximidade da presença do mal —ou
nossa própria escolha —parecem tomar opaca, adormecida, essa memória ple­
na.
Em Jesus, tal memória é uma consciência de espírito eternamente desper­
ta e que nunca adormece, porque nunca se cansa, porque nunca é apenas mor­
tal. Nada passado. Nada simplesmente no futuro. Tudo presente.
Assim, naquele momento, perto do Hermon, transcendem-se as dimen­
sões comuns da existência. É como se o tempo que passou nunca houvesse ex­
pirado. O que está para vir, já foi realizado. Tudo por aquele instante. Simão,
agora kefa, Petros, Pedro, a rocha, é então o chefe da Igreja —em todas as
eras. Os outros onze são multiplicados nos milhões e bilhOes de todos os ou­
tros homens e mulheres e crianças. E aquele pedaço estreito de mato, no de­
serto, no qual estão de pé aqueles treze homens, é um calidoscópio, não
apenas da Terra, mas do universo —o planeta Terra e também as estrelas e
as galáxias infinitas. E Judas está lá. E o Príncipe,
Tudo que se refere a tal ocasião é tanto símbolo quanto realidade. A
montanha chamada Hermon. O Jordão. Rocha. Água. Permanência e vida.
A rocha sobre a qual o Príncipe ousou tentar Jesus foi por Jesus tomada co-
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mo o símbolo de seu próprio poder, de sua própria e eterna constância no
mundo. Acima de tudo, a escolha de Simão: sempre a vitória sobre Satã atra­
vés dos mais fracos dos elementos. ‘‘Deus escolheu os fracos e os tolos para
confundir os sábios deste mundo”, escreveria Paulo uns quarenta anos mais
tarde. E assim, com sua mente obtusa e sua fraca determinação, é Simão a
resposta de Deus ao Príncipe, cuja fulgurante inteligência e inquebrantável
vontade são desse modo diametralmente enfrentadas. Como humanos, quase
podemos ouvir Deus respondendo ao desafio de Satâí:

“Dizes que tua sabedoria e tua força te dão direito a uma posição exalta­
da? Pois muito bem. Tua humilhação será completa. Vou te vencer e des­
truir finalmente e para sempre, precisamente através do que é o mais fra­
co, do que é quase imbecil, do que é desprezível a teus olhos.”

Assim como se o coelho matasse a cobra. Como se os prisioneiros de Gu-


lag, morrendo de fome, sobrepujassem o Exército Vermelho. Como se um car­
regamento de judeus a caminho de Auschwitz, debaixo de chicote, reduzisse a
nada Hitler e todo o seu poder.
Mas há mais ainda. A afronta feita ao Príncipe em Hennon é magnificada.
Diante desse Inimigo, Jesus é incansável. Simão, o débil, não é apenas a rocha
que sustentará a Igreja de Jesus. Simão, o débil, terá, pessoalmente, o poder
de representar Jesus. Pessoalmente! Esse pigmeu terá um poder maior do que
aquele que o Arcanjo degradado jamais teve. Poder concreto. As Chaves do
Reino. O segredo da eterna bem-aventurança. O que quer que esse Simão per­
mita é o que Jesus permite. O que quer que esse Simão proíba, Jesus proíbe.
Jesus pode fazer e fará com que, em tudo aquilo que diga respeito à entrada
no Céu, Simão seja incapaz de errar. O débil Simão. “Estarei contigo todos os
dias, até o fim do universo.” Simão será o representante pessoal de Jesus e a
fonte de orientação para todos os crentes que vierem depois.
Naquele dia, na memória de Jesus no alto do Monte Hermon, todos aque­
les crentes ouviram suas palavras: “Tu és Pedro.” E ele ouve aqueles crentes
séculos mais tarde, quando constroem a frase de resposta: “Onde estiver Pe­
dro, aí estará a Igreja de Jesus.”
Naquele dia, Simão não compreende. Mas mesmo esse fato não destruirá
o curso que Jesus estabeleceu. Olhando dentro dos olhos de Simão, os quais
o fitam meio apertados sob o brilho da luz do sol, Jesus vê tudo. Todos os
erros e as desastradas adaptações que Simão tentará modelar da mensagem de
Jesus, de salvação universal. E tal como acontecerá com os dons de Simão,
assim também será com os seus erros: serão partilhados através dos séculos.
Primeiro: o erro da dominação política. Simão iria entender o poder pe­
culiar de Jesus em termos de conquista e de império. “Não é agora mesmo,
Senhor?” perguntará Simão estupidamente, mesmo depois que Jesus volta da
morte, “não é agora mesmo que irás restaurar o Reino de Israel?" A maior
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parte dos sucessores de Simão em Roma, durante quase dois mil anos, iria
cometer o mesmo erro. É uma idéia cuja atração custa a desaparecer. O Triun­
fo de Jesus traduzido num triunfo imperial.
Depois: dominação étnica. Simão não seria capaz de compreender a natu­
reza universal da intenção de Jesus. Mesmo logo depois de receber o Espírito
Santo, Simão insistirá em que Cristandade é um privilégio étnico. Teimosa­
mente recusará o Batismo aos não-judeus. Mesmo quando se faz necessário
que Jesus mande a Simão uma mensagem especial, para fazé-lo ceder nesse
ponto, mesmo então Simão dirá aos outros —a Paulo e a outras pessoas como
ele —que batizem os não-judeus. Mas ele não o fará.
E um terceiro: dominação geográfica. Próximo ao fim de sua vida, como
prisioneiro em Roma, Simão iria vincular a salvação de Jesus a um lugar. Con­
tinuaria sendo um palestino. Em seu próprio e persistente ódio de Roma, sua
obstinada opinião excluiria o amor e a realidade de Jesus. Logo Jesus estaria
de volta em Armageddon, perto da Planície de Sharon, na Palestina —Pedro
acreditava e ensinava. Tomaria Jerusalém e destruiria Roma e seu império.
Em tal destruição estaria o Triunfo de Jesus e de todos que nele acredita­
vam. Na sobrevivência dos crentes, de acordo com esse entendimento, estaria
a Bênção de Jesus. Mas, se assim fosse, essa Bênção estaria traduzida numa
bênção temporal de um povo de elite; e o Triunfo seria apenas o estabeleci­
mento de uma base territorial específica. Quantos iriam parecer excluídos por
tais erros, repetidos através dos séculos!
Ainda assim, Jesus terá eficácia, mesmo com essas limitações de Simão.
Da mesma forma que continuará a tê-la com as limitações de cada um dos
sucessores de Simão. Da mesma forma que o fará através de todas as queixas,
guerras, discórdias e cismas centradas na falta de compreensão desses ho­
mens débeis e por eles provocadas, ao longo de dolorosos séculos.
Talvez Pedro não tenha compreendido as coisas nem um pouco melhor
do que as multidões que abandonaram Jesus cheias de amarga desilusão, quan­
do ele, ao contrário do que elas esperavam, deixou de restaurar o poder polí­
tico de Israel, após sua entrada triunfal em Jerusalém, três dias antes de mor­
rer. Mas, em toda a sua confusão, Simão nunca abandonaria Jesus definitiva­
mente, nunca renunciaria a seu amor por Jesus. E, afinal, o que importa a Je­
sus é que o homem não renuncie ao amor. Pedro nenhum faria isso. E Jesus
nunca abandonaria Pedro.
Uma noite, já tarde, alguns meses depois daquele dia fulgurante no Mon­
te Hermon, Jesus caminha na escuridão com um grupo muito menor, na dire­
ção do Jardim de Gethsemane. Simão caminha, de novo, atrás de Jesus. De
novo ele escuta Jesus, que lhe fala: "Simão, Satã diz que tem poder sobre ti
e pretende fazer de ti seu brinquedo e instrumento.” Assim, Simão está sendo
prevenido mais uma vez. Será presa fácil para Satã.
Mas então, com aquela segurança fundamentada no poder, com aquela
imperiosa supremacia que lhe era peculiar, Jesus continua: “Mas tenho rezado
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por ti, para que tua fé não te falte, nem fraqueje. Portanto, quando falhares...”
o insistente realismo destas palavras deve ter coftado o coração do sensível Si­
mão, portanto, quando falhares, terás a capacidade de te arrepender de
teu erro. E terás a capacidade de dar, a todos aqueles que forem ligados a ti,
novas razões para continuarem a ter fé”.
E isso é tudo que é dito a Simão. Jesus mantém o mistério de suas inten­
ções definitivas e de seus propósitos profundos. Revela apenas seus métodos.
Quanto ao resto, Simão terá que se arranjar com as limitações de seu próprio
caráter. Da mesma forma que terá que o fazer cada um dos seus sucessores.
Até um último momento para cada um deles...

Em outra noite, uns trinta anos mais tarde, em Roma, Simão Pedro, finalmen­
te, vê tudo como tudo foi visto por Jesus desde o começo! Mesmo então, Si­
mão vê as coisas de um ângulo confuso. Ele e mais um outros dois mil cristãos
tinham sido amarrados a cruzes de cabeça para baixo, numa barranca coberta
de grama que circundava os Jardins Imperiais no Monte Vaticano. Tinham si­
do untados com pez. Esta noite, irão ser tochas vivas, ululantes, agonizantes.
O Imperador Nero, sua encantadora concubina Popéia e os convidados de
ambos terão luzes sob as quais comerão e verão coisas sobre as quais farão pi­
lhérias. Cada cristão morrerá fazendo o sinal clássico de Satã —a cruz inverti­
da.
Embaixo do Monte Vaticano, do outro lado do Rio Tibre, um escravo
chamado Lino está de pé, calado, observando. Um dia Simão Pedro batizou-o.
E então, naquela manhã, quando vieram buscar Simão Pedro para morrer nos
Jardins, este chamou Lino e nomeou-o seu sucessor.
— Tu és a rocha agora, Lino. —Simão Pedro disse isso a Lino na presença
de todos os chefes cristãos. ~ Tu és Pedro... Conduze-os, como eu os conduzi.
Em nome de Jesus. Minha morte não tem importância. Breve o Senhor virá.
De onde está agora, Uno pode ver escravos correndo entre as cruzes,
ateando fogo aos corpos com rápidos golpes com as tochas ardentes em cada
uma das cabeças.
Sem que Lino possa ouvir, Simão Pedro continua murmurando as últimas
palavras que tinha dito a Jesus: “Senhor, eu te amo. Sabes que eu te amo. Eu
te amo.” Em meio ao cheiro, à fumaça e à gargalhada romana. “Sabes que te
amo, Senhor.” Simão Pedro espera sua vez.
E aí, naquele enevoado, Simão Pedro pôde perceber o vulto grande de
um centurião de pé diante dele, as pernas bem separadas, o manto vermelho
pendente para o lado esquerdo. À luz das chamas, Simão Pedro tem a visão
do brilho da espada curta, segura na mão direita, imóvel, mas pronta para o
golpe.
- Pela graça de Afranio Burro, judeu, ~ murmura o Centurião discreta­
mente, respeitosamente, enquanto contrai o corpo para golpear. Simão Pedro
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nâo vai arder. Burro, um cristão convertido e com influência nos altos círcu­
los, conseguiu como último favor a Simão Pedro que ele morra pela espada.
Em meio a todo o horror, fogo e fumaça, gritos dos que morriam, a músi­
ca, as risadas dos convivas, há para Simão um instante de luz. Tudo está claro.
O sorriso frio daquela lâmina. A contração dos dedos do Centurião em volta
do cabo. Os músculos que se enrijeciam no pulso e no braço. 0 apoio daque­
las duas pernas. O lado direito do corpo recuando na medida certa. A consci­
ência de Simão Pedro inunda-se de lembranças. Perdoa-os... Abençoa-os... Re­
za por eles... Ama-os... Faze-lhes o bem... O que quer que permitas nesta Ter­
ra, será o que o Céu permite... O que quer que proíbas na Terra, será o que o
Céu proibe... Tu és Pedro... Ele vê, mais uma vez, a face de seu adorado Jesus,
como acontece com todos os Papas, na hora da morte, e agora, pela primeira
vez, penetra na memória de Jesus, onde tudo é conseguido —o pleno Triunfo
de Jesus, a Bênção plena de Jesus —tudo num lampejo, enquanto a lâmina fu­
ra entre suas costelas e vara pulmão e coração a dentro. Todos os homens e
mulheres. Nem judeus. Nem gentios. Tudo uma coisa só. Não só a Palestina.
Não Roma apenas. Mas todas as terras. A terra. Os céus. O começo. O fim. O
pecado. O Príncipe do mundo rindo com sarcasmo. Jesus no Calvário. Jesus
na glória...
Quando a espada sai, traz sangue após si como se fosse uma fita vermelha
ondulando, Um corte impecável, feito por um especialista. O Centurião vê
uma devastadora máscara de agonia e terror cair por um momento, como uma
garra opressiva, sobre o rosto de Simão Pedro, unindo num todo só cada um
de seus traços, num nó de sofrimento. Um momento em que o corpo se toma
rígido, duro, reto, tão teso quanto a estaca que o sustenta, vibrando por den­
tro, dos pés à cabeça, num último esforço interior. Depois desmorona, contor­
cendo-se, os olhos revirando, o rosto relaxando, naquela resignação inexpressi­
va, naquele abandono que só a morte confere, sangue e muco escorrendo da
boca, no gemido abafado de um último suspiro, urina e excremento caindo no
chão.

Na semana seguinte, o corpo de Simão Pedro é recobrado por Lino e pelos ou­
tros cristãos. Na escuridão da noite, cavam apressadamente sua sepultura,
num ponto para a extremidade norte do Monte Vaticano. Entre os cristãos, o
ponto sobre a sepultura de Pedro ficará sendo conhecido como a “memória”
de Pedro.
A notícia espalha-se através das linhas clandestinas de comunicação entre
os cristãos, até as pequenas comunidades cristãs em Milão, em Marselha, nas
cidades gregas, na Síria, Palestina e África: “Pedro está morto. Lino é sua es­
colha.”

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Hoje, nessa mesma parte norte do Monte Vaticano, a “memória” de Pedro es­
tá agora na cripta central de uma enorme Basílica, a de São Pedro, construída
em torno do lugar em que Pedro morreu, durante o banquete de Nero. Ao la­
do da Basílica, há um complicado edifício de mil aposentos, o Palácio Apos­
tólico.
No quarto pavimento de uma ala desse Palácio, a uns trezentos e cinqüen­
ta metros da “memória” de Pedro, ocorre a morte do Papa Paulo. As horas e
os dias do declínio de Paulo são zelosamente vigiados pela poderosa burocra­
cia do Vaticano, e acompanhados pelo rádio e pela televisão por centenas de
milhões de pessoas, em todas as partes da Terra.
Paulo encontra algum conforto. Como todos os Papas, ele fez suas adap­
tações na mensagem de Jesus e agora, com a morte se avizinhando, a visão de
Jesus é também o seu lote. A entrada de Paulo na memória de Jesus, seu mo­
mento de absoluta, infinita claridade.
Até onde alcança a memória de Jesus, é o mesmo, tanto a morte de Si-
mão e a designação de Lino, quanto a morte de Paulo VI e a designação do
sucessor de Paulo. Apenas para nós, tal como foi um dia para Simão Pedro, os
detalhes são perturbadores.
A uns quinhentos metros da “memória” de Simão Pedro, o sucessor do
moribundo Paulo VI e de Simão Pedro será designado pelos votos dados nu­
ma reunião especial chamada Conclave. Cerca de cento e vinte Cardeais da
Igreja Católica Romana, cada um com mais de cinqüenta e menos de oitenta
anos de idade, irão encontrar-se no Monte Vaticano, no Salão de Reuniões
denominado “Nervi” . Não na Sistina, cujas paredes englobam séculos de his­
tória romana, cujos afrescos, em silenciosos matizes, falam do gênio de anta­
nho e de etema fé. Não na Sistina. No Nervi, cujo cimento fluiu para os mol­
des há menos de quinze anos, cujas quatro paredes são nuas, o teto ondulado
e o chão inclinado abrindo-se como um estômago pronto a receber milhares
como se não passassem de uns poucos. Nada de afrescos. Nada de telas pinta­
das a óleo falando de Deus, do Céu, de Cristo, da eternidade. Apenas, embu­
tidas numa parede, as cabinas sem olhos para as equipes de TV e de rádio. O
Nervi. Logo do lado de fora da colunata que cerca a Praça de São Pedro. Flan­
queia —mas não toca —a majestosa muralha de mil e quatrocentos anos que
circunda a Cidade do Vaticano. Não toca na Basílica de São Pedro. Ou no Pa­
lácio Apostólico.
O Nervi. Assim decretou Paulo VI, antes de sua morte. A brusca ruptura
com a tradição da Sistina não é uma artimanha do acaso, um ardil do tempo,
fora de sintonia. A entrada desses Cardeais-Eleitores nesse salão, sem raízes
nem paralelo no passado, toma visível o rompimento com a história, que esses
Cardeais e todo o povo do mundo estão vivendo e do qual não podem fugir.
***

20
Quando, mais tarde, algum historiador vier a escrever um registro desse
Conclave, o mesmo por certo se intitulará O Livro da Aposta. Mas, a menos
que seja cristão, talvez não compreenda que o que esses homens fizeram foi
feito apesar do poder temporal que eles detinham e de suas ambições pessoais,
por causa de sua confiança na promessa de Jesus, de que “toda a força de Satã
não destruirá a minha Igreja”, e porque ouviram Jesus dizer “Tu és Pedro” .
Bm termos de sabedoria temporal e de uma política pragmática, apostaram no
impossível. Em termos de sua fé, nada além disso poderiam fazer.
Quando o próximo Papa for eleito aqui no Nervi, saberá que vai reger
uma Igreja que um dia foi una e monolítica, mas que agora está partida de al­
to a baixo e para os lados, num ziguezague, em relação a tópicos fundamen­
tais, em matéria de crença, de prática religiosa e de moral individual. A Igreja
que vai chefiar já se encontra, ela própria, num mundo totalmente diferente
daquele que seus predecessores conheceram.
Quando o próximo Papa for eleito aqui, já deverá saber que não pode
mais esperar viver permanentemente em Roma. Ele, e cada um dos seus su­
cessores, sempre afirmarão serem o Bispo de Roma, o sucessor de Pedro, o
Vigário de Jesus, seu representante pessoal entre os humanos. Mas seu papel
assumirá o aspecto de uma viagem, de uma peregrinação. Em parte livremente
escolhida; em parte lhe será imposta.
A ruptura com o longo passado já é completa. E ele saberá disso.
Habitará em lugares jamais vistos por outro Papa. Tomará providências
que nenhum antecessor jamais levou em consideração. Terá que decidir assun­
tos e problemas críticos que nenhum Papa antes dele nem mesmo jamais so­
nhou. Porque, de nenhuma outra forma, será ele capaz de ser Papa. E acabará
por compreender sua missão papal de um modo tão diferente da compreensão
dos Papas do passado, e tão desconcertante, aos olhos dos crentes, que muitos
deixarão de crer. Em sua peregrinação, os mais fracos nunca partirão com ele.
Os mais fracos jamais o conseguirão. Só os fortes o acompanharão até o fim.
Posto o problema em termos simples, reconhece-se agora que a Igreja Ro­
mana, seu Vaticano e sua hierarquia espalhada pelo mundo inteiro, acumula­
ram uma bagagem política, diplomática e financeira de que precisam se des­
fazer: seus investimentos financeiros, que chegam a alguns bilhões de dólares;
sua riqueza em imóveis e valores concretos, representando garantias que atin­
gem valores muito além de centenas de bilhões; sua posição pertinaz e eficien­
te no mundo da diplomacia, da política estabelecida e do poder industrial; e
finalmente —o mais doloroso de tudo —seu conceito funcional de “Igreja”,
governo e autoridade e poder da Igreja na salvação de todos os seres humanos.
Só muito poucas vezes, na história de duzentos e sessenta e três Papas,
surgiu um momento igual; talvez nunca uma escolha tão audaciosa tenha esta­
do iminente. Esses poucos Papas romanos que poderiam ter dado salto seme­
lhante recusaram essa opção tão cegamente quanto Simão Pedro recusou fa­
zer o batismo dos não-judeus. Cada um deles se aferrou à idéia do poder tem-
21
poral tão teimosamente quanto Simão Pedro esperou que Jesus estabelecesse
um reino político na Palestina. Mas, ao contrário de Pedro, que recebeu de
Jesus uma mensagem especial dizendo-lhe que admitisse os não-judeus no ba­
tismo e na salvação, não houve, para esses Papas, mensagem especial.
Somente agora houve outra espécie de mensagem de Jesus à sua Igreja —
veio ela na força irresistível de uma revolução já hiaie inequivocamente visível
aos realistas do Vaticano. Com base nessa revolução,*stão eles fazendo novos
planos.
Essa revolução, que vêem já bem em marcha, não é de natureza política,
mas afetará a política de todas as nações. Diretamente, nada tem a ver com
marxismo ou com a democracia ocidental, salvo que, ao que parece, prenun­
cia o fim de ambos, tal como os temos conhecido. A revolução, no entender
do Vaticano, tem suas origens naquele nível de vida e de valor em que Jesus e
Satã lutam e têm lutado através de todas as idades do homem e pela alma da
humanidade.
Esse tipo de Conclave e essa linha de pensamento constituem a herança
direta de Paulo VI. Apesar de suas deficiências e de seus insucessos iniciais, fi­
nalmente ele compreendeu a revolução e, em seus últimos dias, fez o melhor
que pôde para preparar a Igreja para ela.
Nem todos concordarão em que ele tenha tomado o lado certo. Na verda­
de, no final de sua vida, Paulo VI tomou-se inaceitável a todas as quatro fac­
ções existentes entre os Cardeais-Eleitores de sua Igreja, os cento e dezoito
homens - é mais ou menos esse o número —que irão estabelecer as normas
e eleger o Papa, depois da morte de Paulo.
Todos os problemas dos últimos dias de Paulo VI emanaram dessas fac­
ções, que constituem uma bem espetacular formação de pensamento e opi­
nião, da extrema esquerda à extrema direita. Nenhum dos limites máximos
desses extremos, em tais grupos, representa uma maioria no pensamento ecle­
siástico. Mas, mesmo assim, um extremo seriamente ameaça cisão, enquanto
o outro ameaça revolução — até revolução violenta. E tais facções, que en­
frentaram Paulo, serão as facções do Conclave.
A facção Progressista compõe-se de três grupos: os marxistas-cristãos, os
“novos teólogos” e um bom número de carismáticos.
Os marxistas-cristãos advogam uma estreita aliança, política e de outra
natureza, entre cristãos e comunistas. Entre eles e o Papa Paulo VI ardeu sem­
pre uma inimizade imorredoura.
Os “novos teólogos” e intelectuais sustentam que praticamente tudo na
Igreja Romana —autoridade papal, sacerdócio masculino, condenação do ho­
mossexualismo e do aborto, a idéia de Deus, a crença na ressurreição e na di­
vindade de Jesus, até o conceito de igreja paroquial e o bastimo da criança re­
cém-nascida — tudo está superado e precisa ser equacionado em novos ter­
mos. Esses “novos teólogos” acreditam que somente com um Papa progressis­
ta e de mentalidade aberta pode a Igreja ser salva da desintegração total.
22
Os carismáticos, adotando uma nova interpretação da Bíblia e apoiando-
no exercício de novos dons —chamados os dons do Espírito Santo - insis­
tem em que somente através do exercício de tais dons pode a fé ser salva. Em
conseqüência, introduziriam a prática carismática em cada fase da vida ecle­
siástica. Mas isso, em si mesmo, seria uma força desintegradora, porque uma
dtu convicções centrais dos carismáticos é a de que o Espírito Santo se comu­
nica, direta e pessoalmente, com cada indivíduo. A autoridade geral e o poder
magisterial do Bispo e do Papa ficam ultrapassados. É claro que os carismáti­
cos alegam representarem eles o espírito da Igreja Cristã, primitiva e original.
A facção Tradicionalista coloca-se no extremo oposto aos Progressistas.
Afirmam os Tradicionalistas que a Igreja Romana foi corrompida, nos últi­
mos doze anos, principalmente pelos marxistas-cristãos e pelos “novos teólo­
gos”. Denunciam Paulo VI como herético. Insistem na reversão de todas as
mudanças verificadas na Igreja, desde os anos sessenta, sob a direção de Paulo.
Consideram Paulo, em seu pior aspecto, como um traidor e, na melhor das
hipóteses, como desorientado e enganado pelos ardis de Satã. Há homens po­
derosos nesse campo e é daí que o sério perigo de cisma tem ameaçado, há
mais de dez anos, Paulo e a Igreja.
A facção Conservadora, em Roma e em toda a Igreja, opõe-se abertamen­
te aos Progressistas - sejam eles marxistas-cristãos ou “novos teólogos” - e
opõe-se igualmente aos Tradicionalistas. Desejam os conservadores estabelecer
um curso firme, com algumas adaptações feitas gradativãmente, mas sem uma
mudança profunda na estrutura básica do governo e da fé Católica Romana.
Os conservadores não acham que Paulo tenha errado ao permitir a mudança,
mas acreditam que ele foi longe demais e andou muito depressa.
Finalmente, a facção Radical acredita que a Igreja Romana precisa dar
um passo numa direção específica: despojar-se de todos os interesses sócio-
políticos e financeiros e, ativamente, empunhar e usar apenas as armas do po­
der espiritual. Os radicais acusam Paulo de não ter tomado a iniciativa de pas­
sos audaciosos e imaginativos para libertar a Igreja de todos os envolvimentos
com interesses políticos e financeiros, seja qual for sua cor ou seu tipo. 0 fato
de serem chamados “radicais” faz lembrar a opinião de um Papa do século
XVI, Alexandre VI, que devia saber o que estava dizendo: “A laiz(radix) de
todos os males que afligem hoje em dia o Trono de Pedro é nosso poder tem­
poral, aliado a nossa riqueza e a nosso prestígio internacional.”
Constitui um bem acatado julgamento dos 263 Papas anteriores dizer
que, embora a maior parte deles tenha filtrado o poder e o ensinamento de Je­
sus através da mentalidade que prevaleceu no tempo de cada um, nenhum de­
les, afinal, identificou a salvação de Jesus com soberania territorial e com in­
fluência política. O erro deles consistiu em aliar essas duas coisas. Mas mesmo
no perfumado jardim do sucesso mundano, a tradição de Pedro, que constitui
a herança de todo Papa, os tomou capazes de perceber o mais leve estalido de
barbaridade a afiar seus punhais. E, quando tudo em volta deles se transfor­
23
mou num ululante coro de dor, geralmente os homens encontraram o mais
importante cidadão de Roma já de pé, diante de alguma porta ainda não aber­
ta, a mão colocada sobre a aldrava. “Portanto, quando falhares”, Jesus disse
a Pedro, “terás a capacidade de te arrepender de teu erro, e darás a todos
aqueles que forem ligados a ti novas razões para continuarem a ter fé.”
E assim tem sido com Paulo VI. E ele transmitiu sua opinião e seus senti­
mentos em relação ao fututo aos principais Cardeais-Eleitores, que se reúnem
por trás das portas trancadas do Conclave 82 —um Conclave que não seria
igual a nenhum outro antes dele,
Dos próprios Eleitores, bem como de nós, que os visualizamos em Con­
clave, é exigido um esforço especial. Compreender na fé. Crer com compreen­
são. Jesus não revelará seus propósitos definitivos, nem mesmo os pormenores
de nossa história imediata, a esses Eleitores. Não revelou o futuro imediato a
Simão Pedro e a seus companheiros, perto do Hermon. Nós, no entanto, co­
mo filhos de uma geração muito posterior a Pedro, sabemos alguma coisa
além daquilo que ele sabia no Hermon. Sabemos, por exemplo, que Jesus viu
muito além da Palestina, além do judaísmo, além da Roma Imperial e além
daquilo que vemos mesmo agora, quando disse: “Tu és Pedro.”
Agora percebemos isso. Mesmo assim, hoje é preciso que haja humildade
e fé, para que os Eleitores e todos nós possamos ver, como Jesus o faz, mui­
to além até mesmo dos extremos do vasto mixtum-gatherum do Catolicismo
e da Cristandade: para além dos monges gregos do Monte Atos; dos monges
beneditinos na Inglaterra; dos mexicanos de joelhos diante da Senhora de
Guadalupe; do pão bento dos poloneses; dos aborígines australianos cantan­
do a missa; dos trevos da Irlanda; das cúpulas douradas dos árabes; para além
dos esquimós insculpindo a Ave Maria em ossos de baleia e dos gongos chine­
ses fazendo soar o Angelus; para além das grinaldas do advento alemão; dos
tambores africanos tocando um requiem; dos ícones russos na bagagem da
Sra. Gromyko; das moças escandinavas usando a coroa de Santa Lúcia; das
capelas católicas japonesas parecendo templos zen; das cruzes do cruzado
maltes; das escoteiras holandesas catequizando as prostitutas de Amsterdã;
das freiras da Califórnia limpando os leprosos em Seul; dos Cardeais assinan­
do cheques em Roma para os gnomos em Zurique; das freiras morrendo co­
mo guerrilheiras na Guatemala; e para além dos luteranos, dos presbiteria­
nos, dos batistas, dos adventistas, dos metodistas e das mil e uma outra sei­
tas cristãs. É preciso humildade e fé, para que se veja além de todo esse de­
lírio e de todo esse caos —e para passar além de tudo isso, mesmo quando
Jesus abrange isso tudo em sua memória e isso tudo transcende.
Para esses Eleitores, é a tarde do Conclave, como de fato o é uma cer­
ta tarde para a Igreja estabelecida, para Roma e seu Vaticano. O sol de glória
e poder humanos que lhe iluminou os dias passados desapareceu. Os grandes
afrescos já não contemplam esse Conclave, das paredes e do teto da Sistina.
Muitos dos antigos cânticos, tal como o latim antes a todos imposto, emude­
24
ceram e já não são mais ouvidos. Neste nosso mundo moderno, há um senti­
mento de inquietação, de que a vida se vai limitando, de que a graça está sen­
do corroída das horas de cada dia, de que o encanto está desaparecendo, de
que as sensações se estão desbotando à luz forte do modernismo, com o impu-
dor desse modernismo. Hoje em dia todos os cristãos experimentam essa sen­
sação. Mas por toda a Igreja de Jesus, audível, está a voz da salvação de Jesus,
falando de seu amor por todas as coisas humanas e de sua irrevogável decisão
e promessa de que nada poderá anular tal salvação, ou saciar esse amor.
Com a autoridade de Jesus, esses Cardeais irão escolher um, entre eles
próprios, para ser o 264? sucessor de Simão Pedro. E, tal como na designação
de Simão Pedro, próximo ao Hermon, os mesmo principais personagens esta­
rão presentes: Jesus, repetindo “Tu és Pedro” ; o Príncipe, sempre vigilante,
decidido a fazer dos Cardeais e da particular escolha de seu Papa “um simples
brinquedo e um instrumento”.
A batalha continua.

25
O PRIMEIRO DOS
PAPAS PEREGRINOS
Ql homens e as mulheres do século XXI serão fascinados pela figura de Gio-
vanni Battista Montini, que se tomou o Papa Paulo VI em junho de 1963.
Nossos rostos estão achatados de encontro ao vidro e não vemos as coisas se-
nlo de forma imprecisa. Eles estarão a uma distância suficiente para julgar
«quilo que ele fez.
Olharão para trás, para poderem ver que tipo de homens eram os que pri­
vavam de sua intimidade, seus auxiliares de confiança; quais eram os motivos
que o impeliam; se sua teologia era tão sábia quanto sua piedade era genuína;
ie fazia o jogo do poder político secular usando a autoridade de Jesus; se en­
trava em fatais combinações com aqueles que encarava como menores inimi­
gos de sua fé, para sobrepujar os que considerava inimigos maiores; se permi­
tia que a amizade pessoal por uns poucos interferisse com seu julgamento de
questões de vida e morte, envolvendo milhões de crentes.
Verão, como não podemos fazer, se a visão que o Papa Paulo tinha do sé­
culo XXI era correta — tão brilhantemente correta que eles, nossos descen­
dentes, se maravilharão com sua presciência —ou tão desanimadoramente in­
correta que seu nome e seu pontificado e suas idéias serão detestados e rejeita­
dos como infâmia. Será uma coisa ou a outra. Porque foi Montini, com mais
dois ou três homens de nosso tempo, quem, com obstinada vontade, fez sua
Igreja Romana de 715-milhões de membros voltar-se oficialmente para olhar
numa direção que a grande maioria não aceitava e não compreendia.
Por nossos descendentes, ele poderá bem ser considerado um inovador
tão gigantesco quanto Pedro, o Grande, da Rússia, ou Mao Tse-tung, da Chi­
na. Poderão dizer dele: viu acima da cabeça de todo mundo, viu além de seus
limitados horizontes, e era um grande entre pigmeus. E poderá ser o quarto
Papa na história a ser cognominado “grande” . Paulo, o Grande, como Leão,
o Grande, Gregório, o Grande e Nicolau, o Grande.
29
Essa gente do século XXI —e n2o nós - compreenderá o duplo papel que
vimos o Papa Paulo representando. Irá vê-lo como o último dos velhos Papas,
firmemente apoiado numa tradição papal de mil e oitocentos anos, tão lamu-
riantemente imperioso e tão insistentemente monárquico quanto qualquer Pa­
pa vindo antes dele. E irá vê-lo como o primeiro dos Papas Peregrinos, homens
que agiram como se a Igreja a que pertenciam tivesse sido exilada da socieda­
de humana e como se quisessem fazer a velha penitência da peregrinação —
em nome de todos os cristãos —para que uma vez mais Jesus, seu Vigário e
sua salvação, fossem aceitos no contexto do regime humano.

Paulo nunca foi realmente bem recebido pelos romanos, por aqueles burocra­
tas do Vaticano, que um irritado Papa Pio XH uma vez descreveu como “os
Bourbons, que aprenderam pouco e não esqueceram nada”. Paulo era um na­
tivo do Norte da Itália, que fizera nome como eclesiástico em Milão, durante
nove anos. Pelo que dizia respeito aos romanos, o homem nascido e batizado
lá no Norte, em Concessio, como Giovanni Battista Enrico Antonio Maria
Montini bem que poderia ter continuado por lá, com os outros bárbaros, no
exílio para onde o tinha mandado o Papa Pio XII, ao tirá-lo do Vaticano.
Mas Montini voltou como o Papa Paulo VI, em 21 de junho de 1963, e
trouxe consigo uma batelada de nortistas: arquitetos, financistas, clérigos de
diversas tendências, editores, projetistas, artistas e os aderentes que todo Car­
deal de sucesso conquista. A “Máfia de Milão”, conforme os clérigos romanos,
adulterou o caráter exclusivamente romano do Vaticano, que Pacelli (Pio XII)
estimulou durante os quase vinte anos de seu reinado.
Nos anos de Milão, e depois em Roma, os elementos de fora repararam na
reverência, no quase terror, com que os membros da “Máfia de Milão” enca­
ravam Montini. Sempre houvera uma camaradagem especial entre eles, e a
hostilidade encontrada em Roma apenas os unira mais.
Um fato a notar a respeito da corte papal de Paulo e da administração do
Vaticano em sua época é o de que partilharam do caráter “horizontal” da
maioria dos governos modernos. O pessoal era medíocre. Nenhum gigante
projetou-se acima do nível da massa em geral.
E, no entanto, Montini tinha em redor de si homens tão cheios de colori­
do e de inteligência quanto qualquer outro Papa na história. O Secretário Don
Pasquale Macchi, nem sempre sábio em sua escolha de amigos, mas em todas
as instâncias leal a Paulo; o stakhanovista Benelli, ríspido em sua fé, ávido em
seu zelo por um imaterialismo sobrenatural; o inveterado fumante que é o
Cardeal Villot, que desenvolveu sua competência burocrática através de uma
vida inteira de pequeninas negociações; o impassível, retraído Willebrands, ho­
mem de paz, perpetuamente surpreendido com seu próprio sucesso, receoso
de mover-se em qualquer direção e que, como caçoavam os romanos, só fica­
va aflito com a reação luterana dos alemães diante de qualquer coisa romana
30
— ainda que fosse um enguiço no sistema de canalização do Vaticano; o Car­
deal Vagnozzi, de inteligência rápida e seguro de si, que Paulo sempre achava
que tinha “dito Bom-dia! ao Diabo e saíra levando a melhor” ; o veterano
Cardeal Ottaviani, parecendo um gnomo que guardasse energia, que escondes-
te velhas verdades, sempre prevenindo Paulo de perigos; o Cardeal Wright, de
um egocentrismo torrencial, onipresente, um gourmand cheio de eloqüência,
que na esperança de herdar a terra se declarou humilde, mas que afinal se ele­
vou a pináculos de fé que seus contemporâneos jamais pensaram haver dentro
dele; o Arcebispo Casaroli, o caixeiro-viajante de Paulo em matéria de Ostpoli-
tík do Vaticano, o homem do futuro, que conhecia os segredos de todo mun­
do.
A chave para o caráter do pontificado de Paulo VI está na reação de Pau­
te A visão que o Papa João XXIII tinha da Igreja e na decisão que, a esse res­
peito, tomou. Nas mentes e de acordo com a política dos Cardeais-Eleitores
que fizeram Giovanni Battista Montini papa, no Conclave 81, em junho de
1963, Montini deveria implementar aquela visão.
O aspecto inovador e peculiar da visão de João está em sua superioridade
lobre qualquer coisa que, antes dele, possamos encontrar nos Papas. De fato,
num sentido, nenhum Papa teve, jamais, a visão de João.
O antecessor imediato de João, Pio XII, chegou perto disso. Depois de
n u s erros e fantasias iniciais sobre Romanità —o poder de Roma como cen­
tro da Igreja — e sobre a persistência do poder do velho “bastião” Católico
Romano na Europa meridional, Pio XII chegou, realmente, a uma visão do ta­
buleiro de xadrez da história. Finalmente transcendeu detalhes insignificantes
de geografia e de problemas locais, de modo que seu olhar se fixou na luta bá-
Uca entre Jesus e Satã. Mas também ele, prontamente, identificou o inimigo
como marxismo. Até aí foi a visão de Pio. E, nesse ponto, ele morreu.
Angelo Roncalli, como João XXIII, não padecia dessa estreiteza de en­
foque. Tão ferozmente contrário ao marxismo quanto sempre o fora Pio XII,
6 enfoque de Roncalli era mais amplo. Embora acreditando na origem satáni-
01 do marxismo, João não aceitava o ponto de vista de Pio, que partia do
pressuposto de que uma força exterior e oposta —o marxismo —estava ten­
tando mudar a sociedade e a Igreja de Jesus. A principal contribuição de João
foi a simples intuição de que uma mudança já se tinha verificado, e que ape­
nas restava a aparência das coisas anteriores, como o arcabouço de edifícios
prestes a ruir. João viu que o mundo de Pio XII, de Pio IX, de Clemente VII,
de todos os Papas anteriores, estava morto e enterrado. A luta contra o mar­
xismo era considerada por João como uma escaramuça de menor importância,
que logo estaria terminada, num conflito cósmico muito mais profundo.
A essência da mudança vista por João foi a seguinte: todas as fronteiras
sociais, políticas, ideológicas, étnicas e intelectuais que, durante séculos, ha­
viam dividido os seres humanos tinham perdido sua validade. Não havia quem
pudesse explicar isso, mas era certo que do cenário da vida humana desapare­
31
cera alguma persuasão fundamental, alguma convicção profunda. Por causa
dessa convicção, os homens haviam preservado tais fronteiras até o exato mo­
mento de João XXIII na história. Mas agora, uma nova, desconhecida e assus­
tadora unidade humana estava emergindo. £ todas as velhas fronteiras, todas
as coisas que homens e mulheres tinham compreendido e pelas quais tinham
vivido, estavam desaparecendo.
Para Joio, como para Pio XII e Paulo VI, a essência do conflito cósmico
estava nos planos e contraplanos de dois personagens: Jesus e Satã. Era um jo­
go mortal, disputado no tabuleiro de xadrez do universo humano. O tabulei­
ro era cósmico. Os problemas eram cósmicos. Os jogadores eram cósmicos.
A intuição de João dizia-lhe que, na esteira da enorme mudança que se
tinha verificado, a religião em geral e a Cristandade em particular corriam pe­
rigo de ser superadas; que Satã fizera sua jogada para anular tudo aquilo que
Deus havia conseguido. E, na verdade, era fácil ver que a Cristandade estava
sendo superada, que estava cada vez mais isolada e eliminada da vida política,
civil, intelectual e cultural de homens e mulheres.
Da mesma forma que sua intuição era simples, simples foi a solução prá­
tica adotada por João: abrir janelas e portas; derrubar as barreiras; deixar que
o espírito, já presente, voasse por sobre a face da Humanidade. Daí o seu Con­
cílio - o Concílio Vaticano II. Daí sua atitude, paternal e amorosa. E daí o
sentimento espontâneo e universal que João, esse Papa Romano de setenta e
sete anos, originou, no curto período de apenas três anos e seis meses: o senti­
mento de que nenhum bem era mais impossível e de que não havia mal que
não pudesse ser dominado; um sentimento de que, de alguma forma e inespe­
radamente, a graça fora derramada, de que todo o ódio poderia ser dissolvido
por essa graça e de que poderia haver a esperança do melhor das coisas. ‘T u­
do mudou”, João disse à sua geração. “Vinde ao nosso Concílio e celebrai e
fazei planos junto conosco.” E aí João morreu.
Quando Paulo VI calçou as sandálias do Papa, traduziu a visão cósmica
de mudança que João tivera, e desenvolveu suas próprias e novas políticas, de
acordo com sua capacidade pessoal e com sua própria visão.
Desde os distantes anos trinta que Giovanni Montini, como um jovem
clérigo, havia sido profundamente influenciado por uma única atitude que,
trinta anos mais tarde, muito contribuiria para fazer dele um Papa diferente
de qualquer outro Papa anterior. Foi uma atitude primeiro popularizada e
depois repudiada por um filósofo francês de grande apelo popular, Jacques
Maritain. Na realidade, Montini espontaneamente escreveu um intróito para a
edição italiana do Humanismo Integral\ de Maritain.
“Dê o seu testemunho através de serviço”, propõe a noção, “mas não
pense que nenhuma outra iniciativa é possível, prática ou indicada.” Em ter­
mos práticos, o que o humanismo integral tem a dizer é que todos os homens
e mulheres são naturalmente bons; reagirão ao bem e rejeitarão o mal, se lhes
mostrarem a diferença. A função da Igreja de Jesus, neste estágio da história
32
Humana, é apenas dar o testemunho dessa diferença, não fazer esforços sobre­
humanos para “catolicizar” a Política, a Economia, a literatura, a Ciência, a
Educação, a vida social ou qualquer dos outros aspectos da sociedade huma­
na. Simplesmente dar o testemunho através do serviço prestado a homens e
mulheres —sem qualquer distinção de credo ou raça —esta é a tarefa da Igre­
ja no mundo de hoje, onde emergiu uma nova unidade entre os seres huma­
no»; um mundo que deliberadamente exclui a Cristandade e a autoridade cen­
tral do Papa como Vigário de Jesus e centro da unidade mundial.
Assim, do ponto de vista de Paulo, o Papado e a Igreja teriam que se em-
ptnhar, uma vez mais, em atrair para a fé homens e mulheres, mas por um ca­
minho diferente. Teriam que sair de seu isolamento, um isolamento que era,
•m grande parte, devido a suas próprias deficiências. Deveria haver um novo
•iforço para irem de novo ao encontro de homens e mulheres, para permane­
cerem com eles e se tomarem aceitáveis por eles.
Quando Paulo falava de si mesmo como um peregrino e de seu Pontifica­
do como uma peregrinação, estava se referindo a esse esforço. Via isso como
tando em parte uma penitência, pelos malogros dos Homens da Igreja do pas-
lido, em parte uma busca daqueles seres humanos que ainda não conheciam
Jaius, a Igreja e Jesus, a salvação de Jesus.
Esse humanismo integral de Paulo VI permeou toda a política de seu
Pontificado. Até que ponto foi ele capaz de encaminhar sua Igreja avante nes­
ta via de peregrinação — ficará para julgamento de uma geração subseqüente.
Enquanto isso, podemos tomar nossas próprias medidas de seu sucesso verifi­
cando como agiu Paulo em três ocasiões de capital importância, relacionadas
aitreitamente com a diplomacia da Igreja, as finanças da Igreja e a fé da Igreja.

4 de outubro de 1965
O Vôo n9 2.800 da Alitalia, que Paulo fazia, tocou o Aeroporto Interna­
cional Kennedy conduzindo o Papa Paulo VI, sete Cardeais, dez ajudantes do
Vaticano, sessenta jornalistas, comentaristas, técnicos de som e luz e duzentos
mil envelopes contendo novos selos comemorativos do Vaticano.
Paulo seguiu de automóvel, a uma velocidade de uns vinte quilômetros
por hora, num Lincoln, modelo 1964, preto, de teto transparente à prova de
balas, de bandeiras tremulantes, luz fluorescente, forração de couro, lotação
de sete passageiros. Foi visto por uma centena de câmaras de TV e por mais
de dois milhões de nova-iorquinos, que se dispunham ao longo do percurso de-
quarenta quilômetros, até a Catedral de São Patrício, em Manhattan.
O trajeto estava defendido, preparado e facilitado por quinze mil policiais
da Cidade de Nova Iorque, pelo Corpo de Bombeiros, pelo Serviço Secreto e
de Repressão de Roubo, por detetives à paisana, cinco mil barreiras, quarenta
alto-falantes de grande potência, vinte e sete carros-reboques, treze ambulân-
33
cias, um caminhão antibomba, duas lanchas a motor no Rio Este e dois heli­
cópteros sobrevoando.
Ele falou a onze Cardeais, a Arcebispos e a Bispos, e a quatro mil pessoas,
na Catedral. Encontrou-se com o Presidente Johnson e conversou com ele e,
no Hotel Waldorf Astoria, a Sra. Johnson e Luci, a filha adolescente, lhes fo­
ram apresentadas, almoçou com o Cardeal Spellman e seus auxiliares, e avis­
tou-se com uma porção de visitantes, autoridades e gente amiga.
Por fim, o Papa Paulo dirigiu-se às Nações Unidas. Essa era a razão de sua
peregrinação: “Dá ensejo à oportunidade de promover a causa da paz, tão pró­
xima a Nosso coração e, ao mesmo tempo, de propiciar maior compreensão
entre as nações do mundo”, Paulo escrevera a U Thant, em 19 de março de
1965. “Daria”, respondeu U Thant a Paulo, em 16 de abril do mesmo ano,
“um novo e vigoroso impulso aos esforços dos homens de boa vontade, onde
quer que estejam, no sentido de preservar e fortalecer a paz mundial... trazen­
do a Humanidade para mais perto da realização de suas legítimas aspirações.”
U Thant deu as boas-vindas a Paulo às 15 horas e 13 minutos da tarde,
naquele dia de outubro de 1965. Primeiro conduziu Paulo até a sala de Medi­
tação: um aposento trapezóide, sem janelas, sem mobiliário, medindo nove
metros por cinco e meio, as paredes simétricas inteiramente nuas, salvo por
um afresco do artista sueco Bo Beskow, todo em padrões geométricos em
azul, amarelo, cinzento, castanho e branco. No centro da sala, um sólido blo­
co de pedra e minério de ferro atingindo a altura da cintura. A única ilumina­
ção, um feixe de luz amarela, esmaecida, que incide sobre a superfície treme-
luzente da rocha.
Depois U Thant levou Paulo à Assembléia Geral, que faria sua milésima
tricentésima septuagésima quarta reunião.
Foi tirada uma fotografia colorida da Assembléia Geral, durante a fala
de Paulo, às 15 horas e quarenta e cinco minutos: o Salão da Assembléia é
um vórtice inclinado de onze círculos regulares, contido num estático mo­
mento fotográfico em um inevitável movimento descendente, para o lugar em
que Paulo, o Monge de branco, permanece de pé. Todo o peso do Salão con­
verge para sua pequenina figura, como para um fulcro. Três mil ouvintes, de
pescoço esticado, o observam. Não há movimento visível, salvo da cabeça e
dos ombros de Paulo. É um momento eletrizante de atenção, uma vigília de
nações.
“Temos uma mensagem a transmitir a cada um de vós.”
Paulo tem para si os ouvidos do mundo. Sua mensagem conta com tradu­
tores cheios de boa vontade para passá-la para mais de trinta e cinco idiomas;
é ouvida - e mesmo vista —literalmente, em toda parte do mundo. A gente
quase espera ouvir Paulo dirigir-se à raça humana: “Filhos dos homens! Na­
ções da Terra! Povos de todos os países! Este é agora o caminho de vossa sal­
vação...” Neste momento universal de atenção, Paulo poderia ter afirmado
brandamente, sem surpreender ninguém de maneira indevida: “No dia 29 de
34
junho, das Festividades dos Apóstolos Pedro e Paulo, o Senhor Jesus Cristo
pessoalmente Nos disse que isto é o que os homens terão que fazer para resol­
ver seus problemas...” ;ou “Pretendemos resolver os persistentes problemas da
oposição de Este e Oeste, de ter e não ter, de brancos e pretos, da seguinte
maneira...”; ou “Nós, homens, podemos deter agora a letal corrida armamen-
tista, reconciliar árabes e judeus, trazer a China à razão, no convívio da famí­
lia das nações, dissipar as nuvens do holocausto nuclear, alimentar, educar e
consolar os bilhões de seres do mundo através de...”.
Mas não aconteceu nada disso tudo. Paulo como Papa, como Apóstolo,
não tinha alternativas a oferecer. Não pregou nem anunciou a mensagem do
Evangelho, como Pedro e Paulo haviam feito mil e novecentos anos antes pe­
rante o romano, o grego e o semita. Cristo, fosse crucificado ou ressurreto,
não foi a carga de suas palavras.
Paulo disse: “Desejamos que Nossa mensagem seja uma ratificação sole­
ne e moral desta alta instituição... com a Nossa experiência em Humanidade,
trazemos a esta organização as vozes de Nossos finados antecessores, as de to­
do o episcopado católico, e Nossa Própria voz, convencidos como estamos de
que esta Organização representa o caminho obrigatório da civilização moder­
na e da paz mundial.”
0 silêncio inerte de alguns segundos antes chega ao fim. Passou o momen­
to de magia. Agora, sentem todos, o resto das palavras de Paulo será um be-
nigmo testemunho do endosso de suas existências, do reconhecimento de suas
dificuldades.
Todos os principais participantes e protagonistas dos ódios recíprocos e
das guerras previsíveis estão sentados em fileiras semicirculares, diante de Pau­
lo. Teias de intriga, de oposição e de interesses pessoais os vestem tão segura­
mente quanto o fazem seus ternos escuros e suas vestimentas típicas.
A eles Paulo diz: “Vós confirmais o grande principio de que as relações
entre os povos devem ser regidas pela razão, pela justiça, pela negociação -
não pela força, pelo medo ou pela fraude. ”
Somente no vindouro ano de 1966, por motivos previstos e excluídos pe­
la Carta das Nações Unidas, haverá supressão de liberdades humanas no Haiti
(2* fila) e na África do Sul (6? fila); guerrilhas, guerra civil e conflitos em am­
bos os Congos ( 10? fila), índia (2? fila), República Dominicana ( 11? fila),
Guatemala (l?fila) e Indonésia ( 2? fila). Os negros se sublevarão em quarenta
e três cidades americanas, protestando contra a discriminação. Serão muitos
os refugiados da guerra e da opressão: 12 mil cubanos na Espanha e 200 mil
nos Estados Unidos; 15 mil refugiados da Guiné portuguesa no Senegal; 700
mil na Europa Ocidental, vindos dos países da Cortina de Ferro; 50 mil tibe-
tanos no Nepal e na Ihdia; 1 milhão e 100 mil chineses em Hong Kong e 80
mil em Macau, oriundos do continente comunista; 800 mil refugiados árabes
no Líbano, na Síria, no Iraque e na Jordânia; 12 mil sul-vietnamitas no Cam­
boja; 575 mil africanos deslocados por guerras civis e por rebeliões. Por volta
de setembro de 1966, 300 mil pessoas terão sido mortas na guerra civil indo­
nésia. Até dezembro, somente norte-americanos terão morrido 6.644 na
guerra do Vietnã.
No entanto, Paulo diz "não há necessidade de longos discursos para pro­
clamar os propósitos desta instituição
Diante de Paulo estão sentados os representantes de nações que elevarão
a novos níveis, com vistas à futura violência e à morte, a acumulação de ar­
mamentos. No ano fiscal de 1966, o Reino Unido (7? fila) terá um orçamen­
to militar de 6.081 bilhões de dólares; a França (l^fila), de 4.465 bilhões de
dólares; o Japão (33 fila), de 946 milhões de dólares; a URSS (7? fila), de
14.208 bilhões de dólares; os Estados Unidos da América (8?fila), de 57.718
bilhões de dólares. As duas últimas nações fornecerão aos países árabes e a
,íárael o material que iria tomar possível a guerra de junho de 1967. O Paquis­
tão (5? fila) aceitará da China Comunista as armas com que lutará contra a
índia.
Paulo continua “É suficiente recordar que o sangue de milhões de ho­
mem, que'incontável e inauditos sofrimentos, que inúteis massacres e ruínas
terríveis selaram o pacto que vos une, com um voto que deve mudar a história
futura do mundo:Nunca mais Guerra! Guerra, nunca mais!”
***

Depois de seu discurso, Paulo ficou de pé, no início de uma fila de tre­
zentos homens, que o recepcionavam na extremidade norte do salão de re­
creio dos delegados, de frente para um grande mapa-múndi cor de chocolate.
Todos caminharam até ele de boa vontade, cumprimentaram-no de maneira
agradável, alguns reverentemente: as Grandes Potências, a China Nacionalista;
os aliados e satélites dos soviéticos; o Terceiro Mundo, não comprometido.
Para todos eles Paulo tinha uma palavra. Os observadores tomaram nota dos
momentos extras que gastou com Gromyko; da reverência da Sra. Gromyko;
do carinhoso aperto com as duas mãos para Arthur Goldberg; dos africanos e
asiáticos que beijaram o anel de Paulo; de sua gentileza com Jacqueline Ken-
nedy.
No fim, Paulo dirigiu um último olhar aos convivas reunidos. Mais não-
europeus do que europeus. Mais não-cristãos do que cristãos. Essa a lição que
lhe ficou na memória.
Quando o avião que conduzia Paulo e sua comitiva, seus presentes e cin­
qüenta e dois repórteres fez um arco no céu por sobre Manhattan e as Nações
Unidas, Paulo mal contava dois anos de reinado. Contudo, no âmago da lição
que aprendera estava a sinistra intuição da irreversibilidade da nova condição
de sua Igreja, a que os Papas haviam resistido durante mil anos. Paulo falaria
a muitos sobre tal intuição, nos anos que estavam por vir.
Uma nova mentalidade humana estava-se formando, por enquanto ape-
36
nas despontando na multidão heterogênea das Nações Unidas. E quanto mais
depressa se preparasse a Igreja para despojar-se de tudo aquilo que adquirira
através de regionalismo, de nacionalismo e de cultura, mais pronta e adapta­
da estaria ela para sobreviver, para florescer e, finalmente, prevalecer entre os
humanos como o único portal de revelação divina.
Mas para o observador superficial, a mensagem fundamental da visita de
Paulo não era lá grande coisa: “Nós, a Igreja, ficamos na segunda linha*’, sua
visita parecera dizer. “Como organização, sabemos que não temos voz nos
seus negócios. Contudo, queremos lembrar-lhes que estamos aqui.”
Essa foi a primeira expressão, concreta e obstinada, do humanismo inte­
gral de Paulo.

Primavera de 1969
É tarde da noite, no gabinete papal do terceiro andar do Palácio Apostó­
lico. Momento e lugar nenhuns, mais isolados, seguros e secretos, foram en­
contrados por muitos dos Papas anteriores para reuniões ultra-sigilosas.
A reunião dizia respeito às finanças do Vaticano. Tais encontros têm sido
parte dos negócios papalinos há mais de mil anos.
Não há registro oficial sobre a reunião no livro de compromissos de Paulo
- e nunca houve. Em todas as semanas de todos os anos, na história dos Pa­
pas, da mesma forma que na história dos primeiros-ministros, dos presidentes,
dos reis e dos chefes das grandes empresas, sabemos da existência dessas “não-
reuniões”.
Paulo chega a um acordo, apondo sua assinatura como Papa num docu­
mento bilateral, num contrato. Os arquivos do Vaticano estão cheios de do­
cumentos desse tipo.
Em conseqüência dessa assinatura, Paulo vincula e compromete uma par­
te considerável dos recursos financeiros do Vaticano e do dinheiro papal. Os
Papas sempre se consideraram —e acertadamente —os únicos administradores
responsáveis por aquilo que sempre se chamou em Roma de “patrimônio de
Pedro” .
A cena é excepcional apenas num único ponto. Com sua assinatura, o Pa­
pa Paulo autorizava o financista a vender o controle acionário do Vaticano
(350 milhões de dólares) no enorme conglomerado Società Generale Immobi-
liare. Com aquela assinatura, Paulo permitia igualmente o acesso de Sindona a
outros recursos do Vaticano, para ulteriores investimentos.
Os centros financeiros da Europa e dos Estados Unidos passarão anos
cheios de histórias inacabadas, de relatos deturpados, de informações desvai­
radas e de versões incompletas daquilo que veio a ser um prejuízo financeiro
de proporções aparentemente enormes para o Vaticano. 77 crack Sindona —a
catástrofe Sindona - não é um caso simples. Que a assinatura ocorreu naque­
las circunstâncias entre o Papa Paulo e Michele Sindona é, agora, um fato ad-
37
mitido. De início, o Vaticano negou-o, declarando que a assinatura fora entre
Sindona e o Cardeal Guerri, um membro do Vaticano, de alto gabarito.
As lembranças que Paulo tinha de Sindona recuavam até bem antes da
primavera de 1969, até seus próprios anos iniciais como Arcebispo de Milão.
Suas preocupações com a administração financeira e com a polítíca geral do
Vaticano remontavam a data mais recuada ainda.
Como Vice-Secretário de Estado do Vaticano sob Pio XII, Montini já ha­
via lutado pela reforma da administração financeira do Vaticano. Conhecia,
em primeira mão, os casos de corrupção e os corruptos. Em 1954, redigiu um
relatório citando os nomes e as atividades dos próprios sobrinhos de Pio XII
(Cario, Giulio e Marcantonio Pacelli), que Pio havia colocado na direção das
finanças do Vaticano. A reação de Pio ao relatório foi violenta e rápida. Mon­
tini viu-se num trem, a caminho de Milão, em exílio e desfavor. Uma das lem­
branças mais amargas de Paulo, naquela longa viagem de trem que não era de
ida-e-volta, foi a de um dia, logo depois do fim da segunda guerra mundial,
quando ele ouvira Pacelli falando do balcão exterior de São Pedro, em Roma,
acusando certo padre iugoslavo, Ernesto Cippico, de ter “trazido escândalo
para a Igreja”. Cippico dera um desfalque de alguns milhares de dólares em
fundos destinados a refugiados da Europa Oriental. Mesmo enquanto escutava
aquelas palavras, Montini sabia que lá no Quirinal, além, nas magníficas vilas
situadas no campo, dentro do Vaticano, por trás das costas de Pacelli, havia
homens e mulheres que diariamente manobravam com milhões de dólares da
Igreja — o “patrimônio de Pedro” - comprando guerra, vendendo paz, rio
abaixo, cinicamente, escandalosamente. O que faltava a Cippico era, apenas,
a proteção de gente importante. Montini quase podia ver, por trás da questão
toda, uma careta satânica.
Mais tarde, como Papa, um dos primeiros pronunciamentos importantes
de Paulo, em 1967, foi o Populorum Progressio, em que atacava o capitalismo
liberal e criticava o “imperialismo internacional do dinheiro” , através do qual,
no fim, “os pobres sempre continuavam pobres e os ricos tomavam-se sempre
mais ricos” . O Vaticano, como parceiro internacional de negócios, estava in­
cluído naquilo que atacava. No fundo do coração, Paulo desejava tomar me­
didas radicais, devolver aos pobres tudo aquilo que era deles. Quando “ajuda­
mos os pobres”, afirmou, citando Santo Ambrósio, “nunca damos aos pobres
aquilo que é nosso; apenas lhes devolvemos o que a eles pertence” . 0 Pontifi­
cado de Paulo perdeu muitos amigos altamente colocados no Vaticano, na
Europa e nas Américas, quando o Populorum foi publicado.
Não obstante, pela época dessa publicação, Paulo tinha decidido quanto
às linhas gerais de uma reforma nas finanças do Vaticano e quanto a uma me­
ta definitiva: o despojamento da Igreja de sua carga financeira, eliminando as­
sim esse elemento do “Príncipe deste mundo” .
Nos últimos anos da década de 60, de acordo com os dados mais fidedig­
nos, o orçamento anual do Vaticano ficava entre 25 e 40 milhões de dólares.
38
Seus investimentos subiam a mais de 4 bilhões e 800 milhões de dólares. Na
gerência do investimento dessas imensas somas, havia dois importantes de­
partamentos de administração financeira.
O primeiro, o Institute for Religious Works — IRW (Instituto para Obras
Religiosas), a essa época sob a direção do venerado Cardeal di Jorio, fora es­
tabelecido durante a primeira guerra mundial. Fazia o pagamento dos salários
da burocracia vaticana e ocupava-se das contas e dos investimentos do Vatica­
no em favor de outras instituições católicas, de cerca de mil cidadãos vatica-
nos, e de “uns poucos amigos da Igreja (italianos e não-italianos), em número
reduzido, e selecionados”, como explica um funcionário. Seu patrimônio, em
termos conservadores, era estimado em mais de 3 bilhões de dólares. Paulo
descobriu, porém, que jamais fora apresentado qualquer balanço geral. O IRW
movimentava enormes somas por todos os mercados financeiros do mundo,
operando livre de quaisquer normas de controle cambial dos diversos países.
Havia, mesmo, transferido dinheiro de um lado para o outro, entre os belige­
rantes, durante a Segunda Guerra Mundial. Era óbvio que o IRW havia estabe­
lecido consideráveis negócios em moeda estrangeira e gozava de confiança.
Toda vez que Paulo precisava de dinheiro para cobrir despesas do Vaticano, di
Jorio simplesmente o retirava da conta de Paulo (n? 16/16).
A Special Administration o f Holy See Property - SA (Administração Es­
pecial das Propriedades da Santa Sé) datava de 1929, ano em que o governo
de Mussolini pagou 2 bilhões e 400 milhões de dólares, a título de reparação
pelos bens pontifícios italianos tomados pela República Italiana, em 1870.
Era dirigida por alguns competentes banqueiros leigos (tendo a seu lado a as-
sessoria de eclesiásticos) e tinha a assistência técnica de J.P. Morgan, de Nova
Iorque, dos Hambros Bros., de Londres, e de Rothschild, de Paris.
Pelo fim dos anos 60, recursos oriundos tanto do IRW, quanto da SA es­
tavam investidos em todos os setores da indústria e do comércio da Itália.
Nos conselhos de administração das companhias em que o Vaticano tinha in­
teresse, havia sempre um homem da '‘família” vaticana, alguém como Massi-
mo Spada ou Luigi Mennini.
Um dos empreendimentos comerciais em que o Vaticano passou a ter
interesse majoritário foi a gigantesca, multinacional Società Generale Immo-
biliare (SGI). Seu presidente era o Conde Galleazzi, antigo governador da Ci­
dade do Vaticano e parente do médico particular de Pacelli, e quatro dos
membros mais importantes de seu conselho eram homens da “família” vati­
cana. A SGI era altamente diversificada, tendo propriedades como edifícios
de escritórios, companhias construtoras, terras, áreas residenciais, etc., nos
dois lados do Atlântico ~ o Hilton de Roma, o edifício da Pan Am nos
Champs Elysées, em Paris, o complexo do Watergate, em Washington, D.C., e
a Bolsa de Valores de Montreal, no Canadá, figuravam entre os exemplos de
bens imobiliários.
Paulo, convencido de que a Europa estava caminhando .para um eclipse
39
total de sua autonomia, decidiu que era chegada a hora de uma mudança.
Afora as considerações de natureza geopolítica, havia outras razões: ele fora
avisado da aproximação de um período de recessão e de inflação; as despesas
correntes do Vaticano haviam aumentado enormemente, desde o Concílio Va­
ticano, principalmente em razão dos novos Secretariados e Comissões, com
grandes orçamentos de despesas; algumas companhias sob controle do Vati­
cano estavam tendo pesadas perdas (a fábrica de farinha e massas, Pantanella,
perdera 2 milhões e meio de dólares e precisava de um refinanciamento de
4 milhões e 800 mil); a força de trabalho do Vaticano aumentara de um terço,
desde 1963, e triplicara, desde 1948; os pensionados do Vaticano chegavam a
cerca de mil. E, para coroar esse panorama, o Vaticano estava empenhado nu­
ma batalha perdida com as autoridades fiscais italianas, girando em tomo de
sua pretensão de conseguir isenção de impostos sobre os dividendos auferidos
em 1962, com base na Concordata assinada em 1929 com o governo.
Tal como na situação configurada quando Paulo visitou as Nações Uni­
das, as razões para ação estavam ali mesmo.
O primeiro movimento franco de Paulo nas principais áreas financeiras do
Vaticano foi estabelecer, em 1968, um novo instrumento de administração.
A Prefecture o f Economic Affairs (Prefeitura para Assuntos Econômicos), a
PECA, como é conhecida, foi instituída para coordenar as políticas de inves­
timento, fiscalizar as despesas e preparar o até então desconhecido balanço
geral do Vaticano. E, seguramente, pela altura dos anos 70, a PECA apresenta­
va previsões orçamentárias e um balanço geral consolidado.
A PECA foi dirigida, por pouco tempo, pelo Cardeal Angelo DelTAcqua.
Depois Paulo confiou-a aos cuidados de um diplomata de carreira, o Cardeal
Egidio Vagnozzi, de 62 anos, que voltava de nove anos como representante
do Vaticano em Washington. Vagnozzi era um arquiconservador e aliado de
poderosos e veteranos auxiliares como os Cardeais Ottaviani e Siri. Como
assistentes de Vagnozzi estavam os Cardeais Cody, de Chicago, e Martin Htif-
fner, de Colônia, na Alemanha.
Paulo deu, também, uma nova chefia ao 1RW, o Padre Paul Marcinkus, um
sacerdote da arquidiocese de Chicago. Natural de Cicero, no Illinois, e nascido
na segunda geração de uma família lituana, ordenado em 1947, com estudos
de pós-graduação no North American College (Colégio Norte-americano), de
Roma, posteriormente membro da seção de língua inglesa da Secretaria de
Estado do Vaticano, com 1,90m de altura (os italianos o apelidaram ilgorillá)
e muito bem apessoado, MarÕinkus tomou-se amigo de Macchi, secretário de
Paulo. Acompanhou Paulo em suas viagens ao redor do mundo e tomou-se
um bispo com o salário básico de 6 mil e 400 dólares, como chefe do IRW.
O primeiro objetivo de Paulo e de seus assessores foi a extinção do sistema
pelo qual o Vaticano controlava interesses em empresas italianas, visando à
sua retirada dos mercados financeiros da Itália, para entrar, como “estrangei-
40
ro”, no mundo promissor das blue chips do eurodólar e dos lucros de ultra­
mar.
Entre todos os homens disponíveis para fazer tSo grande transferência de
tão grandes somas, nenhum parecia tão conveniente e tão adaptado à situa­
ção quanto alguém que Paulo já conhecia, Michele Sindona.
Michele Sindona fizera-se, na realidade, uma pessoa adaptável a tSo impor­
tante encargo. Desde quando comprara um caminhão e com este começara
um lucrativo comércio com as forças armadas dos Estados Unidos na Sicília
dos tempos da guerra, passara um pouco mais de vinte anos preparando-se pa­
ra aquela triunfal e noturna assinatura. Nascido em 1917, na cidade de Patti,
perto de Messina, na Sicília, educado pelos jesuítas, bem-sucedido estudante
de Direito na Universidade de Messina, Sindona deixou a Sicília em 1947, le­
vando consigo esplendorosas recomendações do Bispo de Messina (que só ti­
nha conhecimento das generosas doações de Sindona à Igreja) para as autori­
dades arquidiocesanas em MilSo. Aí abriu ele um escritório especializado em
assessoramento fiscal relacionado com o mercado do dólar.
Pela altura de 1959, Sindona estava adiantado no bom caminho, com êxi­
tos evidentes já atrás de si. Por aquela época, já adquirira o Banca Privata Fi-
mnziaria (BPF) e uma fundição (que vendeu à American Crucible Company) ;
estabelecera uma companhia controladora, a FascoAG, no refúgio contra im­
postos que é o Liechtenstein e através da Fasco obtivera o controle acionário
do Finabank Geneva; fundara uma firma corretora de moeda estrangeira, a
Moneyrex, dirigida por Cario Bordoni; conseguira estabelecer estreitos relacio­
namentos com Luigi Mennini, alto funcionário do IRW, do Vaticano; com
Massimo Spada, homem da “família” vaticana (que se tomou diretor no BPF
de Sindona) e com Don Pasquale Macchi, secretário particular e confidente do
Arcebispo Montini.
Na época em que despertou a atenção especial de Montini, Sindona já era
assessor jurídico do grupo têxtil SNIA-Viscoa (do qual Spada era um dos dire­
tores), presidente da Keyes Italiana, da Mediterranean Holidays, da Philips
Carbon Black Italiana, diretor-administrativo da Cheseborough-Ponds e mem­
bro do conselho de administração da Remington Rand Italiana.
O que consolidou a estima de Montini por Sindona, já em 1959, foram os
2 milhões e 400 mil dólares que este levantou para Montini nos círculos co­
merciais de Milão, para o financiamento de um abrigo para pessoas idosas —a
Casa Madonnina.
Em 1966, o Vaticano perdeu sua batalha de seis anos com as autoridades
fiscais italianas e sofreu as penalidades conseqüentes. Havia chegado o mo­
mento para o salto. E Sindona estava pronto a ajudar o Vaticano a saltar.
No decorrer daqueles segundos próximos à meia-noite, na primavera de
1969, quando Sindona, e depois Paulo, se inclinaram e assinaram seus nomes
no acordo, foi dado a Sindona o controle de enormes recursos em moeda es­
41
trangeira. Em todos os mercados de capitais do mundo, portava ele, agora, o
imprimatur do Vaticano para todas as suas transações.
Enquanto Sindona se curvava para beijar o anel de Paulo e saía na escura
manhã romana com tanto poder financeiro quanto o de muitas nações da Ter­
ra, por um momento Paulo o viu, por assim dizer, transfigurado —seu temo
escuro, a gravata preta, a camisa branca, a maneira urbana, a deferência sorri­
dente, a satisfação óbvia —todos os detalhes pareciam refletir um outro po­
der, estranho ao que Paulo exercia por força daquele Anel do Pescador, que
Sindona acabara de beijar com tão grande naturalidade. Não era tanto pelo
fato de se dizer que Sindona pertencia à maçonaria. Era, antes, que Paulo sen-
tia que Sindona era um instrumento nas mãos de poderes desconhecidos. Des­
se momento e até 1977, essa impressão iria crescer, na medida em que as notí­
cias foram chegando até Paulo.
Sindona agiu rapidamente, em diversas frentes. Transferiu o equivalente a
40 milhões de dólares para o Banco de Luxemburgo, o Paribas Transcontinen­
tal (subsidiário da Banque de Paris et des Pays-Bas —Banco de Paris e dos Paí­
ses Baixos); desse total, 15 milhões de dólares foram adquiridos pela Gulf and
Western, sediada na Califórnia (Paulo teve um pequeno estremecimento,
quando ficou sabendo que a Gulf and Western era proprietária da Paramount
Pictures Corporation), cujo presidente, Charles Bludhorn, de 44 anos, passou
a fazer parte do conselho de administração da SGL Sob a direção de Marõin-
kus, o IRW adquiriu um grande lote de ações do Finabank, de Sindona. O Va­
ticano reteve 5% de controle sobre a SG1, mas continuou a desembaraçar-se
das empresas italianas, como a Condotte d’Acqua (em 1969), a Pantanella
(em 1970), e a Serono (uma fabricante de pílulas anticoncepcionais, em
1970). Diversificou, também, em companhias estrangeiras: General Motors,
General Electric, Shell, Gulf, IBM e algumas empresas de aviação.
Sindona tornou-se presidente de sete companhias italianas, vice-presidente
de três bancos e comprou um lote majoritário de ações do Banca Union (BU),
vinculado ao Vaticano, desse modo pelo menos triplicando suas operações
no setor bancário de Roma. Mais tarde iria fundii seu antigo BPF e o BU,
criando o Banca Privata Italiana (BPI). Através da movimentação de fundos
efetuada por Sindona, o Vaticano adquiriu a participação de 20% no BPI, des­
sa forma habilitando Sindona a estabelecer ligações com o Hambros (25%) e
com o Continental Bank, de Illinois (15%). O presidente do Continental, Da-
vid Kennedy, que foi secretário do Tesouro dos Estados Unidos ao tempo do
Presidente Nixon, mais tarde veio a ser membro do conselho da Fasco AG.
Todo mundo se surpreendeu quando, em 1972, Sindona inesperadamente
se transferiu, juntamente com a família, para os Estados Unidos, onde tomara
um apartamento de condomínio no Hotel Pierre, em Nova Iorque, em nome
de sua esposa, Katerina. Comprou o controle acionário do vigésimo maior
banco dos Estados Unidos, o Franklin National. Ofereceu um milhão de dóla­
42
res como contribuição eleitoral anônima para a reeleição do Presidente Nixon,
mas Maurice Stans recusou-a.
Menos de um ano depois, tomou-se evidente para todos a primeira racha­
dura no império de Sindona. O órgão americano Securities and Exchange
Commission —SEC (Comissão de Títulos e Bolsas) suspendeu todas as transa­
ções da Vetco Offshore Trading Industries, quando descobriu que Irving Ei-
senberger, um assessor de investimentos de Los Angeles, havia adquirido 25%
de ações não-integralizadas da Vetco (numa violação dos regulamentos vigen­
tes sobre segurança econômica). Veio a publico, também, que 20% das ações
e das opções da Vetco haviam sido compradas por Eisenberger em nome do
IRW, através dos Fiduciary Investment Services —FIS (Serviços Fiduciários
de Investimento), sediados no Liechtenstein, que contavam com uma agência
no complexo de escritórios de Sindona em Roma. O IRW possuía muitas
ações e opções nos FIS. Pelos meados de março de 1973, o IRW adquirira
454.000 ações da Vetco, parte de um lote de 714.000 ações da Vetco vendi­
das pelos FIS, o maior lote jamais negociado na Bolsa de Valores Americana.
O Vaticano pagou 320 mil dólares, a título de penalidade, como com­
pensação por essa transação ilegal, e as autoridades italianas começaram um
longo inquérito sobre os negócios de Sindona. Outra rachadura no império.
Quando Villot informou Paulo do inquérito e quando este soube, por
Vagnozzi, da penalidade sofrida, a memória pontifícia de Paulo foi perturba­
da pela velha inquietação: teria ele deixado a Igreja sem defesa? Tê-la-ia envol­
vido mais do que nunca com os poderes do mundo?
Em 1973, e durante mais dois anos de angústia, Villot e outros funcioná­
rios levaram ao conhecimento de Paulo notícias de desastre após desastre no
caso Sindona. O BPI de Sindona suportou prejuízos em moeda estrangeira no
valor de 48 milhões de dólares, em 1973, e de mais 150 milhões, em 1974.
Depois foi descoberto que o Franklin National Bank tinha pelo menos 43 mi­
lhões de dólares de prejuízos escondidos como “lucros falsos” , em negocia­
ções em moeda estrangeira com bancos suíços controlados por Sindona.
Outros bancos, controlados por Sindona ou a ele vinculados, começaram
a desmoronar —Wolf, Herz, Herstatt, Aminot —com os conseqüentes prejuí­
zos do Vaticano. Por volta de outubro de 1974, as autoridades italianas esta­
vam prontas para agir contra Sindona, Spada, Mennini e outras pessoas, cujos
nomes não eram revelados, envolvidas no golpe. A acusação: falsificação das
contas do BU, em 1960. A possível penalidade: quinze anos de prisão para ca­
da uma delas.
Em 9 de janeiro de 1975, as autoridades suíças fecharam o Finabank, de
Sindona, o qual havia sofrido perdas, em moeda estrangeira, de pelo menos
82 milhões de dólares. Sindona fez um último e infrutífero esforço para le­
vantar capital (cerca de 300 milhões de dólares), oferecendo para venda novas
ações preferenciais de uma pequena companhia controladora, a Finambro.
Mas Guido Carli, Governador do Banco da Itália, liquidou a idéia.
43
Os prejuízos do Vaticano foiam enormes. Em janeiro de 1975, Spada de­
clarou que, até então, o Vaticano havia perdido 10% de todos os seus bens.
As fontes bancárias suíças faiam em alguma coisa na casa dos 240 milhões de
dólares. Apesar das declarações públicas de Vagnozzi, feitas em abril de 1975,
de que os investimentos do Vaticano naquele caso atingiam os 500 milhões de
dólares (ele confirmou uma grande transferência de investimentos vaticanos
da Itália para os Estados Unidos) e de que os prejuízos da Igreja n’/7 crackSin-
dona eram mínimos, persistem as informações de que tais perdas bem podem
ter ultrapassado a marca do bilhão de dólares.
A lembrança que Paulo guardou do caso Sindona continuou sendo agri­
doce, através de seus últimos anos. Mostrou-lhe, mais claramente do que nun­
ca, a extensão em que a Igreja, institucional e hierática, estava acorrentada a
um sistema monetário internacional que pertencia, na teoria e na prática, ao
espírito do “Príncipe deste mundo” . Mas, com todos os seus desastres, toda a
aventura Sindona não bastou para despedaçar aquelas correntes.
Duas coisas sSo certas, no que diz respeito à aventura de Paulo com Mi-
chele Sindona. Ele queria alinhar o Vaticano e as finanças da Igreja com os
interesses dos Estados Unidos. Também queria desligar sua Igreja, na Europa,
de seu envolvimento no velho bastião em que a mesma tinha ocupado posição
predominante e desempenhado o papel de principal potentado, desde que
Constantino, o Imperador Romano, se convertera ao Cristianismo, no sécu­
lo IV e, com os enormes donativos e benefícios concedidos ao Papa de então,
Silvestre I, demarcara os passos de todos os Papas que vieram depois no cami­
nho do poder econômico e político. Silvestre foi o “primeiro pai rico” da
Cristandade. Na mente de Paulo, ele próprio gostaria de se tomar o primeiro
Papa pobre, depois de tanto tempo.
Mas isso não iria acontecer enquanto Paulo vivesse. “Talvez’’, observou
Paulo em fevereiro de 1977, “talvez só a mão de um opressor seja capaz de
Nos livrar e de livrar a Igreja de tudo isso. Talvez Satã possa passar por cima
de si mesmo. O dote de Constantino é grande demais para ser carregado no
mundo de hoje.” Paulo, o humanista de muita leitura, conhecia o seu Dante
bem demais para não se recordar dos versos que finalizavam o Inferno:

“Ahi! Constantin, di quanto mal fu matre,


Nu la tua conversion, na quella dote
Che da te prese il primo ricco patre/”

“Ah, Constantino! quanta infelicidade causaste,


Não te tomando cristão, mas por aquele dote,
Que de ti aceitou o primeiro padre rico!”

8 de dezembro de 1965 foi o dia do encerramento do Concílio Vaticano Ecu­


mênico, de quatro anos. Num café próximo à Catedral de São Pedro, um Ar­
44
cebispo francês, Mareei Lefebvre, estava sentado com dois de seus padres e al­
guns convidados. Lefebvre lhes estava explicando os fundamentos legais se­
gundo os quais considerava as decisões do Concílio inválidas e não-obrigató-
rias. Em parte alguma, observava Lefebvre, documento algum do Concílio
afirmava que a desobediência às decisões daria causa a anathema (a principal
condenação eclesiástica pela quebra da verdadeira fé). Além disso, argumen­
tava Lefebvre, o Concílio tinha errado... tinha abraçado o “Neomodernismo
e o Protestantismo”.
Lefebvre estava convencido de que o Concílio fora assaltado por Bispos
e teólogos que agiam num espírito de Protestantismo e Neomodernismo. Na
passagem do século, o Neomodernismo fora um movimento surgido entre
teólogos e intelectuais, que afirmavam que a crença e o dogma tinham que
mudar com a natureza mutável da espécie humana. Mas os Bispos e teólogos
neomodernistas presentes ao Concílio, em 1965, estavam atrás de mais algu­
ma coisa: de um novo tipo de Reforma, “Nós não iremos ter outra Reforma”,
era a frase freqüente nos lábiós dos teólogos progressistas do Concílio. Paulo e
os demais tinham sempre compreendido isso como o repúdio da revolta de
Lutero, no século XVI. Mas Lefebvre insistia em que havia outra interpreta­
ção. Lutero, dizia Lefebvre, havia decidido revoltar-se, abandonar a Igreja de
Roma, sair e fundar sua própria igreja. Mas os novos teólogos, de acordo com
Lefebvre, estavam realmente dizendo: “Não temos a intenção de fazer a tolice
que Lutero fez — tentar fundar uma outra igreja. Vamos ficar aqui e cavar
fundo dentro da Igreja e mudá-la para a imagem que fazemos daquilo que de­
veria ser.”
Filho de um fabricante de tecidos de Tourcoing, na França, um sacerdote
de grande saber, membro da Ordem Missionária do Espírito Santo, antigo Bis­
po de Dacar, no Senegal, e antigo Superior Geral da referida Ordem Missioná­
ria, naquele momento Arcebispo de Tulle, na França, com 60 anos de idade,
Lefebvre havia sido um dos mais vigorosos e ativo.« conservadores, durante o
Concílio Vaticano. Na proporção em que os conservadores perdiam terreno e
em que os progressistas conquistavam vitória após vitória, um rígido e decidi­
do espírito de resistência* foi-se estabelecendo entre os conservadores. “Nós*’,
disse o Cardeal Siri, de Gênova, a um amigo, quando saíam de uma sessão do
Concílio em que os pontos de vista dos progressistas haviam triunfado, “nós
não vamos ficar obrigados por todos esses decretos”.
Mas Siri manteve sua repulsa sob controle. Não agiu da maneira que tinha
ameaçado. Era Lefebvre quem iria traduzir o desafio de Siri numa campanha
pública que, finalmente, colocaria diante da Igreja de Paulo a primeira ameaça
de verdadeiro cisma, em mais de um século.
A primeira erupção de sentimento pró-Lefebvre ocorreria quatro anos
depois do Concílio. Era 1969. Paulo promulgara um novo texto oficial para a
celebração da missa —o Ritual da Missa. O Ritual de Paulo consistia numa In­
trodução, seguida do novo texto da missa e de instruções quanto ao cerimo-
45
niai, em substituição aos que haviam sido publicados e autorizados pelo Papa
Pio V, no ano de 1750, e que estavam sendo usados desde então.
Dois padres italianos, ambos seguidores de Lefebvre, escreveram uma crí­
tica do novo Ritual de Paulo, condenando sua Introdução como contrária à
crença católica tradicional. A crítica transpirou, naturalmente, até a imprensa
italiana e francesa, de modo que a luta se tomou pública. As pessoas começa­
ram a se colocar nos dois lados opostos: umas pela missa de Paulo e outras pe­
la antiga missa de Pio V. Pressionado pelo poderoso Cardeal Ottaviani e ou­
tros, Paulo fez a única coisa que podia fazer: pediu à sua Congregação da Fé
(anteriormente o Santo Ofício) para examinar a Introdução. Resposta da
Congregação-, tudo está muito certo, salvo alguns elementos do artigo 7? da
Introdução. Ottaviani, pelo menos publicamente, declarou-se satisfeito.
Mas Lefebvre não ficou satisfeito. Obteve permissão para estabelecer seu
próprio Instituto e Seminário, em Ecône, na Suíça. E foi de lá que, a partir
de 1974, desfechou ataques devastadores contra a Igreja oficial, na Europa e
nos Estados Unidos. Em 21 de novembro de 1974, surgiu o primeiro manifes­
to público de Lefebvre, declarando falso o Concílio Vaticano, ilegal a Missa
Paulina e errôneos os ensinamentos dos Bispos.
Pelo outono de 1976, ainda operando de Ecône, Lefebvre havia-se trans­
formado numa figura internacional, não apenas na reputação, mas nas posses.
Adquirira cinco castelos, na França, que usava como novos Seminários, para
o treinamento de mais de cem novos recrutas naquilo que caracterizava como
a verdadeira doutrina católica. Publicara um informativo bianual e seu livro
J'Accuse le Concile. Fundou mais seminários em outros países, incluindo os
Estados Unidos. Todos aqueles envolvidos na questão se foram tomando cada
vez mais exaltados.
Foi Villot, para crédito seu, quem preveniu Paulo, no começo de 1975.
Lefebvre precisava ser suprimido, insistia Villot, e seu movimento desacredi­
tado e liquidado. A Igreja tinha uma extrema direita que tinha sido contida
com sucesso. Havia uma extrema esquerda - em todos os países da América
Latina, nos Estados Unidos e na maior parte dos países europeus - que as
autoridades eclesiásticas, até então, haviam contido bem. Já ficara decidido,
muito tempo atrás, como política oficial, que ambos os extremos eram neces­
sários, para que a Igreja pudesse movimentar a maioria que formava o centro
na direção considerada como sendo a melhor para a existência futura dela
própria.
O tratamento que Paulo deu a Lefebvre e a mentalidade por este criada
foi, essencialmente, ditado pela premissa básica da humanidade integral de
Paulo: apresenta a face da tua Igreja a todos os homens, com a menor ênfase
possível naquilo que separa a Igreja dos outros grupos. Era um princípio de
abertura, da busca de semelhanças e correspondências, da eliminação daquilo
que, na realidade, afastava os que se achassem de fora. É possível que, em sua
Igreja, houvesse uma maioria de tendência tradicionalista. Mas, no entender
46
de Paulo, a grande maioria fora dela era composta de progressistas e estes não
poderiam aceitar uma Igreja Tradicionalista.
Daí porque Paulo encorajava o grupo do Terceiro Mundo. Ficava do lado
dos terroristas presos. Permitia que as mais extraordinárias aberrações em ma­
téria de doutrina e de comportamento ficassem impunes e, mesmo, nem fos­
sem corrigidas. Abolira —contra a vontade da maioria dos Bispos, no II Con­
cílio Vaticano —a missa em latim. Permitia que um Lefebvre, um homem da
direita, fosse atacado, condenado, ridiculizado e caísse em ostracismo, ao
mesmo tempo em que nada fazia para conter os elementos de esquerda que
escreviam e pregavam a doutrina católica de maneira diametralmente oposta
aos próprios ensinamentos dele, Paulo. Não fez tentativa alguma para impedir
o desaparecimento da complicada trama de devoções católicas aos santos, a
Cristo, ao Papado, como tal. Foi além da simbólica milha extra, em sua aco­
modação dos regimes comunistas da Europa Oriental.
Sem qualquer oposição real da administração vaticana sob Paulo e da Ro­
ma de Paulo, o Rosário, a devoção da Eucaristia, os Passos da Cruz, a devoção
do Sagrado Coração de Jesus e da Virgem Maria, o valor das peregrinações aos
lugares santos da Cristandade, a fidelidade ao Papa, a observância do Direito
Canônico, a interpretação católica da Bíblia, o caráter sacrossanto do sacer­
dócio, a vocação das freiras, a prática da meditação religiosa e do ascetismo —
e todas as outras fontes visíveis de entusiasmo e iniciativa na Igreja Católica —
foram eliminados como elementos da vida católica romana oficialmente apro­
vados e propagados. Não pode haver dúvida sobre isto: a política de Paulo era
favorecer a esquerda e eliminar - nem mesmo tolerar —a direita.
Para Paulo, o perigo estava em que a Igreja, como presença oficial de Je­
sus, se havia tornado, mais uma vez, relativamente desconhecida e comparati­
vamente insignificante, no plano dos cada vez mais complicados negócios da
raça humana, que em futuro previsível cresceria até os seis ou sete bilhões. O
Vigário de Jesus —não mais o morador imóvel e aceito de um santuário cen­
tral e venerado, mas um peregrino peripatético, numa ordem nova de valores
humanos —teria que procurar através de todo esse mundo uma forma diferen­
te de representar Jesus.
Nesse caso, a salvação que Jesus ganhara em sua batalha com o “Prínci­
pe” teria, ainda outra vez, que começar humildemente, para criar uma nova
civilização entre os seres humanos de muitas gerações posteriores à de Paulo;
uma raça para a qual o sentido de humanidade tivesse deixado de conter qual­
quer conotação de características genéticas, de origem geográfica, de pigmen­
tação da pele, de condição social, de diferenças lingüísticas, de economia e co­
mércio exterior, de associações históricas do passado, mesmo de nascimento
terreno.
Ora, se Lefebvre fosse deixado em paz para continuar, influenciaria for­
temente a extrema direita e o centro, onde se colocava a maioria dos católi­
cos, dessa forma destruindo a política de Paulo, por enfatizar as diferenças en­
47
tre católicos e não-católicos. Lefebvre era sinônimo de catástrofe para a polí­
tica paulina e era preciso fazê-lo parar.
Em conseqüência, Paulo fez pressão. Uma comissão composta dos Car­
deais Garrone, Tabera e Wright entrevistou Lefebvre, no começo de 1975.
Garrone —valha-nos Deus! —tratou Lefebvre como se ele fosse um louco pe­
rigoso e desprezível. Tabera despejou sobre eíe toda a sua fúria: ”0 que o se­
nhor está fazendo é pior do que aquilo que todos os progressistas fazem!” Fi­
nalmente, conforme instruções de Villot, expediram, em 8 de maio, uma con­
denação de Lefebvre. Mais ainda, deram instruções a Monsenhor Mamie, o
Bispo suíço em cuja diocese fica o seminário de Lefebvre em Ecône, para sus­
pender aprovação canônica ao seminário e ordenar a Lefebvre que o entregas­
se à Igreja. Lefebvre recorreu à Corte de Apelação do Vaticano, mas seu Pre­
feito, o Cardeal Staffa, sob orientação de Villot, recusou-se a fazer a revisão
do caso.
A partir da primavera de 1976, a batalha tomou-se pública e isso de for­
ma desagradável. Jornais importantes e numerosas revistas da Europa e dos
Estados Unidos começaram a estampar manchetes e artigos sobre o Arcebispo
e sua causa. Pela altura de março, Lefebvre era o objeto de uma torrente de
solicitações, ameaças e ordens partidas dos ministros de Roma. O tom geral da
mensagem era: submeta-se ou então.
É claro que Lefebvre não se submeteu. Em maio fez o circuito da nova
Sociedade dos Institutos Pio V nos Estados Unidos —em Houston, Texas; San
José, Califórnia; Armada, Michigan; e em outros lugares, em Oklahoma, Virgí­
nia, Minnesota e Arizona — conferindo a crianças o Sacramento da Crisma,
pregando contra o Concílio Ecumênico.
No mesmo Lago Albano, onde se situa o refúgio de verão do Papa, o Cas-
tel Gandolfo, a irmã de Lefebvre fundou um noviciado a que novas irmãs (cin­
co americanas, cinco francesas e uma australiana) se recolheram para treina­
mento.
Uma vez de volta à Europa, Lefebvre informou que ordenaria vinte e seis
jovens em Ecône, em 29 de junho de 1976. Em 24 de maio, por sugestão do
Cardeal Villot, o Papa Paulo falou abertamente, num Consistório público, da
revolta de Lefebvre. Paulo fez um apelo em favor da unidade. Foi a primeira
vez, em mais de duzentos e dezessete anos, em que um Papa atacou publica­
mente um prelado de sua Igreja. É que agora Paulo se via diante de um perigo
real: Lefebvre podia consagrar uma porção de bispos, estabelecer sua própria
diocese, em competição com as dioceses existentes. Já estava ordenando pa­
dres. E tais padres eram padres de verdade!
Entre 22 e 28 de junho de 1976, o Padre jesuíta Dhanis, mandado de Ro­
ma por Villot, teve várias entrevistas com o Arcebispo, tentando impedi-lo de
prosseguir com as ordenações programadas. A mensagem de Dhanis era: o se­
nhor terá que enfrentar a suspensão (isto é, seria proibido de celebrar a missa
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ou exercer qualquer das suas funções sacerdotais) e a possível excomunhão.
Ainda assim, Lefebvre não cederia.
Em 28 de junho, o Cardeal Thiandoum seguiu como emissário especial
de Paulo. Sua mensagem: se o senhor continuar com isso, eles o despojarão de
tudo. Pense e reconsidere.
No dia imediato a essa conversação, 29 de junho, Lefebvre ordenou seus
vinte e seis padres e diáconos, e fez um sermão amargo contra “os traidores de
nossa fé”. Nenhum dos presentes teve dúvidas de que estivesse se referindo ao
Papa Paulo, bem como a Villot e outros.
Em 10 de julho, Villot mandou o Arcebispo Ambrogio Marchioni a Ecô-
ne, levando uma carta em que era exigida a submissão de Lefebvre. Este nova­
mente recusou. Em 22 de julho, Villot mandou “suspender” Lefebvre, que re­
jeitou a suspensão como uma bagatela, fazendo um sermão sobre a “confusão
pelo abastardamento”, que o Vaticano estava criando. Temos, disse ele, “um
rito bastardo (a Missa Paulina), sacramentos bastardos, padres bastardos”. E
acrescentou: “Se o Papa está errado, deixa de ser Papa.” Nesse ponto, Lefeb­
vre ultrapassou o limite e seguiu no seu caminho em direção ao cisma decla­
rado e á excomunhão.
Agora todas as igrejas estavam proibidas a Lefebvre. Em 20 de agosto,
num ginásio abandonado anteriormente usado para exercícios de luta romana,
celebrou ele sua missa conforme o Santo Pio V. Pregou a uma congregação de
mais de seis mil pessoas: “O Concílio abastardou a Fé, com o neoprotestantis-
mo e o neomodemismo.” No mesmo dia, em Castel Gandolfo, o próprio Pau­
lo falou tristemente a uns sete mil fiéis, reunidos no pátio, debaixo da janela
de seu gabinete de trabalho: “Ajudem-Nos a impedir uma cisão na Igreja. Nos­
so irmão prelado desafiou as Chaves (da autoridade) colocadas por Cristo em
Nossas mãos.” Declarou também: “Não responderemos ao Arcebispo no tom
que usa em relação a Nós.”
Mas a batalha continuou. Em 5 de setembro, na presença de duas mil pes­
soas em Besançon, na França, Lefebvre rezou sua Missa do Santo Pio V e disse
no sermão: “Os católicos que querem manter a tradição de seus antepassados
e que querem morrer na Fé Católica seguirão conosco.”
Mas até ele chegaram os contra-ataques. O Cardeal Garrone condenou sua
mistura de “rigor litúrgico e políticas reacionárias” (Lefebvre elogiou o regi­
me militar da Argentina) e disse: “A mudança é necessária. Os passos em fal­
so, dados durante essa mudança, são prejudiciais. Mas a imobilidade é mor­
tal.”
Cinco bispos —alemães, austríacos e suíços —fizeram apelos a seus cató­
licos para que não tivessem coisa alguma a ver com Lefebvre. O teólogo fran­
cês Yves Congar fez apelos a ambos os lados: “Vamos fazer uma trégua nas
injúrias mútuas. Mais de 25% dos católicos franceses apóiam os pontos de vis­
ta do Arcebispo.” Tanto Lefebvre quanto Paulo gostariam de ver uma trégua
49
na questão toda. Mas somente no início do outono foi feito algum esforço
real para uma parada.
Antes disso, naquele mesmo ano, por duas vezes Lefebvre havia solicitado
ao gabinete de Villot, como exige o protocolo, que marcasse uma audiência
para ele com Paulo, no Vaticano. De cada vez, Villot recusou. Paulo só veio a
saber disso tudo muito depois e concordou com um pedido feito em nome de
Lefebvre pelo Cardeal Bemardin Gantin, um africano negro, para que aquele
se avistasse com o Papa. Mas Villot não iria permitir o encontro: "O Papa não
vai receber Lefebvre” , disse ele a Gantin. “Ele (o Papa) poderia mudar de
idéia e isso só iria criar confusão.”
Em 8 de setembro, Paulo mandou outra carta a Lefebvre e este respon­
deu através de amigos comuns: “Quero trabalhar sob sua autoridade... mas te­
nho que lhe falar pessoalmente...” O Arcebispo Beneili mandou uma mensa­
gem a Lefebvre dizendo sumariamente: venha a Castel Gandolfo com uma
carta solicitando uma entrevista com Sua Santidade. Em 11 de setembro, Le­
febvre fez exatamente isso. O Osservatore Romano noticiaria, ironicamente,
que o Arcebispo “inesperadamente aparecera na vila do Papa”. E ele conver­
sou com Paulo durante mais de uma hora.
Quando Paulo desceu, naquele dia, para encontrar-se com Lefebvre no
Salão de Recepção, teve uma surpresa. Lembrava-se da aparência do Arcebis­
po; do nariz comprido e ligeiramente aquilino; dos lábios finos na boca rasga­
da; do queixo firme; da expressão cautelosa nos olhos quase amendoados. Mas
agora, foi a atitude de Lefebvre que impressionou Paulo ou, mais precisamen­
te, a aura vibrante que cercava o vult* pequenino. Não havia arrogância. Nem
ressentimento. Nem servilismo. Nem aborrecimento. Em suma, Lefebvre pa­
recia possuído por alguma idéia devoradora, que lhes assombrava o rosto, as
palavras, os gestos, mesmo o ato respeitoso de ajoelhar-se e beijar o anel de
Paulo.
Paulo deixou que Lefebvre extravasasse toda as suas queixas e manifestas­
se todos os seus temores. E quando ele acabou, Paulo voltou à sua posição
básica: “Da maneira como o senhor está indo agora, será destruído. E todo o
seu trabalho terá sido por nada.”
As palavras de Lefebvre soaram claras aos ouvidos de Paulo: “Santidade!
Estou disposto a fazer qualquer coisa pelo bem da Igreja.”
“Sem obediência ao Trono de Pedro, sem nossa unidade em Cristo, a
Igreja não pode existir” , foi a resposta de Paulo a Lefebvre.
O Arcebispo continuou a argumentar, reclamando seus “direitos” : o di­
reito de celebrar a missa da maneira antiga; o direito de preparar seus padres
em seus próprios seminários. Estava pronto a fazer qualquer coisa pela Igreja
de Cristo, Lefebvre continuou dizendo, mas os fiéis que se sentissem ameaça­
dos deveriam ter uma alternativa para as práticas e os ensinamentos modernis­
tas desencadeados pelos “novos teólogos” . Naquele momento, estavam eles
50
recebendo falsos ensinamentos e sua Fé estava correndo o risco de ser destruí­
da.
“O Arcebispo pretende consagrar novos bispos?” Paulo perguntou. Aque­
le pensamento era um pesadelo: Lefebvre podia, validamente, sagrar novos
bispos e isso representaria um cisma clássico, outra igreja dividida, mais desu­
nião.
Se havia necessidade de bons bispos, ele faria o seu dever, foi a resposta
de Lefebvre. Disse também que Sua Santidade havia sido mal-informada a
propósito dos fiéis. Uma grande minoria, em toda população católica, ansiava
pela velha missa e pelos antigos ensinamentos.
Paulo tinha plena percepção do problema. Muitos achavam difícil acom­
panhar as mudanças. Num certo sentido, a peregrinação de Paulo havia come­
çado e nem todos os fiéis poderiam começá-la em ele. Havia séria inquietação
na Igreja. Havia desobediência entre os católicos de esquerda, da mesma for­
ma que entre os da direita que acompanhavam Lefebvre. Já em Mênfis, no
Tennessee, Estados Unidos, um bispo chamado Dozier queria promover reu­
niões irregulares para “Confissão e Absolvição” em massa. Em 20 de agosto
de 1976, Paulo tivera que consentir na dispensa de todo um convento de frei­
ras dominicanas de seus votos religiosos. Tal como Lefebvre, elas tinham hor­
ror à nova missa de Paulo. 0 Padre Gommer DePouw, em Long Island, Nova
Iorque, só celebrava a missa antiga e fizera crescer sua congregação além de
dez mil pessoas, algumas das quais vinham de quilômetros de distância, todos
os domingos. DePouw, provavelmente, contava com alguns milhões de simpa­
tizantes não-declarados.
Ao que se lembrou depois, Paulo só perdeu a paciência num ponto, du­
rante a conversação. Foi perguntado a Lefebvre por que era que ele atacava e
condenava pessoalmente o Papa Paulo. A resposta foi de enfurecer: “Alguém
precisa manter a verdade diante dos olhos dos fiéis.”
“ Que é que se espera que eu faça, quando o senhor me condena?” Paulo
então lhe perguntou. “Que abdique? É isso que o senhor deseja? É a minha
posição que o senhor quer?”
Mas Lefebvre acalmou-o: “O senhor tem a solução ao alcance da mão” ,
respondeu. “Uma palavra sua aos bispos e eles permitirão que nós, tradiciona­
listas, usemos suas igrejas para o culto. Isso não é um direito nosso?”
Paulo fizera tudo que lhe fora possível para conquistar Lefebvre para seu
ponto de vista. Explicara que ele, mais do que o Arcebispo, estava extrema­
mente preocupado com a enorme ruptura que, em ziguezague, partia do Colé­
gio dos Cardeais e descia pelos bispos, pelos padres, indo atingir o povo em to­
da a população católica romana, na Europa e em outros lugares. Há, na reali­
dade, um cisma de facto na Igreja, explicou Paulo a Lefebvre. Mas ninguém
foi condenado. E a coisa deveria permanecer assim. As perdas seriam irrepa­
ráveis, durante gerações ainda por vir, se Roma tivesse que condenar milhares
de católicos.
51
Paulo continuara para explicar como é que encarava sua própria função:
dirigir sua Igreja dividida, atrair a massa católica para uma posição e uma ati­
tude centristas; advertir tudo e todos, quando houvesse erro; e dar início a
uma série de pronunciamentos, durante certo período, nos quais a doutrina
tradicional quanto a pontos básicos —a Eucaristia, a Ordenação dos padres, a
infalibilidade do Papa, a ética referente ao aborto e à sexualidade, e assim por
diante —encontrasse eco. Desse modo haveria de soar em seu Pontificado - e
além dele, na era negra que esperava a Cristandade —uma voz clara como a de
um sino, afirmando e reafirmando, contra toda oposição dentro e fora da
Igreja, os mais tênues contornos da doutrina tradicional.
No entanto, todos os seus esforços para convencer Lefebvre foram em
vão. “Que é que pode haver de errado em pelo menos se experimentar a for­
mação de padres da maneira pela qual o senhor e eu fomos formados? Da ma­
neira tradicional? Que pode haver de errado nisso?” era o apelo de Lefebvre.
Uma parte do cérebro de Paulo lhe dizia: Nada. Nada mesmo. Outra par­
te dizia: É perigoso demais! Lefebvie vai atrair uma enorme minoria —talvez
a maioria f
Contudo, a entrevista não terminara demasiadamente mal. Enquanto ca­
minhavam para a despedida, Lefebvre fez uma última tentativa: "Mas o se­
nhor não pode fazer alguma coisa para nos proteger, para aliviar a pressão so­
bre nós, Santo Padre?”
“Não lhe posso responder agora. A Cúria deve ser consultada. Vamos
ver... Vamos pensar sobre tudo isso.” Depois, com seu costumeiro sorriso sua­
ve: “Devemos terminar agora nossa conversa. Mas vamos rezar um pouco jun­
tos.” Disseram um Padre Nosso, uma Ave Maria, e a prece tradicional ao Espí­
rito Santo, o Vent Sancte Spirítus. Ambos, espontaneamente, rezaram as ora­
ções em latim. Era mais natural e tinha para eles um sabor maior do que o de
qualquer outra língua.
Para Lefebvre, não fora tão mal quanto ele havia esperado, assim expli­
cou à imprensa: “O Papa falou comigo como um pai... abriu-me os braços...
É o começo do diálogo...” Nem fora tão bem quanto desejara: “Não chega­
mos a conclusão alguma...”
Mas, para Paulo, o encontro foi perturbador. Lefebvre não podia ser de­
tido por ameaças, nem por súplicas. Impiedosamente forçado pelo tratamento
categórico de Villot, o mínimo que poderia fazer seria provocar um cisma
eclesiástico. Poderia (o pensamento fazia Paulo estremecer) estabelecer-se co­
mo antiPapa...
No fim, nada de bom resultou da entrevista. Paulo não podia ceder e per­
mitir um estilo alternativo de culto e de crença. Isso, também, poderia aca­
bar num cisma e na dúvida entre os fiéis. Não podia aprovar Lefebvre, porque
sua autoridade estava em jogo. E não podia permitir aos tradicionalistas de
sua própria Cúria Papal aquele tipo de triunfo. A luta continuaria.
Lefebvre recebeu uma longa carta pessoal de Paulo, datada de 11 de ou-
52
tubro de 1976, na qual este de novo lhe exigia submissão. No começo de
1977, Villot deu publicidade a essa carta de 11 de outubro, de Paulo a Lefeb-
vre, numa tentativa de desacreditá-lo, mas ainda assim o Arcebispo não iria
parar e seu movimento continuou. Em janeiro do mesmo ano, trinta e um in­
telectuais franceses assinaram um manifesto em apoio de Lefebvre e pediram
à Igreja que voltasse á “tradição autêntica”, que Lefebvre representava. Ainda
excluídos das igrejas paroquiais, ele e seus seguidores continuavam a celebrar
suas missas em locais improvisados: uma garagem em Indianapolis; um salão
de reuniões dos Veteranos de Guerras no Exterior, alugado em Hicksville,
Long Island; um celeiro em Surrey, na Inglaterra; um salão de baile abando­
nado, em Bonn, na Alemanha. Depois, dando mais um passo na direção do
cisma, Lefebvre e seus seguidores, dia a dia aumentando de número, começa­
ram a instalar suas próprias igrejas, na Europa, na América do Norte e na
América Latina.
Lefebvre negou publicamente que fosse “antiVaticano” ou infiel ao Papa.
Continuou a dizer, suave mas firmemente, que não tinha intenção de criar um
“Vaticano Tridentino” —isso, insistia, era apenas outra mentira espalhada a
seu respeito. Negou qualquer desejo ou intenção de se tomar um antiPapa, ou
de construir uma basílica “para rivalizar com a de São Pedro, em Roma” —
outra calúnia. Tudo que quero, continuava Lefebvre a dizer, é “manter aber­
tas opções para católicos romanos desnorteados, mas fiés”.
Quando Paulo morrer, os seguidores de Lefebvre ainda estarão ativos, e o
movimento tradicionalista terá um novo status na Igreja Romana. E caberá ao
sucessor de Paulo — o homem eleito Papa no Conclave 82 —decidir o que
fazer em relação ao movimento tradicionalista, que agora não pode ser su­
focado.

A decisão de Paulo quanto a Lefebvre, seu discurso e sua atitude nas Nações
Unidas e sua aventura com Michele Sindona foram, cada um deles, parte de
sua mais fundamental decisão tomada em relação à sua Igreja. Nada senão
uma completa mudança nas atitudes da Igreja, sustentava ele, poderia garantir
o futuro dessa Igreja.
E essa conclusão básica chegou a Paulo em conseqüência de uma vida in­
teira passada no serviço do Vaticano, toda entrelaçada numa teia complicada
de lembranças, lições, pesares, alegrias, sucessos, malogros, especulações, teo­
rias e interpretações envolvendo homens, mulheres e crianças; abrangendo
cidades e nações e comunidades e continentes e - já bem tarde em sua vida —
sobre o planeta Terra em relação a outros planetas e a outras galáxias. O mi­
lagre de Paulo VI é que, considerados os antecedentes de sua experiência de
vida, tenha realmente atingido tamanha largueza de mente. A pergunta deci­
siva a seu respeito é: teria ele ido longe demais?
0 que os de fora viam como contraditório em sua maneira de tomar de­
cisões era, na realidade, o resultado de seu escrupuloso cuidado para não per­
der completamente o equilíbrio, na corda bamba devastadora dos nervos em
que fora chamado a caminhar quase a partir do dia em que se tomara Papa,
entre a maioria tradicionalista e a minoria progressista. O mundo em que Pau­
lo nascera fora o dos “absolutos infinitos”, de Croce. Fora formado por uma
longa lista de gênios hoje desconhecidos da maioria dos homens e das mulhe­
res —Tomás de Aquino, Boaventura, Dante, Petrarca, Giotto e Signorelli, Ra­
fael e Ticiano, Miguelangelo e Bramante, da Vinci e Galileu, Vico e Mazoni,
Vivaldi e Verdi, o Papa guerreiro, Julio II, o metediço Pio IX, o intransigen­
te Pio X, e aquela encarnação de Romanità, Pacelli. Paulo fez todo o seu ca­
minho desde esse mundo morto até o ponto em que pôde visualizar um fim
para as estruturas da civilização, da cultura e da Igreja que semelhante litania
de antigos génios tornou possível. Esta é a verdadeira medida de Paulo. Pio
XII não conseguiu isso, nem mesmo o adorado Papa João XXIII, muito me­
nos qualquer dos Pontífices precedentes. A maior parte dos líderes atuais
nâo o conseguiu. Paulo viu o fim. Agiu de acordo com isso. Foi sábio assim
fazendo? Só o tempo dirá.
Onde Paulo certamente fracassou e onde deixou uma nada invejável he­
rança para os Cardeais-Eleitores do Conclave 82, foi num ponto capital. No
contexto da estrutura política de Paulo, a Igreja não tinha alternativa ante
as forças desencadeadas a seu redor. A Nave de Pedro, na opinião de Paulo,
simplesmente deveria flutuar com as marés e as correntes. Ao abrir sua Igre­
ja a todas as influências exteriores, não criou iniciativa alguma, dentro da
Igreja. Através disso tudo, permitiu e algumas vezes fez com que as fontes
tradicionais da iniciativa eclesiástica fossem sufocadas» de modo que, no
fim de seu reinado, prevalecia a semi-escuridãò da hora do crepúsculo.
E, assim> os Cardeais-Eleitores do Conclave 82 precisam, primeiro, per­
guntar a si próprios não qual dentre eles será o Papa, mas se ainda lhes resta
alguma iniciativa no mundo moderno. Devem eles, agora, apenas flutuar ao sa­
bor da maré? Devem adotar uma nova política, para um Papa atuante e ativa­
mente católico romano? Ou constitui seu dever optarem por uma política de
contenção e por um Papa zelador, um Papa de transição?
Seja o que for que decidam, a advertência que Paulo lhes fez foi clara. Às
vezes chamava a si próprio de Peregrino. Viu-se a si mesmo parado no limiar
da antiga morada católico-romana, que brevemente seria abandonada por ser
incompatível com o mutável cenário do mundo. Dali acenou para os fiéis, e
para os que orava para que viessem a ter fé. E rogou aos “homens de pensa­
mento, homens do poder, homens do trabalho e do cansaço... que uma vez
mais encontrem significado para seus esforços em Jesus e em Seu Sacrifício”.
No século XXI, lembrem-se os homens e as mulheres de Paulo como gran­
de ou como ignóbil, olharão para trás e lembrar-se-ão dele na manhã chuvosa
54
da Páscoa de 1977, uma figura frágil, movendo-se devagar e com dificuldade,
carregando uma cruz de madeira pelas ruas de Roma, de pé sob um guarda-
chuva, para dizer mais uma vez sua mensagem, na voz profunda e decidida de
um homem velho, que acreditava com todo o seu coração.

55
A FASE ANTERIOR
AO CONCLAVE:
Os Boletins
Pré-Conclave, 1970-1977
Série Um — 1970

PRIMEIROS R UMORES DE QUE O PAPA PA ULO RENUNCIARÁ

Os rumores da renúncia do Papa Paulo enchem o ar, pela altura de 1970. Já


em 1966, ao visitar o túmulo do Papa Celestino V —um dos últimos a renun­
ciar (em 1294) —Paulo mencionou abdicação. Àquela altura, já estava mergu­
lhado em dificuldades: uma desavença amarga com os jesuítas; problemas que
se prenunciavam nos investimentos vaticanos; questões surgidas nos desenvol­
vimentos posteriores ao Concílio Vaticano; o envolvimento da Igreja na inter­
venção dos Estados Unidos no Sudeste da Ásia. Paulo falou em estar “sendo
enganado por aqueles que me cercam”.
Em 1967, decretou que todos os bispos da Igreja, ao chegarem ao 759
aniversário, deveriam apresentar seu pedido de renúncia e estar preparados
parai terem tais pedidos aceitos. Em 1972, o próprio Paulo estaria com 75
anos. O Cardeal Parente, na verdade, comentou com ressentimento a nova
determinação de Paulo: se um Bispo de 75 anos não é capaz de dirigir
uma diocese, digam-me, por favor, como é que um Papa de 75 anos pode ser
capaz de governar a Igreja universal!” Parente tinha razão. E, de fato, Paulo
pensava na renúncia.

O PAPA PAULO PREVÊ O FIM DA DEMOCRACIA AMERICANA


E EUROPÉIA E DÂ OS PRIMEIR OS PASSOS NO SENTIDO DE
MUDANÇAS RADICAIS NA DIREÇÃO DA IGREJA E NO PAPADO

“Assumimos a responsabilidade de governar a Igreja de Cristo porque


ocupamos o posto de Bispo de Roma e, conseqüentemente, o posto de suces­
sor do Bendito Apóstolo Pedro, o portador das chaves-mestras do Reino de
59
Deus, o Vigário do mesmo Cristo que fez dele o supremo pastor de seu reba­
nho universal.” Assim falou Paulo, em uma de suas primeiras encíclicas*, em
6 de agosto de 1964.
Mas, no início dos anos 70, a opinião de Paulo mudou radicalmente. Pen­
sa numa Igreja mais aberta, noutro tipo de governo pontifício e numa espécie
diferente de Papado.
Quer abolir completamente o Conclave. É essa a única maneira que vê
para quebrar o domínio do todo-poderoso “clube” dos funcionários do Vati­
cano e de seus patrocinadores leigos espalhados pelo mundo inteiro, os quais,
durante séculos, decidiram quem seria o Papa —muitas vezes antes da realiza­
ção do Conclave. Claro, o Papa não era menos Papa, nffo era menos Bispo de
Roma e Vigário de Cristo, em razão da forma pela qual era eleito. Mas o era
com menos eficácia. Paulo vê o Conclave como um produto da Idade Média,
da Europa Meridional, da velha ordem estabelecida na Europa, o ancien regi­
me. Tudo isso passou. Acabou. A democracia no estilo dos séculos XVIII e
XIX, como existe nos Estados Unidos e em alguns países da Europa Ociden*
tal, também, na opinião de Paulo, é coisa acabada. O futuro, pensa ele, está
no Terceiro Mundo da Ásia, da África e da América Latina.
Ele começa a preparar uma encíclica para enfatizar tudo isso e para abrir
novos rumos de pensamento - arando a terra para a mudança extrema. Está
disposto a renunciar em 1972, desde que tenha alcançado duas metas. Primei­
ra: reformulação total do método de eleição do Papa. Segunda: eleição do
homem que ele próprio escolher para ser o Papa seguinte, um homem em
quem se possa confiar para prosseguir com todas as mudanças de Paulo, e com
quem este possa trabalhar.
Através de conversas e de correspondência, Paulo começa uma díscieta
sondagem de opiniões sobre a modificação do sistema do Conclave, sobre sua
própria abdicação e sobre a identidade de seu sucessor. Os comentários sobre
suas atitudes e planos espalham-se, através das principais chancelarias, até os
Cardeais e os fazedores de Papas, entre os bispos, pelo mundo inteiro.
Enquanto isso, Paulo começa a ajustar a seus.planos outras ações impor­
tantes. Tem que fazer uma grande transferência nas finanças do Vaticano. E,
por meio das Comissões estabelecidas pelo II Concílio Vaticano, tem que ten­
tar modificar a atitude da massa católica. Essa massa é tradicionalista por há­
bito e não é aberta às grandes mudanças, pelo menos não às grandes mudan­
ças que Paulo considera necessárias nesse momento e nessa era.

* Ecclesiam Suam (Sua Igreja) era o título dessa Encíclica.


60
EM FORMA ÇÃO A LISTA DE CANDIDATOS A PRÓXIMO PAPA

Até então, a maioria dos papabili é de italianos: os Cardeais Dino Staffa,


Antônio Samoré, Sebastiano Baggio, Paolo Bertoli (todos em função no Va­
ticano), Giuseppe Siri, de Gênova, Corrado Ursi, de Nápoles. Jan Willebrands
é holandês, mas também ele é membro do Vaticano. O único africano negro
cujo nome é mencionado de vez em quando é Lauren Rugambwa, de Dar-es-
Salaam.
Mas tais nomes irão mudando, conforme a morte e o desfavor forem co­
lhendo os Cardeais em questão, e na proporção em que outros candidatos,
mais ambiciosos e/ou mais promissores forem surgindo. Seja como for, Paulo
tem a intenção de fazer mais Cardeais. Fala-se em procurar um candidato não-
italiano, mas ainda europeu, para que se faça a transição do costume de ele­
ger-se um italiano. Assim, o segundo dos futuros Papas poderia bem ser um
não-europeu.

61
Série Dois — 1971

DECLÍNIO DA RELIGIÃO NOS ESTADOS UNIDOS

As pesquisas dos peritos em sondagem de opinião pública George Gallup


Jr., John O. Davies Jr. e do Instituto Americano de Opinião Pública (Ameri­
can Institute of Public Opinion) fizeram correr ondas de choque pela camari­
lha de Paulo. Os resultados mostravam que 89% dos ministros protestantes,
61% dos padres católicos romanos, e 63% dos rabinos acham que a religião,
em seu conjunto, está perdendo sua influência nos Estados Unidos. E devem
saber o que dizem. Quando se menciona como uma contra-indicação o recém-
surgido movimento Jesus, o mesmo é descartado por Paulo e seus assessores
como coisa transitória, uma “moda”.

A TA QUE A O CELIBA TO DOS PADRES

Outro fator contrário às idéias de Paulo em relação a uma renúncia an­


tecipada é a opinião emergente contra o celibato. Quarenta por cento dos pa­
dres da Itália já são favoráveis à abolição do celibato. Na Espanha, 33% dos
sacerdotes votaram pelo celibato opcional. A Conferência dos Bispos da
América Latina (CELAM) pediu o celibato opcional.

ATAQUES AO DIREITO CANÔNICO UNIVERSAL PROPOSTO POR


PA ULOEÀ PRÓPRIA INFALIBILIDADE DO PAPA

Para culminar tudo isso, é publicado o primeiro ataque violento de um


católico romano, nos tempos modernos, à infalibilidade pontifícia de Paulo.
62
É um livro escrito por Hans Küng, o teólogo alemão, de quem muito o mun­
do ouvirá falar.
Quando Paulo manda preparar um projeto de lei para toda a Igreja, por
um grupo secreto de seus próprios especialistas em Direito Canônico, mais de
duzentos e vinte teólogos de regiões de língua alemã condenam o projeto
abertamente. O Cardeal Leo Josef Suenens, da Bélgica, numa entrevista pú­
blica, ataca-o, cobre-o de ridículo e o condena. A Sociedade de Direito Ca­
nônico dos Estados Unidos (The Canon Law Society of the United States)
faz a mesma coisa. Dessa maneira, Paulo já dispõe de alguns sinais prelimina­
res daquilo que os “novos teólogos” de tendência progressista desejam fazer
com a doutrina da Igreja. Se ele conseguir orientar todas essas erupções e to­
das essas rebeliões, talvez possa trazer sua Igreja para uma posição mais aberta
e, assim, atrair os não-católicos. Sua política será conter, e não condenar, tais
ataques.

PA ULO ADOTA UMA POLlTlCA DE CONCILIAÇÃO DOS


MOVIMENTOS MARXISTA E ESQUERDISTA

A receptividade de Paulo em relação à esquerda toma-se evidente numa


série de medidas por todo o mundo. Recebe o Presidente Tito, da Iugoslávia,
numa visita oficial. O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Hungria também
visita Paulo. Paulo envia o Cardeal Kõnig, de Viena, a Budapeste e consegue
que ele convença o Cardeal Mindzenty a abandonar seu asilo na Embaixada
Americana. O Papa promete a Mindzenty: “Nunca, enquanto o senhor viver,
nomearemos outro Cardeal Primaz para a Hungria.” A remoção de Mindzenty
de Budapeste e seu exílio em Viena, onde deverá ficar vivendo no antigo
Seminário Austro-Húngaro, são uma bênção para o governo comunista de
Janos Kadar. Mindzenty tinha sido um espinho na carne viva do Estado
marxista. Paulo envia também o Arcebispo Agostino Casaroli, funcionário da
Secretaria de Estado do Vaticano, bem como o Padre Pedro Arrupe, Geral dos
Jesuítas, para entendimentos com Moscou. Promove conversações com o
governo comunista da Checoslováquia.
Paulo é criticado pela unilateralidade de sua política. Enquanto os gover­
nos marxistas obtêm concessões do Papa, tais governos não afrouxam a fero­
cidade de sua própria atitude anticatólica e anti-religiosa. E isso é tão verda­
deiro em relação à Iugoslávia de Tito, quanto à Rússia e aos demais lugares.
Paulo é ainda atacado por remover o Cardeal Agnelo Rossi de seu posto de
Arcebispo de São Paulo, no Brasil, pelo fato de Rossi apoiar o governo direi­
tista em suas rigorosas medidas contra os terroristas de esquerda, os guerrilhei­
ros marxistas e os pregadores do comunismo. E é combatido também pelo
apoio que dá aos bispos e padres que se revoltam e lutam contra o governo di­
reitista do Presidente Stroessner, no Paraguai.
63
Paulo não desaprova a amizade e a associação do Cardeal Silva Henríquez
com Salvador Allende, o ditadoi marxista do Chile. Silva reúne-se a Allende
no palanque oficial, num gigantesco encontro de representações marxistas e
socialistas, nas comemorações do Dia do Trabalho. E quando a Congregação
Missionária dos Padres Brancos (White Fathers Missionary Congregation) de­
cide retirar todo o seu pessoal de Moçambique, em protesto contra o domínio
colonial dos portugueses, Paulo aprova a atitude de seus membros.
O pensamento de Paulo é revelado de forma extremamente significativa
em sua Carta Apostólica publicada em maio. Nela, advoga um novo regime
num futuro próximo. A Carta repete o tema da teologia da liberação: nenhum
progresso pode ser alcançado através da religião, a menos que um novo siste­
ma econômico se instale, um sistema que, nitidamente, significará a transfor­
mação —na realidade o fim —do capitaÜsmo clássico.

NO VO E GRANDE SALÃO DE A UDIÊNCIAS ÊINA UGURADO


PELO PAPA PAULO

Pier Luigi Nervi é um dos mais famosos engenheiros-arquitetos do século


XX que se especializam naquilo que os críticos da arquitetura de vanguarda
denominam “estilo atlântico” , ou “estilo dos atlantes”. Nervi foi o arquiteto-
chefe da Catedral Católica Romana, de São Francisco.
As construções do estilo dos atlantes não são símbolos de coisa alguma,
nem representam esboços de nenhuma presença sacramental da Divindade, no
contexto do universo humano. Não evocam o sobrenatural, ou o transumano,
nem contém, em suas linhas rígidas, eco algum de qualquer graça ou beleza
tradicionais.
As construções atlantinas são massas arquitetônicas onduladas que ex­
pressam o dinamismo técnico de sua própria criação, não qualquer meta, ou
objetivo ideal fora ou acima de si mesmas. Dão sempre a impressão de estarem
prestes a irromper, ou a alçar vôo, como coisas imensas desprovidas de asas,
movidas por sua própria força interior. Mas seu impulso é horizontal, não ver­
tical.
A pedido do Papa Paulo, Nervi elaborou os planos de um salão desse tipo.
Em 1964, apresentou os planos ao Papa e Paulo aprovou-os. Em 2 de maio
de 1966, os trabalhadores começaram a demolir os edifícios que se erguiam
na área a Este da Praça de São Pedro, entre a Sede do Santo Ofício e o Muro
Leonino do Vaticano. Ali seria o lugar do enorme Salão de Audiência de
Nervi.
Em 30 de junho de 1971, o “Nervi”, como veio a ser familiarmente cha­
mado, é inaugurado e abençoado pelo Papa Paulo, numa cerimônia pública. É
nele que Paulo realizará suas audiências pontifícias. É nele que se realizarão os
futuros Sínodos dos Bispos da Igreja.
64
0 Nervi é um edifício longo, mais ou menos trapezoidal. Suas portas
principais dão para o Este, como as portas da Basílica de São Pedro. O teto é
ondulado. Em cada uma das duas compridas paredes do trapezóide, há uma
janela oval, um vitral, colocado como um olho naquela massa multiforme.
Tais janelas são obra de Giovanni Haynal. Marc Chagall foi o primeiro a ser so­
licitado a apresentar projetos para os vitrais, mas sua arte, com um toque de
confusão e incivilidade, foi finalmente considerada inadequada a um lugar que
deveria exprimir a sagrada serenidade de Deus e a harmonia entre Deus e o ho­
mem.
No interior do Nervi, o Salão Principal é prodigioso. Seu piso inclina-se
numa rampa, como o chão de qualquer teatro, desde a entrada até o palco, si­
tuado na parede Oeste, mais ou menos a 830 metros de distância. O teto on­
dulado parece o céu de uma boca gigantesca, engolindo o visitante. Esse teto
abobadado compõe-se de quarenta e dois arcos geminados, brancos, pré-fabri-
cados. O Salão Principal comporta 6.000 pessoas sentadas, ou 14.000 de pé.
No palco, o trono do Papa fica sobre um estrado elevado. Por trás do tro­
no será colocada a maior escultura em bronze existente no mundo, encomen­
dada pelo Papa Paulo, em 1965, a Pericle Fazzini, de 64 anos, um dos artistas
favoritos de Jacqueline Kennedy. Comentou-se que Pier Luigi Nervi ficou
aborrecido com o fato da encomenda ter sido feita a Fazzini, bem como com
os planos de Fazzini para a escultura. Correu que Nervi, citando outro atlante,
Le Corbusier, havia dito: “Duas primadonnas cantando na mesma ópera, não
cantam bem de jeito nenhum.”
Mas Paulo aprova os planos de Fazzini, comentando: “Quero uma obra
que perdure.” Sua Santidade vai tê-la.
É no Salão Principal que Paulo realiza suas Audiências Gerais. Aí celebra­
rá ele o seu 809 aniversário, em 1977 - no dia em que muito esperam que re­
nuncie.
Além do Salão Principal, o aposento mais importante é o Salão do Síno­
do, ou “Salão Superior” , como também é chamado, por causa de sua localiza­
ção acima do Salão Principal, enfiado jeitosamente debaixo do teto do Nervi.
Essa denominação, “Salão Superior”, faz lembrar ecos do quarto de cima, na
casa de Jerusalém, onde os Apóstolos esperaram, depois da Ressurreição e da
Ascensão de Jesus, pela vinda do Espírito Santo, no dia de Pentecostes. O pi­
so desse moderno Salão Superior é formado pela curvatura exterior inclinada
do enorme teto do Salão Principal, que fica abaixo. Chega-se ao Salão Supe­
rior por amplas escadarias e por elevadores. Comporta mais de 280 pessoas
sentadas e está equipado com toda espécie de moderno instrumental necessá­
rio para tradução simultânea e para imediata transmissão pelo rádio e por te­
levisão. Na descrição semi-oficial desse aposento, fala-se de sua “perfeita efi­
ciência na acomodação de grande número de pessoas, oferecendo serviços téc­
nicos... que tornarão este Salão do Sínodo ainda mais útil —e mais usado —
para importantes reuniões de caráter religioso...” De fato, o Terceiro Sínodo
65
Internacional de Bispos, previsto para o próximo dia 30 de setembro, será
realizado nesse Salão do Sínodo, nesse Salão Superior. E já corre o boato, es­
carnecido por muitos funcionários do Vaticano, de que o Conclave 82 pode
ser realizado nele e não, como vem ocorrendo, há séculos, na Capela Sistina.
Paulo, em seu discurso de inauguração, salienta um dos aspectos do Ner-
vi: foi construído para ser o lugar especial em que “o Santo Padre receberá as
pessoas, expressando uma espiritualidade apropriada à soberania do Papa e à
fé dos crentes... (O Nervi) será um símbolo visível da unidade do Papa e das
gentes” .
Com boatos ou sem eles, o Nervi —com seu Salão Principal e seu Salão
Superior —está destinado a reuniões históricas e decisivas.

66
Série Três — 1972

IMPOSSÍVEL ESTE ANO A RENÚNCIA DO PAPA PA ULO

Nenhum dos planos do Papa Paulo para alterar o governo da Igreja nem
ao menos chegou perto de um sucesso relativo. Sua pretendida renúncia seria
catastrófica, no que toca a seus planos de mudança decisiva.
Primeiro, o Colégio de Cardeais. A nova determinação de Paulo, que afas­
tou os Cardeais de oitenta anos e mais da participação nos Conclaves, elimi­
nou os grandes capitães da velha guarda: Ottaviani, Parente, Roberti, Tisse-
rant, Zerba. Mas uma grande maioria dos Eleitores seria ainda composta de
tradicionalistas: Cardeais como Samorè, Siri, Traglia, Vagnozzi. Há toda uma
hoste de italianos e a maior parte dos Cardeais dos Estados Unidos, Alema­
nha, Espanha, Portugal, Irlanda, Inglaterra, Áustria e Polônia, que são tradi­
cionalistas. A mesmíssima coisa pode ser dita de YüPin, da China, e Kim, da
Coréia, de Razafímahatratra, de Tananarive, e de todos os Cardeais africanos.
Os resultados das sondagens de Paulo, embora ainda incompletos, o con­
vencem de que não podia persuadir número suficiente de Cardeais tradiciona­
listas a aceitar seu plano. A renúncia, nessas circunstâncias, seria o fim, certo
e rápido, de sua política pontifícia.
Culminando tudo isso, naquele ano haviam aparecido os primeiros genuí­
nos sinais de séria revolta entre o clero e os leigos contra as novas leis “libe­
rais” de Paulo em matéria de culto, as quais modificaram quase todos os as­
pectos da vida religiosa católica. A ponta de lança da revolta é um Arcebispo
de mentalidade tradicionalista, coisa que Paulo considerava tão essencial mo­
dificar: Mareei Lefebvre. Nos dias de hoje, os Arcebispos não fazem muitas
manchetes. Mas esse prova que é uma exceção.
A pregação de Lefebvre é que a versão revista de Paulo da missa romana
67
é inspirada por Satã. Acusa o Vaticano de ter sido infiltrado de comunistas e
ateus e corrompido pelos protestantes. É a voz, o foco e a nova substância da
facção tradicionalista da Igreja. E está-se equipando para criar um movimento
de retorno, na Igreja da Europa e das Américas.
Paulo, por seu lado, está tão consciente quanto Lefebvre de que a maior
parte dos católicos romanos não aprova suas novas formas de culto, nem o
caminho tomado pela teologia.
Pelo menos dois Cardeais extremamente poderosos odeiam Lefebvre:
Villot, o Secretário de Estado do Vaticano; e o Cardeal Garrone, francês co­
mo Villot e Lefebvre. Esses dois insistem com Paulo para que continue como
Papa, de modo a combater Lefebvre e todo o movimento tradicionalista.
Por cima desses problemas, leves palhas trazidas pelo vento começam a
deixar Paulo inquieto sobre o progresso de seu plano para a transferência ma­
ciça dos investimentos do Vaticano. Tanto o Cardeal Vagnozzi, chefe dafre-
feitura para Assuntos Econômicos (PECA), como o Bispo Marõinkus, chefe
do Instituto de Obras Religiosas (IRW), lhe apresentam informações perturba­
doras sobre a administração dos recursos financeiros do Vaticano, nas mãos
do financista italiano Michele Sindona.

PA ULO PROPOE UMA NO VA DEMOCRACIA

No momento, a única possibilidade que Paulo tem de fomentar sua visão


de uma reforma radical é continuando como Papa e tentando fazer, ele pró­
prio, uma reforma. Divulga uma nova encíclica, conhecida por suas duas pri­
meiras palavras, Octogésima Adveniens (o Octagésimo Aniversário). Diz res­
peito ao estado da democracia e a seu futuro.
Sua mensagem sobre a democracia ocidental assume uma forma negativa:
“É preciso inventar novas formas de democracia”, diz ele. E nessa mensagem
torna-se claro que está se referindo a estruturas democráticas tão diferentes
do estilo americano de democracia quanto a democracia da América é diferen­
te da República Democrática Popular da Alemanha.
A encíclica paulina encoraja enormemente muitas pessoas, dentro da
Igreja Católica Romana, que encaram a democracia como um sistema supera­
do e uma coisa nociva. A carta de Paulo estimula tais homens a pensar numa
direção inteiramente nova no Pontificado subseqüente, e mesmo na possibili­
dade de uma aproximação real com os marxistas da Europa e da América La­
tina. Isso porque, enquanto Paulo rejeita o marxismo como uma ideologia,
não o rejeita completamente como um sistema econômico, ou como uma es­
trutura política, ou um arcabouço intelectual.

68
PA ULO CONSIDERA NOVA DA TA POSSÍVEL PARA A
RENÚNCIA, QUANDO AS NOMEA ÇÕES DE NO VOS CARDEAIS
DESLOCAM O EQUILÍBRIO DO PODER DO REDUTO DA VELHA
GUARDA. COMEÇAM APARECER OS PAPABILI

A próxima data em que Paulo poderia estar disposto a renunciar seria a


do seu 80? aniversário, 26 de setembro de 1977; ou, se for possível liquidar o
Caso Sindona e os problemas de Lefebvre, provavelmente um pouco antes
dessa data- Isso, admitido sempre qüe Paulo tenha certeza de haver consegui­
do suas duas metas principais —a reformulação do sistema do Conclave e a
segurança de que seu sucessor será o homem de sua escolha, com quem possa
trabalhar, mesmo afastado do posto.
Nessa época, apenas um nome destaca-se aos olhos de Paulo em sua lista
de possíveis papabili: Sérgio Pignedoli, um homem que fez carreira no Vatica­
no, Assistente do Secretário de Estado, Villot. Ele ainda não é cardeal, mas
logo Paulo estará fazendo novos cardeais, e tais nomeações terão que refletir,
tanto quanto é possível, suas novas políticas.
Desde que, em 1963, se tomou Papa, Paulo fez maior número de cardeais
que qualquer outro Papa na história — 150, no total. O primeiro grupo, em
1965, conteve as nomeações devidas e esperadas, tal como aconteceu com o
segundo, em 1967.
Suas nomeações de 1969 já representaram uma mudança. Dos 32 novos
cardeais, 11 pertenciam ao Terceiro Mundo —África, Ásia e América Latina.
Foram nomeados dois franceses, Gouyon e Marty, juntamente com o holan­
dês, WÜlebrands, e com Deardon, dos Estados Unidos.
Enquanto isso, a Cúria tradicionalista fixou-se em dois homens de carrei­
ra do Vaticano como seus candidatos.
Os franceses, os alemães e os outros ainda não tinham tomado sua decisão.

O CARDEAL VILLOT INICIA DISCRETAMENTE A


ATIVIDADEPRÉ-CONCLA VE

O Secretário de Estado do Vaticano, ou algum outro dos membros prin­


cipais do Colégio de Cardeais, será o Camerlengo da Igreja Universal, quando
o Papa morrer ou renunciar. Por assim dizer, ocupará o posto, até que um
novo Papa seja eleito, e será responsável pela organização e o funcionamento
do Conclave 82.
Ele não vem ignorando a possibilidade da renúncia do Papa Paulo. Nem a
de sua morte. Não é demasiado cedo para começar a enorme tarefa de avalia­
ção do status quo do mundo e da Igreja, em todos os tópicos e em todas as
áreas, Nos dias atuais — diferindo do que acontecia em épocas passadas - são
os tópicos, não as personalidades, que dominam a eleição do Conclave.
69
Em conseqüência, a primeira tarefa dos Cardeais-Eleitores, no Conclave,
será a formulação e a adoção da Política Geral —uma política pontifícia a ser
seguida pelo Papa subseqüente. Essa Política Geral será baseada nas condi­
ções, nas mudanças e na evolução verificadas na religião, na política, na eco­
nomia, bem como no estágio evolutivo atual das nações e da comunidade das
nações.
Villot, como Camerlengo do Conclave, dá início ao processo de coleta de
um vasto montante de informações necessárias e de organização dessas infor­
mações naquilo que é chamado Documentos sobre a Situação e Relatórios Es-
peciais.
Os Documentos sobre a Situação descreverão, com base em informações
extremamemte precisas e atualizadas, as condições: do Catolicismo Romano;
da Ortodoxia Oriental; das Igrejas Cristãs Não-Católicas; das religiões não-cris-
tãs; da Europa; da Rússia; dos Estados Unidos; da América Latina; do Oriente
Próximo; da África; da Ásia. Tais Documentos são redigidos com a finalidade
de dar aos Eleitores uma visão abrangente do estado da religião (cristã e não-
cristã), da evolução da política mundial, assim como de fornecer-lhes proje­
ções econômicas para os dez anos seguintes. Em todas as epígrafes, natural­
mente, a ênfase repousa na posição da Igreja Romana em relação às condições
religiosas, políticas e econômicas.
Há três Relatórios Especiais e referem-se eles ao Pontificado de Paulo VI
(suas políticas, seus sucessos e seus malogros); aos resultados do II Concílio
Vaticano;e à revolução social por todò o mundo.
Finalmente, com base nos fatos e nas análises contidas nos Documentos
sobre a Situação e nos Relatórios Especiais, são fornecidos um resumo das
condições do mundo, tal como são vistas pela Cúria Romana, e um projeto
de política geral —no Documento sobre Política Geral.
Tudo isso será objeto de discussão, de debates e de troca de idéias entre
os Cardeais, no Conclave, até que se chegue a um consenso numa Política Ge­
ral, que será aceita por uma votação de dois terços mais um. Somente depois
da adoção de uma Política Geral ê que o Conclave passará à eleição do novo
Papa.

70
Série Quatro — 1973

O EMBAIXADOR MARTIN, DOS ESTADOS UNIDOS, DISSUADE O


PAPA PA ULO DE ATITUDE EM RELA ÇÃO AO TERCEIRO MUNDO

A política pontifícia de Paulo leva-o a uma atitude de abertura em rela­


ção a todos que vêm a ele e a todos os tipos de opinião, especialmente se vin­
dos da esquerda. Em janeiro de 1973, tal política sofre um impacto violento.
Uma delegação de ativistas americanos contrários à guerra do Vietnã chega ao
Vaticano solicitando uma audiência com o Papa e trazendo, como um presen­
te a ele destinado, alguns fragmentos de uma bomba americana atirada sobre
Hanoi.
Tem sido praxe, da parte de Paulo, receber tais grupos antiguerra e repre­
sentantes dos vietcongues.
Mas o Embaixador americano, Graham Martin, consegue persuadir Paulo
a não receber aquela delegação. As autoridades dos Estados Unidos, cada dia
mais, estão percebendo como vem funcionando a mente de Paulo, e o que po­
deria acontecer, se suas políticas pudessem afetar a mentalidade dominante
no Conclave seguinte e a política do sucessor de Paulo.

PAULO PROMOVE NOVA MUDANÇA CRUCIAL NAS


COLIGAÇÕES DE PODER TRADICIONAIS

Em 5 de março, o Papa Paulo faz 29 novos Cardeais. Somente sete são


italianos —e entre eles está Sergio Pignedoli. Doze são Cardeais do Terceiro
Mundo. Com tais nomeações, perturba ele mais ainda o equilíbrio de poder
tradicionalista de grandes grupos europeus: os italianos sozinhos, ou os italia­
nos aliados aos espanhóis, ou os franceses juntamente com os italianos e os es­
71
panhóis. Nenhuma coligação européia poderá, jamais, dominar um futuro
Conclave.
Com essa última mudança numérica, Paulo está pronto para passar à fase
seguinte de seu plano de reforma do sistema do Conclave —e da Igreja.

PRIMEIRA PROPOSTA FORMAL DE PAULO PARA UMA


REVOL UÇÃOMUNDIAL NO GOVERNO DA IGREJA

Nesse mesmo dia 5 de março, num Consistório secreto de seus cardeais,


Paulo consulta o Colégio sobre a possibilidade de “utilizar, na eleição de um
Papa, a contribuição dos Patriarcas orientais e de representantes eleitos do
episcopado, ou seja, daqueles que constituem, permanentemente, o Concílio
do Secretariado do Sínodo dos Bispos”.
Na aparência, simples palavras! Mas isso é “romanês” para exprimir uma
das mais profundas mudanças propostas em mais de mil e duzentos anos de
história católica romana.
A idéia de Paulo significa mais do que a simples partilha do pudim das
eleições papais entre um maior número de eleitores. Ele quer mais do que a
mera democratização do Conclave, através da inclusão de uns poucos homens
que não são cardeais. Está visando a mais do que um aumento de número e a
uma diversificação de eleitores. Está pedindo a seus Cardeais que aprovem
duas medidas que poderão ter conseqüências que nem Paulo nem eles são
capazes de prever.
Primeiro, está-lhes pedindo, seriamente, para pesarem a viabilidade da
reforma das eleições entre o Papado e os bispos, de modo que, tal como são
agora, as Igrejas não-católicas, como as Ortodoxas Orientais e a Anglicana,
possam atingir uma união de facto com a Igreja Católica Romana. Isso repre­
senta uma mudança enorme. Sempre, até agora, Roma tinha proclamado que
as igrejas não-católicas romanas teriam, finalmente, que se submeter, e “vol­
tar” ao aprisco do Catolicismo.
Segundo, está pedindo aos Cardeais, seriamente, para pesarem a viabilida­
de de elegerem o Papa, depois de sua própria adbicação, na amplíssima base
de eleitores recolhidos tanto na Igreja Católica, como nas igrejas cristãs não-
católicas. Se derem seu consentimento a isso, tal decisão quererá dizer que o
Papa que elegerem receberá, como principal suporte de sua política pontifí­
cia, o princípio de governo da Igreja em união com todos esses eleitores cató­
licos e mo-catôlicos.
Em tudo isso, Paulo levou a sério a advertência dos sacerdotes não-católi-
cos: “Pedro (significando o Papa) deve abrir mão de seu poder de império na
Igreja, para que possa ganhar autoridade no campo espiritual e moral.”
Serão necessários alguns anos para que todas as opiniões e reações sejam
reunidas, analisadas e levadas a uma conclusão. Mas os esforços de Paulo, nes­
se particular, serão malogrados.
72
Série Cinco — 1974

OS RESUL TADOS INDICAM QUE A S MUDANÇAS PROPOSTAS


POR PA ULO, EM 1970, SÃO REJEITADAS PELOS SACERDOTES
CA TÕLICOS E PELOS NÃO-CA TÓLICOS

“Extremamente negativa” —é esta a natureza das reações até então rece­


bidas, em resultado das sondagens iniciais de Paulo, começadas em 1970,
quando fez sua primeira tentativa pública de uma abertura para abdicação,
vinculada às suas reformas favoritas.
Muitas das respostas salientavam que, se fossem adotadas as idéias de Pau*
lo, o Papa se transformaria no equivalente ao presidente eleito da Companhia
Episcopal Católico-Romana. E que isso, na reliadade, apenas colocaria a Igre­
ja Romana na mesma posição desamparada em que hoje se encontram as Igre­
jas Episcopal e Anglicana.
Outras respostas assinalam que esse nesmo sistema que Paulo agora pro­
põe já havia paralisado as Igrejas Ortodoxas Orientais —a grega e a russa. Tais
igrejas não conseguiram se expandir e tomaram-se nada mais do que igrejas
nacionais. Não resolveram as diferenças entre elas próprias e os outros cris­
tãos. E a maior parte delas confinou-se num gueto de suas próprias tradições
ossificadas.
Os internacionalistas —aqueles que ansiosamente desejam um Papa não-
italiano — argumentam que, com toda a probabilidade, no novo sistema de
Paulo o que sempre haveria, seria um italiano. Talvez fosse um membro muito
reverenciado e distinto de um Conselho Internacional de Bispos. Mas seu títu­
lo principal continuaria sendo o de Bispo de Roma —e, com toda a sua glória,
Roma é e sempre será uma diocese italiana. Tal como o bispo de uma diocese
francesa deveria ser francês e o bispo de uma diocese alemã deveria ser ale­
73
mão, assim também o Bispo de Roma será um italiano. Ora, acrescentam os
internacionalistas, nenhum Papa italiano tornou jamais o Vaticano verdadeira­
mente internacional —abrindo aos demais o “Clube Romano” . O último Papa
a prometer isso foi Martinho V. Mas, uma vez eleito, realmente, em 1417,
concentrou em Roma um poder maior do que nunca. Sendo assim, os interna­
cionalistas encaram a proposta toda como uma armadilha.
A reação de vários governos à proposta de Paulo é também negativa. O
General Franco, da Espanha, os regimes direitistas da América Latina, o go­
verno dos Estados Unidos; nenhum deles quer ver seus bispos gozando de au­
tonomia e, assim, colocados acima do controle e do veto do Vaticano, quando
for o caso, por exemplo, de acirradas batalhas eleitorais entre comunistas e
não-comunistas, tanto na Europa quanto na América Latina.
Apesar do fato de que suas políticas pontifícias não parecem estar indo
bem —ou talvez por causa disso —nunca cessa a especulação quanto à renún­
cia do Papa Paulo. A maioria dos Cardeais-Eleitores ainda tem os olhos prega­
dos em 26 de setembro de 1977, data do 809 aniversário de Paulo. Mas quan­
do este expediu a norma excluindo do Conclave os Cardeais de oitenta anos,
não pensou em si mesmo aos 80. Só pensou em excluir o cerne da velha guar­
da tradicionalista do Vaticano de qualquer influência direta no futuro da igreja.

COMEÇAM A SURGIR MAIS


PAPABILI E DESEN VOL VEM-SE AS FA CÇÕES

No momento, sob a instigação e a persuasão do poderoso Bispo de Mar­


selha, Roger Etchegaray, os Cardeais franceses e seus amigos estrangeiros arre-
gimentaram-se em torno da figura de um Cardeal alemão, como o principal
candidato pan-europeu, um prelado favorável a mudanças lentas &gradativas.
Há outro grupo de Eleitores que procura um candidato do Terceiro Mun­
do. Sua escolha recairia em alguém que seja um verdadeiro progressista, a fa­
vor de uma Igreja totalmente “aberta”: capaz de abrandar iodas as diferenças
oficiais mantidas entre católicos e outros cristãos; de promover a adaptação
de toda a atividade eclesiástica —teologia, liturgia, devoção, desempenho so­
cial —a condições modernas; de cultivar os marxistas como pessoas que estão
tentando promover modificações adequadas na vida das nações e dos indi­
víduos.
Os italianos estão, aos poucos, se dividindo em três grupos: os conserva­
dores (que advogam a mudança lenta e gradativa —mas mudança); os tradicio­
nalistas (que querem uma forte reafirmação de todas as crenças e práticas da
Igreja, anteriores ao II Concílio Vaticano) e os radicais.
Os radicais denunciam tanto conservadores quanto progressistas como as
duas faces de uma mesma moeda. Acusam ambos de advogarem nenhuma ini­
ciativa específica da Igreja Católica, mas simplesmente de se deixarem ser le-
74
vad-os - seja lentamente (os conservadores), seja em arriscada velocidade (os
progressistas) - por acontecimentos e interesses externos. Os radicais acusam
os tradicionalistas de estarem fora da realidade, de tentarem fazer o tempo
voltar atrás, de se manterem cegos diante da imensa mudança que já se pro­
cessou.
Os radicais desejariam extirpar todo o sistema de governo da Igreja e da
atividade religiosa —tudo que tem o sabor de uma era passada, em que a Igre­
ja viveu mergulhada na política e exercendo poder temporal. Eles reparariam
o dano causado, desde o Concílio Vaticano, pelos progressistas liberais —es­
pecialmente em matéria de doutrina e de Liturgia. Fariam oposição às lentas
mudanças dos conservadores, por serem apenas pálidas e hesitantes imitações
dos progressistas. Mas não tentariam restabelecer a antiga ordem das coisas -
como os tradicionalistas, freqüentemente, parecem pretender fazer.

75
Série Seis — 1975

RESULTADOS FINAIS DAS SONDAGENS DO PAPA PAULO: NÃO


HÁ APOIO PARA SUA POLÍTICA DE REVOLUÇÃO PLANEJADA

Sejam quais forem os boatos - e eles persistem —sobre sua renúncia, e


seja qual for a reação pública a tais rumores, agora é inteiramente impraticá­
vel, para Paulo, pensar em abdicação.
Primeiro, de novo, por causa do Conclave. Os Patriarcas Orientais não
participarão, foi a resposta deles, da eleição de um Papa romano. Sua reação
reflete o velho preconceito anti-romano dos orientais: “Enquanto o Bispo de
Roma proclamar soberania, como chefe temporal e autoridade absoluta sobre
toda a Igreja, nós não podemos dar a impressão de endossar posição tão pou­
co apostólica e tão pouco católica, participando da eleição de um Papa —mes­
mo como observadores.” Parecem querer o frango, mas não estão dispostos a
chocar o ovo.
E, por uma grande variedade de razões, a maior parte dos europeus e
americanos consultados receia a proposta de Paulo. Alguns porque seu suces­
sor seria um outro italiano. Alguns - de fato em número surpreendente —não
querem modificação no status quo do Conclave. E alguns —uma minoria bas­
tante numerosa — estão em completo desacordo com a teologia paulina da
Igreja e com sua evidente inclinação a abrir todas as portas e janelas da Igreja.
“Coisa demais, depressa demais, em direções demais, com muito pouca refle­
xão sobre as conseqüências”, —é como uma pessoa resumiu a essência dos co­
mentários.

A UMENTA A AMEAÇA TRADICIONALISTA

Ao mesmo tempo, a revolta do Arcebispo tradicionalista Mareei Lefebvre


está-se tornando, obviamente, muito mais, e não menos, perigosa. Cresce em
todo o mundo o apoio a Lefebvre, que estaria em condições, possivelmente,
76
até de iniciar um movimento revisionista por toda a Igreja, de anular muitas
das mudanças já feitas por Paulo e tornar outros desenvolvimentos dos planos
do Papa ainda mais difíceis. Numa época de inconsistência, semelhante movi­
mento poderia mesmo conduzir a um cisma na Igreja.

DESASTRE FINANCEIRO NO VATICANO

O caso Sindona, com o qual Paulo andava preocupado, mas ainda espe­
rançoso, assumia agora proporções desastrosas. Antes que esteja terminado, o
Vaticano terá perdido, conforme estimativas fidedignas, bem mais de um bi­
lhão de dólares e muito de seu crédito, nesse grande malogro que os italianos
chamarão d’/7 crack Sindona. Informa-se agora a Paulo que Michele Sindona é
membro da Maçonaria. O conselho de Villot a Paulo é firme e claro: antes que
nossos prejuízos vão além de todo o nosso poder de medir e controlar, antes
que se alterem e nos destruam, vamos sair dessa confusão miserável.
Serão necessários outros dois anos, até que Paulo possa rearrumar as coi­
sas. Enquanto isso, somente aquela desordem torna impossível, no momento,
a renúncia de Paulo.

PA ULO MUDA DE TÁTICA, PERMANECE FIRME EM SEU


PROPÓSITO DE REVOLUÇÃO, ENQUANTO REVÉ AS
REGRAS DO CONCLA VE

Não tendo encontrado nenhum estímulo quanto a suas sondagens de


1970, visando a mudar o sistema do Conclave, nem quanto à tentativa mais
recente, em 1975, de tomar acessível a eleição do Papa de uma forma radical,
Paulo contenta-se agora em publicar uma nova revisão das velhas normas do
Conclave. Isso ele pode fazer, mesmo passando por cima das objeções que sa­
be que virão de muitos setores.
Em suas novas regras, Paulo repete o ético excluindo os Cardeais de 80
anos, ou mais velhos, do Conclave. Limita a 120 o número de Cardeais-Elei-
tores. Para evitar longas discussões no Conclave, estabelece um limite de três
dias para as votações. Se, ao fim de três dias, a votação for infrutífera, deverá
haver um dia de orações e dé livre discussão, voltando-se depois à votação por
mais três dias, e assim por diante.
Uma das principais preocupações nas novas regras do Conclave é excluir
a interferência de qualquer pessoa ou grupo de pessoas de fora do Conclave:
“Surge como fator mais importante do que nunca”, legisla Paulo, “a necessi­
dade de salvaguardar a eleição do Pontífice Romano de empresas exteriores...
e da interferência de grupos e de formas de pressão características da socieda­
de moderna...” É proibido “absolutamente” , determina agora Paulo, “intro­
77
duzir no Conclave instrumentos técnicos de qualquer tipo para o registro, a
reprodução ou a transmissão de vozes e de imagens...”. Funcionários do Con­
clave, acompanhados por dois técnicos equipados com instrumental eletrôni­
co de detecção, deverão fazer verificações periódicas para a descoberta de
quaisquer aparelhos de escuta, ou quaisquer outras violações do sigilo do Con­
clave.
Prosseguindo, Paulo revoga um decreto de Julio II, que remonta ao início
do século XVI, contra a compra do Papado com dinheiro, ou com promessa
de empregos e favores. A nova norma de Paulo significa que, embora ainda se­
ja grave pecado de simonia comprar votos para se conseguir ser eleito, o ho­
mem que seja eleito mesmo através de tais meios está, não obstante, valida­
mente escolhido e deve ser aceito. As duas regras —uma sobre a vigilância ele­
trônica, a outra sobre a validade da eleição simoníaca —estão, evidentemen­
te, ligadas uma à outra, na mente de Paulo.
O ponto central das novas regras paulinas para o Conclave está na refor­
mulação que as mesmas fazem no próprio caráter do Conclave pontifício.
Paulo não foi capaz de conseguir uma igreja “aberta” movendo-se, diretamen­
te, no sentido de uma mudança radical. Sua nova tática consiste em enfatizar
a localização do Papa, de modo que a Igreja, como um todo, possa ser mais
“desromanizada”. O Conclave, afirma Paulo, é “o ato de uma Igreja Paroquial
dentro da Igreja de Cristo” . A “Igreja Paroquial” é a de São Pedro, em Roma,
e sua diocese romana. O Conclave é, acima de tudo, destinado a eleger um
novo Bispo para essa Igreja Paroquial e para essa diocese de Roma. Tal elei­
ção, por mais de mil anos, tem sido feita pelos Cardeais da Igreja Romana. Co­
mo Bispo de Roma, o novo Papa é, automaticamente, o sucessor de Pedro,
que foi o primeiro Bispo de Roma. E é assim que o novo Bispo também se
torna tudo aquilo que Pedro foi: Vigário de Jesus e chefe da Igreja de Jesus.
Mas ainda, “o direito de eleger o Pontífice Romano cabe, exclusivamen­
te, aos Cardeais da Igreja Romana”. Assim, Paulo reafirma o privilégio dos
romanos como os detentores de um especial depósito de fé —o de eleger o re­
presentante de Jesus sobre a Terra.

PERSISTENTES ESPECULA ÇÕES SOBRE A RENÚNCIA DE


PA ULO E ATIVIDADES ELEITORAIS PRÉ-CONCLA VE GERAM
NO VAS INICIA TIVAS POUTICAS

Paulo percebe agora que as coisas que diz sobre a renúncia e sobre sua
morte, juntamente com o interesse generalizado dos Carde ais-Eleitores no fu­
turo Conclave, puseram em ação várias providências pré-Conclave. Da parte
de alguns Cardeais dos Estados Unidos, surge uma iniciativa —ainda não com­
preendida por Paulo, salvo quanto ao fato de que está em desacordo com seus
planos pessoais —de fotjar uma aliança entre Cardeais poloneses e alemães.
78
Já há, articulado, um pacto entre alguns Cardeais latino-americanos e ou­
tros da Europa Oriental. Tal acordo é, algumas vezes, jocosamente menciona­
do como o pacto do “Ostkardinalaat Latino-Americano” (pacto do Cardinala-
to Oriental —Latino-Americano).
E há a Nova Aliança, formada em tomo do Cardeal Leo Suenens, da Bél­
gica, cuja motivação emana exatamente dos teólogos progressistas surgidos a
partir do II Concílio Vaticano. Tem o apoio de muitos bispos que, por sua
vez, encontram muito encorajamento nos chefes das principais igrejas não-ca-
tólicas. Gostariam de abrir a Igreja a toda espécie de influências —o governo
da Igreja, a atividade da Igreja, a doutrina da Igreja e o envolvimento dessa
Igreja, para a solução dos problemas sócio-econômicos.
É claro que ainda há os tradicionalistas, centralizados, sobretudo, na pró­
pria casa de Paulo, o Vaticano, os quais pretendem contar com a lealdade de
muitos bispos e cardeais pelo mundo todo.
Todas essas facções - a Iniciativa Americana, os membros do Ostkardi-
rnlaat Latino-Americano, o grupo da Nova Aliança e os tradicionalistas -
têm um traço comum: a oposição aos planos de Paulo para a reforma do Con­
clave e ao papabile favorito de Paulo, o Cardeal Sergio Pignedoli.

CONTINUAM A S A TIVIDADES ELEITORAIS


PRÉ-CONCLA VE COMEÇAM A TOMAR FORMA A
LISTA “OFICIAL ”DE CANDIDA TOS CONVENIENTES
E A POLÍTICA DO NO VO PAPA

A esta altura, a atividade pré-Conclave restringe-se, principalmente, aos


mais altos escalões da burocracia eclesiástica. No entanto, acontece, realmen­
te, que algum bispo comum, chefe de alguma poderosa conferência nacional
ou regional, tenha mais a ver com a escolha dos papabili do que muito cardeal
e do que muito interesse estabelecido nos mundos da política e da finança.
Um desses bispos, por exemplo, é Roger Etchegaray, Bispo de Marselha. Ou­
tro, também, é o Arcebispo Augustine Casaroli, o especialista do Vaticano em
Europa Oriental Soviética. Esses homens têm poder considerável, mesmo na
própria eleição do Papa. De modo geral, o processo não se estende muito abai­
xo do nível das Conferências Regionais de Bispos.
Consiste essencialmente o processo numa tranqüila peneiração dos nomes
dos possíveis candidatos, à luz dos tópicos abordados nos Documentos e nos
Relatórios. Isso porque são os tópicos que decidem quem tem condições de
ser um candidato viável. Dos Delegados Apostólicos do Vaticano (em número
de 16), dos Núncios Apostólicos (em número de 70), dos Vigários Gerais (em
número de 32), dos Cardeais nativos, residentes em todos os países do mun­
do, além dos emissários especiais e dos representantes permanentes do Vatica­
79
no nas organizações internacionais, espera-se que descubram discretamente —
coisa que na realidade fazem - as atitudes dos vários governos em relação aos
vários candidatos possíveis à eleição como Papa.
Há duas maneiras pelas quais uma pessoa pode-se transformar num possí­
vel papabile-. esta se declara disposta, capaz e desejosa de ser candidata e, se
eleita, de aceitar o Pontificado. Ou aqueles que a admiram e/ou a consideram
adequada, resolvem que tal pessoa deverá constar da lista.
A lista nunca é oficialmente promulgada ou, digamos, “datilografada em
papel timbrado”. Forma-se discretamente e, sobretudo, por via verbal. Mas
aos poucos, sem sensacionalismo, os nomes de uns seis a dez Cardeais apare­
cem e tornam a aparecer toda vez que a questão da identidade do novo Papa é
discutida. Esses são os papabili possíveis.
A passagem do status de possível papabile ao de verdadeiro papabile, na
lista inicial, constitui um processo sutil. A lista inicial é muito restrita e, com
apenas umas poucas modificações, irá determinar quase toda a votação e qua­
se toda a ação política dentro do próprio Conclave.

A INICIATIVA AMERICANA ~ PELA PRIMEIRA VEZ NA


HISTÓRIA DOS CONCLA VES, OS CARDEAIS AMERICANOS
ENVOLVEM-SE PROFUNDAMENTE NA POLÍTICA DO VATICANO

Já em 1972, a publicação da encíclica de Paulo VI Octagesima Adveniens,


com sua atitude negativa em relação à democracia tal como a conhecemos,
com suas recomendações para que os homens procurassem “novas estruturas
democráticas” e com o aparente encorajamento que dava aos marxistas, pro*
vocou violenta reação nos Estados Unidos entre importantes prelados e nos
círculos financeiros. Com uma vitória do Partido Democrático nas eleições de
1976 já prevista e com um compromisso ainda maior desse Partido em relação
à “social democracia” nos Estados Unidos, receou-se que o caráter basicamen­
te capitalista do país pudesse ser gravemente afetado se o prestígio de um no­
vo Papa viesse a apoiar, de forma crescente, semelhante impulso à causa da
“social democracia”. “Já temos 43% do setor trabalhista empregado pelo go­
verno dos Estados Unidos”, dizia um relatório enviado a Roma de Nova Ior­
que. “Estamos a caminho de alguma forma de socialismo. Por que forçar mais
ainda?”
A chamada Iniciativa Americana nasceu no fim de 1974, mas só começou
a tomar forma em 1975. Originou-se, primordialmente, da vontade dos Car­
deais dos Estados Unidos, os quais, no mínimo, reconheciam que um Papa in­
clinado a favorecer as estruturas socialistas, no que dizia respeito a seu pró­
prio Pontificado e ao de seu sucessor, significava um conjunto de políticas
hostis aos interesses dos Estados Unidos e da sociedade a que pertencem os
Cardeais norte-americanos. Pela altura de 1975, sabem que uma questão fun­
80
damental a ser decidida relativamente ao Pontificado seguinte diz respeito ao
marxismo, à aliança com marxistas e à atitude da Igreja face aos governos
marxistas.
O primeiro objetivo da Iniciativa Americana é quebrar o chamado pacto
articulado no Ostkardimlaat Latino-Americano, o bloco de tendência marxis­
ta. Se a maioria dos Cardeais latino-americanos e aqueles que os apóiam forem
bem-sucedidos na formação de uma aliança com os Cardeais da Europa Orien­
tal, a influência de semelhante facção no Conclave será enorme. Os latino-
americanos poderiam então advogar a paz e a colaboração com os marxistas e
com os governos marxistas e, virtualmente, exibir os Cardeais dos países da
Europa Oriental, já vivendo sob a ordem comunista, como perfeitamente ca­
pazes de sobreviver e florescer - até mesmo colaborar —com os regimes mar­
xistas de seus países. Se eles podem fazer isso, então os latino-americanos e
seus defensores disporão de um poderoso argumento perante os Cardeais ita­
lianos que enfrentam a possibilidade de um regime comunista na Itália - para
não falar dos Cardeais franceses, espanhóis e portugueses, que encaram a mes­
ma possibilidade em seus respectivos países. Isso abrangeria todo o Sul da Eu­
ropa.
Ainda mais, a força do pacto articulado está nos Cardeais poloneses e,
particularmente, no prestigioso e formidável Cardeal Primaz da Polônia, Ste-
fan Wyszynski, de Varsóvia. Ele, juntamente com o Cardeal Wojtyla, de Cra-
cóvia, tem imensa influência sobre os Cardeais austríacos e alemães. Em sim­
patia, afinam com a Hungria e a Checoslováquia. A coligação nortista, somada
aos europeus orientais, poderiam formar a maioria dominante no Conclave. E
os Cardeais da Europa Oriental têm alta posição no conceito dos Cardeais
africanos e asiáticos. Se todos eles se mantivessem unidos aos latino-america­
nos e atraíssem também os do Sul da Europa, seria de esperar-se uma maioria
absoluta no Conclave, maioria que destruiria quaisquer planos ou projetos dos
outros grupos.
Portanto, a decisão americana de quebrar esse pacto tem um propósito
estratégico, urgente e definido.
A idéia é afastar os poloneses —e com eles os alemães do Ostkardina-
laat latino-amaricano; do pacto articulado. O Cardeal Krol, ele próprio de ori­
gem polonesa, faz um convite ao Cardeal Wojtyla para ir aos Estados Unidos,
em visita oficial. E, a esse tempo, o Cardeal Krol já havia iniciado uma daque­
las excursões cardinalícias que irão marcar o período de atividades eleitorais
pré-Conclave, desde então é até que o Conclave se realize. Naquele momento,
a viagem o leva até a Polônia.
Tanto os papabili quanto os fazedores de Papas, entre os cardeais e os
bispos, empreendem agora viagens semelhantes. A gente irá encontrar cardeais
cruzando o Atlântico e o continente europeu de um lado para o outro, apare­
cendo na África, na América Latina e em várias partes da Ásia. Aonde quer
que se dirijam, terão que ir com a aquiescência - senão com a conivência dos
81
cardeais nativos. Porque, entre os cardeais-irmãos, leis não-escritas, porém rí­
gidas, os proíbem de se meterem, sem convite ou sem serem bem-vindos, no
território eclesiástico de cada um. Outras oportunidades, igualmente, são pro­
vidas por acontecimentos fortuitos, quando se podem reunir Eleitores em nú­
mero significativo, ostensivamente por alguma razão banal, assim se comuni­
cando de viva voz sobre as medidas de cunho eleitoral que precedem o Con­
clave e suas várias reviravoltas. Os Cardeais americanos não serão os únicos a
fazer cruciais visitas estratégicas.

OS CARDEAIS AMERICANOS PROCURAM ALIANÇAS


COM EUROPEUS ORIENTAIS E COM ALEMAES

O acordo que os americanos propõem é complexo e seu arsenal de argu­


mentos é formidável. Todos os europeus orientais e a maior parte dos alemães
(assim como muitos africanos e asiáticos) são contrários à eleição de um Car­
deal da Cúria, um romano dos romanos. Os americanos, eles próprios inclina­
dos para esse ponto de vista, promovem a idéia de um papabile pan-europeu,
um candidato escolhido de uma das velhas nações cristãs da Europa, fora da
Itália.
A proposta é tentadora, tanto para alemães, quanto para poloneses. Os
poloneses são suspeitosos quanto às inclinações daqueles que vêm advogan­
do uma aliança com os Cardeais latino-americanos. E os Cardeais da Alema­
nha Ocidental não querem ver a zona de influência russa estendida além da
Alemanha Oriental.
Outros se dispõem a convencer os poloneses, também, de que qualquer
aliança ativa com os latino-americanos terá como resultado, apenas, o abran­
damento da atitude da Igreja em relação ao marxismo. Esse abrandamento
teria um efeito muito pernicioso sobre os excessivos rigores que a Igreja en­
frenta já na Polônia, na Checoslováquia e nos Países Bálticos. Nesses lugares,
a Igreja só conseguiu algum alívio nas perseguições em razão da linha dura
que fora a posição anterior do Vaticano.
Há, além do mais, o perigo de uma ação de retorno. A possibilidade de
uma tal aliança no Conclave bem poderia polarizar todas as outras facções e
uni-las em torno de um candidato tradicionalista realmente reacionário —e
ainda há muitos desses.
Têm, finalmente, os americanos, certas razões de Estado, decorrentes
de suas vinculações em seu próprio país, razões que tornam imperativo que
a Rússia não possa contar com nenhuma outra facilidade em sua “fínlandiza-
ção” da Europa Ocidental. Que aconteceria, perguntam aos poloneses, se os
Estados Unidos seguissem, realmente, uma política de isolacionismo e levas­
sem as mãos quanto à Europa Ocidental?
Na medida em que a Iniciativa Americana prossegue com sucesso, em Ro-
82
ma Paulo VI e Villot sentem-se confusos, cada um deles por suas próprias ra­
zões, Paulo sabe que a verdadeira tendência de um homem como Cooke, de
Nova Iorque, ou Krol, de Filadélfia, é, acima de tudo, tradicionalista (com al­
guns toques conservadores). Por que, então, estão ambos procurando um can­
didato pan-europeu? E tanto Paulo quanto Villot ressentem-se com a intro­
missão de Cardeais americanos fazendo política no Norte e no Este da Euro­
pa. Paulo e Villot partilham do velho horror romano do Anglo-Sassoni e da
política de dividir-para-conquistar, que sempre caracterizou suas transações
com a Europa por mais de cento e cinqüenta anos.
Essa reação pontifícia resulta num esfriamento das relações entre Cooke,
de Nova Iorque, e as autoridades romanas. Nesse ínterim, Cooke e os outros
não fazem movimento algum para sanar a discórdia com Roma, porque des­
confiam que Paulo já seja um Papa liquidado —talvez tenha que renunciar em
seu 809 aniversário, em 1977.

MEMBROS DA IGREJA DA AMÉRICA LATINA COORDENAM


PLANO DE "ABER TURA PARA O MARXISMO ”

Muitos Eleitores da América Latina coordenaram suas estratégias para o


Conclave e as escolhas da política pontifícia e do candidato a Papa à luz do
princípio de uma atitude de abertura para o marxismo. Têm sob seu comando
uma infra-estrutura de concílios sacerdotais e de organizações de leigos que se
espalha através da maior parte dos principais países da América Latina —Chi­
le, Brasil, Argentina, Venezuela, Bolívia, Colômbia, Peru, e que tem profun­
das ramificações no México.
Os tons dessa infra-estrutura latino-americana vão do rosa-claro até o ver-
melho-escuro — de padres, bispos e leigos cheios de entusiasmo pelo “socia­
lismo democrático” até padres, bispos e leigos dando tudo pelo franco marxis­
mo —marxismo a qualquer custo, certo ou errado.
Os Cardeais americanos são mantidos a par de tudo isso.

A AMEAÇA DO EUROCOMUNISMO AFETA OS


CARDEAIS ITALIANOS DA DIREITA

O surgimento da ameaça do eurocomunismo (a possibilidade de que os


comunistas venham a fazer parte do governo em proporção significativa e
mesmo decisiva, na França, na Espanha e em Portugal) começou a produzir
efeito no bloco até então monolítico formado pelos Cardeais italianos da di­
reita, e esse efeito é estimulado pelas simpatias daqueles Cardeais que já se
mostravam “abertos” ao diálogo com o marxismo. Os Cardeais Pellegrino, de
Turim, e Pironio, do Vaticano, em particular, estão dispostos a considerar o
83
advento de um governo comunista na Itália como nío sendo o desastre defi­
nitivo.
Mas é a tendência geral dos problemas, no Vaticano, o que realmente co­
meça a dividir os italianos. É um segredo de todos conhecido o fato de que o
grosso dos investimentos vaticanos está sendo colocado no continente norte-
americano, a salvo do alcance de qualquer desastre europeu. Isso é um sinal de
“escapadela”, que não passa despercebido dos Cardeais e Bispos da Itália.
Há também o fato de que, na realidade, nas trinta e seis localidades em
que governos completamente marxistas dirigem as municipalidades italianas,
não há atritos verdadeiros entre comunistas e católicos. Ao contrário, o pró­
prio entrelaçamento dos eventos da vida pública estimula a amizade entre
eles. Graças à deterioração da economia italiana, ao aumento do desemprego,
à inflação, à elevação dos preços, ao desequilíbrio da ordem pública, aos se-
qüestros, assassinatos, roubos —tanto os comunistas (que se batem pela seve­
ridade da lei e da disciplina) como os católicos (que não dispõem de nenhuma
outra regra pela qual viver) são forçados a se aproximar uns dos outros. Na
realidade, transformam-se no alvo comum dos grupos neo-anarquistas e das
facções terroristas que tomam por modelo a gangue Baader-Meinhoff, da Ale­
manha Ocidental.
Além disso tudo, os comunistas que fazem parte do Parlamento italiano
mostraram que, politicamente, são “gentis-homens” ; são, de fato, borghesi.
Chegaram a um acordo de non sfíducia, o pacto de “não-desconfiança”, com
o governo democrata-cristão, o que significa que os comunistas, que coman­
dam uma maioria parlamentar, nunca apresentarão uma moção de desconfian­
ça. E os comunistas cumprem sua palavra. O governo, que é um governo de
minoria, não cai graças a essa promesa, mantida pelos comunistas.
Ao lado de todos esses sinais e portentos vistos pelos sacerdotes italianos,
o Arcebispo Casaroli, o experto do Vaticano em política comunista e emissá­
rio pontifício aos satélites da Rússia e também a Moscou, aparece tomando
coquetéis no Kremlin e jantando na Bulgária e em Praga com autoridades co­
munistas. Observa-se que mantém relações cordiais com todos os governos
comunistas da Europa Oriental. Mais ainda, o próprio Papa Paulo não hesitou
em receber representantes do governo russo e em curvar-se às pressões da Rús­
sia em questões como o caso Mindzenty, no qual lançou o Cardeal húngaro na
obscuridade por insistência dos russos. O clima, percebem todos, é de uma
certa distensão.
Um fator adicional e crescentemente importante a influenciar muitos Bis­
pos italianos e alguns cardeais é a existência de diversas organizações origina­
das na Itália, que abertamente proclamam seu propósito de estabelecer uma
aliança entre marxistas e cristãos. Tais organizações, surgidas há uns sete anos
atrás, floresceram e agora sua influência se espalha através de dioceses e uni­
versidades e grupos profissionais, por toda a Itália.

84
Série Sete — 1976

COM SEUS MAIS RECENTES CARDEAIS, O PAPA PA ULO


GARANTE NOVA TRANSFERÊNCIA DE PODER DA EUROPA
E DAS NA ÇÕES INDUSTRIAIS DO OCIDENTE

Em 24 de maio, o Papa Paulo anuncia a criação de vinte e um novos


Cardeais, mais da metade dos quais é oriunda do Terceiro Mundo. Só há trés
italianos. Há mais três do Leste Europeu: Filipiak, da Polônia, um tradiciona­
lista; Lekai, da Hungria, um progressista; Toma5ek, da Checoslováquia, um
tradicionalista. Há aquilo que se chama de nomeações obrigatórias (ou porque
a diocese ocupada por um Bispo ou Arcebispo é tradicionalmente chefiada
por um Cardeal, ou porque determinado Bispo ou Arcebispo conseguiu, por
uma razão ou por outra, a promessa de um “chapéu vermelho”): Baum, de
Washington, D.C., um conservador; Hume, da Grã-Bretanha, um progressista.
Todos esses estarão em condições de votar no Conclave, no ano vindouro ou
no que vier depois do vindouro.

INTENSA ATIVIDADE POLÍTICA PESSOAL DE CARDEAIS


NO CENÁRIO INTERNACIONAL - PIGNEDOLIMUITO EM
EVIDÊNCIA

Há novas excursões cardinal/cias e ainda mais acontecimentos fortuitos


facilitando discussões de viva voz entre futuros Eleitores do Conclave.
0 Cardeal Conway, da Irlanda, morre no mês de abril. Ao seu funeral, na
Irlanda, comparecem seis Cardeais, dois dos Estados Unidos. 0 Cardeal Pigne-
doli sai em uma prolongada viagem pelos Estados Unidos e isso é parte de
85
uma ronda por todo o mundo, durante a qual ouve monges tibetanos na Suí­
ça, hindus na Inglaterra, muçulmanos nas Filipinas e na Líbia, árabes-sauditas
e egípcios no Oriente Médio - tudo isso, ostensivamente, em função de seu
cargo de Prefeito do Secretariado do Vaticano para as Relações com os não-
cristãos. Mas a viagem é a excursão de um papabile feita em interesse próprio.
Nos Estados Unidos, o ponto culminante da viagem de Pignedoli é uma
convenção na sede do Maryknoll, em Ossining, Nova Iorque. Muitos - não
todos —dos padres e freiras de Maryknoll são conhecidos por toda a América
Latina por estarem profunda e ativamente envolvidos, ou comprometidos,
com ativistas políticos e guerrilheiros.
Em 15 de julho, Pignedoli prega uma homilia especial. Na presidência,
ali, está Peter Gerety, Arcebispo de Newark, que dá a tônica da convenção
com a afirmativa de que o Evangelho precisa intçgrar-se “nas estruturas glo­
bais, políticas e sócio-econômicas, que, cada dia, se tornam mais importan­
tes”. E Pignedoli, juntamente com dois Arcebispos —um dos quais é Marcos
McGrath, do Panamá - meia dúzia de bispos, setenta e cinco padres e freiras
e um contingente de leigos, desafia a Igreja Católica Romana “a tornar a justi­
ça social e os direitos humanos partes integrantes do Evangelho”. Essa é a
forma usada por Pignedoli para exprimir o plano de Paulo, para “a abertura
decisiva da Igreja ao amor por toda a Humanidade”.
O Congresso Eucarístico de Filadélfia, em agosto, dá outra oportunidade
para uma grande reunião de Cardeais, nacionais e estrangeiros. A palavra mais
importante que vem de Roma é que uma renúncia de Paulo a seu Pontificado
é muito possível, no ano seguinte, 1977, na data do aniversário dele, em 26 de
setembro. É um pensamento galvanizador!
A Iniciativa Americana progride, de algum modo, nas discussões particu­
lares.
Lekai, da Hungria, acompanhado de um padre secular, está presente, mas
fica bastante isolado de todos os outros, já que ninguém se sente muito segu­
ro quanto à posição em que ele se coloca, ou àquilo em que está implicado,
Quando o Congresso termina, e depois de uma viagem pelos Estados Uni­
dos, o Cardeal Wojtyla, da Polônia, é hóspede pessoal do Cardeal Cooke, de
Nova Iorque. Existe agora um forte sentimento de concordância, favorecendo
a Iniciativa Americana, entre os poloneses e os trés americanos, Krol, Cooke e
Manning, de Los Angeles. Mas Cody, dc Chicago, Carberry, de St. Louis. She-
han, de Baltimore (já afastado mas em condições de votar no Conclave até o
fim de 1978), e 0 ’Boyle, de Washington (também já afastado), todos tradicio­
nalistas, opõem-se à Iniciativa Americana.
Os poloneses concordam em entrar em contato com outros europeus.

86
ESPERA-SE QUE O CONCLA VE SEJA COMPLEXO.
HÕFFNER, DE COLÔNIA, SURGE COMO POSSÍVEL CANDIDA TO
0 futuro Conclave 82 promete ser muito mais complicado do que qual­
quer outro deste século, de que se tenha lembrança. Na medida em que as opi­
niões dos futuros Eleitores e atuais fazedores de Papas vão chegando, com re­
comendações sobre a política pontifícia que deveria ser seguida pelo futuro
ocupante do trono de Pedro, são elas analisadas e coordenadas numa epítome
geral. Parece não haver como se harmonizarem as diferentes facções —tão di­
vergentes são seus pontos de vista e tão inseguras as condições econômicas e
políticas esperadas para os dez anos seguintes.
Aos poucos, as reações aos Documentos sobre a Situação e aos Relatórios
Especiais são reduzidas a um Documento de Política Geral. Para espanto de
todo mundo, e para satisfação de Villot, o consenso geral parece orientar-se
no sentido da escolha de um Papa italiano que não seja um homem da Cúria.
Todos tendem a considerar que o próximo papa deve ser previsto para um
pontificado de dez anos. Essa conclusão mais ou menos determina que a es­
colha deverá recair num candidato com uma expectativa de vida e saúde cor­
respondente a esse prazo.
A despeito dessa aparente concordância de opinião, permanece, no cen­
tro das coisas, no Vaticano, a sensação de que os roncos e os movimentos
subterrâneos, dos quais lá se tem consciência, só se definirão no Conclave. A
possibilidade de uma arrancada por parte da mentalidade da “abertura para
os marxistas1’ e do Terceiro Mundo, exigiu dos conservadores um plano de
emergência na direção de um candidato pan-europeu. E, de fato, todos esses
que estão impulsionando a idéia de um candidato pan-europeu são, principal­
mente, conservadores com uma tintura tradicionalista.
Mais de um Eleitor conservador, em principio pouco disposto a ser indi­
cado como um papabile, revelou que concordaria em ser candidato em duas
circunstâncias. Primeiro, se assim pudesse desalojar a candidatura de alguém
apresentado pelos progressistas; ou, segundo, se pudesse frustrar uma tentati­
va da Cúria para conseguir a eleição de um verdadeiro tradicionalista italiano.
Há uma terceira circunstância: embora ainda não seja cardeal, o Arcebispo Be-
nelli, atual Subsecretário de Estado e íntimo colaborador do Papa Paulo, será
cardeal antes da morte de Paulo. Para bloquear a candidatura de Benelli, mais
de um conservador estaria disposto a se ver indicado.

DETERIORADA A INICIATIVA AMERICANA:PERDE


CREDIBILIDADE ENTRE OS ALIADOS EUROPEUS

Um fator inesperado pôs a Iniciativa Americana em extremo perigo: a


reunião do Concílio Pastoral Nacional Americano (American National Pasto­
ral Council}, em Detroit, de 21 a 23 de outubro, aparentemente fazendo par­
87
te da comemoração do bicentenário dos Estados Unidos. Denominado um
Call to Action (CTA) —Chamado à Ação - e custando algumas centenas de
milhares de dólares da Igreja, o encontro foi organizado pelo Cardeal Dear-
don, de Detroit, com a muito ativa ajuda do Arcebispo Peter Gerety, de Ne-
wark, e de Monsenhor John Eagan. O finado agitador profissional e teorista
do caos, Saul Alinsky, teria ficado satisfeito, vendo a maneira como estava
sendo conduzido o CTA.
Reunidos no encontro estão 1.340 delegados, de 152 dioceses america­
nas, e 1.100 observadores vindos de todo o país. Os delegados de cada diocese
deveriam ser escolhidos pelos Bispos —isso é dever de Suas Senhorias. Mas, ao
que se diz, os bispos deixam a escolha a critério de vários comitês diocesanos
de nível inferior. Não é incomum que bispos assinem papéis aprovando coisas
sem maior preocupação e sem prestarem muita atenção, quando tais papéis
são postos debaixo de suas canetas por secretários diligentes. Ora, tais comi­
tês, em grande parte, são cheios de católicos radicais que na política são de
esquerda, que são liberados em suas opiniões sobre sexualidade e, cultural­
mente, separados da passada história da Igreja Católica Romana. É claro que a
esquerda da Igreja Católica deveria estar representada entre os delegados. Mas
a maneira de agir de Suas Senhorias foi a garantia de que um número esmaga*
dor de delegados pertencesse à esquerda.
Quarenta por cento dos que comparecem ao CTA são clérigos. Outros
quarenta por cento são mulheres, principalmente freiras. Grupos especiais,
presentes e muito ativos, compõem-se de ex-padres, ex-freiras, homossexuais,
gente pró-aborto, marxistas-cristãos, socialistas-cristãos, cristãos pacifistas. E,
ainda para ser explicado, resta o seguinte: como é possível que os bispos e car­
deais da Igreja Católica Romana nos Estados Unidos não vejam o que está pa­
ra vir?
O Delegado Apostólico, Arcebispo Jadot, também está presente, e age
como poderia ser esperado de alguém que é um fraco teólogo. Reforça a im­
pressão que deu desde sua chegada aos Estados Unidos, enquanto viajou lar­
gamente por todo o país. Sua maior determinação, antes e durante o CTA, pa­
rece ser cultivar o mesmo tipo de popularidade de que gozou um de seus ante­
cessores, Amleto Cicognani, popular entre a totalidade dos bispos americanos,
e que finalmente se afastou e foi para Roma, para tornar-se um dos Cardeais
da Igreja. A atitude de Jadot em relação a tudo que se refere ao encontro
denominado “Chamado à Ação” é, em suma, a da polida permissividade mais
freqüentemente encontrada nos professores num feriado.
A reunião do CTA transforma-se numa lição objetiva das táticas parla­
mentares no estilo Alinsky. Toda objeção a idéias liberais é eliminada, silen­
ciada, esmagada; todas as moções inconvenientes apresentadas na assembléia
são postas em pauta; qualquer ação de grupos opositores é recebida por uma
claque vociferante. E tudo dá resultado. O CTA emite mais de mil resoluções
e cento e oitenta e duas recomendações especiais. Alguns exemplos: que o
88
aborto, o homossexualismo, o sacerdócio feminino, os padres casados sejam
todos legalizados na Igreja; que o marxismo seja isento de condenação; que a
Igreja proponha e lute por uma sociedade sem classes - e assim por diante.
O Cardeal Krol, de Filadélfia, supostamente o primeiro sacerdote católico
da América, tenta explicar isso tudo, no Detroit Free Press do dia 23 de outu­
bro. Fala em “rebeldes dominando a Conferência” e trata de minimizar a coi­
sa toda mencionando “uns poucos manipuladores, que tinham conseguido o
apoio de um grupo de damazinhas simplórias”. E isso é muito pouco, vem
muito tarde, é demasiado grosseiro, vindo de um homem tão importante, nu­
ma crise tão importante. 0 mal tinha sido feito.
Em 9 de novembro, o Cardeal Deardon tenta ridicularizar e encobrir tudo
isso no relatório sobre o CTA, que apresenta na reunião dos bispos, em Was­
hington, D.C. Nenhum de seus colegas episcopais põe a culpa onde deveria ser
posta.
Ao mesmo tempo, Krol defende o encontro do CTA como “a mais diver­
sificada assembléia em nossa história” — uma declaração tão inadequada, a
propósito de uma reunião religiosa, que qualquer estranho desprevenido que
entrasse naquele momento na conferência dos bispos poderia facilmente pen­
sar que Krol estava falando sobre a economia americana, a segunda guerra
mundial no Pacífico, ou a carteira de investimentos do Vaticano, Diz a seus
colegas que “a inteligência e o grau de engajamento daqueles que foram es­
colhidos para participar do encontro dão testemunho do discernimento dos
bispos que os designaram” . Isso é mais sutil do que uma coonestação. Krol sa­
be tão bem quanto qualquer outra pessoa que os bispos não designaram os de­
legados. E sabe que deviam ter designado. Mas essa parece ser a maneira que.
tem de dizer a seus colegas bispos: Bem, sem refletir, vocês assinaram os docu­
mentos que os tornaram oficialmente os delegados; sendo assim, estão meti­
dos nisso tão profundamente quanto eu.
Essa atitude extraordinária dos Cardeais americanos comprometeu seria­
mente, do princípio ao fim, a Iniciativa Americana, no que se refere ao julga­
mento dos Cardeais alemães e poloneses. Estes já encaravam os franceses co­
mo perigosamente esquerdistas —coisa que realmente são. E agora os ameri­
canos! Os alemães e poloneses desconfiam que Gerety e Deardon representem
a posição majoritária dos bispos americanos. E a seus olhos Krol está compro­
metido, por causa de seu papel no CTA e da subseqüente defesa que fez do
encontro. Vai ser necessário emendar muita cerca, para que a Iniciativa Ame­
ricana levante vôo outra vez.

89
Série Oito — 1977

POR INICIA TIVA DE PA ULO VIE DO SECRETÁRIO


DE ESTADO VILLOT, 0 VATICANO COMEÇA A PREPARAR
OS ESPÍRITOS PARA A PARTICIPAÇÃO COMUNISTA
NOS GO VERNOS EUROPEUS

0 primeiro indício dessa iniciativa aparece em junho desse ano, e começa


na França. Para o Vaticano, da mesma forma que para Moscou, a França é a
cavilha da evolução política da Europa, tal como a Alemanha o é em relação
à sua evolução econômica e militar. Da maneira como vai a França, politica­
mente, assim irá o resto da Europa Ocidental —esse é um axioma da geopolí-
tica vaticana. Observando as eleições nacionais francesas de março de 1978,
os funcionários do Vaticano inferem que se os comunistas, aliados ou não aos
socialistas, emergirem como participantes do govemo, esse fato será um exem­
plo e um estímulo para a Itália, a Espanha e Portugal.
Os bispos franceses publicam dois documentos, em junho desse ano: so­
bre marxismo e cristianismo, e sobre a condição dos cristãos no mundo operá­
rio. São ambos inspirados por Villot —e, em última análise, por Paulo.
Os bispos falam muito francamente. “É claro” , dizem eles, “que marxis­
mo e cristianismo, como filosofias, são incompatíveis.” Mas essa incompatibi­
lidade, continuam argumentando, não nos dá o direito de recusar a admissão
dos marxistas no governo, nem em qualquer outro setor da vida pública. É
evidente que precisamos estar vigilantes, e fazer aos marxistas as perguntas
certas. Num diálogo encorajador. E evitando qualquer rompimento com eles.
Mas cabe, então, que os deixemos agir livremente. Por quê? Porque: “Não po­
demos exigir da fé religiosa que desempenhe um papel que não pertence à fé
religiosa. Ora, não se supõe que essa fé seja a inspiradora de nossas ações.”
90
Depois, na edição de 9 de setembro do jornal vaticano Osservatore Roma­
no, Federico Alessandrini, o porta-voz e veiculador das opiniões de Paulo VI,
aparece dizendo a história toda:

“É evidente que mesmo uma simples participação dos partidos comunis­


tas no poder, em alguns países ocidentais como a Itália, a França e possi­
velmente a Espanha, significaria sucesso substancial para a União Soviéti­
ca... Mas, da maneira como estão as coisas, a hipótese não parece distante
da realidade. Nem é possível ver como os Estados Unidos poderiam fazer
oposição a uma ação desenvolvida de acordo com a autodeterminação
dos povos.”

Isso é uma clara advertência aos Estados Unidos de que o Vaticano já to­
mou sua própria decisão; de que os Estados Unidos deveriam respeitar o ideal
democrático de uma eleição livre, na Itália, que conduzisse os comunistas ao
poder, e que não deveriam interferir nos assuntos internos da Itália.
Em 19 de setembro, Paulo recebe uma delegação do regime comunista
da Checoslováquia, chefiada por Karel Hruza, Diretor do Secretariado para
Assuntos Religiosos, do Conselho de Ministros da Checoslováquia. Juntos,
Paulo e Hruza examinam novos acordos entre o Vaticano e aquele país, e Pau­
lo está a caminho de conseguir maior liberdade para os onze milhões de cató­
licos romanos do país e a suspensão da interdição em vigor sobre os quinhen­
tos e quarenta sacerdotes sujeitos a uma lei de silêncio e inatividade, que lhes
fora imposta pelo regime comunista.
Quando o enviado pessoal do Presidente Jimmy Carter a Paulo VI, o ad­
vogado de Miami David M. Walters, se avista com o Papa para uma palestra de
uma hora de duração, em 6 de outubro, as respostas e as observações de Paulo
a Walters são diplomaticamente orientadas, mas claras: Nós não somos contra
a participação marxista no governo, aqui ou em outro qualquer lugar.
Quando o programa de direitos humanos do Presidente Carter surge co­
mo tópico das conversações romanas, as autoridades mostram-se cautelosas.
Afinal de contas, assinalam, Carter acaba de receber Julius Nyerere, da Tan­
zânia, e o saudou como “um político soberbo, que detém a chave da futura
paz, da igualdade de tratamento e da liberdade na África”. O governo dos Es­
tados Unidos sabe, naturalmente, que Nyerere: redistribuiu a metade da po­
pulação camponesa; queimou-lhes as casas, espancou e matou aqueles que
opuseram resistência; não admite o direito de greve, nem a imprensa livre;
mantém mais de 7.000 presos políticos em cadeias imundas; e usa a tortura
e o assassinato para se conservar no poder sem uma oposição eficiente.
Se ainda há qualquer dúvida sobre a posição do Vaticano, Monsenhor
Virgilio Levi, Vice-diretor do Osservatore Romano, escreve na primeira pági­
na da edição de 27 de outubro:
“O marxismo parece estar mudando e os católicos precisam que a Igreja
91
os ensine a julgar quando devem colaborar com os marxistas para o bem
comum...”
Os católicos devem ser instruídos de maneira tal que se tomem “sensíveis
à evolução sócio-política, onde tal evolução esteja ocorrendo, que sejam capa­
zes de compreender aquilo que é válido, no que estiver sendo proposto,mas
capazes também de ser firmes na avaliação do que se desvia de Cristo e da ati­
tude cristã diante da vida e da conduta...” . Assim, visando à colaboração com
os marxistas, a Igreja deve formar cristãos que estejam “prontos a colaborar,
com franqueza e objetividade, onde a colaboração seja requerida pelo bem
comum”.
O fato brutal é que, nas eleições parlamentares do ano anterior, os comu­
nistas italianos conquistaram 34,4% dos votos. Os democratas-cristãos conse­
guiram 38,7%. Os comunistas oferecem estabilidade, num país em que o po­
vo, já de há muito, abandonou a idéia cristã de que o governo fosse o defensor
e o promotor do bem comum. O poder político na Itália —como em toda
parte - é visto como um meio de garantir o bem econômico pessoal dos polí­
ticos. “Sendo assim, vamos aceitar o governo com marxistas”, conclui o po­
vo. O Vaticano de Paulo está de acordo com isso tudo. Não há outro caminho.

O CARDEAL BENELLI APARECE ESCALADO PARA


IMPORTANTE PAPEL, ENQUANTO O PAPA PA ULO SE PREPARA
PARA A PRÓXIMA DOMINAÇÃO MARXISTA DOS GOVERNOS DA
EUROPA OCIDENTAL
As ações do Papa parecem revelar uma séria insegurança, em sua mente,
quanto ao sucesso final da revolução que deseja que ocorra no governo da
Igreja. É certo que fez tudo que pôde, através de suas nomeações de novos
cardeais, para aumentar a chance de um Papa do Terceiro Mundo. Ao mesmo
tempo, na revisão a que procedeu quanto às regras do Conclave, deu ênfase ao
status do Papa como Bispo de Roma, aparentemente para tornar possível ao
futuro Pontífice situar-se entre os chefes das outras Igrejas Cristãs como um
igual entre seus iguais distinguido por honras especiais —o primeiro entre seus
pares, um Bispo entre bispos.
Ainda está convencido de que uma revolução integral está a caminho,
mas já agora o Cardeal Vagnozzi, entre outros, convenceu Paulo de que um
candidato pan-europeu é a melhor coisa que pode esperar, como medida inter­
mediária, para prevenir o pior. O pior, nesse caso, poderia ser a disparada da
maior parte dos Eleitores na direção de um tradicionalista completo. E, se
houver um candidato pan-europeu que venha a ser eleito Papa, pelo menos
isso poderá servir para aglutinar aqueles Cardeais que se estão inclinando a so­
luções ultraprogressistas — coisa que Paulo não favorece dentro da própria
Igreja, muito embora esteja disposto a acomodar os marxistas de outras ma­
neiras.
92
No início de 1977, Paulo fez uma revisão na maneira bastante liberal sob
que vinha encarando a possibilidade de um governo eurocomunista na Itália
e em outros lugares. É claro que houve pressões de fora do Vaticano, sobre
Paulo, para modificar sua posição original nesse ponto. Um exemplo: numa
reunião realizada em abril do ano anterior no Centro de Estudos Estratégicos
e Internacionais (Center for Strategic and International Studies), na Universi*
dade de Georgetown, os participantes —pessoas como Horace Rivero, William
Colby, John Connolly, Clare Boothe Luce, Ray Cline, entre outras —expuse­
ram claramente o efeito desastroso que um governo comunista na Itália teria
sobre interesses vitais dos Estados Unidos.
A continuada revisão a que Paulo submeteu a posição que antes adotara
deve-se, em grande parte, ao trabalho de autoridades americanas, perturbadas
pela política “aberta” que ele vinha seguindo. Além disso, Vagnozzi, o espe­
cialista em finanças do Vaticano, assim como outras pessoas, salientara que,
apesar dos prejuízos causados por Sindona, as finanças pontifícias dependiam
então, de forma vital, dos Estados Unidos e de sua atitude favorável em rela­
ção ao Vaticano.
Em conseqüência, Paulo reverte, de alguma forma, a uma idéia que tive­
ra na década de 60: uma Europa unida, capaz de se tornar, mais uma vez, uma
força política e econômica no mundo, mesmo tendo que passar por um perío­
do de “finlandização” pela Rússia. “No fim de contas”, Paulo iria observar
em agosto daquele ano, “nada de novo está vindo da Rússia ou da China —a
cultura está morta, a tecnologia delas é tomada emprestada dos Estados Uni­
dos. E os Estados Unidos estão acabados. A Europa ainda tem, espiritual, in­
telectual e culturalmente, os recursos que permitirão anunciar um novo ca­
minho”.
É com isso em mente que, em 27 de junho, ele providencia para que seu
auxiliar de confiança, o Arcebispo Giovanni Benelli, de 56 anos, seja feito
Cardeal. Tem, naturalmente, outras razões para fazer isso. Benelli, fiel a Pau­
lo, é odiado por outras poderosas personalidades do Vaticano. Se Paulo mor­
resse e deixasse Benelli como um simples arcebispo, este poderia muito bem
acabar como bispo-residente de qualquer paróquia de sétima categoria, nal­
guma cidade murada na distante e montanhosa Calábria, ou terminar seus
dias copiando documentos em alguma secretaria obscura do Vaticano. E pre­
ciso que ele seja protegido e também é preciso que tenha voz nos Conclaves
vindouros —que seja, possivelmente, eleito Papa em alguma data futura.
Mas, acima de tudo, o cardinalato de Benelli irá lhe dar a posição em que
poderá assumir um novo papel: o de organizador de uma “nova alma” para a
Europa. Procurará galvanizar interesses culturais, econômicos, religiosos e
políticos em torno de uma nova unidade européia, e buscará apoio para essa
unidade. Como Cardeal, Benelli e um grupo de bispos católicos deverão se en­
contrar, nesse outono, com diversos políticos europeus.
Lançando o olhar sobre a futura programação de atividades dos Cardeais-
93
Eleitores no Conclave seguinte, Paulo chega à decisão de que a tendência no
sentido de uma “abertura” está exigindo um certo freio. Além de Benelli, faz
três outros cardeais que, está certo, constituirão esse freio necessário: o Padre
Luigi Ciappi, sacerdote dominicano e teólogo de três Papas, inclusive do pró­
prio Paulo; o Arcebispo Bernardin Gantin, de Benin, de 55 anos de idade, já
membro da Cúria Romana, e Josef Ratzinger, Arcebispo de Munique. Desses
três, Gantin e/ou Benelli um dia poderiam ser Papas.

PA VLO REA VIVA OS R UMORES DE UMA PRÓXIMA RENÚNCIA -


PROMOVE, ABERTAMENTE, MANOBRAS ELEITORAIS.
A S GRANDES POTÊNCIAS REAGEM

Alimentados pelas afirmações do próprio Paulo, feitas pelo menos em


três ocasiões, de que “o fim está próximo” , os boatos sobre sua renúncia fer­
vilham, durante os primeiros nove meses de 1977. Algumas chancelarias co­
meçam a se preparar para uma renúncia no outono; muitas delas passam a
agir como se o grupo que cerca Paulo não tivesse mais o poder ou o prestígio
da corte papal.
Os Estados Unidos, o Reino Unido e a Rússia indagam oficialmente de
seus contatos no Vaticano da possibilidade da renúncia de Paulo. Isso porque,
a despeito do que várias facções nesses países possam pensar, aquilo que acon­
tece no Vaticano tem um profundo significado para as diversas potências.
Enquanto isso, exatamente antes de Paulo se afastar para a Vila Papal de
Castel Gandolfo, a Rádio Vaticano e o jornal Osservatore Romano, também
do Vaticano, dão a público sarcásticas negativas da iminente renúncia do Pon­
tífice.
É claro que há amplos fundamentos para a suposição de que Paulo permi­
tiu —e mesmo alimentou —semelhantes rumores. Seu motivo: fazer com que
se definam abertamente as manobras eleitorais —atar tantas mãos da oposi­
ção quantas seja possível, o mais cedo que puder, antes do fato.
Ao mesmo tempo, exibe uma vitalità, como os italianos definem, delicia­
dos, extremamente inadequada num Pontífice que está, supostamente, nas
últimas, prestes a morrer, ou a se arrastar de cena, incapacitado. Vai para Pes­
cara de trem, no calor de setembro; prega sob a chuva, para aqueles que com­
parecem ao Congresso Eucarístico; depois, coroando tudo isso, ao se despedir
de um grupo de peregrinos espanhóis, põe as mãos em concha e grita, cheio de
ânimo e de bom humor: “ Tomate/ Tomate! Vi trovarete ancora alVappunta-
mento!" (Voltem outra vez! Voltem outra vez! Estejam de novo aqui para sua
próxima audiência!)
Este Papa velho e enfermo, um “Atlas solitário”, nas palavras do Cardeal
Suenens, está fazendo um jogo final muito mais inteligente do que muitos de
seus colegas mais jovens.
94
CARDEAIS AMERICANOS TENTAM RECUPERAR O PLANO
DA INICIATIVA AMERICANA. FISCALIZAÇÃO, VEXAME,
PERSEGUIÇÃO, ISOLAMENTO SÃO A ORDEM DO DIA
PARA A IGREJA NA EUROPA ORIENTAL

0 primeiro grande movimento no sentido da reparação dos estragos e da


recuperação das esperanças da Iniciativa Americana é feito em l?de agosto
de 1977, com a viagem do Cardeal Cooke à Polônia. Ele mantém conversa-
ções em Varsóvia com dignitários da Igreja, na chancelaria do Cardeal Primaz
da Polônia, Stefan Wyszynski —notadamente com o Bispo Zbiegniew Kras-
zemski, que certamente será cardeal. Faz um extenso circuito pelas dioceses
do noroeste da Polônia, gastando nisso cinco dias. Toma parte na peregrina­
ção nacional polonesa ao venerado santuário da Virgem, em Czçstochowa, on­
de reza junto com 80.000 poloneses.
Também em Czçstochowa, discute o assunto dos candidatos a Papa com
o Cardeal Wyszynski, assim como com o Cardeal Nasalli Rocca, sediado em
Roma, e igualmente participante da peregrinação a Czçstochowa e que é um
tradicionalista.
Depois disso, Cooke dirige*se a Cracóvia, para conversações semelhantes
sobre os mesmos tópicos com Wojtyla.
O segundo movimento importante para restauração da Iniciativa Ameri­
cana começa quando o Cardeal Krol, o Arcebispo Joseph Bernardin, de Cin-
cinnatti (a essa época Presidente da Conferência dos Bispos Americanos) e o
Bispo James S. Rausch, de Phoenix, no Arizona, seguem juntos do Aeroporto
Internacional de Filadélfia, no dia 20 de setembro, para uma semana de visita
ao Cardeal Lekai, da Hungria. Estão seguindo nas pegadas de Billy Graham,
que acaba de visitar o país e voltará aos Estados Unidos dizendo que encon­
trou liberdade religiosa na Hungria. Um sonho agradável, esse, mas que não é
capaz de cegar os olhos de muitos homens —e, certamente, não os do Cardeal
Lekai.
Aparentemente, trata-se de uma visita eclesiástica, feita por um cardeal
e dois bispos a um sacerdote irmáó. Afinal de contas, o próprio Paulo VI rece­
beu o chefe comunista da Hungria, Janos Kadar, no Vaticano, no começo da­
quele ano. Então, é muito natural que esses importantes prelados celebrem
uma Missa Solene, como fazem Krol e Bernardin, na Catedral de Santo Este­
vão, em Budapeste, diante de uma congregação de 3.000 pessoas, que inclui
toda a hierarquia de bispos húngaros e mais o ilustre Imre Miklos, chefe da
Secretaria de Governo para Assuntos Religiosos. Oportuno, também, que ba­
tizem 60 crianças recém-nascidas e que compareçam a um espetáculo musical
comemorativo na Igreja Matthias da Coroação, em honra do aniversário de
Paulo VI. Essa visita é cheia de apropriados eventos eclesiásticos desse tipo.
Em particular, os americanos verificam o progresso das discussões diplo­
máticas entre o Vaticano e a Hungria. As coisas estão progredindo lentamen­
95
te, e não se consegue nada que seja prometedor. Os húngaros só estão interes­
sados em atitudes de grande valor propagandístico: a pública normalização de
relações, de modo que os funcionários comunistas possam ser fotografados
com os religiosos; a volta da coroa de Santo Estevão para a Hungria (o gover­
no dos Estados Unidos está de posse dela há muitos anos), coisa que os prela­
dos americanos podem conseguir facilmente com Jimmy Carter —e assim por
diante. Os prelados americanos estão interessados em assuntos substanciais,
tais como a liberdade de culto e a liberdade de publicações.
Os americanos deixam claramente perceber o que pensam sobre outros
pontos, perante Lekai. E têm uma mensagem complexa a transmitir ao Car­
deal da Hungria: o papabile mais viável, agora, é um pan-europeu. A posição
que está sendo assumida por uma crescente maioria de Cardeais-Eleitores fa­
vorece uma política talhada muito semelhantemente à que vem sendo tecida
pelos Estados Unidos, quanto a permitir que os governos eurocomunistas atin­
jam o poder em países europeus, mas sem que fique manifesto mesmo o apoio
tácito a uma mudança desse tipo em matéria de ideologia.
Nenhum dos americanos vai embora com uma certeza total de que a se­
gurança das famílias e dos amigos dos religiosos húngaros não venha a ser usa­
da como meio de garantir que esses religiosos se esforcem por uma abordagem
pró-marxista, em suas atividades e em suas declarações públicas. Nem podem
os americanos descobrir exatamente até que ponto as simpatias dos clérigos
húngaros se inclinam no sentido de uma aliança marxista-cristã. Na viagem de
volta da Hungria, Krol pára dois dias em Praga, na Checoslováquia - 29 e 30
de setembro —para conversar com o Cardeal Frantisek Tomaáek. Nesse país,
o panorama é mau para a Igreja - o mais desolador, excluídos o Vietnã do
Norte e a Albânia. E ela sujeita a uma perseguição, a um tormento e a um iso­
lamento implacáveis. “‘Qual é o maior problema?” pergunta Krol a certa altu­
ra. “Ser ou não ser”, é a amarga resposta de Tomasek, que não aprecia muito
a indecisão hamletiana do Papa em relaçSo ao marxismo. “Sua Santidade não
percebe que estamos sendo sufocados aqui?” exclama Tomaíek.
A atitude de TomaSek é clara, ainda que no fim um pouco decepcionan­
te. Estará do lado dos poloneses, na questão de um papabile. Acha que Lekai
está sob uma vigilância exagerada e sob excessivo controle, e que está total­
mente isolado. Embora vá se colocar ao lado dos poloneses, pessoalmente pre­
feriria esperar e observar, no que diz respeito a um papabile pan-europeu. Não
está certo de que, afinal de contas, a Igreja não esteja precisando de um Papa
tradicionalista —pelo menos por algum tempo. “Bem, e que tal um tradicio­
nalista pan-europeu?” é a pergunta crucial.

96
PA ULO TEM RENO VADAS ESPERANÇAS DE EFETUAR
UMA MUDANÇA REVOLUCIONÁRIA

Na realidade, Paulo não tem a intenção de renunciar em setembro de


1977. Ainda uma vez, as circunstâncias proíbem isso, No momento, há por
trás dos bastidores delicadas negociações com governos comunistas em Praga
e em Budapeste. As discussões com intermediários da Rússia continuam sob
forma intermitente. E o próprio assunto de tais discussões dá a Paulo alguma
esperança de que sua idéia de reforma do sistema do Conclave (e, com isso,
do método de governo da Igreja) possa ser concretizada. Isso porque um dos
principais assuntos sob discussão é a sorte do Patriarcado de Moscou e suas
relações com o Papado.
O fluxo de informações e de acontecimentos, nesse ano, aumenta o inte­
resse de Paulo. O Superior-Gcral dos Jesuítas, Padre Pedro Arrupe, faz uma
viagem a Moscou e a outros lugares, na função de contato e para recolher in­
formações de natureza delicada. A declaração que Arrupe faz na volta - de
que viu sinais de abrandamento na perseguição religiosa na Rússia —é aberta­
mente contraditada pelo Padre Casimir Pugevicus, Diretor da Ajuda Religio­
sa Católica da Lituânia. Em sua carta, escamoteada da Rússia, Pugevicus des-
trói a afirmação de Arrupe, dizendo que é uma “manobra oportunista dos
soviéticos”, usada para criar uma falsa impressão.
Na Itália, as negociações para um novo acordo entre o Estado Italiano e
o Vaticano estão quase terminadas. O novo acordo irá substituir a Concor­
data de Latrão, de 1929, e colocará a Igreja no lugar em que Paulo acha que
deve ficar: o catolicismo não será mais a religião oficial da Itália, e os ensina­
mentos e as leis da Igreja sobre casamento, divórcio e matérias semelhantes
não prevalecerão mais para os cidadãos italianos. Ao mesmo tempo, conti­
nuam discretos entendimentos sobre a entrada de comunistas no governo ita­
liano.
Do ponto de vista de Paulo, há nova esperança, portanto, de que possa
conseguir seu objetivo: reformar as estruturas mestras do catolicismo romano,
em particular o método de eleição do Papa e as relações do Papa com os che­
fes das outras Igrejas cristãs. Se pudesse conseguir essas metas, então Paulo re­
nunciaria. De outra maneira, morreria calçando as sandálias de Pedro. A
probabilidade é de que, de fato, morra Papa.
Mas ele ainda tem esperança.

NÃO HA VERÁ RENÚNCIA DE PA ULO NO 80? ANIVERSÁRIO

Na edição de 30 de agosto do Osservatore Romano, o redator associado,


Reverendo Virgilio Levi, protestou contra aquilo que chamou de campanha
“incivil” da imprensa italiana, que, “sem qualquer fundamento em fatos”
97
tem espalhado “notícias excêntricas e imaginárias'” sobre a renúncia de Paulo.
O porta-voz do Vaticano, Reverendo Romeo Panciroli, fala na Rádio do
Vaticano para repetir a mesma nota.
Em 26 de setembro, dia de seu 80?aniversário, Paulo levanta-se à mesma
hora de sempre (seis horas da manhã) e vai dormir à hora de costume (duas
da madrugada). Não há renúncia. Nem haverá nenhuma, durante o próximo
Sínodo de Bispos, que começará quatro dias depois. O Papa recebe mensagens
de congratulações dos líderes mundiais, e inaugura um novo conjunto de por­
tas de bronze da Basílica de São Pedro.
A comemoração do aniversário de Paulo culmina no Nervi. Aí, sentado
no trono papal diante de uma sala repleta, ele assiste a um concerto em sua
honra. Atrás dele, terminada e instalada para a ocasião, está a escultura em
bronze feita por Pericle Fazzini, encomendada por Paulo doze anos antes.
Ao que se diz, os materiais e as moldagens custaram meio bilhão de liras;
outras despesas de mão-de-obra custaram um milhão de liras e os honorários
pessoais de Fazzini foram de cinqüenta milhões de liras.
É enorme. O tema de Fazzini é a Ressurreição. A figura central da escul­
tura ergue-se, inclinando-se dinamicamente para a frente, como se estivesse
em movimento. Em tomo, chanfradas, há massas esgalhadas de braços e de­
dos, e massas de bronze, que se erguem, despedaçadas, que sobem, que se in­
clinam. Fazzini conseguiu quase o impossível. Por que aquela paliçada dinâ­
mica de bronze faz os espectadores pensarem tanto nos ramos de uma olivei­
ra —o símbolo da paz e da ressurreição —quanto numa explosão atômica e
na desintegração do mundo.

OS BISPOS ENCONTRAM-SE EM ROMA - ENSAIO


GERAL PARA O CONCLA VE 82

O Papa Paulo abre o 5? Sínodo Romano Internacional em Roma, em 30


de setembro. Há 204 Delegados, incluindo bispos, cardeais c patriarcas. Estão
aqui prelados dos países satélites da Europa Oriental - da Polônia, da Che­
coslováquia, da Bulgária (mas não da Hungria) — do mesmo modo que da
África, da Ásia e das duas Américas. Há dois do Vietnã: o Cardeal de Hanoi e
o Arcebispo de Ho Chi Minh (Saigon). Há também alguns observadores —pro­
testantes e judeus - c um grupo de carismáticos, convidados a virem até Ro­
ma pelo Cardeal Suenens, o belga. A média das idades dos Delegados, neste
ano, é cinco ou seis anos menor do que a dos que estiveram no último Síno­
do, em 1975.
O tema do Sínodo é a catequese —isto é, o ensino da religião —no mun­
do de hoje, especialmente no que se refere a crianças e a jovens. Mas o assunto
que prende a atenção de qualquer pessoa importante no Sínodo é o próximo
98
Papa e o Conclave. Sob muitos aspectos, este Sínodo c quase um ensaio geral
para o Conclave 82.
O problema da catequese é discutido dos vários pontos de vista sob os
quais os Delegados o trazem ao Sínodo.
Os africanos estão interessados em como adaptar o catolicismo aos cos­
tumes nativos e às mentalidades locais.
Os latino-americanos estão divididos: alguns forçam a liberação da teolo­
gia (são severamente repelidos); alguns se empenham pelo “socialismo demo­
crático” , quer como solução política, quer como solução político-militar (es­
tes são também repelidos); e outros propugnam pelo tradicionalismo (não
encontram muitos que os apóiem). Mas um problema sobre o qual todos os
latino-americanos estão falando é a maneira de lidar com os movimentos mar­
xistas.
Os Delegados dos países desenvolvidos trazem à discussão problemas cria­
dos pela tecnologia e por condições de vida mais elevadas do que as que se en­
contram em outros lugares: seus países correm o perigo do ateísmo e da secu-
larização.
Os Delegados asiáticos e europeus orientais estão preocupados com a fal­
ta de liberdade de culto, de liberdade nas escolas, na imprensa.
E a maior parte dos Delegados europeus com o espectro do comunismo,
que paira sobre o horizonte de seu futuro próximo.
As cerimônias de abertura, que se realizam na Capela Sistina, são televi-
sadas e transmitidas por satélites para o ultramar. O Papa diz aos Delegados:
“Nós fomos escolhidos, chamados e investidos pelo Senhor para o desempe­
nho de uma missão transformadora. Como Bispos, somos os sucessores dos
Apóstolos.” Os observadores ficam impressionados pelo fato de Paulo usar o
termo “transformadora”. Isso vem diretamente do mentor de Paulo, o faleci­
do filósofo Jacques Maritain, com quem ele aprendeu todas as suas idéias de
“humanismo integral” . É também uma expressão muito usada pelos “novos
teólogos” e pelo grupo de tendência marxista na Igreja, que falam da “trans­
formação da sociedade humana” —e querendo dizer a instalação do marxis­
mo no lugar do capitalismo. Já não falam mais em “converter” o povo ao seu
catolicismo, ou em “pregar a salvação de Jesus” —só na “transformação da
sociedade”.
Aqueles que estão familiarizados com as propostas de Paulo relativamen­
te ao Conclave e ao governo da Igreja percebem o que ele está dizendo: “De
agora em diante, nossa função consiste em testemunhar, em nos evangelizar­
mos, em ficar ao lado de todos os homens e de todas as mulheres, em nos tor­
narmos parte de seu mundo, em prestarmos serviços no campo político e so­
cial. E em simplesmente esperar.” Todos os Delegados se sentem lisonjeados
por estarem incluídos, junto com o Papa, na comissão atribuída por Cristo de
“transformarem” o mundo. Nenhum daqueles vindos das nações da Europa
dominadas pelo comunismo gosta do discurso de Paulo.
Sintomática das atitudes do Conclave e das profundas divisões faccioná-
rias entre os Eleitores é a escolha (por votação dos Delegados) de moderado­
res de grupo, para os debates nas sessões de trabalho do Sínodo: o Arcebispo
Bernardin, de Cincinnati (conservador); o Arcebispo Denis Hurley, de Dur-
ban (progressista); o Arcebispo Dermot Ryan, de Dublin (tradicionalista); o
Arcebispo Roger Et chegaray, de Marselha — o fazedor de Papa da Europa,
como é chamado (progressista); o Cardeal Marty, de Paris (progressista); o
Cardeal Felice, de Roma (tradicionalista). Há carismáticos —entre eles alguns
americanos — “disponíveis para encontros particulares entre carismáticos e
Delegados”.
Os cardeais e bispos de tendências esquerdistas são tremendamente enco­
rajados e estimulados em suas esperanças eleitorais pré-Conclave pela palestra
feita pelo Arcebispo Van Binh, da cidade de Ho Chi Minh. O Arcebispo diz
com toda a franque.?*1“Os católicos vietnamitas estão decididos a co-existir e
a florescer junto com os comunistas. O regime comunista está procurando
unir todos os nossos cidadãos vietnamitas, na reconstrução de nosso país. E
assim, nós católicos do Vietnã, nos recusamos a viver num gueto e a permane­
cer à margem da sociedade.” E Binh conclui: “Nós, os católicos, esperamos es­
tar, em breve, impregnados da doutrina marxista-leninista. Mas continuaremos
a ser verdadeiros católicos.”
O Arcebispo Franic, de Spalato, na Iugoslávia, remata isso tudo ao afir­
mar, em voz alta, que “o ateísmo comunista não é o verdadeiro perigo”. O
verdadeiro perigo é: “a permissividade moral, o erotismo, o hábito das drogas,
a música decadente, e violência da cultura ocidental” . Palavras que poderiam
ter sido recolhidas nas atas da 25? Sessão do Presidium Soviético. E ele acres­
centa: “A partir de 1950, a população da América Latina aumentou de 164
milhões e 400 mil para 341 milhões e 900 mil, até meados de 1977. O capita­
lismo vai alimentá-la?”
Esses discursos têm um profundo efeito sobre os italianos, os espanhóis,
os franceses e os portugueses, defrontados como estão com a possibilidade de
viver sob governos comunistas em um futuro próximo —ou, pelo menos, ven­
do-se diante da escolha de tais governos.

OS AMERICANOS SÂO CRITICADOS, ESCARNECIDOS,


NO SÍNODO ROMANO

No decorrer das sessões do Sínodo e nas discussões informais, muitos De­


legados falam francamente. A conduta do Cardeal Deardon, na reunião de ou­
tubro do CTA, em Detroit, é chamada de “criminosa”. O comportamento do
Arcebispo Bernardin é chamado de “irresponsável”. A urbana negatividade do
Arcebispo Jadot, Delegado Apostólico para Washington, é definida exatamen­
te assim, “urbana negatividade” , com a adição do motivo “por causa de sua
100
carreira”. Os bispos americanos, como um todo, são censurados por não te­
rem exercido supervisão sobre a eleição dos delegados ao CTA, e por terem
permitido que o encontro caísse nas mãos de “ex-freiras irreverentes, freiras
lésbicas, sacerdotes infiéis, gente leiga ignorante e criptocomunistas”.
Além disso, os americanos se vêem constrangidos com tópicos como as
resoluções do Senado dos padres diocesanos de Brooklyn, Nova Iorque (pe­
dindo padres casados, celibato opcional, etc.) e o levantamento da situação
dos padres da diocese de Chicago (dos quais a maioria já não observa os ensi­
namentos da Igreja em matéria de controle da natalidade, masturbação e ho­
mossexualidade). E, depois, há relatórios documentados com listas de freiras,
padres e alguns bispos que já pertencem ao Partido Comunista dos Estados
Unidos, ou a organizações vinculadas ao Partido Comunista.
De um modo geral, os americanos são criticados por estarem interessados
em tudo quanto é assunto: a bomba de nêutron, o Tratado do Canal do Pana­
má, o sistema de seguro nacional de saúde, a poluição ambiental, o destino do
lixo atômico, o consumo de energia —em tudo, ou seja, exceção feita das coi­
sas que deveriam constituir seu interesse primordial, tais como a fé viva do po­
vo e a solidez da doutrina. Um prelado polonês pergunta: “Ora, como é que
podemos pensar num papabile americano, quando a maior parte dos senhores
não conhece nada de teologia e alguns estão organizando um pequeno putsch
particular?” “A julgar pelo que fazem de política pelo Tratado do Canal do
Panamá, a gente seria capaz de pensar que os bispos americanos eram as partes
interessadas em ajudar os bancos dos Estados Unidos a reaverem os 2 bilhões
e 770 milhões de empréstimos feitos ao Panamá e ainda não liquidados”, foi
uma das queixas ouvidas.
Mais ainda, ninguém pode explicar a muitos europeus e africanos por que
é que as autoridades americanas ainda não dispensaram os missionários católi­
cos romanos atuando na América Latina e na África, que proclamam a revo­
lução marxista —tais como a Irmã Janice McLaughlin, que só recentemente
foi expulsa da Rodésia, e que declarou: “Apóio os que lutam pela liberdade...
é impossível efetuar mudança sem guerra.”
E os africanos têm ainda outra queixa: qual a razão da forte posição polí­
tica adotada pelos bispos dos Estados Unidos contra a África do Sul? Não sa­
bem eles —perguntam —que na África há 21 regimes de partido único, 13 re­
gimes ditatoriais, 6 ditaduras militares e apenas 12 Estados multipartidários
(alguns dos quais são Estados de um só partido, na realidade; outros deles es­
tão num interminável processo de “elaboração de uma nova constituição”) e
que, em todos esses países, os negros têm menos liberdade e menor bem-estar
econômico do que na África do Sul? Por que alardear uma diretriz política
que é, obviamente, ditada por motivos puramente políticos?
Depois que tudo é dito e feito, os americanos continuam a interferir e a
demonstrar quão profunda é a sua deficiência em matéria de uma doutrina
firme, mesmo em pontos básicos. Quando o documento final das conclusões
101
do Sínodo, já revisto, é distribuído entre os Delegados, alguns dos americanos
fazem objeções a diversos tópicos. Objetam quanto à menção da catequese
como um “processo de conversão”. Objetam ao fato de que o documento apre­
sente uma noção histórica de Jesus, em vez de mostrar Jesus como uma expe­
riência diária. Objetam ao pouco de atenção que foi dado à justiça social e ao
ecumenismo —as duas plataformas em que muitos bispos americanos gastam
a vida e a atividade episcopais.

A TÍVIDADES ELEITORAIS PRE-CONCLA VE NO SÍNODO

Os Delegados, os Cardeais e os Bispos estão ocupados com o Conclave e


com os planos de Paulo para um futuro próximo. “O Conclave já começou”,
era comentário constante dos observadores. Realmente!
No alto da lista dos papabili estão três italianos .(Baggio, Pignedoli, Feli*
ce), um argentino de origem italiana (Pironio) e mais de um não-italiano.
Um holandês, Jan Willebrands, o Primaz da Holanda e que também traba­
lha em Roma, já figurou numa lista anterior de papabili. O Primaz da Ingla­
terra, Cardeal Basil Hume, foi também mencionado. No momento, ambos são,
provavelmente, bons “espantalhos”, quer dizer, seus nomes podem sempre ser
usados como alternativas exteriores, mas apenas como os menores de muitos
males.
Willebrands tem muitos problemas na Holanda, onde o catolicismo é me­
nos vibrante do que no Congo. Além disso, não dispõe da largueza de mente
que se exige num Papa. E parece fascinado por tudo aquilo que os cristãos
não-católicos fazem. Há muitos conservadores que não admitem seu tipo de
ecumenismo.
A atração que faz um papabile de Basil Hume, de 55 anos, está unicamen­
te em seus antecedentes. Filho de um ilustre protestante, Sir William Hume, e
de mãe francesa, com um cunhado que é Secretário no Gabinete Britânico,
Hume foi educado em Oxford e depois em Fribourg, na Suíça. Como Abade
Beneditino de renome, tornou-se muito querido dos ecumenistas anglicanos.
Tendo em vista o reduzido status da Grã-Bretanha como potência mundial, a
posição ecumênica de Hume dá-lhe uma certa estatura e atração: não vem de
“uma superpotência colonialista”. Mas ainda uma vez, e por diferentes razões,
não passará para a lista principal de papabili. Como observou o valoroso Car­
deal Ottaviani: “Partir de um cardeal italiano para um anglo-saxão seria de­
mais para os europeus e não seria bastante para os não-europeus.”
O “fazedor de Papas da Europa”, o Arcebispo Roger Etchegaray, de
Marselha, procura, ao que se diz, um candidato adequado de esquerda, entre
os italianos e europeus. A maior parte dos Eleitores franceses coloca-se, agora,
à esquerda.
Os Bispos americanos juntaram-se a Hõffner e aos outros cardeais ale­
102
mães (Bengsch, de Berlim, e Ratzlnger, de Munique) e, desse modo, fizeram
seus aliados temporários também os poloneses, em sua posição contrária a
qualquer candidato realmente de esquerda. Mas os alemães não conseguem
aglutinar os Cardeais franceses.
Paulo mantém-se muito ativo durante todo o Sínodo. Deixa que se saiba
que pretende criar brevemente maior número de cardeais. Alguns deles serão
tradicionais e, portanto, nomeações obrigatórias, como é o caso do Arcebispo
irlandês de Armagh; alguns serão recompensas por trabalho bem feitos (como
o Arcebispo Casaroli, por sua atuação nos países soviéticos orientais), mas al­
guns, obviamente, são destinados a criar novos votos no Conclave, em favor
das políticas de Paulo.

O SÍNODO ENCERRA AS DELIBERAÇÕES NUMA


CONOTA ÇÃO DE UNIDADE

A despeito de diferenças profundas, este 5? Sínodo Internacional termina


num espírito de harmonia e unidade entre o Papa e os Delegados, e entre os
Delegados uns com os outros.
O Cardeal Baggio, ele próprio um papa bile nada desprezível, dá uma en­
trevista coletiva e diz aos jornalistas que “é grotesco ter que defender uma as­
sembléia eclesial da acusação de ter encerrado seu trabalho em harmonia”. A
observação de Baggio visa, principalmente, os “novos teólogos” e os intelec­
tuais católicos de esquerda, que estão continuamente a apresentar os bispos
de todo o mundo em oposição total ao governo central da Igreja, em Roma.
Esperavam que os bispos e os Delegados se revoltassem durante o Sínodo.
Não se revoltaram.
Na verdade, duas correntes principais emergiram: uma de direita, incluin­
do tradicionalistas, conservadores e radicais; a outra, esquerdista, que inclui
progressistas, “novos teólogos” e o grupo de inclinação marxista. Mas a dispu­
ta ficou entre os Delegados e por trás de portas fechadas. Entre as duas, che­
gou-se a um acordo. Os Delegados redigiram uma mensagem de 3.000 palavras
ao Povo de Deus. Apresentaram também 34 propostas a Paulo, nas quais fo­
ram descritos os métodos a empregar na instrução dos cristãos em sua fé. Pau­
lo irá usá-las, bem como a mensagem, para elaborar um documento pontifício
sobre o tema geral da catequese. Os americanos apresentaram suas próprias
revisões, mas as mesmas não tiveram efeito algum.
Entre a esquerda e a direita, uma disputa se refere ao significado a dar aos
termos doutrina “autêntica e completa”. Os progressistas insistem em que eles
incluem a teoria e o ativismo sócio-políticos. Os outros recusam isso. Os “no­
vos teólogos” e a teologia de liberação dos latino-americanos, afinal, não con­
seguem lugar de honra. Mas ainda não existe acordo quanto ao que doutrina
cristã “autêntica e completa” significa.
103
OS CARDEAIS-ELEITORES TÊM SÉRIAS DÚVIDAS
QUANTO AO JULGAMENTO E ÀS POLÍTICAS DE PA ULO

Vários Cardeais latino-americanos, juntamente com Delegados da Europa


e da Ásia, informam a Paulo que não podem apoiar sua visão política da Amé­
rica Latina. Agora ficou claro que, enquanto Paulo age como se estivesse do
lado dos que adotam a posição centrista-reformista (os que assim se colocam
procuram reformar os abusos existentes nos sistemas econômico e social da
América Latina, sem substituir o sistema), deu o sinal verde à posição refor­
mista de esquerda (a daqueles que querem substituir o capitalismo pelo “so­
cialismo democrático”). Paulo não tem resposta para os que salientam que os
reformistas de esquerda sempre se aliam aos “violentos terroristas —que in­
cluem guerrilheiros e terroristas —e que buscam a total dominação marxista
da América Latina por meios violentos”. Esta reação irá pesar finalmente, na
atitude geral pré-Conclave dos Eleitores.
Entre muitos prelados presentes ao Sínodo há um clima de profundo
questionamento: terá Paulo VI ido longe demais? Irá ele mais longe ainda? Te­
rá ele empurrado a Igreja depressa demais? Quem, na realidade, o ajuda a to­
mar decisões que chocam a maioria dos fiéis? Terá ele deixado as coisas avan­
çarem demais, depressa demais?
Pelo final do Sínodo, o Colégio de Cardeais tinha 118 membros habilita­
dos a votar como Eleitores do próximo Conclave. Desses, apenas quatro (Siri,
Wyszynski, Léger e Gracias) participaram da eleição de João XXIII, no Con­
clave 80, em 1958; doze deles (incluindo Rugambwa, König e Bueno y Mon­
real) estavam no Conclave 81, que elegeu Paulo VI em 1963. Assim, a grande
maioria dos Cardeais-Eleitores no Conclave 82 entrará nele sem qualquer ex­
periência quanto à feitura de Papas, ou às manobras políticas dos conclaves.
O único estratagema de política eclesiástica que a maior parte dos Eleitores
conhece, e que virá influenciar o Conclave 82, é aquele que muitos deles usa­
ram no II Concílio Vaticano: aníes do evento (neste caso o Conclave) dizer
“sim” a tudo; depois seguir para Roma, entrar no Conclave, e subverter todos
os compromissos e todas as promessas e, pela simples pressão dos números,
conseguir a vitória, favorecendo aquilo que realmente desejam.

SITUA ÇÃO A TUAL RELA TI VÃMENTE AOS CARDEAIS-ELEITORES


E AO PESSOAL QUE PARTICIPARÁ DO CONCLA VE

O Cardeal Luigi Traglia, de 82 anos, é enterrado na quinta-feira, 24 de


novembro. O Papa está presente ao funeral. A morte de Traglia reduz a 182
membros o Colégio dos Cardeais, e esse número inclui 34 italianos, 32 euro­
peus, 23 latino-americanos, 16 norte-americanos, 10 africanos, 12 asiáticos e
5 da Oceania.
104
Os Cardeais não devem levar consigo para o Conclave assistentes pessoais,
secretários ou auxiliares, salvo quando uma grave enfermidade exigir essa aju­
da extraordinária. Em cada caso, o Camerlengo e seu comitê serão os juizes
em instância final. Os elementos sem a qualidade de cardeais oficialmente ad­
mitidos ao Conclave são o Secretário do Conclave, que tem a seu cargo a do­
cumentação do evento; o Vigário de Roma, que é um bispo, e que deve ser
testemunha da Eleição como representante da diocese do Papa; dois ou mais
assistentes desse Vigário; o Mestre de Cerimônias Pontifício, com seus assis­
tentes, que assegurará a observância de todo o ritual do Conclave e da Eleição;
um ou mais assistentes do Camerlengo, para auxiliá-lo em seus deveres; uns
três a cinco padres comuns, que deverão ouvir confissões em diferentes idio­
mas; pelo menos dois técnicos e, a julgar pelo desenvolvimento que vêm ten­
do os planos para o Conclave 82, provavelmente três vezes esse número quan­
to a pessoal para controle eletrônico e segurança; duas equipes de tradutores,
trabalhando em rodízio, para garantir a tradução simultânea nas sessões do
Conclave; e todo outro tipo de pessoal para atender a serviços (carpinteiros,
eletricistas, bombeiros hidráulicos, barbeiros, um dentista, etc.) que sejam
entendidos como necessários e para os quais tenha qualificação, depois de
cuidadoso exame e deliberação do Camerlengo e de seu comitê. A todas es­
sas pessoas acrescenta-se um par de leigos, que sempre entra no Conclave com
os cardeais e cujos deveres se relacionam com o segredo do Conclave. Tudo
somado, a população total do Conclave chega perto de 200 a 250 pessoas.

JÁ DECIDIDA RUPTURA DA TRADIÇÃO, COM


ESMAGADORA QUEBRA DE PRECEDENTE

Agora é certo que, com o consentimento e por sugestão do Papa Paulo


VI, foi tomada a decisão de não se promover o Conclave 82 no local do Vati­
cano em que todos os Conclaves, com exceção de um, foram realizados desde
o século XVI.
Tradicionalmente, os Cardeais-Eleitores em conclave ficam alojados no
Palácio Apostólico que domina a Praça de São Pedro, seus aposentos, ou “ce­
las”, agrupados em torno da Capela Sistina, onde se realizam todas as cerimô­
nias e todas as sessões do Conclave. Lá na Sistina, sob o extenso teto de Mi-
chelangelo, todo de afrescos com cenas da Criação e da Salvação, diante do
Juizo Final, de Michelangelo, sob o cerco das pinturas saídas das mãos de Bot-
ticelli, de Pinturicchio, de Roselli, de Perugino, de Signorelli, de Delia Gatta,
de Ghirlandaio —foi eleito Papa após Papa, geralmente pelo voto direto e, al­
gumas vezes, por aclamação unânime. A história vivida na Sistina sobrepuja
suas pinturas, seus afrescos, suas esculturas. Lá a tradição foi moldada, adap­
tada, preservada, reafirmada e fielmente passada adiante.
Agora tudo isso passou, está acabado. No Conclave 82, somente as ativi­
105
dades e cerimônias pré-Conclave (o juramento dos Cardeais-Eleitores e dos
participantes do Conclave) e a sua Sessão Preliminar serão realizadas na Sisti-
na. Daí em diante, as sessões de trabalhos preparatórios do Conclave 82, bem
como a própria eleição do novo Papa que sucederá a Paulo VI, serão realiza­
das no “Salão Superior” do Nervi. Os Cardeais-Eleitores serão conduzidos de
ônibus, de manhã, de tarde e de noite, do Domus Mariae, onde se situarão
seus aposentos. O Domus ergue-se em seu próprio solo, a uma distância de
cerca de uma milha do Nervi, é cercado por uma alta muralha e dispõe de to­
das as conveniências. A segurança é que vai ser um problema.
A mudança, a decisão de fazer a mudança, e os novos locais escolhidos
são apenas mais indícios da visão antecipatória de Paulo VI e daqueles que ho­
je controlam o poder do Vaticano e que o estão guiando, e à sua Igreja, na di­
reção do mundo do século XXI e para além dele.
Prazerosamente dizem eles adeus ao vetusto cenário dos Conclaves, na
Sistina. O resultado da Eleição não será indicado ao mundo exterior por vo-
lutas de fumaça branca saída de um forno aceso com os papéis contendo os
votos dos Eleitores. Será comunicado eletronicamente, pelo radar e pela ima­
gem da televisão. E o novo Papa dará sua bênção, não do balcão frontal da
Basílica de São Pedro, debruçado sobre o Monte Vaticano e a Praça e sobre
Roma, como foi feito até agora. Estará de pé no palco do Nervi, diante da
“Ressurreição”, de Fazzini e, televisado na hora para os quatro cantos do
mundo, dará sua bênção e dirá algumas breves palavras, que ecoarão através
das ondas eletromagnéticas numa tradução simultânea em quatorze idiomas.
“Para as futuras eleições de Papas, precisamos de um espaço amplo” , foi
a enigmática resposta de Paulo, quando lhe perguntaram porque havia feito
aquela mudança. O fato é que ele estava agindo, naquele particular, como
agira em anos anteriores em relação a outros assuntos. Proibira a Missa Latina,
embora os Bispos presentes ao II Concílio Vaticano se declarassem a favor da
Missa Latina. Insistira em que o padre ficasse de frente para o povo, enquan­
to rezava a missa, embora nem os Bispos nem o povo desejassem a mudança.
Paulo visualiza uma maneira inteiramente nova de eleger os Papas; se não for
o seguinte, seu próprio sucessor, então pelo menos que seja o Papa que se se­
guir a esse. Algumas pessoas que conversaram com ele saíram com a impressão
de que Paulo pensava nas primeiras eleições romanas, quando todos os cris­
tãos de Roma se reuniam num lugar e escolhiam seu bispo por aclamação,
num método primitivo de votação.
E numa data mais distante, assim dizem os boatos que correm em Roma,
outro candidato a Papa aparecerá naquele palco do Nervi e será escolhido não
num Conclave, mas por um sistema novo, nunca tentado, um sistema global,
que será a versão século XXI da antiga prática da Igreja Cristã de Roma, quan­
do umas poucas centenas se reuniam para escolher seu líder espiritual. Vox
populi. A voz do povo.

J06
Boletim Especial

COMO SE DISPÕEM OS VOTOS, NAS VÉSPERAS DO CONCLA VE 82

A partir do final do outono de 1977, parece haver uma nítida maioria de


Cardeais-Eleitores favorável ao que veio a ser conhecido como a Política Ge­
ral. Isso, em essência, parece ser mais ou menos idêntico à posição dos conser­
vadores —requer um Papa italiano, mas não pertencente à Cúria, que venha a
admitir mudanças graduais na Igreja.
Dos 118 Cardeais-Eleitores, há 28 italianos, 31 europeus, 18 latino-ameri-
canos, 14 norte-americanos, 10 africanos, 12 asiáticos e 5 da Oceânia. Em ida­
de, vão dos 49 (Ribeiro, de Portugal; Sin, de Manilha) aos 79 anos (Shehan,
de Baltimore; Violardo, de Roma). Há 22 na casa dos cinqüenta; mais de dois
terços estão entre 63 e 75. Se o Conclave 82 não for realizado antes de de­
zembro de 1978, dois - Shehan e Violardo - serão inelegíveis.
O Conclave 82 promete ser tumultuado por muitas razões. Os Cardeais
dos Estados Unidos, pela primeira vez na história, irão fazer uso de seu peso.
Há - e pela primeira vez na história — uma minoria de Cardeais italianos.
Qualquer outra coisa a parte, algumas personalidades muito poderosas e de
opiniões opostas participarão do Conclave, cada uma delas exercitando pode­
rosos dotes e comandando fortes seguidores.
Luigi Ciappi, o florentino de 69 anos, passou a maior parte da vida dedica­
do a estudos teológicos e á direção espiritual das almas. Na verdade, todo
mundo sabe que ele é, antes de qualquer coisa, um teólogo, um confessor, um
dos últimos e verdadeiros “mentores espirituais” dos velhos tempos. Todos
confiam nele. Membro da Ordem Dominicana, antigo deão da faculdade de
teologia da Pontifícia Universidade Angélica de Roma, feito cardeal somente
em 1977, o 85? sacerdote dominicano, desde 1213, a ser nomeado Mestre do
107
Santo Palácio —o teólogo do Papa —Ciappi é também o conselheiro espiri­
tual do Papa Paulo VI, assessor da Secretaria de Estado de Viliot e da toda-po-
derosa Congregação da Fé. Ciappi é sempre ascético, calmo no comportamen­
to, prudente nas palavras.
O candidato favorito dos tradicionalistas é Pericle Felici. De 65 anos de
idade, homem que fez carreira no Vaticano, Felici fez seu nome como Secre-
tário-Geral durante o II Concílio Vaticano. A maioria das pessoas tem medo
de Felici e somente alguns de fato gostam dele. Não que não seja pessoa de
quem se possa gostar. Mas Felici é o mais velho e o mais experiente elemen­
to do Vaticano em matéria relacionada com os encontros internacionais de
bispos e cardeais. Como Secretário do II Concílio Vaticano, nas garras de uma
coligação de bispos altamente organizada, inteligentemente desdobrada e sem­
pre inescrupulosamente liberal, Felici quase conseguiu ser mais esperto do que
o grupo todo. Não completamente! Mas quase. Sabe manobrar “a refinada
mão romana”, como diz o ditado. Tem muitos “amigos”. É todo cetim, não
há sinal de aço, todo sibilantes e nenhuma gutural, todo paz e esperança, na­
da de guerra, nada de desespero. Mesmo quando perde, Felici raramente deixa
de ter equilíbrio em seu julgamento. Se a idéia de um Papa tradicionalista pa­
ra sucessor de Paulo VI for seriamente considerada, o primeiro papabile será
Felici.
Os conservadores reivindicam para si próprios uma posição vanguardeira:
uma mudança cuidadosa e gradual, para que haja adaptação às modificações
da sociedade moderna, um tipo qualquer de freio para a balbúrdia de mudan­
ças que o Papa Paulo VI permitiu e impôs. O principal papabile conservador é
o Cardeal Sergio Pignedoli, com dois correndo em segundo lugar, os Cardeais
Paolo Bertoli e Sebastiano Baggio.
Sergio Pignedoli, de 68 anos, que fez carreira no Vaticano, é Cardeal des­
de 1973. Antigo Capelão da Marinha na segunda guerra mundial, Delegado
Apostólico na África e no Canadá, atualmente Prefeito do Secretariado Vati­
cano para as Relações com os Não-cristãos, Pignedoli é poliglota, muito viaja­
do, profundo conhecedor de líderes muçulmanos, budistas e hindus. Ê consi­
derado inaceitável pela coligação tradicionalista —acham-no muito interessa­
do em granjear popularidade, demasiadamente disposto a entrar em acordo
com não-católicos. Os progressistas não gostam dele porque não fará mudan­
ças tão rápida ou furiosamente quanto consideram bastante. Mas Pignedoli já
deixou que todo mundo ficasse sabendo que podem ser feitos “ajustamen­
tos”, para suficiente acomodação de tradicionalistas e progressistas, de modo
que se possa conseguir um entendimento que funcione, no contexto do arca­
bouço conservador. Enquanto isso, ele próprio está mais do que disposto a
ser eleito Papa. E tem sido o papabile favorito de Paulo VI.
O Cardeal Paolo Bertoli, de 70 anos, é um enigma para a maior parte dos
romanos e inteiramente desconhecido da maioria dos Cardeais estrangeiros.
Homem que fez carreira no Vaticano, antigo Núncio Apostólico em Paris,
108
cardeal aos 61 anos de idade, Bertoli só é realmente conhecido por sua abso­
luta capacidade de decisão. Certa vez, quando um empregado preferido de
seu gabinete no Vaticano foi substituído por outro que não era de sua esco­
lha, Bertoli simplesmente bateu a porta e abandonou imediatamente o cargo
de chefe de um poderoso ministério do Vaticano. No momento, ele detém vá­
rios postos importantes na Cúria e é imprevisível como candidato a Papa. Pou­
ca gente sabe que Paolo Bertoli é um estudioso apaixonado de religião e de
misticismo; que goza da confiança de estadistas em ambos os lados do Atlânti­
co —e não liga a mínima importância ao que as pessoas possam pensar.
Um concorrente conservador de muito menores chances é Baggio, de 64
anos. Antigo Núncio Apostólico no Chile e no Brasil, antigo Delegado Apos­
tólico no Canadá e antigo Arcebispo da Sardenha, Baggio é agora o chefe do
poderoso órgão do Vaticano que é a Congregação dos Bispos. Atarracado, de
rosto quadrado, encantador, sagaz, o veneziano Baggio tem um conhecimento
incomparável dos bispos da Igreja, porque cada bispo tem que fazer uma visi­
ta a Roma de cinco em cinco anos, e cada um deles tem que passar pelo gabi­
nete de Baggio. Tem, também, amplo conhecimento da América Latina e de
seus problemas. Baggio não goza da confiança dos tradicionalistas, como teó­
logo tem fraca reputação e, provavelmente, daria prosseguimento às políti­
cas de Paulo VI.
A maioria presentemente atuante por trás de Pignedoli como o conser­
vador de maiores possibilidades é de fato formidável e, pela altura do outono
de 1977, chega a exceder a maioria de dois terços mais um necessária para dar
validade à eleição de um Papa em Conclave. Mas, tal maioria não é atingida de
uma forma simples e direta, porque, entre si, os Cardeais-Eleitores estão divi­
didos em quatro grupos principais, nenhum deles comandando a maioria ne­
cessária. Os conservadores poderiam conseguir a garantia de uma real maioria
no outono de 1977, com base em acordos previstos e sujeitos a muita discus­
são.
Independentemente de qualquer entendimento e de alianças objetivas, os
tradicionalistas são em número de cinqüenta, muito aquém da maioria dos
dois terços mais um.
Os conservadores, entre si, não estão em situação melhor; com apenas
trinta e cinco votos de fato garantidos, também não dispõem de maioria deci­
siva.
Os demais Eleitores estão divididos entre vinte e seis progressistas e sete
radicais. Portanto, esquematizando, as coligações são:

Tradicionalistas 50
Conservadores 35
Progressistas 26
Radicais 7
118
109
O catalisador para essa situação que não conduz à vitória é a sempre cres­
cente pressão dos bispos católicos romanos progressistas, na Europa, na Amé­
rica Latina e, em menor proporção, nos Estados Unidos. Há a possibilidade de
uma aliança entre conservadores e progressistas, dando uma maioria simples
de 61. Nas idas e vindas das manobras eleitorais do Conclave, seria relativa­
mente fácil a uma maioria simples de 61 arrebanhar os dezoito votos restan­
tes, exigidos para a maioria de dois terços mais um.
Para eliminar essa possibilidade, os tradicionalistas (50) estariam dispos­
tos a fazer um acordo com os conservadores (35), desse modo produzindo
mais do que a maioria absoluta necessária para a eleição. O ponto principal
sobre que os tradicionalistas se dispõem a entrar em acordo é o do caráter
eclesiástico do Papa seguinte —deveria ser um italiano, mas não um homem
da Cúria (isto é, não ser membro de qualquer Ministério Vaticano), nem um
romano (isto é, não deveria ser pró-Cúria em suas simpatias).
Se necessário, os conservadores consentirão em apoiar um europeu não-
italiano —o chamado papabile pan-europeu. Um candidato assim dividiria os
progressistas, reduzindo-lhes o número a, pelo menos, metade de seu efetivo
atual. Só em caso de extrema dificuldade e do perigo real de ver o Conclave
descambar violentamente para a esquerda, é que os tradicionalistas apoiarão
um candidato pan-europeu.
O mais provável candidato pan-europeu é um holandês, o Cardeal Jan
Willebrands. Tem 69 anos, o rosto redondo, usa óculos, esse holandês meio
calvo, que goza da confiança de tradicionalistas, de progressistas, de conser­
vadores e de radicais — principalmente porque não ofende nenhum deles.
Pode ser uma garantia para a ortodoxia progressista, ao mesmo tempo que um
pai tolerante face à experimentação de arrojadas idéias progressistas. Durante
quinze anos, chefiou o centro de ecumenismo do Vaticano, o Secretariado pa­
ra a Unidade Cristã. Cardeal já há nove anos, nomeado Primaz da Holanda em
1976, tem sido apelidado de “Holandês Voador” . Ainda atua no centro de
ecumenismo de Roma, enquanto viaja para exercer as funções de Primaz da
Holanda. Willebrands tem-se equilibrado com delicadeza entre as funções que
lhe cabem como Primaz da Igreja da Holanda, que se mantém praticamente
em cisma com Roma, e as de elemento do Vaticano, gozando da confiança
do Papa Paulo e de muitos progressistas italianos.
Surgindo mais e mais freqüentemente nas conversações como um possí­
vel azar na corrida, há Giovanni Benelli. Apelidado por seus inimigos como
“Gauleiter”, “Cossaco”, “IlD uce'\ “Carrasco”, Benelli foi extremamente po­
deroso como Subsecretário de Estado, sob Villot, e destruiu mais de um ni­
nho de proteção política, de empreguismo, de favoritismo, na burocracia do
Vaticano. Foi Benelli o responsável pela remoção de Monsenhor Bugnini, em
certo tempo a mão forte do Vaticano nos assuntos referentes a liturgia e a
culto. Mesmo então, os amigos de Bugnini eram tão poderosos e os inimigos
de Benelli tão fortes que o Papa Paulo não pôde fazer nada pior contra Bugni-
110
ni do que o mandar como Delegado Apostólico para a Teerã do Xá, um posto
de escol na lista diplomática. Mas, pelo menos, foi ele alijado dc qualquer po­
sição importante no Vaticano.
Esse episódio veio a ser o começo da queda de Benelli. Vulnerável como
sabidamente simpatizante do Arcebispo Lefebvre, em oposição a Villot, e
vulnerável como sendo aquele que derrubara Bugnini, como um simples Arce­
bispo e auxiliar do Vaticano Benelli finalmente tornou-se a presa de seus per­
sistentes e poderosos inimigos. Não havia maneira pela qual mesmo o Papa
fosse capaz de proteger a posição dele em Roma. Na verdade, somente a ação
inesperada e unilateral do Papa impediu Benelli de ser exilado e neutralizado
definitivamente. Paulo fez dele Cardeal e Arcebispo de Florença. O Papa con­
cluiu que Benelli ainda teria uma oportunidade de voltar. Estava perto de Ro­
ma, e teria um voto no Conclave. “É claro que Benelli verá seu dia chegar”,
disse Paulo a Villot.
Por instigação de Paulo, Benelli pôs-se em campo para reavivar a idéia de
uma Europa unificada. O sucesso nesse esforço poderá ser o último marco que
Benelli vencerá em seu caminho até o Pontificado.
A formação das coligações progressista e radical é de data tão recente
que nenhum dos Cardeais-Eleitores se destacou ainda como líder dos progres­
sistas, ou dos radicais. As informações que correm em Roma parecem indicar
que um “azarão” é o principal organizador, tanto de progressistas como de ra­
dicais. Embora ninguém tenha certeza, o nome de um Eleitor africano é men­
cionado como sendo o líder progressista, ao mesmo tempo em que o de um
Cardeal anglo-saxão é referido como o do verdadeiro organizador dos radicais.

111
Boletins Especiais —
Da Morte de Paulo até
a Abertura do Conclave 82

QUANDO MORRE O PAPA

Quando os médicos do Papa Paulo VI o declararem clinicamente morto,


o governo provisório do Vaticano caberá a um Cardeal que daí em diante se­
rá intitulado Camerlengo da Igreja Universal nesse momento. Permanecerá
com tal responsabilidade, organizando um governo de zelador, até que o Papa
seguinte seja eleito.
Como Camerlengo, aproxima-se do cadáver que jaz no quarto de dormir
do Papa. Está acompanhado de dois outros Cardeais, ladeado por outros fun­
cionários do Vaticano e é observado por representantes do Estado Italiano e
do corpo diplomático internacional. Bate levemente sobre a testa de Paulo,
por três vezes, com um martelo de prata, de cada vez perguntando: “Giovanni
Battista, estás morto?” Não recebendo qualquer sinal de resposta, o Camer­
lengo pronuncia a frase: “O Papa Paulo está realmente morto.” Esse é o anti-
qüíssimo ritual observado quando morre um Papa.
O Camerlengo remove, depois, o Anel do Pescador do quarto dedo da
mâó direita de Paulo. Será quebrado, juntamente com todos os seus outros si­
netes oficiais, para que ninguém possa usá-los para autenticar um documento
falso.
Um atestado oficial de óbito é preparado por um secretário pontifício. O
Cardeal Camerlengo tranca os apartamentos particulares do Papa falecido.
Juntamente com um pequeno comitê de Cardeais, assume a responsabilidade
de todos os negócios do Vaticano. Cuida do enterro de Paulo e do Conclave,
em que seu sucessor será eleito. Remetem-se as convocações a todos os Car-
deais-Eleitores, comunicando a morte do Papa e declarando a data oficial de
abertura do Conclave 82, em que o sucessor do Papa Paulo será escolhido pe-
112
los Eleitores. O Conclave deve começar, o mais tardar, vinte dias contados a
partir daquele em que morreu o Papa precedente.
Durante nove dias de luto oficial, todas as bandeiras do Vaticano são has­
teadas a meio pau. Os cinco sinos de São Pedro soam numa cadência fúnebre
tradicional, dobrando horas a fio, cada dia, até a noite. Empregados do Vati­
cano preparam o corpo para o enterramento, levando-o e embalsamando-o.
Em seguida é ele levado para a Basílica de São Pedro, onde fica em câmara
ardente, na nave da Basílica, num esquife vermelho, velado pelos Guardas Suí­
ços Pontifícios. Mais tarde é conduzido até a cabeceira do templo, onde o
aguarda o tríplice ataúde papal (um de cipreste, dentro de outro de cedro e
dentro de outro de bronze).
Quando terminam os nove dias de luto oficial, uma Missa de Réquiem é
celebrada em São Pedro, com a presença de todos os Cardeais em Roma, do
corpo diplomático, de representantes do governo e de dezenas de milhares de
católicos romanos. “Concedei-lhe o repouso etemo, ó Senhor” —é o refrão
das exéquias. Uma autoridade do Vaticano pronuncia um elogio público. O
anel quebrado do Papa morto e os sinetes partidos, junto com três bolsas de
veludo contendo amostras de todas as moedas cunhadas durante seu pontifi­
cado, são postos no caixão com o corpo. Os sampetrini, que são os auxiliares
que servem na Catedral, fecham os três caixões com pregos dourados. O Ca-
merlengo e seus assistentes lacram o último caixão e este é então, com o auxí­
lio de roldanas, baixado até a cripta sob o piso de mármore da Basílica e de­
positado no sarcófago que já exibe o nome do Papa morto. Alguns metros
adiante, na mesma cripta, fica o túmulo de Simão Pedro.

ROUPAS PARA ONOVOPAPA

Para o novo Papa que será eleito no Conclave, alfaiates do Vaticano pre­
param três conjuntos de vestes talares: conjuntos de tamanhos grande, médio
e pequeno, compostos de batinas brancas; calçados brancos bordados com
uma cruz de ouro, solidéus brancos, sobrepelizes vermelhas, capas vermelhas,
estolas vermelhas.

OS CARDEAIS-ELEITORES DO CONCLA VE PRESTAM O


JURAMENTO DE EXCLUIR DE SEUS VOTOSPARAA
ESCOLHA DO PAPA TODA INTERFERÊNCIA
OU INFLUÊNCIA EXTERIOR

No dia da abertura do Conclave 82, os Cardeais assistem à missa matinal


do Espírito Santo na Capela Paulina, que constitui parte do edifício principal
do Vaticano adjacente à Basílica de São Pedro. Depois disso, dispersam-se, al-
113
guns voltando a seus hotéis ou a seus apartamentos no Vaticano, alguns para
participar de reuniões ou encontros políticos, alguns para visitar os lugares de
interesse turístico.
Na parte da tarde, reúnem-se de novo na Capela Sistina, juntamente com
o pessoal que trabalhará no futuro Conclave. Sozinhos na Capela, sem a pre­
sença de elementos estranhos, ouvem o Decano dos Cardeais ler a Segunda
Parte da Constituição Especial, elaborada e promulgada pelo Papa Paulo VI
em 19 de outubro de 1975. Seu título: Sobre o Método de Eleição do Pontí­
fice Romano. Os sete capítulos dessa Parte II contêm aproximadamente
5.600 palavras em latim. O Decano dos Cardeais lê para os outros cada uma
dessas palavras.
Ao terminar a leitura, o Decano lê bem alto, em latim, a fórmula estabe­
lecida para o solene juramento do Conclave:

“Cada um e todos nós, Cardeais-Eleitores, reunidos neste Conclave, pro­


metemos, fazemos o voto e furamos um juramento solene e sagrado de
que cada um e todos nós observaremos todas as prescrições e leis contidas
na Constituição Apostólica do Sumo Pontífice Paulo VI, que foi por ele
promulgada em 1? de outubro de 1975, e que começa com as palavras
“Na Eleição do Pontífice Romano... ”

“Nós também fazemos o voto e juramos que quem quer de nós, sob a
Providência Divina, que venha a ser eleito, terá por nós defendidos e pro­
tegidos, para ele, os direitos temporais e espirituais e a liberdade da Santa
Sé. E, se necessário, que continuaremos, para sempre, defendendo esses
direitos e essa liberdade.

“Além disso, prometemos e juramos especialmente que iremos manter se­


cretos, de todos e inclusive de todo o pessoal do Conclave e dos auxilia­
res desse mesmo Conclave, todos os assuntos relacionados de toda e qual­
quer forma com a eleição do Pontífice Romano; igualmente, todos os as­
suntos que, direta ou indiretamente, digam respeito à votação em Concla­
ve ou no local da eleição; e que nunca e de forma alguma violaremos esse
segredo, quer durante o Conclave ou mesmo depois da eleição de um no­
vo Pontífice a menos que algum futuro Pontífice dê para isso uma per­
missão especial ou dispense do segredo mediante documento autenticado.

“Da mesma forma, nunca aceitaremos o encargo de propor um veto ou


uma cláusula eliminatória contra qualquer candidato, sob qualquer aspec­
to ou forma - ainda que sob a forma de um simples desejo - em nome
de quem quer que seja, ou de qualquer autoridade, civil, política ou de
outra natureza. Nem jamais revelaremos ter razão para um veto ou para
uma cláusula eliminatória, ou saber da existência de um ou de outra, não
114
importando a maneira como venhamos a saber disso. Nem ajudaremos de
modo algum nenhuma intervenção desse tipo, ou pedido, ou desejo, ou
nenhum outro movimento oriundo de poderes temporais e de autorida­
des de qualquer hierarquia ou status, nem qualquer grupo de pessoas ou
qualquer indivíduo, que deseje interferir na eleição do Pontífice. ”

Quando o Decano dos Cardeais terminar a recitação desse solene voto de


Conclave, em voz bem alta, cada Cardeal se levantará, dará um passo a frente
e declarará, em voz audível: “E eu, Cardeal______ assim faço voto e juro.”
Depois, colocando a mão direita sobre um exemplar dos Evangelhos, acrescen­
ta: “Assim me ajudem Deus e este Evangelho Divino, que toco com a minha
mão.”

OS CARDEA IS-ELEITORES SÃO INFORMADOS SOBRE O QUE


SE ESPERA QUE FA ÇAM NO CONCLA VE 82

Aos Eleitores e ao pessoal do Conclave juntam-se então membros do cor­


po diplomático, chefes de Estado convidados e convidados especiais. Todos
eles assistem a um sermão especial —a Exortação —sobre os deveres dos Elei­
tores neste Conclave particular, o Conclave 82. O Cardeal que pronuncia a
Exortação é escolhido por sua habilidade verbal, bem como pela reputação
de que goza entre seus pares, quanto à santidade, saber e compreensão.
A Exortação que precede o Conclave 82 será desenvolvida mais ou me­
nos da seguinte maneira:

“Meu Eminentíssimo e Reverendíssimo Senhor Camerlengo! Meus Emi­


nentíssimos e Amados Irmãos, Meus Senhores Cardeais! Reverendíssimos
Bispos e Monsenhores! Amados Padres, Irmãos e Irmãs! Distintíssimos
Senhores e Senhoras! Meus muito queridos irmãos e irmãs cristãos!

“Vinte e um dias atrás, exatamente, a Igreja Universal e todos nós gozáva­


mos da presença de Nosso Muito Amado, Eminente e Santo Senhor, Sua
Santidade o Papa Paulo VI, da mais graciosa memória. E, de então para cá, o
bom Senhor Jesus houve por bem chamar Sua Santidade à Sua casa, para jul­
gamento, para recompensa e para eterna paz.
“Vosso humilde servo teve o privilégio de estar com Sua Santidade em
suas últimas horas. E seja o que for que eu revele aqui sobre os últimos pensa­
mentos de Sua Santidade, faço isso com segura convicção de que tal coisa
constituiu vontade e desejo de Sua Santidade.
“Sua Santidade desejou, acima de tudo, pedir o mais humildemente a
todas as Vossas Eminências, a todas as Vossas Reverências, perdão por qual­
quer prejuízo ou sofrimento que possa ter causado a quem quer que seja du-
11
rante seu pontificado, ou por pensamento, por palavras, ou por atos. E, ao
expressar essa tristeza, Sua Santidade pediu que vos lembreis não da dor ou
da decepção ou do prejuízo a vós causado, mas do perdão de Nosso Senhor
Jesus, perdão que —posso garantir a Vossas Eminências - o Papa Paulo hu­
mildemente buscou em seu leito de morte e que, estou certo, com a ajuda de
Deus Sua Santidade recebeu. E então? Por que não iríamos nós imitar Nosso
Senhor Jesus nessa questão de perdão —já que verdadeiramente devemos
imitá-lo em todas as coisas?
“Este não é o lugar, nem esta a ocasião, para falar em louvor ou julga­
mento de Sua Santidade. Outros farão isso, em tempos futuros. Se Sua San­
tidade entra no tema de minha Exortação, só pode ser na extensão em que
Sua Santidade está vinculada ao próprio tema da Exortação - os deveres dos
Eminentíssimos Cardeais-Eleitores —dos quais, sem o merecer, sou um deles,
neste Conclave 82 que está a ponto de começar.
“Num ponto, Meus Irmãos, entramos neste Conclave a um só tempo com
a mente clara e livre de confusão. Sabemos qual é o nosso dever: escolher um
digno sucessor para Pedro, o Apóstolo, e para o Papa Paulo, de grata memó­
ria. Escolhê-lo tão cuidadosamente e com tal desprendimento pessoal que, ao
fim de nossos trabalhos - porque trabalhos serão, creio eu —possamos em
verdade anunciar à Igreja Universal e ao mundo de homens, de mulheres e de
crianças em redor de nós: “Aprouve ao Espírito Santo e a nós escolher um
Vigário do Senhor Jesus... Temos um Papa!”
“Mas, em outros pontos, estamos tão confusos quanto qualquer um de
nossos contemporâneos, porque, como eles, mas com uma agudeza amarga
que nunca experimentam, somos açoitados por ventos cruéis e atormentados
por incômodos acontecimentos que não nos dão trégua e que ameaçam'nos
conduzir, e conduzir nossa amada Igreja por caminhos que, sabemos, devem
seguramente levar ao soçobro de nossas esperanças e à extinção de nossa pre­
ciosa fé.
“A minha pequena contribuição pessoal, como aquele que foi escolhido
para pronunciar esta Exortação que precede o Conclave, tem a intenção de
ajudar Vossas Eminências em nossa difícil tarefa. É fruto de meu estudo e
reflexão sobre nossa longa e trabalhosa história. E, se há uma lição que me
salta aos olhos vez após vez, das páginas dessa história, é a de que, repetida­
mente, esta Igreja estabelecida em instituição, fundada por Jesus, que sobre­
viveu às catacumbas, que foi elevada ao apogeu pelo Imperador Constantino,
e que sobreviveu através de todos esses séculos - que esta Igreja foi condu­
zida, por eventos humanos incontroláveis, até a beira muito perigosa de um
precipício, até a beirada íngreme e abrupta de um penhasco de decisão e
isso em mais de uma ocasião. Sem desfalecimento, de cada vez, os religiosos
à frente dos negócios da Igreja esquivaram-se a uma decisão inflexível. Mas,
ainda assim, outra e outra vez a Igreja é trazida de novo à frente de uma de­
cisão desse tipo. Até agora, no Conclave 82, quando talvez tenhamos que a
116
enfrentar pela última vez. E, crede-me, tudo que estou dizendo desses santos
homens que vieram antes de nós, e que já foram todos para junto de Deus,
eu o digo sem qualquer intenção de censura ou de condenação.
“Mas, permiti-me que vos dê alguns exemplos simples. O Papa Leão III,
no século VIII, foi levado por variadas razões até um ponto em que já não
podia mais exercer nenhum poder temporal; nenhum poder financeiro, ne­
nhum poder militar, nenhum poder diplomático, nenhum poder político. Re­
nunciou ele então a todos os direitos sobre seu poder temporal e apoiou-se
apenas no poder e na autoridade de Jesus? Aquele pòder que Jesus prometeu,
quando disse a Simão: “Tu és Pedro. A ti darei as Chaves do Reino do Céu”,
Como conta o Evangelho? Renunciou?
“Não. Sua Santidade Leão III, de grata memória, não fez isso. Partiu co­
mo um fugitivo, no lombo de um cavalo, para Paderbom, ajoelhou-se e bei­
jou a mão do Imperador Carlos Magno, que então providenciou para repor
o Papa Leão no exercício ainda mais amplo de todo esse poder temporal.
“A dura decisão —de confiar somente no poder do espírito e no poder
de Jesus —essa dura decisão fora rejeitada.
“Pouco mais de seiscentos anos depois, no Concílio de Constança, os
representantes e governantes das seis maiores nações européias reuniram-se
para reformar a Igreja, que fora destroçada e arruinada pelas disputas entre
Papas e antiPapas. Mas a proposta essencial, ante a mente de todos, era sim­
ples: vamos de uma vez por todas despojar o Papado e a Igreja de Jesus de
seu poder temporal, já que foi precisamente através desse poder que a Igreja
tem sido arrasada por uma série de guerras devastadoras, por doenças, fomes,
massacres, crueldades, profanações, antiPapas, anti-Sínodos, antiCardeais,
ódio, carnificina, tortura, infidelidades, ficando os crentes da Igreja escandali­
zados e confusos.
“Que aconteceu?
“Tão depressa o Papa Martinho V, de grata memória, foi eleito Papa e
ele e sua Cúria de Cardeais dissolveram o Concílio —graças a seu supremo
poder como Papa. E, a despeito do desejo geral de uma reforma, o Papa Mar­
tinho de grata memória voltou para Roma, onde novamente reuniu todos os
elementos do poder temporal do Papa. Prestai bem atenção! Por essa época,
não tinha havido Reforma, não tinha havido Martinho Lutero, nem revolta,
nem estilhaçamento da unidade cristã! Se uma dura decisão pudesse ter sido
enfrentada, pensai na dureza maior - na dor, na carnificina, no sofrimento —
que teria sido evitada.
“Mas a dura, dura decisão foi rejeitada uma vez mais. O Papa só podia
conceber sua autoridade espiritual dentro de um arcabouço de terras, dinhei­
ro, prestígio diplomático e sob o manto da política.
“Quase cem anos mais tarde, em meio à revolta de Lutero, o Papa Cle­
mente VII viu-se completamente despojado de todo esse poder temporal e si­
tiado no Castelo de Santo Angelo, juntamente com alguns Cardeais em lágri-
1
mas, lágrimas pela perda de sua grandeza, diante dos Exércitos Imperiais con­
quistadores, que tinham ocupado o Vaticano, Roma, a Itália e a Europa.
O Vaticano com seu Tesouro, as terras e as propriedades do Papa em Roma,
na Itália, na Sicília, na França e em outros lugares —estava tudo nas mãos de
um exército inimigo, irresistível e sacrílego.
“De novo se sugeriu que tudo ficaria bem, se Sua Santidade e sua Cúria
renunciassem a todo o poder temporal que tinham perdido.
“Que aconteceu?
“O Papa Clemente assinou um acordo segundo o qual pagaria seu pró­
prio resgate e assim poderia escapar do Santo Angelo. Fora de Roma, de novo
reuniu bastante dinheiro, prestígio e armas —em suma, bastante poder tem­
poral - de modo que, finalmente, foi restaurado em seu trono. E passou às
mãos de seu sucessor uma Igreja cuja autoridade espiritual, mais uma vez,
repousava no poder temporal.
“A dura, dura decisão foi novamente rejeitada. Nenhum Papa poderia,
voluntariamente, dispor-se a basear sua autoridade exclusivamente na promes­
sa de Nosso Senhor Jesus.
“Eu iria fatigar Vossa Eminência e todos os meus muito queridos ouvin­
tes se me detivesse, com grande detalhe, em outros exemplos. Mas Sua Santi­
dade Pio VI, de grata memória, e Sua Santidade o Papa Pio VII, de grata me­
mória, não enfrentaram a mesma decisão? E não lutaram eles com unhas e
dentes — e com sucesso — por esse poder temporal? E não constituiu isso
uma recusa da parte deles - tudo com plena consciência, é claro —em tomar
essa muito, muito dura decisão?
“E quando Sua Santidade Pio IX, de santa e grata memória, se recusou a
abandonar o Vaticano, em 1870, em vez disso tornando-se, dessa forma, seu
famoso “Prisioneiro”, não estava ele também se recusando a tomar essa dura
decisão?
“E mesmo quando, em 1929, Sua Santidade o Papa Pio XI, de abençoa­
da memória, assinou a Concordata de Latrão com o governo italiano, renun­
ciando ao poder papal perdido em 1870 e aceitando enormes indenizações
financeiras por tal perda, não estava ele rejeitando a mesma dura decisão?
“Em suma, na medida em que Papas e clérigos têm insistido em revestir
o exercício de seu poder espiritual — o poder de Pedro —da armadura, da
arrogância e do poder do dinheiro, da diplomacia, da influência política, dos
interesses vinculados ao sistema, nío têm todos eles rejeitado essa dura, mui­
to, muito dura decisíTo?
“E, Meus Irmãos Cardeais, não temos nós - cada um de nós —provado
desse poder, de uma forma ou de outra? E não é ele doce ao paladar? E não
c difícil renunciar-se a ele? E não é algo muito fácil de ser racionalizado, para
se concluir que é uma reconhecida necessidade de nossa missão espiritual —
quando, na realidade, sabemos, no fundo de nossos corações, que degrada,
118
torna impuras e, finalmente, distorce nossas intenções espirituais? Ein? Não é
assim mesmo?
“Uma pergunta difícil, Meus Irmãos! E uma pergunta penosa, Meus Ir­
mãos! Mas uma pergunta a que temos que responder. Uma pergunta que te­
mos que fazer. Sem qualquer desdouro para essa longa série de homens
ilustres, todos os 262 — porque excluo o Abençoado Apóstolo Paulo de
minhas considerações — que foram chamados por Jesus para serem seus
Vigários, e que morreram com a visão do Crucificado diante de seus olhos e
em seus espíritos. Não! Nenhum desdouro!
“Mas ouçamos suas vozes, que agora nos falam com toda a sabedoria da
perspectiva de séculos, e com a impecável clareza que lhes vem da Luz emana­
da da face eterna do próprio Deus. Isso, Meus Irmãos, porque temos hoje mui­
to poucas alternativas, cercados como estamos por estruturas novas e por ajus­
tamentos jamais referidos, neste mundo moderno.
“Novas formas de vida estão surgindo em redor de nós —todas elas desfe­
chadas com uma nova ótica mental, psíquica e espiritual. E, na medida em
que tomam seu lugar, na massa confusa da sociedade humana, os sombrios an­
jos portadores do desespero, da ira, da impotência, do ateísmo, da impiedade,
envolvem cada uma delas em trevas e ameaças, de modo que tais formas se
confundem, em seus pontos de junção, em nós de dúvida e de temor.
“Para nós, Eleitores, a tarefa consiste em desfazer esse envolvimento, de­
satar esses nós, descobrir novas formas de ressurreição para a Igreja, e revelar
novas alegrias a todos os filhos e filhas de nosso Pai comum e universal, Deus,
o Majestoso, Deus, o Amoroso.
“As vozes de todos os passados Papas e Santos, certamente, nos dizem
agora: “Não deis atenção à voz do banqueiro, nem à voz do corretor, nem à
voz do bispo-príncipe, ou do ambicioso cardeal, nem à família dinástica, nem
aos intermediários, nem aos manipuladores de monopólios —mas à voz de Je­
sus falando do íntimo de nossa família humana. Vós, nossos descendentes es­
pirituais — tende compaixão dos erros que cometemos, e imitai-nos naquilo
que deveríamos ter feito, não no que fizemos.”
“Não vos enganeis, Eminentíssimos Irmãos! Essa mesma difícil decisão
tantas vezes apresentada, tantas vezes rejeitada, vai emergir mais uma vez, ho­
je. Está postada, impassível, à porta do Conclave 82, batendo insistentemente,
exigindo admissão, exigindo resposta.
“Se não lhe permitirmos a entrada, então estaremos deixando o próprio
Grande Deus no portal do tempo, onde esperará pacientemente por outra ge­
ração e por uma subseqüente raça de homens e mulheres. Porque essa foi a
decisão tomada por Deus através do Senhor Jesus: permanecer conosco, os
humanos, e conosco ficar até que, finalmente, Ele reduza a fragmentos a ca­
mada de tempo em que está embrulhada a história de nossa Igreja, em que es­
tá envolvida toda a história da Humanidade, e este mundo deixe de existir.
“Mas, se agíssemos dessa maneira, estaríamos errando. Certamente sere­
mos perdoados, mas teremos errado. Porque, mais do que qualquer das super­
potências, mais do que qualquer outra instituição sobre a Terra, somos obri­
gados a responder aos devastadores quesitos que os seres humanos nos estão
agora dirigindo: “Sois vós, realmente, os mensageiros do Espírito Santo? Ten­
des vós as vossas próprias armas espirituais? 0 vosso próprio poder moraP. Ou
sois apenas mais do que os manipuladores de poder de habilidade comum, que
se aferram a nossas esperanças, que capitalizam sobre nossos sonhos desfeitos?
Sabemos quem dizeis que foi Jesus. Mas, dizei-nos: quem sois vós? Que sois
vós?” Esses os difíceis, difíceis quesitos de nossos contemporâneos.
“Se, contudo, abrirmos as portas de nosso Conclave e admitirmos entre
nós essa difícil decisão, se lhe permitirmos a entrada em nosso meio, é mais
do que certo que teremos duras reflexões a fazer, duras palavras a trocar uns
com os outros, duras ações a discutir e a considerar.
“Se perseverarmos, Meus Eminentes Irmãos, no mistério da inocente con­
fiança e a ele juntarmos o poder do entusiasmo, teremos condições de nos vol­
tar para o nosso mundo, em toda a sua confusão de paz e de guerra, de nasci­
mento e de morte, de amor e de ódio, de esperança e de desespero, de alegria
e de tristeza, de juventude e de velhice —de nos voltar para esse mundo e di­
zer: “Somos portadores da Boa Nova para vós e para nós mesmos! Escutai-nos,
por favor!”
“E lhes diremos, em tons que irão compreender e em palavras de que não
irão duvidar: “Tudo aquilo que é tocado por Jesus tem significado. E Ele nos
tocou, em todos nós. Em cada um de nós. E em nossa Igreja. E neste Vatica­
no. E nesta Roma. E na Itália. E neste universo humano. Não somos ceifados
pelo tempo, como um pouco de cereal. E este universo náo vagueia por mares
que vagueiam, eles próprios, em mais vastos oceanos, que por sua vez afun­
dam em profundezas sem fim. Porque a Palavra se fez Carne e viveu entre nós.
E toda a Carne testemunhou a Sua glória.”
“Que o senhor nos abençoe a todos. Terminei.
“Amém.”

AS CERIMÔNIAS FINAIS ISOLAM OS CARDEAIS ELEITORES


DO MUNDO EXTERIOR

Depois da Exortação y todos passam da Capela Sistina para a Paulina. Lá,


o pessoal de serviço no Conclave presta juramento. Seu compromisso profis­
sional diz respeito ao segredo do Conclave e ao desempenho de seus deveres.
Na presença de todos os Cardeajs-Eleitores e dos visitantes, cada um dos ele­
mentos que compõem esse pessoal e os demais participantes avança um passo,
isoladamente, e jura:

120
“Eu,--------------- prometo e juro desempenhar meus deveres com dili­
gência e religiosidade, de acordo com as regras estabelecidas pelo Sumo
Pontífice e as normas traçadas pelo Sacro Colégio dos Cardeais.”

Depois, pondo a mão sobre os Evangelhos, acrescenta: “Assim me ajude Deus


e este Santo Evangelho, que toco com a minha mão.”
Os Cardeais-Eleitores e o pessoal do Conclave permanecem, então, na
Capela Paulina, enquanto todos os visitantes e convidados são solicitados a
sair. O Camerlengo, tendo a seu lado três outros Cardeais, verifica se nenhuma
pessoa não-autorizada permaneceu no local. Ao mesmo tempo, do outro lado
da Praça de São Pedro, no “Salão Superior” do Nervi, e no Domus Mariae,
mais ou menos a um quilômetro e meio de distância, as mesmas precauções
são tomadas por funcionários designados pelo Camerlengo e seu comitê ad
hoc de Cardeais Governantes. O pessoal da fiscalização eletrônica verifica,
igualmente, todos os três locais.
O Conclave nSo está oficial e legalmente instalado até que todos esses três
lugares estejam plenamente seguros e que o Camerlengo tenha recebido, pes­
soalmente, informações do Nervi e do Domus Mariae confirmando o fato de
que nenhuma pessoa — ou pessoas —não-autorizada permanece dentro dos
limites da área do Conclave, no Nervi e no Domus Mariae, e de que as equipes
de fiscalização estão convencidas de que tudo está seguro. Os Cardeais-Eleito­
res podem então deixar a Capela, para esperar o toque de um sino, anuncian­
do-lhes que, dentro de vinte minutos, a Sessão Preliminar do Conclave 82 será
realizada na Sistina.

121
O CONCLAVE FINAL
A Tarde da Instalação

DAS 18:45 ÀS 19 HORAS

Na primeira tarde do Conclave 82, assim que todo o pessoal que dele participa
faz o juramento de preservar o segredo do Conclave, o Camerlengo tem umas
poucas palavras a dizer, antes que todos se reunam na Sessão Preliminar. Num
latim tranqüilo, distintamente pronunciado, diz simplesmente: "Meus Senho­
res Cardeais, temos uns vinte minutos, antes de nossa reunião preliminar que,
como sabeis, será realizada na Capela Sistina. Comecemos nosso trabalho com
confiança na bênção e na orientação de Deus. Espero que vossas acomodações
estejam a vosso contento, e que nossas assembléias diárias no Auditório Nervi
sejam frutíferas e rápidas.” Lança os olhos sobre o jovem Monsenhor que está
a seu lado: “O Monsenhor estará sempre aqui, para vos ajudar em tudo que se­
ja possível.”
Salvo em raras ocasiões durante as Sessões do Conclave, esse tom de voz,
medido e tranqüilo, é a regra não-escrita das conversações e da conduta do
Conclave. O tom é baixo. Sem pressa. Confiante. Sem paixão. Apenas insinua­
do. Em contrário a isso, fora das Sessões, os Eleitores poderão se comunicar
como desejarem —com veemência, apaixonadamente.
Agora, quando o Camerlengo termina, os Cardeais começam a deixar a
Capela e se agrupam fora das portas principais. Ao fazê-lo, o sino do Conclave
toca com uma sonoridade aguda, em meio-tom; são dezoito horas e quarenta
e cinco minutos, agora. Em um quarto de hora, a reunião inaugural do Con­
clave 82 estará sendo realizada.
Do lado de fora, no largo corredor, ladeado por paredes altas cobertas de
afrescos, o teto igualmente pintado, os Cardeais demoram um pouco. A maior
parte deles estudou a programação. Um ou dois perguntam ao vizinho que sig­
nifica o toque do sino, mas acima de tudo como um meio de aliviar a tensão,
ou de quebrar o gelo. Os Cardeais Kand, Franzus e Ni Kan dirigem-se ao Ca-
125
merlengo, que parou para uma conversinha com Delacoste e Borromini. Os
três têm aJgo a perguntar ao Camerlengo. Delacoste e Borromini afastam-se.
Inclinando-se da altura que o torna desajeitado para poder ouvir os três Car­
deais, o Camerlengo sacode vigorosamente a cabeça. Depois curva-se num
cumprimento na direção de todos, lança um rápido olhar de reconhecimento
a uns poucos rostos mais familiares, faz um sinal de cabeça ao jovem Monse­
nhor seu assistente, que ficará e responderá às perguntas, e depois desaparece,
descendo o corredor para seus aposentos, seguido por Kand, Franzus e Ni
Kan.
Dois ou três pequenos grupos de Cardeais continuam conversando. Cal-
der e Eakins, dos Estados Unidos, estão com Bonkowski, da Polônia. Um gru­
po de latino-americanos — entre eles Lynch e Ribera —conversa, excitada­
mente, com os Cardeais espanhóis. Adiante, num canto, Hopper, da África, e
alguns Cardeais da Comunidade Britânica — Hartley e Copley - ouvem o
que dizem Coutinho e os outros hindus, Chera, Desai, Constable. Os italianos
formam pequenos aglomerados de seis ou sete em torno de duas ou três figu-
ras-chaves —o velho e combativo Riccioni, o efervescente Lombardi e Dome-
nico, de Roma.
Aos poucos, na proporção em que todo mundo vai indo embora, o jovem
Monsenhor fica ali sozinho, o silêncio crescendo em tomo dele. Quando todos
se vão, ele abre uma das portas da Capela Sistina, para verificar ainda uma vez
que tudo está em ordem. Sorri, ao perceber o vulto leve ajoelhado do lado di­
reito do altar: “Domenico”, murmura para si mesmo. “Quem mais poderia
ser!”
Fecha a porta silenciosamente e caminha pelo corredor abaixo, para o ga­
binete do Camerlengo.

Do lado de fora, no Pátio de São Damasio, dois guardas de serviço caminham


para lá e para cá, diante das portas principais que conduzem à área da Capela
Sistina. À entrada do Pátio, o Príncipe Chigi, Marechal do Conclave, dá as ins­
truções finais a seus ajudantes. A bandeira pontifícia, branca e amarela, foi
baixada desde a morte de Paulo VI e não será erguida de novo até que o novo
Papa tenha seu nome declarado, mais ou menos daqui a uns dois ou três dias.
A bandeira da família Chigi tremula no lugar que lhe cabe. O Príncipe Chigi
entra numa limusine que espera ali perto e sai pelo arco do portão no pátio,
atravessa a Praça de São Pedro, cruza o Tibre pela Ponte de Santo Angelo e
vai para o Palácio Chigi, para jantar.
Na extremidade superior da Praça, perto dos degraus de São Pedro, uma
aglomeração de turistas —romanos fazendo turismo, freiras, padres, algumas
equipes de TV com seu equipamento —ainda ronda por ali, como se não es­
tivesse conformada em ver o fim da agitação e da pompa da abertura do Con­
clave. Lá no alto, num apartamento alugado na Via delia Conciliazione, que
126
conduz diretamente á Praça de São Pedro, dois homens estão sentados junto
a uma mesa tipo consolo, girando um botão de vez em quando e ouvindo a
transmissão do rádio. Depois de alguns minutos, um deles se levanta, vai ao te­
lefone e disca um número. Quando consegue resposta, diz apenas: "Contato
está feito e é contínuo. Controle exato.”
Na cidade, a vida noturna começa. Os restaurantes na Piazza Navona e ao
longo da Via Veneto estão-se enchendo de gente. Acima, em volta da Escada­
ria Espanhola e por toda a extensão do Corso, os pivetes e as garotas prostitu­
tas misturam-se às multidões que passeiam. No estrangeiro, os Núncios Apos­
tólicos e Delegados Pontifícios, em Washington, Londres, Paris, Buenos Aires
e outras capitais informam, aos governos de que são hóspedes, que o Conclave
começou. O rádio, a televisão e os jornais de todo o mundo transmitem a mes­
ma mensagem.
O silêncio envolve a Basílica de São Pedro e o Palácio Apostólico. O Car­
deal Domenico reza na Sistina: “Senhor Jesus, olhai-nos a todos com piedade.
Prometestes estar conosco em todos os dias e que todas as forças de Satã não
destruiriam vossa Igreja. Ajudai-nos agora. Ajudai a vossa Igreja. Não podemos
nos ajudar a nós mesmos. Não sabemos o que fazer. Não temos a visão que é
dada pelo amor, nem a grandeza da humildade. Aqueles que deviam ser nossos
irmãos são nossos inimigos. Os que deveríamos evitar são nossos aliados. Aju­
dai-nos, Senhor Jesus. Ajudai nossos irmãos. Ajudai aqueles a quem não aju­
damos, mas que apenas usamos. Ajudai-nos, Senhor Jesus...”

O jovem Monsenhor chega ao gabinete do Camerlengo. Kand e Ni Kan já se


foram. Eles e o Cardeal Franzus tinham todos chegado a Roma tendo apenas
o tempo justo para alcançar o início do Conclave e, ao contrário da maior par­
te dos outros 118 Cardeais-Eleitores, não haviam recebido todos os Documen­
tos sobre a Situação antes da chegada. Kand não os recebera porque o Vatica­
no sabe que não pode ter certeza de que coisa alguma permaneça confiden­
cial no país comunista de onde ele vem; Ni Kan, em razão de uma prolonga­
da ausência de Hong Kong e de Taiwan, durante a qual não pôde ser alcan­
çado - correndo o boato de que esteve em missão secreta do Papa Paulo, em
Pequim; Franzus, porque o Vaticano não confia inteiramente nele.
Kand e Ni Kan tinham apanhado suas cópias dos Documentos sobre a Si­
tuação com o Camerlengo e foram atender ao conselho dele: “Ide e lêde-os
junto com alguns outros cardeais que já tiveram tempo de examiná-los cuida­
dosamente; dessa maneira, podereis chegar aos pontos essenciais de cada-Do-
cumento antes da Primeira Sessão, pela manhã.”
Somente Franzus tinha ficado. Ao entrar no aposento, o Monsenhor per­
cebe uma certa exaltação. Franzus está perguntando ao Camerlengo pelos
“outros relatórios”. Exaltação, no grave decoro do Conclave, descobre-se atra-
1
vés da rígida polidez de uma formalidade extrema e dos olhos inamistosos dos
adversários.
O Camerlengo lamenta que nffo tenha outros relatórios para entregar ao
Eminentíssimo Cardeal.
Nesse caso, não deve ser exato o que está sendo dito pelos outros Emi­
nentíssimos Eleitores.
— Bem, então, se estamos nos compreendendo um ao outro... —Não é
necessário que o Camerlengo termine a frase, só que dê o seu sorriso, bem co­
nhecido em Roma - diz um mundo de coisas, e esconde outro.
Franzus não sorri. Mas seu tom de voz é sempre controlado:
— Compreendo exata e precisamente.
0 Camerlengo sabe que isso é apenas uma ação preliminar do primeiro
tempo do encontro com Franzus e outros;
— Já começou, — o Monsenhor ouve-o resmungar, depois que Franzus
saiu.
O sino toca o sinal das seis e quarenta e cinco. O jovem Monsenhor sai.
Avisará o Camerlengo, quando todos os Eleitores estiverem presentes na Ca­
pela.
A Capela Sistina está bem iluminada por mais seis lâmpadas, instaladas
para a ocasião. Quando os Cardeais vão ocupando seus assentos, há uma sensa­
ção discreta mas bem perceptível de excitação, de alegria. A maior parte nun­
ca esteve em Conclave, antes. Os poucos que já tiveram tal experiência têm
uma certa premonição. Os interesses são grandes, muito maiores, desta vez, do
que o foram antes.
As fileiras de Cardeais, sentados sob o enorme teto da Sistina, não são
minimizadas pela imensa altura, mas antes parecem ajustar-se ali, como se- to­
da a beleza, dignidade e magnificência da Capela tivessem por objetivo envol­
vê-las para sempre. Cada Cardeal-Eleitor se acomoda, olha tranqüilamente em
torno de si, de vez em quando ergue os olhos na direção do altar-mor, faz um
gesto de reconhecimento para algum amigo, ou contempla as paredes. As ves­
tes talares, em púrpura e em branco, usadas por todos, parecem ser o mais na­
tural dos acompanhamentos para a cascata de cores e matizes dos afrescos de
Michelangelo: Deus criando Adão, o Dilúvio, a Criação de Eva, o Juízo Final,
a Divindade.

A Sessão Preliminar

Pouco depois das 7 horas, o Camerlengo entra, acompanhado por dois


Cardeais-Assistentes. Todos se levantam. O jovem Monsenhor fica do lado de
fora, fecha e tranca as portas, e senta-se junto a uma mesinha, para esperar e
vigiar. Não pode ouvir nada do que acontece lá dentro.
O Camerlengo vai até o centro do santuário, na extremidade da Capela,
128
ajoelha-se por um momento diante do altar-mor, depois se levanta e caminha
afé seu lugar, no meio da longa mesa presidencial colocada diante dos Car­
deais.
Mais de um Camerlengo, saindo de Conclaves anteriores, já falou desse
momento: do efeito que teve sobre ele essa primeira visão dos Cardeais reu­
nidos. Todos os olhos estão pregados nele. Foi quem organizou o Conclave.
Ele, como nenhum outro homem, sabe dos interesses, das paixões, dos temas
em jogo. Tomou, necessariamente, decisões arbitrárias, que irão afetar o cur­
so do Conclave e assim, de muitas maneiras, o da Igreja de Jesus.
O Conclave do Camerlengo é diferente dos mais recentes em alguns aspec­
tos importantes. Os trajes dos Cardeais são os mesmos. Os rostos é que dife­
rem. Negros, brancos, amarelos. E suas mentes diferem. Mas, mesmo nos Con­
claves comuns, é a concentração de responsabilidades que subitamente im­
pressiona o Camerlengo, quando ele se vê diante do “seu” Conclave, nos mo­
mentos iniciais. Em 1939, quando o Cardeal Pacelli, como Camerlengo, se
voltou para encarar os cardeais, estes viram gotas de suor se formando na testa
daquele experiente, arrogante e supremamente autoconfiante diplomata do
Vaticano.
Estranho, a gente poderia pensar, em relação a homens tão acostumados
ao poder. Mas Conclave é diferente, mesmo para homens assim. “Nada, na­
quele momento”, escreveu o Cardeal Antonelli, no século XIX, “nada se in­
terpõe entre nós e o Senhor Jesus. Em toda a nossa vida tivemos alguém aci­
ma de nós —nossos pais, o padre, o Superior, o Cardeal, o Papa. Mas agora -
ninguém. Quer dizer, até que tenhamos um Papa. E somos nós a entidade. Se
tivermos que pedir ajuda, nosso apelo não alcançará autoridade maior. Esta­
mos à beira do abismo, entre o que é humano e o que é divino.”
O Camerlengo está agora diante dos Cardeais que, enquanto esperam que
ele comece a falar, vêem acima de sua cabeça a figura de Jesus chegando para
o Juízo Final, tal como Michelangelo o pintou. O Camerlengo trai seus senti­
mentos apenas por um ligeiro tique, no canto esquerdo da boca. Tem agora,
no máximo, quinze ou vinte minutos para pôr as coisas em movimento. Essa
reunião preliminar não é uma Sessão do Conclave. Seu objetivo é fazer a apre­
sentação do Conclave, de seus temas e de seus principais candidatos. O Camer­
lengo examina os documentos, a programação e a relação do &Documentos so­
bre a Situação, já de posse dos Eleitores, apontando rapidamente à assembléia
qualquer pequena modificação, pedindo desculpas por qualquer inconveniên­
cia nas acomodações de seus membros, e passando em revista assuntos de or­
dem prática, como medidas tomadas para dietas especiais, os nomes dos pa-
dres-confessores à disposição dos Eleitores, as atividades dos técnicos da vigi­
lância, que serão encontrados de vez em quando verificando a segurança.
Aí então se segue a apresentação formal do Conclave 82 e de seus temas,
e isso é, em parte, uma revisão daquilo que a maioria dos Cardeais-Eleitores
129
já sabe. E, em parte, a expressão de suas próprias conclusões, como Camer-
lengo.
— No decorrer destes últimos meses, Reverendíssimos Senhores Cardeais,
houve uma geral concordância quanto a alguns tópicos importantes, e tudo isso
talvez torne um pouco mais fácil a nossa tarefa aqui. - Ele desce o olhar até a
página que contém a agenda. —Como podeis ver, partindo dos Documentos
sobre a Situação mundial e do Documento sobre a Estrutura Geral, chegamos
ao que podemos chamar de um enfoque comum, baseado numa pxaustiva e
fidedigna análise da condição da Igreja. A parte em que divergimos - dividi­
dos em nada menos que cinco orientações, infelizmente, mas não de forma ir­
reparável —diz Tespeito à maneira de tratar essa condição. Até aqui, nenhum
acordo foi possível, nesse ponto.
— Ora, como Vossas Excelências sabem, há três Documentos sobre a Si­
tuação, preparados exclusivamente por nós, aqui em Roma, nos quais estão
esboçadas minhas próprias recomendações, com base em nossa informação e
experiência. Um desses Documentos refere-se aos acontecimentos e às princi­
pais conseqüências do Pontificado de meu Reverendo Senhor, o Papa Paulo
VI. O segundo resume aquilo que, em retrospecto, vemos como o efeito total,
até agora, do II Concílio Vaticano e de seus decretos. Esse segundo está natu­
ralmente —eu poderia dizer logicamente - vinculado ao primeiro Documen­
to, sobre o reinado do Papa Paulo, uma vez que Sua Santidade exerceu a che­
fia durante os anos imediatamente posteriores ao Concílio. O terceiro Docu­
mento examina, em detalhe, aquilo que, em Roma, vemos como sendo o
movimento dominante de nossa era. Gostaria que todos vós, Reverendos Ir­
mãos, tivésseis lido completamente esses Documentos antes da Primeira
Sessão, amanhã. Documentação de apoio poderá ser obtida, a pedido.
— Quanto a candidatos, temos conhecimento da lista iniciai de nove,
preparada em 1975. Essa lista foi reduzida — acho que razoavelmente —a
cinco. E os meus Senhores Cardeais Masaccio, Vasari, Yiu, Ferro e Lowe têm
os nomes que o maior número, dentre vós, concordou em propor, como sen­
do os mais capazes de obter a maioria necessária para eleição. Tudo isso sem
prejuízo da possibilidade de que o Espírito Santo nos venha a inspirar para
eleger uma outra pessoa, como o Pontífice seguinte. Isso porque, na condição
atual de nossas mentes, mesmo se procedêssemos a seis votações agora mes­
mo, todos vós sabeis tão bem quanto eu que não chegaríamos a um acordo.
Ainda aqui, estamos divididos por este ponto fundamental: como tratar a pre­
sente crise. Porque é uma crise. —Faz uma pausa e corrige a si próprio. —Pe­
lo menos, para uma grande maioria dos Eleitores. - Seus olhos brilham, por
um breve segundo, sobre o Cardeal Thule.
— Nossos pontos de acordo sSo os seguintes:
— Uma grande maioria entende que o próximo Pontífice deveria ser ita­
liano. Alguns desejam um Pontífice não-romano, de caráter não-curial. Isso,
porém, pode ser resolvido mediante concessões.
130
- Todos concordam em que, do ponto de vista ideal, seu pontificado de­
veria durar, pelo menos, dez anos —embora, quanto a esse particular, só pos­
samos dar o melhor de nossos esforços. Vida e morte, geralmente, estão além
de nosso alcance. —O Camerlengo esboça um ligeiro sorriso, depois continua.
- E, finalmente, todos concordam em que deveria ser um teólogo, mestre e
guia, em vez de ser um político, um ativista, um presidente de conselho de
administração.
- A partir desse ponto, começamos a discordar quanto ao tipo de Pontí­
fice mais qualificado para dirigir, no meio da confusão e do perigo que ora
cercam a Igreja. E divergimos nesse ponto porque não podemos, afinal, chegar
a um acordo, entre nós mesmos, quanto ao que está acontecendo com a Igre­
ja, quanto ao tipo de organização eclesial que deveríamos desenvolver. Portan­
to, não podemos nos decidir e concordar quanto ao papel que o Papa seguinte
deverá desempenhar. Daí o ponto morto em que nos encontramos. Porque,
como determina nossa maneira de agir, primeiro estabelecemos as diretrizes
políticas do futuro Pontificado. Depois elegemos o futuro Papa.
O Camerlengo pára nesse ponto. Gostaria muito de continuar. Mas as re­
gras a que obedece seu papel de Camerlengo o proíbem de fazer mais do que
a apresentação dos tópicos. Não obstante, tem que dar um passo muito espe­
cial. Olha longa e cuidadosamente para suas notas, depois levanta os olhos e
os perpassa rapidamente em tomo:
- Rogo vossa indulgência, Excelências, enquanto faço humildemente
uma sugestão. Tendo em vista a enorme importância da situação e nossa pró­
pria discordância nesse grave item das diretrizes políticas, depois de consultar
o Comitê Preparatório de Cardeais decidi que, nesta reunião inicial, seria
aconselhável permitir que um porta-voz de cada um dos grupos principais con­
versasse convosco, de modo que nenhum de nós possa ficar no escuro, no que
concerne ao ponto central de nossa divergência. — O Camerlengo passa o
olhar pela Capela. A maior parte faz um gesto de aquiescência, com a cabeça.
Alguns rostos o encaram, impassíveis, alguns preocupados, alguns confusos,
um ou dois obviamente revoltados. Mas ele tem a maioria e continua:
- Os porta-vozes são, por ordem de antiguidade cardinalícia, o Meu Emi­
nentíssimo Senhor Cardeal Riccioni, do Sul; Meu Emínentíssimo Senhor Car­
deal Thule; Meu Eminentíssimo Senhor Cardeal Lynch; Meu Eminentíssimo
Senhor Cardeal Bassano; e Meu Eminentíssimo Senhor Cardeal Domenico. —
Enquanto diz o nome de cada um, vai olhando para eles. É sabido que o Ca­
merlengo tem a capacidade de manifestar sentimentos diametralmente opos­
tos através do mesmo sorriso. - Cada um dos Meus Eminentíssimos Cardeais
limitará suas observações a um período de dez minutos. Quando oito minutos
tiverem passado, o Reverendo Cardeal será informado de que tem ainda dois
minutos para concluir seus comentários. Por favor, Meus Eminentíssimos Car­
deais! Por favor! Dez minutos! - Depois, com um sorriso, olhando de frente
para o cardeal —Meu Eminentíssimo Senhor Cardeal Giuseppe Riccioni!
131
Riccioni caminha, passando pela longa mesa dos presidentes, ajoelha-se
por um momento no altar, para rezar uma curta prece, como irão fazer todos
os oradores, depois volta-se, avança até a mesa onde está sentado o Camerlen-
go e encara os Eleitores.
— O que tenho a dizer, Eminentíssimos Irmãos, não tomará dez minutos.
Represento um número considerável dentre vós, da Europa, da África e das
Américas. Somos de opinião que o futuro Pontífice deve ser um homem de
disciplina férrea, que saiba comandar, punir, manter a ordem, cortar fora os
ramos apodrecidos, agarrar-se ao depósito de fé.
Há, a essa altura, uma certa agitação entre os Eleitores - são os pés sendo
arrastados, quando os Cardeais se endireitam em seus lugares; papéis, até en­
tão conservados nas mãos, que são colocados nas mesinhas em frente de cada
trono. Riccioni prende-lhes a atenção. Todos têm a percepção da batalha que
se trava entre a velha Igreja, representada por Riccioni, e a nova Igreja dos
progressistas.
— D o Relatório-Resumo do último Pontificado. Só tenho um ponto de
desacordo. Nós, deveria eu dizer, só temos um ponto de desacordo com os
seus autores. O documento conclui que a política do Papa Paulo vacilou entre
dois extremos: rígida observância de determinados pontos doutrinários, como
o celibato dos padres, anticoncepcionais, o Demônio; e abertura quanto a ou­
tras certas circunstâncias, mais pragmáticas — a Ostpolitik do Vaticano, as
inovações na liturgia, desafios à autoridade magisterial da Igreja.
— Não estou de acordo quanto ao fato de que o Papa simplesmente
vacilou. —A voz de Riccioni fica dura e seus olhos estreitam-se. —Acho que
tivemos uns quatorze anos de destruição, de consentida ruína. —Riccioni faz
uma pausa. Quer chocar as pessoas deliberadamente. —Acho, —continua, a
voz cada vez mais cheia de repugnância, —acho que podemos falar do Diabo
solto nas vinhas de Deus.
Ouve-se um murmúrio abafado - comentários passam de um Cardeal pa­
ra outro.
Riccioni levanta a voz, ainda calma e agora quase indiferente:
— Eu sei. Eu sei. Mas observem as conclusões nos Documentos sobre a
Situação. Eu me lembro! Todos vós vos lembrais daquilo que Sua Santidade
Paulo VI disse efetivamente: “A Igreja parece destinada a perecer.” Esses Do­
cumentos sobre a Situação mostram um quadro desolador. E muito embora
eles não estejam hoje em nossa companhia, quero trazer a vossa lembrança o
fato de que esses fiéis cães de guarda da fé, os Meus Senhores Cardeais Otavia-
ni e di Jorio, estão conosco em nossos temores.
Os referidos Cardeais, ambos com mais de oitenta anos de idade, já não
podem participar do Conclave. Mas sua influência ainda é muito grande, sobre
muitos Cardeais mais jovens presentes ao Conclave 82. Há muito pouco tem­
po atrás, esses anciões detinham todo o poder. E Riccioni está lembrando a
132
todo mundo que, no contexto da vida no Vaticano, ainda terão que se haver
com aqueles homens poderosos.
— Nenhum de nós, nenhum desses experimentados homens da Igreja,
acha que a Igreja está destinada a perecer, ou mesmo que dê essa impressão.
Meus Senhores Cardeais, precisamos de um Pontífice que ouça o Senhor Jesus
dizendo: “Toda a força de Satã não prevalecerá contra a minha Igreja” e “Es­
tarei convosco todos os dias, mesmo até o fim dos tempos.” E precisamos de
um Pontífice que seja capaz de agir de modo a preservar a vida da Igreja. —
Esse é o ponto mais próximo a que alguém se atreve a chegar numa aberta
condenação de Paulo VI. Todos percebem que seja qual for o candidato que
Riccioni recomende, dele se esperará que coíba todas as mudanças feitas pelo
Papa Paulo e que restaure a Igreja no rumo em que seguia, antes do Papa João
XXIIL
— É por esta razão que eu e outros propomos como candidato Meu Emi­
nentíssimo Senhor Cardeal Vasari, E peço a Vossas Eminências que levem em
consideração sua folha de serviços, que ouçam seus conselhos e examinem cui­
dadosamente sua candidatura. Recebi delegação para tratar de quaisquer en­
tendimentos e compromissos, em seu nome e em nome deste grupo. Disse o
que tinha a dizer. Agradeço a Vossas Eminências.
Riccioni vira-se para afastar-se da mesa, depois pára, lança um olhar ao
Camerlengo, como quem diz —mais uma palavra, por favor. Fala com fervor e
sentimento —olhando agora firmemente na direção do Cardeal Thule:
— Nem vidas, nem idéias, nem ambições —mesmo que tenhamos identi­
ficado nossas próprias idéias e ambições com a condição da Igreja - nada im­
porta, senão a Igreja. Agradeço a Vossas Eminências.
De rosto solene, Riccioni encaminha-se para seu lugar.
— Meu Eminentíssimo Senhor Cardeal Otto Thule, do Leste! —O Ca­
merlengo quase faz uma careta, em seu esforço para sorrir para Thule. Em to­
dos os anos passados, a piedade de Thule interferiu vigorosamente com os pla­
nos do Camerlengo e com sua abordagem quase geométrica da teologia, da re­
ligião e da fé. Em qualquer posição que se colocasse o Camerlengo, Thule era
o opositor certo das políticas que aquele esposasse.
Agora, de pé a menos de um metro de seu poderoso inimigo, o Camerlen­
go, e diante de seus irmãos Cardeais, Thule dá a impressão de que não há, ab­
solutamente, nenhum problema, nenhuma discórdia entre ele e os outros.
Aquela é a sua hora —se jamais terá uma. Trabalhou durante dias difíceis e
longos meses para tê-la, viajou, fez palestras, escreveu, participou de debates.
0 rosto vincado, leonino, está absolutamente sério. Os olhos de pálpebras pe­
sadas, normalmente sem sombra de sorriso, de olhar perfeitamente fixo, es­
tão agora fortemente iluminados. Tem um ar de profunda reverência, a ex­
pressão aterrada de um homem que vê os abismos de destruição se abrindo a
seus pés, de ambos os lados, mas que mantém os olhos presos no cume bri­
lhante da montanha que está à sua frente.
133
Enquanto ele fala, aqueles que nSo o conheciam ficam espantados ao ver
que um homem tão corpulento, de rosto pesado, de ombros largos, é capaz
de externar tanta brandura, para temperar o aço nos tons de sua voz:
— Meus Senhores Cardeais, trago-vos hoje as novas que milhões de cris­
tãos em nossa Igreja, em todas as Igrejas, que mesmo aqueles fora das Igrejas,
nossos irmãos judeus, nossos irmãos budistas, hindus e muçulmanos já ouvi­
ram. Nunca, antes, tantos povos diversos de nosso globo estiveram dispostos
a confessar que “Jesus é o Senhor” . A suave, avassaladora voz do Espírito!
Essas palavras bastam para dar o tom de tudo que Thule irá dizer. Mui­
tos dos seus ouvintes precisam ouvir apenas uma nuança em sua voz —é o
mais sutil dos sinais de irritação — e perceber o brilho persistente em seus
olhos —a fagulha do fanático devotado —para se recordarem do que o fale­
cido Cardeal Tisserant disse dos orientais: “Se nós, latinos, temos ardor, é
em nossos corações. Mas os orientais têm ardor em seus cérebros.” Thule é
um oriental. Seu cérebro pode queimar e explodir.
Quer se lembrem ou não das palavras de Tisserant, todo mundo compre­
ende logo o profundo compromisso desse homem com tudo aquilo que está
dizendo:
— Sabemos, pelo mundo todo, que está acontecendo uma enorme re­
volução. Como assinalou o Reverendíssimo Camerlengo, divergimos apenas
em nossa interpretação dela. Muitos, especialmente aqueles por quem falo
hoje, acreditam - ou, melhor ainda, sabem - que esta é a hora do Espírito.
Velhas paredes estão desabando. Velhos preconceitos estão desaparecendo.
Estamos todos indispostos, como viajantes prestes a subir, vacilantes, ao con­
vés de um navio estranho, para uma viagem por mares nSo-mapeados, no
rumo de um continente inteiramente novo e completamente desconhecido.
Os próprios céus estão abertos ao homem; e, suspeitam alguns, vozes estra­
nhas estão tentando falar conosco, vindas de além de nossa galáxia.
— Ora, aquilo que faltou aos cristãos está sendo conseguido. Unidade!
Meus Irmãos! Eu próprio sou do centro. Mas, alguns anos atrás, decidi dedicar
um carinho especial aos nossos irmãos não-católicos, e também àqueles católi­
cos que já não se sentiam bem, no contexto de nossa Igreja oficial. Alguém
precisava andar sobre as águas. Com confiança. E não afundar. A Igreja como
instituição —aquilo que nòs representamos —e todos os crentes são uma e a
mesma coisa. Que Deus não nos permita abandonarmos parte alguma da Igreja.
Thule faz uma pausa, passa o olhar por sobre todos os rostos. Tocou al­
guma corda sensível em Makonde, cujos olhos estão brilhando. Outros, entre
os quais Riccioni, o olham de esguelha. Um grande número está francamen­
te fascinado.
— Confiança, Eminentíssimos Irmãos. Confiança. Precisamos ter confian­
ça no Espírito. Já não é mais uma questão de saber se rompemos com o passa­
do. O próprio Senhor já nos desvinculou desse passado. Precisamos abrir nos­
sos corações. — O tom de sua voz eleva-se, exaltado. —Nossos corações! E
134
nossas mentes. Nossas mentes! Precisamos dar um grande passo. Um grande,
gigantesco passo! Em sintonia e no compasso com homens e mulheres através
de nosso caro mundo. Nenhum de nós quer a repetição do cativeiro papal que
Pio IX escolheu em 1870. Nenhum de nós pode. Nenhum de nós quer a Igreja
de Constantino. — Sua mão direita afasta algum obstáculo invisível; a voz é
categórica. —Isso tudo está acabado, passou. O Papa João XXIII disse: “Pieci-
samos voltar à simplicidade que a Igreja tinha quando saiu das maos de Jesus
Cristo.” Não há dúvida quanto a isso!
Depois, baixando a voz para obter o drama do contraste, e dizendo cada
palavra muito lenta e distintamente:
- Com a permissão de Vossas Eminências, humildemente proponho, co­
mo candidato, Meu Eminentíssimo Senhor Cardeal Lowe. - Uma pausa. De­
pois, ainda calmamente. —Vós estais de posse de seus documentos. Conheceis
sua história. Sabeis o que pensa sobre os assuntos de nossas discussões. É um
ecumenista notável. É favorável a uma Igreja inteiramente aberta. Sabeis a ele­
vada posição que ocupa na estima dos asiáticos e dos africanos. Sabeis do
apelo de sua voz e de seu nome para as Igrejas protestantes na Europa e na
América. Seu lema é “Unidade em Cristo” . E precisamos de unidade. Unida­
de baseada em unanimidade. Unanimidade absoluta. A unidade de uma voz
em concordância.
— Nestes últimos anos, meus Veneráveis Irmãos, vimos a possibilidade
até de um antiPapa. Sim! Um antiPapa!
Essa referência a Lefebvre, o Arcebispo rebelde, é inteiramente compre­
endida por todos os homens presentes. Mas muitos se lembram, também, co­
mo Thule fez suas próprias manobras para escapar à autoridade do Papa Paulo
VI e para sobrepujá-lo —uma vez com seus esforços para conseguir a podero­
sa posição de Secretário de Estado; em outra ocasião, com um tremendo mas
infrutífero empenho para reunir um gigantesco congresso eclesiástico interna­
cional e, dessa maneira, levar vantagem sobre o Papa Paulo nesse terreno. Mes­
mo agora, há alguns aqui que consideram as freqüentes reuniões internacio­
nais dos movimentos religiosos de Thule como um novo e crescente esforço
para convocar um Concilio Eclesiástico Geral Popular. E, alguns têm pergun­
tado atrás de portas fechadas e em cartas confidenciais, que faria o Vaticano
se Thule viesse a presidir um encontro internacional de bispos e cardeais,
com padres e leigos oriundos de toda a Igreja Romana? Supondo-se que to­
massem algumas decisões de peso —digamos, a de ordenar algumas mulheres
católicas? Iria isso constituir um cisma? Seria Thule, então, realmente um
antiPapa? Supondo-se que elegessem um Papa Popular “internacional”?
Mas todos sabem que a advertência de Thule sobre o perigo de um antiPa­
pa é dirigida a Lefebvre —e aos Cardeais Riccioni e Vasari e a seus defensores
tradicionalistas, aqui no Vaticano. O horror que Thule tem de Lefebvre é qua­
se patológico. Todo o movimento tradicionalista, de que Lefebvre é a ponta
de lança, é um presságio de morte para tudo aquilo que Thule representa.
135
Lowe olha para Thule, lança um olhar a alguns amigos, que retribuem
com um sorriso, depois dobra o lábio inferior por cima do superior - num
movimento que lhe é característico e que, dizem alguns, é sinal de sua teimo­
sia.
Thule acaba agora, numa nota simples:
— Meus Senhores Cardeais! Há muito que discutir, muita coisa a explo­
rar. Eu e aqueles que concordam com meu ponto de vista, estamos prontos a
entrar nas mais profundas discussões com qualquer um de vós. Temos forte
sentimento de que a voz do Espírito Santo está do nosso lado. Sentimos que a
Igreja está a ponto de nascer outra vez, sob um aspecto novo, aos olhos de
todos os homens! ~ Pára, num momento de silêncio. De novo, a aparência de
nobreza. —Agradeço a Vossas Eminências!
Ao caminhar a passos largos de volta a seu lugar, cumprimenta de cabeça
alguns colegas. Está animado pelo esforço, satisfeito. A parte qualquer outra
coisa, é um dos melhores oradores entre os Cardeais. Sabe disso, tem cons­
ciência de seu poder. Toca levemente no ombro de Lowe e ambos sorriem
simpaticamente. O rosto do Camerlengo é um estudo em inexpressividade.
A voz dele eleva-se agora, quando anuncia o novo orador:
— Meu Eminentíssimo Senhor Cardeal Paul Lynch! - O Camerlengo pro­
nuncia o nome sem um traço de esforço ou de emoção na voz; e não está sor­
rindo - nem mesmo um sorriso convencional. Olha fixamente para Lynch,
para o rosto agradável do homem que se aproxima agora, num andar descon­
traído. Somente uns poucos, dos que estio aqui hoje, sabem da luta que, por
trás dos bastidores, foi travada pelo Camerlengo com este homem; de como
Lynch apoiou os marxistas, de como se tem oposto ao atual regime direitista
de seu próprio país, de como o Camerlengo quase enloqueceu, com a intermi­
nável corrente de telegramas e despachos entre Roma e a cidade natal do Car­
deal, quando Roma tentava sem sucesso controlar Lynch, e da maneira pela
qual o Papa anterior, Paulo VI, defendia Lynch e continha o Camerlengo.
O Camerlengo pusera um cão de guarda perto de Lynch, um veterano
diplomata da Cúria, experiente como clérigo, um romano genuíno, o Núncio
Apostólico na região. Mas o Núncio acabou sendo incapaz de dominar a situa­
ção. Lynch tinha contatos demais e, fosse como fosse, um Núncio Apostólico
podia fazer muito pouco contra um Cardeal em seu próprio território. “Que é
que se pode fazer, quando ele tem uma legião de jesuítas e dominicanos, pa­
dres e freiras, bem como funcionários do governo e o povo leigo lutando as
batalhas por ele?” —queixara-se certa vez o Núncio ao Camerlengo que o cen­
surava, durante uma de suas visitas periódicas a Roma.
A oração de Lynch diante do altar-mor é rápida e ele dá a impressão de
estar inquieto. Quando se volta para falar ao Conclave, seu rosto, normalmen­
te pálido, parece de uma brancura mortal. Não é a palidez do medo, mas a ex­
pressão exangue da emoção profundamente sentida.
136
Ao contrário do que muitos esperam, o tom de sua voz é calmo, a fala
tenta e deliberada:
- Eminentes Irmãos, — diz Lynch, enquanto vira a cabeça de um lado
para outro, para abranger as duas fileiras de Cardeais, - um romano do passa­
do um dia ergueu a dobra de seu manto e disse aos inimigos de Roma, com os
quais discutia as futuras relações de seus dois países: “Tenho a paz e a guerra,
a vida e a morte, dentro desta dobra da minha capa romana. Qual delas esco­
lhereis hoje? Podeis ter uma ou outra.” Sabemos, pela história, que seus inimi­
gos escolheram a guerra, E pereceram. - O próprio sotaque espanhol de suas
palavras parece gerar um estranho e atento silêncio.
- Nos dias de hoje, os povos do mundo estão atolados na dobra profun­
da de sua miséria e sofrimento, de sua necessidade e de seu clamor por justiça.
Homens, mulheres e crianças - todos nos fazem a mesma pergunta. Três quin­
tos deles vão dormir com fome todas as noites, acordam em condições subu-
manas de existência, morrem de doença e desnutrição, não tém trabalho per­
manente, muito menos um raio de verdadeira esperança de melhora econômi­
ca, É certo que não têm alternativa visível para o trabalho extenuante e não-
compensador, para a fome, o sofrimento —e nenhuma alternativa para uma
morte dolorosa. E, em toda parte, estão a nos dizer, a uma só voz: “É sofri­
mento e injustiça demais para a gente suportar.” E dizem ainda: “De dentro
desta dobra profunda de nossa pobreza e miséria e desamparo, nós, em tão
grandes números e em tanto sofrimento, fazemos um oferecimento de paz
ou de guerra. Porque temos que achar justiça. Temos que ter esperança. Se
essas coisas preciosas não vierem a nós em paz, nós as conseguiremos com a
guerra. Escolham! Vocés! E lhes daremos o que escolherem. Mas haveremos
de conseguir justiça e esperança!” Essa é a voz da maioria dos homens, das
mulheres e das crianças de hoje !
O Camerlengo mexe-se na cadeira e começa a tomar notas. Há um silên­
cio pesado, mas nenhum movimento entre os Cardeais. Estão com a atenção
presa, enquanto medem as palavras de Lynch.
- Como Pontífice, nós precisamos de um homem eficiente, sábio e pie­
doso. É verdade! Mas ele precisa ser, também, alguém que possa representar
um símbolo de esperança, E mais do que um símbolo! Precisamos de alguém
que não tenha medo de aceitar aquilo que Sua Santidade, o Papa João XXIII,
disse: “A substância de nossa doutrina é uma coisa. A expressão dessa subs­
tância é outra muito diferente.” E, ainda uma vez, como disse o Papa: “As
teorias filosóficas às vezes perduram. Mas as condições econômicas e políti­
cas que elas geram mudam e se desenvolvem.” Precisamos de um Pontífice
que não tenha medo de se movimentar na maré atual de socialismo democrá­
tico... — Há alguns murmúrios. O Camerlengo levanta a cabeça, mas continua
com os olhos presos às suas notas, hábito característico seu. —Oh, sei que o
termo “socialismo democrático” exige definição. Seja como for que jamais
definais “socialismo democrático”, — insiste Lynch, com um leve toque de
irritação na voz, - isso não quer dizer que estamos desertando da Igreja. Por­
que nem eu nem meus colegas nos colocaremos em segundo lugar, depois de
quem quer que seja, aqui ou em toda a Igreja, quanto a nosso amor por essa
Igreja e pelo Evangelho de Cristo.
- Há uma corrente, hoje em dia, no campo dos negócios humanos —e
não é possível fazê-la voltar atrás. Todos os que não caminharem com ela,
serão por ela varridos e destruídos.
O Camerlengo está fazendo o sinal de advertência dos dois minutos.
- Meus Senhores Cardeais, sem maiores explicações e na esperança de
que todos iremos poder discutir pacificamente, fraternalmente, e chegar a
um acordo quanto à seriedade de todos esses assuntos, desejo propor Meu
Reverendíssimo Senhor Cardeal Yiu como candidato a Sumo Pontífice.
Que Deus possa ajudá-lo, ajudar a todos vós, ajudar a todos nós - para que
possamos ver o que está acontecendo.
Lazarus Hou Lo Yiu, de aparência jovem em seus cinqüenta e seis anos,
candidato a Sumo Pontífice, feito cardeal aos cinqüenta anos, não é um teó­
logo, nem um mestre em política. Um homem simples, imbuído da história
e da cultura de sua adorada terra natal, é conhecido por toda a Ásia como de­
votado antimarxista e anticomunista, admirador dos ideais democráticos
americanos e um competente tático na luta que se trava entre o governo de
seu próprio país e os grupos esquerdistas dirigidos pelo clero. Ninguém sabe
realmente o que Yiu pensa, ou é essa a impressão que se tem sobre ele.
A indicação de Yiu deixou alguns Cardeais inquietos e gerou um zumbido
de comentários abafados por toda a Capela. Por que Yiu? Alguns cardeais
olham atravessado ou aprovadoramente na direção de Lynch. Outros, curva­
dos em seus assentos, estão tomando rápidas notas. Yiu, como candidato pro­
posto por Lynch, é abertamente impopular com os conservadores e tradicio­
nalistas, que o vêem como um títere forçado, um fantoche, mesmo, puxado
por seu status de membro do Terceiro Mundo para uma posição simbólica,
que cheira mais a interesses de poder temporal do que a compaixão pelos po­
bres e famintos.
Os dois minutos finais de Lynch estão-se escoando e ele ainda não quer
deixar que essa oportunidade passe completamente. Fala de novo, tentando
recapturar a plena atenção para suas observações:
- Sem desejar de maneira alguma impregnar com uma indevida emoção
este augusto Conclave dos Reverendíssimos Eleitores, ou impugnar a indepen­
dência do Conclave e da Santa Madre Igreja, tenho uma mensagem a transmi­
tir...
O Camerlengo interrompe sua pequena sineta de prata tocando insistente­
mente. Ele conhece a mensagem. O atrevimento da proposta de Lynch é uma
aliança efetiva entre marxistas e católicos romanos, uma espécie de acordo de
facto, para viver e deixar viver, até para auxílio mútuo, deixando para mais
tarde a solução de suas diferenças pessoais. É sobre isso que Lynch vem falan-
138
do nos últimos meses. O Camerlengo tem mais de uma razão para esperar que
semelhante discussão nunca venha a acontecer.
Os Cardeais que compreenderam a manobra do Camerlengo começaram a
conversar abertamente, alguns se levantaram, como que para esticar as pernas.
A iniciativa de Lynch foi-lhe arrebatada.
Ele enrubesce ligeiramente, recobra o controle de si próprio, depois ca­
minha lentamente na direção de seu trono. Ao passar, olha rapidamente para
o asiático. O rosto de Yiu está imóvel, os olhos baixos, as mãos cruzadas no
colo.
Mesmo antes de alcançar seu trono, Lynch ouve o Camerlengo:
- Meu Reverendíssimo Senhor Cardeal Bassano!
O Camerlengo não pode anunciar o nome mais depressa —qualquer coisa
para polarizar totalmente a atenção. Tudo que precisa agora é que alguma fi­
gura reverenciada e irresistível se levante e exija seu direito a “uma sentença
de rejeição”. Uma opinião longamente explanada por um membro pode sem­
pre ser confrontada com uma breve sentença refutatória de algum oponente.
Fica então implícito que, mais tarde, será ouvida uma refutação completa.
Mas o sentido de uma “sentença de rejeição” é que, quase sempre, provoca
um clamor geral entre todos os Cardeais, rejeitando de uma vez aquilo que foi
longamente exposto.
0 Camerlengo não quer nenhuma explosão desse tipo. Não que partilhe
do ponto de vista de Lynch. Mas teme que uma rejeição assim violenta possa
provocar uma reação imediata dos que apóiam Lynch. Franzus, Buff e outros
logo se levantariam, exigindo tempo igual. A ordem seria subvertida. As pai­
xões se desnudariam e uma luta interna real, aberta, objetiva poderia resultar
disso. As posições radicalizam-se, os acordos tomam-se difíceis, ou impossí­
veis. E isso poderia significar dificuldade, um Conclave prolongado e outros
perigos possíveis. Na verdade, os planos do Camerlengo, em sua qualidade de
Camerlengo, não incluem nenhuma discussão pública prolongada da principal
proposta de Lynch. Numa discussão dessas, todo mundo ficaria sabendo, ine­
vitavelmente, das negociações de bastidores com a URSS, do envolvimento
de Franzus em tudo aquilo, e de muitos outros assuntos mais delicados.
Enquanto o Cardeal Bassano vem avançando, o Camerlengo procura com
os olhos o Cardeal Franzus. Sim, Franzus percebeu a manobra. Está olhando
firmemente através daqueles seus grossos óculos, os olhos brilhando de com­
preensão, não de satisfação, O Camerlengo tosse e baixa novamente os olhos
para suas anotações. Franzus sabe demais. Quem lhe falou sobre aqueles “ou­
tros relatórios”?
Bassano ajoelha-se por um momento e reza. Agora começa:
— Reverendíssimos e Eminentíssimos Senhores, meus Irmãos em Cristo,
Ilustres Cardeais da Santa Igreja Católica Apostólica Romana... — Sua melí­
flua voz italianada vai-se filtrando em tomo dos pensamentos do Camerlengo.
O Cardeal Calder, dos Estados Unidos, olha para o amigo Cardeal Artel, de­
139
pois se ajeita em seu trono, como que para escapar da enxurrada de repousan­
te retórica que antecipa. Artel sorri, como só ele pode sorrir.
As palavras de Bassano são transbordantes de piedade, de fé e de dignidade.
No fundo do coração, é um tradicionalista. Mas agora, e já por algum tempo,
está às turras com sua própria facção. Seu bom senso lhe diz que a mudança é
necessária e está jogando a sorte com os conservadores.
— Servimos a um Senhor Jesus todo-poderoso, —diz Bassano, —que po­
de, a qualquer momento, comandar os ventos e as águas em torno da Barca de
Pedro, ordenando-lhes que se tomem calmos para que a Barca possa prosse­
guir em segurança a eterna viagem do seu destino, como fonte de Deus para a
salvação de todos os homens. - Os Cardeais recostam-se e relaxam, olham uns
para os outros, para Bassano e para o Camerlengo. Aquilo vai ser o que se es­
perava. O Camerlengo, porém, mostra um levíssimo traço daquele cacoete —
deve estar controlando alguma viva emoção.
— Muitos têm medo, - a voz de Bassano é baixada um pouco mais, as­
sumindo um tom mais confidencial. —E por que não? Muitos dizem: são as
catacumbas de novo, para a Igreja. E há razões para seus temores. Muitos
dizem: vamos voltar atrás e fazer uma reforma. Outros dizem: vamos sair e
caminhar com os filhos dos homens. Vamos nos colocar mais perto deles. E,
em cada caso, têm suas razões. E têm quem os convença. —Esta última refe­
rência é o ponto mais próximo a que Bassano chegará, hoje, na menção ao
marxismo de alguns Cardeais e a seus amigos, do outro lado da Cortina de
Ferro.
Em seguida, com uma ligeira elevação da voz, como se fosse necessário
ser idulgente na maneira de pensar:
— E, provavelmente, todos estão certos, até determinado ponto. E, cer­
tamente... - um sorriso tolerante, - todos são sinceros.
— Contudo, o que realmente necessitamos, em minha humilde opinião
— e eu falo por muitos outros e através de toda a Igreja —é uma política pru­
dente. O momento não está maduro para uma mudança repentina. O Espírito
de Deus sopra gentilmente, indicando o caminho com tranqüilidade e paz,
não em acessos e aos saltos. Precisamos de maduro desenvolvimento —talvez
mais maduro do que qualquer que tenha sido recentemente demonstrado. —
Por ora, Bassano não tomará mais aguda sua crítica a Paulo VI. —Mudança
lenta, adaptação gradual às circunstâncias. De outra maneira... —a voz desce
outra vez a um baixo moderado, —podemos cair nas armadilhas de nosso Ini­
migo e de nossos inimigos, os inimigos da Igreja de Jesus.
— Alguns desses inimigos podemos lograr. Alguns deles podemos conver­
ter. Alguns deles podemos vencer diretamente... —um simples toque de triun-
falismo romano nesta última observação. —Mas a todos eles —repito —a to­
dos eles nós —a Única, Santa, Católica e Apostólica Igreja —nós sobrevive­
remos e finalmente os veremos caindo no montão de lixo da História, enquan­
to a Igreja prossegue, em vigorosa tranqüilidade. —O Camerlengo está delica­
140
damente fazendo sinal, com um sorriso. Dois minutos. Bassano faz uma pausa,
sorri de volta, continua:
— Aqueles por quem estou falando — e vós sabeis seus nomes, são em
grande número —acham que precisamos de um Pontífice que saiba como con­
duzir a Igreja através de todas as fases gradativas de desenvolvimento e adap­
tação. EmboTa possamos apoiar o Meu Reverendíssimo Irmão e Eminente
Senhor, o Cardeal Masaccio —desde que sejam resolvidos ajustamentos e acor­
dos —queremos sugerir que há mais de um candidato entre nós, hoje, em con­
dições de preencher essa tão importante função. Os nomes podem esperar.
Este é um assunto para maiores discussões, para votação, para entendimentos
fraternais, para madura meditação, e para a orientação do Espírito Santo. Es­
tas são as palavras que tenho para vós hoje, Eminentíssimos Irmãos. Agradeço
ao Camerlengo e a vós, Reverendíssimos Senhores Cardeais!
Nos lábios de Bassano, os termos “ajustamentos” e “acordos” querem di­
zer as condições favoráveis a este grupo, ou àquele indivíduo, condições com
que um papabile precisa concordar, para poder ganhar a eleição de Papa. Os
conservadores, pelo fato de oscilarem entre tradicionalistas e progressistas,
têm que ser extremamente meticulosos quanto a “acordos” e “ajustamentos”.
O Camerlengo espera até que o Cardeal Bassano tenha se sentado de no­
vo, sorrindo, acenando para alguns de seus amigos ao longo das fileiras. De­
pois toca sua sineta de prata, para prender a atenção dos Cardeais que estão
conversando. Agora já passa um pouco das 8 horas.
— Meu Reverendíssimo e Eminente Senhor, Cardeal Domenico! —chama
o Camerlengo. Domenico demora um pouco para responder. Estava falando
com o Cardeal Angélico e com o Cardeal Azande, seus vizinhos imediatos. Um
homem pequeno, descamado, sentindo-se um tanto ou quanto desconfortável
nas vestes branco e vermelho do cerimonial, ele se levanta lentamente, sem
pressa, junta as roupas ao corpo e vai até o altar-mor, onde reza também, por
um momento. Aumenta o silêncio e Domenico começa:
— O Reverendíssimo e Eminente Camerlengo não quer que nenhum de
nós se atrase para a ceia. —Ele partilha com os Irmãos Cardeais seu próprio
sentimento de bem-estar. Vem dos Cardeais uma leve onda de riso discreto.
— Quanto a mim, estou com fome. Além disso, faz muito tempo já que demo­
rei tanto sentado, ouvindo outros homens falarem. —Nenhuma surpresa a es­
perar. Nenhum choque. Pelo menos, hoje não. Domenico está à vontade, to­
dos podem se sentir tranqüilos...
Dizem que Domenico sabe de mais segredos sobre todo mundo que qual­
quer outra pessoa, não se excluindo nem mesmo o Camerlengo. Mas tem a dis-
creção de um padre-confessor, e o rosto de um anjo sem idade. Não é inocên­
cia suave. Nem a vivacidade e a paz interior do velho, ou a atitude do “já vi
de tudo”, que, algumas vezes, fica a um passo do começo da senilidade. Não.
O rosto de Domenico não tem idade por alguma profunda, interior razão da
mente. E sua aparência é inocente porque, dentro dele, houve purgação de
141
tempo e limpeza de espaço, durante longos anos de obscuridade e do silencio­
so trabalho de sábio,
— Só em umas poucas palavras, Adorados Irmãos, deixai que eu diga o
seguinte: temos graves dificuldades. Foram-nos oferecidas quatro diferentes
abordagens de tais dificuldades por Irmãos Cardeais. E essas abordagens nos
foram oferecidas com absoluta lealdade e verdade. —Aí Domenico distribui
uma série de pancadas, suaves, mas decididas.
— Não há dúvida de que precisamos nos apegar ao nosso depósito de fé.
Mas não podemos, nenhum de nós, pretender que se mantenham na sociolo­
gia atual as exatas políticas de Pedro, o Pescador —hoje, nestes dias e nesta
época! —Domenico não precisa olhar na direção de Riccioni e de seu candi­
dato tradicionalista, Vasari. Todos compreendem a crítica e outros olhos os
procuram.
— Por outro lado, também é verdade que a mudança deve ser planejada
e séria. No entanto, não podemos hesitar, enquanto reais oportunidades vão
passando por nós, enquanto reconhecemos apenas simbolicamente profun­
das mudanças que estão ocorrendo no mundo que nos cerca. —O conserva­
dor Bassano parece indiferente às observações de Domenico.
— Quanto aos nossos Irmãos marxistas, vem-me à lembrança aquilo que
um comentarista americano disse uma vez —sendo convidado, o leão pode
dormir com o cordeiro. Mas o cordeiro não vai conseguir dormir muito.
— Concordo com o meu Venerável Irmão —uma mirada para Thule —
em que pareceu provável um antiPapa, nestes últimos anos. Mas Sua Eminên­
cia sabe que o Arcebispo Lefebvre não é a única pessoa suspeita de se orien­
tar nessa direção. —Thule fica rubro, vendo a facilidade com que Domenico
mira diretamente sua posição e tudo que representa em termos de enfraqueci­
mento e de ameaça para a Igreja.
— O grupo pelo qual eu falo não é grande, numericamente, —continua
Domenico suavemente. — Achamos que todos os quatro enfoques deveriam
ser examinados, porque cada um tem alguma coisa a oferecer. Mas achamos
também que todos os quatro podem merecer críticas radicais. Não temos,
francamente, nenhum candidato especial em mente - em consonância com a
Política Geral — nem excluímos definitivamente qualquer candidato. Não
apoiaríamos incondicionalmente a candidatura dos Meus Reverendíssimos e
Eminentíssimos Senhores Cardeais Vasari, Lowe, Masaccio ou Yiu, pelo me­
nos não pelas razões exemplificadas pelos meus prezadíssimos colegas que me
precederam nas exposições aqui feitas esta tarde-
Como líder dos radicais, Domenico tem, mais que muitos dos presentes,
conhecimento do mecanismo do Conclave e do pontificado. A política é o
que importa. Como se costuma dizer em Conclave, “A política é que faz o Pa­
pa”, E ele não quer excluir papabile algum, logo no começo, nem se fixar de
saída em um deles.
Domenico olha para o Camerlengo. Seu tempo está quase esgotado.
142
— Portanto, a senha, —continua ele, —em minha opinião, é colaboração
amiga. Franqueza amiga. Nada de pressa. Nada de pânico. Vamos nos amar.
Vamos orar. Vamos confiar. Confiar no Senhor Jesus, quero dizer. Cuja Igre­
ja precisa de um Pontífice, e que não abandonará Sua Igreja. Jesus está en­
tre nós. Nisso acreditamos, não é? Agradeço a Vossas Eminências.
Um discreto murmúrio de aprovação acompanha Domenico, quando se
dirige de volta a seu lugar. Esse aplauso não é comum, mas a posição de honra
que ele ocupa no conceito dos presentes é especial. Ele cumprimenta de cabe­
ça um ou dois colegas. Ao se sentar, Angélico inclina-se e toca-lhe o braço. Al­
gumas palavras são trocadas entre ambos. Depois Angélico recosta-se em seu
trono e faz um aceno de cabeça para Azande. O cardeal negro retribui-lhe o
olhar sombria e impassivelmente, somente com os olhos exprimindo sua com­
preensão.
Já se está muito perto das oito e meia. Agora que as posições e atitudes
gerais das cinco principais facções foram definidas, há uma inquietação gene­
ralizada para que se abandone a atmosfera formal e que se dê começo ao tra­
balho da noite. Há muita coisa a fazer entre o momento em que termine esta
sessão preliminar e aquele em que se reúna a Primeira Sessão Formal do Con­
clave, às 10 horas da manhã, no dia seguinte. Haverá reuniões particulares,
eleitores serão sondados e cortejados. Alguns estudarão e ensaiarão as posi­
ções que vão assumir.
O Camerlengo anuncia o fim da reunião. Agradece a todos os presentes,
depois se levanta e vai até as portas trancadas. Bate três vezes nas portas. O
jovem Monsenhor que está de fora as abre e se põe de lado, para permitir que
o Camerlengo o preceda; depois começa a andar atrás dele.
Quando ele sai, os outros Cardeais começam a aparecer. Uns estão cala­
dos e saem sós. Alguns conversam tranqüilamente com outros, em pequenos
grupos. Franzus, Lynch e Thule já se encontraram e Buff junta-se a eles. Atrás
vem uma porção de italianos. Yiu, com Azande e Lokuto, vê aproximar-se
Lohngren — amarelo, negro e branco saem caminhando juntos. Na retaguar­
da, vão aparecendo os Cardeais poloneses, franceses e espanhóis.
Domenico é o único que fica, mesmo quando o pessoal do serviço entra e
começa a arrumar e a limpar a Capela. Está sentado, sozinho e completamen­
te imóvel. Depois, levanta-se e sai. O ônibus estará esperando por ele.

NOITE:DAS 21 HORASÀ 1 HORA DA MADRUGADA

Uma vez na Domus Mariae, onde estão alojados, nem todos os Cardeais
vão cear —o que, de qualquer maneira, é facultativo. Os grupos começam a
formar-se nos corredores e nos aposentos. A árdua atividade daquela longa
noite começa a tomar forma. Franzus desaparece, com Thule, Lynch e Buff,
entrando no apartamento de Thule, onde vão forjar a estratégia do grupo;
143
Kand é seguro por Garcia, o espanhol; Karewsky, da Europa Oriental, junta-se
a eles. Entram no apartamento de Kand. Ni Kan é visto com Motzu, o asiáti­
co, entrando nos aposentos de Yiu. Há uma reunião de Cardeais alemães nos
aposentos do Cardeal Hildebrandt, da América Latina, Os mexicanos e alguns
dos outros latino-americanos espaiharam-se por diversos cômodos.
Pela altura das 9 horas, os empregados já deixaram a Capela. A Capela es­
tá silenciosa. Há uma lâmpada ainda acesa. E uma pequena luz vermelha indi­
ca o Tabernáculo, onde fica a Eucaristia.
Pela altura das 9:15, termina a ceia. Mais Cardeais juntam-se aos que já
se coordenaram nos diversos aposentos, fazendo reuniões, mandando chamar
outros grupos para informações, para contatos, para explicações.
Cerca das 9:30, o Camerlengo vai com seu jovem assistente inspecionar a
Capela da casa e certifícar-se de que o trabalho dos técnicos da vigilância foi
feito. Quando os dois entram na Capela, percebem um vulto ajoelhado, ape­
nas visível à luz da bruxoleante lamparina vermelha diante do Tabernáculo. É
Domenico, Está ajoelhado sem apoio algum, a cabeça erguida, os olhos fecha­
dos. O Camerlengo estaca.
Depois, ambos notam que uma outra pessoa está na Capela. É o Cardeal
Henry Walker, ainda sentado em seu lugar, ereto e imóvel, o corpo volumoso
enchendo a cadeira, as costas esticadas, a cabeça atirada para trás, o rosário
passando conta após conta através dos dedos. Todo mundo sabe que o Car­
deal detesta ser encontrado rezando e, mais ainda, ser olhado enquanto reza.
— Mais tarde, —o Camerlengo diz baixinho ao Monsenhor. - Venha,
mos trabalho a fazer. —Deixam Domenico e Walker em paz. —Os eminentes
membros do Colégio dos Cardeais jamais cessam de me espantar, - diz o Ca­
merlengo, sem falar com ninguém em particular, quando entra em seu gabine­
te acompanhado do Monsenhor.

Os mais calmos e menos envolvidos nas discussões e atividades da noite são os


Cardeais dos países da Comunidade Britânica: Krasnow, Hartley, Moore e
Reynolds. Copley e Dowd, da Oceânia, juntam-se a eles no apartamento de
Reynolds, onde vão encontrá-los Hopper e Morris, o anglo-saxão, Morris pas­
sou anos indo e vindo, trabalhando em Roma; é um bom teólogo. Traz consi­
go um jovem Cardeal da Oceânia, que revela uma gagueira quando cumpri­
menta os demais.
Nenhum desses homens, com exceção do jovem Cardeal gago, está estrei­
tamente ligado a qualquer facçffo ou grupo. O moço Cardeal tornou-se amigo
e confidente do Camerlengo. Os outros não estão muito a par das manobras
eleitorais que precedem o Conclave. Só um deles, Krasnow, participou de
Conclaves anteriores, mas permanece há muito tempo afastado das atividades
políticas da Igreja. Sendo assim, a maior parte desses cardeais, incluindo Kras­
now, tem mais perguntas do que opiniões a respeito do Conclave. O interesse i
deles, obviamente, está menos em estratégia, ou em persuasão, do que na con­
tagem de pontos.
É natural que o jovem amigo gago do Cardeal Morris se transforme no al­
vo das perguntas. E, quando lhe perguntam qual o significado da reunião pre­
liminar daquela noite, tem muita coisa a dizer:
— Do ponto de vista do Ofício, —(todo mundo compreende que, para o
jovem cardeal, “o Ofício” significa a Secretaria de Estado do Vaticano), —até
esta tarde havia apenas quatro grupos. Tudo bem arrumadinho, vós sabeis co­
mo é. Em cada grupo, um candidato principal, todo examinado e aprovado, e
cada um com um candidato de reserva. Vasari, para os tradicionalistas, com
Canaletto a reboque; Masaccio, para os conservadores, com Ferro, do Vati­
cano, na retaguarda; Lowe, para os progressistas — ou seja, os do Terceiro
Mundo e os ecumenistas — com Lombardi, da América Latina, a reboque; e
Yiu, para os marxistas-cristãos, com Lamy, da França, na retaguarda. E, en­
tre eles, só havia um grupo que poderia contar com a maioria necessária. Mes­
mo na reunião desta noite, não creio que Domenico estivesse falando por um
grupo —muito embora se tenha referido a simpatizantes. Estava, antes, falan­
do por vários membros de quatro diferentes grupos e por alguns dos não-com-
prometidos e dos indecisos. Mas ele é poderoso e persuasivo. Não se trata de
poder político. É alguma outra coisa. Não se levantou lá sem alguma razão...
— Qual foi a disposição geral dos votos entre esses quatro grupos princi­
pais, digamos, ontem, ou esta manhã? —pergunta Hartley.
— Bem, esse é que é o problema. O Camerlengo tinhatudo planejado.
Mostrou-me as listas finais —ou aquilo que supunha serem as listas finais -
na semana passada. Um quadro definido. No que nos dizia respeito, um ho­
mem forte como Domenico concordaria com um consenso geral e, com ele,
ficariam Angélico e seus seguidores.
— Como vós dizeis, Eminência, —comenta o Cardeal Moore, —tudo bem
arrumadinho, - Alguém dá uma risada. Houve tempo em que o apelido do
Camerlengo era Akribei, tanto é ele interessado em que cada um de seus su­
bordinados na Secretaria tenha idéias “precisas e claras” sobre sua política
c seus desejos. Às vezes brincavam com ele sobre esse desejo de clareza de
raciocínio, mas tudo isso recebia com bom humor.
— Mas agora o quadro mudou, ein? — Reynolds insistena questão da
distribuição de votos.
— Bem, pelo menos já não é mais um quadro definido, nem um pouco
definido. Vós compreendeis, há esse movimento de Thule e o movimento de
Franzus. Não esperávamos isso, embora devêssemos esperar. O problema é: se
Thule e Franzus se aliarem, isso passa a ser uma ameaça real. E depois, é pro­
vável que haja um quinto grupo, possivelmente um sexto.
— Por que um quinto, para não falar de um sexto?
— Pòrque a única maneira de sustar uma démarche Thule-Franzus seria
partir para um candidato pan-europeu, não-italiano —alguém como o Cardeal
145
Lohngren, se o projeto Thule-Franzus se tornasse realmente exeqüível. Nesse
caso, Domenico ou Angélico poderiam chefiar mais um outro grupo.
— Sabemos exatamente o quanto se tornou forte o item Thule-Franzus,
ou o quanto é provável que venha a sê-lo? —pergunta Moore.
— Estamos exatamente a caminho de descobrir isso, agora mesmo, —diz
o jovem Cardeal, lançando um olhar rápido na direção da porta, como se pu­
desse ver através dela, ao longo do corredor e dentro do gabinete onde está o
Camerlengo, —Seja quem for que venha a ser o novo Papa, seja quem for que
o estiver apoiando, qualquer que seja a experiência que constitui seus antece­
dentes, há uma sabedoria firme, convencional, inerente à eleição.
— Quer dizer, meu amigo —interrompe Moore, —que há prioridades?
— Ah, sim! Prioridades! De fato, há primordialmente quatro prioridades.
Pelo menos nos Conclaves sobre os quais ouvi falar. Em primeiro lugar na lis­
ta, fica sempre o relacionamento entre o Vaticano e o Estado Italiano. É evi­
dente que o Papa precisa ter a aceitação do governo italiano, em sua forma
atual e em qualquer outra forma que possa ser prevista para o período prová­
vel de seu pontificado. Afinal de contas, ele é o Bispo de Roma.
— A segunda grande prioridade na lista está muito estreitamente vincula­
da à primeira: os múltiplos interesses financeiros a que o Vaticano está pro­
fundamente ligado, através de seus investimentos, começando na Itália —prin­
cipalmente em Roma e em Milão —e depois expandindo-se pela Europa e o
hemisfério ocidental. Pot que, se o nome de qualquer candidato indicado fi­
zer estremecer segmentos importantes do mundo bancário ou da indústria,
há fortes probabilidades contra esse homem fazer parte até da lista inicial de
papabili.
— E a terceira prioridade diz respeito a todo o complexo da política e da
diplomacia. Sem colocar um poder de veto sobre os candidatos nas mãos de
qualquer governo, o Conclave tem que afastar aqueles candidatos que, defini­
tivamente, não forem aceitáveis, ou favoravelmente encarados por qualquer
poder nacional de grande ou médio porte.
— Isso se aplica também à URSS? —pergunta Reynolds.
— Ê claro! É claro! E isso também é um sinal do poder do Papado, mes­
mo em nossos dias. Os estadistas dão-se conta de que, seja qual for a unidade
moral sobre a qual se apóiem em áreas de interesse vital para eles próprios,
tal unidade depende, em alto grau, dos líderes religiosos. A experiência sovié­
tica mostrou —como a dos romanos, muito antes dela - que não se pode su­
primir a religião. Os soviéticos podem não declarar isso em voz alta. Mas sa­
bem muito bem que é assim.
— A última grande prioridade constitui-se das Conferências nacionais e
internacionais de Bispos, ou melhor, deveria eu dizer, das preferências de tais
Conferências. — O jovem Cardeal está-se referindo aos sete grupos regionais
(Europa, América do Norte, América Central, América do Sul, África, Ásia e
Oceânia); às oito Reuniões plenárias internacionais de Bispos; às noventa e oi-
146
to Conferências nacionais de Bispos que se realizam em toda parte, de Angola
B Zâmbia; aos quatorze Ritos Orientais que habitam, sobretudo, a União So­
viética; aos seis Sínodos patriarcais e às cinco Conferências de Bispos que fun­
cionam nas terras do Islã.
— Cardeais presidem os trabalhos, as deliberações e os acordos a que se
chega em cada um desses ramos do governo e da administração internacional
da Igreja. Pouca gente compreende os mecanismos complicados, mas úteis,
que tais Conferências representam, —continua o jovem Cardeal. — É através
deias que Roma conhece os problemas atuais de cada região e de cada país.
£ assim, também, aqueles que trabalham no centro das coisas, no Vaticano,
I participam da solução oferecida, porque as propostas de solução, via de regra,
\ tém que ser submetidas a Roma. Desse modo, há um contínuo fluxo de tráfi­
co, nas duas direções. Há a ação constante de Roma e as reações das Confe-
íências regionais e as subseqüentes ações dessas Conferências. Desenvolvem-
le, assim, um consenso local muito apurado quanto às políticas pontifícias,
quanto à maneira pela qual o Vaticano implementa essas políticas e sobre o
[ modo pelo qual trata os bispos das dioceses.
[ — Em conseqüência, quando chega a hora de uma eleição papal, essas
f Conferências de Bispos são os primeiros grupos a saber que tipo de Papa não é
necessário —pelo menos na opinião delas —, a quais, dentre os papabili pro­
postos, deveria ser dada uma oportunidade, e quais os que deveriam ser ex­
cluídos de saída.
— São os Secretários-Gerais de cada Conferência —homens como o Ar-
i eebispo Bernardin, de Cincinnati, no Ohio, antigo presidente da Conferência
norte-americana, e o Bispo Etchegaray, de Marselha, da Conferência européia
[ são homens assim que exercem domínio sobre o Conclave, do ponto de vis-
| ta dos que estão de fora. É que eles, por sua vez, em geral, podem passar o vo-
; to da Conferência ao cardeal ou aos cardeais locais residentes em Roma, quan-
i to a problemas habituais da Igreja. Assim, cardeais estrangeiros, juntamente
çom os Secretários-Gerais, nesse sentido, tornam-se os fazedores de Papas.
— Diante de tudo isso, — pergunta Hopper, —como responderieis vós a
esta indagação: qual dos três líderes tem a melhor chance de ser eleito? Ferro,
Masaccio ou Vasari? —O jovem Cardeal não responde.
— Qual, em vossa opinião, é o problema central do Conclave 82?
— A velha, velha questão do poder. Hoje em dia, entre homens e mulhe-
í res, através de toda a nossa sociedade humana, dois tipos de poder lutam pela
vitória. O poder da revolução marxista. E o poder do velho mundo, do capi-
; talismo mundial. Sereis vós capazes de imaginar as influências que um ou ou­
tro desses poderes teria condições de exercer, se conseguisse se infiltrar na cú­
pula da Igreja Romana —se, digamos, o novo Papa ordenasse que, em parte,
I os católicos encarassem os marxistas com simpatia, com bons olhos? Ou, vice-
versa, se tomasse uma posição muito, muito decidida contra o marxismo?
— É possível imaginar-se a mente de um Papa, ou de uma autoridade do
147
Vaticano, podendo assumir uma atitude assim aberta, no que se refere à ques-
tío marxista?
— Muito fácil. Extremamente fácil. — O jovem Cardeal ri. —Por exem­
plo, de que outra maneira considerais vós que seria possível recristianizar a
Europa, desfazer todos os redutos de sentimento anticatólico e anticristão? O
meio mais rápido seria liquidando todos esses bastiões. E dizei-me, Reveren­
dos Irmãos, dizei-me, tanto quanto sabeis, qual é exatamente o poder sócio-
político que considera sua primeira obrigação destruir esses bastiões? —A res­
posta á pergunta do jovem Cardeal é óbvia para todos.
— Uma última pergunta, Eminência. Se vós fósseis um papabile, estaríeis
inclinado a demonstrar uma mentalidade assim aberta? —Há uma ligeira pau­
sa, na qual o jovem Cardeal inspira fundo e mostra um leve tremor na mandí­
bula. Pela primeira vez durante a conversa, está tendo dificuldade em dominar
a gagueira.
— Nnn - nn — não há dúvida de que fff - fff — ficaria do lado dos
mmm —mma - mmarcianos! - Todo mundo ri. O jovem Cardeal já se levan­
tou. — Prometi dar uma chegadinha para ver o Camerlengo, depois da reunião
preliminar. —Pisca o olho, em tom de brincadeira. —Como dizem os america­
nos, afinem-se para a sessão de amanhã... —Consegue em resposta uma risada
simpática. Quando sai e fecha a porta, mais de um dos cardeais mais velhos
presentes no apartamento têm no olhar uma expressão intrigada. 0 moço car­
deal é muito, muito inteligente.
— Ele sempre teve essa gagueira? — Reynolds está ligeiramente curioso.
— Oh, não. Só de uns cinco ou seis anos para cá. É conseqüência de um
acidente, - responde Morris. Depois se vira para Krasnow. —Eminência, par­
ticipastes de Conclaves antes. Dai-nos algumas de vossas impressões.

Enquanto isso, de volta a seu gabinete, o Camerlengo examina silenciosamen­


te listas de cardeais e de candidatos, ao mesmo tempo em que o assistente da­
tilografa memorandos, na sala de fora. De repente, joga o lápis sobre a mesa e
toca a campanhia para chamar o Monsenhor.
— Vá ver se Lohngren tem uns momentos livres. Discretamente, é claro.
Tenha cuidado? Mas antes de falar com Lohngren, diga a Ruzzo que quero
uma palavra com ele. —Ruzzo é o chefe da segurança, e já deve ter feito a
ronda noturna.
Ruzzo chega, sacudindo a cabeça num gesto de quem não pode acreditar.
Há algum transmissor trabalhando dentro do Conclave, diz ao Camerlengo.
Mas não consegue localiza-lo. Parece ser um aparelho transmissor de grava­
ções, automático, ligado e desligado por controle remoto, funcionando e pa­
rando de modo irregular, diz ele ao Camerlengo. A coisa curiosa que informa
é que, sempre que ele chega perto, ou parece estar chegando perto do porta­
dor do aparelho, a coisa pára de funcionar.
148
— Tente encontrá-lo, Ruzzo, - roga o Camerlengo. - Eu quero esse apa­
relho; ainda temos tempo.

Quando o Monsenhor volta com Lohngren, minutos depois, o Camerlengo vai


üireto ao assunto:
[ - Vossa Eminência, há dezoito meses que, em resultado de entendimen­
tos com vossos Irmãos Cardeais da Alemanha e com os Bispos, vós me infor­
mastes que não querieis vosso nome apresentado, em nenhuma circunstância
previsível, como o de um candidato ativo. Devo-vos perguntar agora: ainda é
1 etsa a atitude de Vossa Eminência? Ou terá Vossa Eminência tido outras
; Idéias? —Depois, como para acentuar a importância da pergunta: —Por qual-
í quer razão, qualquer razão?
Lohngren olha firmemente para o Camerlengo, através dos óculos.
- Eu disse a Vossa Eminência, naquela ocasião, que dadas a complexi-
| dade de nossa situação e as qualificações de muitos candidatos amplamente
I conceituados, como Masaccio, Ferro, e especialmente pelo fato de não haver
\ perigo algum, seja dentro do Colégio dos Cardeais propriamente dito, —Lohn-
| gren dá ênfase às palavras, —ou no interior do bastião tradicional da Europa
dadas essas duas condições, eu não queria ser objeto de indicação. —Lohn­
gren faz uma pausa. Depois: —Sabe, Eminência, não me via em condições de
prever nenhuma contingência provável, em conseqüência da qual pudesse sur­
gir tal perigo.
O Camerlengo aquiesce com um gesto de cabeça:
— Nenhum de nós podia prever isso, —diz ao alemão, em tom seco.
— Bem, então, devo compreender agora que vossa declaração, na reunião
preliminar, sobre a Estrutura Política Geral e o acordo sobre a mesma foi para
efeito externo? - pergunta Lohngren.
- Sim e não, - o Camerlengo hesita. —Até agora há acordo. Quando co-
j| meçarem a ter conhecimento dos fatos —bem, esse é precisamente o proble-
í ma que temos. O perigo... - Ele se interrompe, desanimado, olhando para
Lohngren.
Í O perigo que ele e Lohngren estão discutindo decorre de dois fatores. Um
é o futuro da Europa Ocidental, como o prevê o Secretário de Estado, e que é
o domínio político e económico do continente pela URSS —algumas vezes
mencionado como a “finlandização” da Europa Ocidental. O outro fator é a
estrela ascendente, entre os cristãos, da facção que favorece uma abordagem
muito positiva dos marxistas - não exatamente uma aliança, talvez, pelo me­
nos não por enquanto —mas um acordo, na prática.
Desde o início da década, o Camerlengo vem sabendo da idéia da “finlan­
dização” e compreendendo o perigo. Na verdade, ficou sabendo que as polí­
ticas financeiras adotadas pelo Papa Paulo VI para o Vaticano —incluindo to­
do o caso Sindona —foram determinadas tendo em vista esse perigo: preparar-
149
se para um cerco de longo alcance, enquanto as forças financeiras da Igreja es­
tão a salvo, do outro lado do Atlântico. A Estrutura Política Geral era parte
dessa estratégia de cerco de longo alcance.
Mas o surgimento da mentalidade da “abertura-para-o-marxismo” com­
plicou as coisas: era uma ameaça clara e direta à Estrutura Política Geral.
Existia agora uma facção de Eleitores que desejava arriscar a sorte do Vatica­
no e do Papado numa Europa Ocidental “finlandizada”, em oposição à alian­
ça com os Estados Unidos.
Culminando tudo isso, a própria política externa dos Estados Unidos já
não era mais trilateral —tendo os Estados Unidos, a Europa e o Japão como
pedras angulares. A África Negra ofereceria os mercados alternativos para
aqueles que os próprios Estados Unidos calculavam que seriam perdidos, com
uma Europa finlandizada.
Assim, os Estados Unidos bem poderiam passar ao largo da Europa, man­
ter e estimular sua associação com a Arábia Saudita. Sem a Arábia Saudita, os
Estados Unidos poderiam ser forçados a parar de funcionar por tempo sufi­
ciente para se tornarem aleijados. A Arábia Saudita era vital, a seu modo, tan­
to quanto o Japão, para a defesa continental dos Estados Unidos no Pacífico.
0 perigo imediato e específico que tanto Lohngren quanto o Camerlen-
go enfrentam agora é a possibilidade de que o futuro Papa seja o candidato
desse grupo eleitoral da “abertura-para-os-marxistas”.
Lohngren senta-se pesadamente. Tem a cabeça inclinada, o queixo sobre
o peito. Pensa por um minuto, mais ou menos, depois, levantando os olhos
para o Camerlengo:
— Mas agora, não acho que estou sendo exagerado, Eminência. Estou
convencido de que o perigo é real. - Lohngren estaca, como se as palavras
que estava prestes a dizer lhe tivessem escapado e não pudesse encontrá-las.
O Camerlengo espera um pouco, depois:
— O senhor esteve falando com Tsa-Toke...?
— Sim, - diz Lohngren. —Uma conversa breve. Mas suficiente, é claro.
— Ergue uma das sobrancelhas e olha ironicamente para o Camerlengo: -
Agora sei porque é que Paulo fez de Tsa-Toke um membro do Colégio.
— Ele está sempre alerta para todas as eventualidades, —comenta o Ca­
merlengo. —Sempre esteve.
O Cardeal Gabriel Joseph Tsa-Toke, Arcebispo da Ásia, um dos cardeai
surpresas de Paulo, tinha vindo recentemente para Roma, declarando suave­
mente que era possível e viável que os cristãos não apenas coexistissem com
um Estado inteiramente marxista-leninista, mas que se envolvessem com ele,
e ainda assim permanecessem bons e leais católicos. Na realidade, ele era exa­
tamente aquilo que Paulo pretendera que fosse: um cardeal de vitrina para a
nova moda. O comportamento de Tsa-Toke foi esmagador, para os Cardeais
italianos - e imediatamente os pôs a especular sobre como poderiam se com­
portar sob os “eurocomunistas” da Itália. Foi uma devastação para os ameri-
150
canos e alarmante para os alemães orientais e para os poloneses, que já sabiam
o que significava viver num regime inteiramente marxista-leninista.
A atitude de Tsa-Toke era a de João e de Paulo: “Podemos sobreviver aos
marxistas, modificar os marxistas — mas não podemos mantê-los fora - da
Âsia, da Europa, da América Latina. E, seja como for, quem é que quer o ca-
| pitalísmo americano? Não é ele, em última análise, tão inaceitável quanto o
r marxismo? E não está esse capitalismo sendo lentamente transformado —na
Inglaterra, na Irlanda, no Canadá, nos próprios Estados Unidos - na “demo­
cracia social”? E não significa isso estar a meio caminho do “socialismo de-
l mocrático” que os latino-americanos vêm propondo nestes últimos doze
| tnos?” Esses eram os poucos comentários que se conseguia ir reunindo de
F Tsa-Toke, Os Eleitores da “abertura-para-os-marxistas” amam Tsa-Toke —é o
[ cardeal de vitrina deles também.
[ Lohngren continua:
- Mais importante, porém, do que a minha conversa com Tsa-Toke -
afinal de contas, nós todos o ouvimos há algum tempo, no Sínodo dos Bispos
=- mais importantes do que Tsa-Toke são os Relatórios Especiais, principal­
mente o Relatório Latino-americano. Li todos eles.
— Então, agora?
- Então agora, — responde Lohngren, com um suspirozinho de aceita­
ção, - acho que... sim... tudo bem... Agora... talvez eu seja... devesse ser um
possível candidato. Mas Vossa Eminência compreende, um candidato em de-
[ terminadas circunstâncias especiais.
— Bem, então, - diz o Camerlengo lentamente, ao mesmo tempo em
i que sorri, — Vossa Eminência, acho que deveríamos discutir os Relatórios.
E essas circunstâncias. Quero dizer, agora. Penso assim, realmente. Agora,
ein?

O Camerlengo toca a campainha, chamando o jovem assistente, que ficou sen­


tado no gabinete externo:
- Monsenhor, vai ser uma longa noite de trabalho. Por que não sai um
pouco, para uma xícara de café e um cochilo. Tocarei, para chamá-lo. Diga­
mos, em meia hora? Muito bem.
Quando Lohngren começa a falar, o jovem Monsenhor fecha a porta do
gabinete externo e vai caminhando para os aposentos em que estão alojados
os padres-confessores. Estão todos lá, todos os cinco em mangas de camisa,
conversando sobre os acontecimentos do dia e sobre o que poderá acontecer
amanhã. 0 jovem Cardeal está lá também, acabando de tomar uma xícara de
café.
15
Um compatriota alemão levanta os olhos, quando o Monsenhor entra na
sala de estar:
— Gott! Que cara! Não querem fazer você Papa desta vez, querem, Ger-
hard?
O Monsenhor senta-se e comenta, sem se dirigir a ninguém em particular:
— EntSò, agora temos pelo menos cinco grupos...
No gabinete do Secretário, o Camerlengo tranqüiliza Lohngren, mas sem­
pre com a habilidade do estadista magistral:
— Eminência, ficai de mente descansada. Se o candidato escolhido tiver
que ser um não-italiano, Vossa Eminência pode estar certà —é evidente que
falo com a ressalva de melhor juízo de meus Irmãos Cardeais, mas ainda assim
—de que haverá apoio suficiente para que isso se torne uma decisão geral.
— Antes de tudo, Eminência, - responde Lohngren, sem olhar para o Ca­
merlengo, - preciso ter certeza das condições dos planos pessoais de Sua Emi­
nência. Lembrai-vos, quando conversamos há alguns meses atrás, tudo parecia
estar decidido.
— Bem! Tudo estava decidido, reparai, Eminência, —responde o Camer­
lengo apressadamente, - mas levou tempo até que todas as informações sobre
os detalhes da política dos Estados Unidos chegassem e fossem analisadas. E
depois, o Ofício demora a vontade para nos informar o que está acontecendo.
Só consegui todos os detalhes sobre as conversações de Moscou e Kiev com
muito atraso. - O Ofício, parte do Secretariado de Estado, estivera promo­
vendo entendimentos de alto nível com as autoridades da URSS. Assunto: dis­
tensão entre Roma e Moscou.
— Esses entendimentos se adiantaram muito, até que eu conseguisse sa­
ber o conteúdo deles, —continua o Camerlengo. —Depois surgiu Tsa-Toke.
E depois, Gott in Himmel! aparecem Thule e Franzus e Buff e Lynch. Veio
tudo num bolo enorme, indigesto.
— Agora, na reunião preliminar desta noite, mantive minha adesão à Es­
trutura de Política Geral principalmente porque um grande número de Elei­
tores ainda não conhece todos os fatos. Há uma chance de que o candidato
da Estrutura ainda seja viável.
— Mas então, Eminência, —replica Lohngren em tom inquisitivo, —dian­
te de uma crescente crise vinda do Leste, simplesmente nâo compreendo por­
que é que vós e Lamennais vos mostrastes tão violentos e malignos em relação
a Lefebvre. - O Cardeal Lamennais, alemão como o Camerlengo e lotado na
Cúria Romana, partilhava com ele de um ódio infinito pelo Arcebispo tradi­
cionalista Mareei Lefebvre. — Os ataques que fizestes a ele foram contrapro­
ducentes. Como me disse Witz no mês passado, vosso método de tratar Lefeb­
vre foi tão bom quanto a idéia de importar coelhos, na Austrália, no século
XIX. ótimo no começo, talvez, mas quando eles se multiplicaram aos mi­
lhões, como os coelhos gostam de fazer... - Lohngren, obviamente, não esta­
va poupando o Camerlengo na atribuição de culpa pelo encorajamento e a for-
152
ça que a própria Igreja de Roma dera aos marxistas em seus ataques à facção
tradicionalista de direita, mas deixando os esquerdistas intocados.
— O fato é, —defende-se o Camerlengo, —que a política preferida pelo
Papa Paulo exigia o deslocamento da massa católico-romana da extrema direi­
ta —onde ela sempre esteve, aliás —da extrema direita para algum lugar perto
do centro. O senhor sabe tão bem quanto eu por que é que queríamos fazer
isso, é claro. Sem um deslocamento desse tipo na direção do centro, haveria
muita perturbação na Igreja nas décadas de oitenta e noventa - é melhor que
o povo se vá acostumando a mudanças e confusões. Seja como for, a imple­
mentação dessa política de afastamento da extrema direita exigiu um elemen­
to de precipitação —aah —um elemento novo. Os progressistas foram consi­
derados exatamente isso. Sendo assim, permitiu-se que florescessem. Aí apa­
rece Lefebvre e repolariza todo mundo de novo! Mein Gottf Voltamos exata­
mente ao ponto em que estávamos!
— E, enquanto isso, —díz Lohngren secamente, para não dizer com ple­
na exatidão, — os progressistas se multiplicam — como aqueles coelhos na
Austrália. E estamos diante do perigo de uma Igreja marxista!
— Exatamente, precisamente! Impossível de prever, — o Camerlengo
completa a observação. —Mas este Ofício acentua a cooperação e a compre­
ensão do Colégio.
— Não obstante, cooperação ou não, entendo que agora há uma real pos­
sibilidade de convergência de votos para um candidato de Thule? De tal modo
que, como alternativa possível, Vossa Eminência acha que deveríamos tomar
providências para a escolha de um candidato pan-europeu?
— Correto, e...
— E a opinião admitida é que eu seria um candidato aceitável, nessa qua­
lidade?
— Vossa Eminência pode ver muito claramente a lógica de tudo isso, —
diz o Camerlengo com rispidez. —Simplesmente porque não contávamos com
nenhuma violenta movimentação no sentido da esquerda, nem entre os italia­
nos, nem entre os africanos ou os asiáticos.
— Mas a idéia e o propósito fundamentais de um candidato pan-europeu
—darão —poderão dar resultado? —a indagação de Lohngren é sincera.
— Bem, Angélico tem-se ocupado com isso, vós sabeis. A idéia de Monti-
ni era que, se ele conseguisse instilar vida nova no plano da “Europa una” —
Angélico anda falando de uma “alma nova” para a Europa, mas essa é a sua
maneira de se expressar — então, mesmo com a “fmlandização”, teríamos
uma chance de mudar a situação política e mesmo de modificar a cor da ideo­
logia e das teorias políticas marxistas. Isso poderia constituir nossa única es­
perança de, finalmente, compensar a vitória definitiva da URSS.
— Não sei. — Lohngren fica meditativo. - Não sei. Uma solução sócio-
política para um problema religioso tem sido sempre a resposta do Vaticano.
153
E nunca funcionou. —Inteirompe-se e olha para o Camerlengo. —Mas aí há
Thule e Companhia...
— Sim, - os olhos do Camerlengo brilham. - Thule et al.
— Realmente, nunca pensei, - diz Lohngren fazendo um comentário ge­
ral, —que os italianos fossem capazes de vacilar, nem que a idéia de Thule pu­
desse vingar. — Faz uma pausa e levanta oS olhos para o Camerlengo. —Mas
acontece que estes são tempos estranhos, tempos em que o inesperado já se
tornou real, nos quais nenhum de nós sabe, na verdade, o que está acontecen­
do no meio de nossa própria gente, sabe, Vossa Eminência?
— Que dúvida! —o Camerlengo é brusco nas palavras e no olhar. —Ago­
ra, três perguntas: primeiro, até que ponto considerais viáveis as recomenda­
ções contidas no Relatório Especial sobre a América Latina? Segundo, qual a
força qye Vossa Eminência supõe que tenha a agitação que apóia o ponto de
vista expresso nesse Relatório? E, finalmente, vós mencionastes “circunstân­
cias especiais”, que envolveriam vossa possível candidatura. A Cúria, natural­
mente, tem suas próprias circunstâncias especiais. Mas vamos ouvir primeiro
as de Vossa Eminência.
— Naturalmente. Naturalmente. — Lohngren responde com facilidade,
como alguém acostumado ao poder e às manobras do poder. —Vossa Eminên­
cia leu o Relatório Latino-americano. No que me diz respeito, a essência do
Relatório está em sua documentação sobre um trato entre alguns Cardeais la­
tino-americanos e europeus. E depois, a argumentação do Relatório é muito
convincente. Juntando ao que já sabemos sobre Thule e Franzus, a proposta
contida no Relatório Latino-americano torna-se demasiadamente “viável” ,
como diz o senhor.
A prova citada no Relatório do Vaticano sobre a América Latina consis­
te, principalmente, numa troca de cartas entre dois ou três cardeais na Euro­
pa e na América Latina, e em alguns memorandos que andaram circulando.
O “trato”, ao que se supõe, surgirá primeiro através da Cuba de Fidel Castro
e, mais tarde, terá curso através do Cardeal Franzus.
Tal prova oferece sólidas razões para que se imagine que um grande nú­
mero de bispos latino-americanos foi conquistado pela idéia do chamado “so­
cialismo democrático”. No que se refere ao Camerlengo e a Lohngren, “socia­
lismo democrático” nâo é mais que um nome disfarçado para um estado
marxista erigido com a conivência dos clérigos. O Relatório mostra que
esses bispos influenciaram muitos de seus cardeais —Lynch não está de modo
algum sozinho entre seus irmãos cardeais. O Relatório mostra, ainda, que os
africanos estão hesitantes; que uma boa porção de europeus, certamente in­
cluindo Franzus, do Leste, mas também uma parcela de italianos, está aberta
a uma mudança de opiniío. Mesmo alguns dos Cardeais da Cúria poderiam ser
afetados.
Mas há um outro aspecto do Relatório —a chamada “Programação Chi­
nesa” . A “Programação Chinesa”, supostamente um plano originado na China
154
Vermelha, foi redigida em espanhol, tendo sido arquitetada como um meio de
infiltração na hierarquia católica e em toda a Igreja na América Latina, visan­
do a “substituir progressivamente o elemento religioso, no ensinamento ecle-
sial, pelo elemento marxista” .
— Não há dúvida, suponho, —pergunta Lohngren, olhando de esguelha
para a escrivaninha do Cameriengo, coberta de papéis e de documentos, - que
o “trato” é oficial?
— Se não offíciel, —responde o Cameriengo, recorrendo à precisa dife­
rença entre as expressões francesas, — então certamente officieux. Mais do
que “inspirado”. Não há dúvida. É oferta de Moscou. E isso se refere também
à argumentação. Sobre isso não pode haver dúvida. Agora, não admitais a
mesma autenticidade quanto à “Programação Chinesa” .
— Autêntica ou não, profecia autoconfirmadora ou documento e plano
genuíno, isso pouco importa, —responde Lohngren. —O que está esboçado
na “Programação Chinesa” é o que aconteceu! E, por cima disso tudo', sabe­
mos que Franzus foi procurado. Com um trato. Pelos russos. Embora o Secre­
tariado, ao que parece, só disponha de uns poucos preciosos detalhes...
— Franzus tem estado extraordinariamente taciturno — para usar uma
palavra suave, — o Cameriengo dá um sorriso gelado. —Como diz Vossa Emi­
nência, temos poucos preciosos detalhes. Mas é a argumentação do Relatório
que considero...
— Sim. Sim. Essa argumentação. E o trato proposto. Muito perto de um
plano global, se o senhor o desenvolver em sua mente. Foi isso, precisamente,
que me convenceu de que temos um perigo real.
A notícia de um trato, de conivência e planejamento para “entregar” a
Igreja, com sua poderosa influência popular, em áreas-chaves do mundo, a
mãos marxistas — o Cameriengo e Lohngren encaram isso como os fatos da
questão. São veteranos e já lidaram anteriormente com assuntos numa escala
global. Para eles, a decisão importante agora é se o Relatório Latino-america­
no, com a análise que faz do futuro e as recomendações sobre o que deve ser
feito, pode determinar o rumo do Conclave.
Em substância, a argumentação do Relatório diz que a perspectiva de
“finlandização” pelos soviéticos e mesmo a “marxízação” da maior parte da
Europa Ocidental, assim como a “marxização” de quase toda a América Lati­
na, não destroem, pelo temor, a alma da Igreja Romana.
O Relatório assinala que, historicamente, a mentalidade cristã orientado-
ia da Igreja nunca aceitou nenhuma teoria política, nem qualquer instituição
ativa, pragmática, que considerasse coisa alguma, a não ser Deus, como a fon­
te e o agente regulador de poder —de qualquer poder, mas especialmente do
poder político.
Nesse arcabouço de atitudes cristãs, prossegue o Relatório, a democracia
moderna e o marxismo estão de acordo — pelo menos a democracia como
tem sido teoricamente apresentada e politicamente instalada, a partir do sécu-
155
lo XVIII, na Europa e nas Américas. Isso porque, a despeito dos protestos
de democracia feitos por muitos de seus defensores profissionais e do enfo­
que de muitas nações assim democratizadas, o conceito moderno de demo­
cracia é o de que o povo é a fonte e o agente regulador de todo poder polí­
tico. Nenhum espírito genuinamente cristão e romano foi jamais atraído por
essa idéia de humanismo democrático, um filho bastardo do Iluminismo do
século XVII, que acena com um refúgio todo feito de confiança na essência
do mundo e na natureza humana - sem referência ao prévio poder de Deus.
Nesse arcabouço de atitudes cristãs, tanto a democracia quanto o marxis­
mo são conseqüências inevitáveis do ponto de vista de que a realidade é ape­
nas aquela dos sentidos —de que a realidade está presa ao mundo visível, só­
lido, palpável, mensurável. Nesse ponto, o Relatório cita Einstein: “As pes­
soas foram-se aos poucos acostumando à idéia de que os estados físicos do
próprio espaço constituíam a realidade física definitiva.”
Na mente cristã, argumenta o Relatório, a democracia moderna e o mar­
xismo são, obviamente, apenas duas variantes de uma visão de um “universo
confinado” ; uma visão que entende que o próprio universo é tudo;e Deus fi­
ca de fora, ou se identifica com esse universo. A democracia parece ser muito
mais tolerante do que o marxismo. Mas, na realidade, não é e, portanto, não
constitui, ela própria, a solução para os problemas humanos.
Quando a Igreja denuncia o marxismo, não pretende defender a demo­
cracia ou o capitalismo do comunismo, ou mesmo defender a liberdade da
ditadura. Porque, continua a argumentar o Relatório, nós, modernos, chega­
mos todos aos momentos finais de uma civilização que declinou no sentido
de um servilismo exclusivo aos sentidos, caminhando para um totalitarismo
inevitável, que será tão absolutamente completo quer reclame como seu pai
a democracia moderna, quer o marxismo.
A conclusão do Relatório, depois de toda a análise que faz e da argumen­
tação que desenvolve, é que entre o comunismo e a democracia moderna, ao
estilo ocidental, só pode haver uma escolha prática —o comunismo, junta­
mente com a ideologia que o acompanha —ou, como prefere o Relatório, o
“socialismo democrático” . Por quê? Porque, finaliza o Relatório, o comunis­
mo, como sistema político, e o marxismo, como ideologia, dão iodas as pro­
vas de uma abertura para o futuro, de marcha na direção de algum tipo de
futuro, de uma espécie ou de outra. Mas a democracia e o capitalismo são,
ambos, revisionistas e retrógrados.
É por todas essas razões, declara o Relatório, que a liquidação das estru­
turas democráticas da Europa Ocidental não é, nem pode vir a ser, uma fonte
de terror para a mente católico-romana, ou para a mente verdadeiramente
cristã. Mas, conclui o Relatório, a certeza de sua liquidação é a oportunidade
para um rumo completamente novo para a política vaticana, na atitude em
cujo contexto o futuro Pàpa deverá ser eleito, e no tipo de “mandato” do
Conclave que lhe terá que ser dado, como condição para ser eleito.
156
E é nada menos que isso que o Camerlengo e Lohngren estão ambos exa­
minando cuidadosamente, agora. E precisam, além de sopesar o Relatório
iMtino-americano, levar em consideração o relatório que resume as discussões
sigilosas entre o Vaticano e a URSS, sobre a distensão entre os dois. E, em ci­
ma disso tudo, todo mundo pode ver a força e a atração do Cardeal Thule. O
Camerlengo sabe que Thule, Franzus e Lynch estio reunidos, naquele mo­
mento. Esses elementos todos podem estar mais ou menos separados, mas são
todos elementos poderosos, tendendo na mesma direção. Significam eles uma
irresistível maré?
— Acho que temos que enfrentar o duro fato, - Lohngren ainda está
considerando mentalmente as possibilidades, —de que um candidato da Cúria
está fadado a ser italiano, senão romano, e está fadado a ter a mentalidade da
Cúria, senão a ser mesmo um membro da Cúria. E se a argumentação desse
Relatório Latino-americano for correta, a eleição de um homem desses provo­
caria nos soviéticos uma severíssima e nocivíssima reação. E, se breve eles vão
exercer o controle na maior parte da Europa e na América Latina —embora
indiretamente - então a Igreja só poderia sofrer mais.
— Eminência, há mais um fato de que só muito recentemente tivemos
conhecimento e que complica tudo. Parece que há uma aliança, ou pelo me­
nos uma aliança está em preparo, entre Thule e Franzus.
Lohngren levanta as sobrancelhas:
— Eminência, nós na Alemanha já sabemos da aliança entre Thule e
Franzus, ou, seja como for, de uma proposta de aliança, há bastante tempo.
Thule tentou envolver no caso o nosso Cardeal Kiel. Na realidade, comecei a
pensar seriamente outra vez na candidatura pan-européia como um meio de
contrabalançar essa coisa Thule-Franzus. Aí Lynch foi envolvido, bem como
os latino-americanos —o Ostkardinalaat e o Westfcardinalaat, como os descre­
vemos na Alemanha. O que até agora não pude avaliar foi o volume do apoio
que são capazes de arrastar consigo. Mas se ainda pudermos contrabalançar
suas manobras...
— É isso, —responde o Camerlengo. —É exatamente isso! Vamos contra­
balançar quaisquer possibilidades da onda Thule-Lynch-Franzus. A idéia é evi­
tarmos inteiramente o assunto. Entramos na Primeira Sessão, amanhã, como
se a Estrutura Geral ainda estivesse prevalecendo. A maior parte dos Eleitores
não conhece as informações que estão no Relatório, e ainda não vé a aliança
marxista como uma força no Conclave. A maioria entrará na Sessão apoiando
a Estrutura GeraL A posição da Estrutura Geral poderia prevalecer, no caso de
um Conclave rápido. Se fracassar, então imediatamente teremos que lançar
um candidato pan-europeu, um não-italiano, um homem que não seja da Cú­
ria, um homem que represente a idéia da “Europa una” e que agüente firme
contra o plano marxista. Nenhum francês servirá: estão todos com mais de
setenta anos, salvo Gellé, do Leste. —O Camerlengo levanta os olhos e esbo­
ça a sombra de um sorriso. —Gellé não seria a melhor escolha. —Olha para
157
baixo, ainda falando: —Podemos esquecer Buff - já rompeu com o passado.
E esquecer todos os quatro espanhóis e os europeus orientais - todos eles
ocupam posições-chaves em seus próprios países e não podem ser facilmente
substituídos. Da Gomez, o ibérico, só tem quarenta e seis anos; e Witz não
aceita —graças a Deus! Isso deixa de fora os alemães. Kohl e Kiel são ambos
muito jovens. Todos os Eleitores importantes concordam em que o candida­
to certo deveria ter passado dos sessenta anos. Kirchner pertence à Cúria e,
além disso, nós dois sabemos que seus dons não são, positivamente, pontifi­
cais. Lohfmk está com oitenta e dois e isso é velho demais. Munch tem seten­
ta e oito, Borlach setenta e sete e Eck setenta e nove. Logo estariam velhos
demais. Desta vez não poderemos resolver o problema com um Papa provisó­
rio. Há muita coisa em jogo e os acontecimentos desenvolvem-se muito de­
pressa. Isso deixa de fora —o Camerlengo ergue o olhar firme para Lohngren
—Vossa Eminência.
Ele se estica na cadeira e fita o homem que poderá estar reconhecendo
como Papa dentro de uns poucos dias:
— Além disso, meu Venerável Irmão, acontece que o senhor goza de uma
popularidade sem paralelo junto aos bispos e cardeais europeus. Eu sei, ou
soube, que o Bispo Marsellais era seu bom amigo. — Roger Marsellais, Bispo
de Lovon e Secretário da Conferência de Bispos Europeus, é o todo-poderoso
fazedor de reis entre os bispos europeus e é um dos que apoiavam Lohngren.
— Sei também que lhe retirou seu apoio. Mas, por favor, vá falar com ele. Não
é irredutível. Um bom homem, Roger.
Faz-se uma pausa. Quase um descanso, depois da longa conversa que ti­
veram. Depois o Camerlengo passa a ser o negociador prático. Discutiram a
crise, observa ele a Lohngren. E viram que Lohngren é a única resposta viável,
se a posição da Estrutura Geral não puder ser mantida. Agora, então, as condi­
ções! Lohngren tinha dito que imporia suas condições.
Lohngren é direto:
— Bem, primeiro há a questão dos investimentos europeus. Depois, há o
cargo de Secretário de Estado —tem que ser um alemão. E, por último, há
Angélico. — 0 Camerlengo contrai-se na cadeira, à menção do nome de Angé­
lico. Volta-se para encarar Lohngren diretamente e para observar cada expres­
são em seus olhos, enquanto fala.

Durante esta longa entrevista com Lohngren, do outro lado do recinto fecha­
do do Conclave três Cardeais estão sentados, no apartamento de Kand —o
próprio Kand, Karewsky e Garcia, o ibérico. Estão examinando rapidamente
o Relatório sobre a Situação, que Kand ainda não tinha visto.
Aos setenta e oito anos de idade, Kand é um veterano da perseguição na­
zista e das prisões stalinistas. Cardeal desde 1975, um peão no jogo desespera­
do que o Vaticano vem jogando há doze anos com o regime comunista de seu
158
país de origem, Kand resistiu a tudo isso; e, na terra natal, sua diocese está
agora mesmo enfrentando uma das mais odiosas perseguições anticatólicas. O
rosto cansado, os vincos profundos em torno da boca e dos olhos, o corpo frá­
gil ainda ativo, mas constantemente cheio de dores, os tons de sua voz —tudo
isso fala de um profundo sofrimento e da continuada exposição à amarga ini­
mizade.
Embora Kand seja Cardeal, os comunistas não permitirão que seja oficial­
mente designado arcebispo. Sua tarefa consiste em chefiar seus milhões de ca­
tólicos e dar-lhes alguma esperança e alguma direção.
Jan Karewsky, sentado no grupo, é outro tipo de homem. Tem apenas
sessenta e um anos, é animado, sutil, ativo, perspicaz, versado em leitura, de­
sembaraçado, bem humorado; Cardeal desde 1966, chefia uma diocese impor­
tante, está completamente consciente dos problemas com que se defronta a
Igreja, tanto do Leste quanto do Oeste —e não tem ilusões. Entre ele e Kand,
a diferença é mais do que uma diferença de idade. É uma questão de experiên­
cia pessoal e de caráter. Karewsky nunca esteve preso. Nem sofreu nas mãos
dos agentes do KGB. Kand tem sido um mártir em vida. A atmosfera para os
católicos, em seu país, é inteiramente diferente da que prevalece na terra de
Karewsky: uma é relativamente suportável, a outra é mortal. E, antes e acima
da experiência pessoal, Karewsky é uma pessoa naturalmente otimista, expan­
siva. Kand é um homem quieto, não é um lutador, mas é profundamente leal.
O terceiro homem do grupo, José Garcia, um Arcebispo de setenta e qua­
tro anos, é Cardeal há sete. É um caráter forte, metido num corpo sólido. Pro­
gressista em mentalidade, mas cauteloso em assuntos de dogma e de crença,
conservador nas questões de conduta moral, aberto a idéias novas, Garcia não
tem tolerância com esperanças sem base, Tem toda a explosiva altivez de seu
país, a franqueza direta que é característica de seus nobres ancestrais e a ca­
pacidade de sentir simpatia pela fraqueza e de aceitar a transigência. Não o
atinge qualquer mácula quanto ao Partido Falangista, nunca namorou os co­
munistas ou os socialistas, e tem uma reputação pessoal imaculada. “Se Gar­
cia fosse italiano” , consta que o Papa Paulo disse um dia, “certamente que se­
ria Sumo Pontífice.”
— E se nós começássemos pelo Documento de Política Gerall — diz Ka­
rewsky a Kand. —Baseia-se em todos os outros Documentos sobre a Situação.
E passaremos da Estrutura Geral a determinadas passagens de cada Documen­
to, individualmente, quando isso for útil ou necessário para informá-lo de
maneira satisfatória. Enchi a minha cópia de traços vermelhos. Sublinhei os
parágrafos do primeiro capítulo da Estrutura Geral que se referem às condi­
ções internas do catolicismo romano e às perspectivas de expansão mundial
num futuro próximo. Vá passando os olhos neles, enquanto eu os examino
rapidamente, junto com o senhor.
— No que diz respeito às condições atuais do catolicismo, a análise pode
ser resumida em duas palavras: declínio e fragmentação. No decurso da déca­
159
da subseqüente do II Concílio Vaticano, não houve apenas um sério declínio
no número de padres e freiras. Mais propriamente, o que decaiu, de maneira
funesta, foi a prática, o modo de professar-se a doutrina católica tradicional,
que em alguns lugares desapareceu.
— Quanto a pontos reveladores da prática: o uso de anticoncepcionais,
o aborto, as operações de histerectomia e de vasectomia, como meios de evi­
tar a concepção; o divórcio e novo casamento; o casamento consensual; a to­
lerância em matéria de pornografia; na prática de votar-se contra a consciên­
cia e a lei católica; a aceitação de outras religiões como tão válidas quanto o
catolicismo; a recusa da autoridade magisterial do Papa e dos bispos; a negli­
gência dos sacramentos — especialmente do sacramento da penitência e da
Eucaristia. Em todos esses aspectos, não há país rio mundo inteiro em que o
quadro seja animador. Mas o que é sobremodo sintomático é o óbvio declí­
nio da crença religiosa realmente ativa, por parte do clero —cardeais, bispos
e padres.
De vez em quando, os olhos de Karewsky voltam ao exemplar do Docu­
mento de Política Geral cheio de marcas, que está diante dele. Mas ele sabe
muito bem aquilo que está dizendo.
— E mesmo isso não é tudo, —continua o Cardeal fazendo o resumo pa­
ra Kand.
— O Relatório analisa longamente o novo e bem arraigado movimento
visando a eliminar toda e qualquer distinção entre o sacerdote e o leigo; entre
a Igreja e o agrupamento social comum; entre o sagrado e o profano; entre a
terapia psicológica e a prática da devoção religiosa. Essa tendência, essa confu­
são, é estimulada por uma nova geração de teólogos, os chamados teólogos da
liberação, que equiparam a missão da Igreja à atividade social e seu ideal reli­
gioso à melhora das condições materiais de vida. Parece que esses novos teólo­
gos abandonaram os princípios essenciais da filosofia cristã tradicional. Os
Cardeais Lynch, Manuel, Marquez e muitos bispos comuns estão profunda­
mente envolvidos nisso.
— O que o senhor ouviu esta noite nos comentários de Lynch foi apenas
a ponta do iceberg. Homens como Gutierrez, Küng, Schillebeeckx, Laurentin
vêm habilmente agindo e persistindo em sua ação de dentro da Igreja, nestes
últimos doze anos, ou coisa assim. Têm trabalhado com tanta eficiência que
doutrinas básicas como a divindade de Jesus, sua Ressurreição, o perdão dos
pecados, o privilégio de Maria, a Virgem, o poder e a autoridade magisteriais
do Papa como sucessor de Pedro, e a vida depois da morte em outra dimen­
são existencial que se denomina sobrenatural —tudo isso parece ter desapa­
recido da mente e da visão desses teólogos! E das mentes de muitos - de mi­
lhares e milhares —seres que têm influenciado.
— Essa massa de mudança e deterioração é impulsionada por algumas
poderosas forças desagregadoras. Há um grande movimento filosófico indivi­
dualista, de acordo com o qual o ego de cada um representa a norma final e
160
ii única aceitável daquilo que é verdadeiro c daquilo que é certo ou errado,
para cada pessoa. O exemplo católico romano mais importante é o movimen-
; tu católico carismático. Esse movimento não apenas visa a desintegrar a Igre­
ja estabelecida. O próprio narcisismo de seus adeptos os torna adequadamente
preparados para aceitar os embustes desses cristãos que procuram identificar
os esforços da Igreja com os objetivos do marxismo. Bem, isso não é exato em
relação a cada um dos carismáticos. Mas é verdadeiro, em relação ao movi­
mento como um todo.
- Em seguida a essa filosofia individualista, há a subversão gerai, pelos
novos teólogos, da formação sacerdotal nos seminários. Todo o treinamento
\ dos jovens padres, agora, está completamente dissociado das doutrinas tradi-
l cionais e inclinado para o enfoque que enfatiza problemas urbanos, proble­
mas populacionais, direitos políticos, desenvolvimento étnico e um tipo ambí­
guo de fé e devoção religiosa que admite qualquer forma de crença religiosa.
Mas com um “estimulante” especial: em toda essa chamada liberdade, a cren­
ça tem que se adaptar à teoria política específica denominada “socialismo
democrático” . Küng, Lynch e essa turma reaparecem no quadro, a esta altura.
Os autores dos Documentos não vêem diferença intrínseca entre esse socialis­
mo e a estrutura de qualquer regime comunista regular. Como disse Santiago
Carillo, o líder do Partido Comunista Espanhol, em novembro de 1977, não
há diferença fundamental entre um eurocomunista e um socialista. E o senhor
c eu, meu querido Kand, podemos ver melhor do que a maioria o que é que o
futuro reserva, se semelhante tendência, no final, sair ganhando. —Kand le­
vanta as sobrancelhas e encolhe os ombros.
— Quanto à expansão do catolicismo romano num futuro próximo, a Es­
trutura Geral diz, em poucas palavras, que não há esperança à vista, agora ou
nesse futuro próximo —até o ponto em que. humanamente, são capazes de
julgar - de qualquer rápida ou generalizada expansão do catolicismo —ou
mesmo do cristianismo —na África, China, Sudeste da Ásia, índia ou nos paí­
ses islâmicos. Nesse ponto, ninguém discorda. A conclusão é unânime. Os Do­
cumentos sobre a Situação, de 9 a 11, deixam isso claro.
Karewsky procura uma frase na Estrutura Geral e logo a encontra:

“Embora continuem os esforços missionários, serão apenas e presumivel­


mente simbólicos. Não há sinais de grandes conversões, de predomínios
integrais, à vista.”
i Kand continua a ler: “Então, se vamos continuar a falar sobre a vinda do
Reino de Cristo e sobre o prosseguimento de nossa pregação a todas as
nações, é preciso que não nos enganemos a nós mesmos. Os dias da grande
expansão missionária já passaram. Quando ocorreram, sempre se concre­
tizaram por trás de algum poder imperial ou colonial. Tais poderes - com
exceção de um, a URSS —deixaram de existir. E a Igreja não dispõe de
161
nenhum outro conjunto de forças, nas ordens social, política e cultural,
que lhe permita explodir, ante a nação, na brilhante luz de Cristo.”

Kand põe os papéis de lado, murmurando: “ante as nações, na brilhante


luz de Cristo.” - Olha para Garcia:
— Qual é a alternativa, meu amigo? Thule?
— Isso, na minha humilde opiniío, significaria um convite à completa
adulteração da fé! —intervem Karewsky, antes que Garcia possa responder.
— Então que? - Kand prossegue com o enigma. —Não podemos simples­
mente concordar e esperar. Ficaremos apenas esperando e esperando e espe­
rando e esperando e seremos liquidados um a um pelos nossos inimigos, ou
pereceremos na luta.
— 0 senhor acha que isso é mau! —Garcia vira a cabeça para um lado. —
Espere até que tenhamos acabado de lhe dar informações sobre o resto dos
Documentos.
Nem Karewsky, nem Garcia, tem qualquer dúvida sobre a posição de
Kand nos problemas. No entanto, o objetivo deles é conquistá-lo, de maneira
decisiva, para o lado em que estão —para a posição radical. Precisam de seu
testemunho quanto ao que é a vida sob um regime marxista. E precisam tam­
bém ter acesso a suas fontes de informação. Em sua cidade natal, mesmo vi­
giado e controlado pela Polícia Secreta, Kand está no centro de uma rede que
abrange a União Soviética e a arena ocidental.
— Mas o Papa Paulo não percebeu qual é a situação?
Garcia é quem responde, desta vez:
— Oh, sim! Sim, sem dúvida alguma! Ele próprio falou na autodestruição
da Igreja - uma expressão estranha, não acham? E fez alusão à “fumaça de
Satã, que entrou na Igreja”. E creio que ambos os senhores o ouviram dizer,
em 1975, que “a Igreja parece destinada a perecer”. E estava querendo dizer
exatamente isso. Não havia metáforas. Paulo percebeu o perigo, viu o ponto
que as coisas tinham atingido. Tinha uma política: fomentar a união da Euro­
pa, dar o testemunho da verdade, pacificar todas as facções —o humanismo
integrall Mas não funcionou. E quando se deu conta desse fato aterrador, era
tarde demais para modificá-lo. —A voz de Garcia não se mostra dura; antes,
tem um tom de tristeza e de pena.
— Muito bem, - resmunga ele, enquanto vira algumas páginas. —Agora
veja a seção seguinte da Estrutura Geral Estas páginas resumem os Documen­
tos sobre a Situação, de 2 a 4. Ou seja, a condição dos cristãos não-católicos
- as Igrejas Ortodoxa Oriental e Cristã Protestante.
Passando os olhos sobre os parágrafos, Kand fica sabendo que, na opinião
geral dos Cardeais e dos assessores do Vaticano, a condição das seitas cristãs
não-católicas vem deteriorando numa proporção ainda mais rápida que a do
catolicismo.
Em primeiro lugar, algumas das chamadas Igrejas cristãs são cristãs ape-
162
[ nas no nome, mas não em suas posições e crenças oficiais —notadamente a
" Unitarista, a Cientista Cristã, a Mórmon. Kand lê:

[ Se ser cristão significa professar e manter a crença na criação divina do


Universo, tirado do nada; na eficácia da morte de Cristo como a única
forma de redenção de toda a Humanidade do pecado e do Inferno; e,
mais ainda, a crença nos Sacramentos, na divindade de Jesus, em sua Res­
surreição, na vida depois da morte, na existência da alma como algo imor­
tal e realmente distinto do corpo, então tais igrejas ou seitas não são, de
modo algum, cristãs.

Além disso, prosseguem as conclusões da Estrutura Geral, a maioria das


principais Igrejas Protestantes faz jus à mesma crítica, quanto a serem, em
maior ou menor grau, Igrejas não-cristãs. Isso se aplica à grande maioria das
anglicanas espalhadas por todo o mundo —incluindo as episcopalianas dos Es­
tados Unidos —a uma minoria das luteranas e a enormes maiorias das presbi­
terianas, metodistas e batistas.

Podemos dizer que, efetivamente, esses grandes números de cristãos por


definição própria professam crenças que discordam das crenças cristãs
fundamentais, ou que inteiramente se opõem ás crenças cristãs funda­
mentais.

— A coisa pode ser tão má assim? —pergunta Kand. —E quanto a essse


- efêmero, reconheço —entusiasmo que há nos Estados Unidos, por exem­
plo. O —como é que eles chamam a si mesmos —povo renascido? E toda essa
onda de entusiasmo em torno da renovação da liturgia?
- Deixe-me dar-lhe um exemplo da renovação litúrgica dos protestantes,
Garcia volta rápida e vigorosamente à discussão, e fala de uma celebração
pascal organizada há alguns anos em Cambridge, Massachusetts. Foi uma
“Missa Bizantina”, relembra, ou assim alegaram seus organizadores. Foi cele­
brada por quatro ministros de quatro seitas, numa discoteca de Boston, ani­
mada com maquilagem no corpo, saltos atléticos, carícias, gemidos; entremea­
da por cânticos de aleluia, por mantras hindus e pelo beijo da paz. E terminou
quando os “adoradores” saíram correndo para saudar o nascer do sol cantan­
do o sucesso dos Beatles “Here comes the Sun!”.
- Então, como o senhor vê, num verdadeiro frenesi de um ridículo e pa­
tético desespero, —comenta Karewsky.
— Isso não é renovação, —conclui Garcia. —É uma obscena idiotice.
- Devo então compreender, —Kand está surpreso, —que o tão louvado
movimento ecumênico é letra morta?
— Sim. Mas tudo isso constitui uma seção a parte, —diz Garcia com tran­
qüilidade, - e está incluído no Relatório Especial sobre o Pontificado do Pa-
pa Paulo VI. Chegaremos lá, oportunamente. Primeiro, vamos continuar com
a Estrutura Geral.
Mas Kand tem fome de novidades. Só ficou sabendo de retalhos, pedaci­
nhos, e hoje é um festim.
— Antes de deixarmos este assunto, —diz ele, recostando-se na cadeira,
— falem-me rapidamente sobre Suenens e o,renascido movimento dos caris­
máticos,
— Na~o vai acreditar quão sério tudo isso se tornou, meu amigo, —Garcia
lança um olhar rápido a Karewsky, como que procurando sua concordância.
— Ouviu-se Suenens falando em línguas. Em línguas, se me faz favor. Glosso-
lalia.
— Glossolalia? Quando?
— No ano passado, em Kansas City, no Estado de Missouri, onde houve
um grande encontro de carismáticos, numa reunião internacional... “Ad gal-
lum hum...” Diz-se que foi assim que começou, ou mais ou menos assim.
Kand encara Garcia, depois se volta lentamente para olhar para Karewsky,
depois de novo para Garcia, como quem não pode acreditar:
— Os senhores não falam sério?
— Garanto a Sua Eminência que falo sério. E Sua Eminência aqui fala
muito sério. O relatório, —Karewsky afirma, —é muito explícito. Paulo sa­
bia, como todos nós sabemos, que a síndrome do renascimento é apenas uma
outra fase do declínio do protestantismo. Lutero e os outros reformadores de
seu tempo propuseram a justificação somente peia fé. sem boas obras. Quase
aboliram qualquer necessidade de batismo ou de arrependimento pessoal.
Agora, o negócio do nascido de novo significa que não se precisa do batismo
com água. Nem da missa. Ou da Eucaristia. Ou da confissão. Ou de padre. Ou
de Papa. Ou, por falar no assunto, de um Jesus histórico. Tudo isso acaba se
resumindo na mesma coisa: “economismo religioso” —minha própria defini­
ção do tópico: a gente fica com aquilo que sente, o que sente passa a querer,
aquilo que sente é o que gosta. E esquece o resto.
— E que é que Thule tem a dizer disso tudo? - pergunta Kand.
— Isso o senhor ouvirá amanhã, tenho a certeza.
— Agora, — interrompe Garcia, —vamos continuar com o exame, ou o
senhor não ficará preparado para a Primeira Sessão, amanhã. O próximo seg­
mento sobre a Ortodoxia Oriental é tragicamente simples de resumir: a Orto­
doxia está nas catacumbas e lá ficará, morrendo lentamente. O que vier a apa­
recer à luz do sol, num dia futuro, se comporá de destroços. A Ortodoxia ofi­
cial na URSS foi abastardada, através de fiel servilismo a seus senhores políti­
cos no Kremlin. A não-oficial —entre o povo comum —continuará existindo
na URSS e na Grécia e em outros lugares. Mas não tem perspectiva de qual­
quer desenvolvimento ou expansão, num futuro próximo.
Quanto à religião não-cristã, —Garcia continua resumindo o Documento,
164
compondo o quadro que Kand precisa conhecer a fim de poder julgar a condi­
ção e as perspectivas da Igreja Romana. —O budismo e o hinduísmo estão
sendo corroídos também, na medida em que a vida moderna invade os países e
os povos onde predominam. Para eíes, não há acordo possível, que lhes venha
a permitir a sobrevivência em sua pureza essencial. Estão condenados ao mon­
tão de lixo, Provavelmente, —Garcia conclui, —como diz o Relatório, “pro­
vavelmente partes isoladas de cada um deles poderão se desenvolver como
uma espécie de sentimento social, um tipo de cultura ética, por orientais e pa­
ra orientais” . Mas, no essencial, poderemos deixá-los de lado, como fatores
sem importância.
— Agora o islã, —Karewsky toma então a palavra. - De acordo com os Re­
latórios, o islamismo é um caso apenas ligeiramente diferente. Dizem os Rela­
tórios que, em alguns de seus setores, há uma possibilidade de que possa
se projetar para fora do gueto em que vive. Mas, no geral, o quadro parece
mau para o islã. Nos principais países muçulmanos, o islamismo está sendo
lentamente transformado numa ideologia política e num simples sistema cul­
tural de vida. O paralelo mais próximo, bastante ironicamente, é com a gran­
de maioria de judeus, que se mantém presa a alguma coisa a que chamam de
judaísmo, mas que na realidade já não é mais uma religião, tanto quanto
c um enfoque étnico e cultural, ou uma “identidade”, agora baseada no
Estado soberano de Israel, que é seu principal suporte. Como sempre, é o
impacto da vida moderna. O principal suporte do islã é a Arábia Saudita,
e em particular a dinastia Saud. Em outras palavras, estão todos em difi­
culdades.

Enquanto Kand continua recebendo suas instruções, e enquanto o Camerlen-


go continua seus entendimentos com Lohngren, em outro apartamento, pró­
ximo ao gabinete do Camerlengo, o Cardeal Angélico acaba de receber oito
visitantes.
- Vossa Eminência, - o Cardeal Azande, da África, inclina-se diante de
Angélico. - Por favor, perdoai esta invasão enorme! Mas todos nós, —indica,
com um pequeno gesto gracioso, os outros sete Cardeais negros, de pé em vol­
ta e atrás dele —Duala, Salekè, Kotoko, Lotuko, Chaega, Bamleke, Makonde
. queremos receber vosso conselho. — Angélico faz uma reverência a seus
visitantes; não sorri, mas o rosto é agradável.
- Por que é que os senhores todos não se sentam confortavelmente? Se
lmj puder prestar algum auxílio... - Volta-se, por um instante e Azande repara
que Angélico levanta os olhos para uma imagem do Sagrado Coração de Jesus,
num quadro pendurado na parede. Azande sorri para os outros: o hábito que
(em o Cardeal de rezar sempre, em todas as ocasiões, é conhecido dos demais
Cardeais.
- Sua Eminência, estamos a caminho de uma reunião no apartamento
165
do meu Senhor Cardeal Thule. Temos uma idéia aproximada daquilo que nos
vão pedir que façamos e que aceitemos. Mas há uma falha em nossas informa­
ções —ou, talvez, em nosso raciocínio. E o senhor é a pessoa mais qualificada
para nos esclarecer nessa matéria.
— Nenhum de nós, Eminência, —Makonde, o mais velho dos cardeais ne­
gros, toma a palavra, - teve ocasião de se aproximar suficientemente do as­
sunto. No entanto, é de importância capital. Para usar de franqueza, trata-se
do Santo Padre precedente e de seu Pontificado. Há dois Documentos Suple­
mentares sobre a Situação, como o senhor sabe, que se referem ao Papa Pau­
lo. E nós lemos esses Documentos. Mas isso não é o bastante. Sabemos que
teve alguma participação na preparação de ambos os Documentos. Uma vez
que trabalhou em estreito contato com o Papa Paulo e uma vez que foi tão
bom amigo dele, gostaríamos de ouvir de seus lábios não apenas a substância
do que se contém nesses dois Documentos, mas antes como é que Sua Emi­
nência acha que os mesmos deveriam influenciar nosso julgamento, na esco­
lha de um candidato.
Os Documentos Suplementares sobre a Situação tiveram uma redação cu­
riosa. Tratando ambos das diretrizes financeiras e políticas de Paulo, assim co­
mo da forma pela qual o Papa implementou os decretos do II Concílio Vati­
cano, os autores dos Documentos limitaram-se a expor os fatos: o declínio
da obediência religiosa; a revolta do clero; a expansão do pensamento marxis­
ta entre teólogos e filósofos; o enorme declínio das vocações sacerdotais; os
prejuízos financeiros do Vaticano; as concessões do Vaticano aos regimes sa­
télites dos soviéticos; a perseguição e a supressão da Igreja nos países desses
regimes. Tais Documentos resumem-se numa longa jeremiada de erros, infor­
túnios e deficiências. Mas, ao contrário dos outros Documentos, não apresen­
tam nenhum julgamento disso tudo. Não há nem mesmo um resumo geral do
significado daquilo que Paulo realizou.
A política geral de acomodação de Paulo a praticamente todas as corren­
tes liberais e de esquerda e sua violenta rejeição do movimento tradicionalista
são ambas descritas —mas, ainda aqui, não é feito nenhum julgamento defini­
tivo. Em vez disso, os dois Documentos concluem dizendo, em resumo, que
toda a política de Paulo, como Papa, representou um “julgamento aberto”
das enormes mudanças que o mundo das décadas de sessenta e setenta experi­
mentou.
— O fato é, - observa Salekê, —que estamos saturados de um tipo de
julgamento —se é que se pode chamar isso de julgamento. Precisamos de um
elemento de equilíbrio.
— Eu sei. —Angélico entende o problema. —Equilíbrio é, muitas vezes,
a coisa mais difícil de se conseguir nos dias de hoje. —Olha para Makonde, o
mais conservador entre os negros. —Sua Eminência esteve presente ao II Con­
cílio Vaticano. Percebe, talvez...
— Dei o meu ponto de vista, —diz Makonde resolutamente. —Meus Ir­
166
mãos me ouviram explicar que o Concílio foi seqüestrado pelos teólogos li­
berais. Mas continuamos precisando de equilíbrio. —Na opinião de Makonde,
como na de Angélico, muito daquilo que aconteceu no reinado de Paulo, bem
como muitos dos atuais problemas da Igreja, foi causado pela atitude que o
Papa assumiu relativamente ao que, sem rebuços, se referiu como seqüestro.
— O que tenho a dizer sobre esses assuntos é aquilo que, individualmen­
te, penso. —Angélico está evitando dar qualquer impressão de liderança, da
autoridade de um porta-voz, ou de opiniões “inspiradas”. —Todos os senho­
res conhecem a minha história. Assim, terão que comparar com ela aquilo que
eu disser.
Angélico tem razão. Sua história na Cúria Romana foi tempestuosa, se­
gundo qualquer tipo de padrões, e é por certo bem conhecida.
— Concordo, —está ele dizendo agora, —com a substância dos dois Re­
latórios Suplementares. Pode haver muito pouca dúvida quanto ao fato de
que um grupo — podem chamá-lo de Grupo do Reno, Grupo Conciliarista,
Grupo do Norte, do que quiserem — um grupo tomou conta do Concílio.
Apresentaram declarações sobre doutrina eclesial com uma ambigüidade deli­
berada —e estou dizendo deliberada — conveniente para aqueles que lhes de­
ram origem. Queriam facilitar aos cristãos não-católicos e, na realidade, aos
não-cristãos, a aproximação com a Igreja. Acho que, no geral, a intenção deles
era boa. Mas é essa própria ambigüidade que, em grande parte, nos conduziu
à nossa crise atual, pois nos deixou com pouca proteção contra uma minoria
inteligente que, agora, quer seqüestrar a Igreja propriamente dita.
— Mas deve ter havido gente no Concílio capaz de ver o perigo, - objeta
Bamleke. —Por que é que a maioria dos bispos do Concílio aceitou tudo isso?
— Em razão da própria ambigüidade! O Papa João tinha falado em abrir
janelas. Bem, ali as janelas estavam sendo abertas! Todo tipo de interpretação
estava livre para irromper casa adentro, podia mesmo instalar-se permanente­
mente na casa do Senhor! E, de fato, foi isso que fez! Os senhores precisam
tentar recordar a atmosfera do Concílio —a mídia, os jovens bispos, os jovens
teólogos, os judeus, os protestantes. Liberdade. Essa era a palavra mais usada.
Aberturat Reconciliação! Franqueza! Fraternidade! Compreensão! E, por trás
de tudo isso, pela primeira vez em muito tempo, poder sobre a Cúria Roma-
na\ Era tudo tão inebriante, tão profundamente inebriante! E nenhum de nós
poderia então ter antecipado a maneira como tudo aquilo iria ser usado mais
tarde.
— Não foram os bispos —os únicos mestres autorizados na Igreja de Cris­
to —mas os jovens teólogos que, manobrando com habilidade, assumiram o
controle de todas as comissões pós-Concílio, que detinham o poder de inter­
pretar e implementar as decisões conciliárias. - Angélico olha com firmeza
para seus interlocutores. Quer ter a certeza de que compreenderam aquilo que
disse. —Observem bem! Através de manobras inteligentes, os jovens teólogos
tiraram dos bispos o próprio poder de interpretar e implementar as já em si
167
ambíguas decisões do Concílio. Os resultados não deveriam surpreender ne­
nhum de nós. Pelo menos, não em retrospecto.
— Nós mesmos sabemos como é que essa ambigüidade foi explorada, -
observa Kotoko. — Sofremos em conseqüência dessa exploração. Por exem­
plo, em nossas populações negras da África é importante que o sacerdócio e o
bispado sejam separados e distintos do povo leigo. Nossos povos tém um pro­
fundo senso do sagrado, do hierático, da reverência e do respeito religioso.
Mas se se perguntar à maioria dos teólogos ocidentais —esses que estão escre­
vendo livros e artigos, hoje em dia, e ensinando nos maiores seminários da Eu­
ropa e da América, para onde nossos jovens têm que ir fazer a sua formação -
dirão que não deve haver distinção alguma entre o clérigo e o leigo. Nenhuma
distinção em coisa alguma - roupas, funções, respeito, ocupações na vida diá­
ria, casamento, sexo e assim por diante. Isso é catastrófico.
Os outros concordam.
- A ambigüidade foi muito longe, —pondera Angélico.
Cada um dos documentos do Concílio está marcado pela sutil ambigüi­
dade de que estão falando Angélico e os Cardeais negros. O documento con­
ciliar do Vaticano sobre a Igreja não afirma que a Igreja Católica é a Igreja de
Jesus; diz que a Igreja de Jesus subsiste na Igreja Católica. Uma diferença sutil
que, na inocência de uma década atrás, não seria questionada entre homens da
mesma fé. O documento sobre a Liturgia omite deliberadamente a palavra-
chave do catolicismo romano transubstanciação, assim abrindo a porta para
outra interpretação não-católica do próprio âmago da missa católica e da cren­
ça católica. A autoridade magisterial do Papa é referida de maneira tal que po­
de ser tomada no sentido tradicional —o do privilégio pessoal do Papa como
Papa —ou simplesmente como parte da autoridade geral da Igreja de ministrar
ensinamentos, simplesmente encarada como o presidente de um conselho in­
ternacional, em que detém o voto decisivo e faz jus a uma porção extra de res­
peito.
O objetivo do casamento é descrito como sendo, primordialmente, o
exercício das relações conjugais, em lugar do propósito cristão global de
amor, filhos, família. O Cardeal Thule foi um dos principais defensores dessa
nova opinião, durante o Concílio. Daí se concluiu que tudo mais —anticon-
cepção, aborto, divórcio, mesmo sodomia entre pares que isso consintam —é
lícito, para que se chegue a esse amor marital.
Um exemplo banal mas expressivo da ambigüidade do Concílio é dado
pelo Parágrafo 17 do Decreto sobre a Renovação da Vida Religiosa: —os tra­
jes usados por monjes, freiras, padres deveria, determina o decreto, “atender
aos requisitos da saúde e ajustar-se às circunstâncias de tempo e lugar, bem co­
mo ao serviço exigido daqueles que os usam. As roupas de homens e mulheres
que não correspondam a estas normas deverão ser mudadas”. Tais “normas”
são tão gerais que, na realidade, permitiram, em muitos casos, a total abolição
de todas as vestimentas distintivamente religiosas. Essa não era a intenção dos
168
bispos. Mas a ambigüidade da linguagem que os novos teólogos propuseram -
e que os bispos aceitaram —permitiu que aqueles interpretassem e implemen­
tassem o decreto em termos que foram muito além daquilo que os bispos pre­
tendiam ou esperavam.
Quando se compreende que essa ambigüidade foi sistematicamente usada
em todos os ensinamentos doutrinários emanados do II Concílio Vaticano —
e, conseqüentemente, aplicada a muitos dos dogmas essenciais da Igreja - não
pode haver surpresa ante o fato de que, através de toda a Igreja Católica, hoje
em dia, muitos intelectuais, teólogos, filósofos, escritores, juntamente com al­
guns cardeais, bispos, padres, freiras e gente leiga comum, não sejam mais ca­
pazes de conseguir recitar o Credo tradicional. É esse resultado do Concílio
que perturba os africanos. E Angélico entende isso.
— Agora, no que diz respeito ao Papa Paulo, propriamente dito, - Angé­
lico vai chegar ao fundo da pergunta que os africanos lhe fizeram mas, por um
momento, pára e olha fixamente para o chão. Depois começa, lentamente: -
Desculpem-me Suas Eminências, se falo com aparente dureza de um homem a
quem, pessoalmente, tanto devo... - levantando os olhos para o teto, por um
instante perdido em alguma lembrança, em algum pensamento, ou em alguma
prece muito sua, - que possa o próprio Montini me ajudar com suas orações e
me perdoar por algum mal, ou alguma ofensa, que eu lhe faça agora. Mas, —
baixando os olhos até fixar os de Bamleke, —só posso dizer aquilo que penso.
— 0 Papa Paulo era a pessoa menos indicada para lidar com aquela situa­
ção. - Agora Angélico fala sem fazer pausa, mas com aparente esforço e difi­
culdade. — Sua teologia era inadequada. Sua filosofia do homem e da história
era teologicamente errônea — não era herética, reparem os senhores - mas
simplesmente errônea.
— No íntimo, Montini achava que a função da Igreja não era tanto, já
agora, a de converter, de estabelecer o trabalho missionário, de empenhar-se
em polêmicas, ou de engajar-se em qualquer discussão ou atividade política
ou social, ou a de manter um padrão diante dos olhos de todos os homens e
mulheres, ou mesmo a de agir por sua própria iniciativa, na sociedade dos
seres humanos.
— Ele parecia pensar que a missão da Igreja era simplesmente existir.
Existir como um fermento. Como uma luz. Era a de abrir-se e permitir que
todo tipo de influência viesse a moderar, adaptar, modificar e colorir a pró­
pria conduta da Igreja, de modo que esta pudesse assumir a posição adequa­
da ao mundo que a cercava. Dessa maneira, pensava ele, os acontecimentos
poderiam fazer a integração de tudo que há, em termos de bondade humana,
beleza e amor do eterno —debaixo das asas da Igreja.
— O perigo agora parece óbvio - o de que o mundo seja capaz de mudar
a Igreja, em vez de acontecer o contrário. Mas, em seu coração, Montini acre­
ditava que todos os homens procuram o bem, são fundamentalmente bons. E
achava que a Igreja não deveria, de forma alguma, entrar na área da ordem po*
lítico-social. Deveria se manter distante de tudo isso, salvando, santificando,
adaptando e atraindo todos os homens, por meio do amor, para a busca da
unidade na concretização democrática da fraternidade universal... —Angélico
esboça um sorriso, quando a frase acaba. Depois: —Na realidade, estou citan­
do de memória o autor favorito de Montini —Maritain, Jacques Maritain.
— Mas Maritain rejeitou tudo isso, quando era muito mais velho e esta­
va perto da morte! —exclama Bamleke, com sua voz de baixo profundo.
— Sim! Claro que sim! Mas Montini não era filósofo, nem escritor; era
Papa. Não podia mudar de opinião tão facilmente. Não uma, mas muitas ve­
zes, fez acordos em seu nome e no de sua Igreja. Com os chamados novos teó­
logos. Com os autodeclarados conciliaristas. Com os jesuítas. Com os protes­
tantes e ortodoxos, e com os soviéticos da Europa Oriental. Não podia desfa­
zer o mal. Fez o que pôde, naturalmente, mas não podia desfazer o mal.
— Nesse caso, Eminência, —agora quem fala é Azande, —aquilo que o
Meu Senhor Cardeal Thuie e o Meu Senhor Cardeal Lynch e outros estão pro­
pondo é apenas uma extensão e uma continuação da atitude errônea de Mon­
tini?
— Não! Não! Não exatamente! —Angélico é quase rude em sua imediata
reação- - Desculpe-me, Eminência. 0 que quero dizer é: não é uma continua­
ção, é antes uma consumação, um coroamento. Montini pôs os dois pés no
buraco. Quando compreendeu o que tinha feito, fez o pouco que lhe restava
fazer, para ver se a Igreja não se perdia em seu erro. Suas Eminências, sejam
quais forem os motivos delas, nu sua compreensão dos assuntos, desejariam
que metêssemos todo o corpo da Igreja no mesmo buraco —e bem profunda­
mente.
— Uma última pergunta, Eminência, —a voz de Azande assume mais um
tom, de seriedade. —Há alguma contingência em que Sua Eminência pudesse
considerar a apresentação de seu nome para indicação?
Há um súbito silêncio. Angélico levanta-se rapidamente e atravessa o apo­
sento, até a janela que dá para a rua. Da cidade, em torno da Domus Mariae,
vem aquele som baixo, calmo e profundo do tráfego distante, que nunca ces­
sa em Roma.
Os outros esperam. São homens compassivos, de sensibilidade, todos ca­
pazes de perceber a emoção de um momento daqueles, a luta que se trava na­
quele italianozinho atarracado, de largos ombros vigorosos e sensível como
uma criança.
Depois de alguns momentos, Angélico se volta. O rosto está sereno, os
olhos sorridentes — mas nenhum dos negros se engana com a aparência das
coisas.
— Por que é que nós todos não refletimos um pouco mais sobre isso?
Há... aah... problemas...
Os negros levantam-se ; cada um deles cumprimenta Angélico com uma
inclinação, murmura algumas palavras simples de despedida —e sai. Quando o
170
último já está fora, o mais velho, Makonde, volta-se para fechar a porta atrás
de si e, quase por acaso, lança um rápido olhar a Angélico. O rosto de Angéli­
co perdeu a sorridente e convencional compostura de um momento antes e
ambos se surpreendem com o rápido encontro dos olhares. Depois Makonde
diz, suavemente:
— O Papa Pio, que me sagrou, Venerável Irmão, disse um dia que o te*
mor vinha de Deus, mas o medo é do Demônio. É medo ou temor que há em
seus olhos?
Angélico dá uma risada leve:
— Reze por mim. Reze por nós. Por todos nós, —responde.
— Rezarei, Eminência, —diz Makonde, ainda o encarando, agora sorrin­
do abertamente. - Rezarei. Fique em paz. Jesus nos dirigirá, a todos.

No andar de cima, no apartamento de Thule, está a ponto de começar uma


sessão estratégica entre seis Cardeais: o próprio Thule, Franzus, da Europa
Oriental, o anglo-saxão Buff, Lynch, da América Latina, Tsa-Toke, do Orien­
te, e Motzu, o asiático. Estão esperando a próxima chegada do Cardeal Fran-
cis e dos africanos negros.
A figura dominante ali é Thule, que convocou a reunião com a finalidade
de foijar uma aliança. Sabe, como todo mundo sabe, que Lynch e os Cardeais
que formam com ele já têm um acordo estabelecido com Franzus. Ambos os
Cardeais, além disso, contam com a adesão da maioria dos Cardeais franceses.
Buff foi convidado por causa de seu acesso aos Cardeais da Comunidade Britâ­
nica, de sua aversão à Cúria Romana e da aceitação de que goza junto aos lí­
deres protestantes.
Tsa-Toke, aliado de Franzus e de Lynch, é um valioso crédito: é asiático
e viveu sob um dos mais rigorosos regimes marxistas da Terra; é, secretamente,
contra os Estados Unidos e não hesita em dizer que os católicos romanos po­
dem colaborar com os regimes marxistas-leninistas.
Francis, o oriental, é uma porta aberta a Thule para os africanos negros.
Sem que este saiba, Francis tem conhecimento do fato de que os africanos
não toleram as atitudes de Lynch e de Thule, mas guarda sua opinião para si
próprio. Thule vai ficar sabendo disso, só que da maneira mais difícil.
No entanto, os principais alvos de Thule são Lynch e Franzus. Com Buff,
já tem um entendimento de facto: ambos prevêem uma Igreja em que os cris­
tãos católicos e os não-católicos possam se misturar e permutar seus ritos,
conceitos, crenças, costumes e mútua aprovação. Lynch e Franzus vieram pa­
ra este Conclave satisfeitos com a participação nele e não plenamente conven­
cidos de que poderiam conseguir a eleição de seu candidato favorito.
O objetivo de Thule é conseguir a união de todos eles em tomo de um
candidato de concessão. Estaria disposto a acompanhar Lynch na candida­
tura de Yiu, o asiático, e de unir-se a ele numa votação prematura e apressada.
171
Porque receia que, se o Conclave se prolongar além de uns poucos dias, possa
haver uma sensação de alarme entre os Eleitores. Estes poderiam facilmente
recuar, diante da plataforma de Thule, que defende completa “abertura” da
Igreja aos cristãos não-católicos, ou de uma positiva aceitação, pela Igreja, dos
sistemas de governo marxista, ponto essencial da política de Lynch e Franzus.
Uma combinação de ambas essas atitudes, poderia ser algo demasiado para
gente demais! E, assim, a ocasião estaria perdida.
Thule e Buff haviam-se encontrado antes, por alguns minutos, para coor­
denar as próprias idéias sobre a maneira de apresentar seu plano de uma alian­
ça. Os primeiros a se reunirem a eles são Lynch, Franzus, Tsa-Toke e Motzu,
este sorrindo, animado. Tsa-Toke é calado, acanhado, um homem de poucas
palavras —se tanto.
Franzus, surpreendentemente, toma a iniciativa:
— Acho que quando acabarmos aqui, esta noite, —começa ele, —devere­
mos ter um plano traçado. E acho que esse plano deveria ser posto em prática
o mais depressa possível. Há um perigo direto em qualquer período de espera.
Não podemos nos dar ao luxo de uma demora. - Thule e Buff trocam olha­
res.
— Exatamente o que estivemos pensando, Eminência, — diz Thule ani­
madamente.
— Mas, —acrescenta Franzus, —e quanto a essa execrável Política Geral
e ao candidato dessa Political Já não contam eles com uma nítida maioria
acompanhando tudo isso?
— E aí, exatamente, o ponto em que podemos agir, —interrompe Thule.
- Em resumo, Buff e eu queremos sacudir o esperado desenrolar da Primeira
Sessão, amanhã de manhã, forçando um voto de aprovação ou de desaprova­
ção da Política Gemi. Se nós todos nos unirmos, se nossos discursos de apre­
sentação forem bem elaborados, podemos conseguir que essa Política Geral —
e o seu candidato —saiam de cogitação. Isso deixará um vácuo, e nesse vácuo
pularemos nós, como o único grupo com uma alternativa viável.
— Em suma, —resume Buff, —todos nós temos que estar de acordo em
que a idéia de um candidato italiano, mesmo de um italiano não-romano, já
não é uma Idéia válida.
— Não é tão difícil assim, Sua Eminência, — Thule acrescenta o comen­
tário suavemente e com gravidade. —De fato, acho que uma rejeição formal
de um italiano não-romano e da Política Geral num só voto, amanha, será
exatamente o impulso de que precisamos para deslocar o rumo do Conclave
na direção certa. Vale a tentativa. Além disso, há um extraordinário espírito
de independência neste Conclave, Não acho que tantos assim tenham aceito
aquilo que foi dito pelo Camerlengo.
— Bem, precisamos de alguma coisa para mudar a atual tendência do
Conclave, — murmura Franzus. — Segundo a minha experiência e segundo
o que me foi dito no ano passado, a tendência atual para um candidato ita­
172
liano será desastrosa. Simplesmente, vai-se chocar com a realidade. Isso é
tudo. — Todo o mundo de Franzus é limitado pelo poder militar da URSS
e pela revolução crescente na América Latina. Para ele, isso é a realidade.
Francis chcga nesse momento, senta-se e diz, bem humorado:
— Alguém me dá as informações.
— A idéia geral, Sua Eminência, é o que se segue, —Thule atende, ime­
diatamente. — Todos nós sabemos, por aquilo que o Camerlengo disse hoje,
que, no contexto da chamada Estrutura de Política Geral, só um tipo de can­
didato realmente tem a chance de conseguir maioria —mesmo que seja uma
pequena maioria. Tem que ser um italiano. A Política Geral será uina orien­
tação ou de estreita identificação com as potências ocidentais, ou de estreito
acompanhamento da projeção política dessas potências. E, para ser franco,
isso significa a política dos Estados Unidos. A política americana tem sua
pregação feita com base numa projeção para um período de cinco a dez
anos, segundo a qual se permitirá à URSS um crescimento limitado - o fa­
moso, ou antes, o infame CL. Como me desagrada essa expressão! Enfim, se­
rá permitido o CL na Europa Ocidental e no Mediterrâneo e tudo isso é pla­
nejado, em vista de mais outro período de distensão afetando a África, a
América Latina e a índia. Isso significa uma fase durante a qual todo e qual­
quer esforço da parte dos capitalistas e dos comunistas - excluída a confron­
tação direta das superpotências —será admitido, para que se possa ver para
que lado soprarão os ventos dos negócios humanos. Uma vez que a maior
parte dos interesses econômicos e financeiros da Santa Sé foi vinculada aos
Estados Unidos, a Política Geral agora proposta à Santa Sé para a escolha de
um candidato foi configurada de acordo com isso. É dinheiro e é imperialismo
ditando a escolha do Papa.
— E isso significa, —Francis tira a conclusão, - que a Igreja desencoraja­
rá os movimentos populares na América Latina, na Ásia e na África - mesmo
opondo-se oficialmente.
— Sim, - afirma Thule, - exatamente nos lugares em que está o futuro
da Igreja, os defensores e formuladores da Política Geral desejam dificultar e
paralisar a ação da Igreja.
— Assim, — acrescenta Franzus, —queremos esvaziar a Política Geral e
sua candidatura.
— E queremos estabelecer um acordo sobre um candidato, — conclui
Buff. —que dará satisfação a todos nós e oferecerá um máximo de apelo pa­
ra outros Eleitores.
Thule acompanha as observações de um e de outro. Considera ser aquele
o momento em que deve lançar sua proposta de uma frente unificada apoian­
do a idéia geral que defende, de uma nova política papal. Sabe que tem que
pisar com cautela. Baixa os olhos para as mãos, meditando. As pálpebras pesa­
das, por um momento, escondem seus sentimentos.
—Meus irmãos, — diz finalmente, enquanto levanta a cabeça, os olhos
173
cheios de expressão, — há ainda uma razâb mais grave pela qual faríamos
a proposta de nossa alternativa. — Olha para Motzu e Lynch, depois para
Buff. —Há um espírito novo, em nossos dias, atravessando a face da Huma­
nidade. Se tivermos o tipo de candidato esboçado na Declaração de Política
Geral e consentâneo ao suposto acordo majoritário dos Eleitores —pessoal­
mente, duvido que todos os Eleitores tenham consciência do que está acon­
tecendo —então a Igreja cairá num marasmo de que não sairá facilmente du­
rante várias gerações. Porque, na Política Geral, esse candidato é presumida-
mente um italiano; espera-se que sua política pontifícia se conforme estrei­
tamente aos interesses e políticas que os Estados Unidos têm na Europa e no
Terceiro Mundo. Mas nada —especialmente os Estados Unidos —pode impe­
dir a revolução. Os Estados Unidos estão acabados. E se os apoiarmos, e se o
novo Papa os apoiar, a Igreja também estará acabada.
Buff intervem, para suavizar a única dificuldade que se tornou visível a
todos os presentes. Só porque Lynch e Franzus advogam a marxização dos
países do Terceiro Mundo, e mesmo na Europa Ocidental, isso nâo quer dizer
que aprovam a Igreja aberta de Thule. No que diz respeito à fé, Lynch e Fran­
zus são tradicionalistas.
— Sabemos, naturalmente, que estamos de acordo no ponto essencial —
um Pàpa nío-italiano. Também é claro, contudo, para o Cardeal e para mim,
que alguns dos senhores têm sérias apreensões quanto ao “espírito novo” de
que o Cardeal Thule ácabou de falar. E, às vezes, as vozes que representam es­
se espírito novo são assustadoras. Mas não creio que as duas posições sejam
irreconciliáveis...
— Francamente, Sua Eminência, - Franzus interpõe-se, dirigindo-se a
Buff, —não é conosco —pelo menos, não muito —tanto quanto com nossos
irmãos africanos que o senhor vai ter dificuldade. Já consideram a sua nova
Liturgia uma confusão incontrolável e nada inspiradora. Nós, do velho Rito,
não nos incomodamos, - o Cardeal Francis chefia os católicos que mantive­
ram a antiga liturgia inalterada pelas mudanças introduzidas pelo II Concílio
Vaticano, nos anos sessenta, —mas os africanos não aceitam essa nova Litur­
gia Romana. Principalmente porque lhe faltam completamente profundeza e
mistério. Creiam-me, eles vão retornar às antigas formas de culto, da maneira
que lhes seja possível.
— E o que também não podem aceitar são os seus novos teólogos e a sua
nova teologia. Não adianta discutir sobre isso com eles. Para eles, gente como
Kiing, como Schillebeeckx, Curran, Heusing, Dulles, Baum, Laurentin, gente
desse tipo já é não-católica, se é que não é não-cristã. A i ê que está a sua difi­
culdade!
— Sim, — acrescenta Motzu, — e mesmo o movimento carismático e
tudo isso. O senhor não percebe que especialmente os africanos têm muita
consciência da dignidade e poder de que gozam como bispos e da centralida­
de do poder em Roma? Ora, por toda parte os carismáticos fazem o que que-
174
rcm, seguindo sua própria inspiração. Se é que não estão dizendo aos bispos e
ao Papa o que deve ser feito, e o que o Espírito Santo diz a eles que deve ser
feito! 0 senhor sabe —é demais! Realmente!
— E o senhor tem outra dificuldade, — acrescenta Franzus. — Muito
bem! Então, se a Política Geral deste Conclave é pró-EUA, pró-Ocidente, a
URSS não vai gostar disso. Mas não percebe que sobrevivemos, no bloco ori­
ental, apenas porque em grande parte continuamos tradicionalistas? Quero
dizer, Lefebvre seria muito bem recebido por nós. O senhor pode fazer com
que valha a pena, para nós, sermos seus aliados? Não aceitamos os novos teó­
logos; para nós, são demônios. E, se marcharmos com o senhor, como é que
vai conseguir harmonizar sua nova teologia, seu “espírito novo” , com as po­
pulações da Hungria, da Polônia, da Lituânia, da Letônia, da Estônia, da Es­
lováquia e assim por diante?
— Nossa maior força, —argumenta Thule, —é a necessidade, a necessida­
de de mudança universalmente sentida. Uma necessidade tão grande que po­
demos apresentá-la sob a forma de uma fileira de ameaças, que podem ser
exercidas sobre a Igreja, se esta não se curvar na direção do vento destruidor
que hoje sopra.
— Primeiro, há a condição da Igreja nos países ocidentais, incluindo os
Estados Unidos. Já é bastante má, como os senhores sabem. Mas seus líderes
intelectuais têm-se mostrado dispostos a esperar por um novo Papa, na espe­
rança de que ele venha a fazer a adaptação que esses intelectuais consideram
necessária. Se não conseguirem isso do novo Papa, podem ficar na expectati­
va de uma verdadeira ruptura, de um cisma. Esse é um dos graves perigos a
delinear.
— E essa, meu caro Franzus, é a resposta à dificuldade que citou. 0 se­
nhor diz que esses teólogos são demônios. Não sei, não penso assim. Tudo
que sei é que dão voz a uma profunda mudança. Não creia que seus católi­
cos além da Cortina de Ferro estão livres dessa mudança. Talvez, na reali­
dade, o senhor mesmo devesse mudar. Talvez não. Mas a questão é que, do
lado de fora da Cortina de Ferro, existe esse grande movimento e temos que
seguir com ele. É para nosso bem, para o bem de todos nós.
Franzus recebe isso tudo com simpatia e não faz objeções.
— Depois, — continua Thule, —há a Igreja na África e na Ásia —com­
preendendo cerca de um terço de todos os bispos católicos, mais ou menos
um milhão de freiras e uns 200.000 padres e freiras. Bem, os ventos da mu­
dança estão soprando por lá. Mas quem é que deseja que os ventos da mudan­
ça soprem de maneira a trazerem franca desordem e deslealdade em relação a
Roma? Então, Roma tem que acompanhar a mudança. Muito embora seus
Cardeais abominem a mudança, não podem impedi-la.
— E há um terceiro perigo, —prossegue Thule. - É o perigo do completo
estrangulamento da Igreja na maior parte da Europa Ocidental, nos limites da
política do CL. Se a Rússia Soviética dominar nessa região, na Europa Ociden­
175
tal e no Mediterrâneo, e se não houver conciliação, então poderemos esperar
que as atitudes soviéticas sejam as mesmas que são nos países já sob seu domí­
nio.
— A menos, —Lynch faz eco, —a menos que a Igreja, oficial e publica­
mente, lance o seu peso em apoio de qualquer forma de socialismo democrá­
tico, tanto na Europa quanto na América Latina, será ela, no espaço de uma
geração, uma completa nulidade, —Ele pára, por um instante. —Incluindo e
talvez começando no meu amado país, - conclui, pesaroso. Os outros balan­
çam a cabeça, cheios de simpatia.
— Bem, quando os africanos chegarem, trabalhe sobre eles nesse ponto
específico, —diz Francis num tom que faz com que alguns dos que ali estão
duvidem de que concorde inteiramente com eles. Mas Francis acrescenta, -
o senhor precisa dos votos deles.
— Eu já tive duas longas conversas com Azande, - responde Thule. -
Ele tem compreensão do futuro que vejo para a Igreja na África. Também tra­
tei da questão de reestruturação da administração da Igreja. Sim, precisamos
do voto dele e de outros votos africanos. Mas o terreno está bem preparado.
— Estou certo, então, - Thule fita cada um deles, —de que todos esta­
mos de acordo quanto à necessidade de nos mantermos unidos e formamos
uma coligação para os votos? —A expressão de cada rosto é positiva e Fran­
zus, com um olhar rápido para Lynch, acena afirmativamente com a cabeça.
— Os senhores precisam compreender que a minha intenção, convidando
os africanos a virem aqui, visa dois alvos. Precisamos dos votos deles. E preci­
samos dos votos que possam conseguir para nós. Não duvido, por exemplo,
que Azande possa reunir um número razoável de italianos, talvez um ou dois
americanos. Acho que os africanos podem influenciar muitos Cardeais da
Comunidade Britânica, bem como Ni Kan, Nei Hao e Lang Che-Ning. Com os
negros do nosso lado, podemos provocar um maremoto. Precisamos deles.
Creiam em mim. Precisamos deles.
— Antes que os africanos cheguem, - Buff apresenta um novo assunto,
— há algumas coisas que nosso Eminente Irmão deveria esboçar para nós. —
Volta os olhos para Lynch. Já falara a este, dizendo-lhe que era preciso ter
certeza de que Francis compreende. Se Francis estiver com eles, poderá ser
de especial influência na tarefa de convencer os africanos. Mas nem Buff nem
Thule deseja que Lynch explique demais aos negros aquilo que pensa. Poderá
deixá-los perturbados, naquele estágio ainda delicado.
— Tentarei resumir tudo muito rapidamente, — começa Lynch. — De
acordo com aquilo que sei, há uma grande boa vontade e disposição de espí­
rito entre o meu clero —e, de fato, em todo o clero do Terceiro Mundo, espe­
cialmente na América Latina, e precisamente para esse passo gigantesco, esse
ousado risco de fraternidade, de confraternização e de colaboração com nos­
sos compatriotas marxistas, em nosso país e fora dele. E —assinalo isto em
particular dianle dos senhores, é importante —a atitude do clero é ditada pe-
176
las condições de corpo e alma do povo comum, das massas de povo comum.
— A despeito da oposição da Cúria Romana, a América Latina tem agora
toda uma teologia que se ajusta a nossa maneira de ver. Homens como Gusta­
vo Gutierrez, do Peru, Juan Luis Segundo, do Uruguai, Hugo Assman, do Bra­
sil, Miguel Bonino, na Argentina, Sergio Torres, do Chile. Todos eles exerce­
ram influência sobre as universidades, os seminários, as escolas e o povo co­
mum. A esse quadro, é preciso que os senhores acrescentem o trabalho vital
dos Padres Capuchinhos, na Nicarágua, e dos Jesuítas em diversos lugares, mas
especialmente em Honduras, onde se afirma que os padres criaram, diretamen­
te, as três organizações camponesas que estão combatendo, na realidade, o
governo central, fascista e monopolista. Grandes sucessos, por toda parte!
— Além disso, - continua Lynch, — fora da América Latina há muita
penetração de nosso ponto de vista e há coordenação efetiva entre as Améri­
cas - do Norte e do Sul - e os europeus. Tudo isso, ou uma grande parte dis­
so, se deve ao trabalho de Frei Antonio Arroyo, que dirige o Conselho Hispâ­
nico de Teologia nas Américas, e a Margaret Schuler, entre outros, que traba­
lha no grupo Cristãos Americanos na Direção do Socialismo. Temos adeptos
em quase todas as dioceses da América do Norte —os próprios bispos ameri­
canos financiaram com a metade de 15.000 dólares a Conferência de Teologia
nas Américas, em 1975, em Detroit, na qual se reuniram todos os nossos cris­
tãos esquerdistas e teólogos da liberação.
— Quanto a mim, a propósito disso tudo, meus Irmãos, posso dizer com
a mais sã consciência que sou um socialista-democrata. Sou de esquerda. Por­
que é aí que Jesus está e é aí que a Igreja de Jesus deveria estar, oficialmente,
agora e no futuro, neste mundo.
— Em outras palavras, os senhores —como eu —são favoráveis a acom­
panhar essa maré, embora isso envolva violência? —pergunta Buff, com um
ar sombrio .
— Sim, — diz Lynch, em tom agradável, mas com muita firmeza. —O
Reino de Deus é tomado pela violência e os violentos ficam com ele, como
disse o próprio Jesus. E, em minha opinião, os padres guerrilheiros e o povo
leigo estão apenas usando métodos de contra-ataque à violência. Pode-se, por
exemplo, censurar os Jesuítas de El Salvador, por portarem armas e pedirem
proteção aos guerrilheiros, quando os grupos de vigilantes dos capitalistas
ameaçam suas vidas?
— O ponto que desejo salientar e a minha contribuição consistem no se­
guinte: temos que declarar ousadamente nossa posição, e lutar por esta alian­
ça entre o povo e a Igreja. Precisamos insistir em que a Igreja preste ao povo
esse serviço de justiça e paz. Para isto Jesus fundou a Igreja. Alguns dirão que
estamos misturando política e religião, mas esse tipo de política é mais pro­
fundo que a política normal dos senhores. Esta questão envolve a sobrevivên­
cia humana da Igreja. Já passou o tempo em que podíamos contemporizar ou
esperar.
177
- Acho, —diz Buff, - que nossos Irmãos africanos estio chegando.
Quando os oito negros entram realmente, há um momento de constran­
gedor silêncio. De uma forma ou de outra, a simples presença desses homens,
em suas vestes cardinalícias, parece desviar a atenção de todos de qualquer
teorização e trazê-la a um nível muito concreto. Nenhum desses homens de
cor, todos Cardeais, pertence a uma terceira geração de cristãos. Nenhum é
europeu. Alguma coisa vagamente perturbadora interpõe-se entre brancos e
pretos. E até Lynch, gregário e autoconfíante, é afetado.
Ê Francis, o oriental, quem quebra o constrangimento, com maciez e
jovialidade quase levantinas:
- Fico entre os senhores, entre o preto e o branco, o único que é capaz
de compreender ambos. Façam de mim Papa!
Todos riem um pouco - Thule talvez um pouco menos que os outros.
Porque Francis encontrou a razão exata pela qual Thule precisa dele. Não é
tolo, este homem. Thule sabe disso. Mas, no fim, onde se colocará ele?
Cada um acha um lugar, sentado ou de pé. Ao que parece, Azande foi
escolhido como porta-voz dos negros. Permanece de pé e dirige-se a Thule.
Todos os que estão ouvindo o Cardeal negro se impressionam com o ros­
to jovem, com os tons claTos como a prata de sua voz, com aquele sutil sibilar
de sua pronúncia. Anteriormente Arcebispo da capital de seu país, Azande foi
chamado a Roma em 1970 e já ocupou muitos cargos importantes no Vatica­
no. As pessoas falam de Azande como o futuro Papa negro de Paulo VI. E, de
fato, um dia talvez ele venha a aer exatamente isso. Agora ele fala, e com gran­
de suavidade e gentileza:
- Eminência, viemos atendendo a seu muito generoso convite, para ou­
vir. Mas, com a permissão de Sua Eminência, gostaríamos de fazer algumas
perguntas a nosso Venerável Irmão Lynch. - Buff continua sentado, como
Lynch. Thule está de pé.
- Meu Senhor Cardeal, — Azande olha diretamente para o Cardeal
Lynch, quando começa a falar. —Quatro padres jesuítas —dois deles dos Es­
tados Unidos —publicaram recentemente um livro intitulado The New China:
A Catholic Response. Sua Eminência o leu?
Lynch acena afirmativamente. Leu o livro.
- Concorda Sua Eminência com os autores em que o maoísmo tem mais
afinidade com a cristandade do que o budismo ou o hinduísmo, e que o Espí­
rito Santo está usando o maoísmo para conduzir os chineses a Cristo?
- Bem, não sei se isso é exatamente o que os autores... —Lynch começa.
- Deixe-me fazer a citação para o senhor, Eminência. —Azande está se­
guro de si e decidido. Tira do bolso uma única folha de papel, dobrada. —“O
comunismo está preparando o caminho para o Evangelho. A ideologia de Mao
responde à necessidade cristã de desenvolvimento pessoal, de evolução de to­
da a comunidade cristã, de um pensamento e uma ação cristãos mais produti­
vos.”
178
— Não creio, —Azande levanta os olhos, —que os autores pudessem ex­
primir mais claramente seu pensamento. E o senhor, Eminência, que acha?
Francis abre a boca para falar, depois muda de idéia. Buff começa a lim­
par a garganta, como para dizer alguma coisa, mas Azande ergue a mio deli­
cadamente.
— É o Cardeal Lynch que queremos ouvir. Afinal de contas, seu ponto
de vista representa metade da plataforma sobre a qual o grupo tem intenção
de se fixar.
— Francamente, Sua Eminência, —responde Lynch lentamente, com um
longo olhar na direção de Azande, —essas coisas são difíceis de exprimir em
linguagem precisa. Estamos todos às apalpadelas. Procurando palavras. Procu­
rando soluções. A Igreja mesma está buscando. Nós, em Conclave, estamos
buscando...
O mais antigo, dentre os Cardeais negros, toma agora a palavra:
— Eminência, passando a termos concretos, para pararmos de procurar
onde não temos necessidade de procurar, e de falar concretamente de um país
que não é o seu, poderíamos obter algumas respostas curtas a algumas pergun­
tas simples?
Isso não é realmente uma pergunta, mas uma declaração daquilo que Ma-
konde tenciona fazer. Ele é famoso pelo seu método de interrogatório Núme­
ro Um, Número Dois, Número Três, Número Quatro.
— Número Um: Sua Eminência aprovava o governo de Salvador Allende?
— Como todos os outros grandes líderes responsáveis, apóio todo gover­
no legítimo.
— Não estou falando do acordo parlamentar. Falo de sua supressão da
mídia, de silenciar seus oponentes no meio do clero. Sua Eminência tomou
medidas para sufocar toda oposição a Allende?
— Sim, tomei. Achei que nenhuma parte do meu clero deveria intervir
em política.
— Mas isso não de aplicava ao Monsenhor que o senhor mandou como
emissário às várias facções políticas. Nem aos seminaristas que dispensou
porque criticavam Allende, e aos outros que não dispensou porque o apoia­
vam. Nem aos padres que transferiu para paróquias distantes das áreas urba­
nas, pela mesma razão. Nem ao senhor mesmo, que se empenhou em discus­
sões puramente políticas com os representantes de Allende e com ele próprio.
— Nós temos que representar os interesses da Igreja, — Lynch está mui­
to calmo e confiante.
— Número Dois: O senhor sabia e, se sabia, concordou com o programa
de eliminação preparado por Allende? —Os homens de Allende tinham pre­
parado, seguindo instruções dele, listas de intelectuais, homens e mulheres de
negócio, padres, assistentes sociais, escritores e outras pessoas, que deveriam
ser eliminados, no ponto crucial de sua revolução marxista.
179
— Se tais métodos eram necessários no país deles, para que a justiça so­
cial prevalecesse, então...
— Mas sabia Sua Eminência da existência de tais planos e aos mesmos
deu sua aquiescência?
— Tínhamos informação a respeito. Em nosso país nunca nos pediram
para concordar ou discordar do problemas de, outro país.
— Número Três: Tem Sua Eminência se correspondido com Hortense
Allende, a viúva do falecido ditador, e com autoridades cubanas, desde a mor­
te de Allende?
— Sim, como parte da minha função de líder nacional da minha Igreja.
Além disso, a seção competente da Secretaria de Estado, aqui em Roma, sa­
bia desses contatos, e os aprovava.
— Número Quatro: Concorda Sua Eminência com os que dizem que
Cristo foi uma espécie de Che Guevara palestino, e que Chou en-Lai deveria
ser canonizado um dia, como santo da Igreja?
Lynch não pode, de maneira alguma, negar nada disso. Fez, a propósito,
pronunciamentos públicos e apoiou pronunciamentos semelhantes de outros
clérigos latino-americanos. Acena afirmativamente com a cabeça, devagar, mas
decididamente.
— Número Cinco: Sua Eminência exortaria os fiéis a se levantarem, em
revolta armada, a fim de estabelecer um governo marxista em seu próprio
país, ou no Chile, ou em outro lugar qualquer na América Latina, na África,
ou em outras partes do giobo?
Lynch também fez comentários sobre isso.
— Se esse for o único caminho —e, repare, talvez não seja...
— Obrigado, Venerável Irmão- Número Seis: O senhor acha que o próxi­
mo Papa deveria declarar o capitalismo pernicioso e irreconciliável com os
ideais cristãos, e comprometer abertamente a Igreja de Jesus numa aliança
com marxistas não apenas na América Latina, mas também na América do
Norte, na Europa, na África, na Ásia e, realmente, em toda parte?
— Se a coisa chegar a esse ponto, mas...
— Essa não foi a minha pergunta, Eminência. Deveria o futuro Papa, fos­
sem quais fossem as circunstâncias, deveria ele dar esse passo?
Lynch olha calmamente para Thule, só por um ou dois segundos. Depois
há o que parece ser um silêncio interminável, no qual ele olha primeiro para
Makonde, bem nos olhos e por um instante apenas —e em seguida percorre
com o olhar os sete negros silenciosos, de pé tranqüilamente, esperando.
Quando finalmente fala, seu tom é bastante calmo, mas tem um toque
de irritação:
— Vivi e trabalhei na Igreja toda a minha vida. Conheço o continente por
dentro e por fora. Sei, com.mais certeza do que sei muitas outras coisas, que
nada, mas absolutamente nada, exceto uma violenta revolta —na verdade uma
carnificina ~ irá pôr o pão na boca das crianças, curar-lhes as doenças... —a
180
voz dele vai-se elevando lentamente, com emoção genuína, —tratar as feridas
de suas perninhas, lavar seus corpos, tirar os piolhos, as baratas e as moscas
de seus cabelos e de seus rostos, encher-lhes as barriguinhas de boa comida,
dar a seus pais a dignidade no trabalho e a suas mies uma boa casa para cui­
dar, dar a seus cansados avós algum conforto em sua velhice.
Os olhos de Lynch estão agora cheios de lágrimas. Alguns dos Cardeais
negros viram as costas, constrangidos. Ele se volta para Makonde, mas com
uma espécie de suave amargura, como para transmitir tristeza, em vez de ani­
mosidade:
— Venerável Irmão! Na África, os senhores viram o que eu tenho visto;o
que os monopólios industriais, as dinastias capitalistas, as corporações colo­
nialistas, as atividades secretas do governo têm feito!
— Sim, meu Irmão. —É Duala, da África Oriental, quem responde, sem
qualquer traço de rancor. —Mas em parte alguma, em parte alguma um gover­
no socialista ou marxista, na África ou, a propósito, na Ásia, fez sarar as feri­
das nessas perninhas, tratou os nossos leprosos nos vilarejos distantes, salvou
nossos bebês abandonados. A Madre Te reza não é marxista. Nenhum marxis­
ta tratou das nossas prostitutas —de outra forma que não fosse fuzilando-as
aos milhões, como Mac fez —ou pagou uma diária honesta por um honesto
dia de trabalho. Ou deixou as pessoas viverem com dignidade, ou preservou a
família como uma unidade, ou protegeu o povo da opressão, ou defendeu
suas liberdades da rapacidade dos burocratas socialistas e dos ditadores mar­
xistas. —Ele pára, os olhos brilhantes de emoção. —Em parte alguma, Vene­
rável Irmão! Em parte alguma.
Lynch não responde.
Thule parece muito impaciente para intervir, mas Azande mantém a ini­
ciativa, como líder e porta-voz dos negros:
— Ficamos sabendo tudo aquilo que viemos saber, Veneráveis Irmãos.
Meu Senhor Cardeal Thule explicou-nos outros pontos, em particular. Sugiro
que deixemos as coisas como estão, agora, e que todos nos encontremos ama­
nhã com os nossos Irmãos Cardeais, para consultarmos o Espírito Santo, na
Sessão do Conclave. — Os negros inclinam-se diante de Buff, de Thule, de
Francis, de Lynch e, um por um, solenemente, vão saindo.
Faz-se silêncio. Buff levanta-se.
— Vamos rezar, todos nós, —diz Thule calmamente, —para que o mes­
mo Espírito Santo ilumine cada coração. Porque, neste momento, meus Ir­
mãos, tudo parece perigar.
Uma batida na porta interrompe o que Buff vai dizer. É o jovem Monse­
nhor do gabinete do Camerlengo. Poderia o Cardeal Thule dar um pulo até
os aposentos do Camerlengo para uma palavrinha com ele, antes que se reco­
lha para o final da noite? Quando? A qualquer tempo que convenha a Sua
Eminência. Então, muito bem. Em cinco minutos.
181
— Sinto que vai haver movimento, —observa Buff com azedume. —Ta
vez, como Kant, o Camerlengo tenha algumas idéias precisas e claras.

Quando Thule entra no gabinete do Camerlengo, encontra este já ocupado com


o Cardeal Masaccio, o Cardeal Eakins, dos Estiados Unidos, e o Cardeal Witz.
Tanto quanto Thule sabe, Masaccio é o candidato conservador, Eakins e
Witz são ambos tradicionalistas. Os apertos de mão e as reverências são poli­
dos e rápidos. Todos esses homens se conhecem uns aos outros, avaliaram-se
uns aos outros, sabem mais ou menos o que cada um pretende, estão todos
habituados às discussões educadas, à oposição decidida mas discretamente
manifestada, e à perversidade das manobras políticas do poder que algumas
vezes os dividem. O Camerlengo começa falando imediatamente a Thule:
— Eminência, — diz ele, - acabei de ter uma conversa com Lohngren.
Sua Eminência, como o senhor sabe, goza de tremenda popularidade entre
os europeus, muitos africanos e com os norte-americanos.
Não há, no rosto de Thule, nenhuma expressão reveladora. Eakins está
sentado, espigado em sua cadeira. Masaccio e Witz estão sentados um de fren­
te para o outro, mas evitam contato com os olhos. Todos olham para o Ca­
merlengo.
— Temos neste Ofício vários documentos — não vamos perder tempo
examinando-os agora —que indicam que Sua Eminência pretende fazer um es­
forço —de fato, já fez esse esforço —para dominar a iniciativa do desenvolvi­
mento deste Conclave. Estou falando —a essa altura ele lança os olhos por
sobre a escrivaninha, depois olha para o rosto de Masaccio, depois toma a en­
carar Thule —não apenas de seu discurso já previsto para amanhã —sim, sim,
o senhor está indicado na minha agenda como um dos oradores... sim, é isso,
o último a falar —mas de correspondência e de entendimentos, informados
com segurança, aqui e em outros lugares. — O Camerlengo faz uma pausa,
olhando para seus papéis. Ninguém olha diretamente para Thule, mas o Car­
deal sabe que o mais leve sinal de reação em seu rosto, ou o mais leve movi­
mento de seu corpo seria percebido e morbidamente registrado pelo canto
de cada par de olhos.
— Espero que Sua Eminência compreenda, — diz Thule com tranqüili­
dade, — que em toda a nossa atividade anterior ao Conclave, estivemos cer­
tos, de nossa parte, de que todos os Cânones da Igreja e as leis de nosso San­
to Padre, Paulo VI, foram observados.
— Ora, ora! Eminência! —responde o Camerlengo um tanto bruscamen­
te, numa censura brincalhona. — Sabemos disso! Sabemos disso! Com toda a
certeza! Não há nenhuma sugestão de censura, posso-lhe garantir. É só que eu
e os outros — uma mirada indica Eakins, Witz e Masaccio - achamos que
conviria alertá-lo para o fato de que sua atividade toda pode bem vir a ser
contraproducente. —Faz uma pausa, para deixar que essa parte seja absorvi*
182
da. —Contraproducente, —repete, —para todos nós, para Sua Eminência da
mesma forma que para nós. —0 permanente sorriso nos lábios do Camerlen­
go nunca desaparece de todo, mas nunca se reflete em seus olhos.
— Deixe-me explicar, —prossegue, no tom de voz de quem dá uma aula.
— Acabei de falar com Lohngren. Estou autorizadq a dizer, em seu nome, que
embora o Cardeal esteja disposto a aceitar sua própria indicação, estabeleceu
as circunstâncias específicas em que não estaria disposto a isso e nas quais
apoiará deliberadamente a indicação do meu Senhor Cardeal Angélico.
Masaccio mexe-se na cadeira, como que perturbado por algum pensamen­
to repentino. Thule contrai-se, olha rapidamente para Masaccio, que só moveu
os olhos para encontrar os dele, depois para Eakins, que ainda está olhando
para o Camerlengo, e para Witz, que o encara com a mirada franca de metáli­
cos olhos azuis. Thule sabe que, se Angélico tiver o apoio do Camerlengo, po­
derá dar a qualquer um muito pouca chance de chegar a Papa. E AngeÜco pa­
ra Papa! Thule toma a olhar para o Camerlengo:
— Que circunstâncias específicas? —a pergunta dele é elíptica, quase rís­
pida.
— Duas, realmente, duas principais: se houver a apresentação de algum
candidato, seja ele quem for, com base nos argumentos de Sua Eminência, ou
se o senhor, Eminência, for a pessoa que apresente o candidato, qualquer que
ele seja. É isso! —De novo o sorriso. —E quando digo um “candidato apre­
sentado com base nos argumentos de Sua Eminência”, quero dizer um candi­
dato do Ostkardinalaat e dos latino-americanos, e um candidato inclinado po­
liticamente a abrir a Igreja ao marxismo e ao Terceiro Mundo. Claro?
— O fato nu e cru, meu Irmão, —diz Witz com um tom metálico na voz
que é familiar àqueles que o conhecem, —é que os dois fundamentos em que
o senhor proporia um candidato são sabidos —franca e entusiástica abertura
para o que é agora chamado de “socialismo democrático” e uma descatoliciza-
Ção inteiramente nova —o senhor prefere, pessoalmente, o termo desromani-
zação, mas alguns de nós pensam que significam a mesma coisa. Sei que o se­
nhor não... —Witz pôs tudo isso para fora de um fôlego só e sabe que sua gra­
mática é confusa, —quero dizer, nós sabemos que o segundo fundamento é
abertura quanto a todas as outras religiões.
— E, Eminência, — o Camerlengo intervém, para aliviar Witz, - nosso
julgamento ê que, se o senhor fizer uma proposta dessas com semelhantes fun­
damentos, haverá imediatamente uma mudança de rumo...
— Distanciado de qualquer orientação relativamente à Cúria, Irmão,
Masaccio conclui sombriamente o raciocínio.
— E indo cair no quintal de quaisquer radicais, de fato ou potenciais,
agrupados em tomo de Angélico, Domenico e seus amigos, —o Camerlengo
apresenta a conclusão prática, política.
Os três Cardeais continuam a confrontação com Thule, cada um deles
183
bombardeando-o por sua vez, pressionando-o por todos os lados. O Camerlen­
go retoma o ataque:
— Bem, Meu Senhor Lohngren deixou claro que comandaria uma mu­
dança de orientação desse tipo, —intervém. E faço um apelo a Sua Emi­
nência: acha algum de nós que uma indicação que ocorra sob os auspícios de
Angélico —muito menos a eleição de Angélico —viria a representar os melho­
res interesses da Igreja? Pergunto ao senhor. Pense! Mas essa, meu Senhor Car­
deal, —diz o Camerlengo, —é a idéia que se formou. Mesmo o Meu Senhor
Masaccio, —ele dirige o olhar para o Cardeal, que o encara inexpressivamente,
—considerou adequado lançar o peso de seu prestígio em favor da indicação
e da eleição de Lohngren, Eminência. —0 fato de que Masaccio esteja dispos­
to a apoiar Lohngren, alemão e rival, é uma impressionante novidade no Con­
clave.
0 Camerlengo muda de tática na apresentação de seus argumentos. Dese­
ja dar a Thule um pouco de corda e diz, num tom diferente:
— Repare, Eminência, que a indicação de um não-italiano com a bênção
da aprovação da Cúria já é um grande passo na direção da vontade e do pen­
samento de Sua Eminência. Lohngren é não-romano, não-italiano, um euro­
peu do Norte.
Thule fica calado. Tem a expressão alerta, mas não parece de modo al­
gum desanimado. Os outros o vêem olhar por um momento para Eakins. Este
é o único que não falou e Thule tem nos olhos um ar de quem diz: “Sei por­
que é que o senhor está calado.”
— Naturalmente, —intervem Witz, com ênfase, —o cargo de Secretário
de Estado seria aberto a um não-italiano. Ou, falhando isso, —a situação polí­
tica aqui na Itália poderia requerer um Secretário de Estado italiano —então
um dos principais cargos no Secretariado —Europa Oriental, África e os EUA
- ficaria acessível a algum arranjo conveniente. E o senhor pode estar certo
de que a Congregação para a Propagação da Fé, a Prefeitura dos Assuntos
Econômicos e o Instituto para Obras Religiosas estão incluídos nesse tipo de
arranjo que se imagina. Não creio que eu esteja falando demais... —com um
olhar ao Camerlengo.
O Camerlengo concorda com a cabeça,
Masaccio olha para o Camerlengo, como para uma previamente combina­
da permissão para acrescentar alguma coisa mais, depois volta-se para Thule:
— Contaríamos, é claro, com sua Eminência para falar seriamente com
Lynch. Oh, a propósito, Eminência, nenhum voto dos africanos negros irá
para o seu lado. Eles já foram visitar Angélico.
Thule contrai firmemente a boca, diante dessa notícia. Reflete por al­
guns segundos, com os olhos baixos. Finalmente, no momento em que
Eakins começa a remexer-se desconfortavelmente na cadeira, fala:
— A mim me parece, Veneráveis Confrades, —não há um sinal de sarcas­
mo em sua voz, —que Sua Eminência o Cardeal Eakins também deveria ter
184
falado. Afinal de contas, ele tem muito bom conhecimento do Ostkardina-
laat. E esta não é a primeira vez em que a idéia de um candidato pan-europeu
é considerada.
Ninguém no Ofício soube, com certeza, se Thule recebeu informação
sobre a discussão entre Eakins e Karewsky, ou sobre as que se verificaram en­
tre Calder e os Cardeais de outros países da Europa Oriental.
Thule faz uma pausa para efeito. Depois:
— Bem, no que se refere a qualquer das minhas atividades que Sua Emi­
nência declara terem sido trazidas ao conhecimento dos senhores, sei que as
compararam com os relatórios de que dispõem sobre outras atitudes cardina­
lícias. —Aqui ele pára por um momento. Para alívio de Eakins, Thule levan­
ta-se. — Esses assuntos são graves, meus Veneráveis Irmãos. - Olha para os
rostos que o cercam. —Recebam meus sinceros agradecimentos, todos os se­
nhores, pela franqueza e sinceridade com que me falaram. —Os outros perma­
necem sentados, mas o Camerlengo, sendo o anfitrião, levanta-se também. -
Esteja certa, Eminência, —diz-lhe Thule, —que de forma alguma impedirei o
desenvolvimento ordenado dos acontecimentos do Conclave. Têm a minha
palavra. Contudo, poderia haver uma situação, sabem, - declara Thule tran­
qüilamente, apertando os lábios, — uma situação em que qualquer compro­
misso que eu assuma aqui desaparecerá. —Os outros quatro ficam olhando
para ele. —Se um grupo substancial de italianos decidir que não acompanha­
rá a Política Geral baseada no princípio do CL, —o Camerlengo empalidece
ligeiramente a essas palavras —então qualquer coisa que eu faça, eu e o meu
grupo, será apenas seguir acompanhando a onda do movimento resultante... —
ele se interrompe e olha para os outros. Subitamente seus olhos enchem-se de
brilho. —Porque isso, em minha opinião, seria prova esmagadora da vontade
do Espírito Santo.
Witz ergue-se em toda a altura de seu metro e oitenta e cinco, o rosto re­
laxado. Aproxima-se de Thule:
— Otto, - diz, usando o primeiro nome do Cardeal, — temos nossas di­
ferenças. Mas você precisa compreender que os Cardeais italianos estão isola­
dos de tudo, exceto da Cúria. Presume-se que os Cardeais não-italianos não
os procurem para pedir votos. Essa é a regra. Além disso, nenhum de nós po­
de-se dar ao luxo de permitir que este Conclave escape ao controle. Se todos
nós nos atacarmos uns aos outros, se nâo houver nenhuma confiança, nem a
observância dos costumes, somente a Igreja sofrerá. —Volta-se para o Camer­
lengo: - Vou sair com o Cardeal. Boa-noite, meus Irmãos. —Abre a porta pa­
ra Thule. Retiram-se os dois.
Masaccio está alarmado. Salta da cadeira e corre para a mesa do Camer­
lengo :
— O senhor tem alguma informação sobre os europeus orientais? - per­
gunta. —Acha que ele sabe sobre a Iniciativa Americana? —Depois, antes que
o Camerlengo possa responder, acrescenta outra pergunta mais veemente: —
185
Ele não se atreveria a se intrometer com os italianos, atreveria?
— Quanto aos europeus orientais, - diz-lhe Eakins, - agora mesmo, acho
eu, o Meu Senhor Calder já deve ter liquidado o assunto com eles. —Eakins
está terrivelmente pálido, excessivamente cansado, mesmo em se tratando de
uma situação tão tensa. Diz ao Camerlengo: —Acho que vou me retirar. Agra­
deço muito. —Depois, dirigindo-se aos outros. —Descansem bem!
O Camerlengo e Masaccio ficam sós. São velhos conhecidos. 0 Camerlen­
go deixa-se cair na cadeira giratória e acende um cigarro. Masaccio anda para
lá e para cá algumas vezes e depois pára:
— Acha que a oportunidade nos escapou?
Seu companheiro expele uma longa baforada de fumaça, inspira fundo.
— Não. De modo nenhum. Pelo menos, não por enquanto. Só precisa­
mos ter cuidado, para que os dois lados não trabalhem contra o centro, onde
estamos. Não queremos servir de instrumento para Lynch, ou para Angélico,
ou para Thule.
Masaccio estremece involuntariamente:
— Para lhe dizer a verdade, meu amigo, —diz com um encolher de om­
bros, — não acho que Angélico tenha ambição alguma. Essa é a dificuldade
com o homem. As pessoas têm um horrível hábito de atribuir destino especial
ao homem aparentemente sem ambições. Assim, quando os acontecimentos
tomam um rumo favorável para esse tipo de homem, parece que os próprios
acontecimentos e só eles projetaram esse indivíduo. Homens assim parecem
abnegados.
— Não creio, realmente, que haja muito com que nos devamos preocu­
par, - diz o Camerlengo depois de uma pausa. - Compreende, seja qual for a
tendência que possa existir entre os italianos —e duvido que haja alguma ten­
dência realmente independente aí - a perspectiva de um alemão... bem, va­
mos esperar e ver. —Na verdade, o mais improvável dos candidatos no Concla­
ve 82 é um alemão. Um alemão seria totalmente inaceitável para o povo ita­
liano e para os cidadãos da diocese do Papa —Roma. Além disso, oriundo da
Alemanha capitalista, seria anátema tanto para comunistas quanto para socia­
listas dos partidos da Itália. Mas o Camerlengo acha que, diante de um perigo
maior, o Conclave aceitaria Lohngren, quando menos como o menor dos ma­
les...
— Mas essa é justamente a dificuldade, Eminência, —a imediata réplica
de Masaccio é quase impaciente. Ele franze a testa, a voz cheia de frustração.
—Nós esperamos. Dio mio\ Esperamos até agora! E agora —bem —estamos
começando a ver. E, francamente, não estou gostando do que vejo.
A estratégia pré-Conclave do Camerlengo, pelo que a maioria pôde per­
ceber, tem sido a de esperar, de acalmar temores, de pedir opiniões. Por trás
dos bastidores, ele trabalhou com Eakins e outros, tentando suplantar Fran-
zus e Thule. E fez muito mais. Mas Masaccio não vai ficar sabendo disso.
— Sempre podemos discernir a vontade do Senhor em tudo isso, sabe, —
186
diz o Camerlengo em tom de brincadeira, mas com uma ponta de seriedade.
Masaccio olha-o por um momento, depois sorri:
— In fine finali —essa é a única razão pela qual podemos ir dormir esta
noite, em meio a toda essa confusão, essa excitação, essas pressões, meu Ir­
mão. Sempre resta isso! —Sacode a cabeça e faz como se fosse sair, depois
pára e diz, falando por cima do ombro: —Mas a gente gostaria, uma vez ou
outra, pelo menos, de dar na vontade de Deus um —como foi aquela expres­
são que o senhor mesmo usou, uma vez? — “um leve empurrãozinho com o
polegar”. Boa-noite, Sua Eminência.

Angélico tinha ido procurar seu velho amigo, o Cardeal Domenico. Domeni-
co dissera a Angélico que o apanhasse na Capela, se precisasse dèle. Quando
os dois vão saindo, passam por Walker, ainda sentado, teso, em seu trono.
— Está nos vendo? —murmura Angélico.
— Como numa resposta, Walker abre os olhos, encara-os por um instan­
te, depois levanta a mão direita e faz no ar o sinal da cruz. Seus olhos de novo
se fecham.
— Provavelmente, essa é a bênção dele, —Domenico diz baixinho, com
suavidade.
— Isso seria novidade, — responde Angélico sem rancor, quando alcan­
çam o corredor. —A proprósito, não há motivo especial para esta visita, além
da obtenção de um pouco de orientação pessoal. - Chegam ao apartamento
de Domenico e sentam-se um em frente do outro. Angélico fala calmamente.
— Acabei de ser tocado outra vez por alguma espécie de mão invisível,
negra, Pai, e meu espírito ainda está tremendo, por alguma razão impenetrá­
vel.
Há anos que Angélico encara Domenico como “Pai”. O cardinalato de
Domenico, que lhe foi conferido depois do de Angélico —quando este esta­
va com cinqüenta e dois anos e Domenico com sessenta e quatro - não alte­
rou coisa alguma entre esses dois homens. Agora, Angélico quer explicar por
que é que se sente inquieto.
— Tivemos uma conversa ligeira, — prossegue Angélico, —os africanos
e eu. E, no final, uma sugestão - uma simples sugestão, repare bem, nada
mais, e até mesmo uma sugestão honesta, feita por Azande —trouxe de volta
todos os meus velhos temores. Lembra-se?
Domenico iembra-se. Conhecia esses temores. Desde que Angélico viera
para o Vaticano, a chamado de Paulo VI e que fora trabalhar com o Papa,
Domenico passara a ser um receptor regular de suas confidências —a maior
parte delas a propósito de seus temores. Angélico fora um favorito de Paulo
e durante dez anos, até que se tomara demasiado vulnerável para continuar
no Vaticano, tinha trabalhado como ajudante da Cúria. Sem recear aquilo
que as pessoas pudessem pensar a seu respeito, Angélico fora usado por Paulo
187
VI para promover algumas das mais sensacionais mudanças jamais vistas nos
mais altos escalões da burocracia vaticana. No Vaticano, quando os inimigos
que se consegue fazer são centros de poder individual tão bem estabelecidos
como o venerável Cardeal Ottaviani —homens cujas opiniões têm muita in­
fluência até no presente Conclave, apesar do fato de que já estão “aposenta­
dos” —não se consegue dormir facilmente.
Os dias de Angélico no Vaticano não foram, pois, dias felizes. Mas, em
alguns aspectos, foram bem inebriantes. O poder é inebriante. E corruptor.
Angélico aprendeu esta grande lição, dolorosamente.
— O senhor não acha, acha, —pergunta-lhe Domenico, —que há alguma
possibilidade de que seja escolhido para indicação? Acha?
Angélico começa a sacudir a cabeça, depois pára:
— Não exatamente, Pai. —Contrai as sobrancelhas, intrigado. —A menos
que Thule sabote, realmente, a Política Geral e comece uma corrida para a di­
reita. Nesse caso... —depois, interrompendo seu solilóquio e voltando a olhar
para Domenico. —Não, Pai. Não é tanto esse perigo. — Agora seu rosto não
tem mais a expressão intrigada, como se ele tivesse deixado de lado um pro­
blema desagradável. — Fui formado e treinado para lidar com essas coisas.
Não. É apenas o velho fantasma. Nunca pensei que pudesse me deprimir tan­
to.
Angélico passara por uma profunda crise pessoal, em seus primeiros doze
meses no Vaticano. Foi uma crise que poucos de seus confrades e nenhum de
seus subordinados podiam adivinhar. O jovem monsenhor que ele era então
parecia tão cheio de força, tão seguro de si, tão implacável e objetivo, quando
se tratava de decisões concretas sobre questões pessoais e de implementação
de política. Mas o súbito acesso ao poder, o contato diário com todas as prin­
cipais peças no vasto tabuleiro de xadrez sobre o qual o Vaticano faz o jogo de
nações com a política, com as finanças, com a religião, com dinastias pessoais,
com os interesses mundiais da Igreja: tudo isso, aliado ao profundo envolvi*
mento que tinha na elaboração, na apresentação, na organização e na imple­
mentação de variadas decisões do Papa Paulo VI - fora o peso dessa responsa­
bilidade que provocara a crise.
Angélico não conseguia harmonizar aquele profundo e pesado envolvi­
mento com suas atitudes anteriores. Não podia voltar facilmente todas as
noites às suas devoções particulares, depois de ter passado o dia na violenta
interação de personalidades, de manobras de poder, de problemas mundiais,
de ciumadas mesquinhas, de casual corrupção e de franca hostilidade que seu
trabalho acarretava.
Domenico o ajudara a atravessar aquela primeira crise; mas sabia que as
feridas de Angélico eram mais profundas do que ele próprio suspeitava.
— Que é, exatamente, que o incomoda agora —ou sabe mais ou menos
o que é? —pergunta Domenico, depois de uma pausa.
— Pai, é apenas uma extensão do meu velho problema. No que me diz
188
respeito, minhas crenças e minha devoção pessoal a Nosso Senhor exigem
que eu acredite que qualquer das minhas ações poderia ser ou deveria ser —
não ditada pelo espírito de Cristo, como nos recomendam os velhos livros —
mas precisaria ser praticável inteiramente pelo próprio Jesus, como suas pró-
rias ações. O senhor costumava dizer : de que outra maneira pode Jesus ser
universal? Não é através desse caráter em nossas ações? E de serem assim
as ações do maior número possível de seres humanos? Para que suas ações
sejam homogeneizadas e assimiladas às ações e ao comportamento de Jesus,
a tal ponto que sua graça possa tomar suas todas as ações dessas pessoas, na
verdadeira ordem do efeito moral e da graça sobrenatural? Isso significa a
constituição do corpo místico de Cristo em sua dimensão integral, o senhor
costumava dizer.
— Bem, a simples menção do poder central da Igreja de Cristo em direta
relação comigo —até mesmo naquela pequena conversa com os negros —isso
me fez estremecer! Como pode um Sumo Pontífice salvar sua alma? Ter o es­
pírito de Cristo, é o que quero dizer? E isso se aplica também aos que traba­
lham perto dele, como eu tive que trabalhar e como provavelmente terei que
fazer de novo. Mesmo na encantadora Turim, ou em Florença, ou Veneza,
acho difícil, mais difícil cada dia que passa. —Angélico está atacando direta­
mente o problema central da “Igreja de Constantino” —a mistura do poder
mundano com a Igreja e do Poder da Igreja com os negócios do mundo.
— 0 poder não agrada ao senhor?
— Não, Pai. Não agrada. Pensei que agradasse. Não agrada. Absoluta­
mente.
— Muito bem. Vamos falar francamente. Não seríamos sinceros, se não
admitíssemos que o poder aqui em nossa Roma é exatamente como o poder
em, digamos, Washington, em Moscou, em Pequim, em Zurique. Tal como
acontece em Washington, o poder repousa, aqui, num código de ética, numa
fé racionalizada, expressa em dogmas deste sucesso mundano. Tal como em
Moscou e Pequim, nosso poder vibra com uma paixão vinda do coração, uma
motivação espontânea e emocional, que nos dá tantas razões para viver como
para morrer. E, é claro, esse poder que existe em Roma, o poder da burocra­
cia, submete todo mundo a um mecanismo impiedoso, impessoal e, às vezes,
até mesmo maligno.
— Sim! Sim! — Angélico apreende o pensamento do outro homem. —
Exatamente! São essas forças que considero quase demoníacas. São demasia­
do cegas para terem piedade, grandes demais para serem controladas por al­
guma coisa tão insignificante como a ambição pessoal, demasiado fascinantes
para serem deixadas de lado pelo destino prosaico da simples sobrevivência.
Quase demoníacas! Porque tais forças não fazem distinção entre o certo e o
errado, não tomam conhecimento de tudo aquilo que é fraco, não têm tem­
po a perder com sentimento, constantemente forçam a inteligência a consul­
tar o resultado final da auditoria de cada ano, ditam as decisões políticas de
189
acordo com a pergunta inexorável "citi bono” (quem é que vai lucrar com es­
ta medida?), consideram a morte como sendo um erro, e vão rasgando as lon­
gas e brilhantes avenidas de seus sucessos por sobre as insignificantes e dura­
mente construídas carreiras e por sobre as personalidades de todos aqueles
que, por um momento, possam ser elevados com seu impulso, mas que são
inevitavelmente soterrados na esteira que elas fazem.
Angélico levanta-se e começa a andar de um lado para o outro.
— Deixe-me fazer-lhe uma pergunta, Pai. O senhor pode não querer res­
ponder a ela. Mas está na minha mente. — Pára de caminhar e olha para o
chão. —Quantos membros do Colégio dos Cardeais saem de tudo isso sem da­
no para o próprio espírito?
— Eu sei, —inteivém Domenico um pouco desalentado. —Eu mesmo fiz
o cálculo, de vez em quando. Homem por homem. Acho que se poderia dizer,
seguramente, que um mínimo de quarenta por cento dos Eleitores são crentes
firmes e genuínos na fé cristã. Acreditam que há um só Deus, que o Filho de
Deus foi e é Jesus de Nazaré, que Jesus morreu pelos pecados de todos os ho­
mens e de novo ergueu-se vivo, depois de ter estado verdadeiramente morto;
que todos os que crêem em Jesus viverão eternamente com Deus, depois de
sua própria morte, e que somente através de Jesus pode qualquer ser humano
atingir éssa felicidade; que Jesus, antes de desaparecer da vista dos homens,
estabeleceu entre estes uma presença eclesial, para durar tanto quanto dure o
universo humano; e que essa presença eclesial está centralizada em tomo do
Bispo de Roma, que é e será sempre o único Vigário de Jesus, oficial e pes­
soal, existente entre os homens.
— Outro grupo de Eleitores, mais ou menos uma terça parte do total,
não acredita, realmente, em nada disso. Fazem voto de lealdade a essas cren­
ças, mas isso é apenas uma questão de palavras, embora encarem essa confor­
midade exterior como necessária e valiosa. Afinal de contas, permitiu que flo­
rescessem, como personalidades, e como forças que devem ser levadas em con­
sideração. Para esses, sua posição de cardeais e suas funções de eleitores do Pa­
pa têm o valor de cartões especiais de filiação a um clube altamente privilegia­
do, de mística própria. E, nesse alto nível de poder, uma mística é extrema­
mente útil para afogar os escrúpulos de consciência, ou para evitar a monoto­
nia desse poder.
— No meio desses dois grupos há um mínimo de, digamos, uns vinte por
cento que esconde o jogo. Nunca estão ansiosos para mudar, mas também
nunca se mostram tão estreitos de mentalidade a ponto de lutarem por um
perpétuo status quo. Em teologia, conservadores, em política, abertos a uma
evolução gradual. Em moralidade, cautelosos. Em heroísmo, de pouco entu­
siasmo. Esses são os que, de fato, não sabem, — Domenico frisa a palavra —
de modo que são os brandos, por serem prudentes agnósticos, que esperam es­
tejam corretos os ensinamentos de sua fé. Provavelmente escolheriam morrer
antes de negar esses ensinamentos. Mas prefeririam continuar vivendo o maior
190
tempo possível, porque afinal de contas todos esses ensinamentos podem não
significar exatamente aquilo que parecem dizer.
Angélico está imóvel, encarando Domenico, no rosto a expressão da mes­
ma perplexidade anterior. Mas já vai aparecendo nele um leve sinal de algum
alívio, também:
— Tantos assim têm a mesma crise em sua fé? - murmura ele.
— E alguns não conservam a fé. O senhor conserva. Fique satisfeito. Ago­
ra acho que é melhor que volte a seus aposentos. Vai receber visitas. Se mais
tarde dispuser de algum tempo, chame-me ao telefone. Se eu não responder,
sabe onde me encontrar. —Domenico tem outras orações a fazer. Estará na
Capela.
— Enquanto isso, —Domenico levanta-se, —leve consigo este pensamen­
to: seja quem for que se eleja Papa, seja a pessoa que for, o senhor, eu e todos
os demais conhecemos a realidade triste, mas simples. O novo Papa pode fazer
muito pouca coisa além de exercer a supervisão de desenvolvimentos que não
inicia nem dirige, e cujo fim raramente vê. A coisa é grande demais, para a
amplitude mortal de qualquer um. —Caminham lentamente em direção à por­
ta do apartamento de Domenico. —Muito poucos Papas —e o senhor sabe
disso tão bem quanto qualquer outro homem —fizeram qualquer diferença
real no que concerne à substância da Igreja. Um Papa desses a Igreja consegue
uma ou duas vezes em cada quinhentos anos, ou coisa assim. E assim mesmo!
Domenico abre a porta e olha para a extensão do corredor, como se esti­
vesse mirando algum salão imaginário, cheio de candidatos a Papa, presentes e
passados.
— Os melhores candidatos geralmente nunca concorrem à eleição. Os
piores raramente conseguem vencer uma. Os mais santos poucas vezes foram
eleitos. Os satisfatórios nunca passaram de bons administradores. Tivemos al*
guns realmente vergonhosos, os “Papas negros” . Mas, ha verdade, pouco dano
causaram ao patrimônio e ao bom nome da Igreja, fizeram um mal imenso a
inúmeros espíritos e o mais triste dos males a suas próprias almas Os mais sá*
bios -- a propósito, nem sempre os mais santos, —Domenico lança um olhar
a Angélico - puderam, no máximo e em seus melhores momentos, observar
cuidadosamente. Como um pescador poderia vigiar, esperando um leve movi­
mento de mudança nos ventos, esperam uma mensagem do Espírito que im­
pulsiona a comunidade dos crentes. E então, com muito trabalho, deslocam
o leme do estado uns poucos graus nesse ou naquele sentido, a fim de se ajus­
tarem à nova direção.
Domenico, o sábio pai espiritual, conselheiro de tantos grandes homens,
falou a espécie de verdade simples que reúne todas as complexidades e todas
as ruidosas questões e que permite que as mesmas repousem, em silêncio, por
um instante apenas. Depois ele olha novamente para Angélico:
— Depressa! Vai-se atrasar. Mantenha contato!
— Quem já ouviu falar de um bolonhês que fosse um bom marinheiro
ou um bom pescador? — Angélico sorri satisfeito da caçoada que faz de si
mesmo e vai andando na direção de seus aposentos.
Domenico sorri ante a recuperação de Angélico, cruza de volta a soleira
de sua própria porta.
Em espírito, ambos voltaram às realidades do Conclave.

Por uns poucos momentos, Domenico fica ali parado. Depois vai até a mesi­
nha de cabeceira junto à cama, olha o catálogo dos números, apanha o fone
e disca. Uma voz responde:
— Fala Uccello.
— Eminência! Domenico! O senhor pode me dar alguns momentos, an­
tes de se recolher?
— Momentito, Eminência! —Domenico pode ouvi*lo falando a alguém;
depois:
— Imediatamente, Eminência! Imediatamente!
Domenico desliga, fica de pé um momento, pensando, depois senta-se.
Poucos minutos depois, Uccello chega.
— Pois bem, Eminência, em que está pensando?
Uccello tem sessenta e quatro anos, foi Bispo de Maleto, é Cardeal desde
1974 e agora ocupa um cargo numa grande cidade. A tarefa de fazer alguma
coisa por seus 4.106 sacerdotes, seus dois milhões de católicos, suas igrejas e
conventos, deu a Uccello um profundo conhecimento dos problemas sociais
com que se defronta o Vaticano na vida urbana de nossos dias. Sua cidade é
um microcosmo de todas as outras grandes cidades que têm população cató­
lica. Tradicionalista moderado em sua teologia, ele está, não obstante, de'há
muito convencido de que algumas mudanças precisam ser feitas. Mas a trans­
ferência para uma metrópole, saindo da calma de Maleto, deu-lhe uma idéia
muito mais urgente das dimensões do problema da Igreja.
— Paolo, — começa Domenico em tom de familiaridade. - Preciso ser
franco com você. Angélico acaba de sair daqui.
— Ah! — exclama Uccello em tom calmo, como se estivesse ouvindo a
solução de um enigma. —Appuntof Agora compreendo.
— Acredite-me, filho, não acho que compreenda, ou que possa com­
preender inteiramente. Angélico não tem ambições, pelo menos não do tipo
que nos interessa a todos, presentemente. Mas talvez esteja enfrentando uma
crise grande demais. Digo isto como seu guia espiritual. Paolo, fale-me sobre
os Relatórios Secretos. — Uccello prende a respiração, subitamente apanhado
desprevenido.
— Bem, ao perguntar sobre os Relatórios, —continua Domenico, —não
estou falando apenas, ou mesmo principalmente, como guia espiritual de
quem quer que seja. Mas acho que eu deveria saber. No ponto em que estão as
coisas, é muito tarde e muito perigoso para um grande número, dentre nós,
192
ser apanhado de surpresa. Vocé sabe, suponho, que mais de uma surpresa é
possível amanhã? —A hesitação permanece no rosto de Uccello. —Creia-me,
acho que devo ser esclarecido. —Domenico mantém a pressão.
Uccello expele o ar dos pulmões como quem se rende. Aqui não vai ser
possível nenhuma negociação. Confiança é coisa rara nas circunstâncias, mas
Domenico é um homem raro, e Uccello julga que é necessário que ele saiba,
com urgência, o que está pedindo que the digam.
O telefone de Domenico interrompe. Ele ergue o fone:
— Prontol Sim, Sua Eminência... Não! Não. Ainda não. Na realidade,
Eminência, estou aqui com um amigo comum... Como é?... Bem, francamen­
te, isso é precisamente o que estamos discutindo agora... Ao contrário, acho
que Sua Eminência deveria... Bem, traga-o também... Sim! Sim! Agora... De
modo algum, Eminência.
Domenico desliga o telefone e volta-se para Uccello:
— Ni Kan e Yiu estão vindo aí - não se preocupe! Eles têm conheci­
mento desses Relatórios. Vão ajudar.
Num minuto ou dois, um leve toque na porta anuncia a chegada de Ni
Kan e Yiu.
— Sentem-se, Eminências. Os senhores todos se conhecem, creio eu. E
nesta noite, sou eu o ignorante. Fico calado,'mas cheio de pergu:itas.
Um dos grandes dons de Domenico é sua capacidade de pôr todo mun­
do a vontade e de criar uma atmosfera de confiança e de calma. Rapidamente
põe Ni Kan e Yiu a par de tudo e depois volta-se de novo para Uccello:
— Francamente, — diz Uccello com um gesto desanimado das mãos,
não sei o quco Camerlengo vai dizer ou fazer. Sei que não quer que haja cir­
culação dos Relatórios, nem de quaisquer notícias sobre eles. Mas, com as
devidas reservas, eis aqui o-que eu sei.
— Desde junho de 1977 que o Secretariado está de posse desses Relatô-
rios — quatro, para ser exato. Um sobre os Sovietes, um sobre a América La­
tina, um sobre os comunistas italianos e um sobre as condições e as projeções
financeiras.
— Temos conhecimento disso, — Ni Kan faz-lhe um aceno afirmativo
quase como quem pede desculpas. —Mas também sabemos que existe um Re­
latório preparado para o Camerlengo por ordens expressas dele.
Uccello está, evidentemente, surpreso, quando se vira inteiramente para
encarar Ni Kan:
— E o senhor sabe qual é o assunto dele?
— Sua Eminência o Cardeal Thule e os teólogos, —responde Ni Kan sem
pestanejar.
— Vi uma cópia, —acrescenta Yiu. —Acho que é muito importante.
— Assim, vamos começar por esse Relatório mencionado por último,
Eminência, —diz Domenico. Uccello não o viu. Todos têm os olhos fixos em
Yiu.
193
O Relatório, diz-lhes Yiu, é o resumo de uma proposta de estratégia ela­
borada com base em contribuições dadas por vários teólogos europeus e ame­
ricanos, alguns dos chamados “novos teólogos”. Tais contribuições vieram sob
a forma de anotações teológicas e começaram em 1972, ano em que os trinta
e quatro desses “novos teólogos” —entre eles os mais extrovertidos da última
década, Hans Küng e John Baptist Metz, da Alemanha, o holandês Edward
Schillebeeckx, Charles Curran e John L. McKenzie, dos Estados Unidos, Gre-
gory Baum, do Canadá, entre outros —emitiram uma Declaração sobre aquilo
que denominaram as “estagnações” da Igreja. Nessa Declaração, definiram
cinco caminhos para eliminar tal estagnação. Em resumo, da maneira pela
qual Yiu compreendia a coisa, esses teólogos estavam aconselhando todos os
católicos romanos a se organizarem de maneira tal que pudessem se infiltrar
dentro da Igreja, de onde forçariam o Papa, sua Cúria Romana e os cardeais a
introduzirem mudanças fundamentais.
A tática consistia em poder confrontar as autoridades com o fait accom-
pli, que não poderia ser desfeito. Tal coisa deveria ocorrer em tantas áreas da
fé, da moral e das práticas religiosas, que viria revolucionar totalmente a Igre­
ja antes que a maior parte do clero e do povo leigo pudesse compreender o
que havia acontecido. Se, por exemplo, alguns bispos católicos pudessem ser
levados a ordenar mulheres como sacerdotes e a lhes permitir agirem como
sacerdotes, então esse fait accompli viria, na opinião deles, determinar a refor­
mulação das atitudes do Vaticano.
Essa estratégia e essa tática deveriam ser aplicadas aos elementos mais
fundamentais da fé e da prática católico-romana, afetando os próprios Sacra­
mentos, sem deixar elemento algum intocado. Deveriam ser apücadas, como
um teste, ao caso do celibato dos padres; e então, depois de ter tido sucesso
na abolição do celibato religioso como uma lei universal, passariam a aplicar-
se a todos os outros temas —a infalibilidade do Papa, o aborto, a homosse­
xualidade, a intercomunicação com outros cristãos e assim por diante. E, afas-
tando-se por um momento da substância do Relatório, Yiu acrescenta:
— Sabemos que na Holanda e na França, e em outros lugares, padres
se casaram e, violando a lei da Igreja, ainda continuam em seus postos, nas fre­
guesias em que os paroquianos os aceitam em sua condição de casados.
Depois do sucesso do teste feito com a questão do celibato dos padres, a
estratégia requeria a formulação de uma espécie de pacto de união com as
igrejas protestantes. Isso poderia ser conseguido passo a passo: deixando em
suspenso todos os dogmas definidos em relação à Virgem Maria (Assunção e
Imaculada Conceição); relegando a questão da infalibilidade papal a discus­
sões posteriores e não exigindo que ninguém a professasse, agora, como artigo
de fé; declarando que os cristãos podem “acreditar” na Bíblia, negando ao
mesmo tempo que a Bíblia lhes conte coisa alguma da verdadeira história do
passado; declarando aberta a uma nova interpretação toda a questão da Pre­
sença Real de Jesus no Sacramento da Eucaristia; permitindo o divórcio, as
194
medidas anticoncepcionais, a masturbação e a homossexualidade, sob certas
condições; declarando a vasectomia e a histerotomia formas legítimas de anti-
concepção, o sexo pré-marital permissível, sob certas condições; declarando
que o capitalismo não se pode harmonizar com a idéia de cristandade.
Dentro da Igreja haveria a exigência do desmantelamento da Cúria Roma­
na, transferindo-se para os bispos, individualmente, em suas próprias dioceses,
todas as decisões que afetassem as respectivas localidades. Decisões mais im­
portantes, afetando muitas dioceses e toda a Igreja, seriam tomadas por um
sínodo internacional, presidido pelo Papa. Haveria uma completa reestrutura­
ção do Papado, indo da forma pela qual o Papa é eleito até a negação integral
de sua função primordial como Vigário de Jesus e Bispo de Roma, favorecen-
do-se algo assim como a função de um presidente de conselho de administra­
ção, mas sem que a mesma se revestisse mais de autoridade pessoal e de infa­
libilidade.
Yiu resume suas informações conferindo a agenda segundo a qual se con­
seguiria tão vasta mudança:

1. Obter o controle dos negócios paróquia por paróquia, diocese por dio­
cese, de modo que, finalmente, a maioria dos padres e dos bispos vies­
se a estar de acordo com os objetivos do programa.
2. Obter o maior número possível de adesões entre os professores univer­
sitários e de seminários, entre editores e redatores, repórteres e colabo­
radores de revistas e jornais diocesanos.
3. As Conferências de Bispos, nacionais, internacionais e regionais, deve­
riam ser objeto de especial atenção. Quanto mais fossem atingidos os
membros participantes de tais conferências, sejam vindos de todas as
partes de um mesmo país e, em alguns casos, sejam oriundos de mui­
tas partes do mundo, mais rapidamente sua influência se espalharia.
4. Organizar reuniões, primeiro a nível nacional, depois em níveis inter­
nacional e regional, das quais um número cada vez maior de padres e
bispos participaria juntamente com leigos. Nessas reuniões, seriam
expostos e discutidos os elementos de formulação do novo modelo
para a Igreja. Os encontros dos católicos carismáticos e de outros
cristãos, das Congregações Gerais das Ordens Religiosas, essas e outras
situações semelhantes seriam assistidas por “observadores” devotados
ao programa.
5. De determinadas reuniões, a níveis nacional e internacional, só partici­
pariam padres e bispos. A idéia era tornar essa tática uma “bola de
neve”, até um dia em que pudessem realizar um encontro internacio­
nal equivalente, quanto ao comparecimento de bispos —e, pelo me­
nos, de alguns cardeais —à composição de um Concílio Geral da Igre­
ja. Só que nesse caso não seriam a Cúria Romana e o Papa que convo­
cariam tal Concílio. E essa seria a mais grandiosa variação da tática do
fait accompli, pois, diante de tamanha insurreição, que é que Roma
poderia fazer? Excomungar todo mundo? Ridículo!

Quando Yiu termina seu relato, Ni Kan acrescenta suas próprias observa­
ções:
— O que nos impressionou — a mim, a Sua Eminência Yiu e a nossos
amigos — foi a freqüência e a importância com que o nome de Meu Senhor
Cardeal Thule, Meu Senhor Cardeal Lynch, Meu Senhor Cardeal Buff e Meu
Senhor Cardeal Antonello aparecem uma e outra vez nas páginas do Relató­
rio. Não estou surpreso - nem os senhores ficariam —por encontrar Arceo,
de Cuemavaca, Helder y Camera, de Recife, Gerety, de Nova Jérsei, nos Es­
tados Unidos, Hurley, da África do Sul, Enrico Bartocelli, de Lucca, John
Zoa, dos Camarões, e bispos desse tipo. —Esses homens são todos conhecidos
como bispos “liberais”. Mas o que surpreendeu Ni Kan foi encontrar a menção
de cardeais como estando envolvidos, e ele acrescenta que qualquer pessoa fa­
miliarizada e alerta para as táticas usadas pelo governo de Mao, na China, vi­
sando a desligar o clero chinês de Roma e a destruir a influência de Roma so­
bre o povo, não se deixaria iludir pela falsidade e pelo propósito final desse
programa e dessa estratégia.
— Bem, agora, todos nós sabemos o que Thule pretende, - observa Do­
menico, num tom tão mordaz que as outras três cabeças se voltam bruscamen­
te, sem acreditar: Domenico raramente usa tom depreciativo em relação a
quem quer que seja, muito menos quanto a dignitários da Igreja.
— Os senhores acham, realmente, que eles estão tentando forçar um Con­
cílio sobre o Papa e a Cúria? - a pergunta de Uccello é dirigida a todos.
— Olhe, Paolo, - Domenico está calmo e sério. —Isso já foi tentado mui­
tas vezes, antes. Houve um homem chamado Marsilius, de Padua, que morreu
em 1343. Ele afirmava que um Concílio da Igreja era superior ao Papa. E, de­
pois dele, John Gerson, o todo-poderoso chanceler da Universidade de Paris,
que morreu em 1429, tinha a mesma idéia. E depois tivemos aqueles galica-
nos, nos séculos XVII, XVIII e XIX, todos eles tentando difundir a mesma
coisa. Você sabe que, no ano de 1682, nada menos que sete arcebispos, vinte
e seis bispos e trinta e oito teólogos, todos franceses, declararam estar o Papa
à disposição —e sujeito à destituição - de um Concílio Geral? E diziam que a
autoridade e a infalibilidade do Papa eram apenas a autoridade e a infalibilida­
de dos bispos da Igreja, quando você os põe todos juntos. O Papa Alexandre
VIII condenou todos eies. E hoje esses homens todos estão esquecidos, e
aqueles que ignoram toda a história da Igreja estão de novo fazendo a mesma
coisa. Se você ler história, vai encontrar uma porção de teólogos - Theodoric
de Niem, Theodoric de Vrie, Herman de Langestein e muitos, muitos outros
- todos hoje tão mortos, e esquecidos quanto os Currans e os Baums e os
Küngs e os Metz e os Schillerbeeckxs estarão dentro de cem anos.
— O que me aborrece é a presença de Sua Eminência o Cardeal Thule e
196
dos outros Cardeais desse lado da cerca. Isso já foi muito mais longe do que
eu imaginava. —Há um breve silêncio entre os Cardeais.
— Quando reúno esta informação àquilo que sei ou que ouvi sobre ou­
tros Relatórios Secretos, - diz Uccello finalmente, quebrando o silêncio, -
não acho, realmente, que o Camerlengo saiba o que está fazendo! Ou está
querendo ser muito mais esperto do que convém.
— Idéias claras e precisas, ein? - É Yiu, com um lampejo de humor.
— Seriamente, meus Irmãos! —exclama Uccello com paciência, —seria­
mente ! Os senhores dois —olhando para Ni Kan e Yiu —ao que parece leram
os Relatórios. Sua Eminência - falando a Domenico —não leu. Esses docu­
mentos criam um problema e tanto, quando reunidos àquilo que acabamos de
saber do meu Senhor Cardeal Ni Kan.
O Relatório sobre os Sovietes, de fato, contém uma substancial e avassa­
ladora proposta, que os Sovietes fazem ao Vaticano, partindo não só indireta­
mente, através de seus fantoches na Checoslováquia e na Hungria, e também
diretamente, vinda de Moscou. Pacto de paz, aliança, acordo sobre desengaja-
mento mútuo —pode ser chamado de qualquer coisa que agrade.
Os Sovietes prometeriam maior liberdade para os sacerdotes, desmante­
lamento de todas as organizações anticatólicas, a cessação de toda propagan­
da anti-religiosa. Em troca disso, os Sovietes querem que o Vaticano permita
e, de um modo ou de outro, abençoe os esforços dos marxistas-cristáos e que
— no mínimo —cuide para que os católicos romanos nos países satélites dei­
xem de alimentar a impressão de que as idéias marxistas são mais irreconciliá­
veis com o catolicismo do que o capitalismo. Querem no mínimo uma mora­
tória quanto a qualquer oposição e crítica franca por parte do Vaticano.
— Que acham que eles têm agora? —pergunta Ni Kan maliciosamente e
com uma amargura nascida da experiência.
— Bem, seja o que for. — Uccello continua. —O Relatório sobre os Co­
munistas Italianos acompanha essas mesmas linhas, só que se refere, particu­
larmente, aos comunistas italianos e, em menor proporção, aos comunistas
franceses. É um apelo feito pelos marxistas para a colaboração na unificação
do povo, visando a uma completa reforma econômica e a uma renovação
industrial e social desses dois países. É distintamente antiamericano, mas su­
gere uma posição de não-alinhamento em relação á URSS. Em troca, prome­
tem que os bons comunistas podem ser bons católicos. E vice-versa.
— Agora, acho que conheço o Relatório Latino-americano melhor do
que qualquer um aqui, — interrompe Yiu. — Os Cardeais Franzus e Thule
têm estado — estão — trabalhando sobre mim. Não sei quais são as fontes
desse Relatório, mas alguém reuniu uma coleção de declarações de padres,
bispos e uns quatro ou cinco Cardeais latino-americanos. Todas as declarp-
ções constituem reações e comentários sobre o conteúdo dos Relatórios so­
bre os Sovietes e sobre os Comunistas Italianos.
197
- Quem deu conhecimento desses Relatórios — ou de seu conteúdo —
aos latino-americanos? —pergunta Uccello.
- Não. —Domenico responde como se tivesse acabado de ouvir uma su­
gestão de alguém. —Não. Não é Giacomo. — O Arcebispo Giacomo Belli,
Núncio Apostólico na região, poderia ter sido, aos olhos de todo mundo, o
mais lógico suspeito, por causa de sua localização.
- Na realidade, não foi um latino-americano, —prossegue Yiu. ~ Os Re­
latórios vieram através de missionários —padres e freiras —de El Salvador.
- De que tipo foram as reações e declarações? —pergunta Domenico.
- Na maior parte, favoráveis. Em determinadas condições, o clero lati-
no-americano concordaria com as mesmas propostas gerais do marxismo.
- Que condições?
- Apenas duas: que haja concordância por parte de nossos Irmãos Car­
deais da Europa Oriental; e que semelhante aceitação, por parte do Vaticano,
de uma ampla aliança não destruísse imediatamente a posição econômica da
Igreja. Todos eles dão ênfase ao aspecto imediato na condição.
- Acha que Franzus e Thule viram esses Relatórios? —Domenico está
insistindo, agora.
- Acho que posso responder a isso, —intervém Yiu, —porque sei que
essas cópias passaram por Manilha, a caminho de Pequim. E, se foi assim, po­
dem estar certos de que tais cópias estão em Moscou. E, se estão em Moscou,
podem ter certeza de que Franzus as viu. E se Franzus as viu, Thule as viu.
Domenico ainda não estabeleceu a relação, que está tentando entender.
Dois pontos o intrigam. Ou antes, faltam-lhe respostas para duas perguntas.
Primeiro, está o grupo de Thule contando com o efeito desses Relatórios pa­
ra forçar a decisão do Conclave acima e além da Política Geral, sobre a qual
se tinha entrado em acordo? Essa idéia é grave. Segundo, por que é que o
Camerlengo não está transmitindo parte alguma dessa informação aos Elei­
tores?
Uccello conhece o Camerlengo e seu caráter melhor do que a maioria.
- O Camerlengo está inteiramente confiante —pelo menos estava, esta
manhã ~ em que é mais que provável que um candidato da Política Geral pos­
sa ser eleito sem muita dificuldade. Ou, falhando isso, algum bom pan-euro-
peu, como Lohngren ou Garcia, ou mesmo como Witz, pode ser indicado e
eleito.
- Preciso agradecer muito, muito a Suas Eminências. Acho que devemos
inferir que qualquer aliança entre Thule e Franzus procurará tirar proveito
desses Relatórios. —Domenico levanta-se. —Os senhores todos foram extre­
mamente francos; sabem que não trairei o caráter confidencial das minhas
fontes. Por que é que não vamos todos descansar um pouco?
Yiu e Ni Kan já estão de pé e movem-se na direção da porta. Uccello é o
último a sair. Os dois asiáticos já se foram, quando ele se volta para encarar
Domenico:
198
— Diga-me, Pai, pode imaginar alguma circunstância em que teria que fa­
zer uso, quero dizer, fazer uso publicamente dessa informação?
Os olhos de Domenico têm uma expressão grave:
— Só se viessem a ocorrer as mais absurdas das coisas.
— Compreendo. Considera essa possibilidade agora? Neste Conclave?
Amanhã, por exemplo?
Domenico vai até uma mesinha, sobre a qual estio seu Breviário e seu
Crucifixo.
— Estamos vivendo no mais extraordinário dos tempos, Paolo. Há um
estranho espírito em liberdade, vagando solto dentro da Igreja, não apenas
nas ruas da cidade, mas na chancelaria, na sacristia, no palácio do bispo, na
casa do Papa, até mesmo no próprio Santuário. —Faz uma pausa. —A fuma­
ça de que falou o Papa Paulo, você sabe... —pára e olha para Uccello. Paulo
VI tinha falado sobre a “fumaça e as trevas de Satã penetrando na Igreja”. -
Clérigos de alta hierarquia, bispos, e cardeais, parecem mudar de rumo sem
qualquer aviso. - Depois, desviando o olhar: - cada um de nós deverá fazer
o que tiver que fazer. Você. Eu. Thule. Todos nós. Perante Jesus, responde­
mos apenas individualmente.
Uccello percebe a mágoa e a determinação que há por trás do raciocínio
do homem mais velho. Vira-se para sair. Na porta vê que tem Domenico atrás
de si.
— Acho que vou fazer umas orações, Paolo.

Lá no apartamento de Kand, Karewsky e Garcia continuam a informá-lo so­


bre os aspectos essenciais dos Relatórios.
— Chegamos agora às condições econômicas da Igreja, —Karewsky diz
a Kand.
Essa parte do Relatório trata da Prefeitura para Assuntos Econômicos a
PECA —e do Instituto de Obras Religiosas —o IRW —, do Vaticano.
— O estudo é competente e completo? —pergunta Kand.
— Se o pessoal responsável por essa parte entende de alguma coisa, é de
dinheiro, —responde Garcia, com um sorriso lento que vai se petrificando. —
Agora, se o senhor pergunta sobre as recomendações deles e sobre as do Ca-
merlengo, que são reunidas às demais, isso aí é outra coisa!
— E quanto ás crenças deles, — Karewsky introduz sutilmente as pala­
vras, —isso também é outra coisa. Mais tarde poderá ler os trechos da Política
Geral relativos à mudança verificada nos investimentos. Deixe-me fazer-lhe
um resumo. Pôde ler os detalhes depois.
Nos últimos anos da década de sessenta, Paulo VI decidiu transformar a
maior parte dos investimentos do Vaticano em ações e propriedades imobiliá­
rias norte-americanas. Comandando as operações, estava um financista italia­
199
no, Michele Sindona. Enquanto este teve autoridade, o Vaticano sofreu pre­
juízos que, ao que se disse, ultrapassaram um bilhão de dólares.
~ No entanto, —Karewsky faz um gesto com a mão como que descar­
tando o assunto, - esse não é o ponto importante. Durante todos estes anos,
incluindo o presente, os investimentos vaticanos continuaram a ser despejados
sobre os Estados Unidos. O ponto significativo é que, seja qual for a política
futura do Papa seguinte —quer ele abra ou não a Europa e a América Latina
ao marxismo - as forças das finanças do Vaticano estarão no único lugar res­
tante na Terra em que poderão sobreviver sadiamente.
— Mas isso quer dizer que a vida econômica do Vaticano, da Igreja, está
vinculada ás políticas econômicas dos Estados Unidos. E essas políticas eco­
nômicas determimam a política .exterior dos Estados Unidos.
— E isso tem que querer dizer, — intervem Kand, —que a política do
Vaticano precisa, mas precisa, ajustar-se à política exterior dos Estados Uni­
dos - pelo menos em suas linhas gerais.
— O senhor sabe o que precisa fazer com os ovos, meu amigo, —Karews­
ky atira as mãos para o ar, —se quiser fazer uma omelete?
Fica claro, à luz da informação contida no Relatório Financeiro, que a
administração de Pauio VI atou as mãos da próxima administração do Vatica­
no. E isso fica evidente quando Kand e os outros dois examinam as partes se­
guintes da Estrutura Geral. Garcia resume o assunto para Kand.
— A política econômica do Vaticano prende-se a determinadas contin­
gências e a determinados pressupostos sobre tais contingências. Uma con­
tingência primordial é a política dos Estados Unidos. Essa política, —e Garcia
explica, — é chamada, presentemente, “trilateralismo” : um complexo triangu­
lar. Via de regra, entende-se que os três lados sejam os Estados Unidos, a Eu­
ropa e o Japão. Os Estados Unidos desejariam que fosse assim. Mas não é
assim que se vê que as coisas estão saindo.
— Da maneira como agora se apresentam as coisas, os três lados desse
complexo econômico são os Estados Unidos, a Arábia Saudita e o Japão.
— De acordo com o Documento sobre a Situação, do ponto de vista dos
Estados Unidos (e, conseqüentemente, do Vaticano), a Europa Ocidental é
vista como deixando de ser econômica e politicamente autônoma, nos próxi­
mos cinco anos. Suas democracias, legítimas e ilegítimas, cessarão de existir.
Em que pese qualquer esforço dos Estados Unidos, do Japão e de outros paí­
ses para impedir isso, a hegemonia russa irá de Vladivostock à Comualha, de
Kirunna, no Círcuio Ártico, ás tépidas águas do Mediterrâneo que banham as
praias da Sicília.
— O único “acidente” histórico que poderia, previsivelmente, impedir
essa hegemonia seria ou uma guerra nuclear ou uma revolução na URSS. Por
revolução, porém, entende-se não apenas qualquer mudança na presidência
do Politburo, não uma depuração partidária qualquer, mas uma revolução
verdadeira: sangrenta, universal, destruidora, subvertendo e fazendo desmo­
200
ronar todo o sistema soviético. Uma revolução dos muitos “que não têm”
contra os poucos e despóticos “que têm” . Mas uma revolução assim é consi­
derada tão improvável quanto a rendição dos israelenses á Organização para
libertação da Palestina. E a guerra nuclear ainda não é bem uma coisa previ­
sível.
— A projeção continua: tendo conseguido a tecnologia e o fmow-how
dos negócios, os soviéticos poderiam fazer circular um rublo conversível, com
base no acesso que hajam garantido a si mesmos aos principais supri mentos de
ouro na União Soviética e na África do Sul, desse modo podendo desafiar o
dólar, forçar a baixa do marco alemão ocidental e do franco suíço, absorver
todas as moedas fracas, na medida em que a inflação e a depressão econômica
se espalhem por sobre toda a Europa. Nos cinco anos seguintes, haverá muito
pouca probabilidade de que a força militar, a inconcebível “parteira da Histó­
ria”, como a denominou Karl Marx, venha a fazer parte do quadro, seja como
Terceira Guerra Mundial, ou mesmo como alguma coisa menos importante.
— Mas, por desoladora que seja a situação pintada na Estrutura Geral, pa­
rece que, no entender do Vaticano, não será o fim do mundo quando tanques
russos roncarem sem oposição por sobre a Alemanha Ocidental, para descerem
pela planície da Lombardia, nem quando comissários russos soviéticos fo­
rem residentes em Bonn, Paris, Roma, Genebra, Madri, Estocolmo, Atenas e
An cara. Todos os principais bancos suíços vêm reestruturando seus serviços,
de modo a poderem atender a seus clientes no ultramar, digamos, em uma ou
em ambas as Américas, no Japão e em Hong Kong.
— Na Estrutura Geral, o suprimento de dinheiro é considerado como as
tenazes que, inexoráveis, manteriam a Europa Ocidental firmemente presa à
rija bigorna da economia, enquanto o marxismo eliminará todas as insignifi­
cantes diferenças nela existentes em matéria de sistemas políticos, práticas so­
ciais e distinções de classe, modelando seus nacíonalismos num controlado
delta de populações subservientes. É citada a opinião de alguns funcionários
do Vaticano, segundo a qual há uma “conspiração de silêncio” entre os líde­
res governamentais do Ocidente, que sabem muito bem para onde estão ca­
minhando as nações que dirigem. Mas mantêm as aparências e se entregam às
maquinações da política local.
Antes que seus companheiros possam continuar e dar a Kand as princi­
pais conclusões da Estrutura Geral, ele próprio apresenta seu resumo objeti­
vo:
— A brincadeira acabou, - diz Kand calmamente, olhando para Garcia
e Karewsky. —Finita la commedia. É isso que estão nos dizendo, não é?
— Isso, ao que suponho, é a afirmação de um fato, não uma pergunta,
meu Irmãò, —observa Garcia com um ar ligeiramente cansado. —No Docu­
mento sobre a Estrutura Geral, — continua ele em seu sumário, —descrevem-
se os Estados Unidos estabelecendo um trato com os soviéticos; primeiro um
entendimento tácito, depois inteiramente explícito. Agora, —conclui ele, —o
201
Vaticano vinculou sua sorte, econômica e financeiramente, aos Estados Uni­
dos.
— Mais uns poucos assuntos, —Kand interrompe Garcia, —antes de ter­
minarmos. —Israel, por exemplo?
— Esse já é um assunto secundário, —responde Karewsky. —Condenado,
pelo menos de acordo com o Documento. Mas não condenado à extinção, re­
pare bem. Eles prefeririam isso, nossos amigos israelenses, à maneira de San-
são, ou de Masada. Mas condenado a tomar-se uma potência levantina de dé­
cima ordem, sufocada pela inundação financeira, o poder econômico e a ex­
pansão demográfica das nações islâmicas, especialmente dos sauditas. Os israe­
lenses não terão condições de competir. No mundo de valores calcados em
dinheiro e em poder de fogo em que situaram seu destino, estão condenados
a perder e a descer até o nível que lhes compete. Os cristãos, especialmente os
americanos, não continuarão a se sentir culpados ou responsáveis, eternamen­
te, por coisas que nunca fizeram, ou por um país que não é o deles. Assim
sendo, o fluxo vai parar. E, seja como for, os Estados Unidos não terão
capacidade para se dar ao luxo de manter a amante que têm no Oriente
Próximo.
— Em suma, meus Eminentes Irmãos, — Kand reclina-se na cadeira, —
em suma, de acordo com a Estrutura Geral e os outros Documentos, o signi­
ficado final deste Conclave é o de que o futuro Papa reinará sobre um mundo
inteiramente diferente.
— Salvo que não estará exatamente reinando. Estará provavelmente pere­
grinando.
— Peregrinando? Que é que isso quer dizer? — Kand inclina-se para a
frente. —Um peregrino? O Papa? Para onde? Para quê? Como um prisioneiro?
Que é que o senhor quer dizer? —Os outros dois riem, bem-humorados, ante
a sucessão de perguntas de Kand.
— Bem, para os da abertura, —começa Karewsky, —onde se colocará o
centro da cristandade? Nos EUA? Imagine só! —a propósito, o senhor pode
ler isso no Documento sobre a Situação n?6, sob o título de “Qs EUA consi­
derados do ponto de vista religioso e o modo americano de vida”, como cha­
mam a coisa. — Faz um resumo do Documento. Como uma entidade sócio-
política, os Estados Unidos constituíiam-se mais ou menos como uma enorme
grade, ou uma rede de ferro, de leis, direitos, obrigações, freios e contrapesos.
Qualquer coisa que não se dissolvesse e se derretesse nela, ou que não pudesse
ser soldada nessa grade, estava desde o princípio da experiência americana
condenada a cair pelos buracos dentro da lata de lixo da cozinha da História.
— O Documento sobre a Situação rfí 6 afirma que, com a passagem da
história americana, a religião formal e depois qualquer tipo de moralidade re­
ligiosa mostraram não ter condições de se derreter na grade, ou de se solda­
rem nela. E assim, um por um, quaisquer princípios morais ou religiosos na
vida pública da nação tiveram que desaparecer da vista e da lembrança, per-
202
dendo-se no nada desse monte de lixo de coisas passadas, até que tudo que
hoje resta é um sistema praticamente inviável de métodos legais» leis e contra­
pesos constitucionais que se impõem a 220 milhões de pessoas, a maioria das
quais ainda crente em alguma espécie de moralidade religiosa.
— Sendo assim, a coisa toda tem que acabar por se romper nas costuras.
Ou antes, essa grade vai-se tomar demasiadamente opressiva para a massa do
povo. Este vai-se revoltar e não saberá para onde se virar, sem destruir a grade
- o sistema e o modo americanos de vida. Dessa maneira, os Estados Unidos
não poderiam ser o centro do catolicismo romano.
— E, com toda a honestidade, o senhor acha que o centro poderia ser na
Europa, na Itália, em Roma? —Garcia toma a palavra. — Dificilmente. A
maioria dos católicos europeus nSo vai à missa, nem aos sacramentos. Gran­
des áreas da França, Itália, Holanda, Alemanha, Áustria estão descristianiza-
das — muitas pessoas, nesses lugares, nem são batizadas. O catolicismo, de
acordo com o Documento sobre a Situação, está atravessando um período
máximo de desorientação. Já no princípio dos anos setenta, era claro que
muitos cardeais, bispos, padres, intelectuais, além do povo leigo, não acredita­
vam mais em coisas fundamentais —a Ressurreição de Jesus, sua divindade, a
realidade histórica de seu sacrifício no Calvário, a alma do homen, a Eucaris­
tia e outros Sacramentos.
Baseada em suas estatísticas precisas, atualizadas, e em relatórios muitos
francos sobre o declínio na observância dos preceitos religiosos, nas vocações
sacerdotais e religiosas e na moral individual, a mente vaticana chegou às
mesmas conclusões que extraiu do exame feito em relação ao destino da Eu­
ropa Ocidental.
Acima de tudo, através de toda a Europa Ocidental e nos velhos países
católicos, não há nenhuma probabilidade racional de um renascimento reli­
gioso. No Ocidente, a religião foi banida para o campo da fé pessoal e da vida
familiar:

“A religião já não tem mais funções reguladoras da vida social, nem iden­
tidade associativa, nem legitimidade política. E isso ocorreu porque to­
do controle social, socialização e identidade associativa estão racional­
mente coordenados no ambiente impessoal e anônimo, inevitável nas
sociedades industriais e pós-industriais. Mais acentuadamente, os domí­
nios da família e da fé pessoal constituem áreas recessivas: constante­
mente invadidas e diminuídas por seu ambiente. E qualquer avaliação
serena nos diz que, com exclusão de uma volta mítica e impossível â Ida­
de da Pedra, esse processo não pode sofrer reversão. Só pode continuar
avançando em sua tendência numa só direção.”

A observância da religião, portanto, como sinal da íntima fé religiosa,


vai continuar diminuindo. Os autores e co-signatários dos Documentos so­
203
bre a Situação estão tão impressionados com o entusiasmo dos, digamos,
católicos carismáticos de Kansas City, no Missouri, ou de Dublin, na Irlanda,
quanto com o Movimento Kimbangista do Zaire, a Cientologia, na Grã Bre­
tanha, ou com o Movimento do Potencial Humano, os Filhos de Deus e o
Hare Krishna, nos Estados Unidos. Todos esses movimentos, com seus pro­
testos de conhecimento esotérico, suas propostas de liberação dos poderes
do ser, do ser real, e com a salvação que afirmam que só pode ser consegui­
da dentro de sua sagrada comunidade - tais movimentos são encarados como
fracos gestos de desespero contra a tecnologia irremovível e a impessoalidade
e o isolamento da sociedade moderna, que tudo envolvem.
— E sabemos, — conclui Garcia um tanto tristemente, — que nem na
África, nem na Ásia, há sinal algum de grande expansão do cristianismo, ou
do catolicismo romano.
Kand fica calado. Lê alguns poucos parágrafos nos Documentos sobre
a Situação abertos em cima de sua mesa, nos quais Garcia assinalou determi­
nados trechos. Não existe nenhuma mente mais friamente analítica, reflete
ele, do que a do católico romano avaliando a situação de sua própria Igreja e
de sua própria fé.

“No período que se aproxima, essa descrença cada vez maior, já um fato
consumado, vai-se tomar um problema agitado, dividindo a Igreja, pri­
vando-a de muitas inteligências de boa qualidade e de muitos especialis­
tas treinados, da mesma forma que de muitos elementos dentre a gente
comum. Já não haverá mais o antigo sentimento de uma discrepância
entre aquilo que se diz e aquilo que se sabe. Mais ainda, a posição do
Santo Padre passará, necessariamente, por uma severa revisão: a organiza­
ção da Igreja e a hierarquia descendente da autoridade e da disciplina tor-
nar-se-ão mais diversificadas - para que possam sobreviver de uma manei­
ra ou de outra. Grandes grupos de cristãos não-católicos buscarão aproxi­
mar-se e tentar associação ou fusão com católicos, dessa forma tomando
necessárias adaptações no papel do Pontífice. A desromanização do cato­
licismo romano, que é um fato desde a invenção do telégrafo, será acele­
rada até que se complete. A Igreja de Constantino está-se despedindo dos
negócios humanos.”

Kand levanta os olhos. Há silêncio entre os três homens, por alguns mo­
mentos. Depois, cheio de incredulidade, quase zangado, Kand diz:
— Mas, em nome de Deus, sobre que é, então, que Masaccio e Vasari es­
tavam falando na reunião? Eles leram este material todo. Assinaram isto tudo
juntos, não assinaram?
— Que acha que Thule e Lynch e Franzus estão discutindo agora mesmo,
meu amigo? — diz Garcia, olhando-o inquisitivamente. —Os dois primeiros
realmente não sabem o que fazer e querem manter uma atitude firme. Essa
coisa de sustentar a posição. Mostrar em público a melhor face possível. O
que quer que o senhor prefira. Apenas uma boa vontade ignorante com uma
pitada de ambição pessoal. Os outros acham que sabem o que nós deveríamos
fazer. Estão correndo atrás dos modismos da época. Francamente, não sei que
atitude é mais idiota.
— Bem, Eminências, —Karewsky olha para o relógio, —é quase um quar­
to para as onze. O Cardeal Kand pode ter esquecido, mas ele e eu temos que
comparecer a uma reunião. —Os Cardeais da Europa Oriental deve rio realizar
um encontro político às onze horas.
— Assim como e u ,—diz Garcia afavelmente.

Quando Thule volta a seu apartamento, encontra Buff, Franzus e Francís ain­
da sentados. De volta do encontro com o Camerlengo, Thule tinha chegado a
uma decisão. Senta-se. Os outros permanecem calados.
— Estive pensando no clima da Sessão Preliminar, na tarde de hoje, —
começa ele, —e a mim me parece que, diante de nossa recente conversa com
Azande e os outros, teremos que decidir sobre um lance muito audacioso.
— De minha parte, parece-me, —diz Franzus, ~ que se não agirmos ra­
pidamente, perderemos um certo impulso já configurado. Mais ainda, não
confio inteiramente na simplicidade e na amabilidade de Domenico- Angéli­
co, eu sei —todos nós sabemos —é previsível. Mas Domenico! Bem, aí está
um homem que pode levar a gente jardim abaixo, todo sorrisos, todo conces­
sões, todo simplicidade e desprendimento de sábio. E então, na hora em que
nos preparamos para elogiar o jardim, de repente é provável que nos encon­
tremos do lado de fora, com Domenico rindo para nós através das grades.
—Rindo não, amigo, — acrescenta Buff sombriamente. - Rindo não.
Pior que isso. Oferecendo à Virgem uma prece de agradecimento!
~ Bem, seja lá como for, as coisas não chegarão a isso. — Thule está
cheio de uma tensa autoconfiança. Que é contagiosa. Os outros relaxam.
— Muito bem, — Buff torna-se prático. - Que é que está na nossa agen­
da?
— Primeiro, — diz Thule, —quero que Sua Eminência aqui, —indicando
Franzus, —nos diga qual foi ou é o resultado final das manobras latino-ameri-
canas e do Ostkardinalmt, em que Eakins e Tobey e outros estavam envolvi­
dos. Muita coisa depende disso. —O que Thule procura é atualizar-se no que
se refere aos esforços para forjar-se uma aliança entre os Cardeais latino-ameri-
canos e os Cardeais da Europa Oriental.
— Ê simples. É claro, —diz Franzus, —que o senhor sabe o que Eakins e
Tobey tentaram combinar. Acho, realmente, que Bronzino, Braun e o Camer­
lengo estavam por trás daquilo...
— De fato, sabemos que estavam, Irmãos, —a observação de Buff é fei­
ta com um levíssimo traço de cinismo.
— Seja como for, — Franzus continua, —eles supuseram que tudo esta­
va arranjado. Que, na verdade, os Cardeais da Europa Oriental ficariam ao la­
do dos latino-americanos —e vice-versa —apoiando um candidato da Política
da Estrutura Geral, uma vez que este fosse uma espécie de... como é que cha­
marei isso? Oh, uma espécie de híbrido, um conservador que fosse progressis­
ta e um progressista que fosse conservador. — Interrompe-se e por um mo­
mento olha para os outros, em tomo. — Provavelmente está tudo naqueles
Relatórios, é claro. Não que eu os tenha visto. De qualquer maneira, não to­
dos eles...
— 0 senhor não tem necessidade de vê-los, —diz Thule apressadamente.
—Uma confusão. Mas, continue. E quanto a Kand?
— Oh, ficou fora disso. Disseram-me que o deixasse de fora.
— Por que é que o Camerlengo e companhia queriam que ele ficasse de
fora?
— Ele não, —Franzus engole em seco. —Compreende, esse tempo todo
eu estive conversando com nossa própria gente... —faz uma pausa, olha para
Thule, —e aah... aah...
— Seja claro, Eminência!
— Seja! —Franzus dá ao “s” o som de um “z” germânico e isso diz aos
outros volumes inteiros. — Nesse meio tempo, por um outro caminho, che­
guei aos latino-americanos. — Volta*se para Thule. —Devemos nos lembrar
dos bons ofícios de Menendez Arceo, nesse particular. Mais tarde, sabe? —
Bispo de Cuemavaca, no México, Menendez Arceo é um dos mais ostensivos
propagadores do movimento em prol do socialismo democrático. “Sou um
revolucionário social”, diz-se que o Bispo declarou abertamente. E foi cita­
do como tendo dito que Chou en-Lai deveria ser canonizado como santo
da Igreja.
— E? —Thule insiste na pergunta.
— Eles concordaram em desviar-se da Política Geral, se lhes fosse aberto
um caminho viável. A questão é, poderemos nós abrir um caminho assim?
— Acho que sim. —Thule é definitivo. —Eis aqui o que proponho. Pri­
meiro vou procurar Lowe e explicar-lhe que a coisa de que precisamos agora
não é do estilo pontifício pan-europeu. Isso, como sabem, foi considerado
como uma transição entre um Papado de feição italiana, tal como tivemos
até aqui, e um Papado realmente internacional, um Papado que fosse não-
nacionalista, não-congregacional, não-hierárquico, não-limitado etnicamente,
não-determinado em termos de geografia. E foi uma boa idéia. Mas temos
uma força nova, agora. Puxa! Que chance, livrar definitivamente a Igreja da
“Igreja de Constantino”... se é que posso dizer assim, paradoxalmente...?
— Nós compreendemos, Irmão. Acredite em mim! Nós compreendemos.
— Subitamente, Franzus toma-se arrebatado, enfático. — Nós compreende­
mos até bem demais!
Thule continua animadamente:
206
— Conseguimos que Lowe concorde em nSo ser indicado. N5o! Não!
Acreditem em mim! Lowe será o primeiro a compreender. —Está reagindo à
expressão de descrença no rosto de Franzus.
— Muito bem, —continua Franzus. —Mas, e quanto a Yiu?
Thule, silenciosamente, faz que sim com a cabeça:
— Yiu, Eminência! Yiu como o candidato apresentado pelos progressis­
tas como eu e por aqueles que são a favor de uma ampla e completa apertura
para o “Leste” ! —Thule está-se referindo ao grupo favorável à aliança com os
marxistas. —Yiu será nosso candidato de coalisão!
— De certo. — Buff está satisfeito. —Yiu seria perfeito. Atrairá muitos
votos europeus e italianos. Sua cotação com os africanos é alta, de modo que,
apesar da rixa com Azande, eles podem votar conosco com a consciência tran­
qüila.
— E não se esqueça, —acrescenta Thule, —Yiu é, por natureza, conser­
vador. Apenas, notaram todos, quando o impulso se transforma em empurrão,
ele pode agir tão rapidamente com a facção esquerdista como qualquer um de
nós. — A história de Yiu em seu país natal tem sido, realmente, desse jaez.
Quando o governo caiu em cima dos dissidentes, Yiu apoiou lealmente as
freiras e os padres que foram presos ou atacados pelas autoridades.
— Além disso, Yiu representa uma grande vantagem. Vai conseguir, au­
tomaticamente, os votos de Ni Kan e Koi-Lo-Po e Lang-Che-Ning e os dos
hindus e sabe Deus que mais, em razão de todos esses —oh, esqueci o voto de
Nei Hao, vai conseguir esse também.
Buff olha para Thule:
— Acho que isso dá para resolver o assunto. - Empertiga-se e fica sério.
—É melhor que o senhor procure Lowe antes da Primeira Sessão, amanhã.
— Não se preocupe! Não se preocupe! Isso vai ser providenciado. —Thu­
le reflete por um instante, depois acrescenta: —Pensando bem, acho que vou
pedir a Lowe para ficar pronto como uma possível reserva para apoiar a pro­
posta de voto. Angélico... bem, nunca se sabe, realmente, não é? — Olha pa­
ra Buff.
— Não, acho que não, —diz o anglo-saxão lentamente. —E agora que fa­
lou nisso, que tal ter um reserva para o senhor mesmo como propositor do
voto?
— Como quem?
— Como eu!
Thule olha um momento para Buff.
— Sim. Suponho que sim. Nunca se sabe. Alguma manobra pode me dei­
xar atado. O senhor? Muito bem. Pode fazer isso, eu sei.
— Certamente! Não tem nada com que se preocupar, —Buff está seguro.
— Então, se tudo está inteligentemente combinado, — Franzus levanta-
se, — ficarei de fora. O senhor propõe a indicação. Supõe-se que Angélico a
apóie —ou, se necessário, Lowe. É isso?
207
A voz de Thule eleva-se, numa advertência:
— Eminência, tenha cuidado: não é essa a maneira de conduzir a coisa.
Angélico... bem, ele pode querei se esquivar. Sempre haverá Lowe, como aca­
bamos de concordar, ótimo. Mas tenha cuidado. Não vou começar propondo
uma indicação. Não, Eminência! Oh, não! Temos que esvaziar a Política Ge­
ral. O que vou propor é uma outra política. Isso é que votaremos. Se não pu­
dermos acabar com a Política Geral, não poderemos acabar com as indicações
da Política Geral! As coisas importantes em primeiro lugar! São os pontos de
debate, não os nomes, que decidem os Conclaves! Pontos de debate! Desta
vez — a questão do conservantismo, consagrado na Política Geral, contra a
questão da “abertura”, da apertura, da Igreja nova e aberta, da cristandade
aberta, do Pontificado aberto e da aberta salvação, como consagrado na Polí­
tica de Coalisão f Percebeu?
— Ah! Compreendo! Melhor! Muito mais bem pensado do que eu tinha
imaginado! Mais alcance no raciocínio. Dessa maneira não cortamos nossas
amarras antes da hora!
— Exato!
— A propósito, —Buff está a ponto de sair, quando lhe vem o pensamen­
to, —o senhor entregou nossos nomes ao Camerlengo, para garantir amanhã a
ordem em que teremos a palavra?
— Oh, sim. Está tudo em ordem. E lembrem-se, cada um de nós trata de
um aspecto ou questão. Meu Senhor Lynch tem sua própria idéia. Eu propo­
rei as linhas gerais. O Meu Senhor Franzus aqui falará sobre como cristãos e
marxistas podem viver juntos —ele deve saber alguma coisa a esse respeito, e
quem pode contradizê-lo? O senhor, Meu Senhor Buff, o senhor terá que usar
sua posição de orador para destruir o que quer que seja que alguns oradores
da oposição tenham afirmado... E pensei que Meu Senhor Francis poderia
acrescentar o testemunho de...
Francis protesta amável mas firmemente, ao mesmo tempo em que se
levanta:
— Meu Senhor Thule, era melhor eu esperar, não era? 0 senhor entregou
meu nome para ser um dos oradores. Mas esta tarde, quando acabei de conver­
sar com o Camerlengo sobre um outro assunto, o pobre homem estava tão
assoberbado para encontrar vaga para todos os principais oradores, que eu ce­
di a minha prioridade. Além disso, achei que seria uma atitude demasiado
suspeita da minha parte, se fizesse questão dela. Ele insistiu comigo para de­
sistir. “Pode fazer um discurso de apoio, mais tarde”, o Camerlengo me disse.
E sei que estava falando como se a Política Geral ainda fosse viável. Achei que
não poderia insistir no assunto, sem...
— Excelente! — Buff decide por todos eles. Thule sorri, aceitando a
idéia. Só Franzus reage, por um instante, de maneira diferente. Mas Francis
percebe:
— Meu Irmão! —diz ele, —não se preocupe! Nós, orientais,estamos ten­
208
do a última palavra nos últimos cinco mil anos! Farei o melhor que puder! —
Depois, abre o rosto num sorriso, acena que sim com a cabeça.
Franzus hesita por um momento. Depois ele também abre o rosto num
sorriso e acena que sim com a cabeça. Algumas vezes Francis faz com que ele
se lembre daqueles espertos lavradores de sua terra natal, os quais ninguém
jamais conseguiu que fizessem alguma coisa que não quisessem fazer. Sempre
uma risada. Sempre uma piada agradável. Mas uma vontade igual ao granito.
Quando Francis passa pela porta, há gotículas de suor em torno de seu lá­
bio superior. Aquela foi uma saída apertada —esse é o seu pensamento. Em
seus aposentos, ele fecha a porta, levanta o fone do gancho e chama Domeni-
co.
Buff, Franzus e os demais seguem para os próprios apartamentos, para
um pouco de descanso. Thule liga para Lowe e conversa com ele ao telefone
por uns vinte minutos. Depois se levanta e segue para o apartamento do Car­
deal Yiu.

Enquanto Thule e seus colegas formulavam um plano de ação, Karewsky es­


tava com Terebelski, em seu apartamento. Também tinha ido até lá Bon-
kowski, junto com Eakins e Tobey. Eakins e Tobey ainda estio fazendo for­
ça para desarmar o acordo existente entre os latino-americanos e os europeus
do Lestç. E a primeira grande questão que têm em mente é Franzus. O segun­
do problema constitui-se dos latino-americanos.
— Bem, quando falamos com Franzus em setembro, —Tobey diz a Tere­
belski, —ele estava tão completamente do nosso lado como o senhor, quando
o meu colega Eakins falou consigo em agosto. Foi ótimo. Estava conosco. Fa­
vorável à Política Geral, quero dizer. Não creio que tenhamos coisa alguma a
recear.
- Recearei até tudo estar acabado, —diz Karewsky suavemente. - So­
mos eslavos. Eles não são. Isso é tudo. E o Meu Senhor Thule é muito inteli­
gente. O senhor sabe disso!
— Mas, Eminência, - Eakins intervem, —há muita coisa envolvida nis­
so. Lembre-se, o que estamos propondo não é nem o que desconfio que o
amigo Thule deseja, nem o que deseja o amigo Franzus. Na realidade é um
alinhamento da política religiosa conservadora com aquilo que sabemos, ou
que pensamos saber que é, ou que será, a diretriz governamental dos Estados
Unidos. Ora, isso é muita coisa para arriscar. Concordam?
- Sim! Mas, na realidade, não há risco, - Tobey garante-lhe. - Conheço
essa gente a minha vida inteira. São todos os mesmos. Místicos. Imprecisos.
Grandes católicos, porém. E, na verdade, duros como pregos.
- Bem, se o senhor o diz, —murmura Eakins, ainda cheio de dúvida.
— Que seja assim, Eminência, —diz Karewsky, com uma expressão ligei­
ramente satírica na testa, nas faces redondas e na boca.
209
— De fato, o que está me preocupando mais é a questão latino-america­
na, - continua Tobey. - E quanto a Lynch? Será que ele acompanhará a Po­
lítica GeraP.
— A palavra aí é clara, —Eakins volta à conversa. —Soube disso através
de nossos amigos no Panamá e em Cuernavaca —além do que Lynch declarou
aos brasileiros. Lynch vai onde Franzus for.
— Sendo assim, tudo depende de Franzus, ein? —observa Karewsky.
Nesse ponto chega Kand.
— Só vim cumprimentar os senhores todos e fazer uma pergunta, —diz
ele a Terebelski. — Julgando pelas últimas palavras que ouvi o Meu Senhor
Karewsky dizer, acho que cheguei bem no momento exato. Tinha intenção de
perguntar: Franzus é coisa certa?
Bonkowski, geralmente taciturno, intervem:
— Percebo um certo tom de dúvida em sua voz, Eminência...
— Bem, para ser franco, recebemos algumas informações perturbadoras,
pouco antes de virmos para Roma.
— Que informações? Diga-nos! - Eakins está alarmado. Kand olha rapi­
damente para Karewsky e entende o aviso que há em seus olhos.
— Oh, nada, realmente, - diz Kand, desajeitado. - Foi só algo sobre —
aah - Franzus tendo dificuldades com o governo, e sobre os temores dek.
— Oh, isso., —diz Tobey. —Claro! Franzus tem seus temores. Na reali­
dade, todos nós temos.
— Bem, como é que ficamos, quanto a Franzus? — Kand pergunta de
novo.
— Conseguimos garantir a adesão de Franzus, —responde Tobey rapida­
mente.
— Sei disso. Mas foi há mais de seis meses. E quanto a agora? Esta noite?
Amanhã? — Kand insiste. Eakins e Tobey olham um para o outro. Aí Tere­
belski toma a palavra:
— Olhem, Irmãos, nossa informação é que Franzus vai tomar o partido
de uma política pan-européia; que Thule irá atrás, porque não pode fazer ou­
tra coisa; que o Camerlengo pode nos garantir quanto aos italianos. Para eles,
é uma quebra da tradição. Mas viram a luz, acreditamos nós. - 0 rosto de Te­
rebelski está descontraído, meio sorridente, tranqüilizador. Ele se levanta, co­
mo que para dar fim à reunião e volta-se de maneira que só Karewsky lhe po­
de ver a face. Nela, Karewsky lê uma mensagem diferente: Terebelski está
com aquela expressão fria, dura, granítica, qüe ele e os outros o têm visto exi­
bir muitas e muitas vezes, durante os choques com os governos de seu país e
com os mentores russos desses governos. Sem uma palavra, Terebelski está
agora dizendo a Karewsky:
— Nada mais. Não diga nada mais. A coisa toda é demasiado sutil para
que eles a compreendam. É astuciosa demais, para que a aceitem. —Assim,
Karewsky também se levanta.
210
— Eminência? Acho que tudo está decidido. Vamos todos para uma boa
noite de sono.
Os dois americanos passam para o corredor.
— Apesar disso, —Tobey está dizendo, —eu gostaria de dar uma palavri­
nha a Lynch, a Marquez e aos outros. —Eakins está sacudindo a cabeça.
Karewsky pára na porta e torna a olhar para Terebelski:
— Bem, sairá tudo bem, Eminência? Que acha o senhor?
— Deve sair tudo bem, - diz o outro, hesitante. —Deve funcionar. Não
deixe de dar uma palavra a Domenico, pela manhã". —Karewsky vai-se embo­
ra.
Quando Terebelski e Kand ficam sozinhos, Kand tira do bolso um rolo
de papéis.
— Não há cópias, Irmão, — diz ele suavemente a Terebelski. —Tenho
que os levar comigo outra vez. —O outro acena com a cabeça e começa a ler,
Kand passando-lhe folha após folha, na medida em que Terebelski vai devol­
vendo cada página que leu. Gastam nisso menos de um quarto de hora. Kand
dobra os papéis e os põe de novo no bolso.
Terebelski já está no telefone com Domenico:
~ Sim, Eminência, eu vi as listas... Nffo são tantos quantos imaginei...
mesmo nos Estados Unidos... cerca de, oh, cerca de... —interrompe-se e olha
para Kand, que faz sinal com uma das mios. —Cerca de cinco bispos. Sessen­
ta a oitenta padres, algumas freiras... Roma? Quer"dizer, oh, o Vaticano. Bem,
principalmente leigos... Sim. Principalmente entre o pessoal leigo, mas há dois
ou três bispos auxiliares e cerca de quatro monsenhores no Secretariado e —
adivinhe o quê? —de três a seis na Comissão. Sim! —Terebelski escuta por
algum tempo, depois põe a mão sobre o fone e volta-se para Kand: - quão
recentes, quero dizer, atualizadas, são as listas?
— Vieram de Moscou há dez dias, - Kand responde rapidamente.
Terebelski volta ao fone para Domenico:
— Extremamente recentes. —Ouve durante uns momentos, depois: —e
podemos lidar com os indivíduos mais tarde? Depois do Conclave! Bom!
Compreendi. —Dá boa-noite e desliga. Fica de pé, mordendo o lábio por um
momento, depois se vira para Kand.
— Domenico acha que devemos manter as listas na reserva. Para serem
usadas - se e quando! Compreende?
— Mas não poderiam elas servir a um propósito útil agora?
— Sim, podiam; de fato, um propósito devastador. Mas, para serem usa­
das com a maior eficiência, tanto Franzus como Lynch teriam que estar pre­
sentes. Quanto a Lynch, não me incomodo. Mas há uma coisa especial em re­
lação a Franzus. —Ele se interrompe.
— Bem? —pergunta Kand.
Por fim Terebelski responde, inspirando profundamente:
211
— Vamos dizer assim. O senhor tem suas fontes. Gostaria de vê-las com­
prometidas?
Kand empalidece e encolhe-se na cadeira, como se tivesse recebido uma
pancada.
— Oh, não! Pelo amor do Bom Jesus, não, isso não!
— Bem, então, se elas forem lidas na presença de Franzus, não temos cer­
teza de que suas fontes não serão comprometidas.
— Mas haverá tempo para alertá-las. Quando eu voltar para casa...
— Eminência, - Terebelski interrompe, a voz severa, — nessa tarde, a
tarde do dia em que as lermos aqui, em Conclave, nessa tarde, talvez mesmo
mais cedo... - pára, olhando fixamente para Kand.
— Mas como? - Kand estaca, os olhos enchendo-se de compreensão. —
Oh, não... Compreendo. Oh, meu Deus! A esse ponto? Meu Deus!
— Sim, —Terebelski tritura a palavra por entre os dentes. —A esse pon­
to, Eminência.
Há silêncio entre eles. Kand fala como se estivesse conversando consigo
mesmo:
— De modo que todos esses clérigos vira-casacas vão continuar vivendo
vidas duplas, minando, roendo a nossa fé, corroendo e traindo.
— Não, —responde Terebelski. —Vamos pegá-los. Podá-los um por um,
sempre por motivos óbvios. E, para sempre depois disso, serão homens mar­
cados.
Depois de algum tempo, Kand levanta-se, fica um pouco de pé, meditan­
do, depois:
— Domenico deveria vê-las —quero dizer, as listas?
— Não. — O outro homem sacode a cabeça. —Não necessariamente. Já
sabe alguma coisa... Há outras fontes. - Kand olha em volta, com curiosidade
nos olhos.
— Amaud?
— Bem. Está certo. Vamos dizer que o bom padre jesuíta fez uma viagem
muito agradável até Moscou, no ano passado. Não que Amaud saiba, —Tere­
belski diz isso com uma caretinha. - Um bom correio, é isso que o senhor
tem em nosso padre!
— Ao menos isso, —diz Kand. Ambos riem um pouco, depois Kand sai.

Quando Thule entra, Yiu levanta-se rapidamente. Seus movimentos são todos
muito ligeiros, mas não impetuosos, nSo tanto macios, mas sutis. Thule obser­
va isso como alguma coisa que tem visto nos orientais. Yiu toma nas suas as
duas mãos de Thule e inclina a cabeça, o corpo ligeiramente curvado na cintu­
ra.
— Meu Eminente Senhor Yiu, sinto muito importuná-lo a esta hora tar­
dia. Temos um dia ocupado diante de nós amanhã... —Yiu inclina-se um pou­
212
co mais e mostra seu bem conhecido sorriso de garoto. Mesmo quando con­
duz Thule até uma cadeira de braços, sua atitude tem aquela qualidade ex­
perimental que representa um oferecimento, não uma indicação de sua von­
tade.
Thule senta-se. Não parece haver necessidade alguma de palavras, da parte
dele. Depois Yiu senta-se com naturalidade, pestanejando devagar, ainda sor­
rindo, a cabeça inclinada sobre a mesa de trabalho. Fecha o livro de notas
diante de si, vira o corpo completamente, para ficar de frente para Thule. 0
Cardeal percebe o sorriso que permanece na boca de Yiu e nos pés de galinha
em tomo dos olhos do asiático —mas que não está dentro dos olhos dele. Es­
tes pestanejam, observam, pestanejam.
— Eminência, — começa Thule, — acabo de me reunir, para consulta,
com alguns colegas que pensam como eu. Formamos uma coalisão. Porque,
tanto para mim, como líder de um grupo constituído principalmente de eu­
ropeus, quanto para meu irmão Franzus, do Leste, parece vital que chegue­
mos a um acordo, a fim de tomar mais fácil o trabalho do Espírito Santo...
À menção do Espírito Santo, Yiu faz um ligeiro aceno com a cabeça,
sorri mais amplamente e gesticula com a mão direita. Como quem concorda.
Embora pudesse estar querendo dizer coisa diferente, observa Thule. Mas
continua:
— Desejamos, como grupo, apresentar amanhã o nome de sua Eminên­
cia para indicação. —Yiu não está sorrindo, mas ainda pestaneja. —Não até
a Segunda Sessão, naturalmente. Teremos todos que decidir sobre a política,
na Primeira. —Yiu está sorrindo de novo. —A política é tão importante, Sua
Eminência! Decide todas as outras questões, incluindo o candidato-eleito pa­
ra ser Papa!
Sua última afirmação é mais uma pergunta. E Yiu de novo alarga o sorri­
so, mas nada diz. Àquela altura, qualquer mudança na expressão de seu rosto
vale por um indício.
— Entendo então que Sua Eminência não faz objeção quanto a ser apre­
sentada para indicação — eventualmente — como candidato da coalisão? —
Depois, como Yiu continue sem dizer nada, Thule prossegue. —Compreende,
Eminência, como candidato indicado, todos nós temos que lhe pedir que res­
ponda a determinadas perguntas, de modo que a maioria fique conhecendo
seu pensamento... —ele se interrompe e olha inquisitivamente para Yiu.
Yiu desvia os olhos, ainda sorrindo suavemente. Fixa o olhar na mesa à
sua frente, mas é óbvio que está refletindo.
— É uma grande honra-... —pronuncia a palavra “honra” de maneira pe­
sada, enfática, e levanta os olhos, ainda sorrindo aquele sorriso impessoal,
encontra o olhar de Thule, — ser escolhido, mesmo ser cogitado, Sua Emi­
nência. — Silêncio. Depois continua. — Tenho apreço por Sua Eminência e
pelos Cardeais da Europa, de nosso Terceiro Mundo, e das Américas do Nor­
te e do Sul. Mas, —baixa de novo os olhos para a mesa, —minha idade e mi­
213
nha falta de conhecimento. —Faz uma pausa. Depois vira-se de novo, como
se tivesse tomado uma decisão. — Se nosso limão Cardeal Angélico tomar
parte, será tranqüilizador.
Thule anima-se:
— Precisamente, Eminência! Precisamente! Na realidade, eu — nós, eu
deveria dizer — temos isso em mente. —Espera por outra reação. Yiu sorri
abertamente para ele, outra vez. Isso deve ser bastante para Thule. Conse­
guiu um assentimento. A conveniência exige-lhe que não insista.
— Contudo, - Thule apressa-se em tranqüilizar Yiu quanto a outro pon­
to, —o que quero que Sua Eminência compreenda é que, se Sua Eminência
desejar, podemos deslocar a votação final para a Terceira, ou mesmo para a
Quarta Sessão. Isso vai significar mais um dia de Conclave, ou mais ou menos
isso, mas não importa! - Depois, como numa reflexão posterior, —há arran­
jos que teremos que fazer, o senhor compreende... e, oh, é claro, o senhor
também, Eminência, seus próprios arranjos, também. —Nenhumpapabile en­
tra na votação final sem ter combinado com amigo e oponente, a propósito de
determinadas condições que afetam tanto as linhas gerais da política quanto
os detalhes.
Faz-se agora um silêncio suave. Thule levanta-se sem pressa e Yiu faz a
mesma coisa. Inclinam-se um para o outro, cada um sorrindo à sua maneira.
Thule está quase na porta e a mão de Yiu está sobre a maçaneta para abri-la,
quando o asiático diz, como se aquilo fosse parte de uma conversa ainda em
curso entre eles dois:
— E os americanos... —Não é uma pergunta. Não é uma objeção. Nem
mesmo uma simples afirmação. Um pedaço de pensamento.
Thule tem o cuidado de manter-se na corrente:
— Deus Todo-poderoso caminha conosco e com eles. —Essa parece ser
a coisa mais apropriada e inócua, para dizer naquele momento.
Do lado de fora, no corredor, um pensamento inesperado vem à mente
de Thule: “Os americanos?” Os americanos? Quereria ele dizer, os cardeais?
Ou o governo? Ou os latinos-americanos? Ou quê? Olha de novo para a porta
de Yiu, fechada, e sacode levemente a cabeça, depois vai para seu próprio
apartamento. Não está, afinal, certo de haver entendido corretamente em que
posição está o asiático, ou o que irá fazer.

Domenico tinha razão. Quando Angélico desce o corredor, no meio-trote ha­


bitual, vê sete vultos, de pé sob a luz do teto, diante da porta de seu aparta­
mento. Riccioni está lá com os ibéricos, Cortez, Balboa, Rodriguez e Da Go-
mez. Atrás deles, Azande. Angélico desculpa-se profusamente, por estar
atrasado, ao mesmo tempo em que os faz entrar.
Desde o começo, é Riccioni quem toma a liderança:
— Eminência, represento um grande número de Cardeais italianos. E nos­
214
sos quatro colegas ibéricos falam por vários outros grupos. Decidimos vir vê-
lo a fim de conseguir do senhor algum conselho. Francamente, da maneira
como vemos a situação, parece haver pouca esperança de que nosso —refiro-
me aos italianos que represento —que nosso candidato preferido, Meu Senhor
Vasari, possa fazer mesmo uma boa apresentação inicial. Contudo, sempre é
possível e tolerável uma acomodação.
— Diante disso, temos algumas perguntas a fazer ao senhor, porque acha-,
mos que está perfeitamente familiarizado com a política do Papa Paulo, e
com o pensamento do Camerlengo, já que ele trabalhou no pontificado de
Paulo. Conseqüentemente, o senhor fala com experiência diretamente adquiri­
da. Creio que compartilha nossas crenças e conceitos sobre a Igreja e o ofício
de Papa —todos de acordo com os Concílios e os dogmas definidos da Igreja,
e com os instintos religiosos dos fiéis católicos, em toda parte.
Angélico acena afirmativamente quanto a tudo isso. Ainda não sabe em
que direção se colocam as perguntas de Riccioni.
— As perguntas que temos dizem respeito àquilo que a Igreja deveria fa­
zer. Veja, todos nós concordamos em que influência e poder na ordem tem­
poral da política, das regras e dos governos terrenos, tudo isso já não pode
mais fazer parte do Papado. Nunca deveria ter feito —pelo menos na medi­
da em que isso aconteceu. Seja como for, é assim que vemos as coisas hoje
em dia.
— Então, qual deve ser a atitude, a política da Igreja, a ação da Igreja?
Temos uma idéia bastante clara do que seria proposto por Meu Senhor Thu­
le. Sei o que é que o meu grupo proporia. Mas há alguma alternativa?
A resposta de Angélico é negativa:
— Eminência, eu não sei. Se há, não consegui percebê-la hoje. Franca­
mente, estou tão perplexo quanto Suas Eminências. Suponho que tudo de­
pende do que se decida sobre o que o Vaticano e o Papado devam vir a ser.
— Em outras palavras, —Azande está falando agora, - deve haver uma
mudança, de uma espécie ou de outra?
— Sim! Sim! É claro! Já não está mudando, a coisa toda?
— Mudança há, — responde Riccioni. —Mas não sabemos em que con­
siste essa mudança. Ninguém sabe. Mas estamos falando de mudança deseja­
da, de deliberada mudança de política, não das mudanças vacilantemente im­
postas à Igreja pela Providência, sob a forma de acontecimentos e situações
inevitáveis. Em sua opinião, Eminência, quais são as opções, diante do estado
de coisas deixado por Sua Santidade o Papa Paulo VI? - Há apenas um traço
de amargura nessas últimas palavras. —Deixem-me, primeiro que tudo, defi­
nir duas alternativas óbvias.
— O Vaticano pode continuar mais ou menos como está indo: essencial­
mente uma burocracia clerical, localizada num estado soberano próprio; de­
tendo extenso poder e controle, através de seus vários ministérios, sobre cada
aspecto da vida eclesiástica pelo mundo todo; exercendo, pelo menos, uma
215
ação de presença sobre os governos e as organizações internacionais, por inter­
médio de seu corpo diplomático, seu financiamento empresarial e coisas desse
tipo. Põde permanecer estritamente hierárquico, designativo e nío-eletivo, em
seu vários setores —salvo o Papado —derivando seu poder do Papa. Do Papa
como chefe da Igreja, do Papa investido de infalibilidade e de uma autoridade
magisterial ampla, e do Papa dotado do prestígio de sucessor de Pedro.
— Esta é, como o senhor vê, a antiga e bem estabelecida oligarquia cons­
titucional e monárquica da Igreja, que evoluiu daquilo que Constantíno fez
para o Papa Silvestre e para a Igreja do século quatro. Há tanto tempo! E isso
sobreviveu a todo tipo de calamidade, de fraqueza interna e de inimigo exter­
no. Tradicionalistas e conservadores partilham esse ponto de vista. A única
diferença entre eles está em que os conservadores permitiriam mudanças len­
tas e sem importância, enquanto os tradicionalistas permitirão pouca mudan­
ça —se é que permitirão alguma.
— Não poderia, portanto, a Igreja fortalecer-se nessa posiçío? Liquidar,
pela excomunhão, todos aqueles que estão tentando destruir essa constitui­
ção? Reforçar suas fileiras, em outras palavras. Sobreviverá tempestade. Dei­
xar que todos esses pigmeus pereçam, enquanto ela supera a tempestade, e es­
perar por um dia, mais tarde, em que as condições mudem para melhor? —
Rodriguez sempre preferiu a posiçío tradicionalista, mas continua um conser­
vador.
— Poderia, - responde Angélico. - Poderia tentar isso. Mas isso significa
deixar todo o trabalho para a Providência. É o que o senhor chamaria de Igre­
ja de Constantino, de Gregorío, o Grande, de Leio III. Ela sobreviveu, fez
grandes coisas, e sobreviveu.
— Bem?
— A dificuldade não está aí. A dificuldade está em descobrir se isso é o
que Jesus quer de nós, nesta hora. Afinal de contas, nenhum de nós aqui acha
que o Senhor quis que Pio VII reclamasse todos os Estados Papais, no Concí­
lio de Viena, em 1815. No entanto, Pio reclamou. Eos conseguiu. Nós acha­
mos que não deveria ter feito isso. Mas, seja como for, a Igreja sobreviveu.
— Suponho que a outra alternativa óbvia é a proposta de Thule? —per­
gunta Riccioni.
— Sim, mais ou menos. E, deixem-me dizer isto, ela tem seus méritos. A
proposta é simples: vamos nos lançar, cheios de confiança e ousadia, no ocea­
no humano, removendo tantas barreiras quantas seja possível, reexaminando
muitas —e mesmo a totalidade —de nossas estimadas posições. Isso significa,
falando praticamente, que o Vaticano deixa de ser o Vaticano. Oh, eu sei, —
isso dito numa reação rápida à expressão no rosto de Riccioni, - parece ina­
ceitável. Porque, em semelhante proposta, a posição do Papa seria totalmen­
te modificada e a política oficial da Igreja seria inteiramente alinhada com o
que, nos dias de hoje, é considerado como sendo o Terceiro Mundo e com a
216
facção marxista-socialista da política e da economia internacionais. Sim- Sim.
Sei que seria diferente.
— Mas pode Sua Eminência perceber em que se transformaria o sucessor
de Pedro, se a proposta de Thule fosse aceita?
— Bem, vamos fazer um esboço disso. Na realidade, ele seria o presiden­
te efetivo e permanente de um conselho internacional de cristãos, e a figura
patriarcal aceita por um conselho internacional ainda mais amplo de, vamos
dizer, “religionistas”. Não?
— Porque a proposta de Thule e companhia é a de que nos deveríamos
libertar de todo medo, de que deveríamos confiar no Espírito Santo e, pelo
menos por algum tempo, deixar que todas as práticas e todos os matizes da
fé cristã se misturem, coabitem, se combinem, se fundam, coexistam, modi­
fiquem-se uns aos outros, eliminem-se mutuamente. Uma santa confusão, al­
guma coisa como um novo Pentecostes —como o Cardeal Thule entende o
Pentecostes, naturalmente!
— Nesse caso, o Colégio de Cardeais toma-se um anacronismo, porque
já não existirá mais um Vaticano hierárquico. O Papa, como Bispo de Roma e
reverenciado chefe da Cristandade, organizaria sua burocracia da mesma for­
ma que o Reverendo Sr. Potter organiza a sua, no Concílio Mundial das Igre­
jas. E, na verdade, tendo muito em vista o mesmo fim. O Papa deixaria de ter
estatura internacional, diplomática e financeiramente, ou seja, não mais pos­
suiria um Estado independente na Cidade do Vaticano. E, vejam como ime­
diatamente se tornaria fácil —posso ouvir Thule dizendo isto! —a união com
a ortodoxia do Leste e com os protestantes. Mas presumir que isso removeria
a Igreja da política temporal é absurdo. Um olhar para o Concílio Mundial
das Igrejas lhes mostrará isso!
— Ora, —a voz de Angélico vai ficando cortante, —todos nós aqui sabe­
mos que isso seria uma tentativa de suicídio. Qualquer admissão de todas as
outras seitas cristãs como iguais. Qualquer enquadramento do sucessor de Pe­
dro como o primeiro entre seus pares —com um par anglicano, um par russo
ortodoxo, um par luterano, um par armênio ortodoxo, um par episcopaliano;
com todos os pares possíveis —e estou pensando em todos eles, desde os San­
tos do Último Dia, até os Bahai, os Judeus por Jesus, as Testemunhas de
Jeová e qualquer coisa desse tipo, todos os outros: tudo que para mim é sinô­
nimo de morte e danaçãò e do fim de todos nós e da Igreja de Jesus.
— E há coisa pior. A condição da fé e da doutrina já é bastante má, ago­
ra. Como acham que seria no dia em que a proposta de Thule fosse implemen­
tada, ou no dia seguinte?
— Sua Eminência tem alguma outra alternativa, além dessas duas? —per­
gunta Riccioni.
— Não, Eminência. Não tenho. Não. Não tenho. Não creio - e acho que
o senhor não crê —que a posição conservadora, centrista, de mudanças lentas,
de um Masaccio valha um caracol. E rogo a Deus que nos ilumine a todos, por­
217
que temos que concordar quanto à política a ser seguida pelo futuro Papa, se­
ja ele quem for. E que Deus tenha piedade dele e de nós. Alguma coisa precisa
ser feita í
Riccioni tem uma expressão decepcionada e triste: veio esperando algum
esclarecimento. Azande parece impassível. Os três ibéricos mantiveram-se sé­
rios, sem fazer comentários.
— Podemos então admitir, Eminência, —Riccioni pergunta a Angélico,
- que sua opinião sobre candidatos tende mais ou menos para a direita, ou
para o centro com uma inclinação para a direita? —Essa é uma pergunta nor­
mal e não pode causar ressentimento ou surpresa. Angélico está olhando para
as próprias mãos, que descansam sobre a mesa.
O impassível Azande, que a essa altura já se levantou, dá um passo a fren­
te:
— Acho que Sua Eminência respondeu bem claramente a todas as nossas
perguntas.
Riccioni olha do rosto angular de Azande para os grandes olhos de Angé­
lico. Percebe um certo alívio em Angélico e um apelo em Azande. Não se fica­
rá sabendo mais nada esta noite, compreende ele.
— Sim, suponho que sim, Eminência. Desejo-lhes boa-noite, Eminências!
Quando Riccioni sai, Angélico levanta-se, dá a volta em tomo da mesa e
pára um momento junto dos outros.
— Os acontecimentos podem forçá-los a saírem de suas atuais posições,
meus amigos.
— Eminência, - Rodríguez levanta a voz, — temos que voltar ao aparta­
mento de Garcia, para uma reunião. Só queremos comunicar ao senhor a deci­
são de nosso grupo. Decidimos acompanhar a indicação de Lohngren, se for o
caso. Não podemos, em consciência, apoiar o candidato do meu Senhor Ric­
cioni, o Meu Senhor Cardeal Vasari. Masaccio e Ferro, achamos nós, estão
ambos no caminho errado. Nem podemos ver uma forma de apoiarmos uma
indicação de Thule. Bem, a menos que o senhor tenha uma alternativa —e
pensamos que é um dos poucos capazes de produzir uma alternativa —então
nos deixa sem nenhuma alternativa.
Angélico lança as mãos para o ar. Os presentes notam as gotas de suor
em sua testa. Ele está descartando qualquer possibilidade de se oferecer, ele
próprio, como candidato. Mas outra luta, mais profunda, o está destroçando
silenciosa e —salvo por aquelas gotas de suor —invisivelmente.
Azande, o sensitivo, é o primeiro a começar a sair:
~ Eminências! Precisamos todos ir para a cama. O Meu Senhor Cardeal
Angélico já falou bastante-
Quando fica só, Angélico começa a desabotoar a batina. Antes de ajoe­
lhar-se para rezar, ouve os passos dos poucos Cardeais que ainda estão voltan­
do para seus aposentos, retomando de longas consultas. Uma vez na cama,
fica deitado ali, sem sono. Passam por sua mente os ecos da conversa recém-
218
terminada, de mistura com uma porção de perguntas sem respostas e com
suas reações pessoais. “A menos que o senhor tenha uma alternativa. ” Por que
eu? “Há alguma outra alternativa viável?’*Há? Há? Eu não sei.... eu não sei...
‘*Se o senhor não sabe, Eminência, quem sabe... ” Eu não sei... continuo sem
saber... há? “Qual é a outra alternativa?"Nenhuma?Então, éLohngren - na
melhor das hipóteses; o candidato de Thule — na pior. Ou talvez ainda haja
coisa pior. “Pode haver coisa pior?”Eu não sei... Por que eu? Como poderia a
posição do Papa ser pior do que no plano de Thule?

O Camerlengo conseguiu acalmar os receios dos Cardeais da Comunidade Bri­


tânica e da Oceânia. Os receios deles eram simples: que as autoridades da ad­
ministração central do Vaticano concordassem com excessiva facilidade com
uma tentativa de oposição à proposta Thule-Franzus. Como explicou Desai:
— Por tudo que sabemos, Eminência, a escolha de um candidato do Ter­
ceiro Mundo pode bem ser a solução para todos os nossos problemas.
E, como disse Nei Hao, da Oceânia:
— Tudo de que precisamos é, daqui a alguns anos, que os Cardeais do
Terceiro Mundo — alguns na América Latina e alguns na África —descubram
que, em sã consciência, não podem nem mesmo concordar com os preceitos e
as recomendações de um Papa europeu e de seus ministros romanos. Sua Emi­
nência sabe o que isso significaria.
Oh, sim, o Camerlengo sabe. Cisma total. A ruptura da Igreja. E ele gas­
tou apenas cinco segundos e três palavras para dizer ao Cardeal, na sua manei­
ra seca:
— Kaput, Eminência, Kaput\ — No final, tinha-os mandado embora le­
vando ao menos uma esperança de que se tomaria um grande cuidado.
Nos três quartos de hora anteriores à sua hora de dormir, o Camerlengo
recebeu os Cardeais do Leste e eles o deixaram perturbado. Vieram coman­
dados por Terebelski, e o Camerlengo nunca se dera muito bem com Terebels­
ki, a quem uma vez, num acesso de raiva, tinha apelidado de “Nosso Santo
Padre da Europa Central” , por causa da atitude pontifical que o homem ti­
nha. Mas fora necessário um Cardeal do calibre de Terebelski para manter à
distância dos regimes comunistas e para desbastar uma considerável área de
influência para sua Igreja, num regime stalinista e num pós-stalinista.
— Eminenz, dissera Terebelski, com o toque germânico em seu sotaque
que irritava, também, o Camerlengo, —estivemos conversando com o Cardeal
Calder, que falou por pelo menos três de seus colegas ocidentais, Sargent,
Artel e Buonarroti, e por alguns europeus e latino-americanos.
— Sim, Eminence, — respondera o Camerlengo, dando ao título o
som nasal francês. —Eu também...
— Eminenz, — tinha continuado Terebelski imperturbavelmente, como
se nao houvesse escutado a interrupção, —nós —nosso grupo —decidimos
219
retirar nossa adesão à Política Geral, como se concordou expô-la, de acordo
com os Documentos sobre a Situação. Vamos esperar até a Primeira Sessão,
amanhã", para comunicar a nossa decisão. —Ao dizer-lhe isso, Terebelski esta­
va observando as convenções do Conclave. Uma vez tendo prometido seguir a
política do Camerlengo, tinha que revelar qualquer mudança em sua decisão.
Depois, tinham discutido rapidamente as tendências dos latino-america­
nos. Fora tudo impreciso, Terebelski e seus companheiros haviam adotado
uma atitude de afastamento, de esperar para ver.
Agora o Camerlengo está arrumando a mesa de trabalho e dando as últi­
mas instruções ao jovem Monsenhor, enquanto ainda medita sobre a situa­
ção. Um pensamento o assalta, ele apanha o telefone e liga para Angélico.
— Acho que seria bom se Sua Eminência tivesse uma conversa com o
Cardeal Domenico, —é o comentário de Angélico, quando o Camerlengo lhe
explica rapidamente o desmoronamento do muro de arrimo da Política da
Estrutura Geral. - Ele ainda está, provavelmente, na Capela. Boa-noite, Emi­
nência.
Quando o Camerlengo se aproxima da Capela, Domenico está saindo, va­
garosamente, imerso em profunda reflexão. Pela segunda vez naquela noite, o
Camerlengo não consegue expor o que quer dizer. Mal começa a falar e Do­
menico lhe lança um olhar astuto, depois diz, de maneira meio brusca:
— Sei bem quais são os nossos problemas, Eminência. Eu sei. Mas, a me­
nos que meus Irmãos Cardeais tenham consciência de todos os fatos, irão dis­
cordar, em massa, da Política Geral.
— Que aconselha, Pai?
— Além de recomendar franqueza quanto a todos os fatos importantes,
só aconselho a oração, Eminência! Reze! Boa-noite, Eminência.
O jovem Monsenhor é o último a sair do gabinete do Secretário. Apaga as
luzes, fecha a tranca da porta do gabinete externo, que dá para o corredor.
Enquanto durar o Conclave, além de auxiliar o Camerlengo em seu trabalho, o
Monsenhor cuidará da organização dos padres-confessores, de modo que este­
jam disponíveis para as confissões dos Cardeais, providenciará para que os su­
primentos de material sejam mantidos e tratará da ordem geral da agenda dos
trabalhos. Deve acordar os confessores ás cinco horas da manhã, todos os dias.
Agora já é quase uma hora. Lá fora, a cidade dorme. No Monte Vaticano,
parece remar uma calma especial, na medida em que a atividade vai-se mudan­
do em silêncio. Ê a paz que se segue a mais uma noite de acontecimentos, na
longa história de Roma. A mesma paz que reinou naquela mesma colina, de­
pois do banquete de Nero em que Pedro morreu, e quando a Igreja do amanhã
era desconhecida daqueles que ele deixou para conduzir a mensagem do amor
e da salvação de Jesus a todas as nações.

220
O Primeiro Dia

MANHÃ: DAS 5 DA MADRUGADA ÀS 10 HORAS DA MANHÃ

Uma daquelas manhãs romanas amarelo-douradas. Um céu azul sem uma nu­
vem, cheio daquela luminosidade que só é vista aqui, nas províncias do Lácio
e nas Ciciadas. O sol dando aquele reflexo de ouro velho e polido aos casta­
nhos da terra e às fachadas ocres dos palácios de Roma. Tudo ainda está ver­
de, lá em cima no Pincio e na Vila Borghese. Além, no Trastevere, as pessoas
estão pendurando as roupas de cama nas janelas e gritando para os cafés e pa­
ra os vendedores ambulantes de café, lá embaixo, pedindo os seus capocinos
matinais. O cortante vento leste, que sopra vindo do mar, abranda na medida
em que o sol se ergue.
Os guardas-notumos de serviço na Domus Mariae acabaram de ser rendi­
dos pelo turno da madrugada. O suprimento de legumes e carne para aquele
dia já está sendo descarregado.
— Eh beh!, — murmura o carreteiro com tranqüila irreverência, —che
mangiano bene, i nostri illustrissimi principi! Andiamo! (Bem, que comam
bem, os nossos ilustríssimos príncipes. Vamos embora!)
— Mu andem/ (Vamos embora!) —responde seu companheiro, enquan­
to pula para o assento do motorista.
Os três Cardeais cujos aposentos ficam no andar térreo, no nível do Pá­
tio, são acordados pelo caminhão que se retira. Dois deíes mudam de posi­
ção para dormir de novo. 0 terceiro, Yiu, senta-se e olha para o relógio, de­
cide levantar-se.
Nos limites da área do Conclave, muito pouca coisa se move. O desper­
tador do jovem Monsenhor o acorda exatamente às 5 horas. Imediatamente
ele telefona para os padres-confessores. Depois apronta-se para o dia de tra­
balho. Quando são 6 horas, já rezou a missa, comeu alguma coisa no desje­
jum e está indo para o gabinete do Camerlengo.
Quando abre a porta que dá para o corredor principal, ouve o som de
vozes vindo da sala de trabalho do Camerlengo. Numa decisão imediata,
bate na porta e entra:
— Bom-dia, Eminência! Posso-lhe trazer um pouco de café?
O Camerlengo já deve estar acordado há, pelo menos, duas horas. Bar­
beado e completamente vestido, está sentado, diante da mesa de trabalho. Em
frente a ele estâo sentados os Cardeais Braun e Bronzino. Os três levantam os
olhos de seus papéis e olham rapidamente pára o rosto moço do Monsenhor.
No colo deles, sobre a mesa do Camerlengo e sobre mesas laterais estão espa­
lhados papéis, documentos, listas de números. “As avaliações financeiras” , é
o pensamento do Monsenhor.
— Todos nós apreciaríamos um pouco de café, Monsenhor, —responde
o Camerlengo animadamente. Bronzino e Braun concordam de cabeça.
Depois de ter entregue o café aos três Cardeais, o Monsenhor recebe al­
gumas listas para datilografar.
— A propósito, Monsenhor, vamos ter algumas visitas. Os nomes estão
sobre a sua mesa. Deixe-as entrar. Mas mantenha os outros todos à distân­
cia por uma meia hora... — Uma batida na porta o interrompe. A porta do
gabinete externo é aberta. Ouvem passos leves, irregulares, e o jovem Cardeal
gago aparece, sorridente e de rosto descansado, à entrada do estúdio.
— Ah! Bom-dia, Eminência! —o Camerlengo é todo sorrisos para ele. Os
demais presentes cumprimentam cordialmente o jovem Cardeal, mas com uma
evidente curiosidade.
— Convidei nosso jovem amigo como um amicus cume — coisa que ele
tem sido e é, nos dois sentidos da expressão. Sabem, tem feito bastante tra­
balho privado e confidencial para nós, através dos anos. — Depois, para o
Cardeal: — Venha, venha, Eminência! Sente-se. Estávamos exatamente come­
çando. —Os outros Cardeais sentam-se novamente e a reunião prossegue.
— Antes que os nossos outros amigos cheguem, vamos entender a situa­
ção como ela é, - O Camerlengo destranca uma gaveta da secretária, retira
um maço de papéis datilografados e o coloca junto à sua mão direita. —Eis
aqui como faiemos isso. Tenho aqui cópias únicas dos documentos financei­
ros referentes a 1977/1978, e do orçamento previsto para 1979. As perspec­
tivas desse relatório, como os senhores verão, são muito vantajosas para nós.
O material é apresentado à base da comparação com o pano de fundo econô­
mico, social e político dos Estados Unidos e da Europa. Acho, nesse particu­
lar, que as projeções e a análise são excelentes. —Enquanto ainda está falan­
do, ele passa a primeira folha do documento a Bronzino. - Seja como for,
terão uma idéia geral da situação. Todo este material fica entre rtous, por en­
quanto.
— Começamos com a situação dos investimentos partindo do outono
de 1977. - Todos esperam que o perspicaz Bronzino faça um exame cuida­
doso e ele está apenas verificando o documento —Bronzino sabe mais sobre
222
0 assunto do que qualquer Cardeal no Conclave. Depois entrega o papel a
Braun, que só conhece alguns dos aspectos, e em seguida recebe a segunda
folha do Camerlengo. Em poucos minutos o processo está em pleno anda­
mento. Cada vez que uma folha percorreu quatro pares de mãos, o último
homem a coloca virada para baixo sobre a mesa, do lado esquerdo do Camer-
lengo.
Quando a leitura está terminada, ele abre a gaveta da escrivaninha, põe
01 documentos lá dentro, fecha e tranca a gaveta, depois descansa os cotove­
los sobre a mesa e baixa os olhos para o seu bloco de papel. Todos os presen­
tes percebem, agora, que a saúde financeira do Vaticano depende da higidez
dos Estados Unidos.
— Suas Eminências, sem dúvida, podem agora avaliar a dificuldade —e
as minhas atitudes.
— Posso ver mais do que um simples perigo doutrinário na ação pro­
gressista, —comenta Bronzino.
— Pensei, —continua o Camerlengo, —que poderia explicar tudo isso a
ele —a Thule, quero dizer —e assim sustar de vez o movimento.
— E? —pergunta de Braun.
— Oh! Ele parecia ver a mão de Deus, ou coisa equivalente, naquilo tudo.
- Uma pausa. —A mão de Deus, façam-me o favor.
— Bem, que parte de tudo isso explicaremos, daqui a pouco, a nossos
amigos?
— Tudo isso, mas em termos gerais. O bastante para que possam enten­
der a gravidade que há no afastamento da Estrutura da Política Geral e/ou,
de uma estreita identificação com Washington. —Levanta os olhos, ansioso:
— Apresentamos isso sempre como uma medida temporária, naturalmente!
Temporária. — Os outros acenam afirmativamente com a cabeça. Abre-se a
porta do gabinete. Aparece o jovem Monsenhor.
— Nossos amigos estão aí? —pergunta o Camerlengo, a voz fazendo-se
ouvir no gabinete externo. —Sim, entrem, Eminências! Entrem! —O asiático
é o primeiro. —Meu Senhor Yiu, que bom que veio! Bom-dia, Pietro! —Ma-
saccio está, obviamente, com seu bem conhecido e sorridente bom humor
matinal. Cumprimenta Lowe, Lohngren e Vasari com igual calor. — Os se­
nhores todos se conhecem. —0 Monsenhor traz algumas cadeiras de armar,
abre-as e todos se sentam.
— Agora, meus amigos, esta é, como sabem, a costumeira transmissão
de instruções aos prováveis candidatos, precedendo a Sessão. E achei que nos­
sos colegas aqui... —olhando para Braun, Bronzino, Lohngren e o jovem Car­
deal, —poderiam nos ajudar, rápida e plenamente, no processo todo. —Com
muita propriedade, ele lembra ao pequeno grupo que o objetivo dessas ins­
truções, que têm sido uma praxe dos Conclaves desde os primórdios deste sé­
culo, não é tanto a preparação dos papabili para calçarem, provavelmente,
as sandálias do Papa anterior, tanto quanto é o de lhes dar uma idéia dos fato­
223
res econômicos e financeiros que governam as ações da Igreja em várias partes
do mundo —ações religiosas, diplomáticas e políticas, assim como eclesiásti­
cas. Olha para o Monsenhor. —O Monsenhor lhes distribuirá alguns documen­
tos que resumem nossa posição e os fatos, tal como este Ofício os vê. —O Ca­
merlengo sempre se refere a si próprio como “o Ofício” ou “este Ofício”. Os
documentos são distribuídos aos quatro, papabili e aos demais.
O Camerlengo olha para sua própria cópia:
— Acho que agora tudo está claro.
Há silêncio, durante alguns minutos, enquanto os Cardeais examinam o
material recebido. O Cardeal Braun é cumprimentado pelas contribuições da­
das naquele ano pelos católicos de sua diocese. Lowe quer saber quanto cus­
tou ao Vaticano o caso Sindona. Mas Bronzino e o Camerlengo disfarçam,
quanto a esse ponto. Os documentos mostram as enormes transferências de
investimentos, em ações e propriedades, feitas da Europa para os Estados Uni­
dos e empreendidas pelo Vaticano no final da década de sessenta.
— Portanto, meus Irmãos, esta é a situação, —diz Yiu, largando os seus
documentos. - Qualquer desvio acentuado do alinhamento político e diplo­
mático com o lado atlântico porá em perigo nossa receptividade lá; e foi lá,
precisamente, que fincamos nossos maiores interesses. É esta a conclusão?
— Mais ou menos. Há sutilezas, é claro. —Bronzino mostra-se cauteloso.
—Mas isso pode ser entendido como um bom resumo.
— A mim me parece, na hipótese de ser isso uma política firmada, —ago­
ra quem fala é o jovem Cardeal, —que então qualquer coisa fora de um Car­
deal italiano favorável à Cúria como candidato —ou de um candidato pan-eu-
ropeu que a Cúria aceite - qualquer coisa fora dessas duas possibilidades fica
eliminada, a menos que queiramos cortejar um grande perigo. E quem quere­
ria isso?
O Camerlengo joga o lápis na mesa, numa explosão emocional.
— Exatamente! Essa é a razão, Eminências! Está claro que é por isso que
um tipo qualquer de Política Geral é o aconselhável. Venho dizendo isso a to­
do mundo. —Instintivamente, todos se voltam e olham para Yiu. Nenhum de­
les fala. Yiu levanta os olhos e, ao falar, careteía. Ê o único papabile, ali, que é
inaceitável, nos termos do Camerlengo.
— Como se essa fosse a única razão contra a minha candidatura, Irmãos!
Vamos ser francos e realistas! Há também a minha idade, os senhores sabem
disso. E a cor da minha pele. Oh, sim! Isso tem importância —e não ajam co­
mo se não tivesse. Podem imaginar o que os comunistas italianos e as dinastias
latino-americanas diriam se o Papa fosse um homenzinho amarelo? E o regime
do meu país! Isso também não é um fator? Mas não se preocupem. Jamais se­
rei apresentado para indicação com probabilidade de sucesso. Não se preocu­
pem!
— Mas temos que nos preocupar, Eminência, —o Camerlengo repreende-
o paternalmente. —Temos que ser realistas. E... —olhando em derredor, —to-
224
dos nós sabemos de que é capaz a fúria do Leste! —A referência a Thule não
diverte ninguém.
— Entendido! — diz Yiu, enigmaticamente. —Entendido! Não se preo­
cupem!
— Então, tudo bem, —o Camerlengo levanta-se, seu propósito obviamen­
te alcançado com a garantia dada por Yiu, —se já acabamos, estou certo de
que todos temos coisas para fazer, antes da missa das 9 horas. Quero agrade­
cer a todos os senhores, Eminências! Muito, muito obrigado. Minha mente es­
tá aliviada.
Quando os outros vão se retirando, o Camerlengo faz um sinal ao jovem
Cardeal paia que fique. Durante os serviços confidenciais que o moço fez para
ele e paia o Vaticano, demonstrou piometer muito, aquele rapaz. O Camerlen­
go sabe que importante experiência aquele Conclave poderia ser para ele. Se
puder dar-lhe uma pequena orientação, a dará —e com muito gosto.
— Meu amigo, —confidencia, —temos, é claro, um plano alternativo —
se viesse a ser eleito um Papa antiamericano e se se tomasse imperativo cor­
tar o laço atlântico. Mas eu não ia falar nisso agora, nem fariam isso Bronzi-
no ou Braun. Estão au courant, naturalmente. Lohngren nada sabe. Só re­
correríamos a isso, seguindo esse plano alternativo, se ficar decidido ir até
o fundo do buraco — quero dizer, curvarmo-nos realmente à vontade do
Terceiro Mundo.
— Mas quem decidiria que a engrenagem toda iria, como o senhor diz,
até o fundo do buraco?
A pergunta do jovem Cardeal é, talvez, bastante natural. Mas, nessa ten­
tativa de estimulá-lo, o Camerlengo a considera inadequada ao moço. Por
um rápido momento, seus olhos estreitam-se. Depois o rosto se desanuvia e
ele sorri com indulgência:
— Você, meu rapaz, é jovem demais para ficar sabendo todos esses ter­
ríveis segredos! Vá-se embora! Deixe-me voltar a meu trabalho. Nunca o aca­
barei a tempo. Paz!
O Cardeal sai, passando pelo gabinete extemo, inclina a cabeça para o
jovem Monsenhor e continua para o corredor. O Monsenhor levanta-se e en­
tra para ver o Camerlengo.
— Se eu não soubesse das coisas, Eminência, —diz ele naquele tom irre­
verente que um empregado de confiança usa com seu patrão, — diria que o
Cardeal não entendeu e ainda está intrigado com alguma coisa vital.
O Camerlengo, que está ocupado escrevendo, não levanta a cabeça. O
Monsenhor conhece o jeito dele e espera. Um sorrisinho esquisito aparece no
canto da boca do homem mais velho. Ainda inclinado sobre o bloco de escre­
ver, ele pára, dá uma mirada no Monsenhor por debaixo das sobrancelhas. O
brilho de seus olhos é um sinal revelador do eu interior. Baixa os olhos outra
vez para a linha da escrita em que parou, diz muito secamente:
225
— O cio velho para a estrada, o filhote para o caminho barrento, com
costumavam dizer em Beham. —E começa de novo a escrever. A referência
à sua terra natal parece peculiar ao Monsenhor. O Camerlengo nunca men­
ciona isso, nem qualquer assunto pessoal, quando fala a seus subordinados.
Aposentadoria? — O Monsenhor pergunta a si mesmo, quando sai de perto
do chefe. E, depois, outra pergunta a si próprio: será que algum de nós jamais
fica realmente adulto? Ou deixa, jamais, de ser o garotinho desse ou daquele
lugarejo em que nosso coração permanece sempre?

Por volta das 6 horas, Domenico também já rezou a missa e tomou café. Está
de volta a seu apartamento, quando Yiu aparece na porta. Veio diretamente
da reunião no gabinete do Camerlengo. Domenico sacode vagamente as mãos,
quando Yiu se desculpa pela hora matinal.
— Não é cedo para mim, Eminência, garanto-lhe. Não é cedo, absoluta­
mente! — Olha para o rosto duro de Yiu. — Adivinho uma coisa. O senhor
foi abordado. - Yiu acena afirmativamente.
— Thule? —Yiu acena afirmativamente.
— Indicação ou... —Yiu acena afirmativamente.
— Antes ou depois da votação da Política?
— Depois. - Yiu mal abre a boca. Seus olhos são fendas estreitas.
— O senhor consentiu explicitamente em ser indicado?
— Sua Eminência entendeu que esse era o caso.
Domenico sorri levemente, ante a resposta de Yiu. Bem pode imaginar a
cena. Dois tipos de ocidentais falam, ou tentam falar, com orientais. Domeni­
co reflete rapidamente. Aqueles que pensam que sabem o que os silêncios e
o laconismo do oriental significam. E aqueles que sabem que não sabem.
— Muito bem, Eminência. Eis aqui o que vai acontecer. O senhor será
indicado por Thule —provavelmente na Segunda Sessão. Ele terá que definir
uma política para seu candidato, antes de qualquer coisa. Deverá fazer isso na
Primeira Sessão e conseguir que seja aprovado. Depois indicará o senhor na Se­
gunda Sessão. Angélico foi solicitado a apoiar a proposta. Irá levantar-se e fa­
lar... mas não vai apoiar...
— Não vai? —Yiu ergue as sobrancelhas.
— Não. Então, quando Thule e seus seguidores perceberem que falharam
quanto a obter o apoio de Angélico, haverá provavelmente uma tentativa para
apressar a sua reindicação e a aprovação. E um velho truque do Conclave,
aliás, e Thule saberá que é a sua melhor chance. Fique quieto. Nunca recuse
direta e explicitamente. Acima de tudo, não fale, a menos que seja obrigado.
Não importa qual seja a tentação de fazer isso. Ou a irritação! Crie dificulda­
des. Mas não se deixe envolver na confusão.
226
Yiu olha para Domenico, depois se levanta:
— Ni Kan deveria ser informado. —Yiu e Ni Kan são amigos íntimos.
— Ni Kan sabe.

Às 6:45 da manhã, Angélico telefona para Domenico. Thule passou dez minu­
tos com Angélico, antes de ir dizer sua missa particular. Angélico está preocu­
pado e não pode esperar para contar a Domenico.
- Sua Eminência Thule esteve comigo agora mesmo, — diz ele, no mo­
mento em que Domenico atende.
- E?
- Pediu-me para apoiar a indicação de Yiu, e para unir os radicais a seu
grupo. E eu disse que sim.
- O senhor concordou! Por quê?
- Para ganhar tempo. Desejando ganhar tempo.
- Mas se dissesse “não” , ele ficaria bloqueado por mais uma hora ou
duas e durante a Sessão da manhã.
- Não penso assim. Há outros. Ou, pelo menos, um outro.
- Marquez?
- Sim. Ele seria um. De modo que o fato de eu dizer “sim” agora pelo
menos o impede de procurar por alguém mais que seja mais seguro do que eu.
=~ Faz-se silêncio entre eles, enquanto Domenico revê as várias alternativas.
Angélico é o primeiro a romper o silêncio:
- Podemos assumir o risco de deixar a coisa ir até uma votação de polí­
tica na Primeira Sessão? —Seu medo é que Thule seja bem-sucedido quanto a
conseguir que o Conclave aprove a sua política. Uma vez que isso aconteça, o
papabile eleito teria que jurar a implementação de tal política.
- Vai ser apertado, —comenta Domenico.
- Até que ponto?
- Apertado demais para que se possa ficar de mente tranqüila! Mas não
será desastrosamente apertado —pelo menos isso é o que eu acho. Penso que
lempre poderei interromper a coisa.
- Mesmo uma precipitação?
- Sim. Acho que sim. Sim, sim. É sempre um jogo. Mas, de outra manei­
ra, nunca esvaziaremos o “movimento Thule” . Pode ir crescendo e crescendo,
mesmo depois do Conclave.
- Bem, então...
- Não. Deixaremos que prossiga. Como dissemos.
- E depois?
- Inscreva-se para falar no começo da Segunda Sessão, —Domenico diz
a Angélico. —Dependendo do que acontecer na Primeira Sessão, decidiremos
o que fazer mais tarde, na Segunda.
227
— Mas, Pai, supondo-se que tudo se encaminhe rapidamente na Primeira
Sessão, e que eu seja chamado para apoiar uma indicação precipitada?
— Não vai chegar a isso. Andei verificando. Há, pelo menos, seis oradores
inscritos, oradores importantes. Thule é o último. Não se preocupe. Só chega­
remos à votação da Política.
— O senhor mesmo não falará, Pai?
— Não.
— Por quê?
— Quero que essa corda seja o mais comprida possível. Temos alguns cor­
pos pesados para pendurar nela. O mais longos, o mais seguros, o mais petu­
lantes, o mais minuciosos em suas explicações que eles se mostrem, mais com­
prida e mais forte será essa corda.
— E quanto ao Camerlengo?
— Até que ele veja, finalmente, que sua Política Geral está em ruínas,
nem mesmo começará a se recuperar. —Quando Angélico vai responder, Do-
menico interrompe. Alguém está batendo na porta dele. —Eminência, vá re­
zar sua missa. E reze bem. Falaremos depois.

Os visitantes de Domenico são Eakins e Lohngren.


—Eminências! Entrem!
— Já celebramos missa, Eminência, como o senhor mesmo fez. —Lohn­
gren conhece os hábitos de Domenico.
— Podemos ocupar por um momento o seu tempo? —Agora é Eakins
quem fala, sorrindo.
— Ah! A polidez americana. Lembre-se de que fui eu quem lhe telefonou
na impiedosa hora de cinco e meia, esta manhã. —Os três sentam-se. Dome­
nico não perde tempo: —Eminências, o fato brutal é que a proposta pan-euro-
péia nasceu morta. — Faz uma pausa. Eakins mostra uma cara comprida.
Lohngren fecha firmemente a boca, depois faz uma pergunta importante:
— Como?
— Simples. Os senhores, norte-americanos, estão divididos, —diz ele diri­
gindo-se a Eakins. - Sargent acompanhará Vasari e os tradicionalistas, da mes­
ma forma que Braun. O senhor sabe disso. Eles, na realidade, não mudaram.
— Mas Calder e...
— Calder concordou com a condição de que Terebelski lhe desse a garan­
tia de Karewsky, Bonkowsky, Kand, Franzus e alguns outros; e desde que o
senhor, Eminência, — refere-se a Lohngren, —pudesse trazer consigo os ou­
tros alemães —e, agora, o senhor não pode ter certeza, quanto a eles, pode?
E desde que seu amigo Marsellais pudesse lhe garantir os franceses. —De novo
Marsellais, Bispo de Louon, Presidente da Conferência dos Bispos Europeus, o
todo-poderoso fazedor de Papas, na Europa não-italiana. Seu nome figura em
228
todas as avaliações da estratégia eleitoral. —Ora, Marsellais não pode garantir,
nâo quei ou não vai garantir. Não sei qual. Seja como for, ele mudou.
— Em que direção?
— Thule et al,
— E os espanhóis?
— No meio. No meio, Eminências!
— Mas no primeiro escrutínio ainda podemos dar uma forte demonstra­
ção e mais tarde fazê*la acompanhar de...
— Duvido — da sua forte demonstração. Mas, mesmo que a fizessem, a
maré está mudando. Vejam, o eixo central está aqui: se a. Política Geral está
morta - e, a propósito, acho que não pode haver dúvida de que está, —os
outros balançam a cabeça, tristemente, —então a solução que têm é a seguin­
te —isto é, vamos optar por um candidato não-italiano, um europeu. E, de­
pois, um Conclave posterior pode chegar até um não-europeu. Bem, essa é uma
bela idéia. Mas, afinal, que é que indica aos senhores que os africanos querem
um europeu? Por que quereriam eles? E os latino-americanos? Por que aceita­
riam eles qualquer coisa oriunda da Europa capitalista?
— Oh, não, Eminências! Se, desde o princípio, os senhores desaprovas­
sem a Política Geral sugerindo a sua solução pan-européia, estariam eliminan­
do a necessidade da primeira metade da argumentação de Thule antes que ele
dissesse uma única palavra. Estarão abrindo completamente a porta e irão cair
exatamente nas mãos de Thule e dos progressistas! Por que os senhores não
dispõem de candidato ou política que eles aceitem, no momento em que abri­
rem essa porta. E eles tem as duas coisas, prontas, dispostas e fáceis - ou as­
sim pensam.
Eakins olha para Lohngren, depois volta a olhar para Domenico:
— Por que é que Terebelski mudou? Afinal de contas, havia compromis­
sos.
— E ainda há, Eminência! —responde Domenico, realisticamente. —Mas
quando as condições sob as quais os compromissos são assumidos mudam, os
compromissos caem em pedaços - os senhores sabem disso! —Eakins ainda
tem alguma coisa na mente. Domenico sabe esperar.
Lohngren olha para ele, depois para Eakins:
— Acho, Eminência, que seria melhor que o senhor explicasse alguma
coisa sobie a proposta pan-européia. - Eakins espera um pouco, depois se vol­
ta para Domenico.
— Eminência, o plano era um pouco mais complicado do que poderia pa­
recer à primeira vista. Todo o processo de formação de uma coligação pan-eu­
ropéia não teve, realmente, o objetivo de fazer com que fosse eleito um não-
italiano. Foi concebido, originariamente, para congelar um bloco de votos, de
modo que os mesmos não fossem nem para o Meu Senhor Angélico, nem para
O lado do Meu Senhor Thule. Nem para os radicais, nem para os progressistas.
O plano visava a dividir tanto esses dois grupos, que os conservadores viessem
a ser a alternativa mais forte.
— A ação retardada, ein? —Domenico percebe o velho jogo político. —
Tendo liquidado qualquer putsch de Thule e descamado qualquer apoio a An­
gélico, então o candidato pan-europeu, ao ser indicado, recusaria categorica­
mente e jogaria seu apoio em favor de... —Domenico atira a cabeça para a
frente, como um falcão procurando a presa, —a favor de quem, Eminência?
Faz-se um silêncio pesado. Domenico permanece tenso ainda por alguns
segundos, depois relaxa e examina as listas de Eleitores que estão sobre sua
mesa. —Escoa-se meio minuto, até que ele fala, num tom calmo e sepulcral:
— Vejo uma mão muito escura, uma mão muito longa e escura, estican­
do-se de dentro de dobras labirínticas, toda veludo, toda silêncio, toda ma­
ciez, projetando-se e dando um aperto sufocante em qualquer iniciativa que
possa haver no sentido de renovação, de bem, de nova esperança. E estou fa­
lando do povo de Deus, nesta última frase, Eminências. —Levanta os olhos e
sorri um tanto sombriamente para os outros dois, depois olha de novo para
baixo. Levanta da mesa uma folha de papel, lê um pouco, depois deixa cair
a folha. —Essas tramas e esses planos —isso é triste, Eminências. Muito triste.
— E vou-lhes dizer como é triste. É triste porque, antes de tudo, falhou
antes mesmo que pudesse entrar em execução. Falhou. 0 plano está liquida­
do. Thule os tem sob cerco.
— É triste, em segundo lugar, porque, como os senhores sabem melhor
do que eu, esses bispos que estão de fora e que têm conhecimento da trama
dos senhores, tiveram suas esperanças aumentadas —esperam grandes libera­
lizações, grandes mudanças. Mudanças suportáveis, porém. Mas não são tão
hábeis quanto os senhores, nas manobras. Acreditam na alternativa apresen­
tada. Não como uma trama, antes por ela própria. Bem, podem imaginar o so­
frimento deles, quando os senhores, por assim dizer, forem batidos? Quan­
do o senhor, Eminência, fizer um candidato certo de alguém como Vasari ou
Ferro, que é anátema para esses bispos? Podem imaginar o que irá acontecer?
E que danos acham que Thule e seus teólogos progressistas irão causar depois
do Conclave? Podem imaginar? Previram tudo isso? Não! Os senhores não pa­
raram para pensar!
— Então que alternativas existem? —Pergunta de Eakins.
— Alternativas! Alternativas! Alternativas! Não ouço nada senão essa pa­
lavra e essa pergunta, vindas daqueles que andaram por aí um par de anos,
alegremente foijando suas muito particulares e miseráveis alternativas! Alter­
nativas? —Domenico está quase rindo, sardonicamente, mas sua generosidade
inata faz coih que pare antes.
Lohngren toma a palavra:
— E então, Eminência? Agora? Agora mesmo, —olhando para o próprio
relógio —dentro de três horas, aproximadamente, como será?
— Isto, simplesmente isto: deixem Thule avançar, tanto, tão depressa,
tio explicitamente, tão insultante e presunçosamente quanto possa e quanto
deseje.
— Mas isso significará morte certa para a Política Geral e entãol
— Não. — Domenico é quase reprovador em sua reação. —Vamos, va­
mos! Não podemos ter falsas esperanças. Precisamos servir melhor a Jesus. To­
dos nós sabemos que a Política Geral já está morta. Isso é um fato. Só o que
falta é pôr esse fato em evidência.
— Então que é que fazemos?
— Reze, Eminência, reze! E quando chegar a hora, usem suas cabeças. A
Segunda Sessão será crucial.
Eakins encara-o:
— Eminência, aconteça o que acontecer, nós não apoiaremos nenhum
movimento na direção de Angélico, porque Angélico significa toda uma legião
de coisas contra as quais temos lutado.
— Eu sei. Eu sei. —Domenico olha para ele. —Eu sei, Eminência. Mas
por que é que o senhor se colocou na posição de executor de Capovero e dos
outros? E por que marchar junto com o grupo antiPaulo? —Dom Dino Capo­
vero, um dos assistentes particulares do Papa Paulo VI, tinha estado, junta­
mente com seus auxiliares imediatos, em constante choque com Eakins e seus
seguidores. Um exército inteiro de poderosas autoridades do Vaticano deseja­
va a cabeça de Angélico. É que Angélico era odiado por muita coisa.
— Mas, —conclui Domenico, —esta não é a hora para as vendettas, ou
para se arranharem mutuamente as costas. Os tempos são críticos.
Mas Eakins não está satisfeito. Começa de novo a perguntar a Domeni­
co se não pode ser encontrado outro caminho para se tomar viável uma ge­
nuína candidatura pan-européia. Ele ainda teme um movimento favorável a
Angélico.
Domenico olha-o por um momento, os olhos estreitando-se, depois usa
um tom de voz frio e arrogante:
— Eminência! Encare a coisa desta maneira: sua cidade natal, como ci­
dade e diocese, é muito grande, muito rica, muito avançada e muito pode­
rosa. É um centro político muito importante. Lá, o senhor tem muita coisa
para ocupá-lo. Quando vem aqui, lembre-se de que não pode, de modo al­
gum, apresentar nenhum outro interesse além do de Roma —mesmo se esses
outros interesses coincidem com o de Roma, Nenhum de nós, afinal, pode ser
moço de recados para quem quer que seja. Apenas mensageiros de Jesus, nos-
90 Senhor. — Não se ouve uma palavra de Eakins, mas não há satisfação na
expressão de seu rosto.
Lohngren levanta-se. Eakins acompanha-o.
— Suponho que seja na Segunda ou mesmo na Terceira Sessão? —per­
gunta Lohngren.
— A votação num candidato? Sim. Numa das duas. A votação da política
será provavelmente na Primeira Sessão. Vamos rezar e trabalhar. Bom-dia,
Eminências!
Quando Eakins e Lohngren deixam Domenico, este vai até a escrivaninha
e telefona:
— Eminência? —Agora está falando com Riccioni. —O senhor dispõe de
alguns momentos? Às sete e meia? Muito bem. Aqui? ótimo! Obrigado! —
Desliga o telefone.
Quando Riccioni chega, é evidente que passou uma noite má. E uma noi­
te de pouco sono. Está muito pálido e sua expressão é de profunda angústia.
— Não sei o que lhe dizer, Eminência, —começa ele para Domenico, as­
sim que ambos se sentam. —Parece que tudo está desabando em redor de nós.
Que é que vamos fazer? Caminhar para um cisma? É t£o grave assim, às vezes
realmente parece que é. A noite passada, tomou-se óbvio que Thule estava
trabalhando muito. Esta manhã encerrei os entendimentos com os americanos
— Braun e Bronzino estavam lá também —e é evidente que qualquer colapso
da Política Geral representará um perigo para nossos planos de investimento a
longo prazo. Eu não me incomodaria muito com isso, se não acarretasse tam­
bém uma lua-de-mel com não-católicos e marxistas.
— Eminência, — diz Domenico suavemente, —a Política Geral está tão
morta quanto o dodó. Parta daí.
— Mas dai para onde é que vamos, Irmão? Para culminar tudo, parece
que Lombardi está comandando uma cisão entre os italianos. Incrível! Incrí­
vel!
Lombardi é um italiano nascido no estrangeiro. Aos cinqüenta e sete anos
de idade, subiu rapidamente de simples padre a bispo, a cardeal e a Prefeito de
uma Congregação Romana. Lombardi é suspeito, para muitos, de ser demasia­
do liberal —e certamente é jovem demais para qualquer responsabilidade.
— Não é incrível de modo algum! Nós já sabemos que estão divididos, —
replica Domenico.
— De maneira que estamos diante de um enorme, profundo abismo de
heterodoxia, protestantismo, secularização da Liturgia —como se já não ti­
véssemos ido longe demais. E politização da Igreja, em nome da revolução
do proletariado! Dio\ É demais. Temos que fazer alguma coisa. — Riccioni
está olhando para longe e falando como que para o teto.
— Eminência, —Domenico ainda fala com brandura, —partilho de todas
as suas angústias. Mas a solução não está em perdermos nossa presença de es­
pírito ou nos enfurecermos. —O gênio arrebatado de Riccioni é bem conhe­
cido. Domenico precisa ter certeza de que ele próprio conservará o controle
dos acontecimentos, nas Sessões cruciais que estão por vir.
— Eu sei- Sou inclinado a ficar assim. Vejo tudo vermelho. Dio! Vejo
vermelho num outro sentido! —exclama Riccioni.
— Ora, Eminência, ainda não chegamos lá. E o senhoT sabe disso tão bem
quanto eu.
232
— Mas, Domenico, você viu ou soube do plano —quero dizer do plano
4# Thule para um novo Concílio Internacional de Teólogos, que funcionaria
QOm o Papa e a Congregação da Fé e com o Sínodo dos Bispos e que não seria
ipenas consultivo, mas poderia formular regras doutrinárias? Viu esse plano?
— Sim, — diz Domenico tranqüilamente. — Eu o vi. E nojento. —Um
dos projetos favoritos de Thule tem sido a criação de um corpo permanente
de teólogos, que se reuniria todos os anos em Roma, durante dois meses. Os
membros seriam nomeados pelos bispos, pelo mundo todo. Haveria doze
membros permanentes escolhidos nas igrejas protestantes, e que não seriam
meros observadores: tomariam parte nas deliberações. O Concílio seria um
órgão legislativo e o Papa seria, ex-offlcio, obrigado a acatar as decisões da
maioria.
— Você pode imaginar o que Küng, o que Dulles, o que Schillebeeckx e
todos os outros fariam nesse Concílio? —pergunta Riccioni, horrorizado. —
E os membros protestantes permanentes?
— Eminência, olhe! - Domenico argumenta e acalma o velho Cardeal. —
Nós todos sabemos que Küng, Dulles, Curran e Schillebeeckx e os outros são
mais protestantes do que católicos. Eles e muitos outros estão próximos da
heresia, em assuntos como a Encarnação, a Trindade, o celibato dos padres, a
moral sexual e assim por diante. Mas podemos lidar com eles, Eminência. Po*
demos manejá-los. Podemos salvar aquilo que é bom. Podemos rejeitar e ex­
pelir o resto. Não se preocupe quanto a isso...
— Mas além disso tudo, e quanto à marxização,da Igreja? Eu sempre dis­
se que a Ostpolitik de Montini era uma loucura. Eu disse a Roncalli (o Papa
João XXIII) que ele estava errado. Ando dizendo isso há anos, a Montini,
Casaroli e Silvestrini —e a todos os outros galgos intelectuais do Secretariado.
— Temos imperativos morais, - diz Domenico em tom reprovador, —
para buscar justiça e paz no mundo. —Sua voz ficou levissimamente mais du­
ra. —Não podemos e não devemos deixar de nos comunicar com cada um e
com todos os governos, sejam eles não-católicos ou comunistas, ou lá o que
seja. O senhor quer que nos afastemos do mundo? É claro que não, Eminên­
cia! 0 que o está incoftiodando está me incomodando. É a maneira pela qual
tudo isso está sendo feito...
— Precisamente! —Riccioni está novamente inflamado. —Precisamente,
Eminência. A maneira pela qual fazemos isso. Não temos alternativa?
— Oh, não! Isso de novo, não! —diz Domenico fingindo-se horrorizado,
atirando as mãos para o alto, em sinal de protesto. —Cada um dos senhores
entra por aquela porta gritando por alternativas. Que é que esteve fazendo es-
te tempo todo, Eminência? Por que é que não desenvolveu uma alternativa?
— Desenvolvemos! Desenvolvemos! — Riccioni dispara outra vez. - A
velha doutrina. Uma volta a...
— Não, Eminência. — Domenico está novamente calmo. —Não! O que
precisa pôr na sua cabeça é que não há possibilidade de volta. O senhor não
233
pode. Nós não podemos. A Igreja não pode. Não haverá volta.
— Então vamos lutar. Cada polegada do caminho. Cada minuto de cada
hora de cada dia. Durante meses, se for necessário!
— E quanto tempo você realmente agüentaria, Riccioni? — Domenico
passa a um tom áspero. — Diga-me, quantos de vocês há? Há alguém em
quem, de fato, possam confiar? No Conclave, quero dizer. E hoje? Esta ma­
nhã? Quantos?
— Bem, eu próprio. Há Dowd, Nolasco, Braun, Mademo, Pozzo, Duccio,
Vasari, Lamennais, Carracci, Walker, Houdon, Broezino —Riccioni fraqueja —
e isso é apenas o começo.
— Você mencionou doze. Nem mesmo de todos eles eu tenho certeza.
Mas, para argumentar, vamos adiante. Quantos mais? Dez mais? Vinte mais?
— A reação de Riccioni é o silêncio. Ele descruza os braços e olha longamen­
te para Domenico. Quando fala, é num tom velado. Mesmo com toda a sua
fúria e temperamento, consegue ver.
— Que é que aconselha, Domenico?
— Primeiro que tudo, precisamos não entrar em pânico. Por essa razão
quero-lhe pedir um favor, Riccioni. Por favor! Não faça um discurso impor­
tante. Incomode-os o quanto queira. Interrompa-os. Previna contra eles, em
particular. Perturbe-os com perguntas. Mas na sessão pública não faça, repito,
não faça nenhum discurso importante.
— Por que não, Domenico? Por que haveria...
— Porque, quando começa, você é como um trapo vermelho diante de
um touro. E simplesmente os irrita da maneira errada. E, imediatamente, eles
querem fazer oposição a você. Perdoe-me, Eminência, mas o fato é este, não
é?
Riccioni acena que sim, melancolicamente, mas não diz nada.
— Entffo, —Domenico repete: - incomode-os! Arengue com eles dizen­
do sempre a mesma coisa. Aplauda na hora certa! Boceje. Faça o que puder.
Mas não faça um discurso importante.
Riccioni fica calado outra vez, por algum tempo. Depois fala, num tom
muito resignado:
— Muito bem, Domenico. Mas sabe o que é que me irrita e que não posso
compreender? Bem, o Camerlengo e companhia, aqui, estiveram flertando
com Masaccio já fazem quase dois anos. E você sabe, se Masaccio ganhasse a
eleição, o Camerlengo e seus amigos seriam os primeiros a sair de cena. Entre
Masaccio e eu há mais do que uma pequena diferença. No entanto, eles não
podem ver que estão mais seguros conosco, comigo, com a coligação tradicio­
nalista. Nós não daremos um ponta-pé neles!
— Masaccio e os conservadores têm quase a mesma pequena chance de
Sua Eminência —quero dizer, das idéias de Sua Eminência - de prevalecer.
Olhe! Isto não é uma predição; é simplesmente aquilo que vai acontecer. O
fato é que uma grande mudança ocorreu na Igreja, do lado de fora. Na gente
234
da Igreja, quero dizer. Essa é a Igreja, sabe? Nem o plano conservador, nem o
tradicionalista corresponderá à realidade dessa mudança. Bem, aí aparecem
Thule, Franzus, Buff, Lombardi e Marquez e todos os outros, os jovens
turcos! - com um plano diferente. E berrando de pôr a casa abaixo que sa­
bem o que está acontecendo!
— Será que sabem? — Riccioni pergunta em tom incrédulo. Domenico
faz uma pausa e olha para longe. Está pensando.
— Sim e não, — diz ele finalmente. —Sim e não. Com toda a certeza,
percebem o que causa os nossos problemas —a grande mudança. Não creio
que compreendam essa mudança. E acho que a solução deles c uma tolice
social e política e — em termos daquilo que deveria ser a Igreja de Jesus —
uma estupidez perigosa. Mas eles percebem realmente a mudança.
— Que o bom Senhor Jesus, Senhor de todos nós, possa salvar nossa
Igreja! —diz Riccioni enquanto se levanta. Sua curta prece é sincera e arden­
te. Fica de pé por um momento, olhando para o chão. Depois:
— Farei como o senhor sugere. Mas por quanto tempo precisaremos
contemporizar assim?
— 0 tempo que seja necessário para conseguirmos um forte nó de forca.
- O tom sem vida de Domenico dá ênfase ao que quer dizer.
Riccioni lança-lhe um olhar rápido:
— Eu deveria falar com Masaccio? —pergunta a Domenico.
— Não. Já falei com ele pelo telefone. Ele está bem. Compreende. Está
melhor agora do que estava à noite passada. Ele está bem, Eminência! - Do­
menico lança os olhos sobre o relógio. —Em cinco minutos o sino vai tocar
para a missa do Espírito Santo. Começa um dia crucial. - Riccioni compre­
ende que Domenico ainda está lhe perguntando se pode contar com ele, Ric­
cioni, mantido sob controle.
— Domenico! — Riccioni recuperou a calma e um pouco de confiança.
—Vamos embora e vamos dar uma boa conta de nós mesmos.
— Certo, Eminência! — exclama animadamente Domenico. —Certo! —
Dá um sorriso. — Vocês, pescadores venezianos, não têm uma frase mencio­
nando uma alvorada sombria que será seguida por um dia brilhante?
O velho bom humor de Riccioni reaparece:
— Nenhum dia sombrio em Veneza é seguido de brilhante luz do sol. Se
começarmos mal, vamos mal até o fim!
— Vamos embora, Riccioni! Com a bênção de Deus!

São 8:45 da manhã e o sino está tocando para a missa do Espírito Santo, na
Capela da casa. Nesta manhã, o celebrante será o Cameriengo e espera-se de
todos os Cardeais que estejam presentes, a menos que sua saúde o impeça.
Do lado oposto, na outra ala da área do Conclave, o encontro político
dos Cardeais latino-americanos está acabando. Foi realizado no apartamento
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de Teofilo e lá também estiveram presentes Zubaran, Hildebrandt, Ribera,
Gris e o jovem Cardeal gago.
Ao soar do sino dispersam-se rapidamente. Alguns voltam aos próprios
aposentos, a caminho da Capela. Outros vão diretamente para a Capela.
O jovem Cardeal vai para seu quarto, ostensivamente para apanhar o
livro de reza e alguns apontamentos. Automaticamente, segura entre os de­
dos o rubi da cruz que traz no peito, o que parece ser um gesto seu, habitual
e freqüente. Está refletindo. Aquela não é a melhor das manhãs para o car­
deal. He teve um sonho naquela manhã", bem na hora de acordar —ou pelo
menos é o que lhe parece agora. Um daqueles incômodos sonhos repetitivos.
Não consegue se lembrar da seqüência —se é que houve alguma. Tudo que po­
de recordar agora é uma perspectiva distorcida, em que alguma coisa delicada
e bela — uma borboleta, uma mariposa —flutuando numa porção de cores,
pousou em sua mão, ou perto dele, num jeito de intimidade. Tem na memória
uma sensação persistente, de fogo, de asas se amarrotando, de cores se dissol­
vendo. É tudo de que pode se lembrar. Mas é profunda a sensação de perda.
Ele se apressa, em direção á Capela.
Lá dentro, com exceção de Patti e Morris —ambos se sentindo indispos­
tos naquela manhã - todos os Cardeais-Eleitores estão de joelhos. O Camer-
lengo tinha começado a celebrar a missa. Há um ar de tranqüilidade e união
impregnando a Capela. Quando o jovem Cardeal se deixa escorregar para o
banco mais próximo, descobre - que está ao lado de Reynolds, da Oceania.
Uma emoção qualquer, espontânea, não-controlada, mas que não é violenta,
vai crescendo dentro dele. E, durante a missa inteira, fica com ele, como se
fosse a voz de um visitante gentil, pedindo para entrar.
De vez em quando ele faz coro, quando os outros Eleitores recitam as
orações da missa. Cada vez que diz em voz alta algumas daquelas palavras,
sente que o grande marco granítico que o tempo foi para ele até aquela hora
está agora se dissolvendo. A própria Capela abobadada transforma-se como
que num leve papagaio de papel, voando pelo céu na direção do desconhecido.
E todos os seus ocupantes, de alguma forma perturbadora, estão-se tomando,
diante dele, desconhecidos e estranhos. E o santuário, como Camerlengo ce­
lebrando no Altar, é uma cripta cheia de sonhos, queimada pelo fogo das velas
do Altar e das duas tremeluzentes lamparinas vermelhas do santuário, perma­
nentemente acesas, uma de cada lado. Ele segura o rubi da cruz peitoral e se
lembra de novo da recepção na Embaixada, três meses antes, na qual foi feste­
jado e cumprimentado, depois introduzido nos aposentos particulares do Em­
baixador. Lá o haviam presenteado com a cruz peitoral, pesadamente craveja­
da.
— É especial, — dissera o Embaixador. — Mais tarde explicaremos
respeito dela.
E explicaram. Pedaços imprecisos de sua lembrança do sonho daquela
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manhi flutuam-lhe na consciência e misturam-se com uma nova sensação de
pena pelo que foi feito por ele, e pelo que vai ter que fazer.
Somente quando o Camerlengo se vira, ao final da missa, só então o Car­
deal volta completamente a si. São 9:40 da manhã. Ao levantar-se e fazer a
genuflexão, ele envolve num olhar o Altar, os bancos, os afrescos das pare­
des e os Cardeais que o cercam, saindo num passo arrastado. De novo aquela
lensação de estranheza, de não estar mais a vontade. Houve tempo em que
todas aquelas coisas e pessoas costumavam estar próximas dele, intimamen­
te próximas, como um véu de ar sagrado, como a intangível alegria do fogo
santo. Agora ele as vê distantes ou, talvez, seja ele próprio quem está distante.
Vira as costas e, junto com os outros, encaminha-se para a porta principal e
para os ônibus.

A PRIMEIRA SESSÃO

Em seu gabinete provisório, ao lado do Salão Superior, o Camerlengo es­


pera até que o jovem Monsenhor venha buscá-lo. Do lado de fora, a maioria
dos Eleitores conversa, enquanto espera o sino de aviso, anunciando a Primei­
ra Sessão. Há um ar de expectativa e camaradagem. Mas muitos estão trocan­
do pequenas confidências, transmitindo palavras de aviso, avaliando o núme­
ro de Eleitores a favor deste ou daquele ponto, e sondando uns aos outros
sobre tais pontos.
Exatamente às 9:45, soa o sino, dando o sinal, e pequenos grupos de car­
deais já se reuniram do lado de dentro da porta principal.
O jovem Monsenhor está sentado em sua mesa, bem ali do lado de fora,
tomando notas, recebendo mensagens e incumbências, transmitindo recados.
Quando faltam três minutos para as dez, o jovem Monsenhor levanta-se, vai
até o Camerlengo e avisa:
— Só mais dois minutos, Eminência!
— Num momento. — A voz do Camerlengo soa como uma chibatada.
Quando ele aparece, tem o rosto pálido e uma expressão preocupada. —Bom!
Vamos embora!
Dentro de minutos ele está no Conclave. O jovem Monsenhor fecha e
tranca as portas pelo lado de fora. Senta-se à sua mesa, tira o relógio, dá-lhe
corda e o coloca sobre a mesa; apanha seu diário e começa a escrever.

Lá dentro, tudo se desenrola de acordo com a regra e a convenção. Vivamen­


te, o Camerlengo anuncia que a primeira ordem do dia será a eleição dos três
Cardeais que presidirão aquela Primeira Sessão, isto é, os seus Presidentes. Isso,
propõe ele, pode ser feito de maneira simples. Cada um dos três principais
grupos políticos no Conclave indicará um representante. Esses três Cardeais,
237
então, decidirão quanto à identidade dos três Presidentes da Sessão. Uma acla­
mação e votação manual confirmarão ou rejeitarão a escolha deles. Ainda
usando o mesmo método, elegerão depois três Escrutinadores, que contarão
as cédulas, e três Revisores, que conferirão a contagem de votos feita pelos
Escrutinadores. Por último, os Cardeais nomearão três Infirmarii, que condu­
zirão as cédulas a serem preenchidas por qualquer Cardeal que esteja de cama
ou que não possa sair do quarto, durante uma sessão de votação.
Tais eleições não tomam muito tempo, já que todos concordam em co­
meçar o Conclave num ritmo acelerado. Dentro de vinte minutos, Koi-Lo-Po,
da Oceânia, é designado Primeiro-Presidente, auxiliado por Tobey, dos Esta­
dos Unidos, e Lamy, da França, como co-Presidentes.
Os Escrutinadores são Thule, Bronzino e Kiel. Uccello, da Cúria Romana,
Constable, da índia, e Lang-Che-Ning, da Oceânia, tomam-se os Revisores. Os
Infirmarii são Ni Kan, Fransus e Chaega.
Os Escrutinadores, os Revisores e os Infirmarii continuam sentados em
seus lugares. Os Presidentes passam para a Grande Mesa. O Camerlengo aper­
ta a mão de cada um deles. Há alguns aplausos amáveis. Depois ele vai para o
lugar que lhe cabe. Todo mundo se acomoda.
Koi-Lo*Po põe os óculos para leitura, examina a programação diante de
si, tira os óculos e mantém, em voz baixa, uma rápida conversa com seus co-
Presidentes. Depois dirige-se ao Conclave:
— Meus Irmãos Cardeais, Meus Eminentíssimos Senhores Tobey e Lamy
acompanham-me nos agradecimentos a Vossas Eminências, pela confiança em
nós depositada através desta designação. Nos esforçaremos para cumprir nos­
sos deveres da maneira mais eficiente que pudermos. —Ele pára. Tobey está-
lhe passando, por cima da mesa, uma nota datilografada. Koi-Lo-Po põe de
novo os óculos. Leva alguns segundos para ler o que Tobey lhe transmitiu.
Olhando por cima dos óculos, continua se dirigindo aos Cardeais:
— É sugerido pelo Camerlengo —que, estou certo, sondou todas as cor­
rentes de opinião entre vós —que realizemos uma votação preliminar sobre a
condição da Política Geral. - Tobey olha para o Camerlengo, que fechou os
olhos e enterrou a cabeça sobre o peito.
— Sugiro, para adiantar os assuntos —e essa é também a idéia de meus
colegas Presidentes —que façamos uma votação de boca e de mão quanto a
se deveremos passar à votação da Política Geral. —Faz uma pausa. Não há
objeções. — Sendo assim, todos os Reverendos Cardeais a favor de uma pri­
meira votação sobre a condição da Política Geral, por favor, ergam a mão e
manifestem-se claramente dizendo *7íb”.
A mão de Ni Kan é a primeira a levantar-se, seguida pelas de Yiu, de Thu­
le, de Franzus, de Marquez e, depois, por toda uma floresta de mãos; tudo is­
so é acompanhado por um coro de “/ta” em mais de cem diferentes tons e
sotaques. Koi-Lo-Po examina a assembléia, compara anotações com seus co-
Presidentes.
238
»
— Queiram todos aqueles que são contrários a uma primeira votação
dessa matéria manifestar agora sua oposição, levantando a mio e declaran­
do o que pretendem dizendo “Non”, em voz alta. —Três vozes dizem “Aton/”
- Vasari, Pincio e Bronzino. As mãos erguem-se em seguida; depois mais
uns dez outros Cardeais os acompanham, dizendo “Non” e levantando as
mãos.
— É claro, Eminentíssimos Irmãos, que a maioria é a favor de uma vo­
tação. Assim, vamos promovê-la. Vosso voto, para ser válido, deve conter três
elementos: vosso nome; um símbolo ou um versículo das Escrituras que se­
jam um meio de verificar vosso voto sem revelar vosso nome, em caso de qual­
quer dúvida; depois o vosso voto propriamente dito. Primeiro escrevei vosso no­
me; depois dobrai o papel ao longo da linha pontilhada, de modo que vosso
nome fique coberto. Depois escrevei o que escolherdes como símbolo ou o
versículo das Escrituras. Fazei então outra dobra, ao longo da segunda linha
pontilhada e, do lado de fora da cédula, escrevei placet (agrada), se aprovais
a Política Geral e desejais que ela seja a base de nossas discussões. Se desapro­
vais, escrevei as palavras norhplacet (não agrada).
— Os meus co-Presidentes distribuirão agora as cédulas especiais. Sugiro
que os Escrutinadores e os Revisores marquem seus votos o mais depressa pos­
sível e que depois ocupem seus lugares nas mesas laterais. Para tomar as coi­
sas mais rápidas, vou pedir aos três Escrutinadores, aos três Revisores e aos
três Infirmarii que ajudem na distribuição das cédulas. Por favor, queiram
todos os Eleitores esperar até que essa distribuição esteja completa para mar­
carem suas cédulas.
Tobey e Lamy estio já de pé. Koi-Lo*Po entrega a cada um um pacote
com dez votos. Franzus, Ni Kan e Chaega estão ao lado dele, recebendo iguais
pacotes de dez votos.
Depois deles, Thule, Bronzino e Kiel vêm buscar seus pacotes.
Dentro de minutos Lamy está de volta, mas Koi-Lo-Po o faz esperar até
que todos os outros tenham acabado.
— Reverendos Irmãos, quantos ainda não têm cédulas? —pergunta ele.
Oito mãos se levantam. Koi-Lo-Po conta mais oito cédulas. Lamy as distri­
buí. Depois os Revisores, os Escrutinadores e os Infirmarii voltam a seus luga­
res. Koi-Lo-Po faz soar a sineta de prata do Presidente. Os Cardeais começam
a preencher as cédulas.
Tendo preenchido a sua, Koi-Lo-Po levanta os olhos e espera, vigiando
até que, por fim, cada Cardeal-Eleitor parou de escrever e se recostou em seu
trono. Trocou palavras sussurradas com seus co-Presidentes.
— Eminências, uma vez que não estamos votando sobre um candidato a
Papa, mas sobre a questão de uma política, meus co-Presidentes e eu achamos
que seria mais rápido e mais conveniente se alguns de nossos funcionários
239
mais jovens - digamos, Meus Senhores Chaega e Kiel —circulassem e reco­
lhessem as cédulas.
Mas diante disso há uma imediata gritaria. Ninguém quer essa solução.
Oportunidade demais para fraude. Há um coro de “Non!” “Non-placet”
“NonP\ A maioria deseja que cada um coloque sua cédula, publicamente e
sozinho, diante dos olhos de todos, no cálice destinado aos votos. O cálice
está sobre o Altar.
— Então, deixemos isso de lado, Eminentes Irmãos! - Koi-Lo-Po dá de
ombros. —Deixemos isso de lado. Vamos continuar de acordo com as regras.
Os três Escrutinadores tomam lugar ao lado do Altar, sobre o qual está
o cálice. Depois o Camerlengo, como o primeiro dos Cardeais, levanta-se, vai
rapidamente até o altar, faz a genuflexão e jura, em voz alta:
— Juro, por este Altar Sagrado, que escolhi da melhor maneira que Deus
me permitiu ver. - Levanta-se, deixa cair a cédula dentro do cálice e volta a
seu lugar. Pincio e Ferro, como os dois seguintes em antigüidade, já estão es­
perando para fazer o mesmo. Na realidade, o processo desenvolve-se mais
depressa do que a maioria esperava. Todos se concentram, junto com os Es­
crutinadores, em cada mão, na proporção em que se levanta e em que deixa
cair a cédula de cor creme dentro do cálice.
Dentro de vinte minutos a votação está terminada. Começa o escrutínio.
Os três Escrutinadores levam o cálice para a mesa deles. Lá sentados, Thule,
como o primeiro Escrutinador, retira um voto, anota-o numa folha de papel
provida de duas colunas e passa o voto ao segundo Escrutinador, o mais an­
tigo, Bronzino, que faz a mesma coisa e passa o voto a Kiel, que o lê em voz
alta - “Placet”, diz ele, numa voz alta e firme, lendo o primeiro voto. Depois
deixa cair a cédula em outro cálice. Enquanto Thule extrai a cédula seguinte,
Kiel está marcando aquele primeiro placet em sua própria folha de papel. E,
em toda a assembléia de Cardeais, cada um está fazendo a sua própria conta­
gem.
A atmosfera do Conclave muda sensivelmente, na medida em que este
processo continua. Depois de uma rajada de 17 non-placets, seguindo no ras­
tro daquele primeiro placet, houve uma série de 28 placets. Quando o número
desses votos positivos passa dos 25, há uma descontração visível em alguns
rostos. Vasari e Pincio sorriem um para o outro. O Camerlengo começa a ani­
mar-se e volta a ser a pessoa eficiente de sempre.
— Só mais dez, por favor, Deus! Mais dez! E teremos a base de que preci­
samos! —Masaccio murmura quase alto para seus vizinhos. Um terço é 39. Só
dois terços mais um são necessários para a vitória.
Mas aí os non-placet começam de novo. O Camerlengo, düigentemente
marcando a folha de papel em que faz a conferência, vê o número subindo...
54, 55, 56... na coluna dos non-placet. Quando o número chega a 71 e conti­
nua subindo, ele larga calmamente o lápis e se recosta na cadeira. À sua fren­
te, encontra os olhos de Angélico pregados aos dele:
240
— Está tudo acabado para a sua Política Geral, meu amigo, —é a mensa­
gem silenciosa de Angélico.
— Eu sei, meu amigo. Eu sei. Você tinha razão, —diz o silencioso olhar
de resposta do Camerlengo.
Os vinte e poucos minutos que o Escrutínio havia demorado passaram co­
mo se fossem três. Os Escrutinadores comparam as respectivas colunas, vêem
que as mesmas conferem, depois Thule apanha sua folha de conferência,
Bronzino e Kiel a rubricam. Thule caminha até a mesa do Presidente e entrega
o papel a Koi-Lo-Po. Este passa os olhos nas colunas: 82 non-phcets, 35 pla-
cets. A Política Geral está acabada.
— Eminências! O Escrutínio é o seguinte: Ptacet, 35; Non-placet, 82. -
O rosto do Camerlengo está impenetrável. Lohngren olha rapidamente para
ele, depois para Angélico. Angélico está observando cada um dos presentes,
mas não parece nem satisfeito, nem deprimido. Domenico está de braços cru­
zados, os olhos baixos, olhando para a mesa diante de si. No rosto dos Car­
deais mais velhos — Pincio, Vasari, Riccioni e outros —há uma mistura de
consternação e de determinação férrea. Ni Kan está rabiscando. Vê-se Buff
acenando ponderadamente com a cabeça para Franzus. Thule está muito cal­
mo e muito sério.
— Eminências! — continua Koi-Lo-Po, — para ser exatos, deveríamos
pedir aos Revisores para examinarem os resultados dos Escrutinadores. Mas,
considerando ainda uma vez que esta é uma votação sobre temas e não sobre
pessoas, agradaria a Vossas Eminências dispensar a Revisão, e continuarmos
com as nossas atividades? — Há alguns momentos de silêncio. As pessoas
olham umas para as outras. Ninguém tem qualquer objeção. Por um momen­
to, parece que Azande vai dizer alguma coisa, mas Angélico estica o pescoço
e olha-o fixamente.
— Bem, então, Eminências, parece que devemos declarar, como a vonta­
de deste Conclave, que a Política Geral seja recusada. — Ele olha para o Ca­
merlengo e sente uma pena enorme. Porque o Camerlengo está sofrendo, pro­
funda e corajosamente. —Assim, falou o Espírito Santo. —Isso é dito para
consolo daquele homem. A coisa pela qual o Camerlengo trabalhou pelo me­
nos durante três anos desmoronou-se em meia hora. Koi-Lo-Po continua:
— Nesta conjuntura, meus Irmãos, seria impróprio da minha parte fazer
uma sugestão — puramente de minha própria iniciativa e constituindo um
afastamento da agenda? Precisamos de uma orientação agora, a fim de encon­
trarmos um caminho novo —e isso rapidamente. Proponho que solicitemos a
algum Irmão Cardeal que todos nós veneramos que nos diga o que pensa sobre
a matéria. E, desde logo, parece-me que o Meu Senhor Domenico é essa vene­
rável pessoa. — Koi-Lo-Po olha em tomo, examinando os rostos. —Para to­
dos nós! Que acham, Eminências?
Há um murmúrio geral de assentimento, alguns aplausos discretos e gri­
tos de: “Bravo! a Domenico la parola/” (Que fale Domenico.) Koi-Lo-Po pro-
241
cura Domenico com o olhar e balança a cabeça, sorridente. Este sorri, com
indulgência e satisfação, depois começa a levantar-se da cadeira.
- Eminentíssimo Presidente, adorados Colegas! - É a voz do Cardeal
Buff. O anglo-saxão tem no rosto uma expressão amável mas preocupada, que
diz que ele quer ser amistoso, mas que, por favor, não interfiram, porque ele
detesta interferência. —Sou tão perdido de admiração pelo nosso Irmão, Meu
Senhor Cardeal Domenico, quanto qualquer um de nós aqui. —Buff sorri bri­
lhantemente para tudo e para todos. —Eu gostaria —dá ênfase àquele “gosta­
ria" - de salientar, no entanto, que para nosso próprio bem deveríamos pros­
seguir constitucionalmente —sobretudo numa crise desta natureza. —Sua ex­
pressão toma-se paternal e solícita. —Não podemos agir com demasiada pru­
dência.
Nesse momento Thule tem no rosto um ar solene. 0 Camerlengo toma
notas. Franzus está fazendo um sinal a Lynch, para alertá-lo: “O senhor é o
primeiro a falar!”
- Ora, —Buff prossegue num tom rápido, de quem quer liquidar logo o
assunto, —já temos uma lista de oradores, todos registrados devidamente,
legalmente e comme il faut com o Camerlengo, na noite passada, se não estou
enganado. Eles têm, de fato, vós sabeis, prioridade sobre todos nós, mesmo
sobre o nosso muito venerável Senhor Cardeal Domenico. —Ele dirige a Do­
menico o mais untuoso de seus sorrisos. —Vós, —olha de novo para Domeni­
co, —Vossa Eminência será a primeira a concordar. Sim? —Domenico acena
que sim, silenciosamente. Buff olha então para Koi-Lo-Po e senta-se.
Há na assembléia uma sensação de mal-estar. O Presidente já confabulou
com seus dois confrades. Koi-Lo-Po não quer briga com ninguém. Agora não.
- É preciso agradecer ao Meu Senhor Cardeal Buff, —declara Koi-Lo-Po
num tom formal. —O tempo, da mesma forma que a boa ordenação dos tra­
balhos, exige que nos apressemos utilizando os caminhos estabelecidos. Em
conseqüência, convoco Sua Eminência, Meu Reverendíssimo Senhor Cardeal
Lynch!
Lynch levanta-se, caminha calmamente até o Altar, ajoelha-se por um
momento, levanta-se e volta-se para falar. Não há pressa em sua atitude, ape­
nas desembaraço: tem alguma coisa importante para dizer e isso precisa ser
dito agora.
- Veneráveis Irmãos, estou diante de vós, neste momento, para fazer
uma declaração solene. Vou tratar daquilo que, ao que me parece, é o fato
essencial a dominar a nossa escolha de um novo Papa. Rogo que me ouçais
com toda a sabedoria e amor da Igreja de Cristo. Porque, quer percebamos is­
so ou não, hoje, neste Conclave, estaremos decidindo a favor ou contra a vida
da Igreja, tal como a temos sempre conhecido.
- A Igreja como encarnação da salvação de Jesus viverá para sempre, é
claro. Mas estamos ocupados com a Igreja estabelecida. Esse é o nosso “tra­
balho” . — As intonações do Cardeal são suaves, suas palavras límpidas. E,
242
pela sua voz passa aquele encantador sentimento de gentiliza, que o país de­
le gera em seus filhos.
— A declaração é simples: o mundo cristão está morto e passado. Não
apenas o coração da cristandade, no Sul da Europa. Mas o mundo cristão.
Todo o complexo de cultura, pensamento, sentimento, arte, moralidade, cos­
tumes pessoais, decoro público, praxes internacionais — todo esse mundo
cristão já não existe.
— Vivemos hoje num tranqüilo cemitério, e as lápides desse cemitério
registram os ocupantes de cada triste túmulo. —Ninguém, entre os ouvintes
de Lynch, tem qualquer dúvida de que uma intensa tristeza e intenso pesar
o dominem, enquanto pronuncia estas palavras. Há lágrimas em mais de um
par de olhos. Ele teria dito aquelas coisas, mesmo se a votação da Política
Geral tivesse sido diferente. Mas, através de sua votação, tinham eles dito, de
fato, que sabiam que uma era terminara. Precisavam encontrar um novo ca­
minho.
— Lápides, disse eu... A Família. A Pessoa Humana. A Paróquia. A Dio­
cese. A Escola Católica. O Partido Político Católico. O Jornal CatóÜco. Re­
vista. Imprensa. Honra Cavalheiresca. O Poema de Amor. Música Sacra. A
Liturgia Latina. A Voz Dogmática. A Dignidade do Sacerdócio. A Inviolabi­
lidade do Ato Sexual. O Caráter Único da Heterossexualidade... Terei neces­
sidade de continuar citando todos os nomes que figuram nessas lápides si­
lenciosas? Estamos cercados por eles, Eminentes Irmãos. —Faz uma pausa.
— Nós todos os conhecemos. Alguns de nós ainda agem como se eles es­
tivessem vivendo e respirando conosco. Mas no fundo de nossos corações sa­
bemos que estamos vivendo com fantasmas, caminhando junto com as lem­
branças dos mortos. Todo esse mundo cristão está morto. E é melhor que dei­
xemos as lembranças para trás. E... —ele estaca, como se tivesse esquecido
coisas de fundamental importância, —o Privilégio do Sacerdócio Masculino.
O Privilégio de Pedro. O Privilégio do Dinheiro. O Privilégio da Elite. Todos
os Privilégios, meus Eminentíssimos Irmãos, todos eles se foram.
A essa altura, alguns dos Cardeais estão murmurando. Vasari, por sobre
as cabeças dos cardeais que estão junto dele, está dizendo alguma coisa a
Borromini, sentado mais abaixo. Thule gesticula para Franzus. O Camerlengo
é um estudo em languidez. Não pode suportar o jeito hispânico, ainda que nas
melhores circunstâncias.
— Vivit Christus! (Cristo vive!) —exclamava Vasari subitamente de seu lu­
gar.
— Vivit et vivet semper! (Vive e viverá sempre!) —grita Riccioni, arreba­
tadamente, com um vivo olhar de congratulações para Vasari.
O Cardeal-Presidente faz soar a sineta. Lynch sorri, indulgente.
— Na verdade, Cristo está vivo. Cristo viverá sempre. Amém! —Uns qua­
renta cardeais acrescentam a este os seus Améns. Lynch continua, com uma
expressão luminosa no rosto: — Mas estou eu dizendo outra coisa além de
243
reafirmar claramente as conclusões do Documento sobre a Estrutura Geral,
sobre as quais todos ponderamos, perguntando a nós mesmos como é que che­
gamos a tais dificuldades? —Diante disto há alguns resmungos de comentá­
rios, vindos das fileiras. Lynch prossegue imediatamente. —Aqueles que gos­
tariam de objetar —e compreendo suas objeções, podeis crer em mim —estão
apenas com medo.
— Medo, meus Veneráveis Confrades. Apenas puro medo. Mas servimos
a um Senhor que disse: “Não temas! Sou Eu.” Sendo assim, não tenhamos
medo. —Lynch olha calmamente em tomo, sorrindo com suavidade,
— Mas, Irmãos, mais revelador, para nós, do que o medo convarde ou os
malentendidos, é o julgamento que teremos que fazer desse mundo cristão já
morto... - De novo há uma exclamação de “ Vivit Christus/ Ecclesia Christi
vivit/ ” (Cristo está vivo! A Igreja de Cristo está viva!). Lynch levanta a mão,
num pequeno gesto de enfado por ser interrompido.
— Eu disse “o mundo cristão está morto” , não “a religião cristã está
morta”, ou que “a Igreja Cristã está morta” . Vossa própria confusão entre
esse mundo cristão e a Igreja de Cristo pode ser o maior de todos os perigos
que a Igreja enfrenta. Eles não são uma e a mesma coisa, vós sabeis, Venerável
Senhor Vasari. E estou falando do mundo cristão, o mundo criado pelos cris­
tãos. - Agora faz-se silêncio do lado de Vasari.
— E o julgamento que não deveríamos ter medo de proclamar, meus
Eminentíssimos Irmãos, é o de que esse mundo cristão tinha que morrer. Fa­
lhou, em sua missão. Assim, tinha que morrer.
— Os cristãos propuseram-se uma tarefa temporal: criar uma estrutura
sócio-política para todos os homens, na qual as verdades do Evangelho de Je­
sus seriam concretizadas. Esse foi o sonho de Gregorio, o Grande, dos primei­
ros Patriarcas, que falavam de Céu na Terra, de um paraíso terrestre.
— E, depois de mil anos de predomínio, como era o aspecto do mundo?
Que tipo de paraíso terrestre tinham os cristãos produzido?
— Produziram um mundo em que todas as coisas —a política temporal,
a economia, a cultura, o casamento, a família, o trabalho, a pátria —todas as
coisas se supunham sujeitas ao papel sagrado dos clérigos, do Bispo de Roma
e sua burocracia eclesiástica, em Roma e alhures. Sim, tinha uma unidade. A
unidade de um império sagrado. Impunha uma unidade intelectual e uma uni­
dade política, dentro de estruturas intelectuais predeterminadas e de predeter­
minadas estruturas políticas.
— E, muito acerbamente, tomava tudo aquilo que era temporal um ins­
trumento do espiritual: o papel espiritual do sacerdote e Papa, os ensinamen­
tos sobrenaturais dos teólogos, o pensamento orientado dos filósofos. Mais
precisamente, tudo aquilo que era temporal, social e político era usado para
fomentar o espiritual. Meios físicos (guerra, tortura, castigo) e meios psico­
lógicos (exílio, excomunhão, censura e coisas que tais).
— Presumia-se que tudo na Terra deveria servir para o estabelecimento de
uma estrutura social e política dedicada à causa de Cristo.
— E que foi que aconteceu? Que foi que realmente aconteceu, meus Ir­
mãos? Que tipo de mundo foi gerado pelos cristãos?
— Uma sociedade em que a elite dominou e as massas foram mantidas
subjugadas, porque essa sociedade era conivente coin a crueldade, desculpa­
va a escravidão, controlava a pobreza de milhões. Sufocava a iniciativa intelec­
tual.
— Fez dos privilégios eclesiásticos um meio de promover as ambições
pessoais e a fortuna das famílias. Produziu um humanismo - em seu apogeu,
na Renascença - que era antropocêntrico, e egoisticamente antropocêntrico.
Desenvolveu a sociedade capitalista, a sociedade das corporações financeiras,
uma sociedade dedicada ao dinheiro, ao papel, às máquinas, à riqueza, à eco­
nomia, à evolução mecânica, ao significado das massas trabalhadoras, a uma
massificação das finanças, nas mãos manipuladoras de uns poucos privilegia­
dos. O intelectual burguês. O padre burguês, O Papa burguês. A Igreja bur­
guesa. O sistema capitalista burguês. Um sistema, aliás, que devorou a si pró­
prio. Entronizou a razão como a coroa da fé. Depois tomou a razão auto-
suficiente, e o indivíduo a única razão para o viver e para o ser. O mundo
burguês. O mundo cristão.
— Mas, houve ainda um erro a mais, e mais profundo. Encerrou a verda­
de divina num tabernáculo coberto pelo privilégio da infalibilidade. Transfor­
mou o culto divino e a prática religiosa em dizeres de carimbos. Colocou a fe­
licidade lá longe no Céu —como dizem os americanos, “ganharás o Reino do
Céu, depois de morreres” . Declarou proscritos e exilados da Cidade de Deus
quaisquer outros tipos de pensamento e atividade religiosos.
— Mas, como muitos predisseram através dos séculos, a Cidade do Ho­
mem rebelou-se. E, como muitos nunca foram capazes de prever, a Cidade de
Deus, a Cidade de Deus sócio-política, criada pelos cristãos, desintegrou-se. As
classes trabalhadoras afastaram-se e rejeitaram essa Cidade de Deus, nos sécu­
los XIX e XX. E os intelectuais libertaram-se de suas correntes de ferro, des­
troçando o domínio mental que o mundo cristão tivera até então sobre eles.
Houve gigantes nessas épocas, para falar, neste ponto, como as Escrituras.
Darwin, Freud, Hegel, Comte, Marx. E eles declararam guerra ao cavalheiro
burguês, ao Deus burguês e sua Igreja burguesa, e à salvação burguesa dessa
Igreja burguesa.
— E agora, a nossa volta, nas ruínas desse mundo cristão, vemos massas
se levantando numa guerra de desespero, decididas a dar à luz um humanismo
completamente novo, o humanismo do homem coletivo, não mais escravo,
mas senhor de todas as máquinas.
— E assim a morte do mundo cristão, meus Irmãos!
— Só pode haver duas reações a essa morte, Uma, que sem dúvida será
defendida por Meu Senhor Cardeal Riccioni e aqueles que pensam como ele.
245
A reacionária, que diz: vamos voltar a nossas puras origens, à fé primitiva.
Vamos corrigir os desvios; vamos reforçar nossas fileiras, pôr para fora os
transviados.
— Mas —posso perguntar-vos —onde é que em semelhante reação está a
confiança na graça de Cristo? Estamos tão destruídos pelo pecado, tão domi­
nados pelo pessimismo calvinista, somos tão ineptos a ponto de só podermos
voltar para trás? Correr de volta ao abrigo de muros quebrados e de tones des­
moronadas? Morar no cemitério de todos os nossos ontens?
— Não! Confio em Cristo mais do que isso. Todos vós, Veneráveis Ir­
mãos, confiais em Cristo mais do que isso!
Agora há uns poucos ‘7/üs” dirigidos a Lynch. Alguns cardeais estão im­
pressionados pela força branda daquele homem profundo e por suas inten­
ções, obviamente boas.
— E, tão exatamente importante quanto isso tudo, confio nos homens e
nas mulheres mais do que isso. Confio em que são bons, em que desejam, em
todas as coisas, o melhor para todos os outros, em que buscam a verdade,
em que estão prontos a cooperar para o bem e em nome da verdade. Confio
em meus semelhantes. E, citando Tertuliano, sou humano. Nada que é huma­
no me é estranho. —Ante essa afirmação há algumas palmas.
— A vós pergunto, que tipo de religiosos seríamos nós, se tivéssemos que
esconder a verdade debaixo das pedras sem vida de nossa destroçada Cidade
de Deus —a Cidade que nós construímos, o mundo cristão que está morto e
acabado? Se empurrarmos para longe as mãos que estão estendidas, dispostas
à cooperação?
— Mas se não adotamos as reações e atitudes de Meu Senhor Riccioni,
temos somente uma, repito, uma alternativa: a progressista. Não podemos fi­
car imóveis. Não podemos esperar, demorar e procrastinar. Não podemos
adotar uma política de mudança lenta, de adaptação gradual.
— É uma ilusão pensar que temos uma opção de mudança lenta. Com to­
do o respeito devido aos Meus Senhores Masaccio e Ferro e seu seguidores, é
relativamente fácil —não fácil demais, realmente! —mas é relativamente mais
fácil para eles aconselhar uma lenta progressão. Mas isso, no vasto mundo da
América Latina e da África e —sim! —na adorada Europa deles, na Itália e na
própria Roma, esse é um conselho de aceitação, de modo algum de mudança
lenta, mas de morte lenta por hemorragia.
— E, neste propósito, aqueles que chamam a si mesmos de radicais —
Meus Senhores Angélico, Lohngren, Wilz, Yiu e Domenico e todos eles —a
vós faço um apelo: vós e nós estamos quase nos tocando uns nos outros. Não
podemos nós juntar as mãos num esforço comum? —Ele sorri para Angélico,
depois para Lohngren, os braços abertos, os olhos dizendo volumes em apelo,
em suavidade, em paciência.
Angélico, em resposta, olha-o impassivelmente e esboça um sorriso páli­
do. Lohngren não levanta os olhos. Domenico está sentado com os braços do-
246
brados contra o peito, como que se protegendo de um assalto da bondade do
orador.
— Hoje, neste momento, nesta Assembléia sagrada, há junto a nós alguns
cujos rostos não podemos ver, cujas palavras não podemos ouvir, cujos olhos
não podemos ler. Não obstante, essas presenças estão conosco. São aqueles
que vieram antes de nós, aos quais foi oferecida uma oportunidade para cor­
reção dos antigos eiros e que deixaram de aproveitar essa oportunidade.
— Não longe do lugar em que me encontro, o Papa Leão III esteve junto
de Carlos Magno, no ano 800 da Era Cristã, no Dia de Natal, e decidiu que o
Espírito de Cristo precisava de uma espada fora da bainha. Recusou-se a de­
pender apenas de Cristo e escolheu confiar na espada dos homens. E, vós o
sabeis, Jesus disse: “Aqueles que viverem pela espada, morrerão pela espada.”
E o mundo de Leão III, o mundo que ele tomou possível pela espada do Im­
perador, pereceu. Não pereceu?
— E a menos de 350 metros de onde estamos, na Torre de Santo Angelo,
o Papa Clemente VII teve uma opção: renunciar a todo poder temporal, voltar
à simplicidade do Evangelho, cuidar da massa do povo. Recusou.
— No Palácio Apostólico, de onde acabamos de vir, na Capela Sistina,
onde há séculos, antes do dia de hoje, os Conclaves foram realizados, Pio VII
e Pio IX caminharam, falaram, planejaram. Um ou outro poderia ter entendi­
do a voz da História, Um ou outro poderia ter sido sensível às vozes de mi­
lhões. Mas, que a vergonha nos cubra, a todos nós, ambos lutaram para se
aferrar à velha idéia do mundo cristão —mesmo quando esse mundo jazia em
ruínas em volta deles.
— Uma vez mais, meus Irmãos! Uma vez mais, o Bom Senhor, o doce
Senhor Jesus nos oferece a mesma oportunidade! Quão paciente e todo-po-
deroso” é o Senhor a que servimos, Eminentes Irmãos! Uma vez mais dispo­
mos de uma poderosa oportunidade. As vozes clamam a nós, a Humanidade
nos faz um apelo. Teremos nós ainda desta vez —talvez a última —que recu­
sar nos unirmos a todos os homens e procurar esse bem comum que foi, cer­
tamente, o propósito de todos os labores de Cristo e a meta de sua Igreja
como serva do gênero humano, e que é a meta de seu Papa, o Vigário de
Cristo, o sucessor de Pedro, como servo dos servos de Deus e do gênero hu­
mano?
— Que ninguém aqui alimente dúvida alguma. Neste Conclave, nós esta­
mos decidindo sobre a vida ou a morte da instituição da Igreja de Jesus.
— Deixo a meus Irmãos que falarão depois a ulterior elaboração sobre
aquilo que deveria ser a vida da Igreja e sobre o tipo de Igreja que ela deveria
vir a ser, desde que nós —como aqueles através de quem o Santo Espírito de
Jesus canaliza suas intenções e sua graça para todos os homens —desde que
nós tenhamos escolhido um sucessor de Pedro, e a ele tenhamos proporcio­
nado a soma total de nossas opiniões e de nossas esperanças.
247
- Eu vos agradeço, meus Eminentes Irmãos. Que Deus nos abençoe a
todos, nestes dias tão vitalmente importantes!
Quando Lynch se encaminha para seu lugar, há um leve murmúrio de
conversa. Mas a voz de Koi-Lo-Po interpõe-se, benigna e insistentemente ofi­
cial :
- Meu Eminentíssimo Senhor, Cardeal Pericle Vasari!
Quando Vasari fala, suas palavras “ressumam simpatia e fé:
- Meus Veneráveis Irmãos, se agirmos de forma a destruir esta Roma,
esta antiquíssima chancelaria papal, esta grandeza, não estaremos desfazendo
a própria criação de Deus? Não estaremos eliminando uma manifestação da
presença de Cristo que todos sentem, de um modo ou de outro, e que cons­
titui exatamente um dos sinais da divindade da Igreja? Pensai bem, antes de
aceitardes qualquer opinião em contrário. —Vasari faz uma pausa, e fita os
cardeais com um olhar meditativo; quando volta a falar, a voz treme-lhe de
emoção:
- Em Roma, contamos com uma presença constante —não uma simples
lembrança de uma presença que já passou. Contamos com uma força residen­
te - não uma mera esperança de força, ou uma lembrada promessa de tal for­
ça. Os estranhos sentem a presença e a força. Debaixo dos zimbórios encapu-
zados de nossas basílicas, perpassando através das velhas ruínas e dos desgas­
tados monumentos de nossa Roma, lá no alto dos crucifixos sobre os altares
assentados nos pilares, ecoando nas notas triunfais da trombeta de uma Mis­
sa Solene rezada em São Pedro, em tomo do vulto do Papa, vestido de bran­
co, existe, os estranhos a sentem —e estão certos em seu instinto —uma for­
ma qualquer de dinâmica presença, de força velada. Mas não há maneira pela
qual possam eles compreender a substância dessa presença - nenhuma manei­
ra, senão através da fé. Essa é uma possessão católica intra-romana - é nossa.
Nós, católicos!
Ele se volta e olha para o teto, buscando inspiração. Sua voz perde o tre­
mor e ressoa com um forte tom de confiança:
- E essa presença, meus Irmãos, essa presença é Jesus... —faz um gesto
para o alto, como se fosse para o Céu. —Não Jesus simplesmente como aque­
le que —no dizer de um escritor moderno —permitiu, em sua própria pessoa,
que o homem ocidental tivesse o único exemplo inteiramente convincente que
jamais teve do amor ativo da bondade, como princípio inspirador de to­
das as ações humanas —embora isso, Eminentes Irmãos, Jesus certamente te­
nha feito para toda a Humanidade.
- Mas, limitados a essa perspectiva, Jesus e suas ações são tidos como
irremediavelmente passados. Apenas como mais um modelo histórico.
- A presença de Jesus permeando nossa Roma está em todos os hojes
e estará em todos os amanhãs, da mesma forma que esteve em todos os on-
tens romanos. - Seus olhos vagueiam, quando ele os levanta para mirar por
sobre as cabeças dos Cardeais. —Não, Veneráveis Irmãos! Pensai bem, antes
248
de vos pordes em ação para fazer desaparecer o santuário dessa presença!
— E agora, alguns dentre nós querem fazer desaparecer a casa em que es­
sa presença existe! Pensai bem! - Olha em volta, suplicante: - Pensai bem,
meus Veneráveis Irmãos! Pensai bem antes de vos pordes em ação para fa­
zer desaparecer o santuário dessa presença! —Ele passa uma das mãos por ci­
ma dos olhos e fica silencioso por um momento. Depois anima-se:
— E já haveis reparado? Há um sentimento crescente, entre não-católi-
cos, de que o Papa e seu Vaticano e tudo aquilo que ele significa representam
alguma coisa fundamental para a Cristandade, de uma forma não igualada por
nenhum outro líder cristão. Haveis reparado? Quando o Papa Paulo VI viajou
pelos cinco continentes naquele avião todo branco, mais de um não-católico
observou, enquanto o via voando através dos céus: “lá vai o principal repre­
sentante de Jesus na Terra, muito embora eu não concorde com a sua prega­
ção, nem seja adepto de sua Igreja.” Existem, simplesmente, um carinho e
uma compreensão crescentes daquilo que o Papado significa. 0 que acontece
na Igreja e à Igreja agora tem importância para um grande número de não-ca-
tólicos e de não-cristãos. Com toda a certeza não ireis destruir a casa dessa
presença!
— É claro, algumas das asserções romanas podem deixar indiferentes os
que estão de fora, - agora o tom é objetivo e tem uma beíradinha de semitrí-
unfo, — mas aquilo que encaram como o próprio absurdo de nossas afirma­
ções desperta alguma coisa em sua memória, o som de algum sonho impossí­
vel, que girâ em tomo de uma idéia fantástica: não que haja apenas um presi­
dente de conselho, um vice-rei de algum monarca ausente, ou o emissário de
um deus distante. Mas que há alguém cuja pessoa eclesial assegura a presença
do grande mistério de Deus e de Jesus —em suma, o homem que é o represen­
tante pessoal de Jesus, do único líder religioso na história da Humanidade que
afirmou que era Deus e cujos seguidores afirmam que está vivo e representado
em pessoa aqui, hoje, em Roma.
— Posso ver o Meu Senhor Lynch e o Meu Senhor Buff com um ar supe­
rior - tal como vi muitos estranhos com esse ar superior. —Isso é dito em
tom de pilhéria e numa voz suavemente repreensiva. Ninguém pode ficar ofen­
dido. Buff remexe-se na cadeira e tosse. Thule levanta os olhos para o céu, nu­
ma atitude de protesto, depois respira engolindo o ar.
— Mas é verdade. A simples proposição de um sonho desses desperta al­
guma emoção, alguma paixão primitiva, que não está inteiramente restrita aos
limites impostos pelo pensamento ou pela razão. Ao primeiro impacto de tal
paixão, e antes que os estranhos consigam se dominar, sentem que, perto de­
les, uma janela se abriu para uma beleza sempre almejada, mas jamais vista por
olhos mortais; e que estão prontos a ouvir uma sabedoria muito além do cére­
bro e da mente do homem. A sabedoria da paz e do êxtase final, ecoando
mansamente, em tons de inefável autoridade e com aquele irresistível carinho
que os homens sempre sonharam pertencer a Deus e ao triunfo incomparável
249
de Deus sobre o tempo, sobre a morte e sobre a dor e sobre todas as coisas
finitas.
Ele se volta para os Presidentes:
— Agradeço a vós, Meus Senhores Cardeais, pela indulgência de vosso
tempo, e agradeço a todos vós, meus Colegas. Vós me perdoareis se eu disser
que é com tristeza que reconheço que a proposição do Meu Senhor Lynch es­
vaziaria esta Roma, esta casa sagrada, da presença de Jesus. E, nos dicursos
seguintes, ouvireis um conceito do Papado que é, na realidade, uma faca afia­
da encostada na veia jugular da Cristandade, tal como Pedro a viu, como Pio
XII a viu, como o adorado João XXIII a viu.
— Que não nos seja permitido falhar na caridade que devemos a nossos
Colegas. Mas que não sejamos também enganados pelo neo-intelectualismo
que mascara tudo aquilo que muitos Cardeais-Eleitores de mentalidade pro­
gressista propõem. Porque, nessas palavras e nesses conceitos, não está a pa­
lavra de nosso Senhor Jesus.
Com esse golpe de punho fechado desferido firme e calmamente no quei­
xo de Lynch e no queixo de Thule, Vasari inclina-se, sorri animadamente pa­
ra todos e volta a seu lugar. Há alguns segundos de palmas e uns poucos gri­
tos de “Bravo!’*.

Koi-Lo-Po espera um pouco, até que tudo se acalme, depois limpa a garganta:
— Meu Reverendíssimo Senhor Buff!
Buff usa seu tempo para a costumeira prece diante do altar e quando se
vira para enfrentar os Cardeais tem, talvez, a expressão um pouco tensa, mas
aparentemente confiante. Como todos os anglo-saxões falando em público,
dá a primeira impressão de quem recita uma lição. Mas, na proporção em
que se anima com o assunto, toma-se mais descontraído.
— Há um ponto na vida de uma instituição, como na de um indivíduo,
em que seu passado representa tanta coisa —e tanta coisa penosa —que nada
será capaz de acalmar a dor profunda, nada amenizará aquele tédio terrível e
destrutivo que vem deste “sendo demasiado por si mesmo”, como Goethe cer­
ta vez observou, nada poderá dar alívio, a não ser um rompimento total com
aquilo tudo em que se tomou. —Buff faz uma pausa e olha em tomo, para ge­
rar um silêncio especial para o que se seguirá. Depois: —Para Roma, esse mo­
mento está aqui agora. — Há algumas palmas. —Na verdade, muitos diriam
que já está aqui há bastante tempo.
Mais aplausos. Mas agora alguns cardeais estão fazendo comentários em
voz alta:
— Não precisamos que nos digam tudo isso.
— Soluções, por favor.
— Soluções!
— Nada de críticas, por favor!
250
Buff mantém-se calmo, experimentando o ambiente, enquanto passa os
olhos em tomo.
— Digo novamente, agora é a hora da mptura total! Admitir isto é ad­
mitir a verdade. É enfrentar um fato cru. Esta burocracia que é o Vaticano.
Esta pompa que é o Papado. Mesmo esta augusta assembléia —nós, todos nós
aqui —estamos aqui não como servos de Deus, não como humildes imitadores
de Jesus lavando os pés dos mais despojados discípulos, mas como grandes
hierarcas, Príncipes, se podeis fazer o favor, Príncipes de uma Igreja dita a
Igreja do Carpinteiro de Nazaré e da vítima sangrante do Calvário, os mais
desprezados e condenados dentre os homens!
As objeções agora estão vindo de todos os lados, sufocando os aplausos,
os “I t a s Riccioni levanta-se de um salto:
— Este antigo e venerável Colégio de Cardeais tem sido objeto de respei­
to e genuína reverência da parte de nossos piores inimigos, mesmo...
--Nossos piores inimigos, ein? —Buff corta a palavra de Riccioni antes
que ele possa terminar a sentença. Riccioni não está acostumado a ser inter­
rompido, mas antes que possa retomar a iniciativa Buff continua: —Lembro-
me de ter lido numa biografia de John Milton, o poeta britânico, que durante
sua estada em Roma ele costumava assistir às produções teatrais do Papa Bar-
berini, no Palácio Barberini —como faziam todos os romanos e todos os Car­
deais, em seus trajes luxuosos e com seus séquitos e criados e agregados. E foi
a visão de todos aqueles Cardeais católicos —seus gloriosos mantos escarlates,
seus arminhos, seu orgulho, sua arrogância, seus olhares desdenhosos, seu
comportamento, como uma casta de gente acima de todos os outros mortais,
todo o conjunto de suas presenças, tudo isso deu a Milton a inspiração para
aquela parte de seu poema Paraíso Perdido, na qual ele descreve o encontro
do Pandemônio —o Conclave de todos os Demônios e Diabos e Falsos Deu­
ses. Vós vos lembrais? Lembrais, Meu Senhor Tobey?
Tobey está encantado. Levanta-se pela metade e sacode vigorosamente
a cabeça, como para reforçar tudo aquilo que Milton insinuou sobre os Car­
deais romanos e seu Conclave. Ele concorda inteiramente com todas as coi­
sas que o Cardeal está dizendo —mas por motivos muito diferentes dos do
Cardeal.
— Como, em nome do doce Jesus, —Buff está agora quase suplicante, —
como foi que chegamos a este ponto de aparente impiedade? Temos que per­
guntar como?!
— Desejo, Eminentíssimo Presidente e meus Reverendos Colegas, —Va-
sari levanta*se calmamente, mas rápido, o ros^o tenso com o que alguns re­
conhecem como ira, outros como constrangimento, —desejo protestar com
a voz tão firme e caridosa quanto me seja possível, contra o insulto que está
sendo lançado sobre o venerável e sagrado ofício de cardeal. Não porque eu,
uma pessoa sem merecimento, tenha sido escolhido por Deus para esse ofício.
Mas porque, de modo algum, isso ajuda nossas deliberações. Eu protesto, Meu
251
Senhor Cardeal. — Ele se senta, encarando firmemente Buff, que continua,
quase sem fazer uma pausa, ou mudar de tom. Mas Vasari é poderoso demais
para ser ignorado e as palavras de Buff mostram isso:
— Nem desejo eu lançar nenhum insulto sobre qualquer pessoa viva, ou
sobre este sagrado ofício. Eu, também, sou indigno dele. - Ele fixa o olhar
zangado de Vasari. — O ponto que estou salientando, ou tentando salientar,
o mais claramente que me é possível, é simplesmente este: a mentalidade de
nossos confrades não-católicos tem sido condicionada por aquilo que os Car­
deais têm sido ou pelo que os Cardeais têm feito —não pelo que os Cardeais
pensaram e pensam sobre si próprios e seu sagrado ofício. —Aplausos e Obje-
ções ameaçam sufocar inteiramente Buff.
— Dignai-vos ouvir-me, Reverendos Colegas! Dignai-vos ouvir-me! Por­
que nunca decidiremos adequadamente como abordar nossos irmãos afastados
de nós, a menos que nós nos lembremos de coisas que eles lembram...
— Eles não se lembram do Cardeal Mindzenty, do Cardeal Stephinac, do
Cardeal Slipyi? Por que é que dizeis que se lembram apenas dos maus e não
dos bons? —É Vasari de novo, a cólera e o aborrecimento agora indisfarçados.
— É claro. Mas é assim com os seres humanos. Um dos melhores e mais
famosos poetas e um homem verdadeiramente sábio disse isso melhor do que
eu jamais poderia dizê-lo: “O mal que os homens fazem continua vivo depois
deles.” E assim também é com a idéia que se faz de um Cardeal romano.
Vasari, ainda de pé, interrompe de novo, mas Riccioni domina ambos,
quando se levanta em explosiva impaciência:
— Acho, Meu Senhor Cardeal Buff, que vós sofreis de estranha fantasia
de que todos os não-católicos passam o tempo inteiro regozijando*se com os
nossos passados erros. Não poderia Vossa Eminência falar sobre o que nossos
confrades protestantes sabem, em vez de ser sobre aquilo que Vossa Eminên­
cia sabe tão bem?
— Sim, Eminentíssimo Cardeal! Posso, na verdade. —Buff atira-se pela
abertura que, inadvertidamente, Riccioni lhe proporcionou. —Os irmãos de
nós afastados sabem a respeito do Cardeal Richelieu —de sua política cruel,
sua indiferença pelo sofrimento humano. Sabem sobre o Cardeal Cesar Borgia
— o incesto, o assassinato do favorito do pai no próprio colo desse pai. Sa­
bem sobre o Cardeal Robert, de Genebra, famoso lanceiro por direito de nas­
cença, massacrando toda a cidade de Cesena —seis mil homens, mulheres e
crianças —à testa de sua brigada de lanceiros bretões.
— Certamente, - continua Buff, —muitos Papas ocuparam-se com o tra­
balho do Senhor. Mas outros — aqueles que o mundo recorda —conduziram
exércitos, comandaram armadas, empenharam-se em batalhas, acumularam
fortunas para suas famílias, usaram o poder do posto para arranjar casamentos
para as sobrinhas e construir as carreiras dos sobrinhos. Morreram em odor
de santidade. E morreram como ímpios. Em outras palavras, meus Veneráveis
Irmãos, este santo ofício de Vigário de Jesus e esta sagrada ordem de cardeais
252
burocratas e de clérigos têm merecido fundadas censuras. Nem o ocupante
do trono de Pedro, nem os meus Senhores Cardeais —a cujo grupo pertenço e
sinto orguiho em pertencer —podem encarar o mundo, em particular nossos
apartados irmãos, como se não tivéssemos uma herança de culpa.
— Nós escandalizamos todos eles. Perseguimos muitos. Conspiramos con­
tra suas vidas e suas liberdades políticas. Massacramos suas populações. Fo­
mos supervisores de suas torturas. Pilhamos-lhes os países e as cidades. Casti­
gamos como qualquer ditador diabólico, ou como qualquer romano pagão.
E é isso que quero salientar —não pelos fatos em si, mas como uma explica­
ção para aquilo que os nossos irmãos não-católicos pensam de nós, e —isto é
crucial - como um condicionador de nosso comportamento, ao nos voltar­
mos para eles e sinceramente buscarmos união com eles, em Jesus Cristo.
— Vossa Eminência quereria que nós pedíssemos desculpas, suponho! —
Riccioni prossegue no duelo.
— Sim, quereria! Nós somos devedores de uma desculpa. Não uma expli­
cação, mas uma dolorida expressão de nosso pesai...
— Membros da Igreja, —interrompe Riccioni, —certamente têm sido cul­
pados. Todos nós lamentamos esse...
— Sim. Lamentamos também quanto a alguns de nossos Papas. Os irmãos
afastados de nós não podem, realmente, nos aceitar, a menos que reconheça­
mos o quanto muitos de nossos Papas estiveram longe do comportamento de
representantes de Jesus...
Riccioni, Vasari e uma dúzia de Cardeais se levantam, todos protestando.
E é possível compreender as palavras de aiguns deles, na confusão de vozes.
A essa altura, o Presidente intervém:
— Meus Senhores Cardeais! Não há um de nós que não lamente os erros
passados. Agora, se Vossas Eminências permitirem que o Eminentíssimo Car­
deal continue, Sua Eminência passará ao tópico seguinte.
— Agradeço-vos, Meu Senhor Cardeal-Presidente. A coisa de que preci­
samos nos lembrar é que, se estivermos desmoralizados, se os homens não
aceitarem nossa mensagem, se nos suspeitarem de deslealdade, se nos conside­
rarem instrumentos do mal, se se recusarem a aceitar nossa afirmação de que
somos os colaboradores do Vigário de Jesus, o sucessor de Pedro, se menos­
prezarem nosso Conclave e a mudança de Papa feita através dele —seja o Papa
quem for —sabemos que têm boas razões para se mostrarem temerosos, sus­
peitosos e mesmo depreciativos.
— E quanto aos Papas e Cardeais que foram santos e mártires? Por que é
que não os mencionais? —Vasari põe-se de pé outra vez.
— É certo que houve santos entre eles. E mártires. Mas houve também os
depravados, os homens cruéis, os homens avarentos. Alguns orientaram suas
ações pela astrologia. Alguns compraram sua entrada no Papado. Outros mata­
ram por isso.
Bronzino levanta-se para uma questão de ordem:
253
— Gostaria de lembrar a Sua Eminência que os Borgias já não estão entre
nós. Qual é o assunto prático que Sua Eminência está discutindo?
— Um assunto tão prático, meu querido Irmão, que o Papa Paulo VI, nas
novas regras que baixou em 1976, teve que incluir uma disposição estabele­
cendo que, ainda que alguém conseguisse comprar sua ascensão a Papa, teria
que ser aceito como Papa —desde que a eleição fosse válida. Pensai naquilo
que teria levado um Papa, no fim do século XX, a estabelecer semelhante
regra! Pensai, Venerável Irmão!
O Cardeal Walker faz um sinal ao Presidente e levanta-se para falar:
— Eminências, receando que alguém aqui não tenha uma percepção
equilibrada da situação, quero lembrar a todos que aqueles de quem, no pas­
sado, somos opositores foram, muitos deles, pessoas de vida infame. O pró­
prio Lutero vivia em deboche. Mesmo no último trabalho que publicou, re­
velou uma mente nojenta.
— Oh, sim, eu sei. Sei que Martinho Lutero era um libertino, —Buff in­
terrompe, —e li o seu último panfleto. A linguagem é absolutamente vergo­
nhosa, e a mente que revelou é a de um homem muito lúbrico, vulgar, preo­
cupado com o ânus e a genitália, um homem cujas próprias funções corpó­
reas parecem dominar as idéias fundamentais que tem sobre Deus, sobre o
ser humano, sobre a conduta moral. Rezo por Lutero todos os dias da minha
vida, porque, embora tenha agido errado, acho que desde o princípio ele foi
um indivíduo muito doente, muito doente...
— E desejais falar desse apóstata sifüítico ao mesmo tempo em que citais
os Papas e Cardeais da Santa Igreja Romana? —Walker faz a pergunta desde­
nhosamente calmo.
Buff olha para Walker, contrai os lábios e diz friamente:
— E do único homem, em toda a história da palavra escrita, a quem foi
dedicado pelo autor um livro sobre a sífilis, porque, como o autor escreveu
no livro, esse homem exibiu, em sua augusta pessoa, a esperança de cura da
terrível doença. Essa pessoa era um Cardeal da Santa Igreja Católica Apostó­
lica Romana. O meu Eminente Irmão sabia disso?
Domenico ficou de pé agora:
— Quererá, por favor, Sua Eminência nos dizer por que razão nos esco­
lheu, nós Cardeais, para este insulto? —Senta-se: uma censura de Domenico
é uma nota má. Buff modera-se:
— Meus Irmãos, por favor, compreendei-me. Se pareço vos censurar —e
a mim próprio. Se pareço lançar feias calúnias sobre nossa classe e nosso sa­
grado ofício de cardeal. Não é por desprezo. Apenas o empenho de que nos
vejamos como muitos, muitíssimos de nossos adversários e, igualmente,
muitíssimos homens e mulheres de boa vontade, ao contrário desses atraídos
pela Igreja, nos vêem.
Agora há uma calma atenção entre os Cardeais. Buff insiste em seus argu­
mentos:
254
— Quantos de nós vêem a nós próprios, vêem todo o Papado e o Vatica­
no como esses homens e mulheres nos vêem? Pensai por um momento num
devoto crente anglicano, na Catedral de Durham, um batista cheio de entu­
siasmo, cantando em sua capela em Atlanta, na Geórgia, um piedoso luterano
em Stuttgart, na Alemanha. Crede-me, meus Veneráveis Irmãos, crede-me
inundado de amor e fidelidade, quando vos digo que, em seus lábios, achareis
as palavras que seus ancestrais bradaram contra Roma. Vós recordais as pala­
vras de Hütten ao exército de mercenários alemães, às tropas imperiais espa­
nholas e aos servos rebelados do Papado Italiano, quando todos eles sitiavam
a Roma de Clemente VII, em 1527: “Levantai-vos! Reclamai os direitos do
Império Alemão. Acabai com o poder temporal dos sacerdotes!”
— E quando saquearam Roma e entraram no Castelo de Santo Angelo,
onde Clemente e seus Cardeais se haviam refugiado, que foi que encontraram?
Encontraram os Cardeais e Clemente chorando pela perda de sua riqueza e de
seu poder! Foi o Bispo Staflleo quem deu a verdadeira razão para o saque e
a destruição de Roma e para os sacrilégios lá cometidos pelos espanhóis e pe­
los alemães. Perante a Rota Romana, novamente reunida, ele declarou, em
3 de maio de 1528... — Buff está lendo em suas notas: — “Que foi que des­
truiu Roma? Foi o fato de que toda a came se tomou corrupta. Foi porque
não somos cidadãos da Cidade Santa de Roma, mas da Babilônia, a cidade da
corrupção, cheia de sodomia, de tráfico de coisas sagradas, de idolatria, de
hipocrisia, de orgulho, de fraude.” Meus Irmãos, o atual Cardeal-Prefeito des­
sa Rota Sagrada poderá dar testemunho da exatidão dessas declarações. E a
questão, meus Colegas, é que temos um passado que, até certo ponto, deveria
determinar o julgamento que hoje fazemos dos irmãos que estão afastados
de nós. NSo é esta uma opinião justa e moderada?
— Não há sentido em permitir-se que a Igreja seja diminuída em sua for­
ça por causa do indivíduo e dos erros individuais. Nossa fé exige todos os sa­
crifícios em nome da boa reputação da Igreja! —Vasari está zangado.
— Às vezes, ouvindo observações dessa espécie, —diz Buff pacientemen­
te, - vem-me à lembrança aquilo que Savonarola disse sobre a Igreja Católica
de seu tempo: “Se a Igreja Romana tivesse que perder 10.000 ducados de suas
receitas, as excomunhões seriam violentamente proferidas, espadas seriam de-
lembainhadas e todos os cristãos seriam conclamados a ajudar. Se 100.000 al­
mas se perderem, o Supremo Pastor ouvirá apenas os conselhos daqueles que
pretendem destruir o Catolicismo.” Mas queimaram Savonarola. Sendo assim,
desistirei de citar mais alguma coisa do chamejante sacerdote. —Buff sorri e
há alguns aplausos esparsos.
— Ora vamos, Irmão, vosso propósito não é nos fazer rir de nós mesmos
— embora engraçado e tudo mais isso possa ser. —É Thule, agora tentando
ajudar o orador a voltar aos trilhos e expor seu ponto fundamental.
— Não, meu Venerável Irmão! Mas isso me capacita a chegar à conclusão
que é a atitude geral que, acredito, deveríamos ter nesta questão do ecumenis-
255
mo. Não podemos nos enganar a respeito: os mais altos escalões e os círculos
privados de nossa burocracia romana revestem-se, num traço característico,
de um certo mistério, que os cobre com uma mortalha de pavor.
— Para a mente leiga, como para muitas mentes eclesiásticas, há alguma
coisa assustadora em relação a um grupo de homens como nós: todos celibatá­
rios; obedientes como um só homem a vozes invisíveis; homens de dignidade
inviolável, mesmo quando outros nos consideram ridículos; coordenados em
reverência grupai; equipados como que para um culto sacrossanto; movidos
por interesses tão amplos quanto o é o nosso mundo e tão diversos quanto os
negócios em moeda estrangeira envolvendo rublos, dólares, ienes, ou o tama­
nho da hóstia da comunhão a ser usada em Ruanda, ou o valor da garantia
que pode ser levantada sobre um edifícío do conjunto Watergate; versados em
frio racionalismo, contudo exercendo, inegavelmente, aquilo que outros con­
sideram um domínio irracional sobre os corações e as vidas de milhões, falan­
do em sentido literal.
— De vez em quando aparecemos em público recobertos de arminho e
carmesim e das vestimentas douradas das cerimônias cumpridas gravemente,
de acordo com regras milenares e sob o disfarce das imponentes e elevadas do­
bras do Canto Gregoriano. No entanto, durante o tempo todo somos protegi­
dos da curiosidade dos olhos importunos dos estranhos pela rigorosíssima re­
gra do segredo — uma regra reforçada em nossas fileiras pelas mais terríveis
penalidades espirituais, e fora delas por possibilidades punitivas a que nenhum
homem, em juízo perfeito, quererá se arriscar.
— Dizei-me, agora, a simplicidade de Jesus chegou a isto? A nós, que nos
declaramos seus representantes? Não há dúvida a respeito, meus Veneráveis Ir­
mãos. Recuai o pensamento — cada um de vós —recuai o pensamento até o
tempo em que éramos, cada um de nós, simples padres, então ainda muito
longe e muito abaixo deste corpo hierárquico, deste santuário interior do po­
der romano. Pensai! E lembrai! Porque eu me lembro claramente da minha
primeira impressão dos “lá de cima”, a hierarquia local e as autoridades roma­
nas. Quanto mistério! Quanto temor! Que terríveis conotações até um conta­
to passageiro com eles produziam em mim —e, estou certo, em cada um de
vós. Não era isso o que nos atraía —em parte, de qualquer modo?
— Porque a conversação deles sempre parecia ecoar um precedente e
uma mentalidade mais misteriosos e maquiavélicos do que eu jamais tinha co­
nhecido, ou que jamais seria capaz de sondar facilmente. E, ainda que eu des­
cobrisse, ou pensasse descobrir, o sorriso diabólico por trás do sorriso pacien­
te de um cardeal, ou se percebesse uma astúcia confiante debaixo da veludosa
maciez da linguagem diplomática do Vaticano e de sua descontraída atitude,
ou se eu experimentasse uma certa falta de caridade, uma insensibilidade nos
ministros católicos - sem nenhum toque humano — mesmo tudo isso não
dissiparia a sensação que tinha de seu secreto poder.
— Aquilo que constituía objeto de negociações no interior desses círcu-
256
los privilegiados de cardeais e ministros vaticanos e autoridades pontifícias
parecia, às vezes, ser o reflexo humano do super-humano, sim, a luta cósmica
entre o Arcanjo decaído, Lúcifer, e Jesus. Em outras palavras, quase parecia
ser a versão cristã do drama semita de Jó, no qual Jesus se volta diretamente
para o Arcanjo Lúcifer como para alguém que conhece pessoalmente e muito
bem, e Lúcifer responde a Deus como uma parte efetiva do próprio universo
divino.
De repente, Buff é interrompido. O Camerlengo pôs-se de pé:
— Afinal de contas, que é que Sua Eminência está tentando dizer ou per­
guntar? —protesta ele, a voz num tom de exagerado aborrecimento. Há um
movimento de surpresa, ante este franco sopapo desfechado em Buff.
— Minha pergunta, Vossa Eminência, é uma que todos nós, de certa ma­
neira, estamos fazendo: como foi que a Igreja chegou a este ponto? E ainda
estamos todos perguntando mais: se chegou a este ponto, não está na hora
daquele rompimento em que estamos pensando, mas que não mencionaremos
aqui? Esse peso morto da Roma dos Papas Cesarinos não é demasiado, para
ser carregado pelos Papas de Jesus?
— E não pretendo dar resposta a essas dolorosas perguntas, meus Irmãos.
Não pretendo. Porque cada um de nós aqui sabe a resposta.
— O que pergunto a vós é isto —e isto constitui a questão central com
que nos confrontamos neste Conclave. Iremos nós voluntária e deliberada­
mente romper com essa carga do nosso passado? Romper com ela de maneira
tal que nenhum batista americano possa falar outra vez do Papa como “aquele
Governante estrangeiro”, nenhum luterano alemão possa pensar em Roma co­
mo “a Cortesã do Mediterrâneo” , nenhum devoto protestante possa descobrir
os mistérios do poder demoníaco entrelaçados aos mistérios de Jesus, em nos­
sas basílicas romanas e nos órgãos do nosso Vaticano, nenhum marxista pos-'
sa concluir que, fazendo a apologia do Sacrifício de Jesus e do direito exclu­
sivo de dispensar o seu amor, estamos comercializando alguma coisa que man­
terá o equilíbrio de nossa carteira de rendimentos e nos garantirá as cauções
necessárias para novos investimentos em propriedades imobiliárias?
— Iremos? Iremos fazer isso?
Concluindo na crista dessa pergunta cortante, Buff dirige um olhar de
agradecimento à mesa do Presidente e vai para seu lugar. À sua maneira, pro­
jetou sobre os colegas um pensamento perturbador: terá o Papado, na verda­
de, conseguido tal reputação que é agora, ele próprio, um obstáculo real à fé
na Igreja? Estará Lynch certo? E o Papado está morto, junto com aquele ve­
lho mundo cristão?

Quando Buff alcança seu lugar, Koi-Lo-Po já está convocando —evidentemen­


te com alguma satisfação pessoal, porque ao falar exibe um grande sorriso:.
— Meu Reverendíssimo Senhor Cardeal Henry Walker!
257
Adiai Stevenson, que uma vez aceitou uma Coca-Cola oferecida por Wal-
ker, disse mais tarde a um de seus auxiliares que “até a garrafa parecia signi­
ficar alguma coisa especial, quando ele a entregou à gente” . Walker tem o
dom de revestir de profunda significação a menor das ações. Assim sendo,
quando caminha penosamente na direção do Altar, segurando alguns papéis,
e depois, quando se volta para falar, tudo parece carregado de sentido. Em
fase anterior de sua vida, este homem foi o mais culto dos bispos católicos
romanos de seu país a aparecer em cena no decurso de cem anos e, provavel­
mente, o mais perfeito orador de sua geração. Fluente em três línguas euro­
péias, profundamente versado em teologia e literatura, um antagonista formi­
dável numa discussão, Walker estava praticamente fadado a terminar em Ro­
ma. Era do material de que são feitos os homens do poder. Num determinado
momento, sua reputação de gourmet foi excessivamente comentada e outras
características lhe foram falsamente atribuídas.
— Eminentíssimo Presidente, tenho delegação para falar por um grande
grupo de Reverendíssimos Cardeais-Eleitores e, além disso, por muitos Car­
deais que não estão aqui presentes e por muitos sábios e piedosos bispos espa­
lhados por toda a Igreja. E o que tenho para dizer, vos revelará muita coisa so­
bre aqueles que têm novidades a nos propor. Sobre os homens que aqui se
apresentaram e nos ofereceram seus floreados planos, que comparam com os
espinhos de nossos feitos passados. —Um brilho de cólera faz arder seu olhar.
— Nossa mensagem aos Eleitores deste augusto Conclave é precisa e clara: a
vontade da maioria dos bispos que participaram do Concílio Ecumênico
durante os anos sessenta foi desfigurada. Sua boa fé foi traída. —Há uma
murmuração geral entre os Cardeais. Parece que Walker está querendo ver
sangue e tem as armas carregadas.
— A sanção do Concílio Episcopal tem sido usada —eu deveria dizer,
prostituída - para propósitos que contrariam sua intenção original...
Walker é parado por um grito vindo dos Cardeais —ninguém parece saber
de quem é a voz:
— Nada de discursos sobre conduta moral, por favor, Reverendo!
Walker volta à sua verrina:
— Oh, não vos preocupeis, meus Eminentíssimos Padres e amigos. Sei a
que vos referis. Sei as coisas de que sou culpado. Sei disso melhor do que
qualquer um de vós. Mas creio na graça de nosso Senhor Jesus. Creio que ela
purifica, faz a alma viver de novo, toma mais agudo o espírito. E creio que o
Senhor Jesus ouve o penitente e pune aqueles que censuram publicamente os
pecados de que já houve arrependimento...
Outra interrupção:
— Vergonha! Vergonha!
— Que Vossa Eminência possa imitar vosso Pai Celestial! — riposta Wal­
ker, fixando a direção de onde vem o grito.
258
O Cardeal-Presidente intervem, lembrando aos Eleitores o decoro e o
respeito mútuo que devem observai.
— Eu vos agradeço, Eminentíssimo Cardeal-Presidente, eu vos agradeço,
— Walker volta-se depois para os Eleitores. —Não vos consideraria de modo
algum em dúvida sobre o que aconteceu, meus Irmãos, com a vontade mani­
festada em nosso Concílio Ecuménico —especialmente diante dos discursos
que ouvimos esta manhã.
— Posso falar com direto conhecimento de causa, porque tomei parte no
Concílio. É verdade que as minhas próprias ambições estavam então intima­
mente identificadas com as posições que tomei. Creio, perante Deus, que a
acumulação de anos e as misérias corporais que desde então o Senhor descar­
regou sobre mim, juntamente com o tempo que passei nesta Cidade Santa e
com as funções que desempenhei junto ao Santo Padre — tudo isso deixou
muito nitidamente definidos em minha memória todos os fatos acontecidos.
- Olha rapidamente para o lugar de onde tinham vindo, pouco antes, aqueles
gritos depreciativos. — Seja como for, Irmãos, ficai certos de uma coisa: não
tenho nenhum interesse pessoal neste Conclave.
— Seria ridículo e inútil, da minha parte, passar em revista, aqui e agora,
o Concílio inteiro. Mas deixai que eu dê um exemplo típico, para fundamen­
tar a minha afirmação de que houve artifício e deslealdade e —pior do que is­
so tudo —traição de nosso dever de preservar e passar adiante as sagradas tra­
dições da Igreja Apostólica. —Walker já está respirando pesadamente. Enxuga
o rosto com um grande lenço brancô.
— Todo mundo aqui está familiarizado com o documento conhecido co­
mo a CSL, a Constituição da Sagrada Liturgia. Permiti-me abordar alguns pon­
tos concernentes à CSL. —Toma a enfiar o lenço na manga esquerda. —To­
dos aqueles que participaram do Concílio, como eu participei —de todas as
suas sessões —como Terebelski fez, como Riccioni fez, como fizemos todos
nós, os veteranos! —Murmúrios de *7te/” vêm de uma dúzia de gargantas. —
Todos nós sabemos —os 1.922 bispos que participaram da votação —que o
Cânone da Missa (a parte central da Missa Católica Romana) deveria, de acor­
do com a vontade da grande maioria desses 1.922 bispos, ser sempre e conti­
nuar sendo dito em latim. —Ele pára com uma expressão de incredulidade, pa­
ra dar ênfase às palavras. A pausa dramática prende completamente a atenção.
Walker escolheu um ponto que causou sofrimento e discórdia, e que quase le­
vou ao cisma.
Sua própria voz quebra o silêncio:
— Sabíeis disso? Perguntei: “os bispos sabiam disso? Deixai que eu seja
exato, Irmãos: os bispos fizeram mais. Declararam isso! Legislaram dessa for­
ma! Deixai que cite para vós: no Artigo 36 dessa CSL eles disseram:

“Uma lei especial permanece em vigor: o uso da língua latina é de ser pre­
servado nos Ritos Latinos. ”
259
— Estas foram as nossas exatas palavras, —e brande um papel na mão,
como se o estivesse oferecendo a todos os presentes, para que o lessem eles
próprios. —Reparai que nós, bispos, ordenamos isso. Usamos a forma impera­
tiva: servetur. Não aconselhamos. Não recomendamos. Não fizemos uma de­
claração moderada. Ordenamos. Esta era a nossa vontade. A vontade do Con­
cílio. O Concílio Ecumênico. O Cânone da Missa nunca deveria ser dito em
língua alguma, exceto em latim.
— Agora, todos vós sabeis que nós, os bispos do Concílio, fizemos uma
distinção entre as partes presidenciais da Missa — aquelas que dizem respeito
ao sacerdote como sacerdote, como um substituto para Jesus —e as partes
populares — aquelas partes da Missa que envolvem diretamente o povo, tais
como o Evangelho, a Epístola, as preces pelo bem-estar público e assim
por diante. E estipulamos, nesse mesmo Artigo 36, parágrafo 39 da CSL,
que as autoridades competentes deveriam decidir se - reparai na palavra
“se” — a língua vernacular poderia ser usada mesmo nas partes populares.
Em outras palavras, no que dizia respeito a nós, bispos, o vernáculo nunca
precisaria ser usado nas partes populares e nunca deveria ser usado nas pre­
sidenciais.
— Repito ainda uma vez, éramos 1.922 bispos, votando sobre essas èxa-
tas palavras. Não poderia ter sido mais claro.
— Ora, que foi que aconteceu realmente com a nossa Missa? Com o nos­
so Cânone Latino? E, poderia acrescentar, com o compaxecimento à missa? -
O rosto de Walker reflete pura repugnância. —Bem, hoje em dia há, pelo me­
nos, nove diferentes cânones vernaculares. Cânone Latino oficial da Missa não
existe absolutamente! Isto foi o que aconteceu.
— Mas como? Como poderia ter resultado uma coisa tão completamen­
te oposta à vontade do Concílio —e, acima de tudo, como poderia isso ter
resultado em nome do Concílio?
— Lembro-me daquele monstro que, em 1965, logo depois da termina­
ção do Concílio, foi criado por artifício e maquinação —refiro-me à Comis­
são pós-Concílio, instituída para implementar a nossa vontade, a vontade dos
bispos — a essa monstruosa Comissão foi perguntado, por cerca de quinze
diferentes hierarquias e episcopados nacionais da Europa, Ásia, África e Amé­
rica sobre o Cânone, o Cânone Latino. Que resposta supondes que a Comissão
lhes deu? Pensai por um momento. Eu deveria deixar essa resposta a cargo
de vossa imaginação, Reverendos Padres. —Walker mostra os dentes, num sor­
riso de escámeo. —Mas, se fizesse isso, a coisa provavelmente seria distorcida
pelos inimigos da missa. A resposta que a Comissão deu, consistentemente,
foi: “Permissão para abandonar o latim e traduzir o Cânone nas várias línguas
nacionais nunca será dada.” Isto, se me fazeis o favor, foi o que nos disseram,
de modo que todos voltamos para casa satisfeitos.
O Cardeal Thule põe-se de pé para uma questão de ordem:
260
— Pode o Eminente Cardeal provar estas declarações? —A agitação de
Thule é evidente.
— Tenho a prova aqui, numa carta em papel timbrado em relevo com o
brasão da Comissão e seu endereço romano; está datada de 22 de dezembro
de 1965...
— Os Eleitores não podem ver a carta, Reverendo Irmão...
— Tenho-a em minha mão! —estrondeia Walker, teimosamente brandin­
do no ar uma folha de papel, —e vós e os outros podeis dispor de vinte có­
pias, a expensas minhas, se quiserdes...
— Sim, mas quem assinou essa carta, Eminente Irmão? Talvez tenha vin­
do de algum gabinete de um escalão inferior da Comissão, que...
— Está assinada, - a voz de Walker é uma lixa, - pelo Arcebispo que en­
tão chefiava a Comissão. —Ele ergue os olhos e mira os Eleitores com uma
expressão de asco. Há um silêncio mortal entre os Cardeais. O Arcebispo era o
homem que Paulo fora forçado a demitir da Comissão sobre Liturgia. As ra­
zões foram muito graves. —E daqui a pouco teremos mais a dizer sobre o Ar­
cebispo.
Walker agarra-se de novo a seu assunto principal:
— Como foi então que aconteceu, meus Irmãos, o fato de que a vonta­
de expressa da maioria dos bispos foi diretamente contrariada e violada?
Thule está de pé novamente:
— Acho que está muito claro que os membros da Comissão consultaram
os bispos depois que terminou o Concílio e que estes simplesmente manifes­
taram um desejo, em termos gerais, de...
— Isso aconteceu, meu caro e Venerável Irmão, —a voz tonitroante de
Walker sufoca a de Thule, —porque foi decidido in camera, entre uma meia
dúzia de bispos isolados, três cardeais — dos quais, aliás, o meu Venerável
Irmão foi um —e um grupo selecionado de teólogos, os periti. Todos vós vos
lembrais dos periti do Concílio? Lembrais? —Walker está olhando agora em
volta, passando os olhos por todos eles. —Lembrais?
Buff põe-se de pé:
— Gostaria de lembrar a meus Colegas que os periti foram escolhidos iso­
ladamente pelos bispos tendo em vista sua capacidade em assuntos de tradi­
ção e em conhecimentos teológicos. E, além disso...
— Não temos necessidade de uma lição de Sua Eminência sobre o signi­
ficado da palavra “periti". — O sarcasmo de Walker é tão imperioso quanto
sua cólera. — “Periti". —Profere a palavra como se a mesma tivesse um som
estranho e um significado mais estranho ainda. — É claro! Alguém versado
numa coisa ou noutra. Neste caso, em teologia. Todos nós, bispos do Concí­
lio, tínhamos os nossos periti. Mas os periti nesta reunião in camera eram mais
do que simples assessores em matéria de teologia. A propósito, eu deveria di­
zer reuniões —mas houve uma reunião particularmente fatídica, sobre a qual
261
o meu Eminente Irmão sabe mais do que qualquer um de nós. —Olha de novo
para Thule.
Thule tivera um encontro especial com os periti ultraprogressistas, no
Concílio, e entre eles ficara decidido que procurariam introduzir, no texto
dos documentos conciliares, “bombas de ação retardada” em assuntos de
doutrina, que seriam aprovados pelos bispos. Nesse sentido, uma bomba de
ação retardada era uma frase suscetível de mais de uma interpretação. Para os
bispos, uma frase dessas teria um significado. Mas depois, como de fato acon­
teceu, a Comissão daria outro —e por vezes totalmente diferente —significa­
do à frase aparentemente inócua.
Walker trouxe consternação ao Conclave. Pelo menos quatro ou cinco
Cardeais, quase todos da América Latina, estão de pé, tentando conseguir
permissão para intervir. Um deles, Marquez, consegue:
— Nosso Irmão, o Cardeal Walker, precisa ter certeza de que dispõe de
prova desta grave acusação.
— Está tudo aqui, meu Eminentíssimo Irmão, está tudo aqui. —Walker
levanta no ar outro monte de papéis. Está sorrindo, mas não é um sorriso
agradável. ~ Estes documentos me custaram muito trabalho. Deixai-me ver,
agora, —folheia rapidamente algumas páginas. —Ah, sim! —Uma pausa, en­
quanto lê os nomes dos mais controvertidos e mais modernistas dos periti do
Concílio Vaticano.
— Está o nosso Eminente Irmão dizendo, —Marquez insiste na provoca­
ção a Walker, —que havia uma espécie de entendimento entre estes homens
e outros ainda não mencionados?
— Sim. Estou! —Muito embora todos os presentes a esta altura já tives­
sem compreendido a significação daquilo que Walker estava dizendo, sua afir­
mação final de que houvera nada menos que uma trama para aliciar a vonta­
de do Concílio ainda constitui uma bomba. O Presidente não consegue manter
a ordem entre os Cardeais e Walker precisa quase berrar, para poder se fazer
ouvido. - Estou dizendo precisamente isso, Reverendo Irmão. Houve um
plano coordenado, predeterminado, estabelecido por um punhado de bispos e
periti, um plano que agora conhecemos em detalhe, um plano que foi seguido
meticulosamente.
— Precisamos saber, Eminentes Irmãos, —Thule é um desafio ostensivo,
—precisamos saber quais são os detalhes dessa —trama, desse plano.
— Muito bem! Primeiro: Colocar as bombas de ação retardada, aquelas
afirmações ambíguas, nos documentos do Concílio. Na nossa CSL oficial, por
exemplo, uma afirmação como a que consta do Artigo 21, que diz: “A Litur­
gia compõe-se de elementos imutáveis, de instituição divina, e de elementos
sujeitos a modificação.” Ou, no Artigo 33: "Embora a Liturgia sagrada seja,
acima de tudo, a adoração da Majestade Divina, contém ela, igualmente, abun­
dante instrução para os fiéis.” Ou, no Artigo 38: “A revisão dos livros litúrgi-
262
cos deveria permitir variações e adaptações legítimas a diferentes grupos, re­
giões e povos, especialmente em zonas missionárias.”
— Ora, Confrades, todas as declarações desse tipo foram entendidas por
nós, os bispos, num sentido, um sentido conservador, tradicionalista. 0 passo
número um consistiu em introduzir tais declarações nos documentos oficiais.
— Segundo passo: Encher a Comissão pós*Concílio, estabelecida para a
implementação de nossas decisões, com gente que faria explodir as bombas de
ação retardada. O secretário-geral da Comissão pós-Concílio era Bugnini, Han-
nibal Bugnini.
— Terceiro passo: Em nome do Concílio —agora já disperso e tendo seus
membros espalhados pelos quatro ventos —expedir uma série de decretos, de­
terminando as mudanças. E coordenar esses novos e revolucionários decretos
com mudanças não-oficiais e unilaterais, iniciadas por bispos complacentes e
maquinadores e por periti e padres, em várias dioceses da Igreja...
— Repito: espero que o Eminente Cardeal possa provar tudo isto com
documentos, comprovados e autenticados. — É Thule. E está claramente
agitado.
— Vossa Eminência tem uma cópia de cada documento que tenho nas
mãos, e de cada carta trocada entre Sua Eminência e os periti e o Arcebispo
que chefiava a Comissão e... —O Cardeal Thule levanta-se para interromper
novamente Walker, mas desta vez o Presidente intervém:
— Por favor, permiti que o Cardeal continue. —Walker olha firmemen­
te em tomo de si, depois continua:
— Quarto passo: Traduzir o Cânone da Missa, em toda parte, para o
vernáculo. E proibir — repito — proibir o latim, em toda parte. E traduzir
para o vernáculo todos os livros litúrgicos.
— Quinto passo: Adaptar a liturgia da Missa a todas e a cada uma das
regiões e localidades e línguas, de modo que não haja mais uniformidade al­
guma, pelo inundo todo. E adaptá-la de modo que, em qualquer lugar, não
seja encarada como uma participação no Sacrifício de Jesus no Calvário. Em
vez disso, que seja considerada como um repasto comunal da congregação,
com ênfase na Bíblia, particularmente no Velho Testamento, e em proble­
mas sociais. E deixar que os leigos, não o padre, tenham as funções princi­
pais. O padre deveria ser simplesmente um mestre de cerimônias.
— Mas afinal de contas que tem tudo isso a ver com a grave decisão que
temos diante de nós? — É Thule, agora tomando uma direção diferente para
derrubar a argumentação de Walker.
— Meus Irmãos, —Walker faz o apelo quase num grunhido, —na verda­
de, por que será que estou vos dizendo tudo isto? Pura e simplesmente para
vos declarar que a vontade do Concílio foi prostituída —e com ela toda a
representação de vossa Fé Católica, o Sacrifício da Santa Missa. E para vos
declarar que não deveríamos, neste momento tão profundamente crucial, de-
263
positar nossa confiança nas proposições daqueles que foram implicados nessa
fraude e nessa corrupção tão monumentais.
— Mas como pode o Cardeal deixar de mencionar a renovação que se
seguiu ao Concílio?
Thule não está preparado para a tempestade que desaba sobre sua cabeça:
— Renovação? —Walker berra a palavra. —Renovação? —Volta-se para
Thule com uma descarga de palavras. — Deixai que vos diga o que é que a
vossa renovação significou. Vamos considerar uns poucos, frios e duros fatos.
—Examina rapidamente alguns dos papéis sobre sua mesa.
— Renovação deveria querer dizer, principalmente, um zelo maior pela
missa, não? Maior comparecimento â missa, não? E maior interesse pelos
Sacramentos, não? E uma função dos padres cada vez mais influentes, não?
Maior, ou pelo menos o mesmo, número de conversões à Igreja, não? Afi­
nal de contas, estes são os sinais de renovação. De que outra maneira se pode
falar em renovação a não ser nestes termos?
— Bem, vejamos os fatos, desde 1965, quando esta maldita renovação,
esta chamada reforma litúrgica foi iniciada pelos nosso amigos. O compareci­
mento à missa, a partir de 1965, declinou. Enormemente! Na Inglaterra e Pai~
de Gales, em 16%. Na França, em 66%. Na Itália, em 50%. Nos Estados Uni­
dos, em 30%. Renovação, ein?
— E as vocações sacerdotais. Aqui também, declínio. Na Inglaterra e País
de Gales, em 25%. Na França, em 47%. Na Holanda, em 97%. Na Holanda! A
Igreja de vitrina —onde todos os seminários estão fechados desde 1970! Na
Itália, em 45%. Nos Estados Unidos, em 64%. Renovação!
— E os batismos. Mais uma vez, declínio. Na Inglaterra e País de Gales,
em 59%; nos Estados Unidos, em 49%.
— Freiras? Um declínio de 24,6% através de toda a Igreja. Desde 1965,
35.000 freiras abandonaram os conventos. E 14.000 padres abandonaram o
sacerdócio.
— Renovação? Preciso continuar? E isto não passa de uma leitura ao aca­
so. Qualquer um dos meus Eminentes Colegas pode ter uma cópia destes do­
cumentos. —Ele atira os papéis sobre a mesa do Presidente. Depois, volta-se
para encarar Thule e Buff:
— E, quereis saber, há nisso tudo uma distorção engraçada. E não estou
falando sobre missas com música pop, missas com maconha, missas com bis­
coitos e uísque em vez de pão e vinho, missas jovens com Coca-Cola e pãozi­
nho de Sexta-feira Santa —tudo isso parte de vossa renovação, Meus Eminen­
tes Irmãos! Já percebestes que a Missa Latina é a única versão da missa que
não é permitida de modo geral? Só é permitida com permissão especial? Co­
mo é que encarais isso? Podeis ter a missa em qualquer língua, EXCETO!!! —
ele ruge a palavra —em latim! E o Arcebispo Lefebvie e seus tradicionalistas
264
são castigados por fazerem objeção a isso, enquanto os conspiradores, -
sim, conspiradores! — nem mesmo são repreendidos. —Walker vê que Buff
e Marquez estão prontos para saltarem de pé, mas levanta a mão: —Termi­
narei dentro de pouco tempo. Por favor, deixai-me acabar, Eminentes Ir­
mãos.
— Quanto às demais mudanças na missa, tudo surpresas! Cada uma delas!
— Walker está-se referindo às numerosas pequenas modificações em palavras
e no ritual do culto católico, e nas leis da Igreja que foram impostas aos cató­
licos romanos nos últimos doze anos. —Nós, bispos, nunca decretamos a Co­
munhão na mão, por exemplo. Nunca decretamos que o padre deveria ficar
de frente para o povo. Nunca decretamos que uma mesa —novamente a idéia de
uma refeição e não de um sacrifício sagrado — deveria ser usada em lugar
de um altar. Falamos sobre essas coisas no Concílio e decidimos contra cada
uma delas! Por que é que não nos perguntaram de novo? Quem decidiu ao
contrário? Eu vos direi: aquele pequeno grupo de periti, apoiado por uns pou­
cos bispos e por alguns cardeais.
Buff intervém, finalmente:
— Diga o que quisei Vossa Eminência, não acredito que seja prudente
insistir na afirmação de que tais mudanças foram resultado de um plano deli­
berado...
— Ora, por que, Eminente Irmão, perseverais em dizer coisas como essa?
Por quê? Estais com medo? E pode ainda algum dos meus Eminentes Irmãos
pensar que tudo isso não foi deliberado?
— Mas sugerir que houve alguma espécie de abominável plano...
— Eu penso, eu penso que foi isso, Eminente Irmão. Sim. Penso. Fa­
ço mais do que isso. Aponto o dedo para aqueles bispos e aqueles carde­
ais que adquiriram a condição de membros - aliás, proveitosa condição de-
membros — de organizações anticatólicas e anticristãs, clubes e coisas se­
melhantes.
Thule põe-se de pé:
— Acho que num caso de tal gravidade não só é necessário uma prova
documental, mas também que Sua Eminência deveria ter alertado as autori­
dades há muito tempo.
— Bem, na realidade, —responde Walker, quase estalando os lábios, —na
realidade, tenho a prova documental aqui nas minhas mãos —podeis tê-la, se
quiserdes. E, na realidade, o Camerlengo tem estado de posse dessa prova do­
cumental há bem mais de três anos. —Depois, para o grupo todo, —Por que é
que vós não ficastes sabendo disto? Bem... —olha rapidamente na direção do
Camerlengo. —Razões de estado, talvez...
— O Meu Senhor Cardeal Buff nos perguntou, há alguns momentos, co­
mo foi que a Igreja chegou a este ponto. Não pretendia, compreendo eu, que
a pergunta fosse respondida exatamente desta maneira, mas creio que vos dei
265
um exemplo da maneira pela qual chegamos a este ponto. E deixai que eu res­
ponda à sua pergunta seguinte: sim, está na hora de rompermos com o passa­
do. Não como quis significar Sua Eminência, talvez. Mas no sentido seguinte:
que trabalhemos todos nós em absoluta franqueza, durante todo este Concla­
ve. —Olha em volta, para todos os rostos. —Porque, que cada um tome co­
nhecimento: temos um dever sagrado, o de eleger um sucessor de Pedro e um
Vigário do Senhor Jesus. Estou deliberadamente me coibindo de qualquer
outro comentário, no momento. Mas, digo de novo, que cada um tome co­
nhecimento: lutaremos contra qualquer tentativa da parte de qualquer um —
qualquer um, quer dizer, fora do Conclave - para exercer mesmo um mínimo
de influência na eleição desse sucessor e desse Vigário. Assim me permita
Deus!
Esta última afirmação, sua violência e a implicação de conluio entre al­
guns Cardeais e poderes exteriores provocam uma onda de murmúrios e de
comentários. Alguém grita lá de trás:
— Vetos à eleição? Estais insinuando que alguém está quebrando a lei
do Conclave, introduzindo um veto em nosso meio?
Na história dos Conclaves, vários governos tiveram a outorga do direito,
dada pelos Papas, de vetar um papabile indesejável, e os Cardeais se apresen­
tavam trazendo uma ordem de seu respectivo Rei ou Imperador, no sentido
de que este ou aquele Cardeal não poderia ser eleito Papa.
— Vetos? Vetos? Quem está falando em vetos? E, afinal de contas, que
é um veto? Todos vós não trouxestes algum tipo de veto? O melhor de todos
nós!
— Pensais que o Meu Eminentíssimo Irmão, Meu Senhor Cardeal Artel,
irá sancionar ou trabalhar por um candidato que sabe ser inaceitável pela ad­
ministração Carter? Ou que o Cardeal Delacoste vai apoiar alguém inaceitável
pelas pessoas que ocupam o Palácio do Elysée? Ou que o Cardeal Franzus
apóia alguém inaceitável por Moscou? Franqueza, Irmãos! Vamos continuar
com franqueza.
— Agora, é claro que esses Eminentíssimos e Reverendíssimos Cardeais
sabem apenas que alguém é inaceitável. Não foram instruídos por seus gover­
nos para tomarem qualquer espécie de atitude. Nenhum funcionário do go­
verno lhes disse que vetassem determinado candidato. Mas não sejamos sim­
plórios!
— Exijo, Reverendo Senhor Cardeal Presidente, —Marquez está zangado,
ao fazer sua intervenção, —que o Eminente Cardeal esclareça a situação e as
suas palavras. Quer ele dizer que os maçons se intrometeram neste Conclave,
ou que alguma das superpotências está exercendo hoje, aqui, alguma influên­
cia por trás de portas fechadas?
— Não. Não estou me referindo primeiramente, nem mesmo secundaria­
mente aos maçons, embora, meu Eminente Irmão, quem de nós poderá negar
266
que o Grande Oriente não esteja puxando alguns cordões de marionetes aqui,
dentro deste Conclave?
— Não. É alguma coisa muito mais sinistra. Lá fora, no mundo dos ho­
mens, na sociedade dos homens e mulheres, esteja ela nos Estados Unidos,
na Suíça, na Rússia, entre as nações da África e da América Latina, há lá fora
uma organização mais abrangente, mais sutil, de maior alcance, uma organiza­
ção de homens de um tipo especial, que não são leais a este ou àquele país,
mas a princípios muito especiais, de acordo com os quais têm em mente um
destino muito especial para —entre outras instituições —esta Santa Igreja Ca­
tólica Apostólica Romana. Para tais homens, os maçons são bonecos. E os
marxistas são bonecos, além de se constituírem em obstáculos temporários à
consecução de suas vontades e intenções. —Walker pára. Seus lábios estão-se
movendo, seus olhos por um momento se erguem para o teto do Salão do
Conclave. Enquanto permanece silencioso, o silêncio faz-se também entre os
Cardeais, que estão fascinados e pasmos.
Depois de alguns segundos, Walker fala, com muita calma:
- Que Cristo possa ter piedade de todos nós, para que tomemos a deci­
são correta, neste Conclave. Porque de nós e de ninguém mais dependem a
vida e a morte de milhões. E a paz ou a agonia desta Igreja. E a perseverança
de muitos cristãos. Que Deus tenha piedade de nós e nos ilumine.
Ele se inclina para os Presidentes.
Um Cardeal comenta para o vizinho:
~ Pensar que Hank Walker estaria lutando pelas velhas bandeiras! Quem
iria pensar uma coisa dessas? —Ele não é o único a ter esse mesmo pensamen­
to. Mas este Conclave é surpreendente em muitos aspectos.
Pelo canto do olho, enquanto caminha de volta a seu lugar, Walker per­
cebe a mancha cor-de-chocolate do rosto do Cardeal Coutinho, um velho
amigo seu. Nos rostos de Thuíe, Franzus, Buff e Marquez pode-se ler um
misto de raiva e determinação. A maioria dos Eleitores não absorveu tudo
aquilo que Walker lhe disse. Mas, mesmo assim, há entre eles uma sensação
nova.
Pela primeira vez, desde que o Conclave começou, cada cardeal começa
a sentir a verdadeira pressão e a força de um Conclave Papal. Grandes pro­
blemas ocupam agora o primeiro plano de seus pensamentos.

Quando Koi-Lo-Po chama o nome de Franzus,'no tom oficial de costume, há


uma mudança de disposição. Quase uma curiosidade partilhada. Muito poucos
Cardeais conhecem Franzus pessoalmente. Mesmo aqueles que se encontraram
com ele, nas raras ocasiões em que viajou para fora de seu país, ou quando os
outros foram visitá-lo, sempre confessaram depois que, na realidade, não ti­
nham conseguido conhecê-lo. Há alguma coisa inescrutável em relação a Fran-
267
zus. Mas, no entanto, não pode haver dúvida quanto à sua eloqüência. As pa­
lavras lhe vêm com facilidade.
— Veneráveis Irmãos, se alguém me tivesse dito, vinte anos atrás, que eu
estaria aqui propondo o que proponho, isso me deixaria cheio de increduli­
dade. Não obstante, estes são os estranhos caminhos da Providência. E, hoje,
quero propor que todos adotemos uma nova posição diante do marxismo.
Compreendeis que todos nós, individual e coletivamente, precisamos fazer o
que temos que fazer. Aos meus Irmãos do Leste, especialmente das democra­
cias orientais, da mesma forma que aos meus Irmãos da África, tenho a comu­
nicar alguma coisa difícil de pôr em palavras. Não obstante, em minha opi­
nião, isso constitui a verdade.
— Deixai que fale com simplicidade sobre tal coisa e que use uma lingua­
gem simples para transmitir o que quero dizer.
— No verão passado, tive oportunidade de visitar alguns amigos meus que
moram perto das margens do nosso belo Lago Plácido, no sopé dos Montes
Calvos. Nosso destino —éramos seis, viajando juntos de carro —era a penín­
sula montanhosa de Tamton. Mas, aos nos aproximarmos do lago, vindo da
cidade na direção sudoeste, passamos por campos de papoulas, dos dois lados
da estrada. Tão grande era o esplendor daquelas flores que nós paramos o
carro, saltamos, todos os seis, e caminhamos uns cinco ou dez minutos pelo
meio dos campos, todo o tempo discutindo nossos mútuos interesses.
— De repente, no meio do que parecia ser uma infinita planura de papou­
las, um de nós parou e exclamou: “Olhem! Olhem! Olhem! Olhem para a pele
de vocês, seus olhos, seus cabelos, seus dentes, mesmo para suas roupas pretas.
Olhem! Olhem para isso! Está tudo em fogo. Estamos andando dentro do sol!
E não fomos consumidos por ele! Um milagre de Deus! Olhem, eu lhes peço!”
— E, na verdade, era como ele dizia. Aquela glória e aquele fulgor escar­
lates, que se refletiam de milhares e milhares de papoulas, estavam colorindo
tudo aquilo que éramos nós. E mesmo o ar à nossa volta parecia penetrado de
uma névoa escarlate.
— Dentro do sol! Isto, por meio de uma imagem, é o que vos quero
transmitir, meus Colegas, sobre nós, que vivemos dentro dos regimes marxis-
tas-leninistas de nossos países e das repúblicas democráticas do Leste.
— Sim, é certo que estamos debaixo do violento fulgor da estrela verme­
lha. Ele colore tudo que podemos ver, e tudo que podeis ver de nós e de nos­
sas vidas. No entanto, como cristãos, não estamos consumidos. Não perece­
mos. Fizemos mais do que simplesmente sobreviver. Florescemos. Pensai nis­
so, meus Irmãos, florescemos! Dentro do sol, nós florescemos!
— Oh, eu sei que tendes perguntas a me fazer. Sei que tendes uma per­
gunta, em particular, a nos fazer —a perguntar a mim, como porta-voz desses
cristãos com quem estou vivendo. É uma pergunta a que já respondi pelo me­
nos mil vezes, quando veio dos meus padres, de meus colegas bispos, de meus
simples crentes: Podem os cristãos aceitar o marxismo? O comunismo leninis-
268
ta é compatível com os Evangelhos? E sei o que foi escrito por Papas prece­
dentes. E a vós eu digo: nenhum deles viveu sob um regime marxista; e ne­
nhum deles foi forçado a uma aliança de ordem prática com marxistas since­
ros. Teoricamente e num dogma abstrato, pode-se demonstrar que uma alian­
ça desse tipo é impossível. Mas, acreditai em mim, na vida real a coisa funcio­
na diferentemente.
— Permiti que vos dê, em termos simples, a resposta que tenho dado a
todos esses padres e bispos e leigos que me fizeram a mesma pergunta que,
certamente, quereis me fazer.
— A resposta é que, nas circunstâncias concretas de nossos dias, neste
ano, nesta hora, considerado o abismo intransponível entre os têm e os não-
têm , entre nosso ideal cristão e as condições contrárias que constituem as
duras realidades para a esmagadora maioria da humanidade —e considerada
essa falência, como salientou o Meu Senhor Lynch, do mundo cristão clássico
quanto a ser simplesmente cristão — considerado tudo isso, uma passagem
através do marxismo parece ser a condição necessária para pôr fim à aliena­
ção espiritual da esmagadora maioria da Humanidade.
— Porque, na verdade, Irmãos, o valor do comunismo, sua identidade
mesma, não está — como pensam muitos ocidentais — em ser apenas uma
solução econômica. Nós sabemos! Sabemos quantas falhas há no comunismo
como uma teoria econômica. Mas o valor real do comunismo, sua verdadeira
identidade, repousa no fato de que é uma absoluta exigência histórica; é a úni­
ca maneira...
Riccioni está de pé, fazendo sinal ao Presidente para ter permissão para
apartear. Ao sinal de ordem do Presidente, Franzus senta-se numa cadeira
junto à mesa da presidência, sorrindo tranqüilamente para si mesmo.
— Meus Senhores Cardeais, —começa Riccioni, perturbado, —se o Meu
Senhor Cardeal Franzus precisa de uma reformulação de sua perspectiva dos
ensinamentos da Igreja, das declarações dogmáticas dos Papas, e daquilo que
é exigido pela piedade cristã, bem como da santidade que Cristo exige de sua
Igreja...
— Sim, —é Franzus, ainda sentado, sorrindo ainda. —É claro. É claro!
Meu Senhor Cardeal Riccioni tem tido todo o tempo do mundo para ler li­
vros e assistir a conferências. Mas, como disse Marx, é fácil ser um santo quan­
do não se tem o desejo de ser humano. Bem, —lançando um olhar ao Primei­
ro Presidente, —se me é permitido continuar...
— Pelo fato de que Cristo se tomou humano, —Riccioni está tentando
prosseguir, — de que foi encarnado, a Igreja tem que santificar todas as coi­
sas. E o marxismo não vai permitir que a Igreja...
— Nosso problema é precisamente esse, Meu Senhor Cardeal, —replica
Franzus. —Cristo tomou-se humano. Esta é uma Igreja humana. E, por falar
nisso, um mundo humano. Nós não o abandonaremos. Queremos continuar
sendo uma parte dele...
269
— Estáveis a ponto de falar da única maneira, —o temperamental Riccio-
ni está praticamente berrando e sua voz tornou-se rouca, - bem, meu Irmão,
reparai bem, a única maneira de se conseguir santidade, quanto â Igreja, é
mantendo-se a Igreja separada do erro.
O Cardeal-Presidente faz um sinal a Riccíoni: Franzus tem precedência e
deve-lhe ser permitido concluir seu discurso. Riccioni deixa-se afundar na ca­
deira.
Franzus levanta-se de novo, pronto a ir muito mais longe ainda:
— Continuando, meus Irmãos. Nâo apenas é o comunismo uma necessi­
dade histórica: o ateísmo dos marxistas é uma condição necessária pela qual
os cristãos têm que passar, a fim de conseguirem se redimir da alienação —a
alienação que aquele velho mundo cristão lhes impôs, a eles e a todos os ho­
mens. —Durante todos os comentários de Franzus e a intervenção de Riccio­
ni, os ânimos estiveram esquentando. Agora, as palavras dele são como fogo,
e eles explodem. Os gritos de “Falsidade!” “Traição!” “Maldade!” “Acordo
com Satã!” são contrabalançados por outros gritos de “Que ele seja ouvido!”
“Que o Espírito Santo possa falar através do mais humilde de todos nós!”
“Todos temos uma contribuição a dar!” A sineta de prata do Cardeal-Presi­
dente toca, impotente, durante tudo isso. Franzus já não está sorrindo. Mas
Thule faz-lhe uma aceno de cabeça e Buff, com as mãos acima da cabeça, faz
para ele o sinal de congratulações.
Vasari consegue obter permissão para falar. O clamor dissipa-se, exceto
por conversas isoladas e por um ou outro grito de repulsa ou de apoio. Vasari
tem o rosto fortemente enrubescido. Seu punho direito está fechado sobre a
palma da mão esquerda.
— Meus Senhores Cardeais, temos o direito, creio eu —e acho que uma
grande maioria dos senhores concorda comigo nisto —de saber o que, em no­
me da verdadeira razão e da verdadeira fé, o nosso Eminentíssimo Irmão, —
esta última palavra é dita com um toque de sarcasmo e suspeita, como se Va­
sari estivesse mencionando alguma coisa mal-cheirosa, —pode estar querendo
dizer com “um ateísmo necessário”. Deixemos que nos diga!
Gritos de “Bravo Vasari!" (Muito bem, Vasari.) “Bene detto Vasari!"
(Disse bem, Vasari.) Vasari vira-se para Franzus e mostra-lhe que a palavra
está com ele.
— Alguém me disse, antes desta Sessão, que eu falo como se o ateísmo
fosse uma simples conseqüência do marxismo. Ateísmo, disseram, é o princí­
pio, a fonte e a origem do marxismo. Sem dúvida! Se por “ateísmo” quereis
significar a rejeição de um sistema intelectual vinculado a um sistema burguês
de governo. Sem dúvida! Se por “ateísmo” quereis significar a rejeição de um
desenvolvimenro econômico baseado no elitismo, no monopolismo e nas di­
nastias —dinastia de corporações, de famílias, de classe. Sem dúvida! Mas, de
novo, —ele procura Vasari com os olhos e seu olhar é duro como pedra, fir­
me, - esse ateísmo ê uma necessária passagem de purificação! E constitui o
270
único passo que permitirá uma total requisição das energias humanas para a
solução dos problemas da Humanidade. —Mesmo em sua intensa concentra­
ção, Franzus se apercebe da agitação e dos ânimos que se exaltam. Continua
com insistência ainda maior:
— Quando isso for feito, quando forem levadas em consideração as coisas
fundamentais, estou certo de que as realidades da existência humana fícarâo a
descoberto. E então, o ateísmo inicial será eliminado. Por essa época, novas
estruturas de vida humana - para o indivíduo, para a família, para a cidade,
para o estado, para a nação, para todas as nações —terão surgido. E essas es­
truturas abrigarão adequadamente o espírito de religiosidade do homem. Ou­
vi-me! Nenhum de vós, meus Irmãos, é tão tolo a ponto de imaginar que to­
dos os homens e mulheres terão que ser convertidos à verdadeira fé e à mais
elevada virtude, antes de transformarmos os regimes políticos e sociais que os
oprimem. Ou imaginais?
Há um zangado desafio, partido do fundo da assembléia do Conclave:
— Que é que o Cardeal Stephinac ou o Cardeal Mindzenty diria hoje a
você, Franzus? Que é que ele diria, diga-nos?
Franzus olha para a direção de onde vem a voz:
— Bem, qual de nós aderiu à política do Papa Paulo VI? Ele recebeu o
Primeiro-Ministro Kadar no Vaticano, sabeis? Eliminou o vosso Mindzenty!
Não achais que a minha atitude é igual à de Paulo VI?
Vasari pôe-se de pé, trovejando:
— Ninguém aqui aprovou a Ostpolitik do Santo Padre precedente. - E
Riccioni apoia Vasari, assobiando por entre os dentes —um velho hábito do
Conclave para significar aprovação.
— Pois que seja isso, meu Irmão. Garanto-vos, não estou menosprezando
os Cardeais Mindzenty e Stephinac. Deixai que diga a esses Veneráveis Irmãos
cujas vozes vibram de dor, eu também sei tudo sobre as prisões comunistas,
tudo sobre a opressão comunista, sobre os métodos de interrogatório e de ob­
tenção de informações. Sei tudo sobre isso. —A voz de Franzus é tão vibrante
e tão profunda que há um imediato silêncio. Eles agora vêem lágrimas em suas
faces. O homem está realmente chorando. —E se algum dos meus Veneráveis
Irmãos tiver estômago para isso e se as regras da decência permitirem, eu lhes
mostrarei, em particular, algumas recordações vivas de um chicote comunista
e de uma torques comunista. O chicote, eles perceberão, tem a largura de
meia polegada. A torquês abre até a amplitude de duas polegadas. - Faz uma
pausa. Está prendendo a atenção de todo mundo. Ergue de novo os olhos
avermelhados para os Cardeais. —Como estou dizendo, sabemos o que é so­
frimento. Sabemos! Vosso catálogo de torturas e castigos comunistas é alta­
mente incompleto, comparado com o nosso. - Dessa maneira indireta, Fran­
zus está tentando dizer a Vasari e a todos os outros que eles não podem com­
preender Stephinac ou Mindzenty e que não podem compreender os seus mo­
tivos. —Contudo, a propósito, eu gostaria de saber que tipo de comparação
271
um historiador poderia fazer. Sim, certamente, os estados marxistas acumula­
ram doloroso volume de aprisionamentos, assassinatos, massacres, calúnia, iso­
lamento, tortura, escravidão da mente, a penalidade da morte viva —e tudo
isso sabemos que é a verdade. Imagino se poderíamos talvez comparar todo
esse Gulag de agonia com o anterior Gulag de agonia que foi imposto pela
Igreja, e pelos cristãos, em nome da Igreja, Aos muçulmanos. Aos judeus.
Aos hereges. Nas chamadas caçadas ás bruxas, Nas guerras religiosas. Na cris­
tianização da Europa por Carlos Magno, matando milhares de pessoas de uma
só vez, porque se recusaram a aceitar a conversão. Na escravidão dos negros
africanos, dos índios latino-americanos — e parte disso em passado recente,
reparai... —A voz de Franzus ressoa, agora.
— E como os cristãos se devoraram uns aos outros, em seu ódio recípro­
co! Os massacres da Guerra dos Trinta Anos. O canibalismo na Pomerânia,
durante essa mesma guerra. A morte dos camponeses católicos da Irlanda, pe­
la fome. Não há necessidade de prosseguir. Mas, algum teólogo cristão oficial
condenou a cristandade por causa de tudo isso? Aqueles que o tentaram —um
Savonarola, um Huss, outros - vós sabeis o que aconteceu a elesl E lembrai-
vos também dos suaves estudiosos que liquidamos, simplesmente porque esta­
vam â procura da verdade —um Giordano Bruno, por exemplo, que queima­
mos vivo, porque disse que a terra era redonda. Não, não vamos comparar Gu-
lags!
— Vamos, antes, falar daquilo que o marxismo se propõe a destruir. Nu­
ma palavra, o homem burguês —sua sociedade, seu capitalismo, sua prostitui­
ção da religião para lucrar, seu elitismo, sua indiferença pelos semelhantes. E
sejamos bem claros quanto ao que queremos significar como homem burguês;
e vejamos sua tendência inata à blasfêmia profunda.
Uccello, com o rosto vermelho e os braços se agitando, não pode mais fi­
car quieto:
— Falais de blasfêmia, Eminência! Falais de blasfêmia! - E além, do lado
oposto a ele, está o Cardeal Tucci, de voz trêmula:
— Será que continuaremos assim, Eminências, ouvindo tudo que é verda­
deiramente adorável ser degradado por um dos nossos, sobre cujas intenções
nós —alguns de nós —temos dúvidas? Será que continuaremos?
— Meus Irmãos, eu vos disse, alguns momentos antes, que por trás da
resposta simples que tenho dado a tantos que perguntam se cristãos podem
aceitar o marxismo, por trás da resposta simples está uma análise franca
do passado, assim como uma avaliação igualmente franca do presente e do
futuro do mundo, e da Igreja de Jesus. Agora vos pergunto: permitíreis que
eu partilhe isso convosco, Irmãos? —Alguns gritos de “7fa” recebem a per­
gunta. E, então, Franzus prossegue: ganhou a oportunidade de expor sua
causa:
— Vamos examinar, portanto, o homem burguês que perturbou tanto o
272
meu Senhor Ucceilo, um instante atrás. Porque, gostando ou não, a questão
que temos diante de nós é precisamente o homem burguês, o homem cristão
burguês. O traço essencial desse homem é a convicção de que tudo em torno
dele está articulado para a exploração da natureza, para o avanço da tecnolo­
gia e para a utilização de todas as forças existentes em nosso mundo a fim de
multiplicar dinheiro para uso e gozo desse homem burguês.
— Não digais a mim que esse é um enfoque cristão! Ou mesmo um enfo­
que humanista, adequadamente humanista! No entanto, esse é precisamente
o tipo de ser humano e o tipo de civilização que a cristandade produziu. Nos
conceitos dos teólogos e na argumentação dos filósofos, de Tomás de Aquino
a Rousseau e até Karl Marx, o sobrenatural foi usado para a exploração da na­
tureza e de nosso semelhante.
— E esse uso, essa exploração, foram levados a tal ponto que a própria
Igreja estabelecida, e a própria civilização que ela estimulou e criou e mante­
ve, se impregnaram da idéia de alienar o homem de seu mundo. De submetê-lo
às exigências cruéis das coisas materiais —à perda ou à falta de tais coisas, ou
à escravidão a elas - em benefício dos lucros de uns poucos. E a liderança da
Igreja de Cristo foi colocada nas mãos, ou pelo menos à disposição, desses
poucos burgueses —os reis, os príncipes, a noblesse e o ancien régime, os dita­
dores, os Bourbons, os Hohenzollems e todo o resto. E hoje está à disposição
dos ditadores e das corporações internacionais e dos monopólios financeiros.
— Não vos enganeis quanto a isto: esse velho mundo cristão, o ancien ré­
gime, com sua sociedade em três camadas —clero, nobreza e classes trabalha­
doras —serviu a um propósito. Houw tempo em que foi organicamente ade­
quado ao mundo todo, porque todos estavam unidos por laços de lealdade,
fidelidade, serviço, fé, autenticidade. Todos valores velhos e belos. E altamen­
te personalizados.
— Mas, como Marx percebeu, cruas forças históricas arrebentaram esse
mundo, principalmente uma: a ascensão da classe mercantil e industrial nos
anos 1800 e 1900. E então, essa enorme massa de trabalhadores produziu
para os poucos. E o clero, a Igreja, estava alinhado entre os poucos. E entre
esses poucos e a classe trabalhadora agora não havia lealdade ou fidelidade,
nada de pessoal —mas apenas o contrato de trabalho. Em lugar da economia
medieval, havia agora o regime capitalista: juro, empréstimo, investimento de
capital, margens de lucro, exploração dos recursos naturais e a escravidão da
fábrica e do sistema de produção em massa. Nós aceitamos tudo isso, vós sa­
beis, Irmãos! Nada personalista. E a cristandade aceitava essa situação!
— E, finalmente, as massas —essas massas inertes, obedientes, sofredoras
- começaram a se mexer. Por uma necessidade irresistível, histórica, começa­
ram a se mexer. Desse modo, o iminente dinamismo do comunismo pôs-se em
ação. A voz dele foi dada por um Marx, por um Engels, por um Lenin. E re­
parai bem —porque isso é um fato histórico brutal, quer gostemos dele quer
não: qualquer que tenha sido a liderança do Espírito de Cristo que um dia
273
repousou entre as mãos cobertas de jóias e sobre as cabeças coroadas dos prín­
cipes* essa liderança passou para o proletariado. Qualquer caráter messiânico
que por tão longo tempo tenha cabido às classes dominantes, esse caráter mes­
siânico deixou de ser delas. Passou —se passou a alguma parte —ao proletaria­
do.
— É claro, isso é assustador. Para nós, os míopes que somos! Porque não
podemos ver o que é transcendente, nada daquilo que chamamos de Espírito.
Só vemos a realidade histórica, separada de qualquer transcendência. Mas isso
é porque, em toda a nossa vida, nunca encarnamos o Espírito de Jesus.
— E agora houve e há essa assustadora descida, esse recuo à essência pri­
mordial e concreta da vida humana, para dentro do materialismo das diretri­
zes políticas, o materialismo dos valores, o materialismo da política, da socio­
logia, da arte, da música. Por quê? Porque não há outro caminho de libera-
ção!
Enquanto Franzus mergulha em sua argumentação, um pequeno drama
está>se desenrolando entre seus ouvintes. Cada frase dele pareceu provocar ir­
ritação cada vez maior entre alguns Cardeais, Domenico, que estivera sentado
impassível, desde o começo, toma consciência da agitação crescente. Em parte
com gestos tranqüilizadores, em parte com palavras, de vez em quando escre­
vendo pequenos recados, consegue impedir qualquer interrupção. Porque Do*
menico quer que Franzus diga tudo que tem vontade. De uma vez por todas,
os Eleitores em conjunto precisam ouvir, com seus próprios ouvidos, uma ex­
planação, o mais ampla possível, de um ponto de vista e de uma política que
já conquistaram grande voga entre católicos romanos, tanto leigos como cléri­
gos.
Franzus parece alheio a qualquer perturbação e, completamente empol­
gado pelo drama de sua visão, continua sem se interromper:
— E agora o proletariado é o portador de uma missão nova, a mãe de
uma nova liberação, a vítima messiânica e o portador das novas. Como a
maioria que ocupa o mais baixo degrau da escada, o proletariado está em
movimento, em toda parte. E o marxismo tornou-se a fagulha necessária para
inflamar-lhe a criatividade. Esta é a realidade histórica de nossos dias.
— Não há dúvida sobre isto, Veneráveis Irmãos - esse proletariado irá,
em sua marcha, conduzir a uma ressurreição, quanto ao nosso passado morto
e ao nosso materialismo. Através dela, teremos a libertação total de nosso Gu-
lag burguês. Veremos o tempo humano cortado em duas partes, e o Calvário
de Jesus terminado numa genuína ressurreição, para todos os homens e mu­
lheres. E Marx encontrar-se-á com Jesus, no Omega final, quando o espírito
humano se erguer da lama e do limo fundamentais de nosso materialismo.
— Não jogueis fora, meus Irmãos, não jogueis fora levianamente —ou
por medo — o que se traduz no movimento de dois terços da humanidade.
Seria, de vossa parte, um novo maníqueísmo. Por que então, com o nosso
274
Deus cristão burguês, estaríamos nos defrontando com outra divindade irre­
conciliável e oposta, as massas.
— Que é que há de bom no marxismo, perguntais? Eu respondo: aquilo
que há de bom em vosso cristianismo. Porque o marxismo tem muita coisa do
verdadeiro cristianismo. E se um é bom, o outro tem que ser bom.
— O comunismo busca a integração dos indivíduos com o grupo, com a
humanidade. E isso é o que fazem os cristãos genuínos.
— O comunismo apregoa que o sistema econômico de produção e distri­
buição de bens e serviços tem uma importância essencial para a vida do grupo,
sua cultura, seu humanismo, suas crenças. É isso que entendem os cristãos
genuínos.
— O comunismo diz que foi o capitalismo burguês, abençoado e fomen­
tado pela Igreja, que desenvolveu o caráter usurário desse capitalismo, do qual
derivaram todos os males do nosso mundo —a pobreza, a fome, as guerras, o
colonialismo, as escravidões, o tráfico de drogas, o fascismo, os regimes dita­
toriais. É isso que dizem os cristãos genuínos.
— O comunismo afirma que o capitalismo cristão, e somente esse siste­
ma, nos 12.000 anos de cultura registrada, deu origem às guerras de classes —
todas sancionadas pela Igreja, no passado recente. É isso que afirmam os cris­
tãos genuínos.
— O comunismo diz que, na transformação da família, o homem e a mu­
lher serão economicamente iguais. A esperança comunista de um paraíso de
alegria e liberdade baseia-se nessa igualdade. 0 cristão genuíno quer a mesma
coisa. O cristão genuíno rejeita o chauvinismo, a hipocrisia e a crueldade do
casamento burguês.
— O homem burguês, com sua opressão, sua piedade, sua anarquia, é pa­
ra os comunistas objeto de ódio. É também odioso para os cristãos genuínos.
Sem tomar conhecimento dos gestos de Domenico para que permaneça
quieto, Riccioni foi até ele para uma consulta em voz baixa. O rosto de Ric-
cioni é um quadro de indignação. Depois de alguns minutos, ele volta a seu
lugar, cruza os braços sobre o peito, fecha os olhos e espera. Mas, então, há
um grito vindo da esquerda de Franzus:
— Que foi? Que foi que disse o meu Reverendo Irmão?
Tucci está de pé:
— Qual será o fim de toda essa marcha através do materialismo e do
ateísmo, que estais fazendo esforços para santificar?
— O propósito final, o fim último de tudo isso? Numa palavra, meu Emi­
nente Irmão e Cardeal, é o seguinte: transfigurações. Homens e mulheres, sa*
bendo que a graça de Jesus os modificou, trabalharão juntos, para tornar rea­
lidade e efetuar a mudança universal...
— Um exemplo, Vossa Eminência, —interrompe Tucci asperamente, mal
disfarçando sua ira, - um exemplo concreto, por favor, desse estranho mila­
gre do ateísmo!
275
— Quereis um exemplo? Por bem mais de quinhentos anos, a Igreja nos
tem dado ensinamentos sobre a dignidade do homem e sua divina vocação
para um nobre destino. Bem, suponhamos que paremos de falar nisso. Supo­
nhamos que, em vez de falar, insistamos para que todos os homens e mulheres
tenham dignidade e possam seguir tao alta vocação? Como fazer isso? Preci­
samos ter certeza de que cada pessoa dispõe de comida e bebida, de roupas,
de um lugar em que viver, de trabalho para fazer, de cuidados médicos e assim
por diante. Aí está um exemplo concreto para Vossa Eminência!
— A Igreja tem insistido nisso e tem dito... —é o Camerlengo que se le­
vanta, interrompendo sem aviso, obviamente pretendendo atormentar Fran-
zus. Mas Franzus, por sua vez, o interrompe:
— Ninguém, nos subúrbios do Brasil, nos barracos que cercam Lima, Ca­
racas, Algéria; ninguém no Haríem, em Nova Iorque, nos cortiços de Barcelo­
na; no Sahel, em Calcutá, em Bombaim, acredita no que dizeis, Eminência.
Oh, não é que não sejais sincero. Quero dizer, nas palavras. Mas as ações que
aprovais desmentem vossas palavras! E, como eu digo, eles não acreditam em
vós, lá no meio das massas de povo sofredor. Simplesmente não acreditam, em
absoluto, em vós. Sabem que a coisa é diferente. Vós podeis acreditar em tu­
do que dizeis, se isso vos faz feliz, Eminência. Mas isso é tudo —vás fazendo
feliz a vós mesmo.
Ninguém jamais se dirigira ao Camerlengo nesse tom e com tão brutal
referência direta. O Camerlengo senta-se. Franzus agora tem pela frente An-
tonello, que está com permissão para falar.
— Todos nós vimos, uma e muitas vezes, que a primeira coisa que os co­
munistas fazem é derrubar a cruz, Reverendo Irmão!
Franzus nada diz, por um momento. Depois fala a Antonello com sua­
vidade:
— Reverendo Cardeal, se eles nffo a derrubassem, nós deveríamos fazer
isso. Nós! Nós deveríamos! Como é que ousamos, nós que nos declaramos ser­
vos do Padre Carpinteiro, como é que ousamos usar uma jóia em nossas cruzes
peitorais, ou em nossos anéis! Como é que ousamos usar o ouro ou a prata
em nossos cálices e cruzes e báculos, quando um bebê —um, estou dizendo —
sua voz se eleva, num brado de protesto, —um bebê está morrendo com a
barriga inchada e os membros esqueléticos, num monte de lixo em Karachi!
Como ousamos! —Antonello senta-se, a cabeça curvada. Não pode enfrentar
esse tipo de discussão.
— Voltando ao meu tema principal, para terminar. Compreendo, Emi­
nentes Irmãos, compreendo todos os vossos temores. Acreditai em mim. Mas
precisamos caminhar com este movimento das massas, e caminhar sem medo.
Já não é mais possível, para a Igreja de Cristo, entrar em acordos. Precisamos
não ter mais nada a ver com a idolatria capitalista da riqueza. Nossos primei­
ros ancestrais cristãos não puderam entrar em acordo com a idolatria dos
romanos. Nem podemos nós, seus descendentes católicos, fazer acordo com
276
esta idolatria. Temos que abandonar todo esse cortejo de apetites que nos
leva a guardar, a tomar posse, a acumular. Temos que deixar para trás todo
o arcabouço de valores sobre o primado do dinheiro e a necessidade de lucro,
que nos foi legado pelo nosso finado mundo cristão e por seus fmados criado­
res.
— Homem algum cose um remendo de fazenda nova numa roupa velha,
disse Jesus. E ninguém derrama vinho novo em velhos odres. Nossa civiliza­
ção e todas as nossas estruturas de estado e cidade são nada mais do que
uma roupa velha e usada. Nossas estruturas de Igreja e família sáo odres ve­
lhos. Essa roupa velha só mostra a nossa vergonha. Os odres podem fazer de­
sandar o, vinho; e o vinho do precioso sentimento humano foi drenado do
interior deles. Precisamos procurar novos odres para nosso vinho novo, uma
roupa inteiramente nova, para cobrir a nudez e a miséria da Humanidade.
Porque, certamente, este é o primeiro significado da salvaçfo de Jesus.
As palavras finais de Franzus, a maneira hábil com que, no geral, enfren­
tou qualquer aparte perturbador e o tom de súplica misturado ao que nin­
guém duvida que. seja a sua piedade - tudo isso, ao que parece, produziu um
profundo efeito entre os Eleitores. Nffo há falatório. Mas cada Cardeal parece
estar falando com seu vizinho. Durante as palavras finais, até Koi-Lo-Po co­
meça uma conversazinha particular com seus dois co-Presidentes.
Faz-se silêncio, de repente, e Koi-Lo-Po percebe que os Eleitores estão
esperando que ele anuncie o orador seguinte. Numa voz mais alta que a co­
mum, como para compensar pela sua falha, apresenta:
— Meu Reverendíssimo Senhor Cardeal Thule!

Thule esperara tranqüilamente a proclamação, sem se mexer do lugar até que


a mesma foi feita por completo e até que um aplauso discreto saudou o
anúncio de seu nome. Depois de uma caminhada vagarosa e de uma prece
demorada junto ao Altar, fica de frente para os Eleitores, o rosto franco, o
olhar grave, o tom solene. Há uma certa majestade em toda a apresentação de
Thule e ela impressiona todo mundo. A majestade. E a sinceridade.
— Cabe a mim, Veneráveis Irmãos, explicar-vos o mais breve e o mais
claramente possível, as linhas essenciais, os traços dominantes, por assim di­
zer, da Igreja e do Papado, tal como nós os vemos. Por “nós” quero significar
aqueles de nós que consideram necessárias a oposição à lista de candidatos da
Política Geral — e que acham, acima de tudo, que precisamos nos opor aos
fundamentos e pressupostos expressos na Política GeraU como constituindo
a base sobre a qual qualquer candidato válido dessa Política ficaria obrigado,
ex-officio, a trabalhar e a governar a Igreja de Jesus.
— Acho que as francas, embora perturbadoras, palavras dos meus Emi­
nentíssimos Cardeais Lynch e Franzus deixaram extremamente claro que
nós, como herdeiros da Igreja da Idade Média, da Renascença e do Duminis-
277
mo, temos um débito em relação a todos os cristãos. A eles devemos um ato
de desculpa. A eles devemos um reconhecimento franco de nossos erros pas­
sados. E a eles devemos, no futuro, um serviço cheio de fé. Devemos isso à
humanidade, em nome de Cristo!
Thule faz uma pausa. Alguns cardeais pensam ver lágrimas a encher-lhe
os olhos, e é certo que, quando recomeça, sua voz tem um tremor profundo,
como se, ao falar, ele mal esteja contendo alguma emoçáò poderosa:
- Quando penso nos conceitos do santo, do sagrado, do profano, do se­
cular, de Deus, do homem, que têm sido a moeda corrente no mundo cristão,
e quando penso nas maldades perpetradas contra a Humanidade, contra ho­
mens, mulheres e crianças - em nome desses conceitos. Sim! Eu choro por
causa disso. Mas, minhas lágrimas e minha emoção também constituem o
começo de uma alegria profunda. - Olha em torno, para os rostos dos de­
mais, estudando as expressões de cada um. - Porque entre nós, em nossas
mãos, através de nossas mentes e de nossas vozes aparece uma leve abertura,
uma esperança de salvação.
- O mundo será sempre mau e profano. Nós somos os guardiães do sa­
grado e do santo, em meio e essa maldade. - Tucci dirige-se a Thule muito
zangado.
- Mas isso náo é cristão, —responde Thule, pronunciando cada sílaba
clara e cortantemente, como as pancadas de um machado. —O santo náo é
puro e o sagrado é simplesmente impuro. Isso náo é verdadeiro ensinamento
cristão, nem verdadeira teologia. Isso é judaísmo. Isso é paganismo. O que
quer que prefirais. Mas nío é cristianismo! Isso é uma negação da Encarna­
ção. Porque Jesus se fez homem, se fez parte deste universo - e este é todo
santo, é todo sagrado. Jesus interiorizou tudo...
- A julgar pelas vossas observações, — Tucci está falando de novo, -
reduziríeis Jesus ao status de pronto-homem! O espírito nunca é confundi­
do com a matéria. Ambos sãò completamente separados. O Todo-santo vive
neste mundo de maldade.
- E vós, meu Irmão, reduziríeis o cristianismo a um formalismo judai­
co de puro e impuro. Farieis da piedade uma coisa física e adoraríeis um ele­
mento social, como os pagãos gregos e romanos! —Thule continua firme.
- Nós, como Jesus e Paulo, nío podemos pertencer sempre a este mun­
do. Estamos neste mundo numa peregrinação! - Tucci está irritado.
- Cristãos! Somos cristâòsl E acreditamos que Cristo renovou todas as
coisas; acreditamos que a bondade de Deus está aqui, com os filhos dos ho­
mens...
- E, conseqüentemente, Meu Senhor Cardeal náo faz distinção entre o
temporal e o espiritual? - agora é Bronzino, que náò é famoso nem pelas in­
tervenções nem pelas lutas verbais. Thule volta-se e encara Bronzino.
278
— Se alguém nos pode dizer a diferença entre o temporal e o espiritual,
entre o físico e o metafísico, - diz Thule brandamente, - é o Meu Senhor
Sergio Bronzino. Afinal de contas, ele teve essa experência em Washington,
ele e sua família, — Silêncio incômodo. A referência não escapou a ninguém.
0 rosto de Bronzino está vermelho de cólera, e ele comove Koi*Lo-Po.
— O Eminente Cardeal Thule, por favor, evitará comentários que firam a
caridade e a união fraternal, - o Presidente admoesta Thule.
— Uma advertência que se aplica a todos nós, a todos nós. —Thule range
as palavras. — Bem, é claro, concordo em que há uma distinção entre o tem'
poral e o espiritual. Cada um constitui uma atividade diferente. Ambos visam
ao Reino de Deus...
— E o Príncipe deste Mundo! - Riccioni levanta*se, falando calmamen­
te, com o ar de um espadachim emérito apresentando a ponta de sua lâmina
à garganta de um adversário. - Foi ele convertido, esse Príncipe do Mundo
que Jesus condenou tão violentamente? Ou foi ele também divinizado, Emi­
nência? - Tem sido argumentado por Riccioni e os tradicionalistas que Thule
e os “novos teólogos” agem como se o Demônio, o “Príncipe deste Mundo”,
se tivesse tomado bom e já não mais tentasse os seres humanos.
Thule faz o sinal da cruz, com um ar penitente, mas prossegue, corajoso:
— Veneráveis Irmãos, não admitiria que vos enganásseis com o que quero
dizer, nem que me ouvísseis com temor. A Igreja é santa. O mundo não o é.
O inundo só é santo até o ponto em que é mais do que mundo, em outras pa­
lavras, até o ponto em que é admitido na encarnação de Cristo. E aquilo que
Cristo começou nós temos que completar. Seria uma grosseira traição a nossa
raça e a nosso mundo, se não fossemos capazes de perceber que os valores do
Evangelho penetram toda a existência humana, que esses valores estão repro­
duzidos nas ordens sócio-polítíca, cultural e pessoal da sociedade humana.
Agora há outra interrupção. Couíinho, da Ásia, sabidamente aliado de
Ferro, um dos papabili conservadores, conseguiu permissão para falar:
— Então, que é que está nosso Eminente Irmão propondo, que seja novo,
ou diferente, ou esclarecedor? Poderia, por favor, Sua Eminência nos dizer
qual é o Reino de Deus, de acordo com seu pensamento? E qual é o arcabou­
ço de idéias sobre esse Reino, de acordo com o qual deveríamos eleger o 264?
sucessor de Pedro, o Apóstolo?
Thule responde sem hesitação:
— Direi ao Meu Senhor Cardeal Coutinho e a vós todos, Irmãos. O Reino
de Deus é o reino que está por vir. Não deve ser confundido com este mundo,
este universo material, com sua sociedade humana e seu Príncipe. O Reino de
Deus está por vir. E nós, aqui nesta terra, temos que construir na direção dele.
Mas não devemos —não podemos, seria uma blasfêmia dizer que devemos —
não devemos nos empenhar em fazer deste mundo, ele mesmo, o Reino de
Deus.
— O que devemos fazer, podemos fazer: trabalhar para transformar o re­
279
gime social do mundo, o regime político do mundo, dessa maneira fazendo
desse mundo um lugar de vida humana verdadeira e completa.
— Eu acho, - Riccioni intervem, - se Sua Eminência me permite uma
palavra. Nós deveríamos nos lembrar de que a tarefa da Igreja é salvar almas.
Vezes sem conta aprendemos, através de nossa própria história, que a ativida­
de sócio-política corrompe os propósitos espirituais da Igreja. Ora, se a dolo­
rosa rememoração que o Meu Senhor Franzus fez de alguns dos tempos ne­
gros de nossa história significa alguma coisa, significa isto!
— Nâo, Eminente Irmãfo! Nío! —Thule está seguro, na enfática repulsa
ao que o Cardeal está dizendo. —Todo esse mundo medieval, essa velha cris­
tandade, esse mundo cristão, como salientaram meus Eminentes Colegas, es­
tio no fim. O propósito, então, era criar um sagrado império de Deus e de
Cristo sobre todas as coisas —homens, mulheres, famílias, dinheiro, nações,
política, estruturas sociais, arte — tudo. E, por mais de 1.600 anos, empe*
nhou-se a Igreja em trazer até aqui o sobrenatural e em fazê-lo parte e parcela
deste mundo e em fazer com que todas as coisas temporais —água e vinho, a
espada e a cruz, a política e a regra do governo —fazer com que todas essas
coisas servissem a um império sagrado, tomando-as instrumentos desse império
sagrado.
— Sabeis o resultado tSo bem quanto eu, meus Eminentes Irmfos. Sabeis
que, assim, nós cristSos vinculamos o ofício de Pedro ao ofício do ditador, o
ofício do pastor ao do soldado, o ofício do padre ao do carrasco, o ofício do
dispensador da graça ao do financista e corretor...
— Isso é exatamente o que estou dizendo, Eminência, —interrompe Ric­
cioni em tom glacial. —Desse modo corrompemos nossa filosofia. Tudo que
estais propondo é uma mudança de elenco...
— Fizemos pior. Geramos um racionalismo que desprezou tanto o ho­
mem que removeu Deus de sua presença. E produzimos uma revolução que
divinizou tanto o homem que removeu Deus de toda a criação. Nós somos o
verdadeiro pai de Descartes e de seu agnosticismo? De Marx e seu ateísmo! De
todos os racionalistas! São Boaventura disse bem, quando declarou ao seu To*
más de Aquino que ele era o pai de todos os hereges!
O Presidente tosse discretamente:
— Vamos todos deixar que o nome de São Tomás permaneça abençoa­
do.
— Agradeço ao Meu Eminentíssimo Senhor Presidente. —Thule inclina-
se amavelmente na direção da grande mesa. —O que agora precisamos ver che­
gando e a coisa pela qual devemos trabalhar afincadamente é uma nova cris­
tandade. Nela, o temporal nffo fica subordinado ao espiritual. A Igreja perma­
necerá desligada de toda responsabilidade quanto à administração e ao traba­
lho do mundo, em termos temporais. Mas, em sua consciência, cada cristão
está comprometido a trabalhar por uma nova ordem temporal.
— Que nova ordem, Eminência? —interrompe UcceÜo.
280
— Ela já está aqui. Incipiente, mas aqui.
— Se é assim, —objeta Nobili. —é ela uma e a mesma ordem da Igreja?
— Os cristãos não procurarão mais estabelecer uma unidade de crença e
de pensamento, uma unidade de estruturas intelectuais e políticas. Nem usa­
rão eles qualquer meio temporal para forçar o homem a uma unidade de es­
pirito. Nem se esforçarão eles por estabelecer estruturas sociais e jurídicas de­
dicadas a difundir a redençffo de Cristo.
Tucci põe-se de pé outra vez e Thule concede-lhe a palavra:
— Vossas Eminências podem estar tão confusas quanto eu, a esta altura.
Conhecemos o mundo cristfo que a Igreja criou num período de mais de mil
anos. Devemos, agora, depreciar esse mundo? Devemos condená-lo?
— Sim! —Uccello agora está de pé. —E temos, então, que capitular dian­
te de um mundo em que, estão-nos dizendo, de alguma forma o bem-estar de
cada um será objeto de consideração, muito embora aparentemente não haja
orientação moral para a vida cotidiana, se é que compreendo corretamente o
nosso Venerável Irmão Cardeal.
— Nesse mundo que tanto amais, nesse Reino de Cristo, o Reino de que
vos sentis tSo saudoso, — Thule tem o completo controle de seu próprio pen­
samento, —nesse mundo, para se avaliar qualquer coisa —gente, coisa, lugar,
ação —tudo era, como eu disse momentos atrás, comparado a alguma medida
estranha aos homens e mulheres, exterior aos seres humanos. Nesse mundo,
éramos bons quanto a arquitetar leis de produção material, taxas e métodos de
progresso tecnológico, normas para utilização de matéria-primas naturais*a
fim de criar riqueza, de aumentar a riqueza. E, desse modo, havia e há rique­
za para alguns e apenas sofrimento e penúria para a maioria. E, sobre esse
mundo, reinaram o Papa e sua Cúria. E se chamais a isso cristão, se esse é.o
vosso Reino de Cristo, então o vosso Reino não é o do Céu e vosso conceito
de vida cristã nada tem a ver com o Evangelho de Cristo! E houve uma vez, no
mundo cristão, em que toda autoridade nesse Reino —na Terra - estava cen­
tralizada no Papado.
— Não vejo, — Bronzino, de seu lugar, entra na discussão, —como a cris­
tandade possa mudar sua antiquíssima crença de submissão à autoridade cen­
tral do Papa. —Senta-se de novo.
— Então procurai ver, Irmão! Na nova cristandade, no mundo em dire­
ção ao qual nós e o futuro Pontífice, junto com toda a sua Igreja, precisamos
dedicar nossos esforços, nós cristãos não procuraremos mais desenvolver, e
muito menos impor, uma doutrina comum e uma unidade de crença. Nem
mesmo insistiremos num mínimo de doutrina teórica. Porque o que parti­
lharemos com esse mundo é um trabalho de transformação do regime sócio-
político. De modo que possais dizer que temos em comum com todos os ho­
mens um problema de ordem prática, não um problema cristão, mas um pro­
blema sócio-político, a ser resolvido pelos cristãos juntamente com todos os
281
outros homens de boa vontade — e a grande maioria dos homens é de boa
vontade!
— Então, devemos nos tomar apenas assistentes sociais e cientistas po­
líticos? — O sangue de Riccioni está esquentando outra vez. —A Igreja não
conseguiu já a resposta, nos seus ensinamentos apostólicos, em seus princí­
pios? Se renunciarmos a isso, não seremos um estado-nação sem uma na­
ção? Não somos apenas um órgão de serviço social?
— Não, Eminente Irmão, não estou dizendo isso. Isso seria ser simplório.
Seríamos simplórios se aceitássemos hoje esse papel. Seríamos simplórios com
o dogmatismo dos tempos medievais. Precisamos ser realistas. Precisamos ver
o trabalho humano a ser realizado. Na verdade, a graça divina e o amor divino
passarão através de nós e através do tecido perecível de nosso mundo. A graça
divina inundará nossos instintos, nosso trabalho, nossos dias, nossas vidas, o
universo inteiro.
— A obra de um cristão consiste em cultivar a santidade! —Objeção de
Tucci.
— Mas isso é porque fazeis uma falsa distinção. Ficaríeis satisfeitos con­
vosco quanto a estardes sendo bons cristãos se praticásseis obras de caridade,
comemorásseis os dias fastos de Cristo, da Virgem, dos Santos, dos Mártires,
defendêsseis os bens materiais da Igreja. Achais então que tendes cumprido
todos os deveres da Cidade do Homem e da ordem temporal das coisas, nes­
te nosso mundo.
— Mas não tendes! Simplesmente tendes embrulhado muito bem a Igre­
ja e a tendes depositado num canto, deixando o mundo num outro canto. E,
assim, deixais que o mundo vá para o Príncipe deste Mundo e para o seu In­
ferno. E tendes pecado. Certamente contra Deus. Mas, antes de tudo, contra
vossos irmãos e irmãs, homens e mulheres que são bons, que merecem o que é
bom, que precisam de liberdade e das bênçãos do bem-estar material para pro­
curarem o Reino de que tanto falais e de forma tão esplendorosa!
~ Separar a Cidade de Deus e a Cidade do Homem é farisaísmo moral.
Sacrificais o humano ao divino. Não é de admirar que tenhamos gerado o cí­
nico Maquiavel, que sacrificou toda a moralidade; e os Papas guerreiros e os
guerreiros pontifícios, que sacrificaram o humano pelo que temos de divino
—ainda se tivessem tido esse bom motivo! E não é de admirar que tenhamos
dado origem a tantas heresias.
— Dizei-nos então, Eminência, — Domenico está perguntanao em seu
tom suave habitual, —qual é a ordem sócio-política que tendes em mente?
— Que ordem sócio-política? Uma em que não haja disparidade de clas­
ses sociais, pelo menos. Uma que seja constituída por estruturas sociais intei­
ramente novas, que permitirão maciça diversidade. Uma que encoraje e tra­
balhe pela autonomia administrativa e política das unidades regionais. E isso
de maneira tal que a política, a sociologia da família e da cidade e do estado
estimulem uma concepção da vida completamente personalista...
282
— Uma raça de egoístas? É isso? Ou uma raça de formigas humanas? É
isso? - Tucci fala com desprezo.
— Não! Mas, certamente, um socialismo personalista que seja democrá­
tico!
— Será ele também santificado pela religião? —Tucci está, evidentemen­
te, atacando Thule. —E que é que quereis dizer com essa palavra quase vul­
gar “personalista”, que não significa pessoal —ou significa?
— Acreditamos que qualquer criatura de Deus é santa —precisamente
porque Cristo de fato morreu por nós. Agora, quanto aos termos “persona­
lista” e "personalístico”, eu os aprendi nos trabalhos do Papa Pio XII, E, pa­
ra vosso governo, o Papa usou esses termos para significar tudo aquilo que
salvaguardava a dignidade da pessoa humana.
— Mas, — intervém Riccioni, — como sabeis, os comunistas usaram es­
se termo com sua própria conotação. Toda essa tolice de novo!
Domenico participa agora com uma pergunta moderada, mas perigosa:
— E que base econômica imaginais para vosso novo socialismo?
— A base econômica? Um sistema econômico fundado em alguns princí­
pios simples, mas de grande alcance:
— Um —que promovamos um rompimento completo, uma violenta rup­
tura com o sistema capitalista burguês da democracia ocidental. Esse sistema
gasto funda-se nas políticas elitistas e monopolistas da Revolução Industrial.
É um resíduo do passado. E perdura ou desmorona por sua economia de explo­
ração, na qual o dinheiro e a obtenção do lucro são primordiais —são tudo.
— O proletariado, até aqui, teve que consentir em trocar seu trabalho
por um salário —assim se privando de uma base de valor para sua dignidade.
Da maneira como vemos o futuro, esse proletariado não será mais sobrecarre­
gado com essa condição, que reduz a acumulação de seu valor e o estabeleci­
mento de sua dignidade. Sem a fertilização do dinheiro a expensas do traba­
lho operário, o capitalismo definhará.
— Dois —o novo regime sócio-político porá por terra a máxima funda­
mental do capitalismo, que diz: nada receberás em troca de nada. E que diz:
para conseguires alguma coisa, tens que ter alguma coisa. Para derrubar isso,
digo que deveremos tomar espantosamente verdadeiro que todos os homens
e mulheres tenham alguma coisa em troca de nada! Tenham o maior número
possível de coisas em troca de nada! Tenham, pelo menos, um número sufi­
ciente de coisas boas, de coisas necessárias!
— E onde está, então, o mandamento bíblico para trabalhar, para ganhar­
mos nosso pão com o suor de nosso rosto? v- Domenico continua na perse­
guição.
— Esse tipo de moralidade social parece ser apenas um amontoado de
coisas úteis, coisas convenientes, coisas vantajosas, coisas bem-sucedidas, to­
das elas amarradas com o cordão dos motivos de ordem prática. Mas nós ad­
vogamos um realismo espiritual baseado num regime de unidade espiritual.
283
— E que tipo de Igreja ireis permitir que tenhamos? - pergunta Nobili.
—Que é que vai ser dela?
— A Igreja? Que tipo de Igreja? Em que relacionamento com não-cató-
licos, com não-cristãos? Aqui está o nó disso tudo, meus Eminentes Irmãos:
o próprio âmago disso tudo! Devemos trabalhar e nos esforçar para que to­
dos, crentes e não-crentes, nãò-católicos, não-cristfos, ateus, todos habitem —
eu deveria dizer coabitem — conosco na Cidade do Homem. NSo somente
isso, precisamos ir mais além e ser os primeiros a defender o direito que eles
têm de viver assim e de serem deixados em paz em sua liberdade, sem serem
atormentados por “evangelistas”, ou incomodados por “missionários” ...
— Cristo disse: ide em frente, ensinai a todas as naçOes. Deveremos nós
parar todo nosso grande esforço missionário? - Doménico toma a vez de no­
vo, ainda verrumando Thule tranqüilamente.
— O Reverendo Cardeal sabe tão bem quanto eu que hoje em dia o es­
forço missionário é grandemente simbólico, e que só foi bem-sucedido en­
quanto os missionários viajaram sob uma bandeira colonialista ou imperia­
lista. Agora esses dias acabaram. Acabaram para sempre! Já nffo somos mais
uma pequena chama de luz e calor, o sitiado império do sagrado, cercado pe­
las trevas da descrença. Vivemos num mundo em que a criatura é dotada de
uma liberdade santa e ela se erguerá na expectativa do Reino de Deus, se a
liberdade for permitida a essa criatura —homem, mulher, nações, tudo!
— Se não devemos ter mais missionários, nem mais evangelistas, como
dizeis, então como é que surgirá algum movimento que converterá o mundo?
— Domenico está argumentando calmamente com Thule. —Como, Eminên­
cia, iremos começar?
— Como é que começamos a perceber tudo isso concretamente? Real­
mente, há um único ponto de partida: o maior número possível de cristãos
deve estar consciente, e deve verdadeiramente compreender que um novo cris­
tianismo precisa ser inaugurado —e que eles deverão tomar quaisquer provi­
dências necessárias para que ocorram as mudanças necessárias. E afirmamos
que não há maneira mais palpável, mais pública, mais eletrizante de chamar a
atenção do número máximo de cristãos do que através da eleiçSò de um Papa
e de uma política pontifícia que correspondam às exigências dessa nova cris-
tandade.
Domenico prossegue na exposição da linha de raciocínio de Thule:
— Entendo que não estais, conseqüentemente, contra a violência, diga­
mos, a violência dos pobres que surge na América Latina?
— Creio que foi Nosso Senhor Jesus quem disse que o Reino do Céu é
conquistado pela violência, e que os violentos o carregam como seu prêmio.
Se explode a violência, se a violência é imposta, se a violência é a única alter­
nativa para a continuação do atual regime capitalista burguês nas finanças
internacionais, no comércio e na indústria, se apenas a violência alimentará
os dois terços da humanidade que vão dormir famintos todas as noites de
284
todos os anos de suas curtas e miseráveis vidas, então eu digo, sim \ Todos os
nossos teólogos disseram sim) A própria consciência disse 5/m! Sim! Sim!
Violência como contraviolência. Sim! Violência- E vejo Cristo tendo nas
mãos um chicote feito em casa, derrubando os cambistas do Templo, des­
truindo-lhes as mesas, espalhando pelo chão o seu dinheiro. Violência? Sim!
Contraviolência? Sim!
— Mas, — Domenico objeta calmamente, — o amor não perece na vio­
lência? E a verdade não se perde quando o sangue é derramado, quando reina
a ira?
— Acho que o meu Eminente Irmão se esquece da natureza do amor, e
do amor da verdade, bem como da própria verdade. Seja o que for que acon­
teça, devemos ser os testemunhos vivos da verdade básica de nossa crença
cristã, ou seja: tudo aquilo que não é amor, que não brota do amor, que não
acaba em amor, tudo isso perecerá. E isto também precisamos lembrar —e o
Eminente Cardeal deveria saber disso melhor que a maioria de nós —ou seja:
que o amor é ternura, mas pode ser também uma força bruta —tão brutal e
cortante quanto a verdade. Se, em seu caminho, o amor descobre portas tran­
cadas —especialmente na pessoa ou nas pessoas que são objeto de amor —en­
tão ele pode gerar o horror assassino, mesmo o ódio. Lembrai-vos, o Grande
Deus, ele próprio, odeia o pecado e tudo aquilo irrevogavelmente identificado
com o pecado. Que é que supõem que seja o Inferno, Eminentes Irmãos?
— Então cessamos de difundir o Evangelho, Eminente Irmão? —De novo
o tranqüilo interrogatório de Domenico, fazendo com que Thule se manifeste
cada vez mais explicitamente.
— Não. Não advogo que cessemos de pregar o Evangelho. Mas acho que
os meus Eminentes Colegas deveriam parar de se enganar a si próprios. Preci­
samos nos ajustar à realidade —à realidade histórica de hoje, uma realidade
que, aparentemente, é temida por homens como o Meu Senhor Cardeal Wal­
ker, dominado por seu amor à uniformidade e à resignação, acima de tudo. —
0 golpe de Thule contra Walker é um risco calculado. Walker permanece im­
passível.
— A realidade que tem que ser enfrentada hoje é a de que, em razão dos
pecados de nossa própria Igreja, estamos condenados a uma nova cristandade.
Não vai ser uma cristandade homogênea, unida e concentrada em tomo de
uma chefia reconhecida e coagulada pela unidade na doutrina e na prática.
Essa foi a idéia velha, a velha cristandade que não funcionou; e que está mor­
ta.
— Em vez disso, a cristandade será um fermento espalhado sobre uma
rede de comunidades orientadas pelo mesmo pensamento, através de toda a
nossa amada terra. E o sucessor de Pedro tomar-se-á, uma vez mais, o peregri­
no que se imaginou que ele fosse, como Cristo foi, como foi Pedro, o Apósto­
lo.
— A nova cristandade consistirá, —como em grande parte já consiste —
285
em uma série de pequenos centíos, diferindo um do outro na prática, no idio­
ma, na compreensão das crenças, e algumas vezes na doutrina. Mas estará uni­
da numa tarefa prática: a organização geral de um novo regime sócio-político.
0 Presidente está fazendo sinal a Thule para que se interrompa. Deu a
Riccioni permissão para falar:
— Eminências, acho que todos nós percebemos que o que nosso Colega
está propondo conduziria nossas mentes e nossas energias para o campo da
sociologia, da política e da economia. —Riccioni faz uma pausa, depois eleva
a voz, num tom apaixonado: — Com todas as nossas faltas, não renunciemos
jamais à nossa busca de santidade. Santidade, Meus Confrades!
— Santidade? — intervém Thule. — Oh, sim, a Igreja ainda procurará a
santidade e insistirá com seus filhos para que façam o mesmo. Mas um novo
tipo de santidade. Por exemplo, deixaríamos de dizer que os sacerdotes e as
freiras vivem num estado de perfeição e que todo o povo leigo vive num es­
tado imperfeito. Que hipocrisia! Ainda uma vez, essa difundida doutrina sè
baseia na velha idéia da separação entre a Igreja e o mundo, entre cristãos e
não-cristãos e entre católicos e não-católicos, entre o puro e o impuro, entre
o escolhido e o rejeitado.
— Então, afinal de contas, em que é que se supõe que nos transforme­
mos? — Riccioni ataca. — Devemos esposar todas as religiões não-católicas e
coabitar com todas as seitas errôneas que a Igreja já condenou! Não devemos
dar nenhuma importância à busca da santidade e da perfeição cristãs, seja ela
promovida por monjes ou freiras ou operários ou quem quer que seja?
— É claro que não! É claro que não, meu queridíssimo Irmão. Não estou
advogando que coabitemos com o protestantismo, com o marxismo, com
o ateísmo, com qualquer tipo de “ismo”! —Thule olha em tomo, com uma
expressão denunciatória, como se estivesse lidando com a infantilidade dos
homens. — Qualquer pessoa que fale nesse tom está aferrada a um desprezível
sistema de pensamento que vê idéias tão grandes quanto hipopótamos e os
termos coletivos como se fossem nuvens gigantescas. — Firmando-se nos pés
separados e cruzando os braços sobre o peito, ele adota um tom dogmático e
declaratório:
— Não existe essa coisa que se chama protestantismo, ou marxismo. Ou
judaísmo. Ou ateísmo. Verdade, há protestantes nos Estados Unidos e em ou­
tros lugares. Marxistas na URSS e em outros lugares, e ateus na França e em
outros lugares, e católicos por toda parte. E, se olharmos em tomo e nos asso­
ciarmos com, digamos, marxistas ou protestantes, e com não-cristãos ou com
ateus, estamos nos associando a seres humanos. E, acima e além do marxismo,
ou do ateísmo, ou do protestantismo, ou do que quer que seja que eles pro­
fessem, esses grupos de pessoas trazem uma carga constituída por uma heran­
ça duradoura, cheia de contingências, de fatalidades, de destinos, tudo isso
transcendendo o que professem de marxismo, de protestantismo, de ateísmo.
E essa carga de história e de dinamismos os empurra confusamente, no cami­
286
nho para o grande evento —a liberação de toda a carne, de todos os homens
e mulheres, de qualquer forma de escravidão. Queremos nos envolver com
eles e com toda a humanidade. Mas fazemos isso não como cristãos —se sim­
plesmente desejais pôr a coisa nesses termos —mas como membros cristãos
de nosso mundo temporal. É uma séria distinção.
— Mas, — insiste Domenico, — não há países —a URSS, o Camboja, a
Checoslováquia — onde sabemos que não existe, presentemente, esperança
para nós?
— Não creio que seja uma atitude de genuína cristandade encarar dessa
maneira este ou aquele país isoladamente. É o mesmo que considerar idéias
fantasiosas e conceitos platônicos como se fossem coisas substanciais. A
URSS não é o marxismo. Os Estados Unidos não são o protestantismo ou o
capitalismo. Nem França e Suécia são o ateísmo. E nenhum país na Terra é o
catolicismo. Marxismo, protestantismo, ateísmo, tudo isso são abstrações...
— A doutrina de São Tomás é muito firme e clara nesse ponto, - diz
Nobili, tentando interferir.
— Vós, Reverendo Irmão, podeis viver com os vossos fundamentos abs­
tratos, se assim o desejais. Mas São Tomás de Aquino, que estais invocando,
desprezaria vossa noção da realidade.
— E vós, Eminência, os termos que usais para definir a realidade soam
terrivelmente nebulosos. —Domenico, de novo, com um comentário ligeiro.
— Eu disse “fatalidades e contingências do destino” e...
— Vagos demais! Vagos demais! — Os gritos vêm a Thule de todos os
lados. Riccíoni brada, dominando o clamor:
— Desejais que confiemos numa esperança nebulosa! Dai-nos um exem­
plo de vossas contingências e fatalidades! Dai-nos um! - E ele olha para seus
simpatizantes, como quem diz: “Vejamos como é que responde a este\”
Thule, porém, está imperturbável. Pensou naquilo tudo. Sua resposta vem
fácil. No entanto, tudo isso que está dizendo hoje tem um efeito muito per­
turbador sobre seus ouvintes. Sentem que ele está perto da verdade, mas re­
ceiam que esteja suficientemente distante dela para tomar tudo aquilo que
propõe perigoso e sedutor. Ao mesmo tempo, acima e além da aparência de
verdade, está a evidente sinceridade de Thule. Ninguém duvida de que acredi­
te no que diz.
— Bem, tomemos, por exemplo, a União Soviética. —Thule volta a Ric-
cioni. —Para vós, para a maior parte das pessoas no Ocidente, a URSS é um
monolito estático. Elas —e vós —não dispõem da informação de que necessi­
tam para compreender que uma bomba demográfica de ação retardada está
tiquetaqueando no interior da URSS.
— Ora, muitos de vós podem não saber que a União Soviética inclui
quinze nacionalidades, cada uma com seu próprio território, seus costumes,
287
língua, trajes, usos populares e assim por diante. A Rússia, a verdadeira Rús­
sia, está no meio desses territórios. Seis deles são europeus e ficam a Oeste da
“Rússia” — o território nacional da Ucrânia, o da Bielorrússia, da Moldávia,
da Lituânia, da Letônia e da Estônia. Aí estão 65 milhões de pessoas! Depois
há oito territórios nacionais asiáticos, para este da “Rússia” , na Ásia Central
e no Cáucaso —o dos Kirguizes, dos Turcomanos, o do Usbequistão, do Tad-
ziquistão, do Azerbadjão, do Kazaquistão e assim por diante. Mais ou menos
outros 65 milhões de pessoas.
— Por volta do ano 2.000, essas nacionalidades orientais estarão em
maioria. Achais que irão deixar o poder nas mãos dos “russos” e dos povos
soviéticos ocidentais? E que nova democracia terão, em termos culturais, re­
ligiosos, políticos, econômicos? Podeis ver as “fatalidades” e as “contingên­
cias” presentes a essa complexa situação. E é precisamente essa situação que
temos diante de nós.
— E, se vosso julgamento é correto e vossas propostas adequadas, que
poderemos nós fazer? —A pergunta de Domenico parece tranqüila.
— Fazer? Nossa tarefa primordial? Trabalhar para que os elementos éti­
cos dominem todos esses fatos sócio-políticos. É isso.
— Como podemos fazer isso, se deixarmos de promover ativamente a
nossa fé?
— Como? Tomando efetivo o estabelecimento de estruturas sociais e
políticas que facilitem .o aumento da fé, da inteligência, do amor —todos
oriundos das profundezas da alma humana, de modo que possamos todos ca­
minhar juntos para a descoberta das realidades espirituais que realmente
dominam a existência humana.
— Que é que Sua Eminência pode querer dizer com esses termos con­
fusos? —Riccioni é sarcástico, mas não tem maldade. Está mistificado demais
para isso. — Em resumo, que significa isso quanto ao que temos que fazer?
— Significa uma reformulação total de nossa estrutura humana —cultu*
ral, política, social, intelectual, familiar, pessoal. Uma reformulação total.
— Em conseqüência, a democracia ocidental está de fora? —Subitamen­
te, Walker estrondeia a pergunta.
— O melhor que pode ser dito sobre as democracias ocidentais —vejo
que não é muita coisa —é que se fundaram no princípio de que o mundo, e
tudo que se contêm nele, é território do homem sozinho com a natureza, e
que nem o homem, nem a natureza, tem qualquer relacionamento interior
real com um Deus transcendente e exigente. Nem mesmo com o sagrado. Nem
mesmo com um demônio. E se pensais que semelhante sistema político e eco­
nômico pode por si mesmo conduzir a uma renovação da cristandade, então
as nossas diferenças são de fato muito mais profundas do que qualquer um
de nós chegou a perceber...
— Mas, —diz Domenico, com uma suavidade enganadora, —então esta­
mos falando sobre o fim de nossa civilização?
288
— Sim. Mas não apenas um fim. Estou falando de uma nova civilização,
uma fresca destilação de cultura. E, não, não estou falando de uma civilização
e de uma cultura especificamente cristãs. Apenas de civilização e cultura hu­
manas, que trazem a marca do sistema cristão de vida e são animadas por mo­
delos cristãos.
— Por que é que Sua Eminência parece ter tanta simpatia por toda essa
destruição e inovação? —Domenico, ainda atrás de Thule.
— Porque, meu Irmão, ela corresponde à época histórica em que estamos
- a época que estará diante da Igreja nos próximos quinhentos anos. Precisa­
mos nos preparar para isso. Essa é a tarefa do Conclave!
— Nossa função aqui, ao que me parece, - objeta Vasari, - é escolher
o sucessor de Pedro. Que temos nós a ver com movimentos sociais —quero di­
zer, como um Conclave?
— Temos que estar interessados! Porque, diante de nossos próprios
olhos, já começou um vasto e firme processo de mudança na direção do tipo
de mundo que descrevi. E, a menos que nos aliemos a ele, pereceremos. Por
toda parte, seja na China, na Rússia, na Europa, na América Latina, na África
ou na América do Norte —mas aí menos do que nos outros lugares, uma vez
que é o bastião do capitalismo burguês —para onde quer que vos vireis, en­
contrareis sinais de um novo nascimento de sabedoria, o abandono do rígido
racionalismo e das frias abstrações do escolasticismo romano. Podeis distin­
guir as linhas gerais de uma nova síntese vital na visão da teologia e da reli­
gião: o movimento carismático; a crescente autoconsciência das minorias ét­
nicas; o súbito aparecimento de luzes espirituais se derramando sobre o mun­
do; a voz do povo leigo em assuntos da Igreja; o novo senso do invisível; o
declínio dos líderes e dos cérebros poderosos, como se a massa do povo esti­
vesse mais forte, forte demais para ser conduzida por um indivíduo; a
espantosa generosidade e liberalidade mental da geração jovem; maior carida­
de e compaixão pelo criminoso, pelo presidiário; o afrouxamento do domínio
dos cientistas sobre as massas e sobre os intelectuais —como se, finalmente, o
povo tivesse percebido as deformidades e os prejuízos trazidos por essa
ciência do mundo capitalista! E, por fim, há um horror generalizado à guerra;
e, especialmente entre os cristãos, uma nova consciência do regime social —
elemento que faltava completamente no mundo cristão anterior e que hoje
ainda falta, infelizmente, à mente capitalista burguesa.
— E isso não significa reduzir todo o nosso caráter eclesial a um crasso
economismo? Deve a nossa teologia ser infeccionada pelas mutações das ten­
dências comerciais e a nossa piedade deve ser um exercício de política finan­
ceira burguesa? —Bronzino não se levantou para fazer sua pergunta.
— Não. Não advogamos transformar o catolicismo num mero penhor da
economia. Esse o ponto que está em causa! Em nosso finado mundo cristão,
o progresso humano era medido conforme essa regra. E, não! Não advogamos
que o catolicismo seja identificado com qualquer sistema político; mas nesse
289
velho mundo cristão» os fatos políticos e os fatos sociais eram encarados da
mesma forma como fatos físicos —deveriam ser medidos, tratados e julgados
da mesmíssima forma que os fatos físicos, sem consideração pelas pessoas e
as vidas afetadas. E isso, naturalmente, era amoral — amoralidade, aliás, com
que os homens da Igreja coabitavam facilmente, quando se tratava de investi-
mentos, garantias, providências bancárias, margens de lucro e coisas assim. —
Ele olha em tomo, com uma expressão de quem sabe tudo, de quem abrange
tudo. —Ah, sim! Meus Irmãos e Eminentes Colegas!
— Permiti que eu lembre a Sua Eminência, - o Cardeal Braun, dos Es­
tados Unidos, está de pé, —que só pelo fato de sermos poderosamente inde­
pendentes, em termos financeiros, fomos capazes de agir com independência.
— Meus Veneráveis e Eminentíssimos Colegas, nós não fomos capazes
de agir de forma alguma! Sabeis que o mundo já não dá ouvidos a nós, cris­
tãos. Tem sido assim há muito, muito tempo. Mas agora está aqui um outro
dia, quando os homens pararão e ouvirão só mais uma vez aquilo que temos
para dizer; e, por um momento, olharão o que estamos fazendo. Uma peque­
na parcela de sua atenção —é tudo que estamos conseguindo. Pela graça de
Deus, eles pararão e esperarão que digamos o que estamos pensando. Porque
têm uma pergunta a nos fazer! Com esta eleição de um Papa e com a relação
de compromissos que oficialmente lhe colocarmos nas mãos, como nosso guia
espiritual e como sucessor de Pedro, responderemos aos homens e mulheres
de nossos dias. Essa será nossa resposta a eles.
— Sabeis, estes homens e mulheres de nossos dias enfrentam enormes
problemas e dolorosas questões, questões básicas. “Como nos alimentaremos
um ao outro? Como evitaremos matar um ao outro? Como gostaremos um
do outro? Como criaremos beleza na cidade, no lar, na família, no país? Co­
mo poderemos transformar a mente do criminoso e a mente distorcida do
louco?”
— Se respondemos: “Nossa atitude diante de vossos problemas, homens
e mulheres deste século, é uma atitude católica” , então teremos perdido a
atenção deles. Um por um, e finalmente em grandes massas, eles nos virarão
as costas, enfrentarão a longa estrada que têm diante de si e continuarão arras­
tando penosamente a peregrinação humana, na direção de um nascente que
está sempre a lhes impedir a chegada, mas que está sempre dançando em seu
horizonte, cada vez mais distante. O arco-íris de seus sonhos!
— Se nossa resposta é “Nós também somos humanos. Fazemos parte de
vós. Somos cristãos, somos católicos. É claro, nossas reações e paixões huma­
nas são coloridas pela nossa fé. Mas estamos convosco como seres humanos,
colaboradores em nossa tarefa humana.” —Então nos sorrirão e sorrirão co­
nosco. E, junto com eles, podemos todos caminhar penosamente, como pe­
regrinos humanos nessa estrada de destino humano!
— E que bem fará isso? —Vasari está indignado. —E quanto à mensa-
290
gem de autoridade que supostamente devemos transmitir aos seres humanos?!
Onde fica o Primado de Pedro?
— Esses homens e mulheres compreenderão que temos, de fato, nossa
fé e nossa vida espiritual, da mesma forma que têm sua vida temporal e seus
problemas terrenos para resolver e —este é o ponto essencial de acordo —fi­
cará evidente que nossa fé e nossa vida espiritual nos unem a eles. Quando
trabalharmos com eles, todos os fulgurantes valores do Evangelho de Cristo
estarão refletidos e emaranhados no trabalho comum que empreendermos
com os nossos semelhantes. Porque nosso trabalho consistirá em encher a
vida humana, todas as vidas humanas, de amor e em garantir que tudo aqui*
lo que vive na face deste amado planeta tenha sua vida temporal em condi­
ções melhores e mais felizes e de acordo com a luz que lhe seja dada por
Deus.
Thule tem pouco mais a dizer. Seu tom é tranqüilo:
— Meus Senhores Cardeais, este é o arcabouço geral da Política Pontifí­
cia e da política eclesial que acho que o novo Papa deveria seguir e estimular
entre os católicos romanos. Se vós, Meu Senhor Vasari, vos sentis insultado,
e se vós, Meu Senhor Riccioni, achais que eu errei, tereis tempo de sobra pa­
ra dizer isso. Mas, antes, senti a reação de nossos Irmãos Cardeais. Porque eles,
—Thule interrompe-se e olha em tomo de si, - eles ouviram atentamente tu­
do que eu tinha para dizer.
Thule inclina-se ligeiramente em três direções, de modo a abranger a as­
sembléia toda, depois vai para seu lugar, com tanta decisão como quando o
deixou.
O zumbido das conversações já começou. Mas mal Thule alcançou seu
lugar, Bronzino já conseguiu permissão para falar:
— Acho, Reverendíssimas Eminências, meus Irmãos Cardeais, que em­
bora possamos todos apreciar os sentimentos de Sua Eminência, o fato con­
creto é que ela nos deixou sem alternativa em nosso dilema —se, na verda­
de, estamos diante de um dilema.
— Quanto a mim, e a Sua Eminência o Cardeal Braun, e todos os outros
Eminentes Cardeais e Reverendos Bispos que conosco trabalham, registramos
o que entendemos como sendo a condição financeira e económica da Igreja.
Dilema, obviamente, não temos\ Dificuldades, resultantes da inflação mun­
dial, certamente que temos. Mas dilema? —Faz uma pausa. Um lampejo de
humor perpassa por seus olhos. - Bem, sim; talvez o Cardeal esteja num dile­
ma ... —dá a Thule uma mirada incisiva. A resposta de Thule é silêncio.
— Agora, no que se refere ao mundo eçi geral. Ouvir gente falando no
proletariado faz com que me sinta ligeiramente nauseoso. O proletariado se
levantando e todo esse tipo de conversa.
— O que temos, hoje em dia, é muito simples: há poucos países em que
algum tipo de democracia — democracia republicana —existe. Democracia
personalista não existe e não tem existido desde o tempo de Péricles - se é
291
que existiu então. E não vos deixeis enganar por algum protesto dos suíços.
A democracia deles não é nem personalista, nem republicana. País nenhum é
tão controlado por uma oligarquia financeira como a Suíça.
— Seja como for. Por democracia republicana eu quero dizer um siste­
ma político em que o povo govema através de representantes livremente elei­
tos. O velho regime individual dos príncipes nunca conseguiu isso. Bem, nos
Estados Unidos, no Reino Unido, França, Itália, Alemanha, Suíça, Espanha,
Portugal, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul e em mais uns
poucos lugares, existe uma coisa parecida com essa democracia. Quero dizer,
democracia republicana. Reparai: sei que essa democracia é grandemente ate­
nuada. Na realidade, compõe-se de grandes monopólios financeiros, enormes
grupos de pressão parlamentar, e bem entrincheirados partidos políticos —ge­
ralmente representando, tudo isso junto, não mais de cinco por cento de cada
população — que, de fato, dirigem cada uma dessas chamadas democracias —
os 5% —exatamente como querem. .
— Ninguém, creio eu, vai tentar nos dizer que os satélites da URSS são
democracias —mesmo o Meu Senhor Thule ou o Meu Senhor Franzus... Prin­
cipalmente o Meu Senhor Franzus!
— Há, naturalmente, o modelo escandinavo das chamadas democracias
socialistas. Mas, de novo, sabemos que são mais vulneráveis à inflação e à cri­
se econômica do que uma democracia que siga as diretrizes americanas. De
fato, o socialismo do tipo escandinavo nunca funrionou em outro lugar, em
tempo algum. Apenas dá a impressão de funcionar por algum tempo, depois
fracassa e chamam os capitalistas para consertar a máquina velha.
— Nos outros lugares, naquilo a que chamam —dependendo do ponto de
vista pessoal, ou da hora do dia —sistemas socialistas, sociais-democráticos ou
democráticos-socialistas, encontramos governos de força. São, em geral, ou
ditaduras de um só homem; ou ditaduras de oligarquias; ou ditaduras de de­
terminadas tribos. — Bronzino faz uma pausa; depois, de repente, volta-se
com toda a força para Thule: —Em nome de Jesus Cristo, que é que pode ser
socialismo democrático? Um estado marxista-comunista? Uma ditadura fran­
ca? Que é?
— Se me for permitido intervir? —Buff dirige-se ao Presidente e recebe
um aceno afirmativo. O anglo-saxão vira-se e olha para Braun e Bronzino,
depois para Uccello.
,
— Foi o próprio Papa Paulo, em 1971 quem encaminhou nossas mentes
nessa direção, na linha de pensamento progressista. —Ele fala no tom do pro­
fessor começando uma lição destinada a crianças particularmente ignorantes.
— Permiti que recorde a Sua Eminência e a todos os nossos Irmãos italianos —
de fato, a todos vós que, como eles, ainda estais no período da Guerra Fria de
Sua Santidade o Papa Pio XII —permiti que vos recorde as palavras do Papa
Paulo. —Baixa os olhos para seus apontamentos. —Cito:
292
“É necessário inventar formas de moderna democracia... Precisamos dis­
por de um pluralismo de opções para a mudança social... a mesma fé cris­
tã pode conduzir a compromissos diferentes.”

— E, mais importante, —diz Buff, olhando para Domenico, —mais im­


portante, o seguinte:

“Falsos ensinamentos filosóficos não podem ser identificados com movi­


mentos históricos que tenham propósitos econômicos, sociais, culturais
e políticos.”

— Eu vos declaro, —conclui o anglo-saxão, —que toda a coisa filosófica do


marxismo é uma miscelânea de teorias ruins. Mas o marxismo econômico, so­
cial, cultural e político constitui, hoje em dia, um movimento concreto das
massas — e o único que promete liberação e elevação da maioria dos seres hu­
manos. È isso que os Meus Senhores Thule e Franzus estão dizendo. —Buff
está quase careteando, em sua segurança. — Os Meus Eminentes Irmãos Thu­
le e Franzus crêem em todas as verdades da nossa fé tão bem e tão profunda­
mente e com tanto sentimento quanto os Meus Senhores Braun e Bronzino.
— Em outras palavras, —o Cardeal Sargent está falando de seu lugar, —
vós não aprovais nossa democracia americana como a mais adequada forma
de governo contemporânea, na verdade como um ideal, no mundo de hoje?
— Está correto, Eminências! - Thule, de seu lugar, faz ribombar as pa­
lavras.
Domenico põe-se de pé. Percebe para onde Sargent levará a discussão
e sabe que ele vai perder o argumento, no processo, e que a coisa toda se
transformará numa pista falsa, desviando o assunto.
— Meu Eminente Senhor Presidente, se posso dizer uma palavra... —
Faz um sinal para o Presidente. —Meu Senhor Cardeal Sargent, Meu Senhor
Thule, por favor, permiti-me uma palavra entre vós. — Passa os olhos pela
assembléia. — Meus Eminentíssimos Cardeais, quer gostemos disso, quer
não, o fato é que a idéia de uma democracia, no sentido americano do termo,
decorreu diretamente da idéia de poder que foi desenvolvida pela Igreja de
Roma, em sua infância. - Seu tom é calmo e sério. Agora está fazendo uma
preleção. E quando Domenico faz uma preleção, os Cardeais escutam.
— Pela primeira vez na História, creio eu, foi a primitiva comunidade
cristã em Roma quem primeiro acreditou que todo poder — o político tam­
bém —vinha de Deus. E diziam que esse poder vinha diretamente ao Papa, de
modo que a ele cabia a supremacia ilimitada. Muito pouco tempo depois, a
sugestão cristã, nessa matéria, foi a de que tal poder vinha ao Papa através da
voz do povo. Porque, como sabeis, os primeiros Papas eram escolhidos pela voz
do povo, a vox populi. Mas só a escolha vinha do povo, a indicação da pessoa
que Deus queria como líder. Não o poder desse Deusí
293
— Não é uma idéia cristã dizer que o povo é a fonte do poder, que o po­
der reside no povo como em sua fonte. Os cristãos deveriam dizer que o povo
é um canal de escolha - não de poder. E aqueles cristãos primitivos afirma­
vam que todo poder, inclusive o político, vinha aos príncipes e aosgovemos
através do Papa. Este é um ensinamento cristão básico.
— Na medida em que a democracia americana toma o povo a fonte de
poder, essa democracia americana não é cristã.
— Ora, eu sei que a idéia de um regime sacerdotal —supremo sobre qual­
quer outra autoridade —foi rejeitada pela independência racional do século
XVIII e subseqüente...
— Não é rejeitada hoje pelos verdadeiros crentes! —grita Vasari para Do-
menico, em tom irado.
— Não. Imagino que os vossos verdadeiros crentes, como o Arcebispo Le-
febvre, —replica imediatamente Thule, —junto com o vosso pessoal da Opus
Dei, a Falange da Fé, os Cavalheiros da Rainha Maria, a Organização para a
Defesa da Família, da Pátria e da Propriedade, os Cavalheiros de Colombo —
que todos esses verdadeiros crentes não rejeitam essa idéia. Mas, crede em
mim, Eminência, o resto do mundo rejeita! - O tom de Thule é tão brutal
e os fatos que apresenta tão esmagadoramente adequados, que Vasari fica de
boca aberta.
Domenico prossegue:
— Este é o elemento secular da sociedade! Está nela, quer gostemos dis­
so, quer não. Temos que lidar com ele. Mas que ninguém aqui apresente a de­
mocracia americana como a ideal. Não é. Em essência, é um sistema inteira­
mente secular que esteve, até bem recentemente, penetrado do cristianismo
de alguns de seus fundadores e da maioria de seu povo. Repito —até bem re­
centemente. Digo isto porque qualquer influência cristã que tenha havido está
aos poucos desaparecendo do sistema americano. Assim, neste sentido, os
Meus Senhores Thule, Franzus e Buff estão certos: a democracia americana
não oferece uma alternativa evidente para o socialismo democrático, ou para
o marxismo —embora eu desconfie que ambos são a mesma coisa, ein, Senhor
Thule? Não responda, por enquanto!
Domenico faz silêncio e olha em tomo de $i. Depois:
— Não há dúvida sobre isto, meus Irmãos; cada um de nós, percebendo
isso ou não, usa o marxismo como um método científico, como um rigoroso
método para exame da realidade social e política. Testamos hoje o valor da
história fazendo a comparação entre nossas teorias e nossas propostas de
revolução da sociedade humana. Isso é marxismo fundamental. — De novo
uma pausa.
— E isto, meus Irmãos, talvez vos surpreendais ao saber, é uma citação
extraída de Sua Santidade o Papa Paulo VI.
Domenico senta-se. Há um silêncio geral. Alguns, especialmente os Car­
294
deais americanos e os da Comunidade Britânica parecem estupefatos. Parece
que Domenico está do lado de Thule. Os italianos cochicham entre si.
— Mesmo assim, —objeta o Cardeal Lippi, enquanto se levanta, —devo
protestar em nome desse país e desse povo cristãos que são os Estados Unidos
da América.
— Bravo/ Bravo! Lippi! Bravo! — H Buonarroti, aplaudindo Lippi, que
acena para ele.
— Quanto ao nosso Eminente Irmão, certamente que ele concorda com
a Política de Coalisão. Afinal de contas, ele próprio disse em Fátima, em Por­
tugal, neste ano, que apóia entusiasticamente os sinceros esforços do povo e
do governo de Portugal no sentido da construção de uma nova sociedade —
mais justa, mais humana e mais plena. Em outras palavras, socialismo demo­
crático! —Thule está citando exatamente as palavras de Buonarroti —apenas
mais uma indicação, para os ouvintes, de que fez seu trabalho de casa.
0 Cardeal-Presidente intervém:
— Creio que ouvimos o suficiente para que todo mundo compreenda.
Não vamos disputar coisas de somenos. Temos assuntos mais graves para deci­
dir. Acho que deveríamos propor uma votação preliminar sobre a mudança da
Política, Eminentes Irmãos, isto é, se nenhum de vós...
— Temos uma pergunta a fazer ao nosso Eminente Irmão, o Cardeal Thu­
le. — É Uccello, falando em nome dos cardeais italianos não pertencentes à
Cúria. Ele se levanta e, com o assentimento do Presidente, volta-se para Thule:
— Eminência, todos vos agradecemos por vosso discurso. Queremos vos
perguntar a respeito da posição do Santo Padre. E, por favor, para nosso bene­
fício, sêde concreto em vossas respostas. Como é que vedes a função do Papa
em relação às maiores comunhões não-católicas, digamos, os anglicanos, os
coptas, os ortodoxos?
— Quanto a isso, podemos responder com a palavra do antigo Arcebispo
de Cantuária, — responde Thule, enquanto se levanta para falar. —Vós vos
lembrais que o Senhor Michael Ramsey propôs recentemente que o Papa po­
deria ser aceito como o Bispo a exercer a chefia da igreja Anglicana. —Ele fa­
la com suavidade. —A coisa de que temos que lembrar é que não podemos
ter esperança de alcançar autoridade eclesiástica universal absorvendo as enti­
dades não-católicas. Simplesmente, elas não serão absorvidas. Nós, católicos
romanos, temos que nos alargar, ecumenicamente. Afinal de contas, tanto
protestantes quanto ortodoxos já concedem ao Papa o primado de honra.
Comecemos daí, então!
— E quanto à unidade de crença? —pergunta de Azande.
— Crença? - responde Thule. — Todos sabemos que há uma crescente
convergência em pontos fundamentais sobre justiça social, igualdade política
e dignidade humana. E, como disse o Bispo católico Lessard, de Savannah, na
Geórgia, há uma franca aceitação da compatibilidade de uma fé comum, com
um pluralismo de expressão.
295
— Eliminaríeis, portanto, a unidade de crença em expressão, sob a auto*
ridade católica? —Agora é Sargent quem manobra Thule.
— Meu Eminente Irmão, a mentalidade católico-romana, com seu auto­
ritarismo, é semelhante à mentalidade do mandarim chinês, que perdurou
por 1.300 anos, até 1905: um labiríntico sistema de autodoutrinação e auto-
perpetuação, constituído de exames e normas, fórmulas e expressOes de au-
to-aceitação. Desmoronou. E assim está a nossa mentalidade romana desmoro­
nando. Desmoronando! - Thule faz acompanhar a repetição com um rápido
fechar de dedos, formando um punho cerrado. —A coisa de que precisamos,
nós a temos! Crentes.
— E a infalibilidade papal? —É Vasari, furioso, ainda perseguindo Thu­
le e tentando derrubá-lo.
— Olhai, Eminência. O I Concílio Vaticano definiu a infalibilidade papal
como um dogma a ser acreditado por todos os fiéis. E pode ser verdade que o
Papa tenha essa autoridade...
Há alguns gritos de “Vergonha!” “Calai a boca!” “Fazei com que se ca­
le!” “Retratai-vos!”
Thule não fica nem um pouco perturbado. Continua serenamente, como
uma pesada barcaça abrindo caminho com seu volume através de um cardume
de peixinhos:
— Em nossos dias, todo preceito precisa ter alguma espécie de verossimi­
lhança. Ora, se um Papa tivesse que exercer, hoje, a infalibilidade, ela prova­
velmente não teria verossimilhança. Afinal de contas, hoje o nosso propósito
é a volta a alguma coisa da nossa primitiva simplicidade cristã na oração, na
devoção, no serviço e no amor de todos os homens.
— Parece-me estar ouvindo, nas palavras do Cardeal, —Kiel está falando
sem se levantar de sua cadeira, —ecos daquilo que muitos teólogos, teólogos
progressistas, estão dizendo hoje. Gente como Dulles, nos Estados Unidos,
Küng, na Alemanha, Schillebeeckx, na Holanda, Laurentin, na França. E tu­
do que quero acrescentar aqui é que, embora os teólogos tenham o dever de
estudar, não têm o privilégio de ensinar a fé! Isso cabe a nós bispos, inclusive
o Cardeal, desde que se mantenha em união com seus irmãos bispos. Essa
função magisterial pertence aos bispos. —Kiel, um dos mais recentes Cardeais
feitos por Paulo VI, é sabidamente um radical.
— Eminente IrmSo, —replica Thule, —não tenho a intenção de infringir
a autoridade dos bispos. Simplesmente...
— Não, Eminência? —pergunta Kiel tendenciosamente. - Mas não é fa­
to que destes apoio à declaração de 1972 dos trinta e quatro teólogos —gente
como McKenzie e Curran, nos Estados Unidos, Küng e Lohfink, na Alema­
nha, Schillebeeckx, da Holanda —que disse a padres e também a outras pes­
soas que passassem por cima dos bispos e optassem por suas próprias maneiras
de fazer as coisas? Não é assim? —A declaração dos trinta e quatro teólogos
296
exortara os católicos romanos a procurarem meios de mudar a orientação de
seus bispos forçando-lhes a mão.
Há agora, na assembléia, a sensação de uma súbita parada. Pode significar
a derrocada de Thule. E isso não se encaixaria nos planos de Angélico e de
Domenico. Este compreende que a única maneira de conseguir que o Concla­
ve promova uma mudança real — uma mudança que não seja um mero palia­
tivo político — é pôr diante dele dois extremos: o extremo progressista de
Thule, ou o extremo radical porque ele e outros se batem. Teme também que
a eventual supressão de Thule, antes que o Conclave tenha tido a oportunida­
de de votar as propostas que este apresenta, não venha a resolver o problema
interno da Igreja, cada vez maior. Porque, por um lado, muitos cristãos par­
tilham da opinião de Thule. Essa opinião vem florescendo, na medida em que
seus seguidores agem de dentro da Igreja, como uma espécie de disfarçada
guerrilha de idéias. Custe o que custar, de acordo com os planos de Domeni­
co, deve ser dada a Thule a oportunidade de se comprometer inteiramente.
Por outro lado, o Cardeal é útil como meio de assegurar que não haja uma vol­
ta ao sistema da Política Geral. Toda oposição imediata deve ser evitada. Se
existe o risco de que o Conclave acompanhe Thule, esse risco deve ser enfren­
tado.
Domenico faz um sinal a Angélico, que se levanta:
— Acho que deveríamos admitir as expressões do Cardeal —quer goste­
mos delas, quer não. Ele está tentando explicar uma situação muito difícil.
—Thule inclina-se na direção de Angélico.
Mas Lohngren reage. Perdeu o controle, põe-se de pé, os olhos flamejan­
do, e dirige-se a Thule:
— Acredita Sua Eminência que nós vamos rejeitar a Igreja estabelecida há
séculos? Qual é essa Igreja ideal de que nos vem falando? De onde tirou-a
idéia de que podemos voltar aos tempos iniciais do cristianismo? E temos ago­
ra, todos nós, que nos intrometer em política?
Mas Thule tem, também, uma palavra a dizer a ele:
— Meu Eminentíssimo Irmão, vós e os outros bispos da Alemanha emi­
tistes um documento de 1.400 palavras, em 29 de junho de 1977, e seu tema
principal foi um apelo para a unidade política e econômica da Europa. Como
é que denominais isso? Não é um ato de política? Não é um intrometimento
na europolítica? E isso vos é permitido, mas a ninguém mais? Os vossos segui­
dores não afirmaram que os obstáculos à unidade européia só podem ser ven­
cidos se os cristãos desempenharem a sua parte e assumirem o que vós chamas­
tes de risco calculado? Por que é que vós podeis fazer isso e os outros não?
Lohngren está prestes a responder; olha para Angélico e este faz um gesto
de aquiescência com a mão: “Deixe p’ra lá” , Angélico está-lhe dizendo.
O último a pressionar Thule é Tobey. O americano levanta-se calmamen­
te, com o consentimento do Presidente:
— Eminência, — começa ele, —acho que é o hábito de autoconsolação
297
dos não-americanos, culpar os Estados Unidos por todos os males do mundo.
—E Tobey só vai até aí: Buff o interrompe:
— Com efeito, Eminência, não culpamos vós americanos por coisa algu­
ma que não praticastes. Nós vos culpamos pelo fornecimento de uma terça
parte de todo o ouro de Idi Amin, a cada ano —99% do qual para comprar o
café que ele vende. E pela exportação de 6 milhões de dólares de mercadorias
para a Uganda de Idi Amin, incluindo 1 milhão em aviões, 500 mil em equipa­
mento gerador de energia, de importância estratégica, além de outro meio mi­
lhão de dólares em motores para veículos blindados. —Tobey mostra-se ligei­
ramente perturbado.
— E vos culpamos pelas empresas químicas americanas, que financiam
campanhas de controle da natalidade em meu país, —acrescenta o Cardeal
lago Motzu, da Oceania.
— E pelo apoio dado ao regime que prendeu 60.000 pessoas, desde 1972,
—acrescenta outro oriundo da Oceania, o Cardeal Obata.
~ Em outras palavras, Eminentes Irmãos, - Thule encerra o coro, —jus­
to é justo. O mundo inteiro é grato ao velho e generoso EUA. Entre 1946 e
1976, distribuístes 192 bilhões de dólares entre governos estrangeiros espalha­
dos por todo o globo. Muito obrigado. Mas qual foi o resultado? Pobreza, mi­
séria, inflação, fome, terrorismo, revolução.
— Muito bem, dizemos nós. Agora é hora de uma solução que não se ba­
seie em políticas ingênuas; de uma solução nascida do Espírito. E tal é a da
Política de Coalisão — uma solução nascida do Espírito. —E com isso Thule
ocupa seu lugar, obviamente satisfeito por ter, na realidade, se saído muito
bem.
O Presidente confabula agora com seus dois colegas, a cada lado dele na
comprida mesa. Depois avisa:
— Se nenhum outro Eminente Cardeal deseja falar, ou se não há mais
nenhum ponto sobre o qual algum Eminente Cardeal deseje interrogar os
expositores da Política de Coalisão... - olha em tomo de si e vê Franzus
de pé. Faz-lhe, com a cabeça, um sinal de assentimento.
— Eminentes Irmãos, devo recordar-vos —julgando por uma ou outra
observação feita no calor dos últimos vinte minutos, alguns de vós podeis
ficar com uma impressão errada. Deixai que eu esclareça: não estamos pro­
pondo que abandonemos o cristianismo e abracemos o marxismo e o ateís­
mo. — Tem um estremecimento visível. — Não sei como vos tranqüilizar
quanto à minha própria dedicação a Cristo e à Igreja de Cristo, nem quanto
à ardente lealdade de todos os nossos bispos, padres e leigos. —Ele se em­
pertiga e a expressão de seu rosto toma-se luminosa e feliz, como se uma con­
vicção renovada o tivesse dominado.
— Por que é que supondes que Sua Santidade, o Papa Paulo, recebeu o
Primeiro-Secretário do Partido Comunista Húngaro, Janos Kadar, no Vati­
cano? E Kadar não elogiou a tenacidade e a sinceridade do Papa Paulo? E, ao
298
voltar à Hungria, Kadar não declarou, numa entrevista coletiva à imprensa,
que a sociedade socialista da Hungria sabe como conviver com crentes? E o
Papa Paulo, ao cumprimentar Kadar e sua comitiva, nSo se referiu aberta­
mente às dificuldades entre a Igreja e o regime vigente na Hungria? E tudo
isso não é muito sadio?
— O Vaticano está sempre pronto, —interrompe calmamente Witz, er­
guendo indisfarçadamente seu metro e oitenta de estatura à vista de todos,
— a falar com qualquer um, incluindo o Demônio, se isso tomar mais fácil
a vida dos crentes, quanto à prática de sua religião. Mas está Vossa Eminência
tentando nos dizer que uma aliança entre marxistas e católicos tinha a bênção
do Papa anterior, e deveria ter a bênção deste Conclave e do Papa que o mes­
mo eleger?
— Não, Eminência, — Franzus é rápido na resposta. —Não. Mas as deci­
sões sobre tais assuntos deveriam agora ser deixadas a cargo das autoridades
das dioceses e paróquias locais.
— E a autoridade centrai de Roma? —Riccioni quase grita para Franzus.
Os Eleitores fícam siderados pela estridência de sua voz. Franzus nada diz.
Buff, contudo, se levanta e mostra a sua forma mais cortante e sardónica:
— Parece, realmente, qué Sua Eminência Riccioni acredita que a burocra­
cia da Cúria Romana é capaz de lidar diretamente com um govemo marxista.
E, francamente, isso é o limite da credulidade! Meus Irmãos, haverá mesmo
um de nós aqui que não conheça as maquinações interesseiras dessa Mafiazi-
nha unida... —há um audível sibiliar, quando muitos Eleitores prendem a res­
piração, em violenta surpresa. O sangue foge do rosto do Camerlengo, Vasari
inclina-se para a frente, com o rosto nas mãos. Os olhos de Riccioni estão du­
ros como pedra, enquanto ele encara fixamente Buff, que puxou a longa faca
do insulto deliberado contra o poder do “clube fechado”, que se desenvolve
em tomo de todo Papa. Angélico e Domenico fazem gestos de calma com as
mãos, dirigindo-se a vários Eleitores.
Enquanto isso, o anglo-saxão está apenas se preparando para o assunto:
— Quando a gente pensa nesse grupinho secreto! —Buff agora enuncia
cada sílaba lentamente, sarcasticamente, num tom seco e destacado; e cada
palavra emerge de seus lábios como se tivesse uma vida própria, distinta e par­
ticular. Não parece haver nada furtivo, nada secreto em sua figura fina, magra.
Mas, percebem seus ouvintes, há no íntimo de Buff forças sutis e fundamen­
tais em ação, como se seu cristianismo estivesse separado de sua mente, como
se sua dignidade cardinalícia fosse apenas um manto, mas não um elemento
constitutivo de sua vida. Lohngren inclina-te para a frente e murmura para
Kiel:
— Talvez ele tire fora as roupas e apareça como Satã!
— Esse bandinho de conhecidos, - Buff prolonga o final sibilante da úl­
tima palavra, como se isso fosse um código de introdução a profundos e som­
brios segredos. —Em tomo do Papa Paulo VI. Todos amigos! Velhos amigos!
299
— Sorri conspiratoriamente para os cardeais, dando a impressão de alguém
que deseja partilhar alguma coisa com eles. —Os administradores! —Agora os
Eleitores, estupefatos, olham uns para os outros. Ninguém, jamais, abriu fogo
tão francamente e tão devastadoramente como agora, sobre o clube fechado.
É evidente que Buff vai dar nome aos bois.
— Villot! Benelli! A Secretaria de Estado! E agora, Caprio no lugar de
Benelli! Um dos amigos, naturalmente. Um dos velhos amigos! Don Pasqua-
le Macchj assessor pessoal do Papa Paulo! Como ajudou bem o Papa Paulo a
exercer a influência papal! E aquela parte especial e privilegiada do Secreta­
riado: os fazedores da Ostpolitikl Casaroli e Silvestrini. E Dino Monduzzi,
encarregado de todas as audiências particulares do Papa, com seus livros cui­
dadosamente guardados e suas anotaçõezinhas. Vagnozzi e Martinkus, nos
negócios econômicos e financeiros — obras religiosas! Se me fazeis o favor,
Eminências! Obras religiosas! Sois capazes de imaginar a religiosidade que há
na transferência de 40 milhões de dólares de Zurique para Nova Iorque? Ima­
ginai! E depois a cadeia de comando através dos velhos amigos no exterior.
Um Pio Laghi na Argentina, por exemplo, para vigiar atentamente a área vital.
E todos os outros amigos posicionados no Santo Ofício, na Congregação para
a Propagação da Fé e nos outros ministérios-chaves. Todos amigos! —Buff
faz uma pausa e olha em volta. Conseguiu o efeito que queria. Todos conhe­
ciam a “Máfia”. Muitos se haviam irritado com a “igrejinha” formada por ela,
com sua imunidade, sua autonomia.
— Que é que os mantém unidos, apesar de suas brigas constantes e dos
perpétuos esforços que fazem para conseguir mais poder à custa de alguma
outra pessoa? O fato de que a maioria deles vem de Faenza ou de seus arredo­
res? O fato de que “todos podem fazer espaguete”, como diz o ditado? Tal­
vez. Mas o vínculo real é o poder. Esses, meus Irmãos, são os negocistas do
poder da Igreja de Cristo. E o nó da questão com que nos defrontamos hoje,
quando nos preparamos para votar sobre a política, é a questão do poder: va­
mos permitir que o destino desta Igreja seja decidido pelas mesquinhas ma­
nobras políticas que eles fazem dentro dela? - Sua voz eleva-se, num lamen­
to. Depois retoma o tom de conversa:
— Li, no ano passado, um livro de um dos homens verdadeiramente san­
tos de nosso tempo, Bede Griffiths. O livro foi Retum to the Center. E, nele,
o autor salienta que nenhuma fórmula tradicional é sacrossanta. Porque nada
na Igreja atual, que foi estabelecida sobre as bases judaicas originais, nada em
seus dogmas, seus sacramentos, suas fórmulas, sua organização hierárquica,
nada está isento de mudança. Por quanto tempo ainda, —o combativo tom de
queixa está lá de novo, —irá esse clube fechado, essa sociedadezinha de ami­
gos e aliados mútuos, fincada no coração da Igreja estabelecida, impor a todos
nós idéias ultrapassadas?
— Eles têm escritas no rosto a calma, a estabilidade e a descontraída cer­
teza, não têm? Eu sei, assim como vós sabeis, que vivem a vida num mundo
300
particular, agradável, seguro, em suculento poder, cheio de beleza, com seus
monumentos e relíquias, distante, demasiado distante —isolado da realidade
social, consumido na soberba extravagância e no desperdício de recursos nas
políticas mesquinhas, com uma aplicação ritualizada do tempo e uma graça
cultivada de indumentária e de comportamento, o que dá a suas vidas uma
qualidade onírica.
— Quanto a nós, nas províncias, que é que temos a ver com tudo isso?
Que, eu vos pergunto, Eminências? —Ele espera, por um momento, depois
conclui, abruptamente: —Que não me falem mais nessa “autoridade central
de Roma” . Que fale a Igrejal A Igreja universal! —Senta-se solenemente.
Quase imediatamente, Riccioni está de pé, protestando sem esperar pela
autorização do Presidente. Sarcasmo e raiva são as suas armas:
— Não creio que nenhum Cardeal aqui, exceto talvez o Meu Senhor
Buff, vá peregrinar até o ashram de Bede Griffiths, até seu Shantivanam, sua
Floresta de Paz, para pedir conselhos sobre os problemas da Igreja de Cristo...
—Gritos de “Bravo, Riccionil Bravol” são lançados por diversos italianos.
— Mas vamos esquecer essa parte, — continua Riccioni. —E vamos es­
quecer também o insultuoso ataque ao pessoal do Vaticano. É claro, os anglo-
saxões têm sido há tanto tempo excluídos da direção da Igreja, já esqueceram
a arte dos negócios eclesiásticos —se é que jamais a conheceram. É tão dolo­
roso para mim quanto para vós, Eminências, estou certo, ouvir todo o cortan­
te desprezo partido de Sua Eminência, É tão doloroso quanto o sacrilégio per­
petrado pelos gângsteres comunistas que despedaçaram os vitrais do século
XIII da Igreja de Santa Cruz, em Florença, no ano passado! Apenas, mais uma
vez, sacrilégio na vida da Igreja!
— Naturalmente, aqui em Roma vemos que estamos sendo superados e
desalojados pela presença dominadora da nova cultura marxista — além de
sermos derrotados politicamente. Assim mesmo, não ligo importância ao nú­
mero de vezes que o Papa Paulo se encontrou com o Prefeito comunista de
Roma, Giulio Argan. Não significa nada. A comunidade cristã de Roma foi
afastada do poder. E nossas tradições cristãs já não merecem atenção alguma
no Palácio do Governo. Não tem importâncial Assim sendo, também não tem
importância que alguns estrangeiros não compreendam como funciona a bu­
rocracia central da Igreja —com todos os seus defeitos.
— Mas, desejo realmente dizer, em nome de meus Irmãos, que nunca
consentiremos numa aliança, ou mesmo num plano prático de colaboração,
com marxistas. Nuncal E, se necessário, permaneceremos neste Conclave e
vos manteremos todos aqui conosco, até a data de hoje, no ano que vem, se
for esse o preço que nós e vós tivermos que pagar! —Afogueado, vermelho e
trêmulo, Riccioni senta-se.
Marquez já tem licença para falar. Seu tom é suave e conciliatório:
— Na verdade, meus Eminentes Irmãos, são fatos que contam aqui —
lançando os olhos para Riccioni —e não temores.
301
— Considerai São Paulo, por exemplo. Tem doze milhões de habitantes,
mil e cem restaurantes, uma vida notuma que não pára nunca, um florescente
comércio homossexual em bares, hotéis, lojas de roupas. Uma garrafa de uís­
que escocês custa 100 dólares, um Mercedes 50.000 e as ruas estão atravanca­
das por eles. A discoteca mais recente custou mais de um milhão de dólares
para construir. A grã-fmagem levanta-se todas as tardes para a vida notuma,
que começa à meia-noite, em lugares como o Muro d’Hera. E, oh, esqueci-me
de vos dizer, a grã-finagem constitui apenas pouco menos de 5% da população.
Os outros? Escondidos, vivendo na miséria, na sujeira, com fome, na prostitui­
ção, na servidão dos empregos mal pagos. Agora, por quanto tempo pode a
Igreja apoiar esta espécie de regime? Por quanto tempo, eu vos pergunto?
Quanto tempo pode ele durar? —Há um silêncio mortal. —Mas, podereis per­
guntar, que tem a Igreja a ver com tudo isso? Bem, nós não condenamos essa
situação. E desfrutamos dela, pelo menos nas beiradas e, algumas vezes, nq
centro.
— Como estabelecimento humano, São Paulo tem ferro demais, cimento
demais, dinheiro demais, miséria demais e demasiada escravidão. —Ele pára e
reflete. —Quereis saber, —continua, como se estivesse refletindo em voz alta,
— existe, realmente, uma forma de escravidão tão má quanto a escravidão dos
velhos dias coloniais. E, da mesma forma que a Igreja não fez, de fato, coisa
alguma oficial para condenar e eTradicaT a escravidão nos tempos coloniais, as­
sim também é agora. Nem na América Latina, nem em países como a África
Equatorial, ou os Camarões, ou o Marrocos, nós, como Igreja, fazemos coisa
alguma contra a escravidão existente.
Marquez tem mais a dizer :
— Oh, sim, o Meu Senhor Franzus tem suas feridas, suas marcas, seus
padecimentos. E são coisas terríveis. Mas, esqueceis que na América Latina
há prisões com suas torturas e seus mestres-torturadores? E esquadrões da
morte? E cadáveres encontrados todos os dias nas zonas miseráveis das cida­
des? E pessoas que desaparecem e nunca mais são encontradas —talvez te­
nham reclamado contra o regime, ou tentado a reparação de alguma injusti­
ça, digamos, uma violação, ou um roubo?
— Quanto tempo, eu vos pergunto, quanto tempo tudo isso vai conti­
nuar e por quanto tempo seremos identificados com isso, porque a isso não
nos opomos? — Há alguns apartes indistintos dirigidos a Marquez, partindo
das fileiras de Cardeais, mas ninguém lhes presta atenção.
O tom de Marquez toma-se agora mais calmo:
— Qual é, na realidade, a questão? Não é isso a mesma coisa que afeta
todo o sistema capitalista? As grandes corporações empregam um número
reduzido de pessoas, aplicam enormes montantes de capital e muita matéria-
prima, para fabricar bens sofisticados para um mercado de elite, produzindo
taxas exuberantes de crescimento económico. E, assim fazendo, essas com­
panhias e esses grupos de interesse prolongam as desigualdades do período co-
302
lonial, tomam rígidas as classes sociais. Aumentam a pobreza e o sofrimento.
E o resultado final? O dinheiro, a abundância e o prazer ficam entre os pe­
quenos grupos privilegiados —os 5% no Brasil, os 11% nos Estados Unidos e
assim por diante.
— Mas os milhões do povo de Deus ficam ao largo desse círculo vicioso
de privilegiados, de grã-finos, de fúteis. E o socialismo democrático, ou al­
gum tipo dele, não constitui a única maneira de interromper esse terrível cír­
culo de horror? Isto, Eminências, é tudo que estamos tentando vos dizer.
— E quero acrescentar isto! — Lynch põe-se de pé, enquanto Marquez
se senta. O Presidente, em sua comprida mesa, ergue os olhos para o céu,
num gesto de desespero.
— Que ninguém tenha dúvida alguma, quanto às intenções dos capitalis­
tas dos Estados Unidos em meu amado país, — diz Lynch animadamente,
enquanto olha em tomo. — Não importa o que seja dito quanto a direitos
humanos, o governo dos Estados Unidos tem os mesmos propósitos egoístas.
Inescrupulosamente! A esta altura todos vós já deveis saber, por exemplo,
que a maior parte dos recursos do programa da Agência para o Desenvolvi­
mento Internacional, mais de trezentos e noventa e sete e meio milhões de
dólares, foi usada apenas para escorar o antigo regime de Frei, no Chile, con­
tra a política de Salvador Allende. Tem sido mais ou menos a mesma coisa,
em meu país. E deveis ter sabido, também, que a tentativa de submeter a
uma auditoria financeira o mau emprego de tais recursos foi anulada por
ordem de Washington. Esse é apenas um exemplo dos obstáculos contra os
quais nos colocamos, em nossa luta pela liberação.
Depois disso, ele adota uma atitude suplicante:
— Meus Irmãos! Existem, agora, oitenta e seis nações não-alinhadas,
todas pobres, todas se esforçando para estabelecer algum tipo de regime socia­
lista, todas trabalhando para livrar homens, mulheres e crianças da pobreza,
da fome e da miséria. O princípio da Coalisão, neste Conclave, é o seguinte:
vamos nos colocar ao lado da maioria oprimida. E vamos tomar efetiva a libe­
ração básica de nossos semelhantes! O futuro da Igreja está nas massas hu­
manas!
Agora já passam alguns minutos da uma e meia. Esta Primeira Sessão de­
veria ter sido encerrada ao meio-dia. Mas agora, já não se trata mais de encer­
rá-la. As discussões, os debates, o fogo da cólera, as revelações começaram, na
realidade, a foijar entre os Eleitores um sentimento novo. Eles foram tocados
por alguma coisa do que foi dito por Franzus, por um tanto da compassivi-
dade e da emoção de Marquez, por um pouco da repugnância de Buff pela
burocracia.
O Presidente do Conclave, sensível ao ânimo da assembléia, é o primeiro
a perceber a nova atitude. A massa de Eleitores está olhando para ele como
quem diz: “Sim, vós estais certo. Está na hora. Vamos passar à votação pre­
liminar sobre a questão da Política Geral que adotaremos. Já ouvimos o bas­
303
tante. Já sofremos o bastante. Vamos logo a isso!” É como se o Presidente
sentisse que uma verdadeira maioria dos Eleitores estava começando a se
movimentar, a ficar inquieta, porque eles haviam tomado uma decisão e gos­
tariam de se manifestar em voz alta como um só corpo.
— Se não estou enganado, Eminentes Irmãos, estamos prontos para uma
votação, - o Presidente exprime o sentimento do Conclave. Um coro de vo-,
zes saúda sua observação: “/te!” “Bravo!” “Procedamusl” “BeneV*
Nesse momento, Marquez levanta-se para fazer a proposta formal. Thule
mandou-lhe um longo recado, momentos atrás. Praticamente todo mundo no
Conclave percebeu isso. Porque agora, cada pessoa presente ao Conclave es­
tá alerta para toda e qualquer manobra, todo e qualquer movimento. Marquez
é muito rápido em sua apresentação e está muito seguro de si:
— Eminentes Senhores Presidentes, meus Eminentes Irmãos! Em lugar da
agora abandonada Política Geral, temos a proposta de uma nova política. Que
me seja permitido denominá-la a Política da Abertura Flexível. Porque, na
verdade, o que o Meu Senhor Thule e seus simpatizantes propõem é, genuina­
mente, uma política eclesial que tomaria a Igreja de Roma uma igreja razoa­
velmente elástica, não totalmente inflexível, não totalmente resistente.
— Precisamos, hoje em dia, de uma Igreja que atue adotando uma
posição situacionista ao considerar as coisas: aceitando o ponto de vista de
que os dogmas são expressões de revelação culturalmente condicionadas; de
que a participação na Igreja de Cristo é, principalmente —e em certos casos só
precisa ser — através da comunidade espiritual, e não da conformidade da
mente quanto a condutas ou conceitos; que a moral deve ser interpretada em
relação a cada hora e a cada lugar —dependendo sempre da doutrina de teó­
logos aprovados.
— E precisamos ter uma Igreja que ensir.e que a autoridade é compatível
com o pluralismo e —o que é tão igualmente importante —com a dignidade
e a liberdade humanas. Finalmente, a política geral da Igreja deve aderir, fiel­
mente, estreitamente, supremamente à dolorosa realidade econômica e polí­
tica —um novo regime, de há muito atrasado, para a sociedade humana. Nu­
ma palavra, uma Política de Abertura Flexível.
Marquez baixa a voz:
— Francamente, meus Irmãos, somente através de uma Política assim po­
deremos nós, em minha opinião — e poderá o futuro Papa —demonstrar o
amor de Deus, nosso Criador, que tudo abrange. —Quando Marquez termi­
na, várias conversações já começaram entre os Eleitores.
Hildebrandt é o primeiro a dizer *7ta!” em voz alta. É seguido por várias
dúzias de outras vozes. Marquez olha para Koi-Lo-Po:
— Eminente Presidente, acho que sabeis qual é a vontade da maioria. —
Volta-se e encontra diversos pares de olhos cravados nele, aprovadores, satis-
304
feitos, sorridentes. Lynch, Franzus, Lombardi, Lowe, Zubaran. Quando se
senta, ouve-se algum aplauso, rápido e caloroso.
Koi-Lo-Po tira os óculos:
— Entendo que não há discordância substancial. —Uma vez que nenhuma
voz se levanta em oposição: —Sugiro que, desta vez, os Revisores sentem-se
à mesa do lado oposto aos Escrutinadores. Na proporção em que os Escruti-
nadores forem realizando seu trabalho, cédula por cédula, os Revisores farão
o deles. Dessa maneira, poderemos apressar a votação. O Camerlengo foi con­
sultado a propósito desta orientação, hoje mesmo mais cedo, e considerou-a
uma adaptação perfeitamente válida das nossas Regras de Conclave.
Koi-Lo-Po passa um último olhar em tomo, para se certificar de que nin­
guém deseja falar, depois faz um sinal aos funcionários já eleitos para o Con­
clave. Estes se aproximam e recebem, como anteriormente, os documentos
da votação. Dentro de dez minutos, todas as cédulas foram distribuídas. Co­
meça a votação. Cada Eleitor cumpre o rito pessoal de depositar seu voto no
Cálice, tendo pronunciado primeiro a prece ritual.
Desta vez, o escrutínio e a revisão ocorrem numa atmosfera inteiramente
diferente. A votação é, de novo, placei (a favor da nova política) e non-placet
(contra). A voz do Escrutinador anunciando o placet ou o non-placet é o
acompanhamento de uma mistura peculiar de euforia ou depressão, sentida
individualmente pelos Eleitores. A coluna do placet, que cada um deles está
mantendo informalmente, aumenta cada vez mais de tamanho, enquanto a
do non-placet permanece pequena, esparsa, desanimadora. E, na medida em
que os votos de aprovação são lidos e anotados, fica evidente que uma grande
maioria —talvez a maioria geral necessária de dois terços mais um —se coloca
a favor da nova Política. Cada novo placet que é anunciado parece aumentar
o volume da euforia e, em contraste, ao longo das fileiras de Eleitores, alguns
Cardeais parecem ir esvaziando mais e mais no fundo de suas cadeiras, como
se uma depressão invisível fosse, cada vez mais, pesando sobre eles.
Pouco antes das duas horas da tarde, cada uma das cédulas foi manuseada
pelos Escrutinadores e pelos Revisores. Quando Koi-Lo-Po recebe a apuração
oficial, cada pessoa presente já sabe os resultados.
— Eminências! Placet —77 votos. Non-placet —41 votos. Tenho a honra
de comunicar a Vossas Eminências, oficialmente, que a nova Política não con­
seguiu os necessários dois terços mais um por apenas três votos. —Um som
semelhante a um suspiro semicontido faz-se ouvir, vindo de várias partes da
assembléia-
Koi-Lo-Po continua:
— Já passou a nossa hora de refeição. Sugiro que façamos um intervalo.
O jantar será servido dez minutos depois que chegarmos em nossos aposentos.
Facultativo, naturalmente, como todas as refeições. A hora da sesta será ape­
nas isso —uma hora, de 2:45 até as 3:45, A sineta de aviso tocará exatamen­
te às 3:40. A Segunda Sessão começará pontualmente às 4 horas. —Faz soar
305
ligeiramente a campainha de prata e se põe.de pé. Em vinte minutos, todos
terão voltado ao Domus Mariae.

TARDE: DAS 14 ÀS 16 HORAS

Domenico é um dos primeiros a sair da sala de jantar. Em seu aparta­


mento tem para examinar uma pilha de material de leitura, maços de docu­
mentos e relatórios. Por volta de um quarto para as três, a área do Conclave
está silenciosa; todos se retiraram, para dormir, ou para confabular, ou para
ler.
No apartamento de Buff está havendo uma conversa decisiva. Franzus
está lá, no mesmo modo que Thule, Lowe, Marquez, Lombardi, Francis, Ma­
nuel.
— A questão agora é: fazemos a indicação? - Thule põe a decisão diante
de seus pares.
— Essa votação não me agrada muito. Pelo menos, não agora. —Obser­
vação de Buff. —Por um lado, é traiçoeira. Não temos nenhuma experiência
dela. Os votos podem tender a subir, a descer, podem-se espalhar para os lados
e por aí tudo. Já vi isso acontecer em outras assembléias. Já ouvi falar nisso.
— Sim, —concorda Lynch. Thule balança a cabeça, afirmativamente.
— Então, bem, — o rosto de Thule contrai-se, —nossa alternativa é fa­
zer a indicação e depois forçar uma votação apressada por aclamação, em vez
de votos escritos.
— Gosto disso, —intervém Marquez. — Estamos agora com a falta de
apenas três votos para uma maioria absoluta. Certamente que poderemos ar­
rebanhar só mais três votos... e é melhor apressar isso agora, antes que qual­
quer outro grupo que esteja preparando uma estratégia possa conseguir a
chance de tomar a iniciativa e mudar o rumo do Conclave.
Às 3:20.Angélico telefona para Domenico:
— Sabe o que tem a fazer, Angélico? —pergunta-lhe Domenico. — Dê-
me mais uns dez minutos. Depois passe por aqui, e poderemos conversar até
que a sineta toque.

Quando a campainha toca o aviso às 3:45, Domenico já acabou de fazer seus


planos com Angélico- Quando ambos se encaminham para o Salão de Assem­
bléias, aproxima-se deles o jovem Cardeal gago.
— Eminência! - Angélico o saúda. —Como vão as coisas convosco?
— ótimas! Ótimas! —responde o jovem Cardeal serenamente, acertando
o passo com eles. —Estava agora mesmo conversando com Marquez e Manuel.
Imagino que vamos ter aquilo que o Camerlengo chamaria de um desfecho? —
Há um hiato na conversação; depois o jovem Cardeal continua: —Dizei-me,
306
Eminência, — voltando a cabeça na direção de Domenico, —por que é que
eles dizem que sois contra à nova Política?
Angélico, que conhece Domenico, sente o homem mais velho fechar-se.
Resolve manter a aparência de camaradagem:
— Oh, é que o Cardeal Domenico se sente melhor nos tempos medievais,
Eminência! — É um comentário desajeitado, mas Angélico não tem uma
idéia exata de como ser espirituoso.
— Sim, — diz Domenico, sem sorrir, —é isso, tempos medievais. —En­
tram juntos no ônibus.
Na porta do Salão de Assembléias, o jovem Cardeal separa-se deles e vai
conversar com dois de seus compatriotas.
— Não sei porque, —Domenico diz a Angélico, —mas não consigo sim­
patizar com o nosso jovem Colega. Não consigo. Tento, mas não consigo. -
O velho sacode a cabeça.

A SEGUNDA SESSÃO

O primeiro trabalho nesta Segunda Sessão é a eleição de novos Presiden­


tes. Witz é escolhido para Presidente, tendo Hildebrandt e Uccello como Pre­
sidentes-Assistentes. Os Escrutinadores são Ferro, Makonde e Buff. Os Reviso­
res são todos pretos: Bamleke, Saleké e Azande. Os Infirmarii são Kiel, Hart-
ley e Francis. Dominando a comprida mesa, mesmo sentado, Witz passa os
olhos pela agenda. Depois, na seca entonação germânica, anuncia:
— Para a tribuna o Meu Eminentíssimo Senhor Cardeal Thule!
Nunca poderá ser dito, de Thule, que entra em cena envolto em nuvens
de ambigüidade. Seu físico —o rosto e o corpo —é marcante, tem o timbre
de um caráter tão evidente quanto o de uma das pontes de pedra da Noruega.
Não há véus sobre seus olhos: eles são desanuviados. Abrangem a pessoa
inteiramente e sua concentração é acentuada pelo movimento controlado de
uma cabeça imponente, que vira para um lado e para o outro, como uma tor­
re blindada.
O corpo ahtes volumoso de Thule é agora quase esquelético, mas a gran­
de estrutura óssea permanece, como prova muda de sua florescência de anos
passados e como garantia dos muitos invernos a que ele ainda vai sobreviver.
Poucos, entre seus ouvintes, conhecem as onduladas planuras de sua terra na­
tal. Mas aqueles que estão familiarizados com o país de Otto Thule recordam
e saboreiam a força interior que há naqueles campos, naqueles vales e flores­
tas, onde os céus cinzentos, a chuva e as paisagens monótonas parecem estar
sempre envoltos em alguma mística intangível. Os cínicos diriam que isso é
porque aquela terra sempre foi a rinha da Europa, desde os dias de Julio Cé­
sar, e porque os exércitos, e os generais, e as tribos se arremessaram sobre ela,
lá deixando as marcas da grandeza e da loucura que os impeliam. Os que a
307
virem com simpatia pensarão, afinal de contas, numa obscura tribo nórdica
que teve e ainda tem alguma antiga e primitiva dignidade que nem o tempo,
nem soberanos arrogantes, nem invasores nazistas conseguiram extinguir.
Na voz de Thule, que já tem os ecos emergentes do timbre cavernoso do
velho, está presente aquela sonoridade indefinível — que às vezes lembra o
canto coral, outras vezes um comando seco — que força a atenção, mas não
atrai o afeto. Igualmente nórdica é a textura de sua mente, ao projetar-se em
palavras.
£, como um paradoxo a tudo isso, como acontece com todo nortista ge­
nuíno, perpassa um traço purpurino de misticismo através da mais objetiva
de suas palavras. Seria um erro confundir com emoção esse aspecto místico.
A emoção pode esfriar, pode ser interrompida. Mas o misticismo é um fogo
sombrio, que se alimenta em fontes inacessíveis às águas da razão e que a
mordedura do comentário ou a chicotada da indignidade não consegue atin­
gir. ^
É evidente que Thule tem sua visão própria e particular da divindade.
E seus dotes de personalidade e a forma de sua atuação perante o público
o habilitam a despejar sobre as assistências visões de poder, sonhos e temo­
res. Este público de Cardeais-Eleitores, tanto quanto as platéias de 25.000
pessoas e mais, a que se tem dirigido pelo mundo todo, é dócil aos sentimen­
tos que desperta. Ele o domina. Naturalmente. Nesta tarde, a atuação de Thu­
le é hábil e magistral.
Suas palavras iniciais — cada uma delas - são categóricas e oportunas.
Como lhe cabe fazer, primeiro propõe uma nova política. Uma vez essa pro­
posta aprovada, pode continuar e indicar Yiu:
- Eminentes Senhores Cardeais-Presidentes! Amados Irmãos e Colegas!
Nosso problema, como dissemos, é um problema simples: em que consiste a
melhor maneira de avançarmos ao encontro dos homens e mulheres de nossos
dias, quando, inapelavelmente, cruzam as fronteiras do deserto formado por
um mundo que cessou de existir e penetram no novo mundo de amanhã. —
Thule caminha lentamente para o lado direito. —Podemos dar esse passo? —
Uma pequena pausa. — Não há dúvida alguma, nem no Céu, nem na Terra.
Podemos! - Olha em tomo de si. —Podemos!
Passa os olhos por Domenico e depois pelos Cardeais no fundo da assem­
bléia:
— Nós nos recusaremos, Eminentes Irmãos, a ser deixados para trás, co­
mo homens velhos, isolados, solitários, traiçoeiros, sofredores, prestes a mor­
rer. —Uma momentânea sensação de horror percorre a maior parte dos Elei­
tores. Deles, um ou outro olha em volta, para as cabeças calvas ou de cabelos
ralos e para as feições alquebradas de alguns cardeais. Thule usou uma ima­
gem bem próxima, para transmitir seu pensamento.
Prossegue com um esboço preciso da “nova” Igreja que imagina. O tom
é eficiente e agradável. E, desta vez, não é interrompido por perguntas ou de-
308
safios. Todo o seu ser está agora empenhado em manter o comando que con­
quistou na sessão da manhã e em consolidá-lo com todos os instrumentos de
que dispõe:
— Aberta, meus Irmãos! Aberta até o céu. Uma Igreja assim é o que pre­
cisamos. Não mais guiada pelo medo. Não mais apoiada em velhas lembranças.
Não mais em estado de sítio. Mas aberta! Todos nós, levando nossa mensagem
e nos misturando com os filhos e as filhas de Deus, nosso Pai comum. Porque,
se estivermos abertos, receberemos renovado o Espírito de Deus! — Ele con­
clui sua introdução com uma afirmação decisiva: —É nesse espírito e com es­
sa visão que achamos que o candidato de nossa indicação deveria ser conside­
rado como sendo o melhor —como símbolo e como manifestação —no Rei­
no de Deus na Terra.
Trata, depois, da principal objeção à Política de Coalisão:
— Alguns se oporão pelo medo de prejuízo. —Olha em tomo, em silên­
cio, deixando que as palavras produzam efeito. —Nossos valores sobrenatu­
rais são tão preciosos. Como poderemos expô-los a uma adulteração do pro­
testante, do judeu, do muçulmano, dos não-crentes, a uma contaminação
produzida por aqueles que estão completamente imersos no tangível? —Sua
voz assume o tom de uma batida de martelo. —Eu respondo: nossos valores
sobrenaturais são, com toda a certeza, intangíveis. Mas esses intangíveis cru­
ciais não são, repito, não são abstrações. A Encarnação de nosso Senhor Je­
sus aconteceu realmente! — A voz toma-se sombria e grave, agora, e, num
crescendo, eleva-se lentamente. —Deus, nosso Pai, colocou seu shekinah, seu
tabernáculo, sua casa de morada, entre os filhos e filhas dos homens, por to­
da a extensão deste globo. Não podemos permanecer sentados, sozinhos, na
tenebrosa passividade de uma colônia de moluscos eclesiásticos, deixando que
as águas dos mares da evolução humana fiquem passando por cima de nós!
~ Alguns outros objetarão: esta mudança de Política tem em si uma fal­
ta de análise. Pede-nos que penetremos numa enorme área não-mapeada, e
nem mesmo considera as análises sócio-políticas e psicológicas de nossos con­
temporâneos. —Thule agora está tentando conquistar a mentalidade escolásti­
ca e o formalismo dos Cardeais tradicionalistas.
— Respondo firmemente: a realidade nunca é geométrica e simétrica,
nunca tem contornos nítidos, não se exprime harmoniosamente, claramente
definida, arrumada. A realidade, como observou um filósofo, é uma coisa
grande, imprecisa, irregular, palpitante, cheia de ruído e movimento, aqui, ali,
acolá, iluminada por fulgurações de crescimento. Respondo também: durante
centenas de anos, os homens ocidentais que receberam seus ensinamentos de
nós, religiosos, ocuparam-se tentando desmontar a realidade, pedaço por pe­
daço, como se esta não fosse senão uma máquina —uma máquina racional­
mente planejada, complexa.
— Do que precisamos agora é de uma nova integração1. E, na realidade,
309
tal integração já nasceu. Temos que marchar com ela. £ a integração de Deus,
do espírito, da Humanidade.
Depois de uma pausa, Thule passa à objeção final e definitiva —a objeção
ao papel político ativista implícito na Política de Coalisão, ou antes, exigido
por ela. Seu público está preparado para a análise que fará. Estão saboreando
suas palavras, gostam da força de sua personalidade. Tudo parece nítido, segu­
ro, presciente, cheio de orientação. Thule está mostrando sua melhor forma.
Sabem disso. E ele também sabe.
— Podemos ficar indiferentes ao fato brutal de que a Terra não tolerará
um crescimento exponencial infinito do consumo material? Podemos? Como
cristãos, podemos esconder nossa cabeça na areia da piedade e do incenso, e
dizer que isso não nos interessa? Vida e morte nos interessam! Desperdício
nos interessa! Afirmo que não podemos ocultar fatos brutais debaixo de pro­
testos espirituais.
— Podemos ignorar o fato brutal de que nosso crescimento é limitado pe­
lo teto de tolerância da ecosfera quanto à absorção de calor? Afirmo: não po­
demos, desde que poderosamente colaboramos na escalada da raça humana
até esse teto.
— Afirmo que a Igreja vive, quer gostemos disso, quer não, a vida de nos­
so tempo. Temos que gemer e labutar com toda a criação, como diz São Pau­
lo. Acreditamos que a vida que vivemos aqui na Terra não é a nossa experiên­
cia final. Mas, se nos mantivermos afastados do dilema econômico e político
de nossos semelhantes, esta poderá ser a nossa última experiência política e
econômica.
Thule sente, pela atenção que está recebendo, que a mente dos Eleitores
se abriu para ele, aceitando suas intenções. Resolve concluir e abrir a porta
para a arremetida.
— Não tenho ilusões. Nem vós, estou certo. Como homens da Igreja, des­
confiam de nós. Estamos numa perigosa era de transição, nossa presente situa­
ção é crítica e nosso futuro problemático —na melhor das hipóteses. Levamos
a culpa de um passado que não fizemos. Só temos a construir nosso futuro.
— Nossa Igreja estabelecida é, para muitos, uma abominação de fariseus
— vós, eu, nosso clero, tudo o mais. Para muitos outros, é uma estufa de en­
trincheirados aristocratas —dinastias mercantis, monopólios industriais, famí­
lias de banqueiros, clubes de investimentos, cartéis financeiros, proprietários
de terra —todos e cada um deles nossos aliados! Para muitos, esta Igreja tem
sido anátema, durante longos séculos.
— Para muitos outros, os fiéis, ela se transformou numa esposa velha:
mal conseguem conversar com ela —a não ser para resmungar e reclamar que
o jantar deles ficou frio e duro. Assim, tendo deixado de amar a Igreja e a civi­
lização, tendem a ser destruídos, sobretudo, pelo asco de si próprios. E, na
estrutura de nossa Igreja, há a desmoralização, a sufocação da paróquia, da
diocese, do convento, do palácio episcopal, da autoridade pontifícia.
310
Lentamente ele olha em volta de si, no silêncio que criou; depois, delibe­
radamente, cheio de dignidade:
— Neste dia, Veneráveis Irmãos, neste dia, o Espírito Santo pode reno­
var nossa fé e nossas mentes, para que sigamos adiante e realizemos aquilo que
nosso Senhor Jesus, encarnado, começou. Que nossa escolha seja feita com
sabedoria, meus Colegas, e com bravura! Deus está conosco! Agradeço a todos
vós!
Thule inclina-se para o Presidente e, sem um novo olhar para sua assistên­
cia, caminha vagarosamente para seu lugar.

Witz, tarimbado em reuniões, tosse alto, e longamente, assim criando a distra­


ção necessária. E interrompe imediatamente:
— Meu Reverendíssimo Senhor Cardeal Angélico.
O rosto redondo de Angélico está contraído e pálido. Sem estar mais sor­
rindo, sem ser mesmo nem a pessoa atarefada que costuma ser, o Cardeal-Ar­
cebispo, antigo auxiliar do Vaticano, dá a impressão de uma profunda concen­
tração. Está de pé, diante de sua mesinha, iriclina-se num cumprimento ao
Cardeal-Presidente, passa os olhos pelos Eleitores á sua frente, depois se volta,
de modo a abranger as fileiras de Eleitores e aqueles que estão sentados nos
extremos da assembléia. Do lado de fora, o céu está sombrio e nublado, em­
bora alguma luz caia no teto e nas paredes.
— Meus Eminentes Senhores Cardeais, não é minha intenção dizer sim
ou não à proposta vigorosamente expressa por Meu Senhor Cardeal Thule. —
A voz de Angélico vacila; ele parece ter perdido o fio do pensamento, ou al­
guma frase memorizada para a ocasião. Presume-se que apóie a proposta de
Thule, tanto da Política de Coalisão, quanto de Yiu - isto é o que pensam
todos os que o escutam. Por que não o faz? Ou como é que vai, agora, chegar
até isso?
Marquez volta-se para sorrir tranqüilizadoramente para Lynch. Thule lim­
pa a garganta. Não estará tranqüilo até que esteja terminado esse discurso
de apoio. Começa a fazer, mentalmente, uma verificação dos votos.
Walker, até onde Azande pode ver, está de olhos fechados e com uma ex­
pressão engraçada no rosto, como um homem esperando que o dentista dê an­
damento a seu trabalho. Ni Kan está rabiscando uma fileira vertical de carac­
teres chineses. Quando Angélico pára, a mão de Ni Kan pára. Todo mundo es­
tá esperando.
— Ao concordar em dar apoio à proposta, Veneráveis Irmãos, tenho
consciência de meu dever como Eleitor e como Cardeal desta Santa Igreja Ca­
tólica Apostólica Romana. Meu Eminentíssimo Senhor Thule declarou que a
votação favorável à Coalisão é a única alternativa possível para nosso dilema.
Ni Kan está rabiscando outra vez. O Camerlengo lança um olhar a Angé­
lico, depois olha para longe, como se estivesse poupando a si mesmo de uma
311
visão dolorosa, ou de agonia de outro homem, a quem nfo pode ou não quer
ajudar. Se ao menos todos os italianos tivessem um pouco de lógica racional,
reflete ele.
— Por que é que a posição tradicionalista não é também viável? —A per­
gunta retórica de Angélico não tem, em si, nenhum traço de desprezo. —Por­
que, Irmãos, nos deixa sem iniciativa. Nessa política, preferimos firmar deci­
didamente nossos pés numa posição correspondente a quinhentos anos atrás.
Dela poderíamos tentar, mas apenas dolorosamente falharíamos, mais e mais,
quanto a atingir os milhões de seres desta época e dos próximos cinqüenta
anos e dos quinhentos anos seguinte. Na verdade... —a vibração de sua voz
aumenta, —escolher uma política tradicionalista e, coerentemente, um novo
Papa tradicionalista, seria aceitar o que nos está sendo imposto, ou seja, um
estado de sítio.
Riccioni, curvado, olhando para as mãos sobre o colo, ergue levemente
as sobrancelhas, mas não mostra nenhum outro sinal de emoção. Vasari ume-
dece os lábios. Está dobrando e desdobrando uma folha de papel. Dobra-a até
o mínimo possível, depois desmancha as dobras todas e começa tudo de novo,
dobrando e dobrando e dobrando.
— Mas então, a posição conservadora não é viável? Afinal de contas, te­
mos agora uma Igreja conservadora, em grande medida, e Deus sabe que há
evolução e que sempre conseguimos alguma coisa, não é? —Angélico dirige
o olhar a Masaccio e sorri ligeiramente, como quem diz: Ouça-me, Pietro.
Ouçarme até o fim , antes de pular na minha gargantal Masaccio tem uma ex­
pressão impenetrável.
— Mas não, não vai funcionar. E sabeis por quê? Eu vos direi. Porque, —
Angélico responde à sua própria pergunta, — a essência dessa posição está
em permitir que sejamos lenta, mas seguramente, “manobrados” no sentido
de uma mudança. Oh, é claro que com dignidade. Mas, de certo, não de nos­
sa própria, deliberada, exclusiva e responsável vontade. Faríamos uma mu­
dança depois da outra e, ainda aqui, isso não nos permitiria nenhuma inicia­
tiva — a menos que considereis que a cooperação com algum fait accompli
seja uma iniciativa de nossa parte.
— Concordamos hoje, citemos a título de exemplo, em que temos que
permitir a existência de sacerdotes mulheres, porque isso é imposto pelas
circunstâncias. Circunstâncias teológicas? Dificilmente! Simplesmente pres­
são social exercendo-se sobre nós. E então, depois de amanhã, verificamos
que uma mudança dessas significa alguma coisa totalmente inaceitável.
— Em outras palavras, as posições conservadora e tradicionalista têm
o mesmo problema: paralisia e estagnação. É só que a posição conservadora
dá a ilusão de movimento e progresso, uma ilusão que disfarça o que, na rea­
lidade, é destruição e regressão. Na proporção em que os acontecimentos nos
atingissem, estaríamos cada vez mais impotentes para fazer alguma coisa a
respeito deles, podendo apenas sofrer-lhes as conseqüências. Em questão de
312
uns poucos anos, iríamos sofrer uma chuva de golpes que nos poderia fazer
em pedaços —nós e nossa Igreja.
— A Igreja está hoje no meio de um mundo ativo, que muda profunda
e rapidamente —mais profundamente e mais completamente, talvez, do que
o fazia anteriormente. E, ao mesmo tempo, tanto a posição tradicionalista,
quanto a conservadora, é suscetível às iniciativas exteriores —mas não dispõe
de nenhuma iniciativa própria. Ambas são, apenas e simplesmente, reações.
Como fios de contas pendurados, poderiam emitir um som agradável, quando
movimentados pelos ventos dos acontecimentos. Mas a voz da Salvação não
é o som de um tinido, nem a Igreja da Salvação uma fieira de contas desam­
paradas.
Angélico vira-se agora dos Cardeais para enfrentar os Presidentes, diante
da comprida mesa. Todos os três olham para ele, esperando sua proposta de
apoio.
Lá embaixo, num dos extremos da assembléia, os Cardeais Bamleke e
Garcia conversam baixinho. Walker está teso, imóvel. A expressão de sofri­
mento que tinha aliviou-se, de certo modo, como se o pior já estivesse ali e
já ultrapassada a tensão da espera. Mas seus olhos continuam fechados. Pela
gesticulação de Bamleke e Garcia, é claro que um deles está pensando em in­
tervir. Ni Kan começa uma terceira coluna de garatujas. Thule está sentado,
muito quieto, os lábios movendo-se silenciosamente, em oração. Domenico
senta-se com afetada modéstia, os braços cruzados, os olhos pregados no ros­
to de Angélico. Domenico, o realista de confiança!
— Meus Eminentes e Veneráveis Cardeais-Presidentes, —a voz de Angéli­
co assumiu, de súbito, um tom estridente.
— Meu Senhor Thule propôs que procedamos imediatamente à eleição,
tanto da política que sugeriu, quanto do Meu Senhor Yiu para Supremo Pon-,
tífice —o candidato que, como assinala, tem a seu favor dois fortes grupos en­
tre nós: um “candidato de fusão”, se preferirdes. Apoiado por aqueles que
todos nós (e eles próprios) chamamos de progressistas —a divisa deles é uma
Igreja completamente aberta. E apoiada também pelo grupo de mentalidade
socialista democrática — aqueles que dizem que a salvação está nos povos da
Terra, ahh, eu deveria dizer, no proletariado.
Lynch aprova com a cabeça. A descrição parece bastante acurada: e a
Coalisão é forte. Irresistível. Thule espera. O Camerlengo tem uma expressão
cansada.
— Meu Senhor Presidente, é uma convenção tácita em Conclave, que ne­
nhum Eminente Senhor Cardeal será aclamado e assim eleito, a menos que
tenha sido solicitado a demonstrar, previamente, que não tem nenhuma obje­
ção fundamental —na verdade, pode manifestar sua objeção até o momento
imediatamente anterior à aclamação. Estou bem advertido de que, mesmo
contra sua objeção, pode ser indicado e eleito. Mas deve-lhe ser dada a oportu­
nidade de expressar sua reação. Não é assim, Meu Senhor Presidente? —A
313
pergunta tertnina num tom alto. A boca de Angélico permanece aberta, seus
olhos pregados no Cardeal-Presidente, junto à comprida mesa. 0 Cardeal olha
à direita e à esquerda, para os dois colegas, recebendo a aprovação deles num
movimento de cabeça, depois, por sua vez, acena afirmativamente em resposta
a Angélico. Nem Thule nem qualquer um de seus seguidores mostra qualquer
sinal de alarme. Gostam do método passo a passo adotado por Angélico. Con­
sideram isso a maneira que Angélico tem de se certificar de que todos os pon­
tos da regra do Conclave estão sendo observados. Dessa forma, mais tarde não
poderá haver qualquer provocação.
— Bem, então, - resume Angélico, mas a diminuta figura de Yiu já está
de pé, quando Angélico a procura com os olhos.
— Meus Eminentíssimos e Veneráveis Senhores Cardeais-Presidentes,
meus Amados Irmãos e Colegas, aguardarei até que Meu Senhor Cardeal An-
gelico tenha terminado, antes de concordar em ser submetido a indicação. —
Ele se senta.
Angélico olha para Yiu, depois seus olhos examinam lentamente as filei­
ras de rostos. Thule está inclinado para a frente, os olhos bem abertos, olhan­
do fixamente. Os olhos de Walker ainda estão fechados, a expressão de sofri­
mento voltou. Buff gesticula para Lynch. E, na maioria dos rostos, Angélico
lê uma certa tensão — alguns têm uma expressão de antes-você-do-que-eu,
outros um ar de incredulidade, outros ainda de franca perplexidade. Ni Kan
parou de rabiscar; ainda tem o lápis na mão, examinando o rosto de Yiu.
— Meu Deus, muito barulho por nada, — resmunga o Camerlengo a
meia voz para si mesmo, e examina suas anotações.
O rosto de Angélico assume uma expressão dura como granito:
— Temos que declarar, categoricamente, que tanto a posição progressis­
ta quanto a socialista democrática são totalmente inaceitáveis! - As palavras
saem como marteladas, literalmente achatando alguns Cardeais contra o en­
costo de suas cadeiras, estupefatos, mas sem duvidar daquilo que ouviram.
Elas ressoam com aquela antiga estridência que os auxiliares do Vaticano ti­
nham conhecido bem, durante os difíceis anos em que Angélico teve autori­
dade ali. Quantos, no Vaticano, e particularmente na Secretaria de Estado,
conhecem aquele sinal de seu descontentamento! Walker abre os olhos e en­
cara um ou dois Cardeais próximos, depois levanta o olhar para Angélico. O
silêncio é elétrico.
A pausa de Angélico é dramática, mas curta o bastante para evitar qual­
quer declínio na atenção dos Eleitores.
— A posição progressista nos coloca, completamente, nas mãos de forças
instáveis, nâò-eclesiásticas, nãb-católicas e nSò-cristãs. Os socialistas demo­
cráticos desejariam que prostituíssemos —ele pára por um momento, depois:
— sim, que nos prostituíssemos, nossa tradição, nossa graça, nossas esperan­
ças, à única força, em nosso mundo atual, que traz, seguramente, a marca da
314
pata de Satã. —Percebe, num olhar rápido, Lynch e Thule, lívidos, pálidos e,
um de cada vez, fazendo sinal para o outro.
— Oh, é claro! É claro! 0 Cardeal Thule nos incita a confiar. E o Cardeal
Lynch a sofrer. E o Cardeal Buff a termos a mente aberta.
Agora o sarcasmo de Angélico é pesado e direto. Está olhando fixamente
para Thule, sem pestanejar, sem suavidade em tomo dos olhos, a boca se en­
crespando em tomo de cada sílaba.
— Seja o que for que aconteça, qualquer que seja a aberraçSo em matéria
de doutrina, qualquer que seja a ruptura de tradição que venha a ocorrer, o
Cardeal Thule garante que pode ver para além disso. Vê adiante da confusão
dos acontecimentos. E nos diz: tudo está bem! Mas Sua Eminência não pode
continuar, indefinidamente, compreendendo, percebendo, vendo além das
coisas. Diz que ele e seus amigos analisaram a situação e que sabe o que está
acontecendo, e que não precisamos nos preocupar com o que fica do outro
lado da opaca posição que desejaria que a Igreja assumisse.
— Mas, digo eu, - agora ele afasta o olhar de Thule e olha para Yiu, —
digo eu: se podeis penetrar no opaco dessa posição, se sabeis o que há do ou­
tro lado, se sabeis o que vai acontecer, quando marcharmos ao som do tambor
do Cardeal, então dizei-nos! No entanto, quando lhe perguntamos: que acon­
tecerá ao dogma, ele não sabe — exceto que estará tudo bem, garante-nos.
Que acontecerá com a devoção da Virgem? Ele não sabe —exceto que estará
tudo bem, garante-nos. Que acontecerá com a infalibilidade papal? Ele não
sabe —exceto que estará tudo bem, garante-nos. - Angélico olha em tomo.
Sua raiva e seu asco são claros.
— Ele não sabe! Meu Eminente Irmão do Leste! Ele não sabe! E sabeis
por quê? Porque, se fordes por aí vendo através de todas as coisas, penetrando
todas as coisas, vendo além de todas as coisas. Se o problema social é uma ja­
nela através da qual podeis ver. E se ò problema político é uma janela através
da qual podeis ver. E se a questão das ordens anglicanas é uma janela através da
qual podeis ver. E se a infalibilidade papal é uma janela através da qual podeis
ver. E se o marxismo ateu é uma janela através da qual podeis ver. E se a se­
xualidade humana, os votos religiosos, a propriedade privada, a historicida­
de dos Evangelhos, a divindade de Jesus, a ressurreição de Jesus, a existên­
cia de uma vida depois da vida, a vida do feto, a guerra e a paz, a criação e
a existência mesma de Deus — se todas essas coisas são janelas através das
quais podeis ver, de modo que não existe, realmente, nada que interrompa
vossa visão; se não há lugar em que assumais uma posição, sabeis o que é que
acabais vendo? Sabeis? —Angélico passa os olhos em tomo de si, a voz man­
tida na nota alta de uma pergunta combativa e cheia de desprezo.
—Nada! Nada! O que vereis é NADA! Nunca vistes nada. E continua­
reis, para sempre, vendo nada. Não vereis, absolutamente, coisa alguma. E
tudo aquilo que valia a pena ver, e tudo aquilo diante de que valeria a pena
ter parado — de tudo isso vistes através, tudo isso penetrastes, compreen-
315
destes — com Sua Eminência — passando adiante para a janela seguinte,
transparente, volátil, insubstancial, e assim por diante e assim por diante...
até o infinito. E isto, meus Veneráveis Confrades, isto não constitui o ma­
terial de que são feitas a fé e a verdadeira crença. —A voz de Angélico é o
único som. Quando ele pára, o silêncio é imenso.
Há uma sensação de enjôo, de uma profunda repugnância em Thule e
Buff. Lynch, a cabeça nas mãos, está soluçando silenciosamente. Os olhos
de Walksr estão abertos, cheios daquele antigo brilho que costumavam ter
uns quatorze anos antes, quando ele veio para Roma para o II Concílio Vati­
cano e quando aqueles que o cercavam diziam uns para os outros “este é
inteligente! Irá longe, na Cidade Etema!” .
Quando Angélico recomeça, sua voz é profunda, calma e lenta. Move
a cabeça, os olhos, o corpo, de um lado para outro, paia abranger todo
mundo no fluxo de seu pensamento:
— O fato, Eminentes Irmãos, é que os progressistas e os socialistas
democráticos transformariam toda a nossa teologia numa ciência de bem-
estar social. Transformariam nossa teologia moral numa reestruturação po­
lítica da sociedade humana. Transformariam nossa piedade e nossa devoção
tradicionais numa ciência de vida definida e estudada conforme uma sexua­
lidade, uma antropologia e uma psicologia que não são de Deus - e que, de
qualquer maneira, estão falidas em nosso mundo. Não! Digo de novo: Não!
Não farão isso!
— E não o farão, meus Eminentes Irmãos - deixando de lado a sua
inerente rendição de todos os nossos valores —porque, como os tradiciona­
listas e os conservadores, esses socialistas democráticos deixariam a iniciati­
va aos não-cristãos. Eles nos colocam à disposição de nossos inimigos. —Pá­
ra, por um momento, depois repete: —Nossos inimigos! À disposição de nos­
sos inimigos. —Quando repete, forçando a penetração da idéia, vira-se, para
olhar de frente cada setor da assistência. ~ Sem nenhuma iniciativa própria.
Nenhuma iniciativa, salvo a imitação de nossos inimigos. Nossos inimigos. —
Finalmente, quando termina, deu a volta completa e está olhando para
Franzus.
— Assim, —Angélico volta-se de novo, rapidamente, como que se domi­
nando, e dirige-se à longa mesa, —assim, Meus Senhores Cardeais-Presidentes,
não haverá apoio da proposta de política do Meu Senhor Thule. Nem haverá
nenhuma indicação do Meu Senhor Yiu... — ele se interrompe e baixa os
olhos para o asiático. Yiu mostra uma porção de dentes e pestaneja por trás
dos óculos. Afora isso, não se mexe. —Mas haverá uma pergunta. Há uma per­
gunta a que devemos responder. Tudo se prende a essa pergunta e à resposta
dada a ela. — Morde os lábios, enquanto reflete. Aqueles que conheceram
Angélico no passado reconhecem o hábito: geralmente precede alguma expres­
são profundamente sentida de suas idéias.
— Tendo eliminado as posições tradicionalista, conservadora e socialis­
316
ta democrática, por não constituírem alternativas viáveis, por serem simples­
mente capitulações —maneiras de dizer formalmente: “Vamos acompanhar
os acontecimentos e deixar que os acontecimentos decidam nossa sorte” —
permiti que vos faça esta pergunta. Respondei a ela vós mesmos, meus Emi­
nentes Cardeais! É a seguinte: temos alguma outra alternativa? Há uma? Ou
já esgotamos as soluções? E estamos metidos num cul-de-sac? Porque, se não
há outra alternativa, vamo-nos preparar para uma lenta e certa desintegração.
— Angélico faz uma pausa, antes de inclinar-se para os Cardeais-Presidentes,
em sinal de que já terminou, depois acrescenta, com muita sinceridade: —
Por alguma mágoa, por alguma ofensa —não-intencional, garanto-vos - pro­
vocada por minhas palavras, ou meus gestos, peço o perdão de Vossas Emi­
nências. —Com isto, põe-se a caminho de seu lugar. Está transpirando.

Durante os últimos minutos da fala de Angélico, Thule e Buff estiveram se


comunicando por escrito. É claro que não podem deixar passar a oportuni­
dade que têm sem luta. As propostas de Thule devem ser apoiadas. E é
claro que Viu é o homem deles. Não podem mudar de candidato no meio
da Sessão.
Buff atrai o olhar do Presidente e levanta-se para reparar o dano causa­
do por Angélico. O anglo-saxão recorre agora a uma manobra admitida em
Conclave: reindicação e afirmação de apoio à sua Política e a seu candidato.
Nesse momento, ele é um patrício seco e amarrotado, perplexo ante a violên­
cia da disputa no Conclave:
— Apesar do que parece ser uma mudança de atitude de todo incompre­
ensível de Sua Eminência Angélico, —ela lança a Angélico um olhar gelado, —
desejo, Eminentíssimo Presidente e Muito Amados e Estimados Colegas, re­
correr à proteção do antigo e firmado costume da reindicação. Não apenas
isso, desejo também salientar que, qualquer que seja a prática em contrário,
não há nada na Constituição do Conclave que nos proíba de indicar, apoiar
e mesmo eleger um candidato relutante. — Volta-se e olha fixamente para
Yiu. — Candidatos relutantes muitas vezes deram os melhores Papas do pas­
sado.
— Bravo! Buff! Bravo! Yiu! Yiu! Bravo! - Os gritos ecoam por todos
os lados. Buff espera até que parem, tentando avaliar a força que representam.
— Por conseguinte, proponho a Política de Coalisão, para ser adotada
pelo Conclave. E proponho o nome do meu bom e Eminente Senhor Cardeal
Yiu, para ser submetido a voto como Papa. —De novo há gritos de aprova­
ção e algumas palmas isoladas. Buff senta-se. Não tem certeza. Talvez Angé­
lico não tenha reduzido as chances deles.
Lowe consegue rapidamente permissão para falar:
— Em nome de muitos Cardeais da Europa e do exterior, desejo, Emi­
nentíssimo Cardeal-Presidente, secundar a proposta do nosso Eminentíssimo
317
Cardeal Buff; pela Política de Coalisão e pela indicação do nosso Eminentíssi­
mo Senhor Cardeal Yiu. —Faz-se silêncio. A maioria dos Eleitores não pode
esquecer que, apenas uma noite antes, o nome de Lowe fora apresentado para
indicação. Alguns deles ainda o consideram extremamente papabile.
Domenico agarra o momento de indecisão, antes que se desencadeie qual­
quer entusiasmo, numa reação à nova indicação e ao apoio, ou a Lowe, pes­
soalmente e como papabile. Atrai o olhar do Presidente e depois se volta para
encarar Marquez:
— O Cardeal diz que esta não é uma Igreja destinada à manutenção do
status quo burguês. E, como todos nós bem sabemos, organiza missas popu­
lares, em sua diocese, que terminam não com o Salve Rainha, não com qual­
quer oração, realmente, mas com um cântico aos direitos humanos. E tudo
isso é ótimo - desde que a liberdade dele perdure. Mas, devo admitir que,
com toda a sua sensibilidade para o que está acontecendo no mundo, Sua
Eminência não tem ilusões de que um regime marxista lhe vá permitir que
conserve a sua liberdade! O tipo de situação na Rússia, em qualquer dos países
satélites —Sua Eminência quer, dé fato, essa mesma situação para a América
Latina? Ou a situação na China maoísta? Ou a situação na Cuba de Castro?
— Lembrai-vos de que não são apenas a família e a cultura que estão sen­
do esmagadas aí nesses países. É a própria mente humana. Deseja ele, real­
mente, essa situação através de todo o comprimento e largura da América
Latina? Certamente que sua própria capital está ruim. Mas deseja ele que ve­
nha a se parecer com Pequim —uma cidade assassinada, um cadáver desfigu­
rado daquela que foi uma das mais belas cidades do Oriente? Deseja ele isso,
realmente? Ou outra Pnom-Penh?
Domenico volta-se para outros oradores:
— Respeito, naturalmente, Sua Eminência o Cardeal Lowe, como todos
vós respeitais. Mas todos nós sabemos, também, que a língua do Cardeal é
menos sábia do que sua mente- E o fato de haver secundado esta indicação
é mais um exemplo de sua indiscreção, falando quando não devia... —Gritos
de “Vergonha!” “Retratai-vos!” “Deixai a tribuna!” “Bravo!” “Tolice!”
chegam a Domenico, vindos de muitos lugares. Thule e os outros estão im­
pacientes pela votação. Mas Domenico não cede.
— Afinal de contas, o Cardeal Lowe chegou a dizer, em público, que
gostaria de propor um brinde à moralidade profundamente religiosa do Rei
Henrique da Inglaterra e ao santo sacrifício pessoal com que o mesmo bus­
cou a mensagem do Evangelho! O Rei Henrique! E isso referindo-se a um
homem que imprudentemente declarou que todos os bordéis, todas as
violações, assassinatos, roubos e adultérios da espécie humana eram uma
abominação menor que a Missa Católica! Como pudestes, Eminência, propor
sinceramente um brinde a um blasfemador sacrílego dessa espécie? Contudo,
o Cardeal fez isso — e muito mais. Acho que, principalmente, porque sofre
de ecumenomania. Os não-católicos devem ser agradados a qualquer custo!
318
É claro, se a vossa intenção é conseguir as boas graças dos luteranos... —olha
para Lowe.
A bem conhecida impassividade de Lowe agora lhe é muito útil. Ele não
se mexe, nem fala. O sangue subiu-lhe ao rosto. Mas não é tolo de enfrentar
Domenico. Porque, se Domenico está espalhando todas essas picadas de cen­
sura, conclui ele, estas devem ser as precursoras de algumas violentas marre­
tadas que está planejando. Essa foi sempre a tática de Domenico.
Mas, agora, sua tática é mais sutil. Domenico inclina-se para o Presidente
e senta-se. Thule parece um pouco surpreso. Está quase pedindo permissão
para falar quando, de novo inesperadamente, se fazem ouvir os tons agudos
da voz do Cardeal Tsa-Toke. Ele é breve, mas suas palavras são poderosas,
por sua objetividade:
— Meus Irmãos, antes de prosseguirdes, aceitai o meu testemunho. É
simples. Sem enfeites. Pelo que vale. O marxismo tem duas caras. Usa uma
antes de conseguir o poder. A outra, depois que o consegue. Sabemos disso.
No meu país. Na minha Ásia. Nosso país está sob o domínio do terror. Um
vasto campo de concentração. Um formigueiro. Sabeis o que é viver diariamen­
te com o terror em vossas ruas, em vossa esquina, em vosso quarto de dormir,
na escola, na fábrica, na Igreja —quando há uma Igreja aberta? Vós não sa­
beis. Nós sabemos. Não tenhais nada a ver com ele.
— Por favor! Estamos cheios de fome e de escravidão. Cursos de reeduca­
ção. Prisões. Turmas de escravos. Tortura. Execuções. Miséria total é o nosso
lote. Nossas crianças são ensinadas a desconfiar de nós. A nos odiar. A nos
delatar. Nos países vizinhos também é um infemo. Mais de dois milhões e
meio já foram mortos. As cidades esvaziadas. Os vilarejos devastados. Não há
comida. Só trabalho. Trabalho para todos. Meninas. Velhas. Homens idosos.
Crianças pequenas de seis e sete. Igrejas, pagodes, escolas, bibliotecas, tem­
plos antigos, todos desaparecidos. Pensai bem antes de aceitardes aquilo que
alguns loucos estão chamando de um relacionamento prático com isso. Se
tiverdes que viver sob o marxismo, rogai que vossa fé possa sobreviver a ele.
Muito obrigado.
Há um silêncio respeitoso, depois disto. Tsa-Toke aparece como um sím­
bolo vivo de sofrimento, de dor silenciosa. Thule não sabe como lidar com um
homem assim. Enquanto hesita, antes de se levantar para propor que a assem­
bléia passe à votação, ainda outra voz intervém: é Yiu.
— Minha recusa em ser proposto, Eminentes Irmãos, eu sei que não inva­
lidaria a indicação. Assim, podem continuar como preferirdes. Tenho, porém,
uma ligeira pergunta a fazer ao Meu Eminente Senhor Thule e aos membros
do grupo da Coalisão. —Yiu parece bastante animado e sua voz é estridente.
— Terei entendido corretamente o ponto de vista do Eminente Cardeal
e de seus Colegas na Coalisão, de que, sendo embora o marxismo uma ideolo­
gia irredutivelmente oposta ao cristianismo, é possível estabelecer um entendi­
mento prático, uma espécie de colaboração em que um deixa o outro a vonta­
319
de, sempre e apenas visando à mudança do regime social e da estrutura polí­
tica das nações?
Thule olha rapidamente para Buff e Franzus. Franzus levanta-se:
— Esse, Eminência, é o nosso entendimento, tendo-se sempre na lem­
brança que, num processo dessa natureza, o próprio marxismo necessariamen­
te terá que passar por algumas mudanças, é claro!
— Mais outra pergunta. —Yiu está sendo rápido e conciso. —Já foi esta­
belecida alguma combinação? —Um silêncio segue-se a esta pergunta. A maio­
ria dos Eleitores está espantada com a indagação. Yiu continua de pé e olhan­
do para Franzus.
Buff levanta-se apressadamente:
— Não consigo ver o propósito da pergunta do Eminente Cardeal, uma
vez que a Política de Coalisão ainda não é oficial —esperamos que venha a ser
- como poderia ter sido feita alguma combinação?
— Muito bem, —responde Yiu, tranqüilamente. —Farei a minha pergun­
ta de outra maneira à Sua Eminência o Cardeal Franzus. - Volta-se novamen­
te paia encarar o Cardeal. —Eminência, antes de deixardes vossa cidade natal
para vir aqui, tivestes entendimentos com membros do governo?
— Qualquer contato com o governo é realizado através do gabinete com­
petente da minha chancelaria. Posso dizer, positivamente, que não mantive
conversações com qualquer funcionário, ou com funcionários, na véspera da
minha partida para o Conclave.
— Deixai-me pôr a questão assim, Eminência. —O tom de Yiu revela sua
tenacidade. — Mantivestes conversações com alguma pessoa que falasse peio
governo, ou que fale com o governo?
— Não tenho bem certeza do que quereis dizer, Eminência, —responde
Franzus demonstrando perplexidade. — Muitos daqueles que, em meu país,
passam pelas minhas portas falam, estou certo, com membros do governo.
Muitos deles, por tudo que sei, são membros do governo. Não sei bem como
responder a vós.
— Mas, especificamente, sabeis de alguém com quem tenhais falado so­
bre assuntos do Conclave e que fale com funcionários do governo?
— Como eu disse, Eminência, há muitos...
— Não, não, Eminência, estou-me referindo a uma conversa em particu­
lar. Permiti que seja mais específico. Conheceis um homem chamado Roan
Kale? —O rosto de Franzus fica vermelho e ele responde secamente:
— Acho que entre os meus conhecidos deve haver um homem com esse
nome. Roan e Kale são ambos nomes muito comuns, como Rodriguez, na
Espanha e Smith na Inglaterra, sabeis o que quero dizer. —Uma pausa, en­
quanto ele resmunga “Roan Kale, Roan Kale... Roan Kale...”.
— Vossa Eminência não teve uma conversa com Roan Kale exatamente
um dia antes de partir para Roma? —Franzus contrai as sobrancelhas e fica
320
mirando o teto. Passa de um pé para o outro. Yiu encara-o fixamente. Final­
mente Franzus baixa os olhos, fita-o e depois desvia o olhar.
— Sim, agora —vagamente, compreendeis, eu me lembro, sim, tive uma
conversa com Roan Kale. Sim, tive, Eminência.
— Veio à baila a questão do Conclave?
— Oh, estou certo de que a viagem que eu iria fazer surgiu como assunto
de conversa. Na verdade, todo o pessoal leigo que me visitou nos dias que pre*
cederam a minha partida veio, como ireis compreender, para me desejar boa
sorte e paia me trazer pequenos presentes. É hábito de nossa terra, sabeis,
Eminência.
— Mas foi feita menção especial do Conclave?
— Fora da menção da minha viagem a Roma para o Conclave, Vossa
Eminência quer dizer? Oh, acho que, como todos os outros, ele estava interes­
sado nos assuntos do Papa e da Igreja. Sim, acho que a questão foi menciona­
da,
— Quero dizer em particular, Eminência, especificamente... —Yiu insiste
em usar a palavra e isso toca os Eleitores ouvintes como uma coisa tão estra­
nha quanto significativa, —teve Roan Kale alguma coisa a dizer sobre a atitu­
de do govemo?
— Na realidade, não posso me lembrar exatamente de todos os detalhes...
— Eminência, foi há dois dias e meio atrás...
— Roan Kale não poderia, de fato, falar sobre a atitude de nosso gover­
no, uma vez que não é, tanto quanto me lembro, um membro do govemo, ab­
solutamente. Não, na realidade trabalha no negócio de viagens, tanto quanto
me lembro...
— Eu não disse “vosso governo” , Eminência, —é a resposta de Yiu, fa­
zendo uma pausa.
— Bem, Eminência, que outro gover... —Franzus interrompe a pergunta
e olha rapidamente para Thule e para Buff, depois de novo para Yiu. Thule
balança a cabeça e põe-se de pé:
— Eminente Senhor Cardeal-Presidente, na verdade não posso ver até on­
de este esquema de discussão —interrogação será um termo mais adequado -
nos conduzirá. Além disso, o tempo está...
— Se Sua Eminência permitir, —é Domenico, —todos nós gostaríamos
de saber o que é que, em especial, o Meu Senhor Cardeal Yiu deseja saber.
Acho que Sua Eminência Franzus deveria responder ao Meu Senhor Yiu.
Durante três ou quatro segundos, Thule olha fixamente nos olhos de
Domenico, medindo a força de sua determinação e tentando sondar aquilo
que ele sabe, até que ponto ele irá. Depois, seu olhar vacila e ele volta a
sentar-se.
Todos olham para Yiu, depois para Franzus.
— O que desejo saber, Eminência, é precisamente o seguinte, —prosse­
gue Yiu. —Na palestra de Vossa Eminência com Roan Kale, houve discussão
321
quanto à atitude do governo soviético ante dois ou tiês possíveis desfechos^
do Conclave? E, mais especificamente, transmitiu Roan Kale a Vossa Emi-f
néncia qualquer informação quanto à ação que poderia ser empreendida pelo
governo da União Soviética, dependendo do resultado do Conclave? - Na
medida em que as sobrancelhas de Franzus se contraem cada vez mais, em
nós de preocupação, Yiu continua: — Mais especificamente ainda, foi men­
cionado entre os senhores —quer dizer, dele para vós —que se emergisse des­
te Conclave um Papa que admitisse a colaboração com os Partidos Comunis­
tas e com os colegas marxistas na Europa e na América Latina —particular­
mente na América Latina — o governo soviético poderia tomar a iniciativa j
de determidas ações?
Agora todos os olhares estão pregados em Franzus. Seu rosto parece de J
pedra, tão desprovido está nesse momento de qualquer expressão. Depois
de uma breve e nervosa espera:
— Como pôde Sua Eminência pensar que Roan Kale poderia falar em
nome do governo soviético? —A manobra foi um erro da parte de Franzus.
Ele devia ter adivinhado,
— Porque, — responde Yiu, com o som anasalado característico de sua
fala, sem alterar a expressão tranqüila do rosto, —porque Roan Kale é um
empregado da agência oficial de segurança russa, de fato do KGB.
A essa altura, um sussurro de consternação perpassa entre os Eleitores.
Têm a sensação de que, até aquele momento, foram deixados de foia de
alguma parte essencial do drama do Conclave e que agora estão sendo arras­
tados para ela. Todos os olhares se fixam de novo em Franzus. Thule faz si­
nal aós Presidentes, mas eles já tinham dado assentimento ao Camerlengo.
O Camerlengo tem a mente muito perturbada, se se interpreta a expres­
são de seu rosto. Levanta-se e fala no tom lacônico habitual; mas ninguém
que o esteja ouvindo deixa de perceber a nota de ansiedade e preocupação
em sua voz. Como Camerlengo, perdeu o controle de seu primeiro - e pro­
vavelmente seu último —Conclave.
— Sua Eminência Franzus sempre deu pessoalmente, ao Secretariado,
- como devia — conta de todas as suas discussões com funcionários do go­
verno. Acho que todo esse assunto é um despistamento. Deveríamos encerrá-
lo completamente e continuar com nosso principal assunto. —Ao terminar,
seus olhos estão cheios de apelo aos Presidentes. Chega a lançar um triste
olhar de súplica a Domenico e a Angélico. Olha fixamente para Yiu e Ni
Kan, como se eles e todos os asiáticos fossem a causa de toda aquela compli­
cação, mas continua de pé, como se esperasse um desafio.
É claro que está assustado com alguma coisa e cada Eleitor tem nítida
consciência de seu terror. Nunca viram o Camerlengo daquele jeito. Ele sabe,
de fato, que a conversação que Yiu está tentando deixar a descoberto acon­
teceu realmente. Mas não quer que se espalhe qualquer informação sobre ela,
ou sobre seu conteúdo, não apenas porque os detalhes perturbariam muitos
322
Eleitores com cujos votos tinha contado para a agora defunta Política Geral,
mas também porque qualquer notícia dessa conversa inevitavelmente acarre­
tará a menção dos outros Relatórios Secretos. Nem o Camerlengo nem Thule
quer que esses Relatórios Secretos se transformem em documentos oficiais
do Conclave. Estranhos parceiros.
— Muito bem! — É Domenico quem intervém. — O Camerlengo tem
muita razão, Eminências! Por que gastar nosso tempo com um assunto menor
—ou uma pequena parte de um tópico importante? —0 rosto do Camerlen­
go suaviza-se, em genuína gratidão e alívio, Franzus relaxa visivelmente. Thule
e Buff estão mais tranqüilos.
— De fato, —continua Domenico numa voz bem alta, —acho que deve­
ríamos dar andamento ao assunto principal. —Olha em tomo, esperando para
atirar a granada que tem na mão até que se acalme a agitação precedente e
que os Eleitores parem de cochicar uns com os outros. Domenico calculou
que tem apenas uma chance de impedir a marcha da coligação pela CoalisÕo.
Tem que aproveitar essa chance agora. Finalmente faz-se silêncio.
— Proponho, —Domenico levanta a voz e olha em redor de si, repetindo
a palavra, —proponho que o Camerlengo ajude a resolver nossas dificuldades.
— Olha para o Camerlengo. - Pondo imediatamente nas mãos dos Eleitores
—de todos os Eleitores —cópias dos Relatórios Secretos que seu gabinete re­
cebeu no decorrer dos últimos quatorze meses.
Por um momento, há um breve silêncio de incompreensão. Ninguém es­
perava que Domenico dissesse o que acabou de dizer. O Camerlengo está es­
tupefato, incrédulo. A maior parte nada sabe sobre os Relatórios Secretos. E,
por alguns segundos, ficam ali sentados, cada mente tentando compreender
o que acabara de ser dito, ou reformular a situação de acordo com o que cada
um havia esperado que ele dissesse.
E aí, explodiu o pandemônio. De repente, compreendem: “Relatórios
Secretos?! Nunca vimos nenhum Relatório Secreto! Que Relatórios Secre-
tosV’ Ò cimento convencional desta Sessão de Conclave liquefez-se e derre-
teu-se. Agora há 116 cardeais completamente transtornados. Vários deles
deixam seus lugares. Thule e Buff dirigem-se para Franzus. O Camerlengo
disparou para a mesa principal, para falar com os Presidentes. Marquez e
Lynch reuniram em tomo de si vários latino-americanos. Quatro norte-ame­
ricanos estão falando com Terebelski e Karewsky. Muitos cardeais ainda per­
manecem sentados em seus tronos, observando a cena e falando com os vi­
zinhos. Domenico sentou-se. Angélico está junto dele, falando animadamen­
te. Ni Kan está rabiscando no bloco à sua frente. Yiu está-lhe falando, mas Ni
Kan não o olha. Walker, esticado, mantém-se sentado em seu trono, os braços
dobrados como de hábito. Levanta os olhos para a mesa do Presidente, pas­
sa-os para o grupo formado por Thule, Buff e Franzus, depois para Yiu e Ni
Kan, depois volta a contemplar a longa mesa presidencial. Parece estar obser­
vando e tomando notas mentalmente. Seu estudo é interrompido por Riccio-
323
ni e Vasari, que chegam perto dele em animada conversação. Só os negros e
os indianos não se afastaram de seu lugares e não estão conversando. Olham
em tomo, sorrindo ocasionalmente uns para os outros, e esperam.
Finalmente o Cardeal-Presidente faz soar a sineta de prata, uma, duas,
três vezes, depois uma quarta vez, mais insistentemente e mais alto. Desli­
gando-se lentamente de ajuntamentos e grupos de colegas, os Cardeais reto­
mam seus lugares. Volta a calma. 0 Cardeal-Presidente olha em torno, depois
na direção do Camerlengo. Este se levanta. Seu tom é seco, sucinto, frio,
cheio de fúria:
— Eminências, depois de consultar nossos Cardeais-Presidentes, parece
aconselhável suspender os trabalhos desta Sessão. Em razão de possíveis in­
formações falsas... — dá uma mirada cortante em Domenico, —acho que as
cópias dos chamados Relatórios Secretos deveriam ser passadas às mãos de
todos vós. Digo “chamados” Relatórios Secretos, porque na realidade são
apenas memorandos confidenciais, redigidos por diversas pessoas, de dentro
e de fora da Igreja. Se cada memorando e cada carta confidenciais são secre­
tos, então imagino que podeis chamar de secretos esses Relatórios. Devo di-
zer-vos, contudo, que até aqui foram mantidos confidenciais —ou, se prefe­
rirdes - se alguns preferirem —“secretos” - porque diretamente nada tinham
a ver com a Política Geral do Conclave, sobre a qual originalmente se havia
chegado a acordo. E, como sabeis, temos bastante coisa a fazer aqui no Con­
clave, sem sobrecarregarmos a agenda.
— Mas agora eles têm muito a ver com o nosso trabalho e com os nossos
assuntos de Conclave. —Ê Domenico, num tom tão calmo, tão frio e tão su­
cinto quanto o do próprio Camerlengo. Este fica murcho. A tensão sobre
ele é maior do que pode suportar.
— É claro, Eminência! É claro! —Em seguida ele se senta.
Mas alguns dos outros não estão dispostos a ceder tão facilmente quanto
o Camerlengo — não têm nem um pouco do seu realismo. E não conhecem
Domenico tão bem quanto o Camerlengo conhece esse homem obstinado. De-
lacoste é o único a tentar, por lealdade ao Camerlengo, e em defesa da posi­
ção da esquerda, o torpedeamento da proposta de Domenico.
— Reverendíssimas Eminências, deixai que suplique um segundo de vos­
so tempo. Eu e meus colegas achamos que nenhum uso útil poderá ser dado
a esse material delicado pela maioria de nós, Eleitores, que não está afeita a
esses assuitos de estado e às políticas do mundo internacional. Afinal de con­
tas, muitos de nós são simples pastores de almas, vós sabeis.
Mas Domenico não vai deixar que a oportunidade passe, como o Camer­
lengo sabe que não deixará:
~ Dizei-me, Meu Senhor Cardeal, —diz ele com naturalidade, —concor­
dais com o Bispo Henri Donze, de Lourdes, em que as aparições da Imacula­
da Virgem aconteceram no santuário —cito as palavras do Bispo —a fim de
324
impor Lourdes como um símbolo de serviço da Fé para uma civilização de
amor? É este o significado de Lourdes?
A pergunta é inesperada e parece a alguns absurdamente estranha à crise
atual; mas Delacoste a compreende perfeitamente. O discurso de Donze, em
que ele usara aquele tipo de linguagem, causara tremendo furor. Funcionários
do Vaticano e o Papa Paulo VI tinham classificado aquela maneira de falar
como de “duplo sentido” e “grosseiramente vaga quanto ao significado espe­
cialmente religioso do Santuário da Virgem” è assim por diante. Delacoste
percebe tudo isso; e percebe, também, que Domenico lhe preparou uma ar­
madilha. Domenico deve conhecer o conteúdo de pelo menos um dos Rela­
tórios Secretos. Porque aquele tipo de “duplo sentido” é parte de uma reco­
mendação, sabe-o Delacoste, contida em um dos Relatórios, que trata das
relações com os protestantes, que rejeitam a atitude católica perante a Vir­
gem Maria.
Pelo canto do olho, Delacoste vê Thule levantar-se e fica alarmado: Thu-
le pode provocar uma explosão. Mas Domenico não irá tolerar nenhuma in­
terferência, nem permitir que a nova iniciativa lhe seja tirada das mãos.
- Meu Senhor Thule, —diz Domenico voltando-se para Thule e falando
com uma voz extremamente alta, estridente, —vós podeis ter falado a milha­
res de pessoas, pelo mundo afora... —faz uma pausa, para dar lugar ao leve
ruído do riso entre os cardeais, — como continuareis a fazer pelo mundo
afora. Mas isso não vos qualifica imediatamente para falar sobre Lourdes, ou
para interferir, neste momento, entre eu e meu Eminente Irmão. —Thule não
sabe como receber isto. Dá um meio sorriso, olha para o Presidente, depois
decide sentar-se de novo.
Enquanto isso, Delacoste tomou uma decisão. Olha para Domenico por
longo momento, depois sorri e diz indulgentemente:
- Confiarei na autoridade doutrinal da Igreja para me informar quanto
ao significado de Lourdes. Agora, aquilo que o Meu Senhor Donze declarou,
como Vossa Eminência sabe, é outro assunto completamente diferente.
Domenico sorri em resposta, o sorriso suave do esgrimista que sabe que
o desafio de sua espada foi respondido com o recuo.
A esta altura Witz faz soar a sineta de prata. Faltam dez minutos para as
seis. Delacoste olha para a mesa do Presidente, depois para Domenico e sen-
ta-se. Witz apressa-se em terminar a Segunda Sessão.
- Com a aquiescência de todos, peço, por favor, aos Reverendíssimos
Cardeais que se dispersem. Vai ser necessária mais ou menos uma hora, para
que o serviço de cópias possa fornecer a todos a necessária documentação.
—Faz uma pausa, para ler uma nota manuscrita que acaba de lhe ser entregue.
Depois:
- Foi-me solicitado, pelo Reverendíssimo Camerlengo, que informasse
que, além dos Relatórios já mencionados, tem ele ainda o seguinte, â vossa
disposição — numa base individual, naturalmente. Os registros escritos, tal
325
como se encontram, dos Arquivos Secretos de todos os Conclaves anteriores
—como sabeis, tais registros não são completos. Mas, tal como se encontram.
— Em segundo lugar, o dossiê da correspondência entre a Santa Sé, de
um lado, e a URSS e seus satélites, de outro lado, entre os anos de 1950 e
1976. Finalmente, um resumo das atividades para obtenção de informações
secretas e seus resultados, promovidas e colhidos pela Santa Sé, na Europa
Oriental e no Extremo Oriente, entre os anos de 1955 e 1975.
— A ceia será meia hora mais tarde que o habitual. Nós nos reuniremos
amanhã, depois da Missa do Espírito Santo, às 10 horas da manhã. A Segun­
da Sessão está agora encerrada. — Levanta-se, o mesmo fazendo os dois co-
Presidentes.
No momento em que Witz dá o sinal, os Cardeais levantam-se para sair.
Não há uma súbita explosão de comentários. A maioria está um pouco ton­
ta com o que aconteceu. Não há consternação, salvo no rosto do Camerlengo.
Thule tem um ar decidido e fimie. Franzus está obviamente assustado, e diri­
ge-se para o lado de Buff, que parece exausto. Angélico está vermelho como
uma beterraba. Domenico não olha para pessoa alguma. Sua expressão é
indecifrável.
A maior parte dos Cardeais deixa o Salão de Assembléias isoladamente.
Alguns grupos de dois ou três formam-se do lado de fora, mas em minutos
foram-se embora. O jovem Cardeal gago é um dos primeiros a sair, toma o
ônibus e logo está de volta a seu quarto. Senta-se junto à escrivaninha, o dedo
sobre a cruz pastoral, em cima daquele rubi.
Azande continua uma porção de tempo sentado, depois se levanta de­
vagar e caminha para fora. Olha em torno, encontra o olhar do jovem Mon­
senhor, sorri, murmura:
— Experiência, Monsenhor! Experiência! — e em seguida põe-se a ca­
minho.
O Monsenhor mete a cabeça para dentro da porta, passa os olhos pelas
fileiras de cadeiras vazias. Depois fecha as portas e apressa-se em sair. Dentro
de vinte minutos, todos os cardeais estão de volta ao Domus Mariae.

NOITE: DAS 18 HORAS À 1 HORA DA MADR UGADA

Através do jovem Monsenhor e de seus auxiliares, o Camerlengo põe em


marcha o trabalho de extração de múltiplas cópias dos Relatórios. A pedido
de Eakins e dos americanos, mostra-lhes também o dossiê da correspondência
do período de 1950/1976, entre a Santa Sé e a URSS. Depois o Camerlengo
senta-se por um momento à sua mesa, para telefonar para Masaccio. Quando
estende a mão para o telefone, Edouardo Ruzzo, chefe da segurança, bate à
porta e entra sem esperar permissão. Esse é um procedimento pré-combinado
entre o Camerlengo e ele, em qualquer momento crítico de decisão.
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— Que é, Ruzzo?
— Uma completa reviravolta em nosso problema, Eminência. —A expres­
são do Camerlengo é de alarme. Ele retira a mão do telefone e se levanta, com
uma pergunta nos olhos. Ruzzo continua:
— Parece que, como determinamos, há uma pessoa que funciona como
emissora de registros...
— Isso nós sabíamos. E...?
— Agora parece que temos outra —uma emissora que não é nem recebe­
dora nem registradora.
O Camerlengo senta-se pesadamente.
— Você tem certeza?
— Certeza. Sim.
— Alguma delas foi localizada?
— Não. Mas com um pouco de sorte, isso não deve estar longe de acon­
tecer.
— Quanto tempo? Temos muito pouco tempo. E temos uma crise. Uma
crise de verdade. Intervenção extema é a última coisa que queremos agora.
— Lá pela meia-noite. A propósito, Eminência, vós podeis nos dar algu­
ma pista - quero dizer, podeis indicar algum setor que seja mais provável que
c" outros? — Ruzzo olha para o Cardeal com aqueles seus olhos nobres e
inocentes. O Camerlengo olha-o fixamente, sem expressão, depois vira a cabe­
ça para examinar duas listas de nomes penduradas na parede lateral do gabine­
te, Seus olhos passam rapidamente de um nome para o outro. Pára, rabisca
um nome num bloco de rascunho, depois volta às listas. De novo pára, anota
outro nome, acaba de ler as listas. Arranca a folha que contém os dois nomes
e a entrega a Ruzzo.
— Isto é o melhor que posso fazer, Ruzzo. O primeiro é altamente pro­
vável. O,segundo é só um palpite.
Quando Ruzzo estende a mão para a folha de papel, lê os dois nomes de
cabeça para baixo e faz um aceno de assentimento, com um sorriso tranqüilo.
Lança um olhar inocente ao Camerlengo:
— O velho e o novo. —Depois, secamente: - Muito bem, Eminência!
Ao sair, Ruzzo afasta-se para um lado, para dar passagem a Thule, que vai
bater na porta. O Camerlengo o vê na moldura da porta e diz-lhe que entre.
— Sei que deveria estar no meu quarto esperando por aqueles Relatórios,
- diz Thule quase se desculpando, —mas alguma coisa aconteceu.
— Está tudo bem. Está tudo bem. Entrai e sentai-vos. Estão todos os
Cardeais de volta a seus aposentos?
— A maior parte, pelo que pude ver. Esperando pelas cópias. Alguns es­
tão fazendo breves visitas. Sei que há um grande contingente no apartamento
de Lynch - Marquez, Lombardi, Perez, Manuel e outros.
— Buff e Franzus, suponho?
— Sim. E mais um ou dois. Acabo de vir de lá.
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Imediatamente depois do encerramento da Segunda Sessão, Thule tinha
ido para o aposento de Buff, com Franzus e Lombardi e o jovem Cardeal
gago. O único asssunto discutido fora Angélico. Angélico era o perigo. Seriam?
os acontecimentos da tarde e a intervenção de Domenico simplesmente o lan­
ce de abertura no sentido de um movimento para a indicação de Angélico?
Thule veio, realmente, para consultar o Camerlengo a esse respeito.
— Eu, francamente, não acho que seja isso, —o Camerlengo responde a
Thule. - Não há sinal de que o plano seja esse. Francamente, não sei, em
nome do céu ou da Terra, o que é que Domenico está querendo, ou Angélico, '
por falar no assunto. Mas estou quase certo de que não é uma indicação de
Angélico.
Como para tornar ainda mais profunda a perplexidade deles, o jovem
Monsenhor entra naquele momento com um bilhete de Domenico. Poderia ;
ele, por favor, conseguir do Camerlengo os registros dos Arquivos Secretos !
dos Conclaves anteriores? O Camerlengo lê o bilhete para Thule e olha-o inter­
rogativamente, mas ele também está no escuro; depois assina o bilhete e indi- ;
ca sete grandes envelopes de papel manilha, colocados sobre uma mesa lateral.
O Monsenhor os apanha e sai para o apartamento de Domenico. O Camer­
lengo e Thule olham silenciosamente um para o outro, por um momento,
depois começam a rir incontrolavelmente.
O Camerlengo volta ao raciocínio anterior:
— Não. Não. Realmente, não creio que haja um movimento no sentido
da indicação de Angélico, ou da própria indicação de Domenico. Simplesmen­
te, não sei. Da mesma forma por que não compreendo porque é que Domeni- ]
co deseja agora esses registros. Não sei o que é que está acontecendo. Não sei )
o que é que vai acontecer. j
— Bem, pelo que sabeis dos Relatórios, —indaga Thule numa tenmiva, !
—que dano será causado, ou que mudanças de atitude e de convicção ocorre­
rão, quando os mesmos se tornarem propriedade geral do Conclave?
— Mudanças enormes, —responde tristemente seu companheiro. —Quan­
to a dano. Bem, por exemplo, acho que a candidatura pan-européia está
liquidada — esperai até que tenham lido apenas o relatório financeiro, para
não falar nos outros. Acho que vossa proposta do Terceiro Mundo está tão
morta quanto um tachffo de porta —esperai até lerdes o Relatório da URSS.
E agora é um cara ou coroa entre um conservador e um tradicionalista... —ele
descobre os dentes, numa inspiração profunda, — com possibilidades iguais
de um lado e de outro. —Olha para longe, com um ar de aborrecimento. —
Oh, sim, há dano.
Thule percebe que agora não há mais nada para ficar sabendo ali. Precisa
esperar até que o Camerlengo tenha recuperado a paz de espírito.
— Procurai-me mais tarde, esta noite, —diz o Camerlengo desanimado. —
E tende uma boa leitura!
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Thule deixa o Camerlengo no gabinete interno e sai. Encontra o jovem
Monsenhor conversando com o Cardeal gago.
— Ora, que surpresa! Pensei que fosseis esperar por mim no apartamento
de Buff?
— Oh! Só uma mudançazinha, Eminência, - o jovem Cardeal sorri
tranqüilamente para ele. —Quero ver o Camerlengo sobre um assunto pessoal.
Lá dentro, o Camerlengo ouve as vozes e chama. O jovem Cardeal aparece
na porta:
— Posso entrar, Eminência? Por um momento?
— É claro! É claro! —A boca do Camerlengo contrai-se.
— Eminência, posso ficar com os Registros das Informações Secretas
referentes a 1955/1975 mais ou menos por uma hora? Eu os trarei de volta
pelas 9 horas.
Sem um instante de hesitação, o Camerlengo prevarica:
— Já estão fora, Irmão zinho. Mas podeis ter certeza de que os recebereis
no momento em que forem restituídos a este gabinete.
— Talvez pudesse partilhá-los com quem quer que...
— Perdão, Eminência. Vós conheceis nossas regras. Não divulgamos os
nomes daqueles que têm em seu poder tão delicados documentos.
— Oh, sim. É claro. Perdoai o lapso. Dizei-me, Eminência, posso ajudar-
vos de alguma forma? Deveis ter uma porção de detalhes a que atender.
O homem mais velho levanta-se, sorrindo agora. Está cansado. Talvez
possam se encontrar mais tarde, ou bem cedo, amanhã de manhã? Acompa­
nha o jovem Cardeal até a porta externa, vê-o partir, depois se volta e faz
sinal ao jovem Monsenhor. Lá dentro, junto à escrivaninha, apanha três pesa­
dos arquivos e os entrega a seu assistente.
— Leve estes para Braum. Diga-lhe para escondê-los pelas doze horas se-
guirites e para náo mostrar a ninguém. Eu manderei buscá-los.
Quando o Monsenhor desaparece com os arquivos, o Camerlengo olha
para um lado e outro do corredor. Numa extremidade, pode ver Edouardo
Ruzzo, de pé junto a um auxiliar. Os dois homens estão perfeitamente imó­
veis e silenciosos. O Camerlengo volta para sua mesa. Três quartos de hora
para a ceia. As cópias devem estar prontas nuns quinze minutos. Logo o Mon­
senhor estará de volta com seus ajudantes. Ele olha para o telefone, por um
momento, lembra-se do telefonema para Masaccio, que foi interrompido por
Ruzzo, decide protelá-lo de novo. Começa a tomar notas. Espera uma inunda­
ção de visitantes depois da ceia —agora é melhor fazer todo o trabalho que
é essencial.

Logo depois das 6 horas, quando Domenico chega a seu apartamento, Angeli­
co reúne-se a ele. Quando começam a conversar, Canaletto bate na porta e
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põe a cabeça para dentro. Seu rosto mostra desapontamento, quando vê An­
gélico:
— Oh, perdão, Pai. Voltarei mais tarde.
— Não. Não, —responde Domenico. —Que é?
— Alguns de nós gostariam de vos dar uma palavrinha, Pai...
— Sugiro que esperem todos até terem feito suas leituras, —diz Domeni­
co, não desagradavelmente. - E, a propósito, Canaletto - você não vai se
importar que eu diga isto, Angélico - nem eu sou candidato potencial, nem
Angélico o é! Leve de volta a boa noticia! Sabe o que quero dizer. —Cana­
letto fica rubro, lança um olhar a Angélico, sorri nervosamente para Domeni­
co e retira-se.
Angélico transmite a Domenico alguns retalhos desencontrados de notí­
cias. Ao que parece, os Cardeais da Comunidade Britânica deverão reunir-se
com os americanos por volta das 9:15 da noite. Os asiáticos vão-se reunir
todos no quarto de Kinigoshi, mais ou menos à mesma hora. Os poloneses,
alemães, africanos, franceses e espanhóis vão todos politicar separadamente.
Um grupo de italianos vai-se encontrar no apartamento de Riccioni, outro no
de Masaccio, um terceiro no de Canaletto. Angélico teria interesse em ver
Domenico e Azande, depois da ceia, mas Domenico não quer isso - poderia
dar a impressão errada.
— Pela última vez, Eminência, — diz Domenico seriamente para Angé­
lico, - gostarieis de concorrer à indicação? —A resposta de Angélico é en­
faticamente negativa.
Depois ficam algum tempo conversando. O planodele,explica Domeni­
co, é deixar que, agora, as coisas sigam seu curso. Porvolta das 11 horas
poderão estar chegando as primeiras informações sobre a reação dos Eleitores
aos Relatórios.
— Achais que muita coisa será modificada? —Pergunta de Angélico.
— Um bom bocado. Por uma coisa, será fazer ou morrer, agora ou nunca,
pelo menos para uns cinco dos nossos amados Colegas.
■— Franzus? Thule? Lynch? —Angélico o encara.
— Pelo menos esses. Mas também, sinto isso, para Masaccio e Ferro. Lem­
bro-me de que seus nomes estão entre os dos leitores desses Relatórios. Sen­
do assim, tinham conhecimento deles. E agora todos os Eleitores perceberão
isso.
— E a idéia pan-européia?
— No que diz respeito a Lohngren, está morta. O nome dele também es­
tá lá, como um dos leitores.
— E essa coisa Thule-Franzus tem algum futuro agora?
— Muito! É claro! É ainda muito possível! Temos que enfrentar isso
amanhã.
Quando Angélico se levanta, Domenico entrega-lhe um envelope:
— Quando passar pelos aposentos do Camerlengo, dê este envelope ao
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Monsenhor. Preciso de uma documentação. —Ao ficar novamente sozinho,
Domenico pode trabalhar sem interrupção apenas por alguns poucos minutos,
antes que seu telefone toque. É o jovem Cardeal. Por acaso, estaria Sua Emi-
nência de posse do dossiê secreto?
— Não, na verdade não estou, — responde Domenico. — Lamento. —
Quando o Cardeal desliga, Domenico chama o Camerlengo:
— Pieter, — diz-lhe com familiaridade, — um jovem amigo seu estava
agora mesmo procurando o dossiê secreto.
— Gott! — pragueja o Cardeal-Camerlengo. — Depois: — Não se preo­
cupe.
— Não estou me preocupando por minha causa, Pieter...
— Ruzzo está cuidando desse assunto. Vai dar tudo certo.
— Assim espero, —é o pensamento de Domenico, ao desligar o telefone.
Por volta das 7:15, o Monsenhor, suarento, começa a “ronda de entrega”
com as cópias dos relatórios destinadas a Domenico. Coloca as cópias na mesa
de Domenico. Depois:
— Eminência, posso pedir um favor? —Sem esperar pela resposta, con­
tinua: —Amanhã, quando anunciarem o nome do Papa escolhido às multidões
na Piazza, posso ficar no balcão? —Domenico o olha fixamente, apanhado
inteiramente de surpresa. Depois, percebendo a expressão de diabrura no
olhar do Monsenhor, desata a rir:
— Fora! — diz com fingida severidade. — Você vai ser denunciado a
Ruzzo!
Domenico gasta uns bons quinze minutos para manusear os Relatórios e
apreender-lhes, de modo geral, a essência, antes que a sineta toque para a
ceia.

Há apenas uns poucos Cardeais presentes na Sala de Jantar. Eakins e Dela-


coste estão sentados um ao lado do outro. Nei Hao está afastado num canto,
sozinho, tal como Walker, noutro canto. Yiu e Kotoko estão juntos. Na ex­
tremidade de uma das mesas, Domenico vê o jovem Cardeal gago. Está imer­
so em reflexão, a mão esquerda fazendo aquele preguiçoso gesto habitual,
de pegar na cruz peitoral.
Domenico senta-se a uma distância em que pode falar com Walker e
começa a comer. O silêncio entre ele e Walker só é quebrado uma ou duas
vezes.
— Podemos contar convosco para manter essas mandíbulas abertas,
Eminência? —pergunta Domenico sorridente.
Walker faz que sim com a cabeça, exibindo as mandíbulas:
— A propósito, o Camerlengo não virá para a ceia. Está trancado com
Ferro, Masaccio e Calder.
Domenico responde:
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— Uma sessão de pânico, sem dúvida. Pânico deles. Não nosso.
Lá pelo meio da refeição, uns dezesseis Eleitores aparecem, na maioria
latino-americanos, todos com uma expressão muito desconsolada.
Quando Walker sai, passa pela cadeira de Domenico e pára:
— Podemos pressupor que amanhã haverá unanimidade, Pai? - pergunta
serenamente.
— Amanhã, vamos todos fazer com que a coisa seja boa, Henry! Vamos
fazer dela u*na boa Sessão. Não irão perdoar você por um longo tempo —
nem a mim, por falar nisso. Mas vamos fazer com que seja boa, muito, muito
boa!
O sorriso de Walker é sua única resposta.

O efeito principal da leitura dos Relatórios pelos Eleitores não é, bem estra­
nhamente, o de uma grande desilusão, ou de raiva ante o fato de serem en­
ganados quanto às verdadeiras situações que predominavam na Igreja. Cada
Eleitor, à sua própria maneira, sempre teve consciência da necessidade do
caráter confidencial e do segredo. O princípio estrutural do governo da Igre­
ja sempre foi, afinal de contas, marcado por esses dois traços.
Mas há surpresa. Porque, embora cada Eleitor saiba, por exemplo, que o
Vaticano lida com grandes investimentos, a leitura de registros detalhados,
referentes às transações feitas mês a mês pelos seus representantes, põe
diante dos Eleitores a dura verdade de que a posse e a administração de tanto
dinheiro necessariamente conduzem aqueles que disso estão encarregados a
áreas de atividade, formas de pensamento e centros de interesse freqüente­
mente irreconciliáveis com os valores do Evangelho. E, muitas vezes, a posse e
a administração de tanto dinheiro estimula aquele orgulho e aquela desuma­
nidade que as leis da religião e da moral proíbem ao cristão - acima de tudo,
à autoridade cristã.
Os Relatórios têm, como efeito primordial, a faculdade de esclarecer o
corpo de Eleitores quanto ao porquê e ao portanto de certos lances, tanto
dentro do Conclave, quanto nos anos que imediatamente o precederam. Um
desses movimentos pré-Conclave foi a voga sócio-política e psicologizante,
surgida nesse período. No decorrer dos últimos cinco anos, foi perceptível
através de toda a Igreja uma ênfase, constantemente ressurgindo, sobre pro­
blemas que, anteriormente, os homens da Igreja consideravam como sendo
exclusivamente pertencentes ao domínio dos políticos, dos cientistas sociais,
dos psicólogos, dos assistentes sociais, dos líderes das comunidades, dos entu­
siastas da etnia e dos órgãos do governo.
Desde o começo dos anos 70, padres, freiras, frades e bispos pareceram
de todo dedicados a um esforço, não apenas de “participar” de todos os
movimentos civis e políticos de sua região — assim como de se manterem
aucourant de qualquer modismo psicológico que viesse a estar em voga —
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mas de substituir por essa atividade qualquer pregação especializada da dou­
trina cristã e qualquer ensinamento profissional da espiritualidade cristã. Não
é raro nem inesperado, por exemplo, encontrar padres usando grafologia em
lugar de teologia, na preparação para o casamento. Nem há qualquer surpresa
no fato de Bispos americanos organizarem reuniões de caráter nacional para
tratar de problemas como origens étnicas ou posse da terra; ou mesmo no
que toca a bispos que expressamente se identificam de modo franco com
facções revolucionárias.
Mas, raro ou não, inesperado ou não, todo esse modismo foi incompreen­
sível para a maioria dos cardeais —salvo para aqueles que, entusiasticamente,
aderiram à voga eles próprios. A essência da incompreensão tem sido a ten­
dência preponderantemente esquerdista, que vem marcando este comporta­
mento puramente secular dos clérigos cristãos. Dificilmente terá havido uma
aliança visível e reconhecida entre causas direitistas e as autoridades da
Igreja.
Agora se torna claro para cada Eleitor, julgando a partir dos dois Relató­
rios —o da Iniciativa Russa e o da Liberação — que todo o processo não foi,
de forma alguma, acidental. Não foi, como continua insistindo Lynch, um
acaso e o movimento do Espírito Santo, mas sim um plano bem orquestrado.
Através de ações discretas e eficientemente coordenadas, na Europa e
nas Américas, grande número de clérigos católicos e de intelectuais, juntamen­
te com muitas freiras, frades e ativistas leigos, foi levado a ver uma aliança
“temporária” com o marxismo como coisa aconselhável, e um certo grau de
marxização como um passo inevitável no caminho da “liberação cristã”.
Não pode haver dúvida quanto ao caráter coordenado desse desenvolvimento.
A substância do Relatório sobre a Iniciativa Russa é a sugestão de um
acordo, ou plano prático, entre o Vaticano, por um lado, e a URSS, como
centro operador do marxismo europeu ocidental, e a influência preponde­
rante da política esquerdista na América Latina, de outro. A URSS deseja
que o Vaticano tome determinadas providências: que suavize, de maneira
lenta e gradual, quaisquer declarações antimarxistas, explícitas e formais,
em documentos e pronunciamentos oficiais. Que evite qualquer condenação
formal da teologia da liberação, ou da filiação a Partidos Comunistas de qual­
quer país europeu (Pio XII havia emitido uma condenação desse tipo, nos
anos 40). Que aumente o número de contatos diplomáticos abertos entre o
próprio Vaticano, por um lado, e a URSS e seus satélites do Leste, por outro,
por medidas como as visitas feitas ao Papa, em 1977, por Janos Kadar, da
Hungria, e Hruska, da Checoslováquia, e as correspondentes visitas de diplo­
matas vaticanos a países comunistas.
Sem prever uma abertura imediata (mas certamente futura) de relações
diplomáticas formais entre o Vaticano e Moscou, os contatos deverão ser
multiplicados e os relacionamentos desenvolvidos pari passu, com o enten­
dimento diplomático entre o Vaticano e os Estados Unidos, que mantêm
333
apenas um representante pessoal do presidente americano junto à Santa Sé,
mas não um embaixador.
Ao mesmo tempo, o Vaticano deverá reduzir qualquer apoio oficial ca­
tólico romano aos regimes direitistas, especialmente na América Latina.
Deverá desencorajar pressões de direita (digamos, oriundas de organizações
direitistas como a Opus Dei e os Cavalheiros de Colombo) na Espanha e na
Irlanda.
Finalmente, deverá o Vaticano sancionar os diálogos marxistas-cristãos
iniciados em diversos países, e assim alimentar uma certa simpatia entre
cristãos amantes da justiça e marxistas entusiastas da renovação política.
Em troca de tais concessões, a URSS aprovaria a restauração da hierar­
quia católica nos Países Bálticos, na Checoslováquia e em outros países
satélites. Atenuaria as leis anti-religiosas através de todos esses países, leis
que têm mantido os católicos romanos fora das funções públicas, dos cargos
governamentais e da vida acadêmica. Promete tornar efetiva uma forma
especial de submissão do Patriarcado Ortodoxo Russo de Moscou e do Patriar­
cado de Constantinopla ao Papa, como Chefe da Igreja, e ao Vaticano, como
órgão central de governo da Igreja. Na hipótese de que a esfera de influência
russa se estenda para o Oeste, ultrapassando suas fronteiras de 1977, deveria
ser dada uma consideração especial às propriedades da Santa Sé, sendo con­
cedidos à mesma privilégios especiais de culto.
O Relatório da Liberação, quando considerado juntamente com a Inicia­
tiva Russa, fornece o painel de acompanhamento daquilo que muitos encaram
como um díptico dos planos comunistas russos para facilitar sua tomada de
controle do Ocidente, assim como do lugar previsto pelos atuais planejadores
do Vaticano para a Igreja Católica Romana no contexto daquela nova área
de influência e dominação russa.
O Relatório da Liberação trata principalmente da propagação da teologia
da “liberação”, partindo da América Latina e espalhando-se para o Norte,
atingindo os Estados Unidos e atravessando a Europa. A doutrina essencial
dessa nova teologia, primeiro formulada por teólogos latino-americanos,
é a de que o primeiro e mais importante passo para a salvação cristã da raça
humana é a liberação de todos os homens e mulheres do jugo do capitalismo
— primordial e malevolamente representado pelos Estados Unidos. A Igreja,
de acordo com tal teologia, deveria ser a serva da raça humana e de sua histó­
ria. E deveria não apenas permitir, deveria aprovar e fomentar qualquer vio­
lência revolucionária (denominada contraviolência justificável) visando a
remover e erradicar os centros do capitalismo.
O Relatório Cristãos para o Socialismo descreve duas organizações —
Padres para a América Latina e o Comitê para Diálogo e Ação na América
Latina —como frentes para a penetração do comunismo russo. Cita nomes de
teólogos como os Padres Gustavo Gutierrez, Giuleo Gerardi, Pablo Richard
e Gonzalez Arroyo, e indica os diversos passos através dos quais essa teologia
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de “liberação” deve ser propagada: deve ser ensinada em seminários e univer­
sidades. Deve constituir o tema das Conferências Episcopais, de congressos e
convenções de teólogos, de cartas pastorais escritas cada ano pelos bispos às
suas dioceses, de livros, panfletos e manuais. Padres, freiras e outros, direta­
mente ocupados no ministério religioso, deverão identificar-se com movi­
mentos revolucionários e de guerrilhas. Quadros esquerdistas de apoio deverão
ser constituídos em cada paróquia e em cada diocese —sempre sob o disfarce
de ação católica e de apostolado exercido pela Igreja entre os fiéis. Assim,
política e religião deverão identificar-se e confundir-se.
Deverá haver, ao mesmo tempo, o contínuo incitamento de ressenti­
mentos de direita, os quais, obviamente, crescerão, provocando sua transfor­
mação em violentas medidas repressivas. As ordens religiosas como a dos Do­
minicanos, dos Jesuítas e dos Padres e Freiras de Maryknoll deverão ser usadas
para a defesa dos direitos do povo contra regimes repressivos desse tipo. Nas
Conferências Episcopais e em vários congressos regionais e internacionais,
deve-se ter o cuidado de adotar uma linguagem oficial suficientemente ambí­
gua para satisfazer as exigências dos crentes e para justificar a violência e os
métodos revolucionários de tomada do poder. Todos os tópicos nacionalistas
(como, por exemplo, o Canal do Panamá) devem ser explorados, devendo os
prelados locais ser conduzidos a uma identificação pessoal com essas causas.
Ao mesmo tempo, é preciso que haja um contínuo esforço no sentido de
impregnar os bispos americanos, o clero e o pessoal leigo dos Estados Unidos
de um sentimento de culpa quanto aos pecados do capitalismo americano e
aos excessos verificados na América Latina, bem como da aprovação dos
princípios práticos da teologia da liberação.
O impulso desse plano deverá localizar-se primeiro na América Latina,
generalizando-se posteriormente. A idéia, na América Latina, é a preparação
para o dia em que seja possível formar o primeiro núcleo dos ESUAL —os
Estados Socialistas Unidos da América Latina; não poderá ter começo a
menos que seja assegurada a colaboração do clero.
Tanto na América Latina quanto na Europa, o tema da “liberação” deve
ser inculcado. Por exemplo, a crença popular principal da América Latina é
a devoção de Nossa Senhora de Guadalupe, como o é o Santuário de Lourdes,
na França, onde a Virgem é também venerada. A aparição da Virgem nesses
dois lugares, a imagem ultravenerada da Senhora de Guadalupe e os milagres
verificados em Lourdes devem ser descritos como “atos de serviço de uma
civilização de amor, da qual deverão ser excluídas a crueldade do capitalis­
mo e a opressão da sociedade burguesa”.
Com esses Relatórios nas mãos, muitos Eleitores juntaram dois e dois. E
é Witz quem, finalmente, resume o assunto, quando diz:
— Diplomaticamente, o regime anterior (do Papa Paulo VI) procurou
suavizar a situação dos católicos romanos dialogando com os russos, apoiando
regimes de esquerda e desencorajando - mesmo indiretamente — todos os
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movimentos direitistas. Na realidade, essa manobra política foi injetada no
crescente esforço de propaganda, como está descrito no Relatório da Libe­
ração.
E um Cardeal americano observa para o Cardeal Artel:
— Muitas das políticas sociais e das declarações dos Bispos americanos
de 1965 para cá, foram —sem que muitos deles o soubessem —profundamen­
te influenciadas por um insidioso plano destinado a preparar para a marxiza-
ção. Nesse processo, a Igreja Americana tem sido usada e abastardada.
Na proporção em que continua a leitura desses dois Relatórios, surgem
novas indagações sobre o papel de Franzus e sobre seu relacionamento com os
senhores soviéticos de seu país. E, inevitavelmente, a atenção se concentra na
aliança entre Franzus e Lynch, de um lado, e com Thule e seu grupo, de outro.
Porque, para aqueles que estão lendo o Relatório da Liberação, referente
ao movimento doutrinário esquerdista no interior das fileiras católico-roma-
nas, fica evidente que Thule é uma pessoa que, por seu caráter e pelas circuns­
tâncias, cai facilmente no papel de testa de ferro e líder desse tipo de movi­
mento. Uma coisa é clara: ele conseguiu estabelecer uma extraordinária lista
de contatos e associações com entidades nío-católicas que, até aquele mo­
mento, nunca haviam considerado seriamente qualquer idéia genuína de uma
estreita aproximação, e menos ainda de uma união, quer com Roma, quer
com qualquer alta autoridade oficial da Cúria.
Thule, porém, tinha modificado aquilo tudo! Sua força - e seu calcanhar
de Aquiles — naquele quadro todo é seu desejo verdadeiramente ardente de
ver uma união real entre os cristãos. Gostando de dizer que o espírito que
prevaleceu depois do Concílio Vaticano foi algo de único, e que jamais será
gerado de novo, Thule se havia convencido de que o Espírito Santo já foijara
uma nova unidade entre cristãos, e que apenas as estruturas jurídicas e as
mentalidades tradicionalistas impedem que tal unidade se tome a força orien­
tadora da forma quase definitiva da Igreja que Jesus fundou.
Num período de dez anos, em seus contatos pessoais, Thule estabelecera
particularmente, com muitos líderes cristãos nãb-católicos, as bases em que
essa unidade poderia ser conseguida. O objetivo não era atingir uma conformi­
dade completa ou mesmo geral, quanto à fé, ao culto e às estruturas de go­
verno da Igreja. Ele é e sempre fora demasiado realista, para achar que isso
poderia ser alcançado agora, ou num futuro previsível. Cada Igreja, de fato,
deverá conservar sua presente configuração e sua própria formulação de fé,
é o que tem dito.
O principal obstáculo a tudo, no plano da Liberação, é o Papa, o Bispo de
Roma, como chefe tradicional da Igreja Católica —seu primado de autoridade
doutrinal, sua infalibilidade nessa autoridade e sua primazia na jurisdição de
governo.
A maioria dos contatos de Thule nas outras igrejas concorda em que o
Bispo de Roma deverá ter — por força de simples longevidade histórica —
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uma certa precedência de honra: quer dizer, o Papa deveria ser e seria aceito
como Chefe dos Bispos (nas igrejas com estrutura episcopal), ou como o
chefe de maior antiguidade (em Igrejas desprovidas dessa estrutura).
Não haveria exigência de aceitação de quaisquer dogmas católicos, defi­
nidos ou aceitos no Ocidente depois dos primeiros seis Concílios (o ponto de
cisão deveria ser por volta do final do século VII). Isso eliminaria todos os
dogmas católicos sobre o Papado, sobre a Virgem, sobre a Eucaristia, sobre o
clero (o celibato e o clero masculino) e sobre liberdades políticas e a pro­
priedade pessoal.
Thule mantivera estreitas vinculações com muitos teólogos, na Europa
e na América, que haviam feito trabalho pioneiro na área das crenças acei­
táveis, numa ampla escala, por cristãos não-católicos.
A acrescentar a tudo isso, havia ele planejado, juntamente com seus ir­
mãos não-romanos, tanto quanto com teólogos progressistas, a criação de um
novo ministério vaticano, ou Congregação, como são chamados em Roma
todos os ministérios. Será constituído por uma equipe internacional de teólo­
gos e incluirá não-católicos. Esse organismo terá poder legislativo e normati­
vo —isto é, não apenas assessorial —dentro da Igreja, no que se refere a dou­
trina e disciplina. Haverá, de acordo com o novo ecumenismo do plano de
Thule, um pujante esforço no sentido de estabelecer formas comuns de culto,
sendo a tendência e o objetivo a transformação da cerimônia da Missa Cató­
lica em alguma coisa aceitável por uma larga faixa de crentes não-católicos.
Este é o tipo de Igreja aberta calculada para permitir “o máximo de liberdade
ao Espírito de Cristo”, para citar uma frase do Relatório.
Se essa política eclesial fosse conjugada à doutrina sócio-política e à
ação delineadas nas propostas russas, entáo se transformaria num plano pelo
qual o cristianismo seria operado “livre” de qualquer “enredamento em siste­
mas sociais ultrapassados e formas decadentes observadas pela Igreja, coisas
que se tornaram ossificadas, impopulares e inoperantes”.
O efeito da aliança entre Franzus, Lynch e o grupo de Thule toma-se
dolorosamente claro à luz desses documentos.
Os outros dois Relatórios Secretos são igualmente importantes, em seus
setores específicos. Um diz respeito aos entendinientos do Vaticano com o
Partido Comunista Italiano (PCI). O outro refere-se à situação financeira do
Vaticano, bem como às projeções de suas finanças.
Fica evidente, por esse segundo Relatório, que a presente administração
do Vaticano vinculou as finanças da Igreja aos percalços da economia dos Es­
tados Unidos e à idéia do sistema trilateral —Estados Unidos, Japão e Arábia
Saudita —como meio através do qual superar e sobreviver à inflação e à reces­
são dos anos 80.
Vários Eleitores, notadamente os asiáticos, sublinham agora o fato de que
a mudança de orientação dos investimentos do Vaticano, começada nos últi­
mos anos 60 e nos primeiros da década de 70, sob a direção do financista ita­
337
liano Michele Sindona, ainda não se completou; que é um caso em andamen­
to. Quatro dos asiáticos dirigem-se ao apartamento de Bonkowski, para conse­
guir respostas a algumas perguntas. Afinal, qual a razão da mudança? Qual era
o receio?
Na Cúria Romana, Bonkowski tem a reputação de saber da maior parte
das coisas, mas de só raramente ter falado muito sobre o que quer que seja.
Desta vez, porém, faz uma exceção. Salienta o fato de que, já uma vez
neste século, a Santa Sé enfrentou a bancarrota como iminente possibilidade.
No final dos anos 20, as finanças do Vaticano chegaram a uma situação triste.
A primeira auditoria real na história da total riqueza da Igreja foi conduzida
pelo Monsenhor Dominic Mariana, que informou ao Papa Pio XI, em 1928,
que o Vaticano estava a um passo da insolvência. Um empréstimo de um mi­
lhão e meio de dólares em bônus, com vinte anos de prazo, conseguido nesse
mesmo ano pelo Cardeal Mundelein, de Chicago (com a garantia das proprie­
dades da Igreja naquela cidade, avaliadas em vários milhões de dólares), afas­
tou a temida bancarrota. E, em 1929, foi assinado com o governo de Musso-
lini o Pacto de Latrão.
De acordo com esse Pacto, 90 milhões de dólares foram pagos ao Vatica­
no pelo governo de Mussolini, a título de indenização pelas propriedades de
que a Igreja fora despojada pelos italianos, em 1870. Tal soma foi confiada,
para administração e investimento, ao cérebro quase genial de um homem
chamado Bemardino Nogara. Ele a usou vantajosamente, criando um vasto
império financeiro que trouxe ao Vaticano um ativo realizável mais ou menos
igual às reservas oficiais em ouro e divisas possuídas pela França, acrescido de,
pelo menos, dois bilhões de dólares em títulos negociados na Bolsa de Valores
de Nova Iorque e de um capital corporativo bem perto dos vinte bilhões de
dólares. Entre aquela época e os dias de hoje, os investimentos vaticanos pe­
netraram em todos os setores da economia italiana, bem como da estrangeira.
No início dos anos 70, ficou evidente que as economias da Europa
estavam em declínio e que, politicamente, a Europa estaria pronta para a
penetração russa pelo fim da década. O Vaticano não tinha intenção de ir à
falência.
Aí, por volta de 1973/1974, prossegue Bonkowski, ficou claro que a
Arábia Saudita estava a caminho de exercer o papel de uma superpotência nos
campos das finanças e da política internacionais —tudo isso com base em suas
insuperáveis e, aparentemente, inesgotáveis fontes de petróleo. Enquanto
isso, a política dos Estados Unidos começou a talhar-se estreitamente na con­
formidade do papel ascendente da Arábia Saudita. Os Estados Unidos já não
tinham mais necessidade alguma de manter uma posição de primazia e lideran­
ça na Europa Ocidental. Novos mercados precisavam ser buscados e conquis­
tados, na África e em outros lugares.
— O outro Relatório, sobre entendimentos entre o PCI e o Vaticano,
conclui Bonkowski, - tem aqui sua relevância. Se, consoante as projeções,
338
a economia da Europa não pode ser reforçada, e se o Vaticano tem que se as­
sociar estreitamente à combinação trilateral dos Estados Unidos, Japão e
Arábia Saudita; e se, ao mesmo tempo, os Estados Unidos diminuem seu in­
teresse e sua influência na Itália e na Europa, então é quase certo —é claro
que no momento exato e nunca como um choque ou uma surpresa - que o
governo italiano seja parcialmente composto de ministros marxistas e que
venha, afinal, a ser marxista, não apenas em sua composição ministerial, mas
em suas políticas. O Vaticano, porém, permanece e permanecerá na Itália. Daí
as conversações com o PCI.
— Não, — responde Bonkowski a um comentário, - na verdade, não é
realmente esquizofrênico. Apenas parece ser assim, se a gente não percebe as
enormes mudanças que estão ocorrendo na geopolítica.
Os pontos principais do oferecimento feito pelo PCI ao Vaticano são
simples e diretos. Se o Vaticano retirar seu tradicional apoio —financeiro e
moral - aos democratas-cristãos (DC), e se amenizar os ataques oficiais ao
comunismo como sistema econômico, então quando e se o PCI adquirir a
preponderância e o controle no governo italiano, o Partido garantirá à Igreja
três vantagens principais: a posse e o domínio de suas propriedades, em Ro­
ma e por toda a Itália; liberdade de manter e desenvolver seus atuais planos e
investimentos financeiros no exterior; e liberdade de doutrinar e pregar con­
forme os ditames de sua consciência.
Os asiáticos, que já tinham visto tudo isso antes, no Extremo Oriente,
acham que compreendem o que havia acontecido. Sabem que o processo,
uma vez iniciado, é irreversível.
— Não é pessimismo, - observa Ni Kan. - Realismo! Vossa Eminência.
—E vão-se embora.
Há, contudo, uma violenta discussão sobre todo esse problema entre
vários grupos de italianos que se reuniram:
— Não me importa que Angélico, ou quem quer que seja, declare que “a
coloração comunista que emergirá do caldeirão europeu terá um tom pálido
de rosa” — ou se/a lá qual for a coloração que vocês prefiram! —exclama
Nolasco para aqueles que o cercam no apartamento de Masaccio. —Disseram
isso a propósito dos chineses - como é que poderiam os chineses de cultura
tão antiga, como poderiam eles virar marxistas. E sobre os amáveis cambo-
janos. E os laosianos, tão simples. E os doces vietnamitas. E, podeis acreditar
em mim, hoje tudo isso está de uma maldita, maldita cor vermelha, verme­
lha! Por que é que os europeus iriam ser diferentes?
— Como, diabos, podem eles imaginar um regime comunista na Itália -
especialmente se for cercado por outros regimes semelhantes na França,
Espanha e Portugal, e com o apoio de uma esfera de influência russa mais
para o Ocidente, afetando a Alemanha Ocidental, a Suíça e os países do
Benelux? Como é que podem mesmo imaginar que um regime comunista
339
assim iria respeitar quaisquer compromissos? —Canaletto não acredita nisso e
sua pergunta é muito prática.
— Parece contraditório e imprudente, eu sei, — responde Bronzino, —
mas é assim que, muito provavelmente, a coisa iria ser, em semelhante hipó­
tese. - E continua: —Nós somos realistas. Todos os planos, é preciso que vos
lembreis, são apenas planos. Agora mesmo está continuando a luta. Há uma
crise que afeta todo mundo. Precisa ser resolvida. Alguém vai sair perdendo.
Alguém vai sair ganhando. Se, como agora parece provável, o PCI acabar ven­
cendo - e se os partidos comunistas de outros lugares vencerem —eles tam­
bém serão realistas. Da mesma forma que os intrometidos americanos são
realistas e, afinal, resolveram deixar de lado a Europa. Afinal de contas, os
patrões de todos os comunistas, os russos, só permitirão que partidos comu­
nistas locais conquistem o poder quando for hora. Bem, eles avaliarão a opor­
tunidade da hora em termos puramente econômicos — quando for melhor
para eles, quando precisarem disso. Nem antes, nem depois. Até onde pode­
mos julgar, essa hora deverá ser por volta dos cinco primeiros anos da próxima
década, entre 1980 e 1985. Ou por aí. É bem evidente que, mesmo no con­
texto dessa configuração, as economias da Europa dominadas pelos russos
precisarão de parceiros comerciais no exterior. E, como um investidor de
estrutura internacional, o Vaticano tem um papel que poderá desempenhar
em tal configuração -- estará fixado dentro da órbita russa, mas terá seus
tendões financeiros fora dela...

Pelo meio da tarde, para surpresa de Domenico e para perplexidade do Ca-


merlengo e seus associados, tinha havido muito poucas idas e vindas entre os
vários grupos em atividade política. Domenico fica satisfeito com isso, porque
para ele a atitude significa que os Eleitores estão tomando as próprias decisões
com base nas novas informações que lhes foram fornecidas.
O grupo Thule-Franzus-Buff só parece vagamente descontente, porque
seus membros entendem que, tudo considerado, a estreita associação das
diretrizes políticas e financeiras do Vaticano com os Estados Unidos terá
efeito contrário àqueles que a eles se opõem e carreará, em sua direção, uma
votação maciça do Terceiro Mundo.
Todo mundo se apressa em observar que os negros e os asiáticos, de mo­
do geral, se mantiveram muito tranqüilos. Não participaram das rondas aos
europeus ou aos latino-americanos.
Por volta das 10:45 da noite, muito pouca coisa ainda tinha acontecido.
Angélico telefona a Domenico para saber o que ele acha de tudo aquilo. Está
nervoso e Domenico aconselha:
- Fique quieto. Não faça coisa alguma. Eles sabem onde estamos.
Na medida em que a noite avança, Buff, Lombardi e Franzus, especial­
mente este último, começam a esperar alguma reação da parte dos Eleitores.
O nome de Franzus aparece a toda hora no Relatório da Iniciativa Russa, quer
como caixa de ressonância usada pelos russos, quer como assessor dos mem­
bros do Secretariado de Estado do Vaticano incumbido do Leste Europeu
soviético. E a tônica de sem memorandos e de suas mensagens ao Secretariado
de Estado é toda ela favorável à conclusão de alguma espécie de acordo com
os russos. Quando sffo quase 11 horas, Buff e Lombardi saem para visitar os
principais grupamentos em atividade política. Sabem que os negros e os asiá­
ticos acabaram numa reunião no apartamento de Makonde, de modo que se
dirigem para lá.
Quando batem á porta de Makonde, descobrem que o africano já está
deitado. Insiste, pòrém, para que entrem, vestindo apressadamente um am­
plo roupão vermelho e calçando sandálias da mesma cor. Buff e Lombardi
ficam meio confusos e Makonde lhes diz que a reunião afro-asiática terminou
mais ou menos uma meia hora antes, decidindo seus membros que estava na
hora de irem para a cama.
— Nenhum de nós conseguiu ver qualquer alternativa, —conclui Makon­
de, como quem presta contas das conclusões da reunião. - Chegamos à com­
preensão de que nenhum Cardeal, entre nós, tem qualquer alternativa. Assim,
em vez de perder mais tempo, resolvemos ir dormir.
— Alternativa em relação a quê? — perguntam Buff e Lombardi quase
simultaneamente. O africano olha para ambos, estendendo os dois braços,
com a palma das mãos voltada para cima.
— Aqui... - olhando para a mão direita, - temos os conservadores e
os tradicionalistas. Aqui... —olhando para a mão esquerda, —temos os pro­
gressistas. Tal como estas duas mãos e estes meus dois braços, ambos os
grupos estão presos a um corpo. As ordens que lhes são dadas vêm desse cor­
po —as instruções, a força, o comportamento, tudo vem desse corpo. —Dei­
xa os braços caírem até os joelhos. —Ambos estão presos a um corpo de polí­
ticas, finanças, economia, sistemas governamentais, pressões, interesses espe­
ciais, et cetera, et cetera, et cetera. — Makonde repete as palavras, como
se tivessem um sentido específico e cheio de significado. —E no meio dessas
duas alternativas, Irmãos, não há outra alternativa. Entre nós todos, só o
vazio. Agora, então, que tipo de chance é esta para o nosso sucesso? Temos
que decidir ser capitalistas, ou ser comunistas, ou, pelo menos, ser a garantia
de um deles — ou de ambos, o que é pior? Quer gostemos disso, quer não?
Buff e Lombardi levantam-se, quando Makonde se levanta.
— Sendo assim, o Cardeal japonês, —continua Makonde, num tom meio
lisonjeiro, meio sonolento, — e os Cardeais filipinos, e os Cardeais hindus,
mais o Cardeal do Vietnã e os Cardeais da Oceania e nós mesmos —resolve­
mos esperar e rezar, Irmãos. E dormir. —Sorri, como um grande irmão mais
velho, quando os leva até a porta.
— Está tudo bem, —diz Lombardi a Buff, enquanto se afastam. - Está
tudo bem. Aí temos um campo aberto.
341
A próxima parada deles é na grande reunião política do Terceiro Mundo.
Marquez não está presente. Nem Perez, nem Manuel. Estio com o Camerlengo.
Há três Cardeais mais velhos (Navarro, Tacci e Zubaran); três outros mais
moços (Herrera, Sampere e Mauderer) e também Ribera, LaMura e Teofilo.
Quando Buff e Lombardi entram, estão pergjintando a Ribera sobre um
certo Padre Roger Vekemans, um jesuíta belga, especialista em informações,
que é citado como uma das fontes do Relatório da Liberação.
— Ele não recebeu 5 milhões de dólares da CIA, em 1960, para usar
contra os marxistas do Chile e de outros lugares? —é uma das objeções, Ri­
bera rejeita todas as objeções contra Vekemans. Relaciona outras fontes
para o Relatório - incluindo os Bispos colombianos Lopez Trujillo e Mario
Revollo, de Bogotá, e Dario Castrillon, de Pereira, entre outros.
— Além disso, — Ribera devolve violentamente o desafio, — se fazeis
objeção á maneira pela qual gente como Vekemans e Lopez Trujillo trabalha
com leigos politicamente comprometidos como o Dr. German Bravo (antigo
assessor de planejamento colombiano), ou o sociólogo Dr. Nernando Bemal,
ou o Dr. Rodrigo Escobar (diretor da asocana, a associação dos planta­
dores de cana-de-açúcar da Colômbia), então por que é ífue não objetais tam­
bém, ou não manifestastes vossa oposição ao estreito relacionamento entre
esses teólogos da “liberação” de vossa criação e o ditador marxista do Chile,
Salvador Allende? Ou como Hortênsia, a viúva de Allende, tão grande aliada
de Fidel Castro? Ou como Orlando Letelier, que todos nós conhecíamos como
ministro da propaganda de Allende e agente de Castro nos Estados Unidos,
até que foi assassinado, em 1977? Ou com qualquer um dos quem sabe lá
quantos outros bem conhecidos colaboradores comunistas, sejam eles traba­
lhadores ou simpatizantes? Tende cautelas - Ribera os adverte. — Sereis
atingidos pelo mesmo tiro. E é muito bem feito.
— Meus Irmãos, Lombardi consegue, finalmente, interferir na conver­
sa, —antes de nos deitar, esta noite, gostaríamos de saber quais são as vossas
reações aos Relatórios.
Os latino-americanos falam-lhe em termos francos:
— Parece, — dizem eles, - que entre a política capitalista do Vaticano,
inclinada para os Estados Unidos, e a atitude simpatizante do marxismo,
demonstrada por muitos clérigos católicos, não existe escolha —nenhuma al­
ternativa para a Igreja, senão ser partida em dois pelos interesses seculares. ~
Herrera acrescenta a mesma nota de Makonde, declarada alguns momentos
antes:
— Nó*, líderes da Igreja, já não dispomos de iniciativas. Talvez nunca
tenhamos tido nenhuma iniciativa própria. Pelo menos, não a temos há
muito tempo.
Quando Lombardi e Buff se retiram, não estão se sentindo muito felizes,
agora que pela segunda vez encontram a mesma vaguidão.
De volta ao apartamento de Buff, encontram Thule com Marquez, Perez
342
e Manuel. Até o ponto em que podem julgar, diante do relato de Thule, o
Camerlengo não tem a intenção de tomar qualquer providência de caráter
direto na reunião da manhã seguinte.
— A única coisa sobre que ficou de boca fechada, —acrescenta Marquez,
- foi a reação dos americanos. Parece que os americanos andaram estudando
a correspondência entre a URSS e o Vaticano. Isso teve seu efeito. Não sei
qual. E o Camerlengo não vai dizer. Não quis dizer.
— Vago. Tudo vago demais para dar tranqüilidade.
Por volta da meia-noite, Domenico telefona para Angélico e pede-lhe
que vá até o apartamento dele. Quando Angélico chega lá, encontra o Camer­
lengo, Lohngren, Ribera, Pellino e Eck já em conferência com Domenico.
Angélico sente a silenciosa antipatia do Camerlengo e dc outros. Ignora-a,
mas tem a clara impressão de que acabaram de discuti-lo. Obviamente, Dome­
nico o chamou apenas para incluí-lo na reunião. Isto, pelo menos, é um bom
sinal. Se a discussão tivesse se desenvolvido de modo realmente mau para ele,
não teria sido convidado. Da mesma forma, o fato de ter ele aceito o convite
é um sinal para o Camerlengo. As convenções do Conclave proíbem um
papabile com aspirações ao cargo e explicitamente comprometido de partici­
par de qualquer grupo sem se identificar como tal. Angélico não se identifica
como tal, porque não o é.
Informam Angélico sobre a apuração geral a que procederam. Há um cer­
to espírito de independência, inesperado — tanto de Eleitores, individual­
mente, quanto de grupos isolados de Eleitores. Tem que ser levado em conta;
veio à tona. Não podem predizer a direção que tomará. No conjunto, os
italianos estão muito aborrecidos, sentindo que a administração do Papa Pau­
lo VI foi muito mais além do que lhes foi permitido saber, em sua abordagem
e no apaziguamento dos marxistas, na Itália e na Rússia. Os franceses, ao que
parece, ainda se colocam muito para a esquerda, mas são sensíveis a qualquer
manobra do Camerlengo. Fazem quase tanta —mas não exatamente a mesma
—objeção à influência russa, quanto à influência americana. Nem os alemães,
nem os espanhóis, estão agora a favor de uma candidatura pan-européia. Os
europeus do Leste estão com uma atitude de “eu-bem-que-ihe-disse ” e têm
uma reação de “já-passamqs-por-isso” diante de qualquer conversa em tomo
de uma solução do Terceiro Mundo para o problema do Conclave. Ribera
afirma que agora os Eleitores fazem idéia dos pontos concretos.
— E, —acrescenta o Camerlengo com azedume, - uma coisa agora é pos­
sível: um Conclave de três meses, com um violento impasse e um desfecho
completamente imprevisível.
Parece não haver maneira de aferir o que irá acontecer. Não passa muito
tempo e a discussão toda se esgota e a maioria vai embora. O Camerlengo
fica com Domenico.
Revela a Domenico os problemas de segurança. Não sabemos, explica ele,
se o homem em questão está ciente do fato —suspeitamos de que suspeita;
343
mas, seja como for, ele tem implantado em si um aparelho que registra e
transmite. Não, responde à pergunta de Domenico. Não pretendemos fazer
coisa alguma agora - salvo manter a boca fechada, quando falarmos diante
dele, em particular. Fazer alguma coisa poderia significar pôr em perigo a
vida do homem, ou a vida de várias pessoas, em seu próprio pais ou alhures.
- Agora, no que se refere ao nosso segundo problema, acho triste e,
aah, difícil admitir isto, mas vós tínheis razâo. É o nosso jovem amigo gago.
— Por um momento, o Camerlengo fica calado. Depois continua: —É uma
questão de compromisso pessoal, compreendeis, embora, até o ponto em que
me é possível saber, esse compromisso envolve não as coisas habituais que
comprometem um homem, dinheiro ou... —o Camerlengo tropeça nas pala­
vras, olha fixamente para Domenico e continua, —mas uma questão de segu­
rança familiar. Dinheiro demais investido em muitos lugares perigosos. E facil­
mente, demasiado facilmente, destruído. Família antiga, ligações importan­
tes... esse tipo de coisa. Sabeis o que quero dizer. Seja lá o que for, ele só
pode enviar sinais, nada mais. Mas mesmo só com sinais —pré-combinados,
naturalmente —pode transmitir a essência da coisa.
- Quem é que recebe esses sinais?
- Só sabemos que o receptor fica ao sul desta área. Os italianos estio
examinando o locatário de um apartamento saindo da Via delia Conciliazio-
ne, em linha reta da Praça de Sâo Pedro. Algum ponto por ali...
- E que faremos agora, como precaução?
- Eu desejo... — o Camerlengo começa e logo se interrompe, com a
voz embargada na garganta. Levanta-se e afasta o olhar, examinando um qua­
dro pendurado na parede. Ê evidente que está profundamente preocupado
com o jovem Cardeal. Começa de novo: —Eu desejo que não haja sofrimento
para ele - pelo menos que haja o menos possível. Já sofreu bastante. E ainda
tem muito para sofrer... uma longa vida de sofrimento diante de si. Tomei
apenas impossível que venha a causar algum prejuízo. E a tempo, para a Ter­
ceira Sessáò, amanM de manhã. —Volta-se para encarar Domenico. —Vossa
Eminência quer falar com Ruzzo, pela manhã, e combinar tudo isso? Discre­
tamente. Por favor! - Domenico acena que sim. O outro Cardeal sai lenta­
mente, silenciosamente, tristemente.

À uma hora da madrugada todas as reuniões terminaram e todas as conver­


sações chegaram ao fim. Pela primeira vez, na longa história dos Conclaves,
os Eleitores estio todos no mesmo pé de igualdade. Cada um deles conhece
as secretas razões de estado que orientaram as diretrizes políticas do Vati­
cano durante os últimos anos. Pela primeira vez, também, os Eleitores estão
perfeitamente cientes dos envolvimentos financeiros do Vaticano. Como um
conjunto, fazem uma idéia muito precisa das duas influências políticas domi­
nantes atuando no interior de suas fileiras, no Conclave.
344
Talvez sejam todos estes fatores que deram origem à atitude com que a
maioria dos Eleitores se recolhe nessa noite. Por um lado, há uma abertura
a todas as possibilidades. Já não existe nenhum conservador, ou tradiciona­
lista, ou progressista seguro de uma preponderância. Por outro lado, há um
sentimento de desamparo, de falta de iniciativa da parte daqueles que, acima
de quaisquer outros, deveriam dispor de iniciativas inspiradas por Deus e da
força dos mensageiros especialmente designados para transmitir o Evangelho.

345
O Segundo Dia

MANHA:DAS 5 DA MADRUGADA ÀS 10 HORAS DA MANHÃ

Hoje, muita gente se levanta cedo. Thule, Domenico, o Camerlengo, Franzus,


Angelico, Azande estão entre os primeiros a oficiar suas Missas, às cinco e
meia da manhã.
Lá pelas 6 horas» quando o jovem Monsenhor mal havia passado uns cin­
co minutos sentados â sua mesa de trabalho, chega o Camerlengo com Thule
e Lohngren. Fecham-se no gabinete interno. O jovem Monsenhor dá uma
olhada no relógio, sai e fecha a porta exterior. Vai tomar o cafe' matinal com
os padres-canfessores.
No interior do gabinete, só um ponto é discutido: como impedir Angeli­
co. Apesar da negativa de Domenico, de haver de sua parte qualquer intenção
de propor Angelico ou, da parte deste, a de cabalar a própria indicação, o
medo é de que seja indicado e concorra como candidato. Aconteceu coisa
demais. Todos os três Cardeais estão certos de que ele será apresentado por
Domenico, para indicação, e será apoiado por alguém que Domenico escolhe­
rá. Antes de lançar seu apoio na direção de Thule, o Camerlengo e Lohngren
discutem com aquele a Política de Coalisão. Têm certas condições: uma Igreja
não tão “aberta” a não-católicos quanto Thule propõe; uma abordagem muito
mais lenta e mais cautelosa em relação aos marxistas do que a que Thule
deseja. Ele concorda.
Depois discutem táticas. A primeira idéia de Thule é provocar uma longa
demora, estabelecendo vários oradores.
— Não vai funcionar, Eminência, - diz-lhe o Camerlengo. Numa altura
qualquer, Domenico ou um de seus simpatizantes pode propor a eleição do
próprio candidato deles por aclamação. A esse tempo, já contará com todos
os asiáticos e africanos, com a maioria dos europeus, talvez mesmo com al­
guns latino-americanos. Que fazer então?
347
— É isso, Irmão! —Thule endireita-se. —Isso é o que nós temos que fa­
zer. Nós proporemos... Eu proporei que Yiu seja eleito por aclamação. Buff
apóia. Meu nome figura já como o primeiro orador. £ isso, meu Irmão!
~ Suponhamos que tenham a mesma idéia? —perguntam os outros.
— Não. Não é esse o jeito de Domenico, —diz Lohngren em tom sério.
— Além disso, acho que Domenico respeita demais os procedimentos adequa­
dos. Não. É de Angélico que eu tenho medo. Se conseguirdes fazer passar vos­
sa proposta e o apoio, e se Angélico não vos acompanhar —a propósito, ele
está inscrito para falar? Nâo? Bem, então se conseguirdes ultrapassar esse
ponto, não devereis ter nenhuma dificuldade.
Depois de mais uns poucos minutos de palestra, separam-se. O Camerlen-
go tem que trabalhar em documentos referentes ao Conclave —ainda é Ca-
merlengo. Thule procura Buff para alertá-lo para o plano. Lohngren tem que
conversar com os outros alemães e com alguns dos norte-americanos.

Angélico e Azande têm um encontro marcado com Domenico para as


sete e meia da manha. Domenico está atrasado e os dois sentam-se à espera
dele, no apartamento. Ele chega às 7:50.
— Alguma de Vossas Eminências vai tomar o desjejum? —pergunta-lhes,
ao entrar. Os dois visitantes sacodem a cabeça, negativamente. - Bem, então,
vamos passar ao trabalho. Eis aqui a situação:
— Vai haver uma súbita aclamação, ou uma tentativa disso. - Olha para
Azande. —Provocada por Thule e Buff. —Pára, depois acrescenta: —De Yiu,
é claro. —Angélico inspira profundamente.
— Calma, por um momento. - Domenico prossegue: - Pedirei permissão
especial para falar. Mas — prestai bem atenção —permissão, não dos Presi­
dentes, mas do Conclave. - Pára e olha para Angélico e Azande, fazendo o
julgamento de suas reações. —Uma súbita aclamação, trabalho nosso.
— E então? - pergunta Angélico.
— Então, — responde lentamente Domenico, —a coisa é aqui com Sua
Eminência, - virando a cabeça para olhar para Azande. Azande tosse e sorri,
meio encabulado. Os três ficam calados. Por fim, Azande fala:
— E que é que recomendarei, Pai?
— Exatamente aquilo que a situação exige, Eminência.
— Mas não preparei nada.
— Deixai-me ver: fostes ordenado padre, Bispo e Cardeal, tudo isso há
mais de vinte e cinco anos. Sim, presumo, vinte e cinco anos, ou mais, ou pre­
pararam Vossa Eminência para esse momento, ou não prepararam. Vamos
descobrir isso, dentro de uma ou duas horas. Agora, Eminência... —Domenico
diz isto a Azande enquanto passa os olhos no relógio, —se nos desculpar a
ambos, temos alguns assuntos particulares a resolver.
Azande levanta-se, sorri para os dois e retira-se.
348
Angélico olha para Domenico e espera. Domenico também está esperan­
do e diz apenas:
— Teremos um visitante às 8:15. Quando ele sair, vós saireis com ele. A
não ser quanto ao banheiro, ficai com ele todos os momentos. Se não conse­
guirdes lugar junto na Missa, então quando a Missa acabar, mais ou menos
às 9:40, encontrai-o fora da Capela e caminhai com ele, passando pelo meu
aposento e indo até o vosso — como se desejásseis apanhar alguma coisa
para a Sessão, mas sem querer perder a companhia dele. Compreendido?
Poucos momentos depois das 8:15, há uma leve batida na porta. Domeni­
co abre-a. O jovem Cardeal gago está ali.
— Bom-dia, Eminência! — A voz de Domenico é alegre e amistosa.
Angélico levanta*se. — Angélico aqui está, faminto, como vos prometi! Ele
agora vos explicará o que penso exatamente sobre os teólogos progressistas
e sobre as nossas perspectivas na China Continental.

A Missa é uma experiência difícil para o jovem Cardeal. De novo, ao passar


os olhos em tomo da Capela, tem a sensação da unidade e da união daqueles
homens, apesar de todas as suas diferenças; ou, antes, essas mesmas diferenças
parecem ser a fonte da unidade deles. A sua frente, reconhece Pellino, conti­
nuamente mudando de um joelho para o outro; Desai, curvado por sobre o
banco, a cabeça enterrada nas mãos; o trêmulo Sargent; a figura imperiosa
do arrogante Kirchner; Balboa, erecto e ligeiramente ameaçador; Dowd, o
longilíneo escocês. Ni kan, teso e imóvel. Cada um deles diferente do outro.
Olhando para o outro lado, passa os olhos por uma montagem de rostos:
Domenico, Venturí, Lotuko, Lombardi, Vignente. Uma espécie de invisível
linha de amor, ou pelo menos de devoção a uma causa, parece passar através
de todos eles, mas escapa às suas próprias mãos. Tudo isso é muito difícil para
o jovem Cardeal e ele se sente um estranho.
Seu sofrimento toma-se’agudo quando o Camerlengo eleva a Hóstia Con­
sagrada, dizendo as palavras rituais: “Através d’Ele, com Ele e n’Ele, eis aqui
para Vós, Pai Todo-poderoso, toda a glória e honra, para todo o sempre.”
Porque, nesse instante, a maior parte dos Cardeais levanta os olhos e fita a
Hóstia, nas mãos do Celebrante. O jovem Cardeal sente-se excluído da felici­
dade que os outros partilham, mesmo que não tenham consciência dessa par­
tilha. E lembra-se do que lhe foi dito, quando era um jovem padre, numa
remota paróquia do interior, anos atrás. Era um suicida, a quem tentava dis­
suadir de seu intento: “Padre, ontem, ou no ano passado —não me lembro
quando foi —eu caí do alto da escuridão aveludada e feliz das estrelas dentro
destes dias insensatos, mas que são iluminados pelos sentidos, e dentro destas
horas cheias de barulho. Tenho que pôr um fim nisso tudo, agora. Não posso
continuar desta maneira.”
Enquanto caminha com Angélico pelo corredor, e quando toca a sineta
349
de aviso, ele diz, sem razão aparente e sem se dirigir particularmente a Angé­
lico:
— Tenho algumas perguntas importantes a vos fazer. Salvo por esta últi­
ma hora, é como se tivessem apagado os céus, Como se uma mão violenta
tivesse fechado todas as portas. Mas, deixai que eu dê uma entrada em meus
aposentos. Volto a vos encontrar na porta.
— Vinde comigo até o meu apartamento, - diz Angélico em tom natu­
ral, - só demorará um ou dois segundos. Depois podereis ir e encontrar-me
mais tarde. O Jovem Cardeal concorda.
Quando passam pela porta de Domenico, vêem que ela se abre. Domenico
e Edouardo Ruzzo, o chefe da segurança, estão ali, de pé. Angélico acha que
Ruzzo se mostra muito, muito reverente e respeitoso. Não olha nos olhos do
jovem Cardeal. Tem os olhos baixos e está fixando intensamente a cruz pei­
toral do Cardeal.
Domenico é todo urbanidade:
— Eminência, - diz suavemente ao jovem Cardeal, - um momento de
vosso tempo. Por favor!
— Nós nos encotraremos mais tarde, no ônibus, - diz Angélico, perce­
bendo a insinuação. A porta do apartamento de Domenico fecha-se atrás de
Domenico e de Ruzzo e do jovem Cardeal.

A TERCEIRA SESSÃO

Quando os Cardeais-Eleitores estão reunidos no Salão Superior, um quar­


to de hora mais tarde, Domenico entra, seguido do jovem Cardeal e do Camer-
lengo. Ninguém nota, provavelmente, que o jovem Cardeal não está mais
usando a sua cruz peitoral. Estão todos calmos, sérios e todos, tranqüilamente,
ocupam seus lugares.
O Camerlengo dá início ao ritual da eleição dos funcionários desta Tercei­
ra Sessão. Lá embaixo, na Via delia Conciliazione, dois homens sentam-se
diante de um aparador silencioso. Como ficarão sabendo, não haverá trans­
missão.
No Conclave, Bonkowski, da Polônia, é escolhido para Presidente, a ser
auxiliado por Gellée, da França, e Kotoko, da África, como co-Presidentes.
Os Escrutinadores são Chera, Masaccio e Motzu. Os Revisores são três Car­
deais da Cúria, Uccello e dois franceses, Houdon e Lamy. Os Infirmarii são
Bassano, Eakins e Peale.
Tão depressa os novos Presidentes se sentam e Bonkowski examinou a
agenda, este anuncia o nome de Thule como sendo o primeiro orador. Bonko­
wski tenta dar um tom de leveza:
— Vossas Eminências ficarão surpresas ao saber que nosso primeiro ora­
dor, esta manhã, será o Reverendíssimo Senhor Cardeal Thule. —Mas nin-
350
guém ri, nem mesmo sorri. Há um silêncio profundo, quando Thule se levanta.
Ele se inclina sobre a mesa, para apanhar suas anotações.
Nesse exato momento, Domenico decide levantar-se e sair das fileiras de
Cardeais, de modo a ficar no centro:
— Meus Senhores Presidentes! ~ Ele fala numa voz alta, que alcança
cada canto do salão. —Meus Senhores Cardeais! Em virtude da antiga praxe
dos Conclaves, a vox populi (a voz do povo), reclamo absoluta prioridade
sobre todos os oradores previamente programados! — Seja por um truque
vocal deliberado, seja porque tenha de fato adotado mentalmente tal atitude,
a voz dele soa como a de um membro da Oposição na Câmara dos Comuns
da Inglaterra, ou como a de um revolucionário que salta de pé na Câmara dos
Deputados da França, pronto a perturbar o equilíbrio, o status quo.
O efeito é eletrizante. Thule petrifica-se em sua postura, inclinado sobre
a mesa. A boca de Bonkowski fica aberta. Cada uma das cabeças volta-se vio­
lentamente, como que puxada por fios invisíveis, do mesmo modo que to­
dos os olhos estão pregados naquela pequena figura, de pé no centro do
Salão.
Todas as cabeças, exceto uma: tão depressa Domenico intervém, o jovem
Cardeal curva a sua para a frente e cobre o rosto com as mãos. Seus ombros
estremecem. Mais do que qualquer outra pessoa ali, ele sabe o que está acon­
tecendo agora. E, se está em lágrimas, não é por si mesmo, nem por aquilo
que mais tarde deverá sofrer como castigo, mas pela devastação desnecessaria­
mente provocada por ele e por homens iguais a ele. Ele e esses outros traíram
seus Colegas, semeando mentiras e ambigüidades entre homens honestos, jo­
gando com honestos temores, dando um uso execrável ao zelo e às esperan­
ças de muitos. Um grupo de homens que, acima de tudo, deseja uma mesma
coisa, foi confundido e dividido, uns separados dos outros por táticas inteli­
gentes.
Todas as outras pessoas estão tão perplexas que a primeira reação é o si­
lêncio, como se as palavras de Domenico tivessem sido pedras atiradas num
poço, 118 homens estando à espera do eco de sua chegada ao fundo.
Depois, num confuso fogo cruzado, a reação explode. Thule emperti­
ga-se e fica de pé como se fosse uma vara e começa a falar e a gesticular.
Cardeais saltam de pé, os rostos carregados de raiva, medo, confusão, repug­
nância. Berrando, perguntando, objetando, gritando. Lombardi, Franzus,
Buff, Marquez, Balboa, Lohngren, Delacoste, Manuel, Masaccio. O Camer-
lengo permanece sentado, mas suas mãos agarram-se à mesinha diante dele,
como se buscassem apoio.
Domenico olha fixamente para Bonkowski, os braços cruzados sobre o
peito. Bonkowski faz soar, colérica e insistentemente, a sineta de prata:
— Meus Reverendíssimos Senhores Cardeais! Meus Reverendíssimos
Senhores! Por favor! Meus Senhores Eleitores! Por favor! Façamos silêncio!
Por favor! Meus Senhores Cardeais!
351
Mas no momento em que a agitação e os gritos vão morrendo, um lento,
firme, tranqüilo bater de palmas tem começo. Não é alto. Não é violento.
Não é rápido. É apenas uma batida firme e regular. Os africanos a começaram.
Garcia e outro espanhol acompanham. Depois são seguidos por Terebelski
e Karewsky. Depois Kinigoshí, Walker, Sargent, Witz, Kiel, os trés asiáticos,
dois franceses e uma porção de italianos, Uccelo, Riccioni, Canaletto, Mader-
no, Duccio, Lamennais, Bronzino, Nolasco, Pozzo. Os Cardeais que saltarem
de pé para gritar em protesto são gradualmente silenciados pelo ritmado bater
de palmas e afundam-se de novo em suas cadeiras. 0 som vai continuando,
mais alto. Bonkowski confabula com Gellée e Kotoko. Então, depois de mais
alguns instantes, faz soar suavemente a sineta e espera. As palmas vão parando
lentamente, depois cessam, como que a um sinal pré-combinado.
Bonkowski olha para Domenico, que não moveu um músculo:
— Meu Reverendíssimo Senhor Domenico, — começa ele, mas Buff
põe-se logo de pé:
— O Meu Senhor Cardeal Domenico, sem dúvida, pode citar precedentes
históricos para esta inesperada interrupção? Para nós, parentes de fora, Cardeais
vindos das províncias exteriores, talvez queira ele se dar ao trabalho de citar
data, lugar, Conclave e Cardeal? De outra maneira... —Buff, significativamen­
te, deixa de terminar a frase.
Bonkowski vira lentamente a cabeça para encarar a figura solitária de
Domenico, de pé na passagem central. Todos os olhares estão de novo fixados
nela.
— Morte súbita para nosso inteligente amigo, — resmunga Marquez a
meia voz.
No silêncio cheio de expectativa, Domenico descruza os braços e puxa
de dentro da manga uma única folha de papel. Naquela sua voz rouca, troveja
uma enxurrada de Conclaves, nomes, datas, horas, e a expressão “vox populi”
aparece uma e outra vez. É como um coro de apoio, vindo de Conclaves
passados.
— Conclave 31, 1471, No fim da tarde. O Cardeal Barbo invoca a vox
populi. Conclave 35. 1513. Io de março. Manhã cedo. O Cardeal Backocz
invoca a vox populi. Conclave 40. 1549. 5 de dezembro. Antes do meio-dia.
0 Cardeal Salviati invoca a vox populi. Conclave 53. 1621. 28 de janeiro. Na
parte da noite. 0 Cardeal Campori invoca a vox populi... - Enquanto a voz
alta de Domenico prossegue na leitura de números e nomes, o suave bater
de palmas começa de novo, bastante baixo para permitir que sua voz seja
ouvida, alto bastante para ser ouvido como um eco de apoio vindo do Concla­
ve 82. —Conclave 70. 1800. 25 de fevereiro. O Cardeal Mattei invoca a vox
populi...
Bonkowski faz soar a sineta de prata e Domenico pára no meio da infor­
mação do exemplo da vox populi ainda em outro Conclave:
— ... Conclave 73. 1830. 11 de dezembro. Antes do meio-dia. O Cardeal
352
Gaisrück... — O ritmo constante das palmas pára também. Depois continua.
Thule passa os olhos pelas fileiras de Cardeais, até onde poda alcançá-las -
e os Presidentes vêem a cena tão claramente quanto ele. Só um, de cada oito
ou dez Cardeais, não está batendo palmas, A vontade da maioria é evidente.
Bonkowski toca mais uma vez sua sineta de prata. Faz-se silêncio.
— Reverendíssimos Eleitores, diante da intervenção do Meu Reverendís­
simo Senhor Domenico, declaro agora que ele tem a palavra, e isto de acordo
com a vontade manifesta de vossa maioria. — Há um murmúrio surdo de
aprovação.
Domenico põe de novo a folha de papel dentro da manga. Caminha deva­
gar para o lugar destinado ao orador. O silêncio é outra vez tão profundo que,
quando ele se levanta de sua curta prece e encara a assembléia, até aqueles
que estão mais longe podem ouvir o suave roçagar de suas vestes.
Ele já não exibe a “expressão transcendente” que seus penitentes, seus
fiéis e seus estudantes conhecem tão bem. Em vez disso, há uma grande
naturalidade, uma tranqüilidade, em sua expressão. Naquele momento, o que
Domenico precisa fazer é chegar até cada um daqueles Eleitores e prendê-los,
outra vez, numa unidade. Mas precisa, também, apontar os diferentes moti­
vos que os dividiram, em seus medos e em suas falhas, em facções que pouco
têm a ver com Jesus, ou com a Igreja de Jesus.
Olha para os Cardeais-Presidentes, sorri amavelmente e inclina-se:
— Eminentíssimos e Reverendíssimos Senhores Cardeais-Presidentes!
— Depois, virando-se: — Meus Amadíssimos Irmãos e Senhores Cardeais, -
começa Domenico, o tom da voz calmo, agora, o olhar percorrendo, tranqüi­
lamente, uma e outra face. — Acho que não há um Cardeal-Eleitor, aqui
presente, que não tenha sofrido profundamente, nas últimas trinta e seis horas.
—Olha com firmeza para as feições sombrias de Makonde. —Alguns sofreram
porque se sentiram profundamente menosprezados. - O ar assustado de Ric-
cioni difere da confiança que mostrou no dia anterior. - Alguns sofreram por­
que um medo mortal cresceu em seus espíritos. —Thule está olhando para
ele por baixo das espessas sobrancelhas. —Outros, porque apostaram todas
as suas esperanças numa violenta guinada dos acontecimentos —ou, sem dú­
vida, naquilo que encaram como uma guinada da Providência. —À esquerda
de Domenico, no extremo da fila, Angélico é um dos poucos que não olham
para ele. —Uns poucos, porque descobriram que qualquer que fosse a porção
de amor que tinham para nosso Senhor Jesus, era ela extremamente falha em
confiança — que, na realidade, haviam confiado em si próprios e, natural­
mente, na dolorosa trituração da crise, sentiram-se brutalmente desapontados.
—Domenico mal pode conter um sorriso, quando nota a expressão estudada
do Camerlengo, sua “santa indiferença”, como a definiu um gaiato do Vati­
cano. —Outros, ainda, sofrem porque nada, em nossa assembléia, se proces­
sou de forma ordenada. Nada neste Conclave parece previsível, nem parece
ser como nos Conclaves anteriores. — Enquanto passa firmemente os olhos
353
de rosto para rosto e volta a encarar os Presidentes, sabe que no silêncio
daquela assembléia, onde ecoam apenas suas próprias palavras, por alguma
alquimia do momento está arrastando concentração e atençío para o lugar em
que se encontra. Ele os tem na palma da mão. Compreende-os. E compreende
seus temores.
— Em suma, meus Amados Colegas, —ainda naquele tom natural, tran­
qüilo, —este é um Conclave que feriu cada um que foi tocado por ele. —Do-
menico pára, por um momento. — Todos nós. - As duas palavras parecem
responder a algumas dúvidas. Lá embaixo na fileira, à esquerda, o Cardeal
Walker está rezando para si mesmo e seus vizinhos ouvem quando diz, uma e
outra vez, numa espécie de contido pânico: “Senhor Jesus, tende piedade de
nós. Dizei-lhe o que falar. Senhor Jesus, tende piedade de nós todos. Dizei-lhe
o que falar...”
Thule levanta a cabeça e dirige um rápido olhar a Franzus, depois a Buff
e a Lynch. Ele se entreolham, mais que qualquer outra coisa interrogando-se.
Os Africanos, igualmente, olham-se rapidamente e olham para Yiu e Ni Kan.
Há em suas expressões uma luminosidade que palavra alguma pode traduzir.
Braum dirige a Bronzino um pequeno gesto. Encolhe os ombros, como que
zombando. Domenico sabe como interpretar todas as reações. Tem certeza
de que precisa concentrar num foco único aquilo que, naquela assembléia,
constitui o sofrimento de tantos. E precisa atirar a corda de uma esperança,
precisa segurá-los firmemente, quando agarrarem essa corda, para poder
trazê-los consigo, até onde quer que eles cheguem, naquele dia.
— Ah, bem... - continua ele, quase num tom de conversa, — sempre
disse aos que vieram até mim, de tempos a tempos, para consolo e encoraja­
mento, que eu próprio nunca ficaria abatido ou imobilizado com o insucesso,
desde que sofresse apenas aquilo que o Meu Senhor Jesus tinha sofrido antes
de mim. Só desistiria de tentar, desistiria de amar, disse-lhes, no dia em que
me visse enfrentando alguma coisa que Jesus não houvesse enfrentado. Esse
dia ainda não chegou. Para mim. Ou para nós, meus Veneráveis Irmãos.
— Não é fato, —há em sua voz agora a inflexão de um leve tom de súpli­
ca, —que pela primeira vez, desde que começou nosso Conclave, estamos -
como um só coração e uma só mente — começando a ouvir aquela velha
voz a nos dizer: “Eu conheço. Conheço vosso sofrimento. Sei tudo sobre
sofrimento. Especialmente sobre a dor do fracasso.” Não é assim, meus Ir­
mãos? —Dá um passo para trás e depois para a frente, um maneirismo seu.
— Nfo vamos ficar chafurdando em nossa dor. Que cada um fique con­
sigo mesm \ Que cada um examine a própria consciência. Não para que pos­
samos sangrar, mas para que possamos ver sem hesitação como foi que chega­
mos a este impasse. E para que possamos ver como precisamos agir para
escapar dele. Vamos interrogar nós mesmos sobre nossos maiores pecados —
nossos maiores pecados como prelados. Que cada um de nós se pergunte:
Terei eu me juntado àqueles que desejam a destruição da Igreja? —A voz de
354
Domenico levanta-se quase num lamento, ao fim de cada sentença. —Terei
eu identificado todas as minhas próprias ambições com a glória de Deus?
Terei eu facilmente respondido com concessões ao assalto da crueldade im­
pudente — seja ela o conforto da corrupção ou o propósito mortal dos ini­
migos da Igreja? Com sorrisos? Apenas por que desejei que a minha vida nor­
mal continuasse por mais algum tempo? Apenas por que não quis transpor
o portal da dificuldade?
- Ou terei me apoiado na força? Naqueles poderosos tendões de ouro e
prata? Nos meus belos amigos? No poder da minha posição? E, como defini­
tiva defesa, nos estopins nucleares das potências amigas, astuciosamente dis­
tribuídos? Nossa difícil posição tecnológica? Terei eu achado mais fácil
confraternizar com grandes pecadores e sorrir indulgentemente, e tratar
autoridades untuosas com uma amizade cooperadora? Terei achado isso mais
fácil, quero dizer, do que tomar uma posição correta?
Domenico desfiou o que, na verdade, constitui uma ladinha de faltas
afligindo as principais facções no drama do Conclave. Muitos, senão todos,
acham que pode estar preparando uma denúncia nominal. Alguns Cardeais
prendem a respiração. Um ou dois reúnem seus papéis, como desejando que
lhes fosse possível sair dali. Alguns recostam-se na cadeira, como que espe­
rando o golpe do machado. O silêncio é tão concentrado que quase é possível
tocar nele, como num veludo.
Até as palavras seguintes de Domenico, que para muitos são a própria
doçura:
- E agora, não há saída para cada uma das minhas fraquezas? Nenhuma
saída, exceto dura reflexão e ainda mais dura decisão?
- Meus Irmãos, há uma velha voz falando hoje entre nós. Precisamos
ouvir essa voz. Precisamos. Porque temos que andar para a frente. Porque
temos que escolher. Porque temos que agir. E porque nosso período de graça
não é de duração infinita, muito embora sirvamos a um Senhor cuja graça é
infinita. — É como se ele tivesse dado a cada Eleitor uma moratória. Todos
escutam, para ouvir aquilo que o homem em quem mais confiam acha que
precisa ser feito.
- Não a ouvimos todos nós? Numa hora, ou noutra? Não a ouvimos
agora? E não sabemos de quem é essa voz? Temos nesta cidade um velho
provérbio, que nos diz: Aqui nunca há silêncio. A voz de Roma é eterna. Essa
voz nada tem a ver com a nossa glórica humanística! Nem com os nossos mo­
numentos renascentistas, nossas bibliotecas, nossa estatuária, nossos afrescos,
nossos palácios, nossa burocracia, nossos dignitários, nosso poder nas mesas
forradas de verde. Não!
- Não, meus Irmãos! Refiro-me à verdadeira voz de Roma, a voz de nos­
so Senhor, aqui presente!
Em seguinda há outra mudança brusca. O tom de Domenico torna-se
355
inequivocamente animado, como o de alguém que se entregasse a uma agradá­
vel reminiscência de coisas belas e de indubitáveis certezas:
— Eu me lembro, foi na manhã seguinte ao dia em que Sua Santidade
o Papa Paulo VI teve aquele encontro, tarde da noite, com um certo senhor
financista e no qual assinou uma folha de papel. Lembro-me dessa manhã,
porque aquela foi a primeira vez em que Sua Santidade fez um comentário
franco, comigo, sobre essa velha voz.
— Discutimos a demarche toda, naturalmente —mas essa parte da con­
versa com Sua Santidade foi apenas um trampolim. Estávamos de pé junto a
uma das janelas do estúdio dele e olhávamos para fora, por sobre a Piazza de
São Pedro, para o Obelisco em seu centro, com as fontes jorrando em torno,
à luz do sol. — Ê quase como se Domenico estivesse olhando, por magia,
através das sólidas paredes, para fora, além dos telhados e até a Piazza de São
Pedro, onde está o Obelisco e onde as águas saltam e caem esguichando, bri­
lhando. Ele parece ter o poder de permitir a mesma visão a seus ouvintes.
— Sua Santidade disse que, toda vez que tomava uma grande decisão,
sempre encontrava um julgamento dela espelhado em tomo daquele Obelisco.
Eu podia ter perguntado que julgamento havia achado sobre a decisão Sin-
dona, mas não perguntei, porque isso poderia fraturar a experiência. Em vez
disso, relembramos o fato do Imperador Calígula ter posto aquele Obelisco
ali, uns cinco ou seis anos depois de Jesus ser crucificado na Palestina; e o de
Pedro tê-lo visto de cabeça para baixo, enquanto esperava, uma noite, pela
morte e por Jesus; e de milhares de homens e mulheres e crianças cristãos-o
terem visto, enquanto esperavam pela morte e por Jesus.
— Sua Santidade afastou-se e sentou-se à sua mesa de trabalho. Depois
disse, sem que eu perguntasse, que o julgamento dele seria difícil, mas não
seria severo. Lembro-me que concordei, de cabeça, e que citei aquele velho
provérbio: Nunca em silêncio. A voz de Roma é eterna. Então, Sua Santidade
me olhou, com aquela sua brusquidão característica, as sobrancelhas levanta­
das, a boca apertada, o queixo projetado para a frente: “Mesmo que, às ve­
zes, eu não tenha traduzido essa voz corretamente, Pai, alguém a traduzirá.
Vós! Vós podeis traduzi-la para nós. Para eles. Para todos nós.” Essa foi a
essência de nossa conversa, naquela manhã.
Domenico permanece calado por uns segundos, preso na forte emoção
da lembrança:
— Muito embora todos nós ouçamos essa voz, talvez a maioria não seja
mais capaz de compreendê-la. Deixai, pois, que a interprete. Nas minhas
próprias palavras. E vamos fazer a nós mesmos algumas perguntas difíceis.
— Há algum sentido em escondermos de nós mesmos a verdade? Não é
fato que estamos lidando com vida e morte? É preciso que não nos engane­
mos. Sim, certamente, somos simples padres, sagrados Cardeais; e representa­
mos os interesses espirituais, os valores sobrenaturais dos crentes.
356
— Mas é essa a extensão de nossa atividade, o âmbito de nossa ação efeti­
va? Pergunto isso a vós, Meus Irmãos!
— Somos apenas e unicamente clérigos, preparando, em nossas escriva­
ninhas, certidões de nascimento, de casamento e de óbito, elaborando cuida­
dosamente especificações de doutrina, arquitetando novas maneiras de
estimular a piedade dos fiéis? Constitui isto uma descrição completa, preci­
sa e realmente exaustiva de nossa maneira de lidar com a vida e a morte?
Somos nós que dizemos isto? Nós, realmente? —Domenico empertiga-se, o
corpo rígido, a cabeça atirada para trás. Ergue a mão e aponta para eles
todos - aponta acusadoramente. Tem a voz dura, soando alto por todo o
salâo. —Isto é uma mentira! — Os lábios dele fecham-se sobre esta última
palavra, em latim, mendacium, quando a cospe com repugnância, com inespe­
rada violência, nojo implacável estampado no rosto: - Uma mentira, meus
Irmãos!
— Conhecemos, nós Cardeais que trabalhamos em Roma, todos nós
conhecemos o enorme tabuleiro sobre que fazemos o jogo das nações. E por
quao altas apostas! E se qualquer cardeal que não pertença à Cúria pensa que
gastamos nosso tempo fazendo Água-Benta e ajoelhados em adoração de está­
tuas e tomando parte em piedosas procissões a orfanatos; se qualquer cardeal
que não pertença à Cúria disser, em outras palavras, que nada sabe das verda­
deiras realidades, ou é um simplório, ou está deliberadamente olhando sem
ver as cruas realidades de nossas vidas.
— Não, Eminentes Colegas! Religião é um grande negócio, como dizem
os americanos. E o presente negócio desta nossa Igreja é o maior de todos
eles.
— E que nenhum de vós se engane com o que quero dizer. Não estou
afirmando que nossa estrutura financeira é completamente mundana; não
estou afirmando que nossa participação diplomática ocorre apenas em razão
de objeções de natureza secular. Não estou afirmando que a influência polí­
tica que exercemos é utlizada para obtenção da glória temporal. Porque
nenhuma dessas afirmações seria completamente verdadeira. O que estou
asseverando, é que estamos profundamente empenhados no mundo da finan­
ça internacional; que estamos definitivamente comprometidos com as obriga­
ções e funções da diplomacia secular; que somos parte integrante da comuni­
dade sócio-política de nações e estados. Isso é tudo.
— E estou dizendo tudo isto não como uma conclusão principal, nem
como algo diante de que parar e considerar. Mas apenas como um estágio, na
discussão fundamental que desejo ter convosco. Em outras palavras, Eminen­
tes Irmãos, vós e eu, como Princípes desta Igreja, em nossa qualidade de
Eminentíssimos Cardeais da Santa Igreja Católica e Apostólica Romana, te­
mos que ser precisamente descritos e definidos, com exatidão, como jogado­
res, num tabuleiro internacional de xadrez.
— Quando pensardes nesse fato, pensai, ao mesmo tempo, na dona-de-
357
casa de meia-idade, de Brooklyn, em Nova Iorque, ou de Kansas City, no
Missouri, examinando o preço de meio quilo de café. Ou na mocinha recém*
casada de Caracas, na Venezuela, com o bebê nos braços, procurando talvez
uma lata de carne barata, ou algumas verduras. Ou nos habitantes dos cortiços
de Londres, Paris ou Palermo, tremendo por falta de aquecimento, porque o
querosene e o carvão, ou mesmo a lenha, estão acima de suas posses. Ou nas
barrigas inchadas dos bebês de Bangladesh, ou nos mendigos de Hong Kong,
ou nas criancinhas brincando com as baratas, nos barrios brasileiros, ou nos
garotos de sete anos apanhando ratos nas favelas, para poderem levar carne
para casa, para o jantar... Perguntai a vós mesmos: Estamos nós envolvidos nes­
sas vidas? Estamos envolvidos, como clérigotf Ou estamos envolvidos como
revolucionários políticos, em nada diferentes de todos os outros que portam
armas e matam? Em nada diferentes, salvo quanto a sermos menos inocentes,
porque servimos a uma causa que não podemos encarar ou mencionar, quan­
do matamos.
— E depois, quando pensardes no mais recente embarque de armas para
a Europa Oriental, ou para a África Ocidental, ou no caráter exclusivo dos
grandes edifícios de apartamento do Rio de Janeiro e de Manhattan, ou na
ostentação e na imponência do Hilton, de Roma, no edifício da Pan Am,
nos Champs Elysées, no Complexo de Watergate, em Washington, D.C., na
Bolsa de Valores, de Montreal, no Canadá... dizei a vós mesmos: Aí, em
cada uma dessas situações e lugares, estamos profundamente envolvidos. Não
como clérigos. Não como apóstolos de Jesus. Mas como homens de negó­
cios. Como executivos de uma corporação. Como acionistas. Como diretores.
Como responsáveis pelo que acontece. Estes somos nós.
— Ou pensai no fluxo de informação confidencial passando através dos
círculos privilegiados, Hambros Bros., de Londres... J.P. Morgan, de Nova
Iorque... Credit Suisse, da Suíça... o Banco di Roma... e as famílias mono-
polísticas da América do Norte e da América Latina... e as dinastias financei­
ras da Europa, das Américas e do Extremo Oriente... e assim por diante. Sim.
Tende a certeza. Estes somos nós. Estamos extremamente interessados. Pro­
fundamente envolvidos. Somos jogadores aceitos nesse jogo de xadrez de na­
ções. E, se fosse essa a natureza do jogo, estaríamos participando apenas nu­
ma pequena corrupção humana.
— Ainda uma vez, esta não é a minha conclusão. Apenas um estágio na
argumentação. Uma observação exata, que é de ser admitida! Sem sofisma.
Isto somos nós. Uma parte de nós. E, muito francamente, no conjunto não
participamos desse jogo —de nenhum desses jogos —apenas para lucrar. Não.
Oh, não! Nossos motivos gerais são puros. Porque aprendemos bem o jogo,
depois de mil e seiscentos anos de aprendizado e de prática. A habilidade é
nosssa — tanto quanto de qualquer homem. E, para crédito nosso, nunca
demos o passo definitivo: nunca o poder econômico, político e diplomático
da Igreja foi usado para a direta destruição da Igreja de Jesus. Mas temos tido,
358
e temos ainda, nossa parcela de patifes, de charlatães e de trapaceiros. Dizen­
do com simplicidade: de corrupção.
— Fazemos tudo isso. Jogamos esse jogo. Movemos os peões e as peças,
sobre esse tabuleiro. Perdemos. Ganhamos. Fazemos alianças. Escapamos
de armadilhas.
— E fazemos tudo isso por causa de uma decisão muito antiga. Não a
decisão de um só homem. Nem mesmo a decisão de uma geração —quero
dizer, de uma geração de homens da Igreja. Podeis apontar para este ou aquele
clérigo, Papa, Cardeal, guia religioso. Sim. Mas nenhum, em particular, fez
tudo isso.
— Na verdade, descobrireis que isso foi e é o resultado de uma mentali­
dade qUe cresceu, a princípio de modo imperceptível, e depois bem aberta­
mente. È não foi uma decisão econômica, nem uma decisão política, nem
mesmo uma decisão intelectual.
— Aqui, meus Irmãos, aqui está a sutileza dela, E, se compreendemos
como e em que plano tal decisão foi tomada, compreenderemos quem foi que
fez o seu primeiro movimento, e quais eram e são as intenções desse primeiro
jogador. — Domenico faz uma pausa. Parece estar concentrado em alguma
coisa muito além do aqui e agora desta assembléia. Tem a cabeça ligeiramente
virada para tun. lado, como se estivesse se esforçando para ouvir. Permanece
assim por alguns segundos. Depois dá alguns passos, para trás e para a frente.
— Parece que, neste momento, ouço as palavras daquela voz antiga... -
pára de andar e olha para os Cardeais que estão sentados mais longe. - Po­
demos nos perguntar, muito embora ouçamos aquelas palavras, podemos nos
perguntar quem, entre nós, as compreenderá ainda. E podemos nos perguntar
se elas não serão sufocadas pela voz incansável de um antiqüíssimo inimigo
nosso, de odiosa força. — E Domenico começa a recitar, a voz num tom
velado:

Sou a Luz da salvação divina, num universo que tomei humano. Esse
universo nunca foi um cosmos fechado, de forças materiais, de estruturas
vitais interligadas, de um emaranhado de entretecidas leis, que governas­
sem um universo material no qual não escapa nem uma só partícula, e
no qual se intercambiam toda a matéria e toda a energia —mudando de
posição, encaixando-se, expirando, revivendo, transmudando-se, vindo a
ser, decompondo-se, nascendo.
Para esse cosmos eu vim. Nele interferi. Vindo de fora. E não de acordo
com suas leis de ferro. Contudo, sem violar essas leis. Mas transcenden­
do-as.
E sabei que a minha intervenção foi a intervenção de uma força comple­
tamente diferente. Porque não sou uma nova fonte de luz. Mas a Luz
incriada. Não sou um ente de amor. Mas o próprio Amor. Não uma for­
ça compassiva e salvadora. Mas a Compaixão é o meu ser. E a Salvação é
da minha essência. E tudo isso foi incorporado em carne e sangue, num
útero materno. Em minha carne e meu sangue. Num corpo de bebê, no
arcabouço de um homem —sua vida, seus atos, suas promessas, sua mor­
te, sua ressurreição, seu domínio. Assim o meu corpo, a luz da salvação.
Neste mundo, mas não deste mundo.
Vêde o que aconteceu. Vêde como o Príncipe deste mundo, com sua hor­
renda força, tenta subjugar-me! Explicar-me! Negociar comigo! Num
momento sou apresentado como o produto de um dos hemisférios da
mente —analítico, digital, lógico, discreto. No outro, sou descrito como
o produto de outro hemisfério — sintético, místico, afetivo. Mas não
pertenço nem a Atenas, nem a Jerusalém, com sua Bíblia e sua Paixão.
Contudo, dentro desse universo humano,passei pela mente bíblica e pelo
povo bíblico e através de Atenas e de seu rebento —a mente ocidental.
Sou o Amor incriado, Luz incriada. Luz e Amor foram sempre. Sempre
serão. Em todos os tempos. Em todos os lugares. Um pertencendo inti­
mamente ao outro. Mas sem serem limitados por qualquer tempo ou lu­
gar ou sistema ou teoria. E, desde o começo dos tempos, o inimigo tem
conseguido subjugar-me.

Domenico cessa a monótona fala e espera por um momento apenas. De­


pois lança-se a uma acusação que vai firmemente aumentando em volume e
em ênfase, num crescendo, até que todo o seu corpo estremece de esforço:
- Falei, há pouco, do tabuleiro de xadrez e do jogo de peões e de dados
que jogamos. E jogamos mesmo. Tão bem quanto qualquer homem, E com
tanto sucesso. E tão sinistramente. Mas não sejamos idiotas. Os jogos de em­
préstimos, investimento bancário, propriedades imobiliárias, créditos exter­
nos, títulos e ações, financiamento empresarial, carteiras, e toda a miríade de
decisões concernentes a teorias econômicas, indústrias, processos de fabrica­
ção, compra e venda - tudo isso são jogos de pouca monta, que jogamos. São
chicanas de freios e contrapesos, coisas de dar e receber, de destruir e criar. É
um jogo de sombras. É um jogo dos reflexos do jogo real que está sendo joga­
do. O jogo das almas das nações, da salvação para homens e mulheres. A i é
que está o verdadeiro jogo, meus Irmãos!
- E nesse jogo fomos apanhados! Porque nosso velho adversário conhece
o tabuleiro; e planeja seu jogo com mil anos de antecedência. E agora, nossos
movimentos foram feitos —e os dele. Estamos diante do xeque-mate.
- Se alguma coisa nos assustou a todos, neste Conclave —e nos feriu a
todos —é o fato de que nos sentimos acuados. Já escutamos a voz sarcástica
desse velho inimigo a nos dizer: “Xeque-mate! Consegui fazer vocês imagina­
rem que a Luz Incriada deveria ser inteiramente compreendida e tomada dis­
ponível em termos lógicos." Todavia, meus Irmãos, confiamos todo no nosso
360
saber à filosofia escolástica. Tomás de Aquino deixou tudo isso claro. E foi
por isso que Bonaventura tentou nos prevenir, quando chamou Aquino de pai
de todos os heréticos. Foi Aquino quem nos ensinou a ser racionais mesmo
em matéria de fé.
— E houve mais, meus Irmãos. Aquela voz sardónica prossegue: “Levei
vocês a imaginar que o próprio Amor Eterno seria capaz de tomar partido em
jogos chicaneiros. A pensar que devem competir em poder bruto. Levei-os
a agir como se Amor salvasse por meio de riqueza, como se Amor cumsse por
meio de exércitos, de tesouros, de chancelarias. E vocês caíram nessa trama.
Agora é tarde demais. X e q u e -m a teEscutai essa crueldade sarcástica, meus
Irmãos. — 0 rosto de Domenico está afogueado, as mãos pendentes ao lado
do corpo, com os punhos fechados. Sua voz eleva*se, alta, clara, áspera.
— Olhai em tomo de vós e ouvi —e vereis e ouvireis como é incisiva a
voz de nosso inimigo, e como é difícil para nós ouvir a vetusta voz da luz
eterna, do eterno e esmerado amor. É que nossa vocação não é a da Luz Eter­
na. Nosso método de governo não é o do Eterno Amor. Nossa formulação
do conhecimento da Luz é parcial, provinciana, obsoleta, cega. Nossos princi­
pados cardinalícios e nossas dignidades episcopais têm tanto a ver com o amor
e a luz do Senhor Jesus quanto as moedas que ele pagou a Cesar como tributo
tiveram a ver com a compra de nossa salvação do Demônio, do Inferno e
do pecado do Demônio.
— Reunimo-nos como Príncipes, Pensamos como corretores. Tramamos
como profissionais. Odiamos e desprezamos. Somos presas de sentimentos de
indignação e de exultação. Buscamos reparação e vingança. Alimentamos ran­
cores, a serem pagos em espécie por aqueles que se opõem a nós. Sabemos so­
lapar. Impomo-nos aos outros. Movemo-nos com orgulho. Confiamos na ri­
queza, em palavras melosas.
— Aceitamos uma democracia capitalista que é inaceitável por Deus,
porque ela declara que todo poder reside no povo — enquanto sabemos,
através da fé, que todo poder reside em Deus e passa de Deus para todos aque­
les que, em nosso mundo, têm autoridade —o povo ou os governantes.
— E, por outro lado, um grupo, entre nós, está disposto a apostar tudo
numa democracia socialista que deposita todo poder nas forças econômicas
da História - e que vão para o diabo Deus e o povo!
— E este nosso Conclave? Acreditais que está isento de crítica ou de in­
fluência? Acreditais? Honestamente, Irmãos, acreditais?
— A própria natureza dele é a de um jogo de poder. Nosso objetivo, aqui,
é equilibrar um bloco com outro, interesse com interesse. Enfrentar o egoís­
mo com egoísmo e compor uma unidade prática que tem por base um com­
promisso de poder entre corretores. Do utdes! Quidpro quo! Isto para você.
Isto para mim. Nada para eles. Um pouquinho aqui. Um pouquinho ali. E
o poder de Jesus é tratado como umagrande torta de maçã, que todas as crian­
ças gulosas têm que partilhar. Uma herança que todos os pretendentes a
361
herdeiros têm que dividir entre si, cada um de acordo consigo próprio. Estas
são as coisas que nos fazem balançar de um lado para outro.
— Que chance teria aqui Pedro, o Pescador? A propósito, se Jesus esti­
vesse presente e não revelasse a sua identidade, receberia de nós um voto,
meus Senhores Cardeais? É claro que não! E não porque não fosse um Car­
deal. Mas porque não teria nenhuma facção atrás de si, não poderia prometer
nada.
— Porque, para dizer a verdade, temos duas escalas de valor —somos di­
lacerados pela disparidade de ritmo em nossa própria alma. E a vida da nossa
Igreja está rompendo nas costuras porque a instituição está cheia de uma insu­
portável desigualdade de vibrações. Como instituição, estamos condenados.
Saímos do caminho certo. Estávamos aflitos por vencer e procuramos vitó­
rias de curto prazo —quarenta anos, oitenta anos. E nosso adversário perce­
beu a aproximação de uma vitória uns dois mil anos mais tarde. Não notamos
a estratégia. Estávamos ocupados com táticas.
— Assim, fizemos nesse tabuleiro todos os movimentos errados. E agora
não há como salvar aquilo que construímos desde o dia em que Silvestre con­
versou com Constantino e desde que Leão III beijou o pé de Carlos Magno.
Não há como salvar, digo eu. Não há como salvar! — As últimas palavras são
quase um grito, o grito de um velho. Domenico está tremendo todo, o suor
escorrendo-lhe pelas faces. Está chorando.
Faz uma pausa e, quando retoma a palavra, sucumbe ao cansaço, por
um momento:
— É preciso que me perdoeis, Irmãos. Talvez por isso éque o Papa Pau­
lo disse: “A Igreja parece destinada a perecer.” E se estas lágrimas estão cor­
rendo livremente, não é por aquilo que poderíamos ter sido, mas pelo profun­
do sentimento de dor que todos devemos experimentar neste momento e
neste Conclave.
Em seguida, depois de um rápido olhar aos Presidentes, ele continua. A
voz, ainda baixa, é vibrante e arde agora de novo com alguma poderosa emo­
ção. Fala como que tentando extravasar de si mesmo toda a força e violência
que está experimentando:
— Portanto, que ninguém, nenhum de nós se engane ou interprete mal
aquilo de que nos ocupamos. Aquilo que estamos quase fazendo hoje, agora,
neste Conclave final, é simplesmente o seguinte: acabar com a Igreja de Con­
clave! Nosso trabalho consiste em tramar e planejar nossa própria destruição]
Não através de uma execução sumária. Não por causa de uma deserção des­
leal. Não por crassa estupidez. Mas através de nosso desejo comum de buscar
a vontade de Jesus. Para que a Luz de que somos portadores e o Amor que
alegamos representar, no contexto deste universo humano, sejam livres!
De que modo poderão tanto a Luz quanto o Amor ser liberados? Como lida­
remos com esta ameaça mortal de xeque-mate? Porque se trata, de fato, de
uma ameaça de xeque-mate...
362
Há uma súbita agitação lá perto de onde Thule está sentado. Domenico
pára de falar, fica de pé, empertigado, e deixa as mios caírem dos lados do
corpo. Mantém-se calado.
— Meus Senhores Cardeais-Presidentes! Levanto uma questão de ordem.
- É Buff, falando num tom de controlada urgência. Cheio de dignidade. Sua
voz é macia e cuidadosamente correta. O tom é claro. Há um que de desliga­
mento em sua atitude — é quase arrogância, como se todo aquele processo
lhe fosse desagradável.
— Meus Senhores Cardeais, não estamos agindo conforme as normas
constitucionais. Meu Eminentíssimo e Estimado Irmão, o Meu Senhor Cardeal
Domenico, creio eu, está ultrapassando os limites da propriedade no Concla­
ve...
A reação de Domenico é imediata. Pela primeira vez, seus amigos perce­
bem em seu rosto o hálito frio de pura cólera:
— Se o Meu Senhor Buff gastasse mais tempo estudando os documentos
da Igreja e não debruçado em cima de cartas oriundas de ministros ateus e
de bispos renegados; se passasse suas férias em companhia dos colegas, e não
entre os neo-pagãos de... - Buff olha rapidamente para Thule, suplicante. Não
pode enfrentar sozinho aquele ataque, nem a inesperada cólera de Domenico.
Não tem defesa, diante de uma confrontação violenta.
Thule salta de pé:
— Meus Senhores Cardeais-Presidentes! Além de advogar a revolução no
Colégio dos Cardeais, o meu Senhor Domenico está-se permitindo...
Domenico ataca-o num relâmpago:
— Revolução?! Vós! Meu Senhor Thule! Vós! Vós sois a pessoa que de­
clarou numa reunião de sacerdotes: “Vim para pregar a discórdia no mundo e
a guerra nos mosteiros.” Vós, Meu Senhor Thule! Vós sois a pessoa que disse
numa sessão pública, na França: “O cristianismo tradicional está acabado.”
Vós, Meu Senhor Thule, vós...
— O Senhor Cardeal-Presidente perdoará que eu me levante sem autori­
zação? — A voz é de Franzus e ele já está de pé, olhando através de suas
grossas lentes para os Cardeais-Presidentes. Tem na voz aquela sonoridade que
sempre revela a ira num homem, não importa qual seja a língua que esteja
falando:
— Não é que tenhamos receio de aparecer nus e sem proteção no mundo,
para poder pregar...
Domenico vai atrás dele também, tão depressa consegue recuperar o
fôlego:
— Vós, Meu Senhor Franzus, falando sobre andar nu? Não sei onde pre­
tende ir Vossa Eminência, partindo desse pensamento. Digo-vos, Meu Senhor
Cardeal, meu irmão Cardeal, se todos nós estivéssemos tão protegidos quanto
vós tendes estado, nossas mesas de trabalho, nossos altares e nossas pias batis­
mais estariam tão cobertos de pó quanto os de vossa diocese, em vosso país.
363
— Franzus fica rubro até a raiz dos cabelos. A proteção a que Domenico se
refere é o companheiro constante de Franzus, um agente nomeado pelos rus­
sos, que está sempre presente. Ninguém sabe ao certo se isso acontece por
vontade de Franzus, ou se é uma coisa imposta a ele. —Sim, meu Senhor
Cardeal, — continua Domenico implacavelmente, —vós sois protegido. Mas,
que Deus vos ajude! - E antes que Franzus possa responder, ele faz outro
disparo: —A propósito, Meu Senhor Cardeal, da próxima vez em que entrar­
des numa clínica reservada do governo, para uma ligeira operação, certifi-
cai-vos de que estais sem nenhum microfone escondido, antes de entabolar-
des qualquer conversa confidencial com autoridades de Roma.
Um súbito e audível murmúrio de perplexidade e nervosismo perpassa
entre os Cardeais, cabeças voltando-se de um lado para outro, olhares e gestos
inquisitivos, ombros encolhendo-se, algumas conversas em sussurros. Franzus
deixa-se cair de volta em seu lugar. O Cardeal-Presidente pode, afinal, intervir:
— Meu Senhor Domenico continuará seu discurso.
Domenico está ansioso para continuar:
— Não quero que penseis, meus Irmãos, que há ódio, aborrecimento, ou
mesmo cólera em mim agora. Perdoai-me por qualquer violação da caridade
fraternal. E que Jesus tenha piedade de minha alma.
— É só que estamos na encruzilhada da História. Votamos. Mas precisa­
mos lembrar que a cédula do voto aceitará, silenciosamente, qualquer coisa
que escrevamos sobre ela. Só os acontecimentos nos incomodarão. Só o
Senhor Jesus nos julgará pela maneira de escolhermos.
— Ao escolher, precisamos ouvir, ouvir, ouvir! Porque essa mesma voz
antiga é implacável, e temos muito pouco tempo para levar tudo em consi­
deração. Em nossa fé real e imorredoura, que não nos seja permitido deixar
de ouvir a palavra... —e Domenico volta a ser a “voz” da velha Roma.
No Conclave, tudo é silêncio, salvo aquela fala monótona, curiosa e insis­
tente:

Posso perder, com serenidade, todos os meus monumentos. Pouco im­


porta isso, se os mantos de Jesus em Roma são destruídos ou abandona­
dos. Que a Scala Sancta da Igreja de São Salvador seja reduzida a cacos,
se é para ser assim. Que seu mármore seja usado para construir latrinas
públicas. Que os tanques de um inimigo rolem com estrondo por dentro
da Basílica de São Pedro, como fizeram os cavalos do Exército Espanhol,
em 1527; como fizeram os guerreiros de Átila e de Genserico, mil anos
antes disso. Não tem importância. Que as mitras, os crucifixos, as tiaras,
os anéis e as cruzes guardados nos meus museus sejam vendidos para
garantir empréstimos ou pilhados como espólios. Não tem importância. E
que o Vigário de Jesus seja um peregrino, como Jesus foi, vigário que é
hoje o Papa. Não tem importância. Que toda essa imensa beleza, que
também é minha, que seja ela ofuscada e maculada.
364
Isso não é de vosso interesse. Não ficais subjugado à História —na realida­
de, tal coisa não existe; nem ficais subjugado a forças históricas —são
apenas conceitos. A História nada faz. E o ser humano quem faz alguma
coisa. E nossa História não é senão a atividade dos homens perseguindo
seus propósitos, indivíduos, como vós.
Os determinantes são os indivíduos. E o futuro depende de vossa escolha,
de vossa escolha individual. Não sois criação de sistemas, ou coletivida­
des, ou agrupamentos, ou instituições. E a lei de vossas vidas e de vossas
realizações não é a lógica, não é a emoção. É a experiência.
A experiência vos diz que deveis pôr um fim a tudo isso, para que possais
ter um começo. Tendes que me libertar das peias que vós e vossos ante­
cessores, nesta Igreja, colocaram sobre mim. Libertai-me. Ou, de outro
modo, talvez eu tenha que vos destruir, para que possa dar lugar a uma
geração mais fiel, que não fale a vossa linguagem, que não pense vossos
pensamentos, que não se revista de vossas dignidades, ou de vossas ves­
tes. Mas que consinta em oferecer a Deus um mais aceitável sacrifício do
Senhor Jesus em pureza e em verdade, através de todo o universo huma­
no! “Desde o nascer do sol”, como escreveu o Profeta Hebreu, “até o
ocaso do mesmo”, uma oferenda pura.

— Meus Senhores Cardeais-Presidentes, agradeço a todos vós. - Dome­


nico caminha lentamente até seu lugar.
Há um curto silêncio. Nenhum dos Eleitores se move. Depois o Cardeal-
Presidente confabula em voz baixa com seus assistentes. Põe-se de pé:
— Propomos que se proceda a uma votação. Votaremos como devemos
votar, primeiro sobre a política, depois passando ao nosso candidato. A vota­
ção sobre política é a escolha entre a formulação do Meu Senhor Domenico e
a formulação do Meu Senhor Thule. Queiram Suas Eminências, por favor,
concordar ou discordar dessa votação.
Há a pausa de um momento. Depois, como uma onda encrespando-se
sobre uma grande praia recurva, o som do Ita. Primeiro de um Cardeal,
de outro, de outro, vindo de todos os tronos. Depois, o Ita cessa, finalmente.
— Agora, Suas Eminências que discordam, - proclama o Presidente. Não
há um som. Não há discordância.
— Passaremos, então, à votação. E... — Bonkowski pára. Baixa o olhar
para seus apontamentos, depois limpa a garganta. Fala com gravidade e emo­
ção. —Não é em virtude da minha função, como Cardeal-Presidente, - come­
ça ele lentamente, — mas como um de vós, meus Eminentíssimos Irmãos;
permiti que acrescente uma ligeira reflexão. - Olha em volta interrogativa­
mente, abrangendo as duas fileiras de tronos e suas extremidades.
— Este parece ser um momento importantíssimo de nossa história como
Conclave, quando convenções normais podem ser relaxadas. Pessoalmente,
365
meus Irmãos, não concordo com a amnésia de nossos contemporâneos, ou
com a futurística condenação de nossos atuais profetas —é claro que não me
refiro a ninguém aqui presente em nosso Conclave. Dispomos de tempo, do
tempo do Senhor. Dispomos do segredo do único tempo verdadeiro —não
uma eternidade vazia, nem um passado morto, mas o luminoso instante que
jaz no pulsar do coração de todo ser humano. Por isso, por nos relembrar
isso, queremos agradecer ao Meu Senhor Domenico... —há uma breve irrup­
ção de palmas comedidas. 0 Presidente cala-se por um momento, embaraçado
com a aprovação inesperada.
— Constitui privilégio do Cardeal na presidência convocar qualquer um
dentre nós que, em sua opinião, possa definir, com propriedade, o tom e a
mentalidade do Conclave em perspectiva. Ainda não exerci esta prerrogativa
e quero fazer isto agora. Crede, meus Irmãos, não faço isso levianamente, ou
num impulso, ou a pedido de quem quer que seja, mas com profunda convic­
ção e é assim que convoco... —olha em tomo, procurando aquele rosto de
garoto e, quando o encontra, — o Meu Reverendíssimo Cardeal, Senhor
Azande, para falar ao Conclave, sobre sua tarefa.
Há algumas calmas expressões de encorajamento: “Bravo Azande! ” “/fa/”
Azande levanta-se, ligeiramente desajeitado, e encaminha-se para o lugar
destinado ao orador. Em sua confusão, esquece-se de ajoelhar-se diante do
Altar, para a prece costumeira. De frente para os Eleitores, parece acanhado,
um pouco tímido. Mas sua voz é forte e sonora:
— Acho, meus Eminentíssimos Colegas, que a minha intervenção pode
ressentir-se do peso necessário, em razão de meus poucos anos no Sacro
Colégio. —Há alguns gritos de encorajamento: “BravoH “Avante!”
— Talvez me falte clareza porque, apesar da formação e da prática diá­
ria, não sou nem posso ser dotado da mentalidade ocidental. Mesmo este
idioma, quando o uso, é uma tradução da minha mente —minha própria —
em si mesma estranha à mente dos grandes homens que construíram a Igreja
estabelecida e formularam sua linguagem. - Caminha até um lado, depois
se volta. Há um sinal de leve malícia em seu rosto.
— Muitos de vós —talvez todos vós —sabeis que na Capela Sistina, que
costumava abrigar todos os Conclaves, Michelangelo cobriu a parede do fundo
com o Juízo Final. E, no teto, retratou os Profetas. Talvez muito poucos
saibam que Michelangelo inseriu em seus afrescos dois auto-retratos. —Faz
girar o corpo e aponta, como se todos eles estivessem olhando para o Juízo
Final. O poder de sua imaginação arrasta com ele a mente de seus ouvintes.
— Vêde! - diz, entusiasmado, apontando. —Olhai para aquele vulto de
um homem apalpando seu caminho para sair do túmulo: Jesus ordenou ao
morto que se levantasse, de acordo com o artista. Reparai na alegria soturna
do rosto do homem. — Depois, voltando a seus ouvintes: —Esse é um dos
auto-retratos de Michelangelo. Num certo sentido, é um retrato meu, pene­
trando na luz de um pouco de compreensão, meus Irmãos. —Há um sussurro
366
de aprovação, um ou outro murmúrio agradável de “Bravo!” “B e n e ! Azan-
de sorri como um menino, os traços angulares de sua boca e queixo expres­
sando uma nota travessa de sua personalidade.
Enquanto caminha de volta à mesa dos Presidentes, olha de novo para o
teto, como se fosse o da Capela Sistina. Pára, parece procurar alguma coisa,
depois exclama:
— Oh, sim! Lá está ele! O Profeta Jeremias! —Há risos abafados, quando
os Cardeais antecipam a nova comparação. —Michelangelo também se colo­
cou no rosto de Jeremias.
— Pensamos em Jeremias como um profeta de destruição, de tristeza,
cheio de lamentações ante as ruínas de Jerusalém. Mas, vós sabeis, meus Ir­
mãos... — O rosto de Azande mostra aquela fraternidade natural e a acolhedo­
ra intimidade tão espontâneas nos africanos. —Jeremias é, acima de tudo, o
profeta, o anunciador da Nova Aliança. E, se me permitirdes, tomai-me
como um arauto, um proponente de uma nova aliança.
— Primeiro, como dizemos na África, vamos tratar de ficar livres do
mato.
— Assumirmos uma posição conservadora e assim continuar não consti­
tui alternativa para nós: seríamos como os Apóstolos, ainda escondidos na
Sala Superior, esperando por um Espírito Santo —que já veio!
— Por outro lado, mudança e adaptação graduais e cuidadosas não repre­
sentam alternativa para nós: a Igreja mudou já —em seu povo e em seu
espírito.
— Assim, deveríamos nós sair para o mundo e ser iguais aos outros,
deveríamos buscar uma homogeneização com todos os outros? Deveríamos
tornar nossa Igreja homóloga às dos outros? Não, isso também não é alterna­
tiva para nós. Que direito temos de ser iguais aos outros? Não dispomos de
direitos. Só de deveres sagrados.
— Mas, apesar disso, não poderíamos forjar uma aliança sócio-política
com elementos e movimentos populistas —alguns deles democráticos? Ainda
uma vez, isso não é uma alternativa para nós: tivemos alianças políticas
durante todos os anos de mais de dezesseis séculos e vêde onde é que isso
nos deixou!
— Mas precisamos, com toda a certeza, indubitavelmente, muito além
do sofisma de qualquer inimigo de olhar agudo, precisamos nos livrar da nossa
condição atuai. De gigante financeiro. De poder diplomático. De beneficiários
e mesmo controladores de interesses políticos. De senhores e corretores de
propriedades imobiliárias. De tudo isso precisamos nos livrar.
— Por quê? Duas razões! Uma negativa, uma positiva.
— A negativa não dá lugar para tratamento suave, Irmãos. Perguntai a
vossa volta. Andai disfarçados por um mercado, nos parlamentos dos homens,
em suas lojas, suas casas de câmbio, seus clubes, suas residências, suas fábri­
367
cas. Perguntai, e enrubescereis. De acordo com eles, somos pregadores esqui-
zóides. Celebramos na manhS o amor da divindade. Depois do meio-dia sen­
tamo-nos à mesa de Mammon, para contar dinheiro. Nas horas mortas peram­
bulamos pelos bulevares da boa vida, nos domínios da “grã-finagem”.
— Operamos, dizem eles e estão certos, na suposição de que a substância
tênue de nossa fé e o brilho metálico do dinheiro vivo se fertilizam mutua­
mente. Tocamos na água, no pão e no vinho, proclamando que a bênção de
Deus impregna uma e que a humanidade e a divindade de Deus transubstan-
ciam os outros dois. Mas com as mesmas mãos consagradas guardamos no
bolso as moedas dos Shylocks e entregamos uma porção de votos ao partido
político escolhido, e encaminhamos os contratos às sedes de nossa preferên­
cia. Essa, meus Irmãos, é a razão negativa.
— A razão positiva é bela, consoladora, encorajante. —Um sorriso dese­
nha-se em torno dos ângulos de seu rosto. —É que nós —e o Papa que eleger­
mos —nós, a Igreja, temos dentro em nós um fundo de iluminação espiritual,
uma riqueza inexaurível, de autoridade moral! Está tudo aí. Mas está preso na
armadilha dos compromissos políticos, da diplomacia insensível, do dinheiro
e da barganha, e da compra e venda e do comércio. Não há quantidade de
púrpura, meus Irmãos, nem extensão de brocado, nenhuma fulgurante pele de
arminho, nem perfumadas cerimónias, não há porção de dignidade humana
que possa camuflar ou tornar mais bonita a contemplação do fato de que
as maiores riquezas de nossa Igreja estio presas nas peias desprezíveis da
mundanidade.
— Em nome de nosso triunfante Senhor, não dispomos nós de alguma
coisa que seja realmente nossa? Como disse o Meu Senhor Domenico, não
contamos com uma iniciativa própria? Positivamente CristS, autenticamente
Romana, Católica e Apostólica? Não dispomos da base —da maior das bases
- para uma política geral com a qual estamos todos comprometidos? Com a
qual o candidato que elegprmos deva se comprometer, a si mesmo e a sua
Igreja? Com a qual deva comprometer sua autoridade como Papa e como Vi­
gário de Cristo? E comprometer cada gota de energia que caiba na Igreja?
De repente, Azande é interrompido. Todas as cabeças se voltam quando
Thule se põe de pé, do lado direito, ali perto, e Vasari se levanta lá na extre­
midade esquerda. Ambos os Cardeais estão pedindo permissão para falar.
Ambos têm perguntas a fazer - mas por motivos totalmente diferentes. Vasari
receia pela velha guarda. Thule por aquilo que encara como sendo a vanguarda
do futuro próximo.
— Meu Senhor Vasari! —É o Presidente.
— Meus Senhores Cardeais. Penso que o Meu Eminentíssimo Senhor, o
Cardeal Azande, nos deve uma relação objetiva de mudanças e propostas
concretas. Não estamos aqui para divagações. —Vasari está zangado porque
se sente assustado. As insinuações e alusões de Azande são para ele tão te­
míveis quanto as propostas declaradas de Thule.
368
Thule dá de ombros, indicando por um movimento de mão que essa era
também, mais ou menos, a sua pergunta.
Azande, sorridente, concorda com Vasari balançando a cabeça. Sua
maneira suave e simpática é o realce perfeito para a aspereza inerente às suas
palavras. Fala como se estivesse recitando um doce e nostálgico poema da
juventude, na África distante:
- Num determinado dia, a uma determinada hora, numa determinada e
bem conhecida parte do Vaticano, servindo de instrumento um documento
determinado, devidamente assinado, selado e dado a púbüco, transmitido
através da televisão e do rádio, em vinte e cinco idiomas, via satélite e por
cabo, a todos os continentes de nosso mundo, por intermédio da comunica­
ção escrita e apresentação simultânea de versões oficiais desse mesmo docu­
mento a todos os bispos de todas as 2.700 dioceses, a todos os governos,
membros das Nações Unidas, a todas as organizações internacionais —gover­
namentais e não-governamentais —seja permitido ao nosso candidato-Papa e a
seu Sacro Colégio de Cardeais informarem à família humana, com precisão,
sobre as medidas iniciais seguintes, que a Santa Sé e a Igreja Católica estão em
vias de implementar:
- Número Um: a criação de uma Organização Administradora, interna­
cional, de todas as denominações religiosas e leiga; a transferência legal para
a posse dessa organização de toda a atual riqueza —dinheiro, títulos, valores,
propriedades imobiliárias, notas promissórias — que efetivamente pertence,
por lei e de direito, à Santa Sé, seus órgãos e representantes, na sede e no
estrangeiro.
Extraordinário! Já se fez um silêncio que só pode ser descrito como de
estupefação. Alguns cardeais esticaram-se para frente, em suas cadeiras,
como se temessem perder uma palavra daquilo que Azande está dizendo.
- Serão criadas divisões nacionais dessa Organização Administradora
internacional para todos os estados soberanos que o requeiram, de acordo
com suas próprias leis nacionais. Mas os prelados nunca mais administrarão,
decidirão quanto ao emprego ou farão a alocação da riqueza desta Igreja.
- Quando Azande chega ao fim desta declaração, o silêncio está carregado
de emoções que são quase palpáveis. Nos rostos de Masaccio, Vasari, Ferro
há expressões de ira, consternação e espanto. Foram apanhados completa­
mente de surpresa. Lynch está mordendo o lábio superior, olhando fixa e
impassivelmente para a frente. Thule está obviamente desnorteado — não
compreende bem o rumo que Azande está tomando: pode ser tudo a seu
favor; pode ser contra tudo aquilo que propõe. É mais radical do que ele e
seu grupo jamais haviam pretendido.
O Camerlengo parece um homem de quem se tivesse tirado todo o san­
gue. Já não se mostra mais desapaixonado, desligado, ocupado com suas
anotações, como foi a atitude que adotou até aquele momento extraordiná­
rio; está paralisado — os olhos saltados, a boca comprimida numa linha fir-
369
me; até o nariz aquilino parece mais curvo do que nunca, com a compres­
são dos lábios.
Walker é o único que parece prestar mais atenção às expressões dos
rostos de seus colegas Cardeais do que a Azande. Parece ter compreendido
imediatamente tudo que Azande disse e não estar espantado por nenhuma
palavra daquilo.
- Número Dois, —continua Azande implacavelmente, apesar da conster­
nação que sabe que causou. — A cessação de todas as missões diplomáticas
dos Estados soberanos e nações, junto à Santa Sé; e a chamada simultânea
de todas as missões diplomáticas do Vaticano, acreditadas junto aos governos
soberanos e às organizações internacionais. - Pareceria impossível que o cho­
que causado pela proposta inicial de Azande se tornasse mais profundo, mas
o seu Número Dois consegue isso.
No entanto, ele ainda tem que ir mais longe:
- Número Três: Documentos formal e legalmente redigidos, contendo
a renúncia oficial da Santa Sé quanto a todas as possessões territoriais juridi­
camente constituídas pelo Tratado de Latrão, de 1929, entre o Estado so­
berano da Itália e a Santa Sé.
Isto é demais. Começaram diversas confabulações em voz baixa. O
Cardeal Vasari faz esta coisa extraordinária que é se levantar e atravessar o
salão para ir falar com Angélico. Azande faz uma pausa. O Cardeal-Presidente,
parecendo tranqüilo, faz soar a sineta de prata:
- Se o Eminente Cardeal retomar seu lugar, e se Suas Eminências con­
cederem tempo a Sua Eminência, o Meu Senhor Azande, estou certo de que
o que ele ainda tem a dizer será de curta duração. —Vasari volta a seu lugar.
Azande continua:
- Número Quatro: A notificação, a todos os interessados —governos,
organizações políticas, grupos financeiros, cartéis, chancelarias, ministérios
de negócios exteriores —de que, daqui por diante, a Santa Sé se reserva o di­
reito —o dever - de criticar, de desaprovar, de condenar, de aprovar, como
considerar adequado e como ditarem os princípios de sua fé. Sem o impedi­
mento de qualquer motivo resultante de laços políticos, financeiros ou di­
plomáticos. Porque não haverá laços dessa natureza. Nunca mais/ E de que,
doravante, ninguém deverá mostrar surpresa diante de uma ação desse tipo,
que a Santa Sé poderá empreender sem medo terreno —ou esperança —de
favor temporal.
Agora o Camerlengo está de pé. Thule está de pé. Vasari, Riccioni e
Lynch também —todos pedindo permissão para intervir. Com toda a dignida­
de de Camerlengo da Igreja Universal, essa autoridade superior mostra a
maior persistência em sua solicitação de “permissão para interrogar o Eminen­
tíssimo e Estimado Senhor Cardeal, Meu Senhor Azande”. Obtém a permis­
são.
370
Passando os olhos rapidamente por uma pilha de notas diante de si, o
Camerlengo começa:
— Explicará Sua Eminência o que é que tudo isto tem a ver com as con­
dições internas da Igreja? Todas estas medidas cobrem nossas relações exterio­
res. E, além disso, há questões extraordinariamente sérias de todo ignoradas
por vossa, aah, chamada proposta. Por exemplo, quem irá dar estrutura a
essa suposta Administradora? Como é que poderemos ter certeza de que
outra farça financeira, pior do que os negócios de Sindona, não será o resul­
tado? Que meio substituirá os canais de comunicação diplomática com os
vários governos das nações, se eliminamos nosso corpo diplomático? E se
abolirmos todos os entendimentos do tratado com o Estado Italiano, que será
do próprio Vaticano, para só mencionar a pergunta mais óbvia? Sua Emi­
nência tem idéia daquilo que uma vasta reestruturação desse tipo envolve? —
Em seguida, ele volta a sentar-se, com o ar de um homem lidando com a lou­
cura, sacudindo a cabeça.
Azande caminha até sua própria mesa e apanha nela dois pesados arqui­
vos. Levanta-os, dizendo simplesmente:
- O Camerlengo — e todos vós, Eminentes Irmãos, pois farei com que
este material seja copiado —encontrará aqui um muito respeitável primeiro
esboço dos processos de reestruturação. — Caminha de novo para o centro
do salão.
- Quanto à estrutura interna da Igreja, o meu ponto Número Cinco (a
que não cheguei) delineia o princípio geral que eu observaria no julgamento
disso. É o seguinte: que o Conclave nomeie, juntamente com a eleição do no­
vo Papa, um comitê de sete, ou onze, ou treze Cardeais. Esta Comissão pre­
parará, nuns dois meses, certos documentos preliminares necessários ao Santo
Padre. Um documento recomendando revisões de tudo aquilo que as Comis­
sões pós-conciliares decidiram sobre a Liturgia da Missa ê os Sacramentos.
—Thule mexe-se impacientemente em sua cadeira - talvez irritado.
- Um segundo documento conterá os princípios de uma proposta rees­
truturação do Vaticano e da estrutura internacional do governo da Igreja.
— Um terceiro documento fará a listagem dos desvios das doutrinas
oficiais, juntamente com os nomes dos teólogos, filósofos, escritores, publi­
cistas, bispos, padres e intelectuais envolvidos na ativa promulgação de tais
desvios, evidentes desde o fim do II Concílio Vaticano, em 1965. Tal docu­
mento esclarecerá também a substância, significado e importância desses
desvios, em termos de fé.
Thule salta de pé. Agora é preciso que obtenha a resposta a uma per­
gunta:
— Em que base, Eminente Irmão, tratará a Igreja dos problemas políti­
cos e sociais e das forças da mesma natureza hoje desencadeadas em nosso
mundo? —A cabeça leonina de Thule está empinada, num desafio direto.
Azande esperava esta pergunta —de Thule. Olha para o Cardeal, depóis
371
para os demais Eleitores e depois desce o salão, entre as fileiras de Cardeais,
sempre olhando para o chão. Pára quando se acha fronteiro a Thule, mas é
para os Cardeais agrupados na extremidade do salão que ele olha. Em seguida,
vira-se e fica de frente para toda a assembléia. Quando fala, os Eleitores ou­
vem a autoridade que vibra em sua voz e sentem a resolução interior daquele
jovem negro cujos pais nem mesmo eram cristãos.
— Seria fácil, tão fácil —adulador, é a palavra —responder ao Eminen­
tíssimo Senhor Cardeal com suas próprias palavras. Afinal de contas... —um
sorriso zombeteiro espalha-se sobre a boca de Azande, - o Meu Senhor Car­
deal gostaria que confiássemos naqueles que já mataram, aleijaram, aprisiona­
ram, executaram, caluniaram e perseguiram a Igreja por toda a Europa e
Ásia. - Sua voz torna-se áspera, no protesto. — Confiarmos nos maoístas,
Reverendo Cardeal? Confiarmos no KGB, Eminentíssimos Irmãos? Confiar­
mos no chacal castrado comunista que é Kadar, Eminentíssimo Cardeal? -
Thule fica perplexo.
Depois a voz de Azande retorna ao normal:
— Portanto? Eu estaria habilitado a dizer: Confiemos em Nosso Senhor!
— Sorri, fingindo desculpar-se. —Mas isso não seria resposta. Minha resposta
consiste em deplorar a indigência de vossas alternativas, Eminente Cardeal!
Vossa e de todo aquele que negligenciou uma verdade essencial de nossa fé,
e uma incontestável promessa de nosso adorado Jesus Cristo. — Levanta o
olhar para o lado de Angélico, depois para o Camerlengo, depois para o lugar
em que se senta Vasari.
— Essa verdade e essa promessa são uma. - Enche a palavra “uma” de
enorme ênfase e a repete: —uma!
— Pensai Eminências! Imaginai e relembrai para vós mesmos aquele dia
dos dias! Vêde Jesus conferindo a Simão Pedro o poder das Chaves, perto
de Hermon. Olhai! Eminentes Irmãos! Olhai, cada um de vós, para essa cena
com os olhos da mente. Todos a conhecemos. Sabemos as palavras de cor. Em
latim... Em grego. Em nossas línguas nativas. No entanto, —olha para tudo
que o cerca, pergunta a todos os que ali estão —a todos, em toda parte, —
teremos nós compreendido, realmente, o que aquelas chaves representam?
Qual o poder que, através delas, nos está sendo dado? —caminha de novo
gravemente pela passagem, entre os Cardeais, meditando enquanto anda.
— Em algum ponto ao longo da linha de nossa história horizontal neste
globo, perdemos o controle daquele prumo vertical. Confundimos aquele
poder com os efeitos do dinheiro, das tendências políticas, da superioridade
militar, do enriquecimento cultural, da glória humanística. E, para dizer-vos
a verdade, tal como a vejo, Eminentes Irmãos, não creio que haja dez homens
entre nós, agora, que saibam o que significa ter poder em espírito. E, raramen­
te, algum de nós o viu usado em nossos dias. E quando foi usado debaixo
de nossos próprios olhos, nós o reconhecemos pelo que era? Duvido. Duvido.
— Meditemos, por um momento, sobre esse poder. Porque, o que pro-
372
ponho, em nome dos Eminentes Cardeais que me apóiam é que remodele­
mos, reformemos, renovemos toda a atividade do Papa, do Vaticano e da
Igreja, de modo que contemos apenas com esse poder. Somente com esse
poder.
Há um súbito —não importuno —ruído de aprovação vindo dos Cardeais
negros. É estranho, mas inusitadamente excitante, profundo, ondulado, como
o som de um tambor. Primeiro vem de Makonde, depois é ecoado lá na filei­
ra da direita por Chaega, Koi-Lo-Po, vindo da esquerda, de Lotuko, Nei Hao,
Kotoko, Duala, Lang Che-Ning, Salekê e ecoando do único negro ao fundo
da assembléia —Bamleke.
Saindo de seus peitos e de suas gargantas, o som é um fluxo longo, len­
to e ressonante de batidas, que se elevam vibrantes e altas, descendo depois
de tom, até uma nota profunda, firme e muito baixa. O som não se traduz
em palavras. Mas é variado e modulado por uma emoção tio primitiva, tão
nua, tio natural, tão coletiva, tão evidente, que todo mundo compreende. É
como se, para transmitir a experiência de ver um nascer do sol, a garganta
humana formasse sons dando a idéia não desse nascente, mas das emoções
por ele despertadas. Tem uma qualidade primitiva que toca todo mundo,
perturbando uns, excitando outros, fazendo com que todos se estiquem nas
cadeiras para olhar para Azande, que está sorrindo o sorriso da África para
os Cardeais negros, que lhe sorriem de volta, depois sorriem uns para os
outros e depois para todos os demais. Este aplauso é uma expressão quase
perfeita de concordância, de simpatia, de encorajamento.
— Este poder, —as palavras de Azande determinam que se faça de novo
silêncio, — este poder não é o de curar membros doentes, nem de ver à
distância, nem de estar ao mesmo tempo em dois lugares, nem de ler os segre­
dos da mente ou prever o futuro.
— Este poder é uma força que emana de Deus, habita naqueles que estão
na graça de Deus. É poder que reside no espírito. E no Guardião das Chaves,
em seus ministros, nos padres e no povo. E um poder que reside neles, que
lhes dá autoridade moral - de acordo com sua posição no Reino Espiritual
de Deus.
— Em Pedro, seja ele quem for, o poder é preeminente, poderoso e insu­
perável. Em razão dele pode invocar a lealdade, a obediência e exigir ação de
todos os fiéis. Pode, literalmente, opor-se a inimigos e a opressores e a todo
mal, e estes não podem conquistá-lo, nem aos fiéis, nem à sua fé.
— Seria fácil relembrar o exemplo do Papa Leão, o Grande, sozinho,
sem arma, saindo para encontrar-se com Alarico, o Huno, e seus sessenta mil
guerreiros. Leão, sozinho, com a força do poder moral, convenceu Alarico a
retirar-se e a não saquear Roma. Mas isso foi, pelo menos há uns 1.500 anos.
E a distância no tempo toma o acontecimento irreal para nós, modernos.
— No entanto, temos exemplos mais recentes, perto de casa. Como é
que supondes que os poloneses sobreviveram com sua Igreja intacta na Polô-
nia Staíinista? Acreditais que eles e sua Igreja conseguiram isso por causa
de seu saldo bancário? Ou de seu investimento em ações? Ou suas proprieda­
des imobiliárias? Sua cobertura política? Sua influência diplomática? Nada
disso! Sabeis disso melhor do que eu. Nada disso. Apenas porque se aferra­
ram a esse poder espiritual!
— Quantas vezes, na história recente, confiaram o Papa e o Vaticano
apenas nesse poder? Quantas vezes, confiando apenas nele, ambos o bran­
diram?
— E não apenas o Papa. Vamos enfrentar a verdade. Para muitos de nós,
Bispos, para milhares de padres, para milhões de leigos, esse poder espiritual
tem sido obscurecido, disfarçado, transmudado, degradado. Acima de tu­
do, tem sido confundido com outras coisas. Tornamo-nos vinculados como
escravos aos pavorosos rigores de um sistema político-econômico. E nem
percebemos isso, nem sabemos como nos libertar disso. Meu Deus! Eminentes
Irmãos, meu Deus! E corremos para nossos administradores de bens, para
nossos banqueiros, para nossos corretores de imóveis e para nossos diploma­
tas, para que resolvam nossos problemas, em vez de confiarmos no poder de
Deus. “Pede aos Deuses”, disse Sócrates, “apenas as coisas boas.” “Pede o que
quiserdes em meu nome”, disse Jesus, “e vos será dado.” Teremos esquecido
tudo isso? Tudo isso é uma piada? Uma história antiga? Que Jesus nos ajude
a deixar que as vendas nos caiam dos olhos.
— E isto mostra o quanto todos nós estamos confusos. Confundimos po­
der espiritual com energia psíquica. Confundimos a alma com a psiquê. Con­
fundimos a inspiração de Deus com o subconsciente irracional. A piedade
transforma-se em psicologia do comportamento. A teologia inclina-se ante a
antropologia. A ética e a lei moral são tratadas como nada mais e nada dife­
rente de uma quantificação sociológica. Definimos a história humana com as
frases gélidas de Lenin e as condensamos num “Quem fez o que a quem?” .
Definimos a salvação divina conforme a crassa obliteração do espírito promo­
vida por Darwin. E isso se resume a “Em que se tomou o que?”. O amor é
reduzido ao sexo. A dignidade do mendigo é reduzida às pretensões dos re­
cebedores da assistência social. A liberdade é aviltada como ausência de qual­
quer tipo de controle. A licença é transformada no ressentimento contra
qualquer limitação do comportamento.
— O Sacrifício da Missa é praticamente destruído pela indignidade de
uma “santa refeição”. O mal é equiparado a fatores ambientais negativos;
bom é um refrigerador, uma máquina de lavar pratos, um aparelho de TV.
— A caridade de Cristo é confundida com cotas de minoria; as obras
pias com o ativismo social; o culto de Deus com a fraternidade de homens e
mulheres bebericando coquetéis; unidade e harmonia com caprichos majori­
tários; civilidade com ausência de inflação; a conveniência das coisas com o
bom sistema de canalização; liberação com mais dinheiro; autocontrole
com permissão para mater bebês antes de nascerem; a dignidade do homem
374
com sodomia masculina; a emancipação das mulheres com lesbianismo; a
verdade com a publicidade constante de mentiras, meias mentiras e mitos.
— E neste Conclave, a graça gratuita da vida está em perigo de ser con­
fundida —pela última vez - com subsídios financeiros de govemos socialistas.
— Meu Deus! Eminentes Irmãos, ó meu Deus! Bom Jesus! Até onde
chegamos! —Os olhos de Azande estão cheios de lágrimas. Seu corpo treme.
Os punhos abrem-se e fecham-se. Fica de pé, em silêncio e encarando a assem­
bléia, por alguns instantes.
Alguém limpa a garganta, no absoluto silêncio, como se estivesse prestes
a dizer alguma coisa em voz alta. O som provoca uma reação. Ela vem sem
aviso, mas como que a um sinal combinado. Alguns começam batendo as
mãos. Depois mais uns poucos. E mais uns poucos. O Camerlengo olha rapi­
damente em volta, de um Cardeal que aplaude para outro, alternadamente
olhando fixo e com perguntas nos olhos. O aplauso aumenta de volume. Um
Cardeal grita “Bravo!” . Trinta gritam “Bravo/” . Dois já se levantaram, ainda
batendo palmas e gritando “Bravo!”. Depois, ao longo de todas as filas de
Cardeais sentados, os Eleitores põem-se de pé, deixando cair os papéis sobre
as mesinhas diante de seus tronos, batendo palmas, sorrindo, gritando “Bra­
vo!” “Bravo!" “Azande!" “Magnifico!". “Bem dito, Azande!” “Bravo!".
Uns poucos permanecem sentados —o Camerlengo, Lynch, Thule, Marquez,
Manuel, Buff, Franzus. Mas eles também se levantam depois de alguns mo­
mentos e, ainda que apenas num ato de harmonia, por estarem aqui presentes,
juntam-se ao aplauso.
Uns poucos Cardeais estão chorando abertamente; um ou dois são vistos
apertando*se as mãos, como se, juntos, tivessem testemunhado alguma cena,
ou ouvido algumas palavras que, juntos também, haviam implorado e espera­
do. Alguma emoção primitiva desencadeou-se entre aqueles homens cheios
de dignidade e altamente egoístas e personalistas —carreiristas, burocratas,
políticos, santos bispos, sábios, diplomatas, homens do mundo. Todos sabem
que, como indivíduos, e como um Colégio de Cardeais, viram subitamente
uma imagem brilhante, algum tremeluzente ideal que repousava entre eles,
espontâneo, cativante, o objeto real de suas vidas, e o mais elevado objeto
dos melhores momentos de seu espírito.
E sabem que aquele vulto negro, magro, anguloso, de aparência juvenil,
de pé junto à longa mesa, foi a oportunidade e o instrumento daquela expe­
riência.
— Estamos vendo, Azande! Não se preocupe. Compreendemos, estamos
com você, Azande! Azande falou por todos nós. 0 Espírito Santo falou atra­
vés da África! Azande! Jesus está com você, Azande! Azande! — O Cardeal
negro está tentando dizer alguma coisa por cima de todo aquele tumulto. E
alguns Eleitores começam a pedir que pare o aplauso, sacudindo os braços e
as mãos:
— Psiu, psiu! Irmãos! Silêncio! Deixai-o falar!
375
O clamor vai amortecendo. Todos olham para Azande. Se alguém ali
tinha quaisquer dúvidas sobre a habilidade dele para compreender uma assis­
tência ou para aproveitar uma oportunidade, todas essas dúvidas são postas
de lado. Ele olha firmemente para os Eleitores dispostos pelos dois lados e
além, para a massa de Eleitores reunida ao fundo da assembléia.
- Podemos fazer isso, meus Irmãos? - diz finalmente. —Ainda podemos
fazer isso?
Há vários gritos espontâneos de “ / t e / ” “Ita!” " Ita / ” “ / « nomine Chrís-
ti! Ita!” (Em nome de Cristo, sim) "Si volumus! Ita!" (Se realmente quiser­
mos, sim).
- Se realmente quisermos, — Azande parte da última exclamação, er­
guendo a própria voz, para fazer-se ouvir acima dos gritos da assistência. —Se
pudermos recorrer ao Espírito de Jesus. Ainda que todo o mundo dos homens
estivesse coberto de concreto e que toda a nossa vida fosse revestida de aço
e de cromo, mesmo assim! Algum dia, de alguma forma, nossa fé e nossa con­
fiança nesse Espírito romperiam o cimento, e através dessa fenda solitária,
a flor da fé e da verdadeira devoção do Cristo Ressuscitado iria nascer e cres­
cer. Essa brilhante maquinaria inanimada ficaria engrinaldada na glória do
amor de Deus. E sobre a paisagem árida de nossa vida humana romperia o
sol da Ressurreição! Acreditai nisso, meus Irmãos! Acreditai nisso! Acreditai
nisso com os Apóstolos] Com Pedro! Com Clemente! Com Leão! Com
Paulo! Com Pio! Com todos os santos! Com os crentes! Acreditai nisso! Acre­
ditai nisso e isso será feito!
O tumulto explode outra vez:
- Nós acreditamos nisso! Tu és Pedro! Acreditamos nisso! —As palmas
e os gritos de “Bravo!” ressoam pelo Salão. Até o jovem Monsenhor, sentado
do lado de fora, escuta o barulho. Levanta-se, o rosto corado de excitação,
e pensa:
- Um Papa foi escolhido! —Ele espera.
Por trás das portas fechadas, continua o entusiasmo. Azande não tem in­
tenção de deixar que se atenue. E o que realiza agora não leva mais que um
minuto. Sua energia está quase no fim. Suas emoções estão começando a re­
gredir. Mas ele sabe o que precisa fazer. Num rápido olhar pela assembléia,
examina-a toda. Há, naquele momento, um mar de afirmação e de calor -
braços erguidos, olhos brilhando de expectativa, vozes ecoando uma e outras
vezes. E, no meio dessas figuras vestidas de escarlate, os rostos erguidos na
direção de Azande, há os impassíveis membros da oposição, um Thule, um
Franzus, um Buff, os rostos rígidos, os olhos compreendendo mais do que
seus colegas que aplaudem. E eles, mantendo-se às margens daquela emoção
coletiva, sentem o próximo movimento de Azande. Mas não têm o poder de
impedi-lo.
- Irmãos! — É a primeira vez que Azande eleva a voz ao nível de uma
proclamação. Levanta ambos os braços, as palmas das mãos viradas para a
376
assistência, e suavemente pedindo silêncio. Param todos os gritos. Eleitores
são interrompidos em meio de seus aplausos. —Irmãos! Declarareis vós em
vossa maioria, declarareis vós a política geral que esbocei, dar-lhe-eis vós a
mais antiga forma de apoio cristão — vossa voz! Vossas vozes! —Pára, de­
pois explode em um alto e triunfante grito: “/te /”
Apenas por um par de segundos, toda a assembléia fica ali suspensa.
E, de repente, como um corpo só, decide. Reage.
Mais uma vez, são os negros que começam. Pronunciando a primeira
sílaba dessa afirmativa Ita, detêm-se nela, prolongando o som do “i” até
que um, sete, vinte, cinqüenta, noventa, mais de cem vozes se juntaram às
deles. Esse “i” tornou-se agora a fluência de gargantas plenas. Como chefes
de coro natos, os negros elevam o nível de suas vozes, enquanto prolongam
o som. Todos compreendem, instintivamente, que a uma determinada altura
da elevação desse nível surgirá a segunda sílaba de Ita. Todos têm os olhos
pregados em Azande, que está no comando. As mãos dele, os olhos, os con­
tornos da boca, enquanto forma a sílaba “i” —todos os seus ouvintes os vi­
giam. Esta assembléia age agora como um corpo único.
De modo mágico, quando vem essa segunda sílaba, a maioria daquelas vo­
zes a ataca vigorosamente. E o jovem Monsenhor —que apressadamente con­
vocara os padres-confessores, ouve o final daquele “i” que aumenta de volume
coroado por um trovejante e prolongado “te/”. Azande, no comando da cena,
mantém os braços numa mesma posição e imediatamente grita, em tom incisi­
vo “/te /”. Os Cardeais repetem “/te /”. E depois é uma série de doze ou quin­
ze Itas, vindo como os golpes de um martelo firmando um prego já profunda­
mente enfiado na madeira.
Agora Azande precisa cumprir seu último dever. Ergue as mãos pedindo
silêncio:
— Irmãos! Que é que estamos esperando? O Espírito Santo falou! Sabe­
mos qual é a nossa política geral. Precisamos de um Papa! Precisamos de um
Papa! A Igreja precisa de um Papa! Jesus quer que tenhamos um novo Papa!
Não iremos votar? Agora? Aqui e agora? Não elegeremos o sucessor de Pedro
e Vigário de Jesus? Não o faremos? E isso bom para o Espírito Santo e para nós?
Há mais um ressoante /te, seguido do bater de palmas. Azande olha em
torno, para os Presidentes, depois leva o olhar até Domenico. O velho está
recostado na cadeira, imóvel, o rosto cansado. Mas, em seus olhos, Azande
lê: “Muito bem! Muito bem! Pare agora! Retíre-se de cena.” Azande volta-se,
inclina-se para os Presidentes. Enquanto caminha para seu lugar, o Cardeal-
Presidente fala:
— Muito bem, Eminentes Irmãos. Vossa vontade está clara. A política
geral, como a propôs o nosso Eminentíssimo Senhor, o Meu Senhor Cardeal
Azande, é a política oficial do Conclave. Vamos proceder a uma votação e
apuração. Queiram, por favor, os Escrutinadores, Revisores e Infirmarii che­
gar até aqui, para que possamos distribuir as cédulas para a votação.
377
Enquanto as cédulas estão sendo distribuídas, dois Cardeais saem de seus
lugares. O jovem Cardeal gago, sem que muitos o percebam, vai até Domenico
e deixa-se cair de joelhos diante do homem mais velho, o rosto escondido nas
mãos. Os que estão próximos vêem os lábios de Domenico movendo-se, sua
mão direita fazendo o sinal da cruz. Os Eleitores podem apenas presumir o
que está acontecendo entre os dois. Quando o jovem Cardeal se levanta e ca­
minha de volta a seu lugar, os Eleitores dão uma mirada em seu rosto e depois
afastam rapidamente os olhos, cheios de dor e constrangimento. A maioria
deles, embora sendo padres, se esqueceu e não pode suportar um rosto retra­
tando a paz especial e aquela força bastante assustadora que vêm do arrepen­
dimento experimentado, da humilhação aceita, do amor renovado. É demais.
O outro Cardeal é Thule. Teso como um carvalho do Reno, o rosto tão
imóvel quanto um pico dos Alpes, os grandes olhos avermelhados de emoção,
ele caminha com uma dignidade rara e é seguido por 117 pares de olhos. Pára
em frente de Azande, que já está sentado. Azande está prestes a levantar-se
diante do homem mais velho. Um lampejo dos olhos de Thule faz Azande pa­
rar, como uma mão pousada sobre o peito; e ele fica ali sentado, a face negra
erguida, enquanto olha nos olhos de Thule. Depois, espontaneamente, Azande
une suas duas mãos e as levanta até Thule. Este as toma entre as suas e sobre
elas inclina a cabeça. Algumas palavras - curtas, suaves, em sussurros —são
trocadas entre o europeu e o africano. Depois, devagar e sem pressa, como se
estivesse caminhando numa solidão total e só dele, Thule volta a seu lugar.
A esta altura, as cédulas já foram distribuídas. O Cardeal-Presidente tira
os óculos e encara a assembléia:
— É de hábito que o Cardeal que preside o que promete ser uma vota­
ção definitiva, tenha o privilégio de dizer umas poucas palavras não-oficiais.
Acho —como vós todos achais —que a agonia de nossa escolha do novo ocu­
pante do trono de Pedro deveria terminar tão prontamente, tão eficientemen­
te e tão tranqüilamente quanto possível. Agora, em outras palavras. E numa
união fraterna e em paz. — Pensativamente ele olha em volta, para seus
confrades Cardeais.
— O mundo exterior nunca compreenderá isso. Mas tivemos neste Con­
clave, meus Irmãos, momentos de uma experiência de cortar o coração. Al­
guma coisa invulgar e preciosa aconteceu-nos aqui, ein? — Olha em torno
outra vez, e recebe gestos de assentimento e sorrisos de estímulo. —A gran­
deza de nosso Senhor Jesus, supondo, passou pela nossa frente, e tocamos a
fímbria da glória de sua passagem. E a graça passou dele para todos nós.
— Tivemos a experiência daquele indizível sopro da inspiração de Jesus
perpassando suavemente sobre nossos espíritos. Nós, como outros pobres
mortais, não gostaríamos de examinar de muito perto sua supremacia, pelo
medo das exigências que nos poderia fazer. E, contudo, estamos sós agora.
Absolutamente sós, na companhia de Jesus. Não podemos nos permitir es­
quecer sua presença. Muito menos passar por ela sem reconhecê-la.
378
— Escolhemos, agora, consoante o mais elevado dos motivos. Não há
nenhum de nós, aqui, que não tenha sido completamente informado sobre
nossa situação. Estamos no fim de uma estrada. Talvez ninguém mais tenha
sido forçado a ver, como nós vimos, como a presença e o poder de Jesus, o
bom Senhor da Igreja, estiveram por tio longo tempo investidos nas armadi­
lhas do imperialismo, do poder financeiro, da armadura diplomática, do eli­
tismo cultural e das ambições pessoais. Por tão longo tempo!
— Contudo, nfo há um de nós agora — não importa quão mundanos
nossos corações tenham sido ou se tenham tornado —que não perceba, como
talvez nunca tenha percebido antes, que essa presença e esse poder estão
entre nós, homens. Mas não são humanos. Constituem a única força incontro-
lável e incontrolada pelo poder dos homens, por nossos pecados e faltas e
pelas tramas do Maligno.
— Somos os detentores temporários do poder da Igreja Romana. San­
graremos e morreremos, cada um de uma forma particular. Mas o âmago do
poder romano continua seguro, numa garantia de permanência. E ele dará
largas a seus efeitos — tèrríveis e belos, alternadamente - sem esforço, no
meio dos homens. E nem o mal, nem a santidade dos Papas e Cardeais poderá
violar ou tomar melhor esse poder, assim como os estragos do tempo não
poderão despedaçá-lo.
— O que podemos fazer, o que devemos fazer, o que estamos prestes
a fazer, agora, é uma coisa apavorante e terrível, meus Irmãos. Porque é terrí­
vel e apavorante cair nas mãos do Deus vivo. E nelas é precisamente que
caímos. Porque, neste momento precioso e carregado de destino, permane­
ceremos fora do tempo, independentes do espaço, seja como for. E, tal como
em Hermon, mais uma vez ouviremos Jesus dizendo, por nosso intermédio:
“Tu és Pedro.” Podemos blasfemar —e sabeis como! Ou podemos nos curvar
diante de sua vontade —e sabeis como! Todos nós sabemos como!
— Ao preencher esta cédula, cada um de nós está tocando a intimidade
do grande e misterioso Senhor perante o qual cada um de nós responderá
pessoalmente pelo que faz aqui, hoje. E poderá ser longa, para qualquer
um de nós, a espera dessa prestação de contas? —Deixa que o olhar passeie
sobre os rostos. —Uns poucos anos? Um ano? O Senhor o sabe. Louvado seja
o Senhor!
Baixa os olhos para suas anotações, depois as dobra e coloca-as dentro da
pasta. Durante todo esse tempo, não há movimento ou som entre os Eleitores.
Depois, calmamente, levanta ele mão direita, fazendo um gesto para a frente
com o movimento dos dedos estendidos —o sinal para começar.
Cai o silêncio sobre o Conclave. Um por um, cada Cardeal inclina-se sobre
sua escrivaninha, apanha uma cédula e abre-a, para escrever o nome do futuro
Papa.

379
PAULO CORDEIRO
Imprimiu
Todos os Cardeais se defrontam com •
corrupção acumulada em mais de um
lênio - a Isreja como negociante, como
um conglomerado multinacional envoM"
do na posse e na administração de pro­
priedades e, como agente do poder, ne­
gociando com países, continentes, e com
a liberdade dos fiéis.
No âmago do livro, Malachi Martin cria
o que, para muitos leitores, será uma ex­
periência sem precedentes e inesquecí­
vel: o cenário do Conclave 82.0 leitor fi­
cará sabendo mais sobre o que se passa
numa eleição papal do que muitos dos
Cardeais-Eleitores, inclusive a maneira pe­
la qual são mantidas com o mundo exte­
rior comunicações secretas e ilegais.
Quando Lutero pregou sua mensagem
na porta, o resultado foi uma revolução
irreversível. Com este livro, o Dr. Malachi
Martin — antigo jesuíta cuja laicidade foi
concedida pelo Papa Paulo VI — tam­
bém, num gesto ousado e polêmico, fi­
xou a sua própria mensagem na porta da
Catedral de São Pedro.
E ninguém ficará indiferente ante o que
ele diz em seu livro.
Malachi Martin, antigo jesuíta, professor
do Instituto Bíblico Pontifício de Roma,
estudou teologia em Louvain. Lá recebeu
o doutorado em Línguas Semitas, Ar­
queologia e História do Oriente. Estudou
em Oxford e na Universidade Hebraica,
concentrando-se no conhecimento de
Jesus tal como é transmitido pelas fontes
judaicas e islâmicas. Serviu em Roma, de
1958 a 1964, onde trabalhou em estreita
colaboração com o Cardeal Augustine
Bea e com o Papa João XXIII.
À sua vasta e profunda formação cultu­
ral, soma-se o talento literário que, em
Malachi Martin, ultrapassa a rotina. O pú­
blico brasileiro já o conhece através de
outro livro igualmente polêmico e sedu­
tor: Reféns d o Diabo — o mais impres­
sionante relato de possessão e exorcis­
mo e seu significado em nosso tempo.
É inevitável que muitos leitores fiquem surpresos, tal­
vez chocados, ante as revelações contidas na história
deste livro. Pelo seu conteúdo relisioso e pela ousadia da
narrativa, o singular relato de Malachi Martin vai mais lon­
ge do que todos os demais romances já escritos sobre os bas­
tidores e as personalidades da Igreja Católica.
Salvo os nomes dos personagens fictícios, to ­
dos os demais aspectos da trama — cujo clímax é a
eleição papal — são baseados em informações
e nos testemunhos recolhidos in loco pelo Autor.
Por ter trazido a verdade ao público, Malachi Martin
viu O Conclave ser definido como um ato de traição — é
o preço que pagou por ter posto a liberdade intelectual
acima dos interesses do poder religioso.
À margem da polêmica religiosa, é um livro que, em
tudo e por tudo, ultrapassa a rotina literária.

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