Você está na página 1de 3

PO!

EMA – Quando a “outra voz” não é ouvida

Quando um espetáculo resulta no seu contrário, isto é, quando ele


contradiz sua proposição política, ética e estética, pode-se assegurar que faltou
pesquisa, laboratório, experimentação, investigação e, também, uma certa
ausência de responsabilidade dos encenadores. Outra hipótese possível nesses
casos é a de que o projeto de encenação se impõe maior que as possibilidades do
grupo. Uma terceira via pode sugerir que o coletivo não tem clareza de seus
propósitos, mas esse caso não se aplica aqui. Em ambos os casos iniciais não há
soluções fáceis. O negócio é enfrentar o problema, antes que ele possa ruir as
estruturas pensadas e projetadas.
Se construir um espetáculo a partir de poemas se mostra um desafio,
imaginemos a complexidade de um espetáculo que propõe a criar poemas com
uma plateia em fase de alfabetização e, a partir daí, erguer a sua partitura
dramatúrgica e de atuação. PÔ!EMA, apresentado no teatro do SESC durante o
V Festival Nacional de Teatro Toni Cunha, tem essa pretensão. Ocorre que a
poesia é uma arte que não se faz com ideias, conforme sugestão do poeta francês
Mallarmé. Poesia, para ele, se faz com palavras. Entrar no reino silente das
palavras e de lá erguer ressonâncias, espinhos, solaridades é uma das tarefas do
poeta.
Para Octavio Paz, em seu livro O Arco e a Lira, a poesia parece ser um
mundo abarcador de tudo, um mundo salvador capaz de dar conta dos
paradoxos, dos contrários, das efemérides e perenidades da vida, um mundo
ilusoriamente completo, pois para cada definição de Paz reverberam infinitas
definições não citadas, escondidas na impossibilidade de trazê-las à luz.
Portanto, se o poético é aquilo que tem qualidade, atmosfera, encantos da
poesia, ele também se instala numa infinitude de lugares. Qualquer tentativa de
encaixotá-lo numa definição é resumir a sua amplitude. Mas é sempre preciso
fazer um corte, escolher um caminho, perpetrar uma violência para estabelecer
um fio condutor do que seja uma definição do poético.
O poético pode ser conceituado também como uma inquietação, uma
fricção que provoca o sujeito a ponto de retirá-lo do eixo, da normalidade, algo
que suspenda a sua estagnação, que o turbilhone e lhe diga: isso é estar vivo.
Esta fricção, pode vir do belo artístico, assumindo aqui a concepção de Hegel em
que o belo artístico é superior ao belo natural, pois trata-se de um produto do
espírito humano, superior à natureza.
Assim, um vulcão, por exemplo, é um espetáculo de beleza incomparável,
mas não é fruto do espírito, ou da criatividade humana, é um acontecimento que
segue regras próprias da natureza. Já pintar, fotografar, poetizar, filmar esse
vulcão, e principalmente como ele afeta a atividade humana, traz o belo natural
para dentro do corpo, o transforma em arte. O artista estabelece um olhar, um
corte, um ângulo e, após a produção, repassa esse olhar ao espectador, leitor,
consumidor da obra, que também o recorta, o angula, o expande em seu próprio
corpo e se agiganta, ou se apequena diante do poético e de como ele lhe invade
fisicamente, espiritualmente.
Por outro lado, o poético pode vir também da outra face do belo: o feio, o
grotesco, a violência que pulsa a animalidade nem sempre tão perdida do
homem. Nem sempre o sublime existe na acepção ligada ao encantamento, à
leveza (vide Genet, Artaud, Koltès, Plínio Marcos). Ainda mais no mundo atual,
onde muitos dos conceitos clássicos de beleza se perderam há muitas décadas,
onde não há mais sentido, pois o sentido do mundo passou a ser o seu contínuo
não sentido. Um mundo em que os corpos são chagas abertas, em que há uma
uniformização de “corpos de miséria, corpos famintos, corpos batidos, corpos
prostituídos, corpos mutilados, corpos infectados, corpos inchados, corpos
demasiado alimentados, demasiado body-builded, demasiado excitantes,
demasiado orgásticos”, conforme sentencia o filósofo Jean-Luc Nancy. Essas são
algumas das questões que aparecem quando adentramos no mundo da poesia,
do poema, do poético.
PÔ!EMA é estruturado numa dinâmica em que a atriz Sandra Coelho
conduz o público de uma escrivaninha onde escreve seus poemas que são
comidos por uma Ema, a atriz provoca o público infantil a ajudá-la a escrever
para sustentar uma Ema e sua prole. O trabalho sugere que a personagem de
Sandra Coelho seja uma escritora em crise no seu processo de criação, já que
seus poemas são devorados pela Ema, que pode nesse caso simbolizar o
momento de esvaziamento criativo pelo qual todo artista um dia passará. Mas a
Ema poderia ganhar, também, outros contornos e funções que dinamizasse o
diálogo que a atriz propõe com os pequenos.
A questão a se colocar é que a noção de poesia apresentada por Sandra
Coelho consiste numa linguagem que foge ao universo poético, que estrangula a
possibilidade de poesia, porque se apresenta numa linguagem referencial, numa
linguagem denotativa que se empobrece mais e mais porque não há nenhum
chamamento do público para o universo lúdico, para brincar efetivamente com
as palavras, para encontrar outros modos de dizer o mundo. O que impera em
“PÔ!EMA” é a noção clichê de poesia bonitinha, de palavras que combinam pela
rima atrelada uma função da linguagem explicativa. O trabalho se propõe
aberto, mas se apresenta fechado, encaixotado, não permitindo ao público
infantil mais que uma relação passiva diante do acontecimento à sua frente.
Os corpos teatrais são muitos e suas investigações e potencialidades de
linguagens também, mas é preciso mergulhar no reino da teatralidade antes de
fazer o mergulho no espectador. É preciso investigar, experimentar, buscar uma
voz - a “outra voz”, para usar uma expressão de Octávio Paz - e um norte, ainda
que não totalmente explorado e delimitado, porque um artista de palco não
pode negligenciar seu labor, sua luta com as palavras e com os corpos antes de
provocar o encontro com seu público.

FICHA TÉCNICA

Criação original: Sandra Coelho e Leandro Maman


Atuação: Sandra Coelho
Design gráfico e de projeção: Leandro Maman
Trilha sonora: “AS Meias de Ema” por Cirandela Teatro, letra de Eloí Bocheco.

Você também pode gostar