Você está na página 1de 87

"

A COLEÇÃO ENSAIOS TRANSVERSAIS trata


de temas ~ue articulam reflexões teóricas e aÇões
cotidiana~, em busca do que se poderia caracterizar
co.mo uma Scientia Activa. Os textôs representam
vozes que procuram um debate aberto, <iJue tran:s-
cenda a mer~ reiteração çl'eecos e cop.triJbuaefetiva-
mente para à llílegociaçãoe a, párti}ha de signifi-
cações. Tal fusão de horizontes é condiç,ão de pos-
siMlidade para um acordo no discarso, fundamentclJI
..)~
,para a construção da c'idadani~.
.
© by Edita Flusser Vilém Flusser
Todos os direitos desta edição reservados
Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda.
Rua Maestro Callia, 123 Vila Mariana 04012-100
São Paulo, SP - Telefax: (11) 5082-4190 Sistema Alexandria
e-mail: escrituras@escrituras.com.br A. L. : 1528677
site: www.escrirura:s.com.br Tombo: 31458
Coordenação editorial
11111I111111111111111I1111111111111111111111I
Nilson José Machado
Capa
Vera Andrade

Editoração eletrônica
Ricardo Siqueira
Ilustração da capa " ~\" TO~SAIS
Mikhail Aleksandrovitch Vrubel ':t~
"La Perla, 1904"
Galeria Tretiakov, Moscou
Fotolitos
Binhos

Impressão
Banira Gráfica
Da Religiosidade
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) """'-;
A literatura e o senso de realidade
(Câmara Brasileira do Livro, Sp' Brasil)
Flusser, Vilém, 1920-1991.

!
Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade/Vilém Flusser. -
São Paulo: Escrituras Editora, 2002. - (Coleção ensaios transversais) O{:l~Af'(b
ISBN 85-7531-060-7
«ti! 't;(Jrn
:::;: :::l
~ (j
otJ
-:Y
1. Ensaios brasileros r. Título. 11.Título: A literatura e o senso de reali- ~OIl9\0
dade. m. Série.
.~
1. ;)

02-5687 CDD- 869.94


~if)AAMú
Índices para catálogo sistemático:
1. Ensaios: Literatura brasileira 869.94
!? li:!,0",,':
F'-'

~
Impresso no Brasil escrituras
Printed in Brazil São Paulo, 2002
;:: '"
;:,
...s::,
'- '->
'" ~ '->
t:::::
;::
12-- 1:l:
'"
<:
(')
•...•
;::"
'" '" ~.
(')
p:;' ~ o €,~1},"
Õ'
oo
~ ;3~
Sumário

Apresentação .IX
Introdução 13
(1) Da religiosidade 15
(2) Por que e para quê? 23
(3) Coincidência incrível... 31
(4) Pensamento e reflexão 37
(5) Da dúvida 47
(6) Praga, a cidade de Kafka 63
(7) Esperando por Kafl<:a 69
(8) Do funcionário 83
(9) Em louvor do espanto
(10) O tema exclusivo 97
(11) Vicente Perreira da Silva 107
(12) O projeto 113
(13) Literatura brasileira de vanguarda? 133
(14) Resenha 139
(15) Concreto-abstrato 147
(16) O "Iapà' de Guimarães Rosa 155
(17) Do poder da língua portuguesa 161
Apresentação

A trajetória do filósofo Vilém Flusser é um exemplo de


engajamento intelectual que se tornou raro nos dias de
hoje. Da cidade de Praga, onde nasceu em 1920, Flusser e
sua mulher Edith emigram para o Brasil, depois de uma
breve permanência em Londres, fugindo da máquina de
extermínio nazista que avançava sobre a Europa no início
dos anos 40. Em São Paulo ele inicia sua carreira como filó-
sofo ao publicar seus primeiros livros e artigos nos anos 60
e atuando como professor de uma geração de jovens entusias-
mados pelo seu estilo de pensar, falar e escrever sobre temas
que, segundo ele, estavam remodelando toda a história do
ocidente.
Em suas palestras, que o tornaram conhecido como
um homem polêmico e intelectualmente sedutor, eram
especialmente os jovens que se sentiam atraídos pela sua
maneira elástica de pensar, cheia de sutilezas e nuances
cristalinos. Como orador influente, Flusser transcendia a
condição temporal da fala, despertando para o vislumbre de
certas dimensões atemporais do pensamento. Ele sabia que
o arrebatamento era a condição essencial para a percepção
do fluxo das coisas, e talvez isso possa explicar a influência
que exerceu sobre muitos artistas, para quem ele parecia
falar desde cedo. A sua não ortodoxia-acadêmica, aliada a
uma vasta cultura histórica, despertavam tanto o prazer de

IX
pensar, quanto os várlOs ataques que sua forma de "ver "o lugar no qual se articula o senso de realidade. E senso de
filosofia nos jornais" recebeu. Seu hábito de encerrar realidade é, sob certos aspectos, sinônimo de religiosidade."
ensaios e até mesmo livros sem notas de rodapé parece ter Para os interessados em sua obra, a reedição desse livro vem
sempre afrontado aquela ordem magistral de manipulação nos oferecer um fecundo campo de estudos da filosofia que
do saber, incomodada com as "performances" filosóficas e se articulava no autor por volta dos anos 60. Além de nos
com a objetividade comunicativa de um pensador lInico apresentar uma via de acesso a seu pensamento, SOlnos
entre nós. ainda apresentados à filosofia de Vicente Ferreira da Silva,
No Brasil, Flusser irá exercer seu engajamel1to por figura de grande importância na formação intelectual de
meio de publicações, cursos, palestras e projetos culturais Vilém Flusser em São Paulo. Em vários dos ensaios aqui
que, segundo sua forma de entender, poderiam servir dc reunidos encontraremos as primeiras formulações que
modelos para o resto mundo. Ao retornar para a Europa no serão, décadas mais tarde, retomadas na Filosofia da Caixa
início dos anos 70, ele dará início à fase mais robusta dc sua Preta como no 1ns Universum der Technischen Bilder ("No
obra, cujo marco fundamental será a publicação do livro universo das Imagens Técnicas"), livro de 1985 e ainda
Für einen Philosophie der Fotografie ("Por uma Filosofia da inédito em português, no qual ele aprofunda os argumen-
Fotografia"), editado primeiramente na Alemanha cm tos lançados na Filosofia.
1983 e dois anos depois no Brasil, com o título A Filosofia Além dos ensaios sobre Kafka, a poesia concreta
da Caixa Preta. Essa obra será responsável pela imagcm paulista e Guimarães Rosa, Flusser aborda também um
associada ao filósofo de um "profeta da era tecnológica", tema que parece pontuar toda a sua obra, que é o tema da
um "premonitor" do avanço de uma sociedade cujos va- morte. Ao tratar desse tema "exclusivo da vida", o filósofo
lores estariam sendo transferidos da produção de objctos nos ensina que, "Toda frase de obra de pensador vivo apon-
para a produção de informações. ta, (...) em sua busca de perfeição, o intelecto que a gerou, e
Em suas freqüentes viagens entre a Europa e o Brasil, toda frase de obra de pensador morto aponta o intelecto
Flusser construiu uma rede transoceânica de debates em que a recebe. E a obra, como um todo, esta ligada ao in-
torno de três pontos axiais básicos: a invenção do alfabeto, telecto que a originou como por cordão umbilical, enquan-
a invenção da tipografia e a invenção da fotografia. Para o to vivo o seu autor. A morte corta esse cordão e a obra
filósofo, a fotografia, o primeiro meio de produção emite pseudópodes em direção aos intelectos abertos para
automática da imagem, irá marcar o advento de um novo recebê-Ia. O último significado da obra é deslocado, pela
período da história humana, pois "a história da morte, do intelecto do autor para os intelectos dos seus
humanidade é a história do homem com seu instrumento interlocutores. (...) De receptor e de ponto de ressonância
e, por isso, é possível falar de uma mentalidade da pedra transforma-se o interlocutor em guardião e realizador da
lascada, uma mentalidade do bronze e do ferro, assim como obra. A responsabilidade (...) passa do autor para o inter-
o de uma mentalidade digital". locutor, e o destino da obra depende doravante dele".
Mas o tema de "Da religiosidade", de Vilém Flusser, Quanto a nós, "os provisoriamente pouco numerosos
não é o da emergência de uma nova capacidade para fazer e interlocutores da obra", podemos dizer também que "temos
decifrar imagens (imagens técnicas), e sim a literatura. Ela é o privilégio e a responsabilidade de acolhê-Ia em nosso ínti-
x XI
mo para que continue a realizar-se. Não seremos dignos
desse privilégio, nem estaremos à altura dessa responsabili-
dade, se a ternura e plasticidade da obra for pretexto para
uma inibição de nossa parte em atacá-Ia. Embora tenra e
plástica, dispõe essa obra de força suficiente para resistir a
nossos golpes. É debaixo dos golpes que ela se formar<Í e
adquirirá aqueles contornos e aquela dimensão, nos quais
entrará para a conversação brasileira, e quiçá do Ocidente". Introdução
Será apenas pelo estudo e pelo debate dos textos flusse-
rianos que sua obra continuará sendo fecundada, revelando
mais e mais a impressão que temos de que ele era um filó-
sofo que criava como um artista. Os pequenos ensaios que perfazem o presente volume
foram publicados em diversas revistas. Os ensaios de
número 1, 2, 3, 6, 8, 9,11,14,15,16 e 17 saíram no Suple-
São Paulo, outubro de 2002. mento Literário de O Estado de S. Paulo. O número 4 saiu
Mario Ramiro
na Revista Brasileira de Filosofia, e o número 5 na Revista do
Instituto Tecnológico da Aerondutica, Depto. de Humanidades.
Artista pldstico Os números 7 e 10 saíram na revista Comentdrio. O número
e profissor da Escola de Comunicações e Artes da USP 12 no Didlogo e o 13 na Revista Brasilefza de Cultura, editada
em Madrid. A escolha dos ensaios obedeceu a um critério
vagamente temático, que é o seguinte: a literatura, seja ela
filosófica ou não, é o lugar no qual se articula o senso de rea-
lidade. E "senso de realidade" é, sob certos aspectos, sinôni-
mo de "religiosidade". Real é aquilo no qual acreditamos.
Durante a época pré-cristã o real era a natureza, e as religiões
pré-cristãs acreditam nas forças da natureza que divinizam.
Durante a Idade Média o real era o transcendente, que é o
Deus do cristianismo. Mas a partir do século XV o real se
problematiza. A natureza é posta em dúvida, e perde-se a fé
no transcendente. Com efeito, nossa situação é caracterizada
pela sensação do irreal e pela procura de um senso novo de
realidade. Portanto, pela procura de uma nova religiosidade.
Este o tema dos ensaios escolhidos.
O primeiro ensaio procura localizar o tema. O segun-
do e o terceiro procuram mostrar como o tema surgiu com

XII 13
o Renascimento. o quarto e o quinto representam um
esforço de formular um novo senso de realidade, tomando
como real a língua. Representam portanto a minha filoso-
fia. Os ensaios 6, 7 e 8 tratam da realidade como aparece
em Kafka. Os números 9 e 10 tentam articular a realidade
do existencialismo, e mais especialmente a camusiana. A
partir daí focalizo a cena da literatura brasileira. Os ensaios
11, 12, 13 e 14 se batem com e contra a filosofia de Vicen- Da religiosidade
te Ferreira da Silva, que é uma filosofia em busca de uma
realidade. O ensaio nO 15 trata da poesia concreta, que é
uma técnica de criar nova língua, portanto nova realidade.
Os últimos dois ensaios têm por tema a obra de Guimarães Há pessoas incapazes de repetir a mais simples melo-
Rosa, que alia a técnica realizadora do concretismo com dia. Outras se tornam lânguidas ao ouvir um tango argenti-
uma religiosidade transcendente. A presente coleção de no. Há os que transpõem com os últimos acordes da "Flau-
ensaios procura portanto mostrar como a tendência ociden- ta mágica" a porta celeste. Para outros o Cravo bem
tal em direção de uma nova religiosidade se manifesta pro- temperado representa o próprio intelecto humano transfor-
dutivamente na cultura brasileira. É neste sentido que pode mado em fenômeno audível. São exemplos de diversos
ser tomada como um esforço em prol da elaboração de uma tipos de musicalidade. Há, paralelamente, diversos tipos de
filosofia da literatura brasileira. criação musical, cuja gama se estende desde o empenho
Reunir estes ensaios sob a forma de um livro é tentar comercial dos compositores de Hollywood até o empenho
salvá-Ios do efêmero que é próprio de toda Revista. Espero religioso de um Palestrina. E há, finalmente, o exército de
que esta contribuição modesta seja útil à discussão geral do críticos que "explicam" a música, e de virtuosos que a "apli-
que é a civilização brasileira. cam". Os virtuosos são aplaudidos e venerados, os críticos
têm existências um tanto mais reclusas. Essa é, em termos
São Paulo, setembro de 1965. gerais, a cena da música, se desconsiderarmos fenômenos
Vilém Flusser marginais como empresários, editores musicais, fabricantes
e lojas de discos. A forma da cena é mutável, mas a música
como tal é, digamos, eterna. O propósito do presente artigo
é forçar um paralelo entre música e religião, e entre musica-
lidade e religiosidade. A comparação é sempre um método
de estudo fértil, não tanto pelos seus resultados, mas pela
distância que pode proporcionar ao espírito contemplativo.
O fenômeno que corresponde à crítica musical é, no
campo da religião, um certo tipo de filosofia. Mas devemos
confessar desde logo que a crítica musical é infinitamente

14 15
mais competente que a maioria da filosofia do tipo mencio- especialmente marcado para a religiosidade. Há pessoas
nado. Dou como exemplo o marxismo. Essa filosofia, religiosamente surdas, mas não há época nem sociedade
tomada como crítica de religião, considera os empresários, inteiramente isentas de religiosidade. Pessoas religiosamen-
os editores musicais, e os fabricantes e lojas de discos como te surdas vivem em mundos rasos e chatos, movimentam-se
os fenômenos centrais da cena da música (isto é, natural- entre coisas transparentes (porque em tese inteiramente
mente, transpondo de religião para música), e acredita que explicáveis), e dirigem-se para a morte que torna absurdos
a religião pode e deve ser explicada a partir dos empresários os mundos, as coisas e a própria vida. A capacidade religio-
e dos fabricantes. Como é possível tamanha excentricidade? sa torna profundo o mundo, opacas as coisas (porque
É que os filósofos marxistas dispõem de uma religiosidade nunca inteiramente explicáveis), e torna problemática a
que corresponde à musicalidade daquele que não sabe repe- morte. A capacidade religiosa torna portanto obscura a
tir a mais simples melodia. Algo como a crítica marxista da visão antes clara do mundo, como a contemplação da paisa-
religião é inconcebível no campo da música, já que a esco- gem torna obscura a visão clara do mapa. O pintor (aquele
lha da profissão de crítico musical pressupõe uma certa afi- que procura captar a visão da paisagem) é portanto um obs-
nidade entre o crítico e a música, perfeitamente dispensável curantista do ponto de vista do cartógrafo (aquele que
no campo da religião e da filosofia. Dou, como outro exem- reduz a paisagem à sua clareza plana e chata). E o homem
plo, o freudianismo. Essa psicologia filosofizante, tomada religioso é um obscurantista do ponto de vista daquele que
como crítica de religião, considera o crítico como figura não é incomodado pela dimensão sacra do mundo. Como a
central da cena, e crê que a crítica pode acabar com a músi- clareza é desejável, há pessoas que abafam dentro de si a voz
ca, libertando assim o ouvinte da necessidade de sujeitar-se da religiosidade e vivem como que com óculos escuros para
a ela. É que, provavelmente, o freudiano dispõe de uma ver mais claramente. Mas como a clareza é chata, há pessoas
religiosidade que corresponde à musicalidade daquele que que fingem um sentimento religioso para o qual não têm
soluça ouvindo tangos. Não é portanto, a meu ver, da críti- capacidade, e vivem enganando-se a si mesmos. Essas duas
ca da religião que devemos esperar um esclarecimento do inautenticidades opostas complicam o fenômeno da reli-
fenômeno religioso, pelo menos não no início do nosso giosidade.
esforço. Somos, creio, nesse esforço, remetidos a nossa Épocas e sociedades religiosamente férteis educam e
vivência interna, à religiosidade. É ela, embora tão variável fortalecem a capacidade individual para a religiosidade.
e insegura, a nossa única avenida de acesso ao fenômeno Épocas e sociedades religiosamente pobres, como a época
religioso. Todas as demais aproximações são secuncLírias e que está para encerrar-se e a sociedade tecnológica, repri-
auxiliares. A ela pretendo recorrer, portanto, no presente mem e abafam a capacidade individual para a religiosidade.
artigo. Uma conseqüência dessa repressão é a deformação da reli-
Chamarei de religiosidade nossa capacidade para cap- giosidade, que assume formas grotescas e monstruosas como
tar a dimensão sacra do mundo. Embora não seja ela uma o zen-budismo nos Estados Unidos ou o paganismo atroz da
capacidade que é comum a todos os homens, é, não obstan- Alemanha hitlerista. Outra conseqüência dessa repressão é o
te, uma capacidade tipicamente humana. Certas pessoas, desvio do ardor religioso da dimensão sacra para a profani-
certas épocas e certas sociedades dispõem de um talento dade chata do mundo e resulta em pseudo-religiosidades
16 17
como o endeusamento do dinheiro ou do Estado. Estas Ocidente. Em suma: o sacro é, para nós, exclusivamente
deformações e perversões da capacidade religiosa marcam a Deus. Sabemos intelectualmente de outros tipos de projeto,
cena da atualidade e dificultam, portanto, a contemplação de outros tipos de religiosidade, e de outros tipos de sacro.
do fenômeno da religiosidade. Mas este conhecimento intelectual é intraduzível para a
Feita abstração das formas inautênticas e das formas camada da vivência religiosa, e as tentativas nesta direção
perversas, resta-nos a capacidade genuína para captar a são fadadas ao malogro da inautenticidade. Somos, como
dimensão sacra do mundo. Essa capacidade revela o mundo seres religiosos, prisioneiros da revelação sinaica, por mais
e nossa vida dentro dele como realidade significativa, isto é, que nos rebelemos contra essas grades. É esse o projeto den-
como realidade que aponta para fora de si mesma. Esse sig- tro do qual fomos jogados e é essa, no fundo, nossa defini-
nificado que o mundo e nossa vida dentro dele têm é cha- ção de ocidentais dentro da qual existimos.
mado "o sacro". A profundidade do significado, a extensão Nosso tipo de religiosidade nos define como exis-
do sacro, dependem da nossa capacidade para a religiosida- tentes, e estabelece o mundo dentro do qual existimos. É
de. O significado da vida pode ser, por exemplo, simples- verdade que no curso da nossa história elementos da reli-
mente a preparação para uma outra vida, em tudo igual a giosidade grega, e em grau menor das religiosidades latinas,
esta, mas mais feliz, e eterna. germânicas e eslavas, infiltraram-se na nossa experiência
Este tipo de significado é conferido à vida por um tipo religiosa para enriquecê-Ia e aprofundá-Ia. Mas não altera-
de religiosidade comparável à musicalidade do apreciador ram sua estrutura básica, que pode ser caracterizada pelos
do tango. E o significado da vida pode ser a superação do conceitos de "fé" e "obras". A fé é a fidelidade ao significa-
Eu e sua diluição na imensidão do sacro. A intensidade da do transcendente do mundo e da vida dentro dele, fidelida-
nossa capacidade religiosa é portanto variada. Mas sua de essa mantida em desafio a toda evidência em contrário; é
estrutura, sua "Gestalt" é nos imposta. Os grandes gênios portanto absurda. As obras são resultado do nosso esforço
religiosos da nossa civilização a impuseram sobre as nossas em prol desse significado transcendente, esforço esse que
mentes. O sacro é, para nós ocidentais, prefigurado e proje- transforma o mundo profano em mundo sacro pelo sacrifí-
tado por esses gênios, como a música é para nós prefigurada cio; são portanto absurdas. Nossa religiosidade oscila entre
e projetada pelos grandes compositores. Mas aí a compara- o pólo absurdo da fé e o pólo absurdo das obras. De certa
ção entre música e religião se torna insuficiente. Os grandes forma é a história do Ocidente idêntica com a oscilação do
compositores estão no mesmo plano ontológico como nós, pêndulo da religiosidade entre os seus dois pólos. Agosti-
são gente como nós, embora certamente de proporções nho e S. Tomás, Calvino e Marx marcam-lhe o compasso.
muito maiores. Mas os grandes gênios religiosos, esses seres A absurdidade de nossa religiosidade é nossa resposta ao
míticos como Abrão e Jacó, Moisés e, de maneira ainda absurdo do mundo profano. Essa revolta escandalosa con-
mais acentuada, Jesus, são revelados, pela nossa capacidade tra a absurdidade pela absurdidade (para utilizar, embora
religiosa, como participando de outro plano de realidade. em contexto diferente, um pensamento kiekegardiano),
Em outras palavras: a nossa religiosidade é limitada à reali- marca a religiosidade do Ocidente.
zação de um único projeto: aquele que f()i inspirado, in iLlo Nossas religiões tradicionais são o ambiente dentro do
tempore, ao povo de Israel para realizar-se na civilização do qual nossa religiosidade funciona. Para voltar ao paralelo
18 19
com a música, são as religiões tradicionais as organizações dedicadas ao esforço de abrir campo novo à religiosidade.
que nos fornecem as orquestras e as salas de concerto, e os Com nosso intelecto ainda somos modernos, mas com
seus sacerdotes são nossos grandes virtuosos. Mas seria nossa religiosidade já participamos de uma época vindoura.
insincera a tentativa de negar que as religiões tradicionais O que eqüivale a dizer que somos seres de transição e em
estão em crise. Não satisfazem mais a nossa religiosidade. A busca do futuro. Se as religiões tradicionais são inaceitáveis
crise das religiões não é resultado dos ataques empreendidos para essa nova religiosidade, se as religiões exóticas são des-
pelos soit-disant "materialistas ateus", mas os materialistas vendadas como fugas, e se o desvio da religiosidade para a
ateus são resultado da crise das religiões do Ocidente. Os política, a economia, a tecnologia decepciona, ficamos com
esforços ecumênicos, que são tentativas de formar uma a fome religiosa insatisfeita. Invejamos os que a satisfazem
única religião ocidental para enfrentar a irreligiosidade, são, na forma tradicional ou nas formas substitutivas, mas
portanto, a meu ver, contraproducentes. A união das reli- simultaneamente sentimos desprezo por eles. Essa mistura
giões só pode ser conseguida pela diluição da religiosidade, de inveja e desprezo, de humildade e blasfêmia, caracteriza
e essa diluição apressará a decadência das religiões, já que a religiosidade insatisfeita. É essa religiosidade não compro-
deixará ainda mais insatisfeita a nossa religiosidade. O pre- metida e portanto faminta de compromisso que construirá,
sente momento pode ser portanto caracterizado pela tenta- a meu ver, o futuro.
tiva, consciente ou não, de darmos novo campo a nossa
religiosidade. Como indivíduos e como sociedade estamos
à procura de um veículo novo para substituir as religiões
tradicionais e abrir campo a nossa religiosidade latente.
As inautenticidades e perversões de nossa religiosida-
de, das quais falei mais acima, são sintomas da procura. Na
falta de um novo veículo autêntico, a religiosidade abre
canais frustrados como partidos políticos ou seitas extrava-
gantes. Mas em si é a procura de um sinal de renovação e de
saúde. A Idade Moderna era, no campo da religiosidade,
uma época decadente. Começou pelas guerras religiosas,
portanto por uma exacerbação religiosa que é sinal de deca-
dência interna. Culminou no Iluminismo, portanto numa
religiosidade pervertida, já que desviada do transcendente e
fixada sobre os dois conceitos para-religiosos "razão" e
"naturezà'. E acabou na profanação total e enfadonha da
tecnologia. A procura de um novo veículo para nossa reli-
giosidade, que marca a meu ver a atualidade, é uma supera-
ção da Idade Moderna. Com efeito, todas as nossas ativida-
des criadoras, inclusive as científicas e as artísticas, estão
20 21
Por que e para quê?

Considerem os leitores as perguntas seguintes: "Por


que pássaros constroem ninhos? Para que pássaros cons-
troem ninhos?" e "Por que tem Marte dois satélites? Para
que tem Marte dois satélites?" É óbvio que o primeiro
grupo de perguntas, aquele que tem pássaros e ninhos por
tema, é plenamente significativo, no sentido de deixar
entrever a possibilidade de respostas significativas. Por
exemplo: "Pássaros constroem ninhos porque o seu instinto
os condiciona para tanto" e "Pássaros constroem ninhos
para neles botarem os ovos". Essas respostas são problemáti-
cas e provocam toda uma série de novas perguntas, mas são
juízos significativos. Servem de base para uma conversação
sistemática, digamos para a conversação da biologia. Mas o
segundo grupo de perguntas, aquele que tem Marte e saté-
lites por tema, parece conter uma pergunta sem significado.
Tentemos formular respostas. Por exemplo: "Marte tem
dois satélites porque ao ser expelido do sol destacou-se em
três pedaços" e "Marte tem dois satélites para ser agradável
aos astrônomos que o observam".
A primeira resposta é significativa no sentido já men-
cionado, embora seja provavelmente resposta "falsa". O
propósito do presente artigo é discutir se é significativa a
segunda resposta. É um problema inquietante e tem a ver
com a própria estrutura daquilo que chamamos "realidade".

23
Espero poder transmitir aos leitores um pouco do fascínio dimensão, que não ocupa espaço. "O ponto" é a maneira
que sobre mim exerce no curso deste artigo. geométrica de articular o nada. O peso infinito é algo que
**** abrange todas as coisas. É uma maneira um tanto materia-
lista de dizer-se "tudo". O mundo dos astros teve início na
Não pretendo discutir o aspecto lingüística do proble- explosão de tudo que era nada. Essa explosão pôs em movi-
mento uma cadeia de causas e efeitos. Tratava-se de uma
ma. A lógica formal e a análise de símbolos demonstrará
que os termos "por que" e "para que" envolvem dois tipos transformação progressiva e violenta de "matéria" em "ener-
diferentes de relações entre classes. Nem pretendo discutir già'. O peso infinito tornou-se, em virtude dessa transfor-
diretamente o aspecto do problema que a teoria do conhe- mação, peso finito. A dimensão zero tornou-se, em virtude
cimento ilumina. Essa teoria talvez afirmará que o termo dessa explosão, dimensão finita. O mundo dos astros tem,
"por que" procura articular o aspecto teleológico das coisas. no seu estágio atual e fugaz, peso e dimensão finitos e deter-
O que procurarei fazer é evocar o clima existencial no qual mináveis. É um "algo" esse mundo. Esse algo chama-se
esses dois tipos de pergunta se formulam. "espaço-tempo". Consiste de grande número de entalhos,
Para tanto esboçarei, muito sumariamente, duas cos- de rugas, de vales, que se chamam "campos". O fundo des-
movisões, duas descrições do mundo que nos cerca. E para ses vales é formado pela "matéria", e as paredes dos vales são
restringir o escopo dessa tarefa titânica "limitarei" essas des- formadas por "energià'. A matéria é energia condensada, a
crições ao cosmos da astronomia. energia é matéria diluída. O processo explosivo dilui maté-
I - O mundo dos astros, aquilo portanto que se nos ria, diminui seu peso e aumenta a dimensão do campo. Esse
apresenta, nas noites claras, como céu estrelado para inspi- processo é irreversÍvel (ou pelo menos parece sê-Io). Suas
rar nossos poetas e amantes, e nos telescópios para inspirar diversas fases são, em tese, reversíveis, mas esgota esse pro-
os cosmonautas, não tem, no fundo, nem poetas, nem cesso as virtualidades contidas na explosão inicial, pelo
amantes, nem cosmonautas por finalidade. É, pelo contrá- princípio da "entropia".
rio, um conjunto de fenômenos que resultaram de um pro- As rugas formam bolsas dentro de rugas maiores, que
cesso causal e que tendem a transformar-se nesse processo. por sua vez formam bolsas em rugas ainda maiores. As
Esse aspecto do mundo dos astros é relativamente recente. rugas-mães, os campos maiores, são chamados "sistemas
Antigamente era considerado esse mundo como o exemplo galácticos" e são os pedaços que compõem o mundo dos
por excelência da imutabilidade e da eternidade. Mudanças astros. Esses pedaços (se é que podemos recorrer a um
e transformações só as havia no mundo sublunar, mas nas termo tão arcaicamente materialista) fogem em corrida
esferas "acima da luà' reinava a harmonia eterna, uma ilus- desenfreada a partir de um centro. Distanciam-se, a cada
tração do "puro Ser", um símbolo da Divindade. Hoje ten- segundo que passa, desse centro e uns dos outros. "O
demos mais para uma interpretação diabólica do Inundo mundo se expande". Fogem em direção ao nada, e o que os
dos astros. Houve, "no início", uma explosão, comparável, separa, uns dos outros, é nada. O mundo dos astros consis-
em sua estrutura, com as nossas explosões atômicas, mas te de pedaços que flutuam no nada, tendem para o nada, e
cujas dimensões são incomparáveis. O que explodiu? Um perdem peso e ganham dimensão nesse processo. O estágio
ponto infinitamente pesado. O ponto é algo que não tem final será um mundo de dimensões infinitamente grandes,

24 25
e com o peso zero. "Dimensões infinitamente grandes" é a processo irreversível que tentei descrever, tão ingenuamen-
maneira geométrica de articular "tudo". "Peso zero" é uma te, acima. São bolas incandescentes em diversos estágios de
maneira de dizer-se "nada". O mundo dos astros tende para desintegração, estão perdendo peso e emitindo energia.
um estágio final no qual tudo será nada. Trata-se de um Algumas dentre essas bolas estão esgotadas. Mas poderão
processo que se inicia com o tudo que é nada, e que se com- explodir novamente, serão estrelas "novas". As dimensões
pleta com o nada que é tudo. O "algo" atual do mundo dos dessas bolas variam, mas são consideráveis. Um exemplo
astros é um estágio efêmero desse processo. modesto delas é o sol que nos aquece. Mas será tão modes-
É óbvio que num mundo assim a pergunta "para que to assim esse exemplo?
tudo isto" não cabe. O mundo dos astros é pura absurdida- O sol não está só e perdido no nada. Está acompanha-
de. A contemplação do céu estrelado, longe de inspirar a do de "planetas", de rugas que formam bolsas dentro da sua
visão do "puro Ser", da Divindade, ilustra a ilusão absurda e ruga. Talvez existam outros sistemas planetários dentro do
diabólica do mundo que nos cerca. Em momentos de reco- nosso sistema galáctico, mas não temos certeza disto. Essa
lhimento podemos admirar-lhe o rigor e a beleza da sua descoberta, se feita, seria existencialmente desinteressante.
estrutura, articulável em poucas proposições matemáticas As distâncias entre os astros são de dimensões existencial-
simples. Podemos admirar o mundo dos astros como obra mente proibitivas. Os planetas que acompanham o nosso
de arte, mas como obra de arte inteiramente inútil. É o sol são de dois tipos, internos e externos. Os externos estão
maior exemplo imaginável da "arte pela arte". As perguntas afastados do sol e giram em seu redor envoltos em frio ini-
que esse mundo impõe começam, todas elas, pelo termo maginavelmente rigoroso. Praticamente não pode haver
"como?" inquisitivo, ou pelo termo "por quê?" inquisitivo reação química nesses corpos. Os planetas internos são
ou indignado. O clima desta cosmovisão foi expresso Mercúrio, Vênus, Terra e Marte. Mercúrio é um corpo fer-
magistralmente pela seguinte poesia de Omar Khayyam: vente e fervoroso. Se há reações químicas nele, devem ser
And that inverted bowl they call the sky, simples e rápidas e extremamente voláteis. Vênus e Marte
whereunder we ali crawlingliveand die, são Terras frustradas. Não conseguem estabelecer o equilí-
lift not thine eyesto it, for it brio precioso e incrivelmente complexo no qual se encontra
movesimpotently just as thou and r. a Terra. Consideremos portanto essa nossa Mãe amorosa
que é a Terra.
(E aquela tigela invertida que chamam de "céu", debai- É ela um corpo a um tempo conservador e altamente
xo da qual nós todos nos arrastamos para viver e morrer, mutável. Tudo nela é moderado. As temperaturas variam
não eleves os teus olhos até ela, pois ela se move tão impo- constantemente, mas dentro de limites muito modestos. Há
tente quanto tu e eu.) uma pressão quase constante, mas maleável, que sua atmosfe-
II - Limitemos um pouco a visão colossal que nos tem ra gasosa exerce sobre a solidez fluida da sua crosta. Suas
preocupado até agora, e contemplemos o sistema galáctico substâncias se encontram em todos os estágios de agregado.
do qual a nossa Terra modesta é parte. É constituído de São sólidas, viscosas, líquidas, emulsões e gases. A mais ínfi-
astros, isto é, de campos gravitacionais que têm bolas mate- ma variação de temperatura ou pressão (ínfima se comparada
riais por centro. Essas bolas ilustram as fases reversíveis do com os externos que regem o cosmos) transforma sólidos em
26 27
gases ou comprime gases. E, como estágio intermediário, com o termo "para que" são perguntas significativas. O
incrivelmente improvável e incrivelmente fugaz, correm, clima existencial desta cosmovisão foi expresso no verso
fluem e derramam-se os líquidos em busca da vida. seguinte, que Beethoven transformou em canto:
Nossos ventos assopram nossas nuvens, nossos rios "Die Himmel ruehmen des EwigenEhre,
modelam nossas montanhas, nossos oceanos, inspirados ihr SehaIlpflanzt Seinen Namen fort."
por nossa Lua, retocam constantemente nossos continen-
tes. Fazem-no para produzir praias ensolaradas, para criar o (Os céus louvam a glória do Eterno, o seu ressoar pro-
ambiente daquele milagre indescritível que é o surgir da paga o Seu nome.)
primeira gota daquele polímero viscoso chamado "proto- lU - Não me posso resolver nem por uma, nem pela
plasma", da primeira gota da vida. Como se deu essa cons- outra das cosmovisões esboçadas. Uma espécie de honesti-
piração gigantesca? Como se constelaram galáxias e astros, dade vivencial me proíbe a primeira. A vivência da absurdi-
como se conjugaram influências físicas, térmicas, eletro- dade da vida e da mente me proíbe a segunda. Mas de uma
magnéticas, óticas, químicas, e incontáveis outras, para coisa estou convencido: Se é significativo perguntar "por
produzir esse milagre? Como se contorceu esse cosmos quê?", é igualmente significativo o "para quê?", embora tal-
gigantesco todo, para dar à luz essa ínfima gotinha? E qual vez ambas essas perguntas sejam absurdas. A prepotência
é a estrutura dessa gotinha? Ela contém, em sua organiza- dos que pretendem limitar a conversação ao "por quê?" me
ção, o projeto de toda aquela evolução que passa pelos pro- parece patente. A decisão por uma das duas perguntas, ou
tozoários, resulta na incrível riqueza de formas das espécies por ambas, ou por nenhuma das duas, é, a meu ver, um
vegetais e animais, produz o homem com sua capacidade de aspecto da decisão fundamental, da decisão existencial que
abranger, de maneira misteriosa, o cosmos inteiro pela sua devemos tomar para realizar o projeto que nos lançou para
cá e rumo à morte.
força articuladora, pela língua, e passa, quiçá, além do
homem para criar seres ainda mais divinos e diahólicos que
ele. E tudo isto estava contido, em projeto, naquda primei-
ra gotinha? Não podemos crer, por instante scqucr, que
tudo é resultado de um "acaso". Seria uma "explicação",
cuja inautencidade existencial grita para os céus. Mas, afi-
nal, "acaso" não é sinônimo de "milagre"? Não, o ll1undo
dos astros tem uma finalidade, e sentimo-Ia dentro da pró-
pria medula dos nossos ossos. Todo esse processo aparente-
mente absurdo tem por finalidade produzir o Sol, e a 'Icrra,
e a vida, e o homem, e aquele espírito humano que indaga
por sua finalidade.
O mundo dos astros tem um propósito, e esse propósi-
to somos nós, são as nossas mentes. É com esta il1l"en<,~ão
que
o mundo dos astros foi criado, e perguntas que começam
28 29
Coincidência incrível

Quando abro o rádio, jorram anúncios; quando abro a


torneira, jorra água. Se amanhã a torneira jorrasse anún-
cios, a minha reação seria surpresa. Vivo em expectativa
constante: espero constantemente que torneiras jorrem
água, pura água, toda a água, e nada mais que água. Essa
minha expectativa não é confirmada pela experiência que
meus sentidos fornecem. Torneiras jorram água suja, ou
pouca água, ou nada. Mas a evidência dos meus sentidos
não destrói a minha fé nas torneiras. "Explicam" o compor-
tamento das torneiras por fatores externos, como a hipótese
da falta de chuva, ou a hipótese do encanador, ou a hipóte-
se da Municipalidade. Essas hipóteses "provam" que, elimi-
nados os fatores externos, torneiras jorram água. A evidên-
cia dos meus sentidos, embora prima facie contrária à
minha fé nas torneiras, fortalece, em virtude das hipóteses,
a minha expectativa de água. Pois é este exatamente o cará-
ter da fé: é uma esperança que transforma evidência contrá-
na em prova.
Mas o caso da torneira jorradora de anúncios seria
diferente. Seria, não o inesperado, mas o inesperável. Cau-
saria surpresa. Poderei superar essa surpresa com hipóteses
ousadas. Pela hipótese da alucinação, ou pela hipótese do
rádio portátil escondido na torneira, por exemplo. Mas, por
um instante pelo menos, a minha fé ficará abalada.

31
---~

Casos como o da torneira jorradora de anúncios ocor- da "realidade". Todo fenômeno novo se enquadra nesse
rem. Antigamente eram chamados milagres. Hipóteses método por simples modificação da teoria. Esta é, a meu ver,
a forma como funciona a fé na atualidade.
ousadas reintegravam os milagres no tecido da fé, a qual
continuava fortalecida por eles. "Das Wunder ist des Glau- É a fé na coincidência do pensamento de um determi-
bens schoenstes Kind" (o milagre é o filho mais belo da fé) nado tipo com o mundo que nos cerca. O primeiro artigo
diz Goethe. Tão forte era a fé, que os antigos esperavam dessa fé reza: "O pensamento lógico coincide com a reali-
pelo inesperável, pelo milagre. Atualmente, embora conti- dade". O segundo artigo reza: ''A expressão mais perfeita
nuem ocorrendo casos surpreendentes, não ocorrem mila- do pensamento lógico são os enunciados da matemática
gres. Evoluímos um mecanismo que sufoca automatica- pura". O credo conclui: "A realidade tem a estrutura da
mente surpresas. É o mecanismo do "faça-de-conta". matemática pura". Isto não é, como parece, racionalismo
Quando algo inesperável ocorre, fazemos de conta que era puro. A tecnologia prova, empiricamente, que nossa fé é a
esperado. É graças a este mecanismo que nada nos sur- fé verdadeira. Nossas máquinas e nossos instrumentos são
preende. Tudo é corriqueiro. Torneiras jorradoras de anún- fé aplicada, são "obras" no significado teológico do termo.
cios: nada mais corriqueiro, nada mais banal que isto. E nossas máquinas e instrumentos funcionam. "Provam"
Que ocorram. O choque de surpresa que causarão não nossa fé empiricamente. Funcionam como funciona, por
passará de vestígio de uma ingenuidade superada. A tese do exemplo, a torneira. Jorram água, e isto prova, também,
presente artigo será que este nosso mecanismo é sintoma de que nossa fé é verdadeira. Ou jorram anúncios, e isto
fé profunda. Que somos uma época que espera por mila-
gres. E que nossa fé na torneira é parte da nossa fé funda-
I prova, de maneira concludente, que nossa fé é verdadeira.
Nossa fé tem um aspecto racional, e um aspecto empÍrico:
é uma fé completa.
mental na tecnologia. De uma esperança portanto que é
fortalecida por evidências contrárias, e que cresce com tor- A coincidência entre pensamento lógico e "realidade" é
incrível. Não pode ser acreditada. Nossa vivência do mundo a
neiras jorradoras de anúncios, com milagres portanto.
Se digo: ''Amanhã nascerá, em vez do sol, um queijo de
Minas para iluminar a Terrà', terei dito uma absurdidade.
I desmente a todo passo. No entanto, nossa fé aceita essa coin-
cidência como fato indubitável. É uma fé autêntica, porque
Mas se digo: "Ontem nasceu um queijo de Minas e iluminou crê quia absurdum. Mas ao dizer que a coincidência é incrível,
a Terra", e se milhares confirmam esta minha observação, coloquei o presente argumento em terreno estranho à fé da
terei articulado uma banalidade. É óbvio que o queijo de atualidade. A "nossà' fé não é a fé do presente argumento.
Minas nasceu. As teorias astronômicas esperavam pelo nascer Como consegui essa ironia? Evidentemente porque nossa fé
do Sol, mas essas teorias são apenas sistemas hipotéticos permite, em seu estágio atual, que seja abandonada. Abriu
incompletos. Comportam uma reformulação progressiva. Se fendas. Por uma dessas fendas escapou-lhe o presente argu-
j mento. Uma fé que abre fendas é uma moradia incômoda e
reformuladas à luz dos acontecimentos de ontem, provam
essas teorias que o nascer do queijo de Minas era um aconte-
cimento necessário, ou, pelo menos, altamente provável. O
i perigosa. É incômoda, porque ventos gélidos invadem os seus
aposentos e fazem tremer os que nela se abrigam. E é perigo-
queijo de Minas, longe de abalar a astronomia, prova, pelo sa, porque ameaça ruir e soterrar os habitantes em sua ruína.
contrário, a eficiência do método científico como captação [)uas são as possibilidades que uma situação destas oferece:

32
Ij 33
procurar fechar as fendas, ou procurar construir uma fé nova. tarde, superar essa noção pálida do primeiro Deus. Transferiu-
Com efeito, é o que estamos fazendo todos. se para a coincidência mesma. Tanto racionalistascomo empi-
E, como somos seres confusos, estamos tentando as ristas colaboraram nessa transferência que é, com efeito, o
duas possibilidades simultaneamente. A mente humana é endeusamento do pensamento humano de um tipo determi-
construída assim: não pode existir desabrigada. As tentati- nado. Se, no curso do pensamento moderno, a noção de Deus
vas de reconstrução e as de construção nova têm uma coisa parece acompanhar parte do argumento filosófico, é, no
em comum: procuram ambas descobrir os fundamentos do entanto, uma noção organicamente alheia. O pensamento
edifício ameaçado. É a pergunta: "Como surgiu a fé da qual moderno pode passar, perfeitamente, sem essa hipótese de
todos participamos ainda, embora precariamente?" Deus. Dispõe de inúmeras outras. Mas da coincidência entre
Jaspers publicou um livro que muito bem poderá ser o pensamento e mundo não pode passar, e esta não é hipótese,
seu último: "Nikolaus Cusanus" (Cusano). É uma análise mas artigo de fé portanto. Credo in coincidentiam unam.
existencial desse pensador que se coloca entre a Idade Média A conseqüência deste tipo de fé é a tecnologia. Os nos-
e a Moderna (1401-1464). Obviamente Jaspers procura des- sos instrumentos estão contidos, em germe, já no projeto
cobrir um dos fundamentos da fé moderna. Não pretendo de Cusano. Os instrumentos são produtos da oposição
seguir-lhe os passos no livro mencionado. Chamarei, no entre homem e mundo. Surgiram pela graça da coincidên-
entanto, a atenção dos leitores para um conceito fundamen- cia entre ambos. Por coincidir o pensamento lógico com o
tal de Cusano: coincidentia oppositorum. A coincidência mundo extenso, surgem instrumentos. Instrumentos são
pressupõe uma oposição, e essa oposição é o fundamento do obras da graça. É pelos instrumentos que o homem se inte-
pensamento moderno. É uma cosmovisão inteiramente gra na totalidade da graça. É por eles que se "realiza". O
diferente da medieval a moderna. Houve, no Renascimento, mundo dos instrumentos que nos cerca testemunha a pro-
uma virada fatídica, pela qual o homem se colocou em opo- cura da graça da humanidade moderna.
sição ao mundo. O homem tornou-se "sujeito", e o mundo A torneira é o equivalente do Ídolo de épocas passadas.
seu "objeto". Desde então o homem encara o mundo. É por- Ídolos podem ser vorazes. O Moloch devora os fiéis que
tanto absolutamente necessário que haja coincidência, entre o adoram. Isto prova que funciona. Confirma e fortalece a fé
homem e mundo, por incrível que seja. Do contrário, seria dos fiéis portanto. A bomba H fortalece a fé moderna. De
o homem um ser totalmente alienado. Esta é, em resumo, a certa forma prova, ao destruir a humanidade, que o homem é
"explicação históricà' da nossa fé periclitante. Deus. Não é por este aspecto ético da tecnologia que nossa fé
Em virtude da virada contra o mundo tornou-se o periclita. Os que pensam assim, estão enganados. A razão
homem, na palavra de Cusano, o segundo Deus. Ainda havia disto é outra. Está no próprio fundo da nossa fé na coincidên-
um primeiro. Em Cusano a fé medieval em Deus ainda se con- cia incrível. Não acreditamos mais tão firmemente que nossos
fundia com a fé moderna. Mas já em Descartes essa fé medie- pensamentos lógicos coincidem com a "realidade".
val empalidecia. A função do primeiro Deus era a de ajudar o Não o acreditamos mais tão firmemente, a despeito de
segundo Deus a estabelecera coincidência incrívelentre ele e o evidências tão palpáveis como o é a bomba H (ou a tornei-
mundo. É graças ao concursus Dei que o pensamento humano ra), porque somos incapazes de sorver a vivência da graça
se adequa às coisas extensas. A fé moderna conseguiu, mais nos instrumentos. Já nos causam tédio e nojo. Não nos
34 35
causam mais admiração e medo, e se o fazem, fazem-no de
forma tediosa. É, com efeito, um círculo o pensamento
moderno, um círculo que se fecha atualmente. O círculo se
abre com a oposição entre homem e mundo, e fecha-se ao
começarmos a perceber que ambos não coincidem. E que,
com efeito, a coincidência é incrível.
i:::

Essa sensação que os instrumentos nos causam é talvez


o sintoma do despertar de um novo senso de realidade. Pensamento e reflexão
Começamos a perceber que a "realidade" com a qual o pen-
samento supostamente coincide, não é mais a nossa realida-
I
11

de. Trata-se de um novo tipo de dúvida que surge. Uma


O Instituto Brasileiro de Filosofia, tendo me honrado
dúvida eguivalente à cartesiana, talvez, mas com intenção
inversa. E a tentativa de superar a oposição que a dúvida
cartesiana estabelece. A tentativa de reintegração portanto.
É cedo ainda querer articulá-Ia rigorosamente. A arte
III
com o convite de proferir esta conferência de encerramenro
do seu ano letivo, proporciona-me a oportunidade de expor
algumas considerações um tanto heterodoxas em torno
moderna e a filosofia da língua (por serem análises do pen- r daquele processo chamado "pensamento". Agradeço a opor-
samento e da realidade) são as primeiras articulações tenta- tunidade e proponho, como ponto de partida dessas consi-
tivas. derações, a distinção cartesiana entre res cogitans (coisa pen-
Ainda participamos todos, com a grande maioria dos sante) e res extensae (coisas extensas). Podemos duvidar das
nossos pensamentos e atos, da fé moderna. Ainda acredita- coisas extensas, mas a coisa pensante é indubitável. E a rela-
mos todos na torneira. Weizsaecker cita, em die Tragweite ção entre esses dois mundos, entre o mundo duvidoso da
der Wissenschaft (O âmbito da ciência), o seguinte exemplo: matéria e o mundo indubitável do pensamento, pode ser
Um autor de livro anti-tecnológico telefona ao seu editor estabelecida somente com o concursus Dei, com a ajuda divi-
para saber do manuscrito. O exemplo é significativo. Exem- na. A cosmovisão cartesiana, opondo o pensamento ao
plifica a fé do autor na tecnologia (telefone), e exemplifica a mundo dos corpos, estabelecendo portanto uma relação de
tentativa de superá-Ia (livro). A transição na qual estamos é sujeito-objeto entre eles, e relegando essa relação à fé em
um processo difícil, penoso, e cheio de contradições inter- Deus, é uma das fontes, senão a fonte principal, da civiliza-
nas. Não era outra, no entanto, a situação dos pré-renas- ção ocidental tal como a conhecemos. De certa forma pode-
centistas. ]aspers é talvez nosso Cusano. Ao tornar incrível a mos dizer que a Idade Moderna, essa época do triunfo do
coincidência entre pensamento e "realidade", talvez torne Ocidente, não passa de uma realização progressiva da visão
crível, ele e os que lhe seguirão os passos, uma realidade cartesiana. A coisa pensante, o sujeito, investe durante essa
nova. A esta fé está dedicado o presente artigo. época contra o mundo dos corpos que é o seu objeto, com a
dupla finalidade misteriosa de compreendê-Io e modificá-lo.
A ciência é o método pelo qual o pensamento se precipita
sobre os corpos para compreendê-Ios, e a tecnologia é o

36 37
método pelo qual o pensamento se agarra às cOIsas para Descartes não passa, deste ponto de vista, de uma explicitação
modificá-ias. do cristianismo. Já o cristianismo distingue, para falarmos
O próprio êxito desses dois métodos (que é o triunfo do 'fI com Vicente Ferreira da Silva, entre o salvável (que é a alma) e
~
Ocidente) e também, a meu ver, o começo do fim da Idade l
.'g
o sacrificável (que é o corpo). A dicotomia pensamento-maté-
ria não é portanto fruto de uma distinção epistemológica,
Moderna, e, talvez, por isto mesmo, o começo do fim do Oci-
dente. Porque o conhecimento do mundo dos corpos que a como parece ser se a formos considerar a partir de Descartes,
ciência proporciona ao pensamento revela progressivamente a mas é fruto de todo um conjunto ético-religioso do qual par-
dubiedade desse mesmo mundo, e a modificação nele opera- ticipamos. Já que fomos projetados por esse conjunto, já que
da pela tecnologia é portanto fútil. existimos nele e graças a ele, é tremendamente difícil imagi-
Em outras palavras: as conquistas epistemológicas e éti- narmos outro projeto existencial, no qual a nefasta divisão
cas do pensamento ocidental em seu avanço contra o mundo íl matéria-espírito não seria o caso. Embora saibamos de outras
dos corpos revelam progressivamente que falta, a esses méto- civilizações, como a indiana (que desconhece a divisão a
dos, o concursus Dei. Há algo fundamentalmente errado na
visão cartesiana da qual brotaram. Se a física moderna revela.
progressivamente e de muitas maneiras que o fundamento da
matéria é o pensamento, já que os elementos da matéria se
I ponto de conceber espíritos materializados), e de culturas cha-
madas "primitivas" (que vivem em mundos pré-Iógicos, isto é,
anteriores a essa divisão), é-nos impossível sorvermos existen-
cialmente esses projetos alheios ao nosso.
revelam como sendo mais símbolos do pensamento que outra
coisa (nêutrons, mésons etc), e já que em certos processos hm-
I Mas é necessário pelo menos tentarmos esse salto para
fora do nosso projeto, se é que tenho alguma razão ao afirmar
damentais não é possível fazer-se a distinção entre observador 1I que a divisão matéria-pensamento ameaça a nossa civilização
e observado, isto é, entre sujeito e objeto, há algo errado na com o mergulho no abismo do tédio e da futilidade, justa-
física como método do conhecimento. E se a tecnologia fi mente pelo êxito da ciência e da tecnologia. E creio ser possí-
modificou o mundo dos corpos a ponto de tornar perfeita- " vel esse salto, até certo ponto. Não pelo ultrapassar do nosso
mente imaginável um estágio de fartura e de lazer, sem que 11 projeto, mas graças ao poder reflexivo do qual dispomos e o
com isto diminua a angústia e o tédio humano, há algo erra- qual nos poderá conduzir até perto das nossas origens, daque-
do na tecnologia como busca de felicidade. Esse erro funda- las origens nas quais se deu, in illo tempore, a divisão entre pen-
mental devemos buscá-Io, ao meu ver, no conceito do pensa- samento e matéria, entre alma e corpo. A reflexão, portanto,
mento tal como foi projetado pela visão cartesiana, e realizado para a qual convido os senhores, deve conduzir-nos até aquele
pelo Ocidente no curso da Idade Moderna. ponto (para recorrer a um mito) no qual se deu a expulsão do
A dicotomia que Descartes estabelece entre matéria e paraíso, isto é, a alienação que é o nosso pensamento.
pensamento, entre corpo e alma, entre o duvidoso e o indubi- Que poder é esse, que acabo de mencionar e que chamei
tável, é, ao meu ver, uma dicotomia nefasta. Mas confesso ser de reflexivo? Para iluminá-Io, voltemos por um instante a con-
ela de superação muito difícil. Porque essa dicotomia, longe siderar o processo do pensamento tal como o descrevi há
de ter surgido no sistema cartesiano, já está contida nos mitos pouco. Disse que o pensamento se precipita sobre os corpos
primordiais que deram origem à civilização ocidental e que para compreendê-Ios, e que se agarra a eles para modificá-Ios.
encontraram a sua expressão ritualizada no cristianismo. O pensamento é portanto um processo explosivo que se

38 39
expande para dentro do mundo dos corpos para devorá-Ios. caracterizar assim a nossa situação, mesmo se formos otimis-
O método desse devorar é a ciência e a tecnologia. Mas existe tas. A minha proposta de substituirmos a ciência e a tecnolo-
outro movimento do pensamento, um movimento oposto. gia pela filosofia pode ser portanto encarada como um réculer
Nesse movimento contrário o pensamento se vira contra si pour mieux sauter mesmo por aqueles que não crêem, como
mesmo para compreender e devorar-se a si mesmo. A palavra eu, estar o nosso progresso dirigido rumo ao abismo.
"reflexão" indica a direção desse movimento, já que denota Disse que a reflexão metódica, a filosofia portanto, deve
um recuo em direção oposto ao avanço. A palavra correspon- conduzir-nos até perto das nossas origens, em profundidades
dente alemã "Nachdenken" (pensar atrás ou depois) indica a portanto que caracterizei pelo mito da expulsão do paraíso.
função desse movimento, já que denota controle. Esse mito nos conta, conforme creio, em sua linguagem densa
E a palavra correspondente tcheca "rozmyslení" (pensar e poética, que caracteriza todo mito, o mistério do surgir do
analítico) indica o resultado desse movimento, já que denota pensamento. Conta-nos esse mito que fomos expulsos e lan-
a decomposição do pensamento. A reflexão é portanto o çados para cá porque comemos do fruto proibido da distinção
movimento inverno do pensamento, que o controla e o entre o bem e o mal, do fruto da divisão e da dúvida portan-
decompõe em seus elementos. O método desse compreender- to. Modernizando um pouco, poderei chamar esse fruto de
se e modificar-se do pensamento é a filosofia. A filosofia é "antimescalina". A expulsão do paraíso, o qual pode ser descri-
portanto exatamente o contrário da ciência e da tecnologia. to como o estado da não-divisão e da não-dúvida, a expulsão
As tentativas empreendidas de diversos lados, por exemplo para cá, que pode ser descrito como o estado da divisão e da
pelos marxistas, por Dilthey e por Husserl, de tornar científi- dúvida, não é um acontecimento de um passado histórico
ca a filosofia, denotam, ao meu ver, uma incompreensão total remoto, mas é um acontecimento mítico, isto é, um aconteci-
do processo do pensamento. Se afirmei que, em nossa tentati- mento que a todos nós aconteceu e sempre acontece de novo.
va de evitar a queda da nossa civilização no abismo do tédio e Estamos sendo expulsos do paraíso toda vez que distingui-
da futilidade, devemos recorrer à reflexão, tinha eu em mente mos, toda vez que duvidamos. Aliás, duvidar é sinônimo de
exatamente essa oposição entre filosofia de um lado, e ciência distinguir e de estar expulso, já que etimologicamente parente
e tecnologia do outro. Não é com mais ciência e mais tecnolo- de dividir e de dois. Em alemão isto se torna ainda mais claro,
gia que sairemos da situação angustiada na qual nos encontra- já que "zweifeln" (duvidar) conduz ao "verzweifeln" (perduvi-
mos mas com mais filosofia (se é que sairemos). É verdade dar), isto é, ao desespero. A nossa expulsão desesperada do
que na descrição que acabo de lhes oferecer a ciência e a tec- paraíso é portanto a própria dúvida, que é por sua vez um dis-
nologia aparecem como as tendências progressivas do pensa- tinguir, um dividir, um ordenar portanto.
mento, e a filosofia como a sua tendência regressiva. E é ver- Fomos expulsos do paraíso em direção da ordem e do
dade que a grande maioria continua valorizando progresso. Deixamos para trás, sem esperança, o caos da indis-
positivamente o progresso como herança dos dois séculos pas- tinção e da ingenuidade, e estam os sendo lançados, impiedo-
sados e a despeito de muitos sintomas inquietantes. Mas exis- samente, em direção do cosmos da clareza distinta, que é,
tem situações, reconhecidas mesmo por aqueles que põem sua como diz o mito, a morte. Esta me parece ser a mensagem do
fé no progresso, nas quais uma expansão excessiva exige um mito, que foi reformulada, em sua versão mais moderna, por
recuo para consolidação e descanso. Creio que devemos Heidegger na frase: "fomos lançados para cá e estamos aqui
40 41
para a morte". Mas esse duvidar, que é um distinguir e um pensamento acabaria, já que não teria mais assunto. Estaría-
ordenar, e que o mito chama de expulsão, esse duvidar é o mos de volta ao paraíso. Devemos portanto simplesmente
próprio pensamento. Com efeito, duvidar e pensar são sinô- dizer que o duvidoso é a direção na qual o pensamento se
nimos, e Descartes é, todo ele, resultado desse sinonimato. A expande. Como o pensamento se expande em todas as dire-
coisa pensante cartesiana é indubitável, justamente porque ela ções, tal qual o cosmos da astronomia, devemos dizer que o
é a coisa que duvida. De acordo com Descartes a dúvida não duvidoso é o horizonte do pensamento. É a situação fronteiri-
pode duvidar de si mesma. A dúvida, portanto o pensamento, ça do pensamento, na qual este se expande para chocar-se
distingue e ordena o duvidoso, submete o duvidoso a uma com o nada e abrir-se para ele. Pensar a respeito do duvidoso
ordem, a fim de que o duvidoso deixe de sê-Io e se torne indu-
bitável. O pensamento é portanto um processo absurdo.
Duvida para deixar de duvidar, e transforma, nessa tentativa,
o duvidoso em dúvida. O processo é absurdo em dois aspec-
r
I
I é expandir os horizontes do pensamento, e a dicotomia carte-
siana entre pensamento e coisa extensa é falsa.
A segunda pergunta: qual a ordem à qual o pensamento
submete o duvidoso? deve ser portanto reformulada como
tos: é absurdo porque a meta do pensamento é acabar consigo segue: qual a ordem na qual o pensamento se expande? Esta
mesmo, e é absurdo porque o pensamento pretende alcançar sim é uma pergunta autêntica e admite resposta clara. O pen-
essa meta pela transformação de tudo em dúvida. O pensa- samento se expande de acordo com as regras da língua. Com
mento em sua absurdidade é comparável à sede que pretende efeito, o pensamento é uma corrente de frases que se formulam
matar-se bebendo o mar: porque é absurdo querer beber o de acordo com as regras lingüísticas e seguem, uma à outra, de
mar, e porque com cada gota bebida a sede aumenta. Quanto acordo com essas regras. O pensamento, sendo um distinguir e
mais progride o pensamento, tanto mais evidente se torna a um ordenar, é um articular do duvidoso de acordo com as
sua absurdidade dupla, tanto mais evidente se torna ser o pen- regras da língua. Devemos imaginar o pensamento como teia
samento a expulsão do paraíso. que se expande em todas as direções, cujos fios são as regras lin-
Duas perguntas se impõem ao contemplarmos a imagem güísticas, e em cujas malhas impera o indizível. A teia não é
do pensamento que acabo de lhe propor: de que duvida o uniforme. Em certos lugares ela se apresenta densa, como por
pensamento? e como duvida o pensamento? Reformulando: o exemplo na física moderna, em outros lugares ela é frouxa. Na
que é duvidoso? e qual é a ordem à qual o pensamento o sub- física, as regras da língua, em forma de matemática, encobrem
mete? A primeira pergunta me parece ser uma típica pergunta quase totalmente o indizível, e é justamente por isto que nessa
falsa, e o problema por ela posto um típico pseudoproblema. região o pensamento se revela aquilo que é: transformador do
Porque toda resposta que a ela possamos dar (por exemplo a duvidoso em língua. Em outros lugares esse caráter puramente
resposta cartesiana: "o duvidoso são as coisas externas") já será lingüístico do pensamento não é tão evidente. Nesses lugares
uma transformação do duvidoso em pensamento, portanto ainda persiste a esperança, desesperada conforme creio, que o
em dúvida indubitável. Não se pode definir o duvidoso, por- conhecimento não é uma simples façon de parier.
que a definição acaba com ele. A definição do duvidoso é jus- Voltemos, para interpretar a teia lingüística que é o pen-
tamente a meta de todo o processo do pensamento, uma meta samento, ao mito da expulsão do paraíso. Essa expulsão é por-
absurda. Porque se fosse alcançada essa definição, não somen- tanto equivalente a uma expressão, a um grito. Cada palavra é
te acabaria o duvidoso, mas a própria dúvida acabaria, o um grito assim, e com cada palavra que pensamos, com cada
42 43
conceito que formulamos, estamos sendo expulsos do paraíso.
, civilização tecnológica perfeita que será o resultado desses
A corrente das palavras, a conversação, é o rio que nos arrasta conhecimentos está se revelando, já muito antes de ser alcan-
das nossas origens, e pelo indizível que se esconde entre as çada, como sendo tediosa. O paraíso em direção do qual o
palavras estamos sempre nas proximidades das nossas origens. pensamento nos impele será indistinguível do inferno. Com
Desse indizível, dessas aberturas que a língua conserva para o efeito, será o fim da dúvida, o fim do pensamento, será a
nada, é que brotam sempre novas. palavras, novos pensamen-
t:~I morte. E aí o pensamento revela o seu aspecto mais absurdo.
tos. Estamos emergindo sempre do silêncio primordial e ingê- O pensamento é empolgante, é exuberante, é aventuroso,
nuo que é o paraíso. Com efeito, essas nossas aberturas para o enquanto aberto para o nada, enquanto imperfeito. O pensa-
silêncio ingênuo, essa nossa capacidade para o espanto ante o mento perfeito, o pensamento bem sucedido, seria o tédio
nada, essa nossa capacidade de gritar o nosso espanto, é sinal mortal, o círculo nojento do idem per idem. Mas, dirão os
da nossa autenticidade. É sinal que ainda estamos na proximi- senhores, esse pensamento perfeito não representa perigo, já
dade misteriosa do nada. Somente quando a teia da língua se que nunca será alcançado. O paraíso secundário não represen-
fechar inteiramente em nosso redor, quando se tornar tão ta perigo, já que nunca será realizado. Não posso concordar
densa e não permitir mais aberturas, é que perderemos essa com esse argumento.
capacidade para o espanto. Então não poderão surgir palavras Defini o pensamento como processo lingüístico. A civili-
novas nem pensamentos novos. Estaremos presos da conversa zação ocidental, tal como se apresenta atualmente, reduz esse
fiada repetitiva e decairemos, inautenticamente, rumo à processo a umas poucas camadas lingüísticas, caracterizadas
morte. Essa decadência tem aspectos individuais e coletivos. pelas palavras "ciêncià' e "tecnologià', que são, por sua vez,
Os aspectos individuais são por demais conhecidos para reduzíveis à camada da matemática e da linguagem do simbo-
serem mencionados. Um exemplo do aspecto coletivo de con- lismo lógico. Essas poucas camadas pobres são perfeitamente
versa fiada é a física moderna. Tão afastada está ela das origens realizáveis, como o nosso progresso o prova. Pelo empobreci-
do pensamento, tão densa é nela a rede da língua, que está se mento da conversação ocidental esta se aproxima, rapidamen-
aproximando rapidamente do círculo vicioso e tedioso das te, do estágio da conversa fiada. Dentro em breve não terá mais
equações reduzíveis a zero. Está adquirindo, rapidamente, o assunto. Graças a esse empobrecimento, o Ocidente terá reali-
clima existencial da inautenticidade, e os próprios físicos são zado, dentro em breve, o paraíso na terra. Trata-se a meu ver,
os primeiros a confessar esse fato. de um perigo real e quase iminente, um perigo que pode ser
O pensamento é portanto um processo lingüístico que se evitado somente com a abertura de novas conversações, mais
expande, a partir do silêncio paradisíaco, em direção de sua próximas da origem, e portanto mais capazes do espanto ante
própria superação, de um novo silêncio portanto. O pensa- o mistério do nada. Essas aberturas são possíveis, estão previs-
mento é a expulsão do paraíso em busca de outro. tas no projeto que nos lançou para cá, porque esse projeto é
Mas o paraíso secundário que o pensamento busca inesgotável. Mas é somente, a reflexão metódica, é somente a
começa a revelar o seu caráter no estágio atual do desenvolvi- filosofia, que pode abrir para nós essas aberturas novas, é
mento. Demonstra ser inautêntico e tedioso. somente a filosofia que pode mudar o rumo do progresso.
A soma dos conhecimentos que o pensamento está acu- Disse que, além da expansão, conhece o pensamento
mulando está se revelando como sendo reduzível a zero. E a também a fase reflexiva, na qual procura conhecer-se a si

44 45
mesmo, e modificar-se a si mesmo. A dúvida que é o pensa-
mento pode duvidar também de si mesma, pode, ela própria,
tornar-se duvidosa. Neste ponto discordo, como vêem os
senhores, da análise cartesiana da dúvida, que me parece pecar
por insuficiente radicalidade. Essa dúvida da dúvida, esse
refluir do pensamento sobre si mesmo, esta é, ao meu ver, a
Ii
definição de filosofia. E, tendo identificado pensamento com
Da dúvida
processo lingüístico, posso definir a filosofia como reflexão da
língua sobre si mesma. Nessa reflexão a língua revelará a sua
força produtiva e a riqueza inesgotável dos seus temas. O
I
~
papel da filosofia na conversação (que é a história) sempre era
este: descobrir reflexivamente os temas projetados na conver- A dúvida é polivalente. Significa o fim de uma certeza.
sação e propô-Ios à realização pela conversação em progresso. Significa a procura de certeza. Significa ainda, se levada ao
extremo, ceticismo, isto é, certeza invertida. Em doses
Foi assim que surgiram as ciências a partir da filosofia, e será
assim que devem surgir, a partir da mesma filosofia, novos moderadas estimula o pensamento. Em doses excessivas
temas a formar novas conversações e novas realizações por ora paralisa o intelecto. Como experiência intelectual é um dos
inimagináveis. E é assim que se me afigura evitável a queda da f prazeres puros. Como experiência moral é tortura. O ponto
nossa conversação no abismo do silêncio inautêntico que a de partida da dúvida é a fé. A fé como aceitação ingênua
f dos dados ("Wahrnehmen") é o estado intelectual primor-
ameaça.
O processo do pensamento é absurdo. Pensamos para dial e primitivo. A dúvida destrói essa ingenuidade de
não pensar mais, falamos para podermos calar-nos. Mas é essa forma irrevogável.
absurdidade do pensamento que faz com que sejamos As certezas que o método da dúvida fornece nunca
homens. Ser homem é ser absurdo. É inalcançável para nós a serão tão autênticas quanto o é a certeza primitiva. Conser-
ingenuidade paradisíaca, o estado anterior à dúvida, a integra- varão sempre a marca da dúvida que lhes era parteira. A
ção portanto. Somos, como homens, seres alienados, seres dúvida é um método que procura criar certezas inautênticas
expulsos. Aceitemos a absurdidade do desterro. Duvidemos o pela destruição de certezas genuínas. A dúvida como méto-
mais possível, e duvidemos num máximo de camadas possí- do é absurda. Surge a pergunta: "Por que duvido?" É mais
veis. Ao expulsar-nos do seu seio, nossa origem nos arriscou fundamental que a outra: "De que duvido?" Subentende a
(Rilke). Aceitemos esse risco. Não nos deixemos enjaular pelas pergunta: "Duvido mesmo?" Trata-se de duvidar da dúvida
poucas camadas agora em vias de realização pela conversação portanto. Trata-se de um último passo.
do Ocidente. Não tenhamos medo de novas palavras e de Descartes (e com ele quase todo pensamento moder-
novos pensamentos. Abramos novas aberturas e experimente- no) aceita a dúvida como indubitável. Essa fé ingênua na
mos novos espantos. Assim, e somente assim, seremos dignos dúvida caracteriza, com efeito, a Idade Moderna cujos últi-
de sermos homens, isto é, res cogitantes, coisas pensantes. mos instantes presenciamos. A fé na dúvida cabe, durante a
Idade Moderna, o papel desempenhado pela fé em Deus

46 47
em épocas anteriores. Essa fé resultou em mentalidade e É a manipulação consciente de conceitos divorciados da
civilização "idealista". Em meio de um mundo duvidoso a realidade pela ciência pura. É a produção de instrumentos
dúvida indubitável. A dúvida como núcleo e como último destruidores da humanidade, portanto autodestruidores,
refúgio da realidade. pela ciência aplicada. É a arte que se significa a si mesma. É
O intelecto como única realidade portanto. A dúvida o carpe diem individual e coletivo, fruto do esvaziamento
da dúvida seria um assalto a esse último reduto da realida- dos valores. O clima da absurdidade é resultado dessa
de. Seria o fim da Idade Moderna. dúvida extrema. Nada tem significado. Poderá ser supera-
A dúvida da dúvida é um movimento do intelecto difí- do esse clima? Poderá sobreviver a nossa civilização à Idade
cil. Oscila entre dois pólos: "Tudo pode ser posto em dúvi- Moderna.
da, inclusive a dúvida mesma" e "Nada pode ser duvidado I - Do intelecto. Certos exercícios do Ioga ultrapas-
autenticamente". Oscila entre um ceticismo radical e um sam, em radicalidade, as meditações cartesianas. Revelam
positivismo extremo. Kant afirma que o ceticismo é um vivencialmente, não que penso, mas que tenho pensamen-
descanso para a razão, embora não seja lugar de moradia. O tos. Posso, nesses exercícios, eliminar os pensamentos, mas
mesmo pode ser afirmado quanto ao positivismo. A dúvida continuarei sendo. Com efeito, o método cartesiano prova
da dúvida impede o descanso. É ela uma indecisão funda- a existência de pensamentos, não do eu que pensa. Há uma
mental que a análise de Sísifo feita por Camus ilustra. A fé humanista no "eu" que se infiltra, sub-repticiamente, no
dúvida da dúvida, se mantida, lança a mente na situação argumento cartesiano, sem jamais ser duvidada. Os exercí-
sisífica da pura absurdidade. cios do Ioga interessam, neste contexto, apenas enquanto
Duvido = penso. Penso: sou cadeia de pensamentos. proporcionam um ponto de vista sobre os pensamentos. É
Um pensamento segue outro. Por quê? Porque um pensa- o ponto de vista de dentro para fora. Os pensamentos se
mento não basta a si mesmo. Exige outro para certificar-se. apresentam como tecido entreposto entre o "eu" e o mundo
Duvida de si mesmo. Sou cadeia de pensamentos que duvi- dos fenômenos externos. Esse tecido tapa, apresenta e
dam de si mesmo. Duvido, portanto sou. Duvido que sou, representa ("vorstellt" na palavra de Schopenhauer) o
portanto confirmo que sou. Duvido que duvido, portanto mundo externo. Chamemos esse tecido de "intelecto".
torno duvidoso que sou. Por que sou? Porque duvido. Por Podemos definir o intelecto como o campo no qual ocor-
que duvido? Porque sou. Portanto duvido que sou. Portan- rem pensamentos. Esse campo está ligado, de certa forma,
to duvido que duvido. com o "eu" que tem pensamentos, e com o mundo a quem
É um beco sem saída. É, com efeito, o beco reservado os pensamentos representam. Pelo menos essa é nossa fé
a Sísifo pelos Antigos. É uma forma de loucura. É o suicí- ingênua, sem a qual o intelecto não teria significado. Essas
dio do intelecto. ligações são justamente o significado do intelecto. Mas essas
Somos a primeira ou segunda geração que experimen- ligações não podem ser pensamentos, dada a nossa defini-
ta esse tipo de niilismo vivencialmente. É a perda total da ção do intelecto. Do contrário, "eu" e "mundo externo"
fé, a loucura do nada todo-envolvente. Os sintomas abun- seriam parte do intelecto. As ligações que unem o intelecto
dam. É a lógica formal que reduz os pensamentos à tautolo- ao "eu" e ao "mundo externo" não são, portanto, pensa-
gia. É a "clara noite da angústia do nada" do existencialismo. mentos. "Eu" e "mundo externo" são impensáveis. Sendo
48 49
impensáveis são, paradoxalmente, indubitáveis. Serão, em incompletos são insignificativos. Alcançado o significado,
conseqüência, eliminados do presente argumento. surge pensamento novo. Pensamentos significativos são
O intelecto definido como campo no qual ocorrem produtores de pensamentos novos. O significado do pen-
pensamentos é uma visão que resultou de um ponto de samento é outro pensamento. Pensamentos sem significa-
vista. É um ponto de vista externo ao intelecto. O intelecto do não produzem pensamentos novos. O critério do signi-
é, deste ponto de vista, objeto. Pode ser investigado "objeti- ficado é a capacidade para a produção de pensamentos.
vamente". Tornou-se despsicologizado. Os pensamentos Um pensamento significativo pode produzir mais que um
que compõem o intelecto não são vivências, mas objetos de pensamento novo.
conhecimento. Uma dificuldade ontológica se esconde Quanto mais significativo o pensamento, tanto maior o
neste ponto de vista. Pensamentos se tornam objetos de número de pensamentos novos por ele produzidos. For-
pensamentos. Essa dificuldade é conseqüência da dúvida da mam-se, assim, cadeias de pensamentos, chamadas "argu-
dúvida que fundamenta o ponto de vista. mentos". Estes discorrem, por sua vez, em busca de signifi-
Passemos, relutantes, por Cima dessa dificuldade. cado, do qual o significado do pensamento individual é
O intelecto como campo no qual ocorrem pensamen- apenas um aspecto subalterno. A soma dos argumentos
tos torna a pergunta "o que é intelecto?" pergunta sem sig- forma a totalidade do discurso. Este flui, por sua vez, em
nificado. Um campo não é um algo. É um como algo se dá. direção de um significado. Pelo próprio caráter do processo,
O campo gravitacional da Terra é como se comportam cor- esse significado é inalcançável. Está ele naquele "eu" e
pos na vizinhança da Terra. O intelecto é como pensamen- "mundo externo" que eliminamos do nosso argumento. Pelo
tos ocorrem. Para ocorrerem, os pensamentos devem ocor- seu próprio caráter, portanto, é o discurso um processo frus-
rer de uma forma ou outra. O intelecto é essa "forma ou trado; Carece de ulterior significado. Isto não invalida, no
outra". Tendo negado dignidade ontológica ao intelecto, entanto, os significados parciais dos pensamentos e dos
dedicaremos a nossa atenção aos pensamentos. argumentos. O seu significado está no discurso, e não no
Os pensamentos como objetos são formações comple- além dele. Somente aqueles que não se conformam com essa
xas. Consistem de elementos chamados "conceitos" ligados limitação imposta pelo campo que é o intelecto decaem no
entre si por elos chamados "regras". Pelo menos é assim que antiintelectualismo. No silêncio wittgensteiniano.
pensamentos ocorrem em campos chamados "intelectos do A procura de significado é sinônimo de "dúvida", e a
nosso tipo". dúvida é portanto o declive do discurso. É a força que pro-
Outros tipos de intelectos podem ser imaginados. Por pele o discurso. O significado parcial é a superação parcial
exemplo: intelectos do tipo chinês ou kwakiutl, Nesses da dúvida, e o significado total inalcançável é a garantia de
intelectos os pensamentos talvez não consistam de concei- ser a dúvida inesgotável. É a garantia da continuidade do
tos. Restringiremos o argumento ao nosso tipo de intelecto. discurso. Ao discorrer, propelido pela dúvida, o discurso se
Os pensamentos como conceitos ligados por regras ramifica e amplia. O número dos significados parciais
são processos. Discorrem. Dirigem-se para uma meta. A alcançados cresce. Podemos portanto resumir o resultado
meta é chamada "significado". Um pensamento significati- até aqui alcançado: O intelecto é o campo crescente da
vo é um pensamento que alcançou sua meta. Pensamentos dúvida em discurso.

50 51
11 - Da frase. O que é conceito? Temos a tentação de Uma palavra de cautela: as ciências que investigam a
responder que conceito é aquilo que dá origem à palavra. língua estão empenhadas na análise das línguas faladas e
Palavra seria símbolo de conceito. Mas seria significativa escritas. A língua na concepção do presente argumento é o
esta resposta? Não representa simplesmente a introdução de "falar baixo". Línguas faladas e escritas são articulações
um termo novo, em tudo idêntico ao antigo, de um sinôni- secundárias da língua "pura". As ciências da língua não dis-
mo com efeito? Podemos argumentar que há conceitos sem tinguem rigorosamente entre língua "pura" e "aplicada".
palavras, e palavras sem conceitos. Que os dois termos não Por exemplo: tratam ora de problemas de gramática (aspec-
são idênticos portanto. Mas o argumento não pode ser to de língua "pura"), ora de problemas fonéticos (aspecto de
mantido. Conceitos sem palavras é uma contradição de ter- língua "aplicada"). A distinção rigorosa urge. Investigações
mos, porque um conceito sem palavra, um conceito inarti- da língua "aplicada" pertencem ao campo das ciências da
culado, não poderia participar do pensamento discursivo. natureza ou da sociedade. Investigações da língua "pura"
Não seria portanto conceito. E palavra sem conceito é, constituem o fundamento da ciência do espírito (Geistes-
igualmente, contradição de termos, porque toda palavra, wissenschaft), no sentido Diltheyano, embora de uma ciên-
por ser palavra, participa do discurso. O termo "palavra cia do espírito despsicologizada. O presente argumento se
sem conceito" exprime apenas a desconfiança na função de enquadra no segundo contexto.
uma determinada palavra, no conjunto do pensamento, e A frase consiste, grosso modo, de cinco partes: (1)
não, como aparentemente faz, a confiança em duas cama- sujeito, (2) objeto, (3) predicado, (4) atributo, e (5) advér-
das ontológicas: palavra e conceito. Os termos "palavra" e bio. Atributo e advérbio são complementos. Serão descon-
"conceito" são sinônimos para todos os efeitos formais, siderados no presente argumento. Sujeito é o grupo de
embora possivelmente não o sejam para a psicologia. O palavras no qual o processo da frase se inicia. Objeto é o
ponto de vista deste argumento é despsicologizante, isto é, grupo de palavras para o qual o processo da frase se dirige.
"objetivo". Usará os dois termos como sinônimos portanto. Predicado é o grupo de palavras que une sujeito e objeto.
E eliminará, pela regra da navalha de Occam, o termo "con- Esta descrição é de uma frase padrão, sobre a qual todas as
ceito". Redefinirá o pensamento como complexo de pala- frases podem ser, em tese, reduzidas. Nessa frase padrão
vras organizadas por regras. E redefinirá o intelecto como sujeito e objeto são os horizontes, entre os quais o predica-
campo no qual ocorrem palavras organizadas por regras. dos se projeto. A frase é um processo do tipo chamado
Com esta reformulação deslocamos o argumento de "projeto". Tem a forma ("Gestalt") do tiro ao alvo. Sujeito é
terreno. Localizamos a consideração do pensamento no ter- o fuzil, objeto é o alvo, predicado é a bala.
reno da língua. No terreno adequado. A preocupação com Esta forma da frase é a estrutura do nosso tipo de lín-
o pensamento é uma disclplina da língua. O pensamento guas, portanto do nosso tipo de intelecto. Tudo que nos
passa a ser um fenômeno lingüístico chamado "frase". As ocorre, ocorre nesta forma. A filosofia tradicional comete o
regras que ordenam as palavras na frase passam a ser "gra- erro de projetar essa forma sobre o "mundo externo". Crê
mática" sensu Lato. Intelecto como campo no qual ocorrem que a estrutura da língua (do intelecto) espelha a estrutura de
pensamentos passa a ser língua como campo no qual ocor- uma realidade externa. Mas existem línguas de estrutura
rem frases. inteiramente diversa. Se podemos dizer algo com referência
52 53
ao "mundo externo", é isto: dada a diversidade de tipos de ocorre a busca predicativa da realidade. A língua em seu
língua, a estrutura da língua não espelha a estrutura do discurso produz realidades parciais, mas a realidade total,
"mundo externo". A soit-disant estrutura do mundo externo sua meta, é inalcançável. "Busca da realidade" e "dúvida"
é chamada por Wittgenstein de "Sachverhalt", isto é, relação são os dois aspectos do declive do discurso. A realidade total
entre coisas. Mas o próprio termo revela que o "Sachverhalt" é inatingível, e a dúvida é inexaurível, por duas razões for-
não passa da estrutura das nossas frases. "Estrutura da frase" e mais diferentes: 1 - Nenhum sujeito é inteiramente predi-
"relação entre coisas" são sinônimos, e o resto é tentativa cável em direção de não importa que número de objetos. 2
metafísica e desesperada de romper as limitações do intelec- - Há uma infinidade de sujeitos, e a língua cria sempre
to. De romper as grades da língua. O que não pode ser fala- novos sujeitos. A limitação mais frustrante do intelecto resi-
do, deve ser calado. A análise gramatical da frase é, de manei- de na inexauribilidade do sujeito. O sujeito em sua plenitu-
ra categórica, a análise ontológica da realidade. de de virtual idades desafia o método da dúvida que é o dis-
Sujeito, objeto e predicado são as formas de ser que curso. O sujeito é um grupo de palavras de um certo tipo.
perfazem a nossa realidade. Mais exatamente: as virtualida- Investiguemos esse tipo de palavras.
des que se realizam na frase. O sujeito se realiza ao emitir 111- Do nome. Análise da frase é análise da realida-
predicado. O objeto se realiza ao ser atingido pelo predica- de. Gramática é ontologia. A gramática tradicional é
do. O predicado, ao relacionar sujeito com objeto, estabele- ontologia aristotélica, e a sua classificação das palavras em
ce um "Sachverhalt", isto é, uma situação de realidade. O "substantivos", "adjetivos", "verbos" etc. corresponde
sujeito, considerado isoladamente, é a procura e a demanda aproximadamente às categorias aristotélicas da realidade.
da realidade. Subjaz ("sub-jectum") ao projeto da realidade. Proponho que seja abandonada. Distinguirei dois tipos de
O objeto, considerado isoladamente, é a oposição a esse palavras: palavras integradas no discurso, e palavras não
projeto ("ob-jectum"). integradas. A distinção é existencial, e não formal, e o seu
Mas sujeito e objeto, considerados isoladamente, não critério é a vivência do discurso. Palavras integradas são
são seres realizados. Adquirem realidade efetiva ("Wirldich- articuladas sem esforço, palavras não integradas com
keit") na situação da frase. O predicado, que estabelece a esforço. Palavra do tipo "Isto aqui" e "Olhe lá" são pala-
situação, comfere realidade ao sujeito e objeto. Sujeito e vras que exigem esforço de articulação (gestos, inflexão da
objeto transcendem a situação, na medida em que não são voz), que demonstra vivencialmente não serem integradas
predicados nela. São realizados apenas parcialmente pelo no discurso. Chamarei esse tipo de palavras de "nomes
predicado. Toda frase é realização parcial de um (ou mais) próprios", e todas as demais palavras de "derivadas". Há,
sujeito e um (ou mais) objeto. A cadeia de frases (o argu- pois, dois tipos de frases: as que contêm nomes próprios
mento) é o processo contínuo de predicação de sujeitos a designarei pelo termo "chamar", e as que contêm apenas
objetos, com a finalidade de realizá-Ios. O discurso como palavras derivadas, pelo termo "conversar". Chamar é pre-
um todo é um processo de predicação de todos os sujeitos e dicar nome próprio, conversar é predicar palavra derivada.
objetos. O discurso é predicativo. Nome próprio predicado é palavra derivada. Palavra deri-
"Realidade" ("Wirldichkeit") é o aspecto ontológico vada é palavra conversável. O nome próprio é chamado
de "significado". A língua (o intelecto) é o campo no qual para ser convertido em palavra conversável. A conversação
54 55
consiste de palavras derivadas que podem ser, por sua vez, As frases da conversação são "conversos". O discurso
classificadas, por exemplo, em "nome de classe", "relação" consiste de "versos" e "conversos". A filosofia retraça os pas-
etc. Desconsiderarei essa classificação no presente argu- sos do discurso. É, em última análise, crítica de "versos".
mento. O verso é uma frase que tem nome próprio por sujeito.
Nomes próprios são as raÍzes do discurso. Chamar é a Um nome próprio novo. A característica do verso é sua
dúvida em seu primeiro movimento. A consideração dos "originalidade". O verso predica uma origem. A palavra
nomes próprios é a dúvida da dúvida portanto. É a reflexão ".ongem " vem d""e os (boca.) O verso e'ba oca da I'mgua,
extrema. A volta às raÍzes. O nome próprio é o sujeito pela qual sorve e inspira nomes próprios novos. A inspira-
ainda não predicado. É plenitude inexaurÍvel das virtual i- ção poética sorve nomes próprios novos para predicá-Ios
dades. A consideração dos nomes próprios é a contempla- em versos. A inspiração poética articula o inarticulado para
ção da plenitude das virtualidades. A meta do discurso é a predicá-Io em verso. O sujeito da poesia é o inarticulado. O
realização das virtualidades dormentes no nome próprio nome próprio é o nome do inarticulado. A poesia produz
pela predicação progressiva. A meta da reflexão é a con- língua, porque articula o inarticulado. A póesia encara o
templação da plenitude das virtualidades dormentes no inarticulado. A poesia é o lugar de choque do intelecto com
nome próprio pela predicação regressiva. Reflexão é dis- o inarticulado. A poesia é o limite do intelecto. O intelecto
curso invertido. Reflexão é filosofia. Filosofia é discurso não pode ir além da poesia. A poesia é o contato do intelec-
invertido. Filosofia é a língua (o intelecto), que reflui sobre to com o "mundo externo". O "mundo externo" é sorvÍvel
si mesma. Filosofia é a busca das raÍzes. Filosofia é a dúvi- apenas poeticamente. Pode ser apenas chamado, nunca
da da dúvida. Os nomes próprios são a barreira da filoso- conversado. É inarticulado. Nomes próprios são pedaços
fia. A consideração do chamar é a última consideração da arrancados ao inarticulado pela poesia para serem conversa-
filosofia. dos. O inarticulado é inexaurÍvel. A poesia lhe arranca
Chamar é estender o território do intelecto. No cha- constantemente novos pedaços sem exauri-Io. A continui-
mar, um nome próprio novo aparece. Uma nova palavra é dade da poesia é prova disto. E todo novo nome próprio é
acrescentada à língua. Uma nova palavra é "produzida". inexaurÍvel pela conversação, por mais que seja predicado.
Chamar é o movimento produtivo do intelecto. "Produzir" Repitamos portanto que a limitação do intelecto é dupla: a
em grego é "poiein". Chamar é o movimento poético do poesia não pode exaurir o inarticulado, e a conversação não
intelecto. O intelecto (a língua) se expande pela poesia. A pode exaurir os nomes próprios produzidos pela poesia.
poesia é o movimento do intelecto que produz nomes pró- IV - Da proximidade. A poesia encara o inarticulado.
prios novos. A poesia é a situação de limite da língua. A Encara a origem. Está oposta à origem. A poesia é o posto
poesia é dúvida em seu primeiro movimento. Conversar é avançado do intelecto. Pela poesia está o intelecto, como um
predicar as palavras derivadas da poesia. O "assunto" da todo, oposto à origem. O intelecto como um todo é o opos-
conversação são os nomes próprios chamados pela poesia. A to da origem. A origem (o inarticulado) é inteiramente dife-
poesia chama nomes próprios e os "verte" para a conversa- rente do intelecto. O intelecto, por estar oposto à sua ori-
ção para que sejam "convertidos" em palavras derivadas. As gem, está inteiramente alienado de sua origem. O intelecto é
frases da poesia são "versos". a própria alienação da origem de si mesma. O intelecto é o
56 57
campo da dúvida progressiva. A dúvida progressiva é a alie- e erradas, quando não obedecem. Neste sentido podemos
nação progressiva da origem de si mesma. A dúvida é a dizer que o intelecto é o campo no qual ocorrem frases ver-
expulsão ("Ausdruck" = articulação) da origem de si mesma. dadeiras e falsas, certas e erradas.
Com todo nome próprio novo a origem se expele de si A verdade é a vibração do verso com o inarticulado. A
mesma. Todo verso novo é uma nova "expulsão do paraíso". verdade é uma função da proximidade do verso com o inar-
O "paraíso" é, neste contexto, sinônimo de "ingenuidade". ticulado. Essa proximidade envolve o verso em clima
Todo verso novo é perda de ingenuidade. ("Stimmung") característico da poesia. É o clima do espan-
Neste sentido é todo verso novo "original", porque é to. A poesia é intelecto espantado ante o inarticulado. O
pecado original. O intelecto é um processo de alienação inarticulado é espantoso, porque inteiramente diferente do
progressiva que se origina, sempre de novo, no pecado ori- intelecto. A proximidade do inarticulado espanta. A dúvi-
ginal do verso. Todo verso é uma alienação nova da origem da, que é a oposição do inarticulado contra si mesmo, é um
de si mesma. Em todo verso a origem se encara a si mesma espanto do inarticulado ante si mesmo. A dúvida é um
de novo. Neste sentido é todo verso um espelho novo da grito de espanto. Esse grito de espanto resulta no nome
"realidade". Não como "adequação do intelecto à realidade" próprio a ser predicado em verso. A dúvida é espanto arti-
(definição tradicional da verdade), mas como oposição do culado. Intelecto é articulação progressiva do espanto. À
intelecto à sua origem. Neste sentido é a poesia a fonte da medida que progride a conversação, o espanto se dilui, mas
"verdade". está denso no verso. A conversação é o método de diluir
. O intelecto é o campo no qual ocorrem frases. Algu- espanto. É um assobiar na floresta. Mas o espanto original
mas dessas frases são versos. Versos são expulsões, pela dúvi- se renova sempre na poesia. A verdade é uma função do
da, do inarticulado de si mesmo. Nessa expulsão vibram os espanto. O nome próprio, articulação do espanto que é, é a
versos em "simpatià' com a origem que as tem expulsado. fonte da verdade, porque bota da proximidade com o inar-
Essa vibração ("Stimmung") é o acorde que liga verso com ticulado. O espanto é uma vivência imediata. Neste sentido
o inarticulado. O verso está em acorde ("stimmt ueberein") é válida a interpretação empirista da verdade.
com o inarticulado. Este clima ("Stimmung") do verso é a Quando o inarticulado se encara pela dúvida, surge o
única forma, embora intelectualmente insatisfatória, pela grito de espanto que resulta em língua. A estrutura da língua
qual podemos conceber a verdade. É intelectualmente insa- é a elaboração, pela conversação, da vibração do espanto. As
tisfatória, porque se processa nas regiões limítrofes do inte- palavras da língua são elaborações, pela conversação, dos
lecto. A verdade é reduzida a um problema existencial de nomes próprios que o espanto articula. Todo verso contém,
autenticidade. Um verso é verdadeiro quando autêntico, in nuce, toda uma língua. Neste sentido é o verso uma
isto é, quando original e em vibração com a origem. Do semente da realidade. É essa semente, porque brota da pro-
contrário, é inautêntico, portanto falso. O verso autêntico é ximidade com o inarticulado. O verso como semente da rea-
a fonte da verdade. A conversação elabora versos autênticos lidade é virtualmente um cosmos. Línguas são cosmoi que
de acordo com a vibração neles contida. Essa vibração é brotaram em versos. As línguas do Ocidente são cosmoi que
convertida pela conversação em regras de língua. As frases brotaram de uns poucos versos contidos nos livros "sagra-
da conversação são certas, quando obedecem a essas regras, dos" judeus e em filósofos gregos. Esses versos originais são
58 59
,....------~~

"sacros", no sentido de cheios de espanto. A conversação Não podemos superar essa realidade altamente insatis-
dilui o espanto, isto é, "profaniza" os versos. A conversação fatória pensando. Mas podemos refletir contra ela. Pode-
ocidental, progredindo pelo declive da dúvida metódica, mos retraçar-Ihe os passos e avançar, contra a sua corrente-
alcançou um estágio de profanação avançada. Afastou o za, até às suas fontes. Em outras palavras: podemos duvidar
intelecto ocidental da proximidade com o inarticulado. A da dúvida da qual ela é realização avançada. Nesse nosso
conversação avançada e profanizada ameaça mergulhar em duvidar reflexivo reencontraremos os versos espantosos que
conversa fiada. Na conversa fiada cessa a elaboração das lhe servem de base. Esses versos são inesgotáveis, porque
palavras derivadas. É uma repetição tediosa de palavras e contêm nomes próprios inexauríveis. O nosso choque com
formas congeladas em chavões estereotipados. Nesse estágio esses versos poderá resultar em conversação nova. Digo
avançado a própria inspiração poética cessa de funcionar mais: poderá resultar em língua nova, embora brotando das
mesmas raízes.
como renovadora de espanto. O intelecto em conversa fiada
não pode ser espantado. Os nomes próprios vertidos pela Essa língua nova da qual estou falando não é uma fic-
poesia são transformados, nesse estágio, imediatamente em ção ad hoc inventada. Está surgindo em nosso redor e
formas rigorosas. É esse o estágio que parece ser a meta ime- começa a desenvolver-se. É a arte nova. Nela e por ela estão
diata do Ocidente. sendo criadas novas categorias do pensamento, portanto
Os sintomas foram enumerados na introdução a este uma nova estrutura da realidade. A própria estrutura fun-
argumento. Urge, enquanto é tempo, uma volta para as damental "sujeito-objeto-predicado" está sendo reformula-
raízes. Urge uma volta para a proximidade com o inarticu- da. Um novo tipo de discurso está sendo elaborado. Nessas
lado. Em outras palavras: urge uma filosofia radical que tentativas poderá ser superada a Idade Moderna, e poderá
será uma crítica das fontes da língua. Uma dúvida da dúvi- ser salva a conversação ocidental do abismo da conversa
fiada.
da portanto.
V - Conclusão. Somos, enquanto seres pensantes, A crise atual do Ocidente não é a primeira. A passagem
produtos da língua e não podemos superá-Ia pensando. da Idade Média para o Renascimento, por exemplo, marca
Somos, enquanto ocidentais, produtos de um grupo de outra. Possivelmente estamos no limiar de um novo Renas-
línguas em estágio de conversação avançado. Não pode- cimento. A filosofia da língua poderá muito bem ser a arma
mos, pensando, ultrapassar essa nossa condição dentro da teórica desse Renascimento.
qual estamos jogados. As línguas ocidentais, em seu estágio
atual, são, de forma categórica, a nossa realidade. Toda
tentativa de quebrar as limitações dessa nossa condição são
metafísica surda e muda. A realidade, tal como as línguas
ocidentais em seu estágio atual a estabelecem em nosso
redor, tem todas as características de uma conversação
avançada. Quase nada nos espanta. O tédio da conversa
fiada é o clima prevalecente. É uma realidade "absurda", no
sentido de afastada das suas raízes. Uma realidade profana.
60 61
Praga, a cidade de Kafka

A civilização é um produto da cidade, pelo menos histo-


ricamente. Os berços da chamada civilização ocidental são
umas poucas cidades do Oriente Próximo. Havia uma rela-
ção ambivalente entre cidade e civilização, uma relação rever-
sível de causa e efeito. A cidade marcava a civilizaçãocom seu
caráter, e era, em troca, marcada pela civilização à qual dera
origem. Neste processo de vaivém, o caráter específico da
cidade e da civilização tornava-se sempre mais pronunciado.
Algumas cidades conservam este poder de criar um esti-
lo específico de pensar, sentir e viver até (ou quase até) os dias
de hoje. Uma delas é Praga. Tudo que brotou das ruas tortas,
às margens do rio torto, e tudo que cresceu, qual trepadeira,
à sombra e como suporte das centenas de torres pontudas, é
produto, testemunho e reafirmação do espírito de Praga.
Kafka é um exemplo recente dessa flora. Torna-se necessária,
para a compreensão do inquietante fenômeno Kafka, desta
procura de Deus através do diabo, uma compreensão de
Praga. Não é uma cidade muito antiga. As suas origens se
perdem, no entanto, nas brumas da lenda.
Uma sibila inspirada profetizou "a grande cidade, cuja
glória toca as estrelas".
Algo deste aroma lendário, sibilino e profético, algo a
um tempo santo e demoníaco, paira sobre a cidade até hoje.
A cidade vibra entre dois pólos: o enorme castelo com sua

63
catedral gótica e torre barroca, e o aglomerado de torres conservam o seu judaísmo como uma espécie de "ponte
góticas da "Velha cidade", erguidas quais lanças de um exér- Carlos" entre os dois povos.
cito contra o céu. As ruas todas correm, como córregos tor- O papel de Kafka como pontífice, como construtor de
tuosos, monte acima ao encontro do Castelo, ou vale abaixo pontes impossíveis, mas realizadas, tem uma de suas explica-
para desembocar na praça central da "Velha cidade". O rio, ções nesta situação dos judeus praguenses. A posição flutuan-
com seu "5" majestoso, forma a divisa entre os pólos. As te e duvidosa do praguense para com a sua "nacionalidade" é
pontes modernas que o atravessam são tentativas inautênti- posta em evidência, cada vez que a cidade é varrida por uma
cas de negar ou diminuir a tensão, são estradas de fuga. tormenta externa. Quando foi ocupada pelo nazistas, grande
Salvo uma, a ponte de Carlos. Essa, a gótica, com suas torres parte da população tcheca redescobriu a sua alma alemã,
e suas estátuas, é o elo impossível, mas realizado, entre caste- quando foi ocupada pelos russos, grande parte da população
lo e igreja, entre monte e vale, entre o rei e o burguês, entre alemã redescobriu suas fontes eslavas. Os judeus, entretanto,
a soberba e a humildade, entre a rua dos alquimistas e a uni- foram praticamente eliminados, e Praga não é mais Praga
versidade, entre o céu e a terra, entre o "Castelo" e a aldeia como o fora no tempo de Kafka.
de Kafka. Esta ponte carrega o trânsito não mais material Praga é uma cidade situada nas fronteiras. Esta frase
(disto se encarregam as pontes modernas), mas espiritual quer ser entendida em todos os sentidos, inclusive no sentido
entre o lado "grande" e o lado "pequeno" de Praga. O lado que os existencialistas dão ao termo "situação de fronteira".
"pequeno", e isto é típico de Praga, é o subúrbio do castelo Uma dessas fronteiras, a nacional, entre três povos, já foi
com os palácios barrocos dos senhores. Lá longe, rio acima, mencionada. Uma outra, a arquitetônica, entre o Gótico e o
erguem-se as ruínas de um contracastelo, mas de um contra- Barroco (saltando, caracteristicamente, o Renascimento), foi
castelo mais antigo que o próprio castelo. São esquecidas, tocada de leve. O Renascimento não encontrou, salvo em
mas continuam no subconsciente da cidade. Quando as cas- poucos edifícios isolados, ponto de apoio em Praga, por estar
tanheiras estão em flor, ou quando os telhados estão cober- em conflito com o espírito da cidade. Mas o Gótico e o Bar-
tos de neve, essa cidade-dialética reveste-se de uma beleza roco, a elevação disciplinada da alma até Deus, com os
singular, resultado de uma luta milenar entre natureza e demônios se escondendo entre as torres da catedral, e a luta
arquitetura, ou, mais basicamente, de uma luta que o espíri- envolta e algo pretensiosa do espírito contra si mesmo, inau-
to humano, trava em duas frentes, contra a matéria e contra têntica talvez em suas convulsões, mas autenticamente reli-
as forças superiores. giosa na sua vontade de forçar o divino, estes dois estilos são
Vista superficialmente, é a cidade resultado e causa de os estilos de Praga. Essa cidade consegue o inimaginável: a
luta entre três povos: o tcheco, o alemão e o judeu. No fusão estética de dois espíritos alheios, e isto não somente no
fundo, no entanto, não há três populações em praga, mas total da imagem da cidade, mas até num único edifício, na
uma só: a praguense. Os alemães de Praga não sabem o catedral gótica de torre barroca. Kafka reúne em si o gótico e
quanto são tchecos, os tchecos não sabem o quanto são ale- o barroco, a fé a demonologia da Idade Média e a dúvida tor-
mães, e ambos não sabem o quanto são judaizados. Os turada e a angústia das guerras religiosas.
judeus de Praga são talvez os mais assimilados entre todos os Outra fronteira que atravessa Praga é a que separa o
judeus do mundo, por se terem assimilado a dois povos, mas Ocidente do Oriente europeu.
64 65
A cidade absorve, sedenta, todas as correntes ocidentais: grado, com qualquer sistema de governo. É uma cooperação
a universidade de Praga é um dos centro intelectuais da Idade oportunista, irônica, cínica, feita com uma reserva mental
Média, o Protestantismo se instala em Praga diretamente da nunca percebida pelo potentado. Num nível mais elevado,
Inglaterra e antes de Lutero, o espírito científico toma conta transparece nas mentes divididas em si mesmas, cientes da trai-
de Praga com Tycho Brahe antes de Kepler, e nos séculos XIX ção recíproca de uma metade da mente contra a outra. Um dos
e XX a cidade marchava na primeira linha dos desenvolvi- mais fortes e trágicos exemplos dessa situação de fronteira é
mentos artísticos e intelectuais do Ocidente. No entanto, ela Kafka. Nele, a força extraordinariamente desenvolvida do inte-
nunca se desliga da vasta correnteza mística do Oriente euro- lecto logo se quebra, no assalto à análise intelectual impiedosa-
peu: os hussitas têm parentesco com os revolucionários mís- mente honesta. A impressão que temos ao ler qualquer página
ticos russos, o rabino Loew, com seu homem artificial, de Kafka, diria até qualquer frase, é a de uma luta interna entre
Colem, é um kabalista judeu precursor talvez do misticismo duas honestidades. A obra de Kafka é fragmentária, porque ele
hasídico do Oriente, os poetas Bezruc e Rilke pertencem, sob se quebra a si mesmo no processo do pensamento.
certo ângulo, à tradição bizantina da "santificação da coisa". Kafka explodiu como bomba retardada. Quando a
A síntese entre Ocidente e Oriente (europeus) tão estetica- explosão se verificou, Praga, no sentido kafkiano, já havia
mente repulsiva na Rússia, e contra a qual já se insurgiu Dos- desaparecido. Os poucos que se tinham influenciado por
toiewski, por senti-Ia inautêntica, foi realidade autentica- Kafka em vida, isto é, a geração de intelectuais judeus pra-
mente em Praga. Kafka é um produto e um realizador dessa guenses, todos estudantes pelo ano de 1910, estavam sendo
síntese, e o era quase conscientemente. O seu interesse pela exterminados nos campos nazistas. O divulgador de Kafka,
literatura iídiche, por exemplo, era como que uma saudade Max Brod, um dos poucos sobreviventes, lançou os seus
por uma parte semi-esquecida do seu próprio espírito. romances e contos num meio estranho.
Mas a fronteira mais característica que passa pela cidade, e A recepção da obra teria surpreendido o próprio Kafl(a.
a que encerra em si todas as demais fronteiras, é a linha que Ela foi aceita como expressão de um espírito isolado, alta-
divide os espíritos, em intelectuais e meditativos. É claro que mente individual, bizarro e "mal ajustado", quando na reali-
esta fronteira existe em todo espírito humano. Mas há, eviden- dade trata-se de uma expressão genial, típica e autêntica do
temente, um clima dentro do qual uma das duas regiões pre- espírito de Praga. A língua dos escritos de Kafka foi conside-
domina. O clima dentro do qual uma das duas regiões predo- rada um alemão sui generis, cheio de palavras inventadas e
mina. O clima de Paris, por exemplo, é eminentemente formas gramaticalmente grotescas. Na realidade, essa língua é
intelectual, e o clima de Kioto eminentemente meditativo. Em o próprio alemão praguense. As palavras "inventadas" são
Praga esses climas coexistem com igual força. A tensão resul- traduções do tcheco. As "formas grotescas" são formas esla-
tante produz um estado de alma e uma maneira de viver, carac- vaso A ironia sardônica e diabólica que pervaga a obra, sem
terizados por um ceticismo, um desespero irônico, e um cinis- prejuízo de uma seriedade, a qual foi considerada sinal do
mo voltado tanto contra o intelecto quanto a intuição, fato caráter desse escritor, é na realidade uma sublimação do
este que não encontra paralelo em nenhuma outra cidade. humor praguense.
Num nível mais baixo, esse estado de alma pode ser observado A autodepreciação, nojo de si mesmo, que é o tema
na prontidão com que o povo de Praga coopera, de bom básico de Kafka, é interpretada como traço quase patológico

66 67
da alma do autor, quando na realidade exprime uma disposi-
ção de uma cidade e civilização voltadas contra si mesmas,
numa mistura de furor suicida e auto-erotismo. O pseudo-
arcaísmo casado ao modernismo de vanguarda, interpretado
como forma poética individual de Kafka, é na realidade o
estilo da cidade medieval industrializada. Os temas aparente-
mente estranhos e exóticos dos romances e contos são na rea-
lidade quase temas tradicionais de Praga. A "carta ao pai", Esperando por Kafka
interpretada como documento clássico do complexo de
Édipo em trajes individuais kafkianos, passou na realidade
por uma camada praguense que lhe deu colorido de fervor e
desespero religioso. A busca sempre frustrada, sempre repeti- Uma obra literária é a articulação de um intelecto. É a
da do absoluto quase alcançado e absurdamente perdido no forma lingüística na qual um intelecto se realiza. Realizan-
último instante, interpretada como religiosidade doentia e do-se, o intelecto participa da conversação geral. Uma obra
característica de uma individualidade extraordinária, é na literária é, portanto, um elo da cadeia da grande conversa-
realidade o último capítulo da história religiosa de Praga. ção que podemos, grosso modo, chamar de "civilização".
Enfim, o radicalmente novo, o revolucionário e original que Como parte integrante da conversação tem a obra literária
o mundo crê ter achado em Kafka, é na realidade a última dois aspectos básicos. Encerra a conversação que lhe prece-
forma genial da mensagem milenar de Praga ao mundo. de. E origina a conversação que lhe sucede.
Não resta dúvida de que Praga não explica inteiramente No primeiro aspecto é uma resposta. No segundo,
o fenômeno Kafka. Há nele um grande substrato mais amplo uma provocação. Há portanto, duas possibilidades funda-
que o faz participar da correnteza da tradição ocidental e mentais de uma apreciação de uma dada obra literária:
humana, e portanto o torna compreensível ao mundo. Há podemos tentar compreendê-Ia como resposta, ou pode-
nele uma superestrutura individual que justifica a nossa mos tentar enfrentá-Ia como provocação. Na primeira ten-
admiração em face de um espírito genial e sofredor de inten- tativa estaremos analisando a obra. Na segunda estaremos
sidade quase insuportável. E há nele uma capacidade visioná- conversando com ela. O campo da primeira tentativa é a
ria e quase profética que explica nossa certeza de estarmos crítica. Nesse campo a obra será compreendida como sín-
diante de um precursor, e não de um epígono. Mas este fenô- tese das provocações às quais esteve exposto o intelecto
meno ocidental e humano, e este fenômeno individual e par- dentro do qual a obra surgiu. O campo da segunda tenta-
ticular, têm um esquema de referência exato: Kafka é pra- tiva é a especulação. Nesse campo a obra será experimenta-
guense. Ele é o cantor de uma cidade e de uma civilização da (erlebt) como mensagem enviada pelo intelecto dentro
que morreram quase simultaneamente com ele. Ele pressen- do qual a obra surgiu, mensagem essa enviada em nossa
tiu-lhe a morte e talvez as tenha transportado consigo para a direção.
eternidade. Os dois campos não podem ser rigorosamente delinea-
dos. A investigação crítica provoca, em nossos intelectos,

68 69
espontaneamente, uma vivência da mensagem da obra. A informado pela gramática dessa língua. Nas traduções em
especulação sobre a mensagem da obra provoca, esponta- outras línguas estes seus pensamentos sofrem uma distorção
neamente, a nossa curiosidade quanto aos elementos que a estrutural, a qual faz com que a simpatia que porventura
tornaram possível. Não obstante, a esses dois campos cor- esses pensamentos traduzidos provocam seja baseada em
respondem duas atitudes (Stimmungen) diferentes. Ao equívocos. Esta dificuldade inerente à tradução é geral, mas
campo da crítica corresponde a atitude da curiosidade. Ao no caso da obra de Kafl(a reveste-se de uma importância
campo da especulação corresponde a atitude da simpatia no descomum. O alemão literário, o "alto" alemão, é uma lín-
sentido grego da palavra ("co-vibração"). Esta palavra "sim- gua menos homogênea que a maioria das outras línguas
patia" brotou do húmus da música. Consideremos, como civilizadas. Com efeito, é uma espécie de "língua franca"
exemplo, a viola d'amore. Nela certas cordas vibram em entre os dialetos e reflete o dialeto da região do autor,
simpatia com as cordas tocadas pelo arco. Quando nos embora de maneira atenuada.
aproximamos da obra de Kafka, peço ao leitor que tente Kafka escreve a língua de Praga, a qual representa um
assumir essa atitude de simpatia, que tente transformar o "alto" alemão sui generis. É uma língua literária à qual não
seu intelecto em cordas que vibrem em simpatia com aque- corresponde nenhum dialeto autêntico, já que o grupo que
las tocas por Kafka. É um esforço difícil. A obra de Kafka dela faz uso é formado por intelectuais ou pseudo-intelec-
não é "simpáticà' no uso corrente da palavra. Entretanto, tu ais isolados em um meio eslavo. Na Praga das chancela-
ela parece pedir a nossa simpatia num sentido que não é rias do Imperador Carlos IV surgiu aquela língua oficial e
exclusivamente musical. Não é acaso que o instrumento artificial que deu origem ao "alto" alemão moderno. Neste
que dei como exemplo se chama viola d'amore. sentido é o alemão de Praga o mais "puro", isto é, o mais
Duas são as dificuldades que nos confrontam ao ten- estéril e seco. Em compensação, sofre essa língua o impacto
tarmos abrir as nossas mentes à mensagem da obra de contínuo do tcheco, com sua estrutura inteiramente estra-
Kafka. A primeira diz respeito à forma que essa mensagem nha ao alemão. A língua alemã de Praga absorve essa estru-
tomou, isto é, à linguagem. A segunda diz respeito à exces- tura parcialmente, sem jamais poder assimilá-Ia. O resulta-
siva proximidade da obra kafkiana no tempo, proximidade do é que essa língua alia, de maneira grotesca, esterilidade
essa que nos impossibilita uma tomada de posição, à distân- oficial com barbarismos bizarros. Dou dois exemplos, um
cia. Torna-se necessária a consideração dessas duas dificul- para ilustrar a artificialidade e outro para ilustrar o barbaris-
dades antes da contemplação da mensagem propriamente mo dessa língua, muito embora esses exemplos percam, na
falando. Isto porque as dificuldades caracterizam a própria I tradução para o português, parte de sua ridicularidade: Ein-
mensagem. rueckend gemacht (alistando-se = chamado às armas) e Wás
A obra de Kafka está escrita em alemão. Isto não é uma ist dir in das hinein? (que é para ti nisto para dentro? = não
circunstância fortuita, mas é um dado fundamental da sua
mensagem. Os pensamentos que perfazem a obra de Kafka
I
XI
te intrometas). Formas como estas abundam na obra de
Kafka.
JI Graças a esta linguagem adquire a mensagem de Kafka
são frases da língua alemã. Como tais, são esses pensamen-
tos regidos pela estrutura da gramática alemã. Kafka tinha aquela atmosfera de pedantismo ridiculamente absurdo que
pensamentos alemães e tudo que pensava estava, a priori, lhe é tão característica. A língua de Praga oscila entre o pólo
70 71
do artificialismo pedante (representado, historicamente, clima árido e estéril da língua burocrática no Castelo e no
pela administração austro-húngara) e o pólo do barbarismo Processo, ou o clima da conversa familiar e burguesa na
ridículo (representado, historicamente, pelo oficial subal- Metamorfose, para dar dois exemplos. Desta maneira abre
terno tcheco semigermanizado, por exemplo, Svejk). Estan- Kafka um abismo esteticamente intransponível entre a
do os pensamentos de Kafka informados, a priori, por essa forma e o significado das suas frases. Automaticamente a
língua, oscilam, automaticamente, nessa mesma tensão dia- sua mensagem assume o caráter de um código, ela é cifrada.
lética. Da superação dessa tensão resulta aquela ironia sar- Enquanto que a mensagem é de uma trágica quase insupor-
dônica que chamamos, via de regra, de kafbana. tável, como veremos mais adiante, o código é ridículo e
Embora essa ironia seja típica do pensamento alemão grotesco. Da incongruência entre código e mensagem surge
praguense, ela é levada a uma potência nunca dantes alcan- a vivência do absurdo que Kafka nos proporciona.
çada dentro da obra de Kafka. Com uma lucidez quase O código empregado por Kafka serve para mascarar a
mórbida Kafka penetra o núcleo do seu próprio pensamen- camada de significado de sua mensagem. Embora não seja
to, núcleo que lhe é imposto pelo caráter da sua língua, e muito difícil decifrar esse código, a sua absurda incon-
utiliza conscientemente a ironia fundamental e antes gruência com a mensagem faz com que persista uma certa
inconsciente, para formular a sua mensagem. Utiliza auten- dúvida quanto à validade da mensagem decifrada. Kafka
ticamente o clima de inautenticidade que lhe é imposto certamente pretendia provocar essa dúvida na mente dos
pela língua inautêntica na qual pensa, com a finalidade de seus leitores, e, muito provavelmente, nutria, ele próprio, a
destruir essa inautenticidade, destruindo-se a si mesmo mesma dúvida. Creio que temos aqui um exemplo de auto-
nesse processo. Trata-se, portanto, de uma situação irônica ironia raras vezes repetido na história do pensamento
ao extremo. A inautenticidade fundamental do pensamento humano. Um projeta (porque Kafka é um profeta, embora
hfkiano é a fonte de sua suprema autenticidade, a qual é, heterodoxo, da tradição judaica) que confessa sub-repticia-
por isso mesmo, auto destruidora. mente a inautenticidade de sua mensagem cifrada, tornan-
O método empregado por Kafka para alcançar estas do-a, por isso mesmo, duplamente autêntica. Para recorrer-
alturas da ironia é o da transposição da sua língua para mos a uma imagem, diria que Kafka não se esforça por
camadas de significado, nas quais a sua inautenticidade se ;1
esconder a chave do seu código, mas confessa, sub-repticia-
11

torna berrante. A língua tem muitas camadas de significa- 11


mente, que se trata, possivelmente, de uma chave falsa.
do, e a cada uma corresponde um clima apropriado. Dou, li Resumindo a primeira dificuldade, a dificuldade lin-
'i
como exemplos, as camadas da linguagem conversacional, güística, do acesso à mensagem da obra de Kafka: a men-
científica, e poética. Em cada uma dessas camadas a língua sagem está vazada num alemão de Praga burocrático e
significa uma "realidade" diferente. A camada que Kafka familiar, totalmente inapropriado ao significado. Entre-
escolheu para dentro dela formular a sua mensagem é uma tanto, ironicamente, é essa língua inapropriada a própria
que normalmente chamaríamos de "teológica". Isto é: as fonte dessa mensagem, já que informou a priori todos os
suas frases significam uma "realidade" da qual nos falam as pensamentos de Kafka. Com essa afirmação absurda, tão
religiões. Entretanto, em Kafka o clima da linguagem está típica do mundo de Kafka, passo a considerar a segunda
totalmente inapropriado à sua camada de significado. É o dificuldade.

72 73
Quando um intelecto lança uma mensagem em dire- Os problemas que o perseguiam e torturavam care-
ção da conversação geral, essa mensagem é submetida a um ciam de significado para os que com ele vivam. Alguns des-
processo de desgaste pelos intelectos que participam da ses problemas começam a adquirir hoje um significado.
conversação, que conversam a mensagem. Trata-se de um Por exemplo: a situação de pais que fogem à persegui-
processo complicado e de análise difícil. Estamos tentados, ção impessoal de funcionários insignificantes, procurando a
de um lado, a encará-l o como um processo de purificação, morte certa, e abandonando os filhos aos perseguidores.
de modo que a mensagem se torna sempre mais clara. Por Outro exemplo: a situação do homem que perdeu a sua
exemplo: um judeu ortodoxo afirmaria talvez que a mensa- individualidade e tornou-se parafuso dentro de um apare-
gem da Bíblia se torna mais clara à medida que progridem lho. Há, entretanto, uma série de situações dentro da obra
os comentários em torno dela. De outro lado estamos ten- de Kafka para as quais não temos vivência e as quais, embo-
tados a encarar esse processo como uma deturpação da ra as possamos compreender intelectualmente, não pode-
mensagem. Por exemplo: os protestantes da Reforma pro- mos sentir autenticamente. Essas situações agrupam-se,
curavam a mensagem pura da Bíblia, tentando libertá-Ia todas elas, em redor de uma situação mestra: a do homem
das impurezas dos comentários subseqüentes. Podemos, esquecido pelo aparelho administrativo onipotente, mas
ainda, encarar esse processo como uma modificação cons- relaxado e incompetente, homem que se esforça inutilmen-
tante da mensagem, que passa a ser considerada coisa viva, te e sem o mínimo sentido de revolta por fazer-se lembrado.
no sentido que os antigos tinham em mente ao dizer habent Não é preciso, hoje em dia, de muita fantasia para imagi-
jàta libelli. Por exemplo: a mensagem de Aristóteles signifi- narmos essa situação como uma das problemáticas centrais
cava uma coisa na Antigüidade, outra na Idade Média, do futuro imediato. Entretanto, uma coisa é imaginar, e
outra no Humanismo, e outra no Romantismo. Qualquer outra é viver uma situação. Kafka não é um escritor utópi-
que seja a nossa opinião quanto ao processo ao qual uma co, ele não escreve science jiction. Ele vive e sofre autentica-
mensagem é submetida no curso da conversação, uma coisa mente as situações que articula, e estas são, portanto, con-
é certa: a mensagem tem, por sua própria natureza, um des- temporâneas com ele. Não o são, entretanto, conosco.
tinatário, um destino, e não está completa, não se realizou, Também neste sentido Kafka é profeta. É por esta razão que
antes de ter alcançado o destinatário, antes de ter sofrido o a mensagem de Kafka é prematura, como o era a mensagem
seu destino. O que pretendo dizer com estas considerações de Jeremias para os habitantes da Jerusalém ainda não des-
é que a mensagem que Kafka lançou em nossa direção truída, embora ameaçada de destruição.
ainda não nos alcançou em cheio. Considerada do nosso Entretanto, devo me apressar em acrescentar a estas
ponto de vista, do ponto de vista dos interlocutores de considerações a seguinte:
Kafka, a sua mensagem é prematura. As razões dessa afir- As situações proféticas que encontramos na obra de
mativa são as seguintes: Kafka fazem parte do código kafkiano, são portanto másca-
Kafka vive num mundo cuja problemática pouco ou ras do significado real da mensagem. Embora tenham a sua
nada tem a ver com a problemática dos seus contemporâ- validade mesmo tomadas ao pé da letra (e nisto reside mais
neos, razão por que não foi "compreendido" em seu um aspecto da sua ironia), adquirem o seu verdadeiro
tempo. impacto quando decifradas. Talvez seja possível para nós a
74 75
vivência da mensagem decifrada, sem que possamos viver a inapropriada. Dada a completa indiferença da força divina
mensagem em código. Com esta pergunta, que devo deixar em face do homem, este mau funcionamento não tem a
em aberto, aventuro-me a uma aproximação da mensagem mínima importância. Entretanto, neste mau funcionamen-
propriamente dita da obra de Kafka. to reside a única esperança do homem para escapar ao cas-
Essa mensagem, tal qual aparece pelo prisma das duas tigo justo que o espera. Sabendo, muito embora, disto, o
dificuldades mencionadas. Destorcida e duvidosa portanto, homem, absurdamente, se esforça em apressar o funciona-
diz respeito à situação do homem em face das forças que o mento do aparelho divino. Nesse esforço frustrado reside a
governam, à situação dessas forças em face do homem, e diz finalidade da vida humana. Assim devemos compreender o
respeito ainda a essas forças em si. Se tentarmos reduzir essa ensinamento mestre de Kafka: "Passei a minha vida a com-
mensagem a umas poucas frases, coisa com a qual Kafka bater o desejo de acabar com elà'.
evidentemente nunca concordaria, chegaríamos aproxima- A teologia que esta mensagem descortina diante da
damente ao resultado seguinte: o homem vive em estado de nossa visão estarrecida tem vários pontos de contato com as
culpa permanente em face das forças superiores. Sabe da teologias das nossas religiões tradicionais, mas se distingue
sua culpa e da justiça de qualquer castigo que essas forças delas quanto ao seu clima. O clima da vida humana é o da
porventura lhe imporão, mas não sabe da natureza dessa angústia não mitigada por qualquer esperança, e o clima
culpa. Procura o contato com essas forças, não para pedir das hostes divinas é o nojo. A angústia humana não é, pro-
perdão, mas para esclarecer a sua culpa, para "saber". Essa priamente, um conceito novo, embora raras vezes tenha
procura tem excelentes possibilidades de êxito, já que as sido tão veementemente pregada como em Kafka. O que
forças superiores são, aparentemente, muito próximas. me parece ser revolucionário e epocal (no sentido exato
Entretanto, por motivos fúteis e absurdos, o êxito da dessa palavra) é o conceito do nojo divino. Em face do nojo
procura é frustrado continuamente. Intimamente o divino a nossa angústia assume, realmente, proporções
homem sabe sempre da futilidade dos seus esforços para gigantescas, incomparavelmente maiores do que as da
encontrar as forças superiores, e o sabe a despeito de toda angústia em face da ira ou do ciúme divino. É preciso sor-
evidência em contrário. Persiste, entretanto, na procura, ver esse nojo até o fundo, se quisermos compenetrar-nos da
porque prefere dar ouvidos à evidência, e não à sua convic- teologia de Kafka.
ção íntima. As forças, tão próximas e tão inalcançáveis, Não é o nojo que Deus sente da sua criação, este já era
mantêm em face do homem uma atitude de indiferença e conhecido dos antigos profetas ("somos vermes diante de
desprezo. Consideram o homem culpado (nisto estão de Ti"). É o nojo que Deus sente por Si mesmo. A tal ponto
acordo com ele), mas não lhes vale a pena castigá-Ia. parece ser blasfêmia essa teologia, que começamos a com-
Ele próprio provoca o castigo com sua insistência de preender e simpatizar com os esforços de Kafka de mascará-
conhecer a sua culpa. A suspensão provisória do castigo Ia em códigos.
divino (e por que não usar essa palavra?) não é conseqüên- Os pontos de contato com as teologias tradicionais
cia da Sua misericórdia, mas de Sua superorganização. A são muitos e evidentes. É por esta razão que podemos con-
força divina funciona devagar e mal, porque é complicada siderar Kafka um profeta judeu, embora heterodoxo.
demais e administrada numa rotina que lhe é totalmente Temos aqui, para citar somente um exemplo, o conceito
76 77
do pecado original. Todos são culpados. Entretanto (e isto
é característico), o pecado original é o estado primitivo,
I Kafka ensina que as forças que nos governam são indiferen-
tes e desinteressadas na nossa sorte. Mas não se trata da indi-
"natural" do homem, não é conseqüência de qualquer ato j ferença e do desinteresse das forças cegas da natureza, as
humano. Com efeito, ainda não comemos do fruto da y
quais substituem a divindade na mente dos ateus ingênuos
árvore da sabedoria, e são justamente os nossos esforços de do século passado. Trata-se de uma indiferença cheia de des-
cometer esse crime que são continuamente e absurdamen- prezo, e as forças que a nutrem para conosco a demonstram
te frustrados.
brincando conosco absurdamente e sem regra, para não
A bem dizer (e nisto reside, creio, a suprema ironia), dizer idioticamente. Esta ordem de idéias não concorda nem
vivemos ainda no Paraíso, num Paraíso kafkiano, bem com o conceito teológico tradicional da providência divina,
entendido. Numa teologia assim não há, evidentemente, nem com o conceito cientista das leis da natureza, mas con-
lugar para a salvação e o Salvador, já que a queda ainda não corda com a nossa vivência íntima da estupidez e absurdida-
aconteceu. O próprio conceito "salvação" carece de signifi- de das nossas desgraças. Kafka ensina que a forças superiores
cado dentro do contexto da obra de Kafka.
são uma máquina pedante, corrupta, mal conservada e
Uma enumeração dos pontos de contato entre a men- nojenta. Esta idéia da Divindade é igualmente repulsiva e
sagem da obra de Kafka e a teologia tradicional, por fasci- grotesca aos olhos de um crente como aos olhos de um ateu.
nante que possa ser, seria, no entanto, um exercício fútil. A Concorda, entretanto, com a vivência íntima que temos das
força de convicção que essa mensagem carrega consigo forças que nos regem.
nada tem a ver com exercícios deste tipo. Kafka nos con- ;\ Senão, por que rezamos, a não ser para corromper uma
vence (com todas as reservas que continuamos nutrindo, e in,stância inferior da hierarquia Divina? Por que fazemos
que ele próprio, certamente, continuava nutrindo) porque promessas a nós mesmos, senão para enganar um suboficial
a visão que ele descortina concorda com a nossa vivência í celeste, encarregado vagamente do nosso caso, mas que o
mais íntima. Trata-se de uma vivência tão penosa que a I acha aborrecido e tedioso demais para interessar-se real-
relegamos ao esquecimento, mas ela continua dormente em mente? Por que praticamos boas obras, senão para que
nosso espírito. Kafka veio para despertá-Ia. Consideremos o obtenhamos um lançamento a crédito na nossa conta-cor-
seu impacto: rente celeste, temendo, ao mesmo tempo, que algum conta-
Kafka ensina que a vida humana é uma procura frustra- dor incompetente faça um lançamento errado? Não é
da do saber. Mas não se trata de uma procura orgulhosa, ou somente a nossa mente individual que opera intimamente
de um saber que proporcione poder. Nada tem a ver com a com o conceito kafkiano da Divindade, mas as próprias
Hybris dos gregos. A vida humana nada tem de heróica. O
homem não é rebelde. A procura à qual se dedica é um
li religiões tradicionais o nutrem. Que outro significado
podem ter, por exemplo, rezas do tipo "Ora pro nobis", a
tatear dócil e humilde, e o saber que procura é o da sua pró- não ser "Não te esqueças de rezar por nós, já que és perfei-
, ./ 'I .
pria perdição e futilidade. Esta ordem de idéias não concor- tamente capaz de esquecer"?
da com a imagem do homem que geralmente estamos acos- Enfim, a força da convicção que a mensagem de Kafka
tumados a projetar, mas concorda com a vivência íntima tem, não provém nem da razão, nem da fé, mas da vivência
que temos de nós mesmos nos momentos de recolhimento. imediata.
78 79
Se a mensagem de Kafka se resumisse em pensamentos absurdamente, a mesma caminhada, toma, novamente, a sua
do tipo acima considerado, poderíamos fugir à sua análise própria reflexão por Deus (a despeito de sua convicção em
impiedosamente autêntica da existência humana, refugian- contrário), recomeça a sua obra sisífica. Com a diferença que
do-nos na fé religiosa. Mas a mensagem não se resume nes- toma, agora, esse "novo" Deus por uma instância hierarqui-
ses pensamentos. Ela tem, pelo contrário, uma dimensão camente superior à primeira. O progresso do pensamento é,
inarticulada e inarticulável, a qual não permite essa fuga na portanto, o caminho para dentro da hierarquia do nada.
fé religiosa no sentido tradicional, porque engloba e supera Esta me parece ser, in nuce, a mensagem de Kafl{a: o
essa fé. A mensagem de Kafka não é anti-religiosa, mas Deus pedante, superorganizado, ridiculamente falível, e
passa pela religião e a ultrapassa sem abandoná-Ia. Tentan- que tem nojo e tédio de si mesmo, não passa de uma série
do articular essa região na qual a língua deixa de funcionar, progressiva de reflexões do pensamento humano sobre o
terei que recorrer a aproximações. Essa dimensão da mensa- nada. O progresso do pensamento, e o progresso da vida
gem de Kafka não pode ser autenticamente pensada, mas humana, é um progresso rumo ao nada, e passa por uma
tão somente intuída: escala hierarquicamente organizada de vivências do nada.
A mensagem de Kaflzatransporta o nosso pensamento O nojo e o tédio são o lado avesso da angústia, como Deus
para aquela camada rarefeita que é chamada pelos místicos é o lado avesso do pensamento. Unia mystica é o encontro
de unia mystica. É a camada dentro da qual, de acordo com entre nojo e angústia. Esse encontro é a vivência autêntica
o testemunho dos místicos, pensamento e pensado, "alma" do pensamento simultâneo dos dois princípios nietzschia-
e "Deus", se fundem. nos: "Tudo é vontade do poder" e "o eterno retorno do
Kafka, pelo contrário, testemunha a inautenticidade e sempre idêntico".
a absurdidade desse fundir-se. A vivência kafkiana concor- Kafl{aé a existencialização de Nietzsche.
da com os místicos quanto ao sentido da vida: é a procura Compreendemos, agora, a razão profunda do código
de Deus. Diverge, entretanto, quanto à situação final dessa cifrado, no qual a mensagem de Kafka é vazada. Kafka se
procura: Deus, quando encontrado, revela-se como sendo esforça por articular o inarticulável, por pensar o impensá-
nada. No lugar no qual a fé postula Deus, a vivência kafkia- vel. Trata-se, portanto, de um esforço evidentemente
na descobre o abismo do nada. O pensamento, no seu absurdo. O código, com sua ridícula incongruência com a
avanço rumo a Deus, chega a um ponto no qual é tomado mensagem, com sua absurda incompatibilidade com a
de uma vertigem, porque percebe, repentinamente, que tarefa que lhe foi confiada, torna, ironicamente, viável o
Deus não passa de uma reflexão desse próprio pensamento esforço. O inarticulável não está sendo articulado, o
na superfície calma e abissal do nada, à beira do qual o pen- impensável não está sendo pensado, mas algo totalmente e
samento agora se encontra. ridiculamente diferente está sendo articulado e pensado
Agora, nesta vertigem, estando vis-à-vis du rien o inte- que faz viver no leitor o impensável e inarticulável, por
lecto tem a vivência destruidora da futilidade total do sentido assim dizer por contraste. A mensagem de Kafl{a é uma
da vida, e da futilidade total de "Deus", desse seu espelho. parábola, como o foram as mensagens dos profetas de
Esta é a vivência autêntica da unia mystica de acordo com Israel, e neste sentido Kafka é um elo da cadeia da tradição
Kafka. E o intelecto, tendo vivido essa vivência, recomeça, judaica. Mas é uma parábola absurda, e por isso mesmo
80 81
consegue provocar no leitor "simpático" a vibração, a
vivência do absurdo.
Embora se trate de um autor recente e que poderia
ainda estar vivo, a sua mensagem não nos chega diretamen-
te, mas por intermédio de um discípulo e possivelmente
exegeta, por intermédio de Brod. Também esta circunstân-
cia, aparentemente casual, é absurda. Ela aumenta a nossa f~
dúvida quanto à autenticidade da mensagem. Do funcionário
Assim, duvidosa, irônica e absurda, a mensagem foi
lançada em nossa direção, para que a ela respondamos
1
como melhor pudermos. O desafio foi lançado. Não se
pode dizer que nos tenhamos saído com muito brilho em É lugar-comum que a mente humana não consegue
nossas tentativas de resposta, até agora. Essas tentativas acompanhar o progresso. Os exemplos dessa afirmativa
cobrem uma gama de saídas de fuga, gama essa que estamos abundam. Os engenhos nucleares transferiram as guerras
acostumados a chamar de "existencialismo". Incluem res- do campo da política internacional para o campo do Apo-
postas tão diversas como a de um Sartre e a de um Buber. calipse, e a política internacional é incapaz de assimilar esse
Em grande parte não são respostas conscientes a Kafk,:a. fato. O desenvolvimento da capacidade produtiva da
Mas o clima no qual se desenvolvem é o clima kafkiano, e indústria e da agricultura é tal que um único país (por
as categorias de pensamento são categorias kafkianas. exemplo os Estados Unidos) poderia suprir em futuro pró-
Entretanto, quer-me parecer que todas as respostas até ximo toda a humanidade, e os economistas estão presos à
agora oferecidas são tentativas de uma volta à religiosidade mentalidade de carência de produtos. Os meios de comuni-
tradicional ou ao ateísmo, voltas portanto impossíveis para cação estão eliminando distâncias, e todo um continente (a
quem realmente assimilou a mensagem kafkiana. São fun- África) está sendo fragmentado anacrônicamente em esta-
damentalmente inautênticas, são fugas. Mas o desafio kaf- dos "soberanos". Já existem métodos mecânicos e químicos
kiano precisa ser aceito autenticamente, sob a pena de se que podem provocar qualquer estado psíquico, inclusive a
perder a grande conversação que é a civilização, na comple- "felicidade" (por exemplo a propaganda subliminar e a mes-
ta futilidade. Esperando por uma resposta autêntica a calina), e quase ninguém está se dando conta desse fato ter-
Kafka, estamos, portanto, ainda esperando pela realização rível. A física nuclear abriu fontes inesgotáveis de energia, e
transformou o trabalho físico em comodidade tão barata
completa de sua mensagem. Estamos esperando por Kafka.
quanto o é o ar, e a sociologia ainda não vislumbrou o fim
do homo jàber. A cibernética e a eletrônica estão produzin-
do computadores que dispõem de uma memória e de uma
capacidade de planejamento infinitamente superior à
humana, e a pedagogia ignora este fato. A auto mação subs-
titui a automatização e elimina o fator humano tanto do

82 83
setor produtivo quanto do administrativo, e as virtudes
significado dessa frase um pouco difícil mais adiante. O fun-
"laboriosas" humanas, como "aplicação" e "iniciativa" con-
cionamento do aparelho é um movimento das partes do
tinuam valorizadas positivamente. Em síntese: a mente
aparelho. No caso do computador, por exemplo, é o movi-
humana é incapaz de compreender (e muito menos de
mento de partículas elétricas, de fitas magnéticas, de cartões
aproveitar) o progresso que ela própria desencadeou tão
levianamente. perfurados e de entidades que chamei de "funcionários" no
título deste artigo. No caso do torno são as engrenagens, as
O que falta, com efeito, é uma visão abarcadora da
alavancas e os funcionários que se movimentam. No apare-
cena da atualidade, a partir da qual uma análise mais minu-
lho administrativo movimentam-se papéis, equipamentos e
ciosa da nossa situação possa ser feita. O que falta é uma funcionários no processo do funcionamento. Esse movi-
distância irônica que eleve a mente contempladora por mento do aparelho é circular, se visto de dentro, e linear, se
cima do turbilhão dos acontecimentos. É uma filosofia que visto de fora. Visto pelo cartão perfurado, ou pela roda de
falta. Pode objetar-se que o existencialismo é uma filosofia
engrenagem, ou pelo papel de ofício, ou pelo funcionário, é
neste sentido, já que procura analisar diversos aspectos da o aparelho um sistema fechado que gira sobre si mesmo.
situação na qual nos encontramos. O presente artigo dará Visto de fora o aparelho se apresenta como um vórtice den-
um exemplo, a meu ver fundamental, da insuficiência das
tro do qual se precipitam estatísticas, ou barras de ferro, ou
análises até agora ensaiadas. Para o existencialismo tem a
dinheiro, e do qual jorram informações, ou parafusos, ou
situação humana a forma seguinte: o homem está lançado projetos para estradas de rodagem. Visto de fora o aparelho
em meio de circunstância; essa circunstância forma o seu
não passa portanto de uma função de um super-aparelho.
horizonte e consiste de objetos e de outros homens. Defen-
Mas é justamente essa visão de fora que o funcionário
derei a tese de que essa forma de situação não se aplica a um nunca poderá alcançar, isto é, se for funcionário perfeito. Está
novo tipo de situação que se está tornando sempre mais fre- inteiramente englobado pela situação, e não pode superá-Ia.
qüente. Nesse novo tipo o centro é ocupado pelo aparelho, Movimenta-se e age em função do aparelho. Superar uma
e o horizonte é constituído de funcionários que funcionam situação é uma característica do homem. É neste sentido que
em função do aparelho. Reluto com designar o funcionário
dizemos que o homem "existe", isto é, "ek-siste" (supera). O
pelo termo "homem", já que se trata de um novo tipo de ser funcionário não "existe" neste sentido do termo. É por isto
que está surgindo. i
1I

que relutei em chamá-Ia de "homem". Para o funcionário per-


Descreverei a situação, para depois procurar interpretá- feito o aparelho tem plena autonomia. É um sistema fechado
la. No centro está um aparelho, por exemplo um computa- J sobre si mesmo. Não se pode falar em "finalidade do apare-
dor, ou uma máquina automática de tipo material (tôrno), lho" do ponto de vista do funcionário, porque a finalidade do
ou ideal (repartição de um aparelho administrativo). O apa- aparelho está no além da situação, portanto no transcendente.
relho funciona. Não pretendo aprofundar-me no conceito
Para o funcionário a pergunta pela finalidade do aparelho em
da função, já que isto significaria um desvio talvez pouco função do qual ele funciona é uma pergunta metafísica no
agradável pelo terreno da matemática. Direi apenas que fun- sentido pejorativo do termo. Carece de significado.
cionar é um processo no qual variam os valores das entida-
Em conseqüência são os movimentos do funcionário
des empenhadas no funcionamento. Procurarei elucidar o
(aquilo que podemos chamar de "vida do funcionário")
84
85
caracterizados pela circularidade. A vida do funcionário ontológica mesma o funcionário exerce função, isto é: o
gira em círculos em redor do aparelho. É o eterno retorno funcionário é uma propriedade, um atributo do aparelho.
do sempre idêntico, mas que não é totalmente eterno, por- O funcionário não tem propriedade, ele é propriedade.
que o funcionário denotará, após alguns milhares de ciclos, Como a propriedade nunca se confunde com a substância,
falhas no seu funcionamento. É o cansaço do material que o funcionário não se confunde com o aparelho. O progres-
faz com que o funcionário seja "aposentado", isto é, relega- so do funcionário reside justamente nisto: tornar-se pro-
do para uma situação sem centro. Nessa situação, o funcio- gressivamente propriedade mais valorosa.
nário, dá ainda algumas voltas "em ponto morto", para O método do progresso do funcionário é sua adapta-
depois deixar de funcionar em definitivo.
ção ao aparelho. Há várias formas de adaptação, mas men-
Os círculos que o funcionário descreve em redor do
cionarei apenas uma: a da especialização progressiva. Nela o
aparelho variam quanto à freqüência da rotação e quanto funcionário se adapta a uma parte específica do aparelho.
ao raio que os separa do centro. Um funcionário bem inte-
Com essa adaptação o funcionário adquire um papel espe-
grado no aparelho gira com crescentes freqüências e proxi- cífico no conjunto do processo do funcionamento, isto é,
midades do aparelho. O funcionário "avança" e "progride". algo que se parece, de longe, com a "pessoa". O especialista
Esse seu progresso varia em função do aparelho, e, na é um funcionário valioso, porque se assemelha a uma pes-
medida que avança, aumenta o seu valor no conjunto do soa, e se destaca assim do anonimato.
funcionamento. Este é o significado da frase um pouco Surge, na situação que descrevi, o problema da liberda-
difícil que prometi elucidar quando falei da função como de, isto é, o problema da escolha entre alternativas. É óbvio
conceito. A freqüência e o diâmetro dos círculos em redor
que o funcionário não pode escolher, já que é propriedade
do aparelho são a medida de valores do funcionário: são
do aparelho. Mas está em atividade, "funciona", e dá por-
sua norma. Valores que não se adaptam a essa norma não tanto a impressão e a ilusão de tomar decisões, especial-
serão admitidos, sem percebidos. A meta do movimento
mente porque ainda estamos atrasados e confundimos fun-
do funcionário (que chamei um tanto eufemisticamente cionário com homem. E os "altos" funcionários, em
de "vida") é o círculo mais estreito. Funcionários que especial, criam em nós a ilusão de se movimentarem com
giram em círculos estreitos e em freqüências altas, isto é, fi
liberdade. Mas os seus movimentos exprimem apenas a
funcionários que freqüentam círculos na proximidade "vontade" do aparelho. Essa "vontade" do aparelho é a rea-
imediata do aparelho, são funcionários plenamente realiza- lização automática do projeto, de acordo com o qual os
dos. Se o aparelho for muito grande, e o número de fun- I aparelhos foram projetados. Não é "vontade" no sentido
cionários muito elevado, poucos funcionários estarão tão
humano do termo. É por isto que as decisões dos funcioná-
bem adaptados a ponto de poderem realizar-se inteiramen-
rios são, necessariamente, inumanas. O aparelho e sua pro-
te. Esses poucos (por exemplo, presidentes de aparelhos priedade, o funcionário, não podem ser julgados com nor-
administrativos comerciais ou políticos) serão confundidos
mas humanas, já que se trata de um novo tipo de ser em
pelos muitos com o aparelho mesmo. Mas trata-se de uma atividade.
ilusão de ótica criada pela distância, já que o funcionário A situação que procurei esboçar é idealizada. Ainda não
jamais se confunde com o aparelho. Por sua definição foram realizados aparelhos autônomos nem funcionários
86
87
perfeitos. Os aparelhos mais autônomos da atualidade ainda nossa capacidade. Podemos, pela filosofia, superar a auto-
exigem um fator humano para dar-Ihes impulso e para pro- nomia e a automaticidade do progresso e, de fora, talvez
gramá-Ios. E os funcionários mais perfeitos da atualidade influir no seu rumo. Não sei se podemos ainda fazê-Io, mas
ainda conservam vestígios do humano. Mas é óbvio que podemos pelo menos tentá-Io.
aparelhos autônomos são perfeitamente realizáveis e que Para que essa nossa tentativa tenha sentido, é necessá-
serão realizados pela própria força do progresso, o qual é em rio que saibamos, pelo menos aproximadamente, que
última análise, um aparelho em busca automática de auto- rumo queremos que o progresso tome. É necessário que
nomia. E é igualmente óbvio que funcionários perfeitos tenhamos valores. O existencialismo falhou, a meu ver,
serão realizados, já que os vestígios do humano que ainda duplamente. Não conseguiu transcender a situação, e não
conservam entravam o seu funcionamento. A situação que conseguiu formular valores. Nós, no Brasil, estamos, nesse
descrevi é idealizada, mas será realizada em breve. A trans- sentido, em situação privilegiada. Somos "subdesenvolvi-
formação total daquilo que ainda é natureza e sociedade em dos". O progresso, cujos aspectos apontando o aparelho e
aparelho, e a transformação total daquilo que ainda é huma- o funcionário procurei esboçar, está aqui atrasado. Esta-
nidade em funcionalismo, é uma questão de tempo. Aliada a mos em situação transcendente pela mera posição geográ-
outros fatores, alguns dos quais mencionei no primeiro fica que ocupamos. Não é uma transcendência das mais
parágrafo do presente artigo, modificará essa transformação elegantes, mas serve como ponto de partida. Podemos por-
inteiramente
esse fato. a cena do mundo. Creio que é preciso encarar tanto contribuir, talvez significativamente, para elaboração
de uma filosofia que formule valores e aponte rumos ao
O Processo, de Kafka, descreve um estágio um pouco progresso.
mais adiantado do processo de transformação que tenho
em mente. Nesse estágio o aparelho já é onipresente, mas
seu funcionamento ainda é falho. E a humanidade já se
transformou em funcionalismo, mas K. ainda conserva ves-
tígios do humano. Será portanto triturado, automática e
inumanamente, pela engrenagem do aparelho. E acha justo
que assim seja, porque já não consegue transcender o apare-
lho. Mas a sensação que nos invade ao contemplarmos o
aparelho em seu funcionamento é a sensação do absurdo.
Ainda nos rebelamos (e não nos rendemos como K.) por-
que ainda somos parcialmente humanos, e ainda temos
parcialmente personalidade. Com essas propriedades que
ainda temos, ainda conseguimos precariamente transcender
a situação na qual fomos lançados. Ainda "existimos" parcial
e precariamente. Dada essa forma de ser que ainda temos,
podemos ainda fazer filosofia. E há uma esperança nessa
88
89
Em louvor do espanto

Camus ensina, no Mito de Sísifo, que há somente um


único problema fundamental: Por que não me mato? A
própria formulação dessa pergunta caracteriza, a meu ver,
uma situação existencial que proponho seja chamada e defi-
nida como "situação atual", tanto em seus aspectos indivi-
duais como coletivos. Pressupõe essa formulação uma desi-
lusão total com todos os valores e uma indolência vital e
intelectual que transforma o suicídio em única obra que
possivelmente valha a pena. Este me parece ser o clima da
pergunta: nada vale a pena, salvo, talvez, suicidar-se. É o
clima do tédio absoluto, e o hálito que o inspira é o bocejo.
Com efeito, a própria pergunta "por que não me mato?" é
pronunciada com um bocejo. O propósito do presente arti-
go é articular esse clima, com a esperança de destruí-lo, não
negando-o, mas tentando superá-lo.
Podemos imaginar a situação do homem primordial
(esse ser mítico) como situação espantosa. Está ele jogado
no meio de coisas que sobre ele se precipitam para esmagá-
10. Surgem as coisas, uma após outra ou em grupos, da
penumbra que forma o horizonte da situação, e invadem,
ameaçadoras, a clareira a qual o homem primordial habita.
As coisas advêm das sombras e cada uma é uma aventura
assombrosa, seja ela uma fera ou um trovão, uma árvore ou
outro homem. Diante de toda coisa que advém o homem

91
primordial treme, espantado, porque toda coisa é nova. movimento deliberado, a própria essência da aventura,
Sendo nova, toda coisa é milagrosa. O tremor do homem que é um "advir", e não um "ser buscado". Essa nossa
face à coisa é portanto um misto de temor e admiração, é busca inautêntica de aventura, que é no fundo uma fuga
um tremor religioso (Urschauder). Essa situação espantosa do tédio, e que caracteriza tão bem a situação atual, é já
podemos identificar, individualmente, com a situação da uma tentativa fracassada de responder à pergunta "por
criança recém-nascida, e, coletivamente, com a situação da que não me mato?".
humanidade recém-expulsa do paraíso. Nela a pergunta A transformação do mundo espantoso das coisas mila-
"por que não me mato?" não pode surgir, não há clima para grosas no mundo nojento dos instrumentos tediosos é uma
ela. A pergunta que impera nela é "como posso sobreviver?" transformação lenta. Levou milênios para realizar-se, e
e a resposta a essa pergunta é dedicado todo o esforço da ainda não está completa. Ainda restam, na situação atual,
existência humana primitiva. grandes províncias "subdesenvolvidas", grandes ilhas do
Essa situação pertence a um passado remoto indivi- maravilhoso a flutuar no oceano dos instrumentos. Mas,
dual e coletivo. A nossa situação como seres blasés e como protegidos como somos pela muralha dos instrumentos,
geração tardia é outra. Nada nos espanta, porque nada é não nos ameaçam esses restos de um mundo ultrapassado.
novo. Não esramos jogados no meio de coisas, mas no E, embora continuemos avançando contra essas regiões mal
meio de instrumentos. Esses instrumentos são, no fundo, exploradas com rapidez impiedosamente acelerada, não nos
prolongamentos e projeções do nosso próprio eu. As seduz esse avanço, já que lhe conhecemos o resultado:
máquinas são nossos braços prolongados, os veículos nos- transformação do maravilhoso em tedioso. Neste sentido,
sas pernas prolongadas, e o mundo em geral é uma proje- sim, podemos dizer que o processo de transformação do
ção do nosso eu sobre a superfície calma e abismal do espanto em tédio está completado, por assim dizer por
nada. As feras que ainda aparecem são cachorros projeta- antecipação do resultado. Ainda resta muito a fazer, mas já
dos por nós para guardar nossas casas. Os trovões que não vale a pena fazê-Io. É nesse clima que Camus formula a
ainda trovejam são movimentos do ar projetados por nós sua pergunta, e é nesse clima que grande parte da nova
para carregar nossos aviões em seu vôo fútil. As árvores geração vegeta.
que ainda brotam são matéria-prima projetada por nós A filosofia existencial, filha do tédio e neta do espan-
para ser transformada em instrumento. E o "outro" que to, procura descobrir, pela reflexão, a diferença ontológica
entre o mundo das coisas e o mundo dos instrumentos.
compartilha conosco esse mundo instrumental é, ele pró-
prio, instrumento, sendo fornecedor ou consumidor,
parceiro ou concorrente. Nossa atitude diante desse
mundo dos instrumentos é a atitude do déjà vu, a atitude
I Heidegger diz que as coisas são nossa condição, e os instru-
mentos nossas testemunhas. Trata-se de um pensamento
informado pela língua alemã e dificilmente pensável em
do "já vi tudo". Os instrumentos não nos advêm da português. "Coisas" em alemão são "Dinge" e "condição" é
penumbra misteriosa, não são venturosos. Pelo contrário, "Bedingung". "Instrumentos" em alemão são "Zeug" e
estão aqui, diante da nossa mão para servir-nos. Tomados "testemunhas" são "Zeugen". Embora não seja possível tra-
de nojo dessa servil idade somos nós que saímos em busca duzir a análise heideggeriana, é possível aproveitar-se dela
desesperada da aventura, desautenticando, por esse nosso para pensamentos portugueses independentes. É claro que
92
93
a qualidade de ser das coisas é diferente da qualidade de ser religiosidade da qual somos capazes, portanto, é a auto-ado-
dos instrumentos. As coisas surgem do fundo escuro do ração, é o narcisismo. A adoração auto-erótica é nojenta. Não
nado, são coisas justamente por não serem nada. Mas o dá um autêntico significado à existência humana.
nada faz com que sejam coisas as coisas, porque lhes serve Dada essa nossa situação, compreendem-se as tentativas
de pano de fundo e as faz resplandecer em seus contornos. de uma reconquista do espanto, que são, no fundo, tentativas
As coisas são os meteoros do nada que se precipitam sobre de dar significado à existência humana pela procura delibera-
o campo gravitacional da existência para realizar-se. São os da de uma segunda ingenuidade. É deste ângulo que deve-
mensageiros (angeloi) do nada, e, como diz Rilke, "todo mos interpretar a fenomenologia husserliana que é um méto-
anjo é terrível". Toda coisa arrasta consigo o nada do qual do de deixar a coisa ser coisa. Pela "redução eidética", isto é,
advêm, toda coisa rasga a plenitude do ser e abre uma pela supressão de todos os conhecimentos a respeito da coisa,
fenda para o nada. Toda coisa revela o nada e é por isto que procura Husserl redescobrir a coisidade, o eidos da coisa, o
toda coisa é espantosa. O instrumento é a coisa domestica- espanto da coisa. E é deste ângulo que devemos interpretar o
da. É uma coisa apreendida, compreendida e ultrapassada surrealismo que é uma tentativa de ver a coisa com olho novo
pelo homem, uma coisa descoisificada. O que aconteceu e redescobrir o seu espanto. Mas, bem no fundo, são frustra- i :I

no processo dessa transformação é a retirada da capa do das todas essastentativas. A ingenuidade não é algo a ser pro-
nada que envolve a coisa, e a integração do instrumento na curado. Como a virgindade, não pode ser reconquistada.
plenitude do ser é a desmistificação da coisa. O instrumen- Face ao mar, por exemplo, não podemos reconquistar o
to está integrado em nossa existência, não é misterioso. O espanto primitivo, porque não podemos suprimir, autentica-
instrumento está cheio de nós e "nós estamos cheios de mente, os nossos conhecimentos quanto ao conteúdo salino
instrumentos". Ao invés de rasgar uma abertura para o e iodino de sua água. Tendo sido elaboradas as tábuas das
nada, como o faz a coisa, o instrumento forma uma mura- marés, nunca mais poderá o mar servir de berço a Afrodite, a
lha contra o nada e tapa a nossa visão do nada. E é justa- nascida da espuma. Não é por esforço deliberado que pode-
mente essa plenitude do mundo instrumental, este "estar remos reconquistar o espanto nem encontrar um significado
cheio", que nos causa nojo. Realmente é difícil compreen- da existência humana. A transformação das coisas em instru-
der por que não nos matamos nesse mundo.
mentos é um processo irreversÍvele as tentativas reacionárias
Essa transformação gradativa das coisas em instrumen- de fazê-Io refluir são fadadas a malogro.
tos explica a deterioração progressiva do nosso sentimento O conjunto das coisas é a natureza, e a transformação
religioso. As coisas eram revelações do nada e, como tal, car- das coisas em instrumentos equivale à domesticação da
regadas de sacralidade. Os instrumentos obstruem a visão do natureza, portanto ao seu aniquilamento. A natureza, tendo
nada e são portanto o contrário do sacro, são o corriqueiro. deixado de ser espantosa, deixou de ser natureza. Mas a
As coisas representavam algo, eram símbolos de algo, e era natureza não é a única fonte do nosso espanto. É verdade
possível adorar esse algo atrás das coisas. Os instrumentos que a atenção do pensamento ocidental se tem dirigido, a
representam, no melhor dos casos, o trabalho manipulado r partir do Renascimento, quase exclusivamente contra a
da existência humana, e a única coisa que é possível adorar natureza, e o resultado, dessa atenção é justamente o aniqui-
nos instrumentos é o trabalho humano atrás deles. A única lamento da natureza. Como herdeiros dessa atenção exclusiva
94
95
I,

estamos inclinados para uma identificação entre a natureza


e o mundo. Tendo sido a natureza transformada de espanto
I
em tédio, estamos inclinado a concluir que o mundo intei-
ro se tornou tedioso, e sentimos existencialmente este tédio I
absoluto. Mas uma consideração por exemplo da Idade
Média nos mostra que a natureza não é idêntica ao mundo.
Mostra que o nosso ambiente não consiste somente de coi-
sas a serem transformadas em instrumentos. É preciso des- o tema exclusivo
viar a atenção das coisas para descobrir todo um mundo
espantoso em nosso redor, um mundo pronto a precipitar- i
se sobre nós, desde que nós nos abramos para ele. É difícil
falar-se desse mundo, porque ainda não foi articulado. Mas Peço ao leitor que se prepara para ler este artigo que
nossos poetas são os primeiros a mergulhar nele, e voltam, medite na seguinte pergunta: Por que leio este artigo? E esta
das suas expedições, com as primeiras articulações espanta- revista? E qualquer coisa escrita? E por que e para que foi
das. Tudo é novo nesses versos que os poetas trazem, e tudo escrito este artigo, e todos os artigos nesta revista, e toda
vibra com o espanto do nada do qual surgiu. E há um ar de coisa jamais escrita? É claro que milhares de respostas a
aventura em redor desses versos, comparável à aventura das estas perguntas estão por aí, pré-fabricadas e prontas a
viagens de descoberta do século XIV: entrar em funcionamento, respostas ponderadas, respostas
Creio que somos uma geração em transição, e que assis- indignadas, respostas irônicas, respostas evasivas. Peço
timos ao fim de uma época e ao surgir de outra. A Idade entretanto que o leitor não recorra a elas, mas que tente
Moderna transformou a natureza em parque industrial e tor- assumir uma atitude ingênua, como se esta fosse a primeira
nou-a tediosa. Esse tédio de fin de siecle nos faz perguntar: vez que as perguntas foram formuladas. Essa ingenuidade,
"por que não me mato?" Mas sentimos as dores de parto de esse espanto ante a futilidade é o clima deste artigo. Nele
uma Idade nova. A natureza esvaziada, e os métodos de sua impera o espanto ingênuo ante a minha contínua atividade
investigação, como ciência e tecnologia, tornaram-se desinte- a despeito de sua futilidade evidente. Nada adianta fazer e
ressantes existencialmente, mas surge um fascínio novo, ainda faço algo sempre. Não é isto espantoso? E por que faço algo
não articulável, mas existencialmente sorvível. O perigo desse sempre? Porque não posso deixar de fazê-lo, a não ser que
novo fascínio reside no seu possível antiintelectualismo, e a durma ou morra. Viver é fazer algo a despeito da evidente
tarefa da nossa geração é intelectualizá-lo. É uma tarefa nobre, futilidade de tudo. Viver é portanto tentar negar a futilida-
e nela reside, ao meu ver, a resposta à pergunta: "por que não de evidente de tudo. E por que é evidente essa futilidade?
me mato?'. É uma tarefa espantosa. Aristóteles diz: Propter Pela morte. Viver é tentar negar a morte. Viver é fazer de
admirationem enim et nunc et primo homines princípiabant conta que não há morte. Mas há. Não é isto espantoso?
philosophari (É pelo espanto que os homens começaram a filo- Sugiro ao leitor que a morte é o tema exclusivo e universal
sofar antigamente e hoje em dia). Enquanto esse espanto da da vida. É portanto um tema sussurrado. A camuflagem do
tema da morte é chamada "valores". Os valores são outras
filosofia persistir, não há motivo para matar-se.
96 97
tantas tentativas de negar a morte. O leitor lê este artigo em ensaio em prol da negação da morte. Entretanto, faz parte
busca de um valor, tenta negar a morte. Estamos em con- daquela série de ensaios que admitem o faz-de-conta que os
versação, o leitor e eu, porque participamos da conspiração fundamenta. A nossa época proporciona um clima adequa-
tácita do fazer de conta que não há morte. A grande conver- do para o surgir desse tipo de ensaios. É o clima do tédio
sação que é a civilização, com todos os seus valores e todos existencial provocado por aquele processo chamado "pro-
os seus feitos, é esta conspiração tácita, e o nosso fazer de gresso da tecnologia". A futilidade de toda a atividade soit-
conta que não há morte é o segredo do qual todos partici- disant criadora está sendo desfilada ante os nossos olhos
pamos. A fita que representamos é interrompida, raras diariamente, em forma de aviões supersônicos, de geladei-
vezes, por um leve piscar de olhos, um sorriso conspiratório ras super eficientes e instituições super organizadas. É difí-
apenas esboçado, pelo qual reconhecemos uns aos outros cil, hoje em dia, e será mais difícil amanhã, esquecer que
como atores da mesma peça chamada "vida". É como se tudo isto é fita para negar a morte. Essa demonstração diá-
quiséssemos dizer, uns aos outros: "Pss, não divulgue que ria e insistente da futilidade de toda atividade é portanto,
estamos mentindo, não estrague o faz-de-conta da vida". E, de certa forma, um convite diário e insistente para uma
quando um dos nossos, talvez farto da mentira, trai a cons- reflexão sobre a morte.
piração e se mata, precipitamo-nos, todos, sobre a brecha Iniciarei essa reflexão com a consideração da absurdi-
por le aberta para fechá-Ia com um tecido de explicações, dade da morte. Tentarei não repisar os caminhos trilhados
uma teia de mentiras. Assim, a nossa conversação é a varia- por Heidegger, Camus ou Sartre, mas tentarei preservar a
ção infinita de um único tema: - "Não há morte". minha ingenuidade. É evidente que tudo que faço é uma
É claro que em certas fases da nossa conversação discu- tentativa de negar a morte. Se me levanto da cama, se me
timos a morte como se ela existisse. Falamos, com muita visto, se tomo café e se vou trabalhar, é que nego que vou
erudição, da morte biológica, definindo-lhe os sintomas. morrer e faço de conta que sou eterno. Não fosse essa
Falamos, com muita sabedoria, da morte do corpo, contras- minha negação, ficaria na cama. Já que vou morrer, diria,
tando-a com a imortalidade da alma. Falamos, com muito tanto faz morrer hoje, ou amanhã, ou daqui a cem anos, e
entusiasmo, da morte do indivíduo, contrastando-a com a ficaria na cama. A negação da morte dá portanto não
imortalidade da espécie. Mas deve ser igualmente claro que somente significado à vida me geral, mas a cada vivência
essa morte que discutimos com tanta elegância não é aque- individual, a cada ato meu. Mas a negação da morte dá esse
la cuja negação é o nosso tema exclusivo. Pelo contrário, significado somente porque se sabe a si mesma mentirosa.
essa morte que admitimos e discutimos já é a negação Se fosse honesta essa negação, se realmente estivéssemos
daquela morte que negamos, e é justamente por isto que a convencidos de que não há morte, não levantaríamos da
admitimos. A morte que negamos é indiscutível. Não pode cama, exatamente como não levantaríamos se não tentásse-
ser enquadrada no contexto biológico, ou psicológico, ou mos negá-Ia. Se realmente não há morte, se o meu futuro é
teológico, ou qualquer outro contexto, já que todo contex- ilimitado, então nada tem urgência, nada precisa ser feito
to é uma tentativa de negá-Ia. A morte admite somente agora, o que eqüivale dizer que nada precisa ser feito nunca.
duas atitudes: negá-Ia e continuar representando, ou aceitá- Podemos portanto concluir desta primeira consideração
Ia e cair no mutismo. O presente artigo é portanto mais um que a urgência do instante (que é a própria essência da vida)
98 99
é resultado de uma desonestidade: já que nada urge se acei- "vida melhor" me enche de nojo, porque sei que se trata de
to sinceramente a morte, e já que nada urge se a nego since- uma mentira pomposa. Não é o caso de viver o melhor pos-
ramente, finjo negá-Ia e tudo urge. Em outras palavras: sível, mas simplesmente de viver o mais possível. Face à
urge escrever este artigo, e urge lê-lo, já que escrevê-lo e lê- morte o que conta é a quantidade, e não uma suposta qua-
10 nos torna ainda mais imortais que somos, já que podería- lidade. A honestidade me força a admitir a vacuidade de
mos morrer antes de escrevê-lo e lê-lo. toda moralidade.
Chamei de "desonestidade" esta atitude que dá urgên- Doravante simplesmente tentarei viver o mais possível,
cia e significado à vida, e realmente, formulada assim ela e da maneira mais variada possível. Don Juan com suas
não é apenas desonesta, mas ainda ridiculamente inepta. múltiplas maneiras de amar, o conquistador com suas múl-
Mas sabemos que essa atitude que chamei de "desonesta" se tiplas maneiras de violência, o ator com suas múltiplas
aproxima daquela que Camus chama de "honestà'. Camus maneiras de representar, eis exemplos de existências hones-
define a honestidade (se o interpreto bem) como a atitude tas. São honestas, porque não fingem que buscam valores.
que aceita a morte e continua agindo a despeito dela. À pri- E são honestas porque, não buscando valores, ainda assim
meira vista há uma diferença entre a atitude camusiana e não se matam mas vivem o mais possível. Aceitam a absur-
aquela que acabo de esboçar ligeiramente: ao aceitar a didade de todo o ato e, em desafio a essa absurdidade,
morte Camus parece ter aberto mão da mentira. Mas, ao -l..; atuam o mais possível. São existências dignas. Essa é, em
continuar agindo, não estaria ele caindo novamente na ·:1'. poucas palavras, a posição camusiana.
mentira? Não se trata, por acaso, em Camus de uma nova Mas, se a esbocei fielmente, é uma posição curiosa-
camuflagem da negação da morte, embora de uma camu- mente contraditória e inconsistente. Porque me parece ser,
flagem que finge ser aceitação da morte? Para desmascará- no fundo, uma posição ética e, como tal, uma busca de
Ia, analisemos rapidamente a posição camusiana, uma posi- valores. "Honestidade", 'dignidade", o que são estes concei-
ção que me parece ser típica da nova geração, ou pelo tos camusianos a não ser valores? E a frase camusiana "é
menos de uma das tendências mais importantes dela: Acei- preciso viver o mais, e não o melhor", não é ela um impera-
to a morte. Admito que vou morrer, e o admito não apenas tivo? A quantidade que Camus recomenda em substituição
em teoria como figura de retórica, mas compenetro-me

I
à qualidade, não é ela, ela própria, uma qualidade, por
vivencialmente desse fato, incluo a morte em cada instante. assim dizer por salto qualitativo? "Viver o mais possível",
Todo meu instante passa a ser final e definitivo, passo a não é isto uma maneira camuflada de dizer "viver o melhor
viver à bout de souffle. Nessa situação todos os supostos possível"? Não é portanto desonesta a "honestidade" camu-
valores da humanidade se apresentam para mim como siana, não é nojenta a "dignidade" camusiana, e não se
mentirosos, e toda conversação a respeito deles como con- enquadra a posição camusiana entre as conversas fiadas
Ij
versa fiada grandiloqüente destinada a fazer esquecer a {j pomposas que procuram negar a morte? Enfim, não se
morte. As religiões, as artes, a ciência e a filosofia são outras trata, em Camus, simplesmente de um novo ardil destinado
tantas fugas inautênticas e pretensiosas, já que supõem que a "explicar" por que não me mato?
{f Sem dúvida, Camus participa de nossa conspiração con-
traa morte, embora dando-se ares de traí-Ia. A sua posição
buscam
buscam é"uma
escapar
vidaà morte. Toda
melhor", essa conversa
quando, fiia de
na realida~p~
~$
<t R,)
<-rt
m j
100
-( t
~.
101
O/781'a
não passa de um "teatro no teatro" e neste sentido, sim, "não há morte", e o pensamento é a ficção: "não há vida". O
Camus é autêntico, é um ator elevado à segunda potência, tema exclusivo da vida é a morte, e a vida nega o seu tema.
um ator verdadeiro. Não podemos negar nossos aplausos a O tema exclusivo do pensamento é a vida, e o pensamento
sua "performance" brilhante, mas descobrimos, se formos nega o seu tema. A vida faz de conta que é imortal, embora
atentos, o piscar conspiratório em sua atitude. Continuamos surja da morte, desemboque na morte e seja permeada por
portanto, a despeito dele, vítimas do dilema fundamental: a ela. O pensamento faz de conta que é autônomo e ontolo-
nossa incapacidade existencial de aceitar ou negar a morte, gicamente primário, embora surja na vida, desemboque na
esse nosso tema exclusivo. Note bem o leitor, trata-se de um vida, e seja permeado por ela. A posição da vida é portanto
dilema negativo. Não são duas possibilidades que ele nos muito menos complexa que a do pensamento. A vida é uma
abre, mas são duas impossibilidades diante das quais nos conspiração contra a morte. O pensamento, sendo uma
coloca. Entretanto, a própria negatividade do dilema parece conspiração contra a vida, é uma conspiração anticonspira-
conter a chave de sua solução, pelo menos "in nuce". O dile- tória, e neste sentido é o pensamento um desvelamento.
ma, sendo negativo, parece ser um pseudodilema, e o tema Desvela a conspiração que é a vida, e revela, destarte, a
exclusivo da nossa conversação portanto um pseudotema. morte. O homem, como ser pensante, é com efeito o único
Com efeito, como superamos o dilema vivencialmente? Fin- ser vivo que sabe da morte. O saber da morte me parece ser
gindo ser ele um dilema positivo. Fazemos de conta que o traço distintivo do homem. O que equivale dizer que o
podemos tentar aceitar como negar a morte e chamamos esse homem é um ser irônico. Pensamento é ironia face à vida, é
fazer-de-conta "a nossa liberdade". Dentro dessa liberdade o abandono da seriedade animalesca e é, justamente por
fingida escolhemos ou negar a morte (o que o pensamento isto, o sorriso distanciado face à morte. A vida nega, série e
existencial chama de "inautenticiade"), ou aceitá-Ia (o que o agastada, a sua própria mortalidade. O animal vive como se
mesmo pensamento chama de "autenticidade"). fosse viver eternamente,· embora todo ato seu seja uma
Tanto a autenticidade como a inautenticidade são por- defesa contra a morte. Ele está sempre sur te qui vive no sen-
tanto fictícias, já que frutos da ficção que é a liberdade face tido literal desta palavra. A vida animalesca é uma ficção
à morte. profundamente séria, é um teatro triste. O homem como
Mas, dada a negatividade do dilema diante do qual a ser pensante representa uma paródia desse teatro. Lança um
morte nos coloca, é a superação fictícia desse dilema a única
superação concebível. Em outras palavras: face à morte não I desafio à seriedade da vida e, por isso mesmo, à morte.
Sendo irônico, é ousado. Ousa sorrir da vida e da morte. É
um ser lúdico, brinca com a vida e com a morte. Não está
podemos senão fingir, e todo esse processo chamado "vida",
e seu epifenômeno chamado "pensamento", é portanto fic- totalmente englobado pela vida e pela morte, não está total-
tício. No entanto, com esta afirmativa estamos nos aproxi- mente "interessado" pela vida e pela morte. É um ser par-
mando, quer me parecer, da chave do dilema. cialmente "desinteressado". Graças ao pensamento, não está
Já que nada podemos dizer a respeito da morte que ele tão desesperadamente engagé em prol da vida e da morte
não a falsifique, talvez possamos dizer algo a respeito da como o é o animal ou a planta. Nesse sentido podemos
vida e do pensamento, daquelas ficções face à morte? Direi, dizer que o homem tende a superar, pelo pensamento,
neste esforço penoso de articulação, que a vida é a ficção: tanto a vida como a morte.

102 103
Disse que o pensamento é o desvelamento da morte. nisso trai o pensamento. Embora, portanto, seja a posição
Com efeito, o pensamento é uma única enorme provocação camusiana uma traição da conspiração da vida apenas apa-
da morte, uma chamada gigantesca da morte. Podemos rentemente, é ela uma traição da conspiração do pensamen-
resumir o pensamento numa única pergunta: "onde estás, to contra a vida. A "dignidade" e "honestidade" camusiana
morte?" Enquanto que a vida se esconde da morte, tremen- é um abrir mão da mentira que é o pensamento, não um
do, o pensamento sai em busca da morte, desafiando. É abrir mão da mentira que é a vida. É por isto que é indigna
verdade que, se a vida não consegue escapar à morte, tam- e desonesta essa "dignidade" e "honestidade". Mas a ironia
pouco consegue o pensamento encontrá-Ia. Ambos, a vida que é o pensamento pode ser um abrir mão da mentira que
como o pensamento, são processos absurdos. São, como é a vida e neste sentido, sim, uma aceitação da morte. É
disse, fictícios. Fazem de conta que há liberdade face à uma aceitação absurda, sem dúvida, porque uma aceitação
morte. Mas o clima de ambos esses processos é radicalmen- negativa, mas justamente é a única atitude honesta e digna.
te diferente. O clima da vida e, fundamentalmente, o da Em outras palavras: o pensamento é a única atitude hones-
angústia, enquanto que o clima do pensamento pode ser, se ta e digna do homem face à morte, embora (ou talvez justa-
cultivado, o do sorriso. Não podendo autenticamente resol- mente porque) seja uma atitude absurda.
ver o dilema da morte, pode o pensamento, entretanto, Rilke diz: Der Tod ist grosso Wir sind die seinen lanchen-
recusar-se a tomá-Io com total seriedade. E esta me parece a den Munds. (A morte é grande. Nós somos os seus de boca
chave do dilema.
ridente). Esta me parece ser a única resposta honesta e
Bem entendido: não se trata aqui de uma minimização digna ao pseudodilema diante do qual nosso tema exclusivo
banal do dilema da morte. Não se trata de negar ao dilema nos coloca.
a sua fundamental idade. Trata-se, pelo contrário, de admi-
tir o dilema como o próprio fundamento do nosso ser, e
desprezá-Io assim mesmo. O desprezo do nosso próprio
fundamento, esta me parece ser a verdadeira ironia. Não
será essa ironia aquilo que Camus procurava ao falar em
"dignidade"? Porque este me parece ser o erro da posição
camusiana, e de toda a posição da filosofia chamada Lebens-
philosophie e do existencialismo: desvirtuar o pensamento.
Para este tipo de filosofia é o pensamento uma serva, uma
ancila da vida. Participa portanto da conspiração da vida
contra a morte e serve de instrumento contra a morte. Na
realidade, conforme creio ter exposto, o pensamento é uma
conspiração contra a vida e revela a morte. A posição camu-
siana, resultado que é do desvirtuamento do pensamento,
cai na contradição, porque procura utilizar-se do pensa-
mento, contra o pensamento. Parece aceitar a morte, e
104 105
Vicente Ferreira da Silva

Em desafio ao destino que se abateu sobre ele, qual ave


estupidamente rapina para dilacerar-lhe o corpo, representa
Ferreira da Silva uma esperança para o pensamento brasilei-
ro. O presente artigo é uma tentativa de contribuir para a
apreciação de sua mensagem pelo público culto. O ensina-
mento ferreiriano aponta picos da especulação filosófica que
são difíceis para quem, como quem escreve estas linhas, não
tem a vivência imediata das premissas das quais Ferreira da
Silva parte. Entretanto, o esforço de acompanhá-Io em sua
subida rumo a estes picos é promissor, já que no caminho
surge uma visão da paisagem da atualidade, uma visão que
podemos chamar de autenticamente brasileira. Ferreira da
Silva é um filósofo brasileiro, e com ele o Brasil tomará parte
na discussão filosófica ocidental com voz independente. Para
apreciar a sua mensagem, esqueçamos os chavões do gigante
que desperta e do subdesenvolvimento a ser superado, e lan-
cemos um olhar sobre a cena brasileira, tal como ela se apre-
senta no conjunto da civilização ocidental. É uma cena sui-
generis. Uma fusão de elementos alhures incompatíveis, que
promete ser criadora de novos valores, está se processando
neste país. Dessa fusão participam, com ênfase maior e
menor, praticamente todos os povos europeus, um forte
substrato negro que é aceito pelas elites com um mínimo de
preconceitos, os povos do Extremo Oriente com parcela

107
sempre crescente, e um leve aroma da população índia exter- sujeito, cujo objeto é a natureza. A objetivação do mundo
minada paira sobre este processo todo. O resultado é uma da natureza, em oposição à subjetivação do mundo sobre-
sociedade em formação, de caráter ostensivamente católico e natural ("espiritual") tem por conseqüência a transforma-
latino, mas fundamentalmente influenciado pela magia afri- ção da natureza em conjunto de objetos definidos ou defi-
cana e modulado pela estética oriental, uma sociedade níveis. A natureza se transforma em sistema de coisas, cada
faminta de realizações que articulem a nova personalidade qual com seu lugar fixo. A natureza fica paralisada nesse sis-
que surge. Essas realizações começam a sair do terreno do tema. Torna-se manipulável. As coisas da natureza, humi-
possível e irrompem dramaticamente para dentro do territó- lhadas e enquadradas no sistema, tornam-se acessíveis ao
rio da realidade. Irrompem em forma de música, na qual o trabalho manipulador do "espírito", desse sujeito sobrena-
ritmo africano se casa com a tradição européia. Irrompem tural da natureza. As coisas podem ser transformadas em
em forma de pintura, na qual a brilhante cor tropical se casa instrumentos. Impelido pelo ódio à natureza, o homem
com a visão estética oriental e o rigor formal europeu. Irrom- ocidental a manipula, transformando-a em conjunto de
pem na forma da poesia e do romance, de maneira mais difi- instrumentos, em parque industrial. A história do Ociden-
cilmente analisável, já que muito mais cerebrina. E começam te é a progressiva substituição das "coisas da natureza" por
a irromper na forma do pensamento abstrato, pensamento instrumentos que são produtos do trabalho manipulado r
este que deve servir, futuramente, de sistema de referência a do espírito sobrenatural. A natureza fica aniquilada. A festa
todas as demais atividades criadoras. O pensamento ferreiria- pagã, fundamento de toda civilização, é uma orgia na qual
no é uma das fontes das quais esse sistema brota. o homem se confunde com a natureza. A civilização oci-
Exporei esse pensamento com base nos seguintes tra- dental acaba com essa festa. O judaísmo, esse primeiro
balhos: Instrumentos, coisas e cultura (Revista Brasileira de passo, a proíbe. O orfismo a intelectualiza. O cristianismo,
Filosofia), A natureza do simbolismo (Revista Brasileira de
Filosofia), Floresta Sombria (Diálogo) e Teologia e Anti-
humanismo, e com base em inúmeras discussões pessoais.
Parto da seguinte premissa: todo (ou praticamente todo)
I
~
ir
{f
essa fusão das duas tendências antipagãs, a abandona com
desprezo, já que o seu reino não é desta Terra. O Cristo é a
superação e a humilhação da natureza pelo Deus-Homem.
O puritanismo com sua mortificação da carne é o cristia-
pensamento filosófico ocidental está viciado por um ódio t nismo radicalizado. Com efeito, é nos países puritanos que
fundamental à natureza. Esse ódio tem sua origem nas reli- surge a industrialização, essa mortificação da natureza. A
giões bíblicas e no orfismo. Estas estabelecem uma ordem industrialização é a realização radical do cristianismo. Nela
espiritual, sobrenatural, em oposição violenta à natureza o espírito-sujeito (Cristo) subjuga e aniquila a natureza.
como conjunto de presenças divinas, isto é, em oposição As sociedades tecnológicas, e mais especialmente a União
violenta ao paganismo. A história do Ocidente é a realiza- Soviética (já que professa a tecnologia conscientemente
ção progressiva desse ódio, é o que Nietzsche chama de como alvo), são tentativas da realização total do cristianis-
"niilismo platônico". É a progressiva profanação da natu- mo. A próxima vitória da tecnologia será o fim da histó-
reza. Em seu ódio à natureza, em seu esforço de humilhá- ria, como Hegel e Marx prevêem corretamente. A nature-
Ia, o homem ocidental se afasta dela e se opõe a ela. Assu- za totalmente profanada e subjugada não deixará margem
me, nesse alheamento, a posição de observador. Torna-se a nenhum acontecimento novo. O homem, totalmente
108 109
alienado da natureza, e tendo totalmente transformado as volta a ser a encarnação do sentido exuberante e extático
coisas em instrumentos, não terá mais assunto. A vida será da existência. Pois este é justamente o característico do
esvaziada de aventura, de grandeza, de exuberância, do símbolo: não ser unívoco, como o é o conceito rígido, mas
excelso. A noite cinzenta do niilismo platônico encobrirá a ser uma sinopse de muitos aspectos. A natureza, aceita
humanidade num eterno retorno do sempre idêntico. O como simbólica, volta a ser a própria presença, a revelação
céu cristão ter-se-á realizado sobre a terra. simultânea dos múltiplos aspectos do divino. No Brasil,
Entretanto, o ódio fundamental do pensamento oci- este tipo de pensamento simbólico é novamente possível, e
dental face à natureza não é uma "epifania do divino" Ferreira da Silva nos convida a dele participar.
autêntica. No pensamento ocidental não aparece o divino. Quem não sentirá o atrativo desse convite? Quem não
O pensamento ocidental é fundamentalmente negativo, lhe sentirá a beleza e sinceridade? Quem não se sentirá tenta-
embora disfarce o seu ódio em "amor ao próximo". "Ser do a acompanhar o pensador em seu avanço rumo a visões
sujeito" não é uma forma autêntica de ser. E uma forma de apenas vislumbradas, como seja o surgir de uma civilização
negar e aniquilar o ser. É um alheamento, uma fuga. O nova, a superar autenticamente a tecnologia? Por certo, mui-
pensamento ocidental, e, em conseqüência, toda a história tos são os argumentos que podemos mobilizar contra esta
do Ocidente, é uma fuga à natureza. concepção do mundo em geral, do Ocidente, como particu-
Felizmente o Brasil não é totalmente ocidental. Foi lar, e mais especialmente dos elementos que perfazem o Oci-
cristianizado apenas superficialmente. Elementos pagãos dente, como seja o cristianismo e a tecnologia. Podemos por
(no sentido ferreiriano) se conservaram. Temos, no Brasil, exemplo negar que a tecnologia seja a realização total do cris-
elementos festivos, por exemplo o carnaval e o candomblé, tianismo, pela simples razão de que, sendo o cristianismo uma
nos quais o espírito não se subjetiva, mas nos quais o epifania autêntica, não admite realizaçãototal. Podemos argu-
homem se funde com a natureza. Nessas festas pode read- mentar que todo tipo de pensamento é negativo, e não
quirir a faculdade, perdida pelo Ocidente, do "pensamento somente o tipo ocidental, já que pensar é justamente "opor-se
simbólico". Esse pensamento não humilha a natureza, não a algo". Podemos objetar que o pensamento simbólico advo-
a paralisa, não congela as coisas. Pelo contrário, libera as gado por Ferreira da Silva é um tipo de pensamento que terá
coisas do peso do pensamento manipulador. A natureza grande dificuldade em passar pelo teste dos logicistassimbóli- .
volta a ser uma manifestação múltipla do divino. Volta a cos, já que será desvendado como sendo "insignificativo", isto
ser presença do divino. As coisas deixam de ser fixas (con- é, oco. Podemos, em breve, argumentar para salvaro intelecto
ceitos), mas voltam a ser vagas, cada qual abrangendo em geral, e o intelecto ocidental em particular, do ataque for-
todas as demais, voltam a ser símbolos. A terra deixa de ser midável que Ferreira da Silva lhe move. Mas, fazendo isto,
aquele objeto fixo e manipulado pela geometria, para vol- estaremos defendendo a tradição ocidental contra um ataque
tar a ser a deusa Caia, de cujo colo materno, morno e escu- novo, um ataque brasileiro. É uma nova personalidade no
ro, surgimos, e a qual nos mantém com seu seio exuberan- cenário filosófico que se torna articulada com Ferreira da
te. A parreira deixa de ser uma planta a ser utilizada na Silva. É uma voz com a qual deveremos contar no futuro. O
indústria do vinho, e volta a ser encarnação de Dionísio, destino estupidamente brutal não conseguirá sufocá-Ia.
com seu séquito enlouquecido de bacantes, do coro trágico,
110 111
o projeto

Quando morre um pensador, algo se dá com o conjun-


to de frases, orais e escritas, que perfazem a sua obra. Cha-
marei de espantoso e maravilhoso esse acontecimento e ten-
tarei transmitir neste artigo uma parcela daquele espanto e
daquela maravilha que me causa a obra de Vicente Ferreira
da Silva, transfigurada por sua morte. O que aconteceu
com ela, e com que direito afirmo estar ela transfigurada?
Os livros e os artigos que Vicente Ferreira da Silva escreveu
aparentemente nada mudaram desde o último mês. Não se
alterou nenhuma vírgula, não se modificou nenhum acen-
to. As frases por ele pronunciadas aparentemente ressoam
na memória dos seus parceiros como ressoavam antes da
sua morte. Não se alterou na memória nenhuma entona-
ção, não se modificou nenhum gesto. Os seus pensamentos
aqui estão, dentro de nós e ao nosso dispor, aparentemente
na forma exata na qual foram por ele formulados. No
entanto essa aparente indiferença da obra ferreiriana face ao
seu criador é enganadora. Fundamentalmente tudo mudou
nela. Nenhuma frase, nenhuma vírgula, nenhum gesto
escapou à ação misteriosa da morte. A obra ferreiriana em
seu conjunto, e cada frase individual, adquiriram um signi-
ficado novo graças a essa ação misteriosa. Somos, doravan-
te, incapazes de recapturar o significado original, e somos
condenados a trabalhar com o significado novo. Como se

113
deu essa modificação e em que consiste? Permitam que aspecto da obra, dando-lhe uma nova Gestalt, uma nova
recorra a uma imagem para ilustrar o que tenho em mente. dinâmica e uma nova estrutura.
A obra de um pensador jorra do seu intelecto sob alta pres- A objeção a este argumento pode afirmar ser essa
são, impelida rumo à realização pela força concentrada do modificação da obra um aspecto puramente subjetivo, e
potencial latente nesse intelecto. Toda frase, toda palavra que "objetivamente" a obra não se alterou e ficou intocada
vibra com essa pressão, com essa urgência de articular-se, pela morte. Mesmo deixando de lado a problemática que
para dar lugar a novas frases e novas palavras famintas de toda consideração da objetividade envolve, não me parece
realidade. Tão famintas e apressadas são as frases, tão vora- válido o argumento. A obra foi criada pelo autor como arti-
zes de realidade são as palavras, que se torna imperativa, culação na direção de interlocutores e adquire o seu signifi-
para um intelecto fecundo, uma extrema economia estilÍsti- cado somente como parte integrante da conversação geral
ca que não admite desperdício de uma única palavra. O da qual participa. São portanto os interlocutores ingredien-
estilo condensado e desidratado, como é o estilo ferreiriano, tes essenciais da obra, tão integrantes da obra quanto o é o
é prova da pressão latente que impele cada palavra. Assim se autor, já que são meta e campo de realização da obra. A
projeta o jato das frases sobre os intelectos que participam modificação que a obra sofreu pela morte é portanto, neste
da conversação com o pensador, assim esses intelectos rece- sentido, uma modificação "objetiva". A nova Gestalt e o
bem o seu impacto. Podem recebê-Io passivamente para novo significado da obra, impostos sobre ela pela ação mis-
absorvê-Io, ou podem reagir ativamente, transformando-o e teriosa da morte, são doravante qualidades inseparáveis da
retransmitindo-o transformado, ou podem repeli-lo. Mas, obra. Importam, em resumo, em modificação total da fun-
em todo caso, sofrem os intelectos o choque da pressão que ção do interlocutor na obra. De receptor e de ponto de res-
o jato continua jorrando, se está vivo o pensador, os intelec- sonância transforma-se o interlocutor em guardião e reali-
tos receptores recebem as suas frases como pontas de lança zador da obra. A responsabilidade pela obra passa do autor
cujo cabo ainda está por realizar-se. Mas se o pensador para o interlocutor, e o destino da obra depende doravante
morreu, recebem as suas frases como obuses que explodem dele. É devido a este aspecto ético da transfiguração da obra
dentro dos intelectos receptores para continuarem a reali- pela morte que a chamei de espantosa e maravilhosa. E
zar-se. convido os leitores para uma consideração da obra ferreiria-
Toda frase de obra de pensador vivo aponta, portanto, na, tendo esse espanto e essa maravilha em mente.
em sua busca de perfeição, o intelecto que a gerou, e toda Recém-surgida do colo materno da morte, ainda tenra
frase de obra de pensador morto aponta o intelecto que a e maleável, e estendendo seus pseudópodes em nossa dire-
recebe. E a obra, como um todo, está ligada ao intelecto ção como que em busca de amparo, assim se apresenta a
que a originou como por cordão umbilical, enquanto vivo obra ferreiriana. Nós, os provisoriamente pouco numerosos
o seu autor. A morte corta esse cordão, e a obra emite interlocutores da obra, temos o privilégio e a responsabili-
pseudópodes em direção aos intelectos abertos para recebê- dade de acolhê-Ia em nosso Íntimo para que continue a rea-
Ia. O último significado da obra é deslocado, pela morte, lizar-se. Não seremos dignos desse privilégio, nem estare-
do intelecto do autor para os intelectos dos seus interlocu- mos à altura dessa responsabilidade, se a ternura e
tores. Desta maneira altera a morte profundamente todo o plasticidade da obra for pretexto para uma inibição de
114 115
nossa parte em atacá-Ia. Embora tenra e plástica, dispõe portanto ser ética a revolta ferreiriana contra o Ocidente,
essa obra de força suficiente para resistir a nossos golpes. É contra aquilo que chamava de "nosso projeto". Mas não creio
debaixo dos golpes que ela se formará e adquirirá aqueles que a mola mestre do pensamento ferreiriano seja realmente
contornos e aquela dimensão, nos quais entrará para a con- uma preocupação ética, uma preocupação com o bem e o
versação brasileira, e quiçá do Ocidente. E hontaremos o mal portanto. Creio que a fonte da revolta ferreiriana é sua
pensador mais autenticamente no combate do que com ser- religiosidade estética (se assim me posso exprimir) e que a
vilismo. obra ferreiriana se rebela contra a feiura sacrílega do Ociden-
A obra ferreiriana quer ser combatida. É toda ela um te. Ao pintar o retrato da nossa civilização, Ferreira da Silva
grito de oposição, um brado de guerra. Faz parte daquele recorre a tintas cinzentas. Feio e cinzento é o presente da
rio subterrâneo de revolta, de negação, de recusa, e de here- nossa sociedade, mais feio e mais cinzento ainda é o seu futu-
sia contra a ortodoxia que acompanha a história do Oci- ro. Cinzento e feio é o ambiente dentro do qual vegetamos,
dente. Essa corrente submersa e reprimida torna problemá- seres feios e cinzentos que somos, e os nossos prazeres e nos-
ticos todos os valores do Ocidente e põe toda a nossa sas desventuras têm o gosto nojento das cinzas. Nessa nossa
civilização em aspas. É geralmente invisível, mas em feiura reside o nosso "crime", e estamos nos precipitando,
momentos dramáticos da nossa história irrompe à superfí- num processo chamado "progresso", como indivíduos e
cie para provocar um reexame das posições e uma retomada como sociedade, para o abismo da feiura definitiva. Os tentá-
de contato do Ocidente com as suas fontes. Faz parte, por- culos da feiura que é o presente ocidental se agarram a nós de
tanto, essa corrente do majestoso rio do Ocidente, e age mil maneiras nojentas, e a obra ferreiriana é a tentativa de
poderosamente em prol de sua propagação, justamente ao libertação desse abraço pernicioso. É toda ela portanto uma
negá-Io. Nisso reside o seu paradoxo e a razão do desespero busca do sol da beleza na noite sempre mais escura que as
dos intelectos que dela participam. Tudo fazem para des- sombras do progresso projetam.
truir aquilo "que aqui está", convencidos de sua nocividade, Chamei de religiosa essa busca de beleza. Porque no
e tudo o que fazem contribui para construÍ-lo. É graças a contexto no qual a obra coloca o problema da beleza, esta se
eles, é no combate a eles, que o Ocidente se consolida e torna sinônimo do resplandecer do sacro, da hierofania. O
progride. Sejamos gratos a eles, nós que afirmamos o Oci- presente ocidental, no qual estamos mergulhados, carece de
dente, e saibamos apreciar a posição desesperada na qual se beleza, porque está afastado da proximidade do sacro. Toda
colocam para que nós possamos continuar a existir. obra ferreiriana pode ser interpretada como pesquisa das
A obra ferreiriana é um daqueles momentos de irrupção razões desse afastamento, com o propósito de rasgar, nessa
da negação ao Ocidente. Insurge-se violentamente contra a pesquisa, as nuvens da feiúra e abrir uma fenda para o sol
imposição de valores fundamentais do Ocidente, reexamina resplandecente do sacro. Para compreender essa pesquisa e
essesvalores e afirma a sua ociosidade, ociosidade essa torna- essa meta, é preciso considerar o conceito do projeto, con-
da sempre mais evidente pelo progresso da história do Oci- ceito central do pensamento ferreiriano.
dente. Nega ao Ocidente o direito de impor suas regras, nega É claro que Ferreira da Silva busca esseconceito na espe-
a validade das regras, e nega todo aquele mundo que se reali- culação filosófica alemã, na qual a palavra Entwurf ocupa
zou e continua a realizar-sede acordo com essasregras. Parece ultimamente um lugar de destaque. Mas a relação entre o
116 117
pensamento ferreiriano e o alemão é curiosa. Ferreira da Silva Nada acontecerá, e o tempo no sentido atual do termo terá
conhece os conceitos alemães em seu contexto filosófico, mas acabado. Isto equivale a dizer que tudo será profano e nada
falta-lhe a familiaridade com o húmus coloquial do qual estes será sagrado. A tese ferreiriana, se aplicada à civilização oci-
conceitos brotam. Entwuif é a negação de Wurf, é portanto dental, permite o diagnóstico de uma rápida aproximação
um "desjeto". É um virar-se contra as origens que nos proje- da Endzeit, da época de perfeição portanto.
taram. Uma existência im Entwuif é uma existência em opo- Em que consiste a aparição do sacro que está na ori-
sição ao destino. Mas a palavra "projeto", embora tradução gem daquele projeto chamado civilização ocidental? Na
da palavra Entwurf, não transmite a idéia de oposição, mas oposição entre sujeito e objeto. A civilização ocidental se
de continuidade. Essa discrepância devida à tradução escapa distingue de todos os demais projetos por essa dicotomia
a Ferreira da Silva. Crê portanto que o seu uso do conceito sujeito-objeto. Na hierofania que fundamenta a nossa
"projeto" o coloca dentro da corrente do pensamento exis- civilização o sacro nos aparece como sujeito que se cerca
tencial alemão, quando, na realidade, o desloca para uma de objeto. É "Deus" que cria "o mundo". A história do
posição de suma originalidade. Não era por modéstia, por- Ocidente é uma explicitação das possibilidades contidas
tanto, que Fen'eira da Silva negava a força original do seu no projeto dessa dicotomia sujeito-objeto. Na expressão
pensamento, mas por mal-entendido. de Ferreira da Silva é nossa civilização "sujeitiforme".
Para o pensamento ferreiriano, um pouco como para o Analisando a hierofania fundamental podemos, com efei-
pensamento da antiguidade, a história é um projeto que se to, deduzir, numa espécie de profecia às avessas, todas as
projeta a começar da proximidade do sacro em direção ao fases da história do Ocidente, prefiguradas como estão
profano. É, para falarmos na linguagem das Metamorfoses, nessa hierofania. Em primeiro lugar podemos deduzir
uma queda do tempo áureo em direção ao tempo das cin- dessa hierofania o tipo de pensamento que regerá o Oci-
zas. Mas, enquanto os antigos reconheciam um único pro- dente. Será o tipo lógico, consistirá de conceitos rigoro-
jeto, o deles, reconhece Ferreira da Silva uma multiplicida- sos. O sujeito, em sua oposição ao objeto, está para com
de de projetos. A civilização ocidental não passa de um este em relação de "trabalho". Deus "criou" o mundo. Em
entre muitos modos de profanação do sacro. Devemos ima- conseqüência, o objeto deve ser manipulável, isto é,
ginar esse processo de profanação como explicitação pro- apreensível, concebível, apalpável. Deve consistir de con-
gressiva de potencialidades contidas na aparição original do ceitos. Esses conceitos devem possuir contornos rigorosos,
sacro. O resultado dessa explicitação progressivá é um silhuetas nítidas, devem ser definíveis. A ação definidora
mundo com seus valores. Quanto mais o mundo se realiza, de conceitos. O sujeito se impõe, nessa ação, sobre aquilo
tanto mais se esgota o projeto proposto pela aparição do que vai ser o seu objeto, recortando-o em conceitos bem
sacro. Quando todas as possibilidades contidas nesse proje- definidos e bem adaptados ao seu trabalho. O "mundo"
to estiverem explicitadas, quando portanto se tiver realiza- ocidental torna-se, graças a essa ação definidora, um
do um mundo perfeito (no sentido de totalmente feito), mundo progressivamente concebível e concebido. No fim
teremos alcançado, nesse dado projeto, uma época final, desse processo definido r teremos um mundo consistido
uma Endzeit. Essa época se caracterizará pela perfeição, isto totalmente de conceitos definidos, um mundo rigorosa-
é, pelo tédio absoluto. Tudo será efetivo, e nada será possível. mente organizado, um sistema perfeito de conceitos nítidos
118 119
e manipuláveis. O sujeito ter-se-á imposto totalmente ao O conhecimento adquire portanto um sabor ético
mundo. O mundo será instrumento dócil do sujeito total- dentro do projeto do Ocidente. Conhecer, isto é, definir o
mente afastado desse mundo, colocado como estará na objeto e desvincular dele o sujeito significa purificar, signi-
situação superior ("transcendente") de manipulador do fica salvar a alma. O caminho rumo à salvação da alma é o
mundo. Um mundo assim totalmente objetivado já não caminho do conhecimento. Os outros caminhos pregados
terá mistério, não terá segredo. Será inteiramente elucida- pelo cristianismo, como seja "amor" e "obras", não passam
de variantes da mesma estrada. A análise destruidora do
do. E o sujeito a ele oposto será inteiramente alienado
dele, já que a ação definidora terá cortado todas as liga- "amor", e a identificação do "próximo" com "o objeto",
ções misteriosas que unem o sujeito ao mundo. Terá surgi- constituem uma das partes mais empolgantes da obra fer-
do a época messiânica da total alienação do sujeito, a reiriana, cuja discussão infelizmente ultrapassa o escopo
época da loucura perfeita portanto. Essa loucura sujeiti- deste trabalho. O valor supremo do Ocidente é o sujeito
forme é, de acordo com a tese ferreiriana, a meta do pen- onisciente, portanto todo-poderoso, é o Eu agigantado, e
samento ocidental, imposta sobre ele pelo nosso projeto. totalmente alienado. Essa megalomania ética ocidental é
Em segundo lugar podemos deduzir da hierofania conseqüência orgânica da loucura do pensamento do Oci-
fundamental o tipo de valores que regerão o Ocidente. dente. Adquire a sua expressão mais clara em Hegel.
Aquilo, portanto, que Ferreira da Silva chama de "o salvá- Em terceiro lugar podemos deduzir da hierofania fun-
vel". A dicotomia sujeito-objeto transfere todos os valores damental as diferentes fases de sua explicitação, que consti-
para a região do sujeito, e despreza o objeto como o "mani- tuem a história do Ocidente. Temos, no orfismo, a primei-
pulável". Surge, automaticamente, uma dualidade "bem ra fonte do nosso projeto, já que este se baseia em mitos de
contra mal", dualidade essa alheia a outros projetos. O purificação e do desvendar violento do "objeto". E temos,
bem, o salvável, diz respeito ao sujeito, e o mal, "o peca- no judaísmo bíblico, a segunda fonte, já que este se baseia
do", diz respeito aos vÍculos que ainda prendem o sujeito em mitos de criação e da transcendência do "Eterno". A
confluência dessas duas fontes no cristianismo constitui o
ao objeto. O caminho do bem é o caminho da purificação,
é o desprender-se do sujeito, é catharsis no sentido órfico, e ponto de partida do projeto ocidental e a sua expressão
cachrut no sentido judeu do termo. O bem supremo, o máxima é a figura do Cristo. Essa figura representa a afir-
absolutamente salvável, é o sujeito puro, desprendido, alie- mação radical do sujeito em oposição ao objeto, a afirma-
nado, é a "alma". Todos os valores do Ocidente dizem res- ção do sacro como o "Verbo". A fase medieval da nossa his-
peito, em última análise, à "alma". Prova disso é não tória é a tentativa de elucidação dessa afirmação mediante a
somente a ética judia e cristã, mas também, e talvez mais especulação escolástica, isto é, mediante a conceitualização
radicalmente, a ética "humanista", e mais especialmente a especulativa. A esta fase se seguem, sem progresso sempre
marxista. O materialismo marxista é a afirmação do sujei- mais vertiginoso, e com consistência interna inexorável, as
to, da "almà', como antítese da matéria, do mal a ser puri- aplicações "práticas" desse trabalho especulativo. No renas-
ficado. É por isto que Marx fala em Tuecke der Materie cimento o sujeito, numa virada de 180 graus, se precipita
("perfídia da matéria"), e o marxismo se revela como puri- sobre o objeto para subjugá-Io. Surge a ciência com sua
tanismo radicalizado. transformação, primeiro teórica e depois prática, da natureza

120 121
em conjunto de objetos manipuláveis e manipulados. Surge A contemplação antecipada desse último estágio da
a matemática "pura" como estrutura da natureza. Surge o nossa história não requer fantasia, porque em certas socie-
humanismo como afirmação do sujeito como fonte dos dades, por exemplo na União Soviética, já alcançou quase a
valores. Surge o capitalismo como sistema "produtor", isto realidade. O tédio e o nojo, a feiúra e a fàlta do sacro já
é, como sistema de violentação da natureza. E surge o agora caracterizam essa sociedade. Demonstra ela, de
socialismo como método da realização definitiva da socie- maneira palpável, como funcionará o paraíso. As artes dei-
dade comunistas, isto é, da subjugação definitiva da natu- xarão de desenvolver-se e decairão num "realismo" inautên-
reza (inclusive da "natureza humana") e da vitória definiti- tico, porque não terão assunto. A discussão entre os intelec-
va do sujeito em forma de sociedade. A relação entre tos estagnará, porque nada haverá a ser discutido. A vida
sujeito e objeto, "o trabalho", é primeiro enaltecido nesse perderá todo sabor, porque não haverá aventura, tudo será
processo, já que conduz para a total realização do sujeito, planejado. O elemento festivo, que caracteriza a proximida-
para depois ser superado e ultrapassado, na realização total de do ser com o sacro, terá sido eliminado. Será melhor
do sujeito, e relegado às máquinas automatizadas. "O tra- morrer de vez a ter de vegetar nesse paraíso. Não é portanto
balho na fábrica é conseqüência necessária da missa" (Fer- existencialmente possível aceitar como inexorável esse
reira da Silva), para depois ser superado pelo progresso do paraíso que se aproxima com tamanha velocidade. É preci-
nosso projeto, ao alcançar a Endzeit. Esse último estágio so reagir, é preciso fazer qualquer coisa. Não é possível cair
será a transformação total da natureza em parque indus- passivamente nesse abismo medonho. É preciso empenhar-
trial, e da humanidade em sociedade comunista perfeita. se contra esse projeto, é preciso lutar contra ele, mesmo que
Não haverá mais trabalho, já que não somente jorrarão as se venha a "morrer esperneando" nessa luta. Porque é
máquinas automaticamente os seus projetos, mas ainda melhor morrer agora, enquanto o nosso projeto ainda está
planejarão infalivelmente a produção e a distribuição um pouco aberto, do que viver num projeto totalmente
daquilo que a sociedade já agora inerte consumirá de acor- realizado, fechado como jaula. O engagement ferreiriano é
do com esse planejamento automatizado. Nada mais acon- uma busca desesperada de uma abertura pela qual seria pos-
tecerá, com efeito. A sociedade se resumirá na contempla- sível sair do projeto e evitar o paraíso.
ção daquela perfeição que é o mundo totalmente Essa claustrofobia está, portanto, no fundo das pesqui-
objetivado. Ter-se-á realizado o céu. As visões dos profetas sas ferreirianas dos outros projetos. Sua preocupação com os
de Israel, e dos mistagogos órficos, e dos santos cristãos, e deuses gregos, ou com as religiões africanas (Otto e Frobe-
de Hegel e Marx, terão se tornado realidade. Tudo será nius), sua imersão febril no pensamento romântico alemão
perfeita bondade, no sentido ocidental do termo, já que com suas fontes soit-disant germânicas (Fichte, Schelling,
tudo será pura contemplação da obra perfeitamente reali- Novalis), seu estudo apaixonado dos existencialistas alemães
zada. Será alcançado o sétimo dia, no qual o sujeito des- e seus precursores poéticos com sua tendência antiocidenta-
cansará, e verá que é bom o que fez. Inexoravelmente, e lista (Heidegger, Hoelderlin, Rilke), tudo isto não passa de
com rapidez impiedosa, estamos nos projetando rumo a uma procura desesperada de aberturas. Já que o projeto oci-
esse sétimo dia, ao tédio e ao nojo dessa última, insuportá- dental não é o único, é possível, talvez, escapar para outro?
vel feiúra.
Aquele dos gregos arcaicos, por exemplo, no qual o sujeito
122
123
não se distanciava do objeto, no qual essa nefasta dicotomia Otto. Nem é possível para ele mergulhar num mar primor-
não existia? No qual o homem se confundia festivamente dialna praia aborígine, em busca de uma vivência imediata,
com a natureza, e não pensava em conceitos, mas em sÍm- já que não é possível esquecer o conteúdo iodino da água
bolos cheios de significado indefinÍvel? No qual o homem nem o conteúdo monasÍtico da areia. Enfim, inexoravel-
e a natureza eram carregados do sacro? No qual a vida era mente, como todos nós, está Ferreira da Silva condenado a
aventurosa e mergulhada naquela beleza que eram o mundo ser ocidental, a ser cristão, e sabe disto.
e as artes dos gregos antigos? Ou talvez seria possível escapar Sua revolta contra o Ocidente não se limita, portanto,
para aquela floresta sombria, cheia de mistério e encanto, na às tentativas de irrupção por aberturas cuja última inautenti-
qual murmuram as vozes sacras e espantosas, das quais Hei- cidade reconhece. Assume também um aspecto intramural,
degger e Lawrence nos contam? Ou talvez se abra uma pos- quer obstar também dentro do próprio projeto o seu curso
sibilidade de fuga em direção daquele mundo das máscaras e impiedoso. Em seu desespero quer conservar, pelo menos
das danças selvagens, do entusiasmo e da sacra embriaguez provisoriamente, e pelo menos localmente, o estágio imper-
que nos aparece nos candomblés, já que somos, afinal, brasi- feito, e portanto parcialmente aberto, do nosso projeto.
leiros? Ou talvez possamos encontrar, independentes de Quer conservar os restos de beleza que a vida ainda oferece
todos estes projetos prefigurados, uma abertura imediata no no Ocidente chamado "livre", em contraste com a feiura
convívio com a natureza tropical que nos cerca, despindo a imensa que prevalece nas sociedades chamadas "populares".
nossa roupagem ocidental, e fundindo-nos com o mar e a E neste seu desejo se precipita para um engagement que o
areia na praia? Talvez possamos forçar-nos para a vivência conduz a inúmeras e insuperáveis dificuldades de ordem
imediata, cheia e rica e saborosa, esquecidos do conheci- intelectual e moral. Por exemplo, transforma-o, como que
mento cinzento que o Ocidente nos proporciona. Tudo, por encanto, num "defensor do Ocidente". Entenda-se: do
tudo é melhor que a aceitação passiva das grades nas quais o Ocidente atual contra o Ocidente do futuro. Outro exem-
nosso projeto nos encerra com a trivialidade de sua feiura. plo: o Ocidente precisa, doravante, definir-se como oposto à
Mas para um espírito tão lúcido quanto o é o ferreiria- Europa oriental e central, justamente portanto àquela região
no não escapa a futilidade e o desespero dessas saídas. Pois onde, de acordo com o pensamento ferreiriano, mais perfei-
se a sua tese do projeto é correta, as nossas próprias mentes tamente se realiza o Ocidente, e onde, afinal das contas, sur-
foram por ele projetadas e são p.or ele inexoravelmente for- giu. O último exemplo: os valores do liberalismo precisam
muladas. As notícias que temos dos "outros projetos", ser afirmados em oposição aos valores do socialismo, embo-
temo-Ias através do nosso, e as nossas tentativas de mergu- j ra, de acordo com o pensamento ferreiriano, esses valores
lhar para dentro deles são tentativas de mergulhar em pro- liberais já contenham, em projeto, os valores socialistas. O
jetos já invadidos pelo nosso. Os gregos arcaicos, por exem- engagement ferreiriano adquire, nessa sua profunda proble-
plo, são reais para nós somente como parte do nosso mática, toda a sua dramaticidade. Porque seria inteiramente
projeto, e como "gregos em si" não existem para nós, não incorreto chamar de "inautêntico" esse engagement, somente
estão projetados dentro do nosso projeto. Não é portanto por ter sido incoerente. Pelo contrário, é autêntico justa-
retalhando o bode ou aspirando o incenso do oráculo que mente por causa da sua incoerência, porque torna evidente o
Ferreira da Silva pode encontrar-se com eles, mas lendo seu empenho, empenho quia absurdum.
124 125
Mas este engagement tem outro efeito, mais profundo, fato de não ter sido encontrada essa posição prova a sinceri-
sobre a obra. Cria nela uma ambigüidade quanto à hierofa- dade da procura. O que importa na obra ferreiriana não é o
nia fundamental do Ocidente. Uma ambigüidade que resultado da pesquisa, mas iluminação original e penetrante
torna vacilante toda a posição ferreiriana. No conceito ori- à qual submete a cena da atualidade. Sugiro ao leitor que
ginal ferreiriano devemos compreender que a hierofania essa iluminação revela aspectos verdadeiros da nossa situa-
ocidental é tão autêntica como qualquer outra. O sacro ção, enquanto que as conclusões que Ferreira da Silva tira
pode aparecer e resplandecer de muitas formas, e a forma desses aspectos sejam, felizmente, fortuitas e, na minha opi-
sujeito-objeto é uma delas. O cristianismo é, em outras nião, falsas. A importância da obra ferreiriana reside na aná-
palavras, uma revelação tão autêntica do divino quanto o é lise à qual submete a nossa situação, não nos remédios que
o mito de Prometeu, por exemplo. Mas o ódio e o horror recomenda. Como análise representa essa obra a mais
que Ferreira da Silva sente pelos efeitos do Ocidente o con- importante contribuição do pensamento brasileiro à discus-
duzem a negar a autenticidade dessa revelação in totum. são filosófica, e como programa representa uma documenta-
Diz ele ser inautêntica uma revelação que afirma o sujeito, ção da confusão, na qual se encontram justamente os
porque se trata de uma afirmação apenas aparente. Afirmar melhores espíritos atualmente. Defenderei essas afirmativas
o sujeito é negar o objeto, e "ser sujeito" é "não ser objeto". da seguinte maneira:
Sendo portanto negativa a revelação ocidental, não é uma A primeira impressão que temos, se postos frente ao
revelação autêntica, e o projeto ocidental é, todo ele, nega- mundo ferreiriano sem aviso prévio, é a de uma caricatura.
tivo. Estamos aqui, curiosamente, voltando para Nietzsche Reconhecemos, imediatamente, o nosso mundo, mas com
e para o "veneno da Judéia" que é o Ocidente. Mas o certos traços característicos exagerados, e outros traços, não
"engagement" ferreiriano o obriga a uma nova reviravolta. menos característicos, suprimidos. Antes de analisar quais os
Agora esse veneno precisa ser defendido, precisa ser auten- traços exagerados e quais os suprimidos, permitam que ofere-
ticado "post festum". E o círculo se fecha novamente sobre ça uma tentativa de explicação do porquê dessa caricatura. A
a hierofania original que nos projetou de si para destruir- obra ferreiriana surgiu em São Paulo. É difícil imaginar um
nos, e a qual, não obstante precisamos defender, justamen- lugar ao qual a filosofia ferreiriana melhor se adapte. Embora
te para não sermos destruídos. seja ela uma caricatura da cena atual como um todo, é um
Essa profunda vacilação da posição ferreiriana não me retrato fiel da cena paulistana. Na planície ondulante e reco-
parece ser defeito. Pelo contrário, dá a marca de autenticida- berta, originalmente, de vegetação subtropical, separada do
de existencial a toda a filosofia ferreiriana. Existem, a meu mar por serra majestosa, imprimiu, recentemente, a civiliza-
ver, dois tipos de filosofia. Um é válido por sua consistência, ção ocidental um amontoado de caixas de cimento armado
e invalidado pela descoberta de falhas. O outro, muito mais de feiúra insuperável. Nas fendas entre essas caixas e nos
empolgante, é válido pelo tonus de sua pesquisa, e invalida- buracos dentro dessas caixas uma multidão informe e desen-
do pela descoberta de insinceridade. A obra ferreiriana é do raizada desenvolve uma atividade febril, acompanhada de
segundo tipo. E creio ser totalmente válida sob este prisma. ruídos metálicos e cheiros benzóicos, e que tem por finalida-
É, toda ela, uma procura de posição face ao desenvolvimen- de aparente aumentar o número de caixas, de ruídos e de
to pavoroso da nossa civilização em direção do tédio, e o cheiros. Visto do ar o planalto oferece o espetáculo de um
126 127
j
tecido cutâneo atacado por câncer, que irrompeu em forma intelecto, e a aventura do Ocidente é o avanço do intelecto.
de edifícios que se estenderam, pelo gânglio da via Anchieta, Ferreira da Silva sabe disso, ou não teria postulado o sujeito
até a praia, e em forma de sarna, abrindo buracos de um roxo como centro do projeto do Ocidente. Mas a sua cosmovisão
acinzentado na vegetação outrora luxuriante. Nenhum o conduz para o antiintelecutalismo. Impelido pelo ódio da
aspecto de beleza mitiga esse cenário, e os modestos esforços feiúra hodierna, renega Ferreira da Silva todo o Ocidente, e
da arquitetura, escultura e paisagismo para modificá-Ia, con- se vê forçado, nessa negação, ao abandono do intelecto com
seguem tão somente intensificar-lhe a feiúra. Pois é exata- toda a sua beleza, festividade e aventura. Esse abandono é
mente essa a imagem da civilização ocidental que Ferreira da trágico porque, num intelectual como Ferreira da Silva,
Silva retrata. Essa imagem não podia ter surgido na Place importa num abandono de si mesmo. Assim, por fidelidade
Blanche, nem no Stephansplatz, nem em Grosvenor Square, à sua visão do mundo, abandona Ferreira da Silva a si
mas somente na Praça da Sé. Não obstante, aplica-se, como mesmo. Procura, doravante, nos gregos antigos, na praia, ou
caricatura, também a Paris, a Viena e a Londres. Aceitem ou
na luta política, aquela beleza e aquela aventura que estão
não os leitores minha tentativa de explicação, creio ser ela dentro dele, mas que a sua sinceridade lhe proíbe. Ora, essa
válida como qualquer outra talvez mais profunda que a tragédia íntima do pensador constitui para nós, os seus
minha.
interlocutores, fonte de riqueza. O antiintelectualismo fer-
Pois o que a obra ferreiriana exagera é a feiúra da nossa reiriano ressalta, para nós, de maneira marcante, os excessos
civilização, e está singularmente insensível à sua beleza. do intelectualismo e do racionalismo que caracterizam a
Nota, impiedosamente, a trivialidade e a falta de festividade atualidade. E nos compele para uma reavaliação do intelec-
dos nossos afazeres diários, o tom cinzento que invadiu to. Daquilo que se salvará dessa reavaliação depende a nossa
todas as nossas atividades. Nota o absurdo tedioso do levan-
existência continuada de seres pensantes que somos.
tar-se, do tomar o café e o ônibus, do trabalho na fábrica e
A interpretação ferreiriana do Ocidente como expli-
no escritório, da fila de cinema, da conversa fiada interminá-
citação da hierofania sujeito-objeto é de uma fertilidade
vel, nota o planejamento das festividades e a organização extraordinária e sugestiva. Permite uma compreensão de
oficial ou jornalística dos entusiasmos, nota a regulamenta- fenômenos aparentemente díspares como sejam a tecnolo-
ção dos gostos e dos ideais pela propaganda comercial ou gia e a salvação da alma, ou o socialismo e o processo de
política, e identifica tudo isto com a nossa realidade. Mas definição de conceitos. Nessa interpretação adquire a his-
não nota (por não poder ou não querer?) o florescimento tória do Ocidente uma Gestalt e um significado que senti-
festivo de cores nas paredes da Bienal, nem a aventura espi- mos ser mais fundamental que uma interpretação marxis-
ritual na nova literatura e no novo teatro, nem nota (e isto é ta ou spengleriana. Mais fundamental, por estar mais
estupendo) a própria beleza que se desfralda no pensamento próxima do sacro. Mas devemos refutar a sugestão de ser
ferreiriano. Como pode um espírito tão faminto de beleza e inautêntica a hierofania que nos serve de base. O fato de
tão criador de beleza estar tão cego? Creio que a razão reside "ser sujeito" implicar "não ser objeto" não é sinal de inau-
nos antolhos que se impôs voluntariamente e por infelicida- tenticidade. Pelo contrário, a negatividade é sinal de toda
de sua. Porque a beleza que a civilização ocidental cria é uma hierofania autêntica, já que aparecer (phainein) é não ser.
beleza intelectual, a festividade do Ocidente é um festejar do Hierofania significa aparecer do sacro, portanto negação
128
129
do sacro. O pensamento ocidental, explicitação da hiero- surgirem, servirão a tecnologia, a ciência e a sociedade
fania sujeito-objeto, é negativo. Mas todo pensamento é organizada (que não será necessariamente "comunista", e
negativo. Pensar significa negar. Portanto é autêntico nisso Ferreira da Silva se engana), como suportes total-
nosso projeto, justamente por ser negativo. E sendo mente esvaziados de interesse, por já realizados. O desespe-
autêntico nosso projeto, e autêntica a hierofania que lhe ro ferreiriano serve, paradoxalmente, de um dos pontos de
serve de base, é nosso projeto inexaurível. As potencialida- partida para a procura dessas tendências novas. E o antiin-
des contidas no cristianismo, e no judaísmo e no orfismo telectualismo ferreiriano serve para o encontro de um inte-
que lhe antecedem, são inesgotáveis. Nem a tecnologia, lectualismo novo a superar o antigo.
nem a ciência, nem o comunismo lhe esgotam as possibi- É possível que tudo isto o que acabo de dizer aconteça.
lidades, mas exploram, cada um por si e em seu conjunto, É possível que superemos, graças a pensadores como Ferrei-
apenas umas poucas das inümeras possibilidades. Se a tec- ra da Silva, a crise na qual a nossa civilização se debate. Mas
nologia, por exemplo, se esgotar, isto não representará o é também inteiramente possível que nosso projeto se apro-
fim do nosso mundo. Nosso projeto ultrapassará a tecno- xime de seu fim, na forma da era messiânica ferreiriana, ou
logia e avançará rumo a outras realizações de suas poten- na forma mais palpável de cinzas, a saber, de cinzas radioa-
cialidades. A pobreza da tecnologia, da ciência e do comu- tivas. Neste segundo caso Ferreira da Silva nos ensina, mal-
nismo reside justamente nessa sua limitação à realização gré lui, o que terá sido perdido. Com o pensamento ociden-
de umas poucas possibilidades contidas no projeto do tal se perderá todo um tipo de pensamento, a saber, o
cristianismo. pensamento subjetivo. Esse pensamento resultou, é verda-
Embora sendo desnecessário o esgotamento da nossa de, na feiüra e (por que não dizê-Io?) na maldade das cida-
civilização na tecnologia, na ciência e no comunismo, é ele des-monstros, das vidas esmagadas por trivialidades, e de
inteiramente possível. Nisso tem totalmente razão o pensa- barbáries e guerras talvez sem paralelo. Mas resultou tam-
mento ferreiriano, e o seu enorme valor reside justamente bém, e isto não é menos verdade, naquele enorme tesouro
na maneira dramática como evoca esse perigo. Não repre- sempre crescente de beleza e sabedoria que representa nossa
sentam, portanto, um mal em si essas três tendências mes- tradição cultural e, por isto, nosso engagement para o futu-
tras da atualidade, mas representam um perigo mortal para ro. Não importa se o lado feio e mau da nossa civilização
nossa civilização, se desacompanhadas de tendências novas supera ou não o lado bom e belo. Somos em todo caso obri-
e vivificantes. É totalmente verdade que, tomadas em si, gados a empenhar-nos em prol de sua continuidade. Ferrei-
cada uma dessas três tendências representa um fechamento ra da Silva explica por que: porque assim fomos projetados.
definitivo do nosso projeto, no sentido de nada mais poder Nossa recusa desse empenho não representa livre escolha
acontecer, e tudo congelar-se. Mas, aliadas a tendências nossa, mas seria uma queda na inautenticidade. Essa
novas, representarão talvez, essas três tendências antigas e impossibilidade de uma escolha contra nosso projeto, e
quase esgotadas, excelentes vigas de suporte para desenvol- nossa liberdade somente dentro das possibilidades do nosso
vimentos novos. Por ora são inimagináveis essas tendências projeto, este me parece ser o ensinamento mais importante
novas, mas podemos pressentir-Ihes o campo. Serão ten- da obra ferreiriana. Este ensinamento não é formulado
dências novas do intelecto. A essas tendências novas, se expressamente, e formalmente até pode contradizer o teor
130 131
da obra. Mas é o ensinamento que apreendemos da Cestalt
total da obra, como ela foi moldada pela ação misteriosa da
morte.
No curso deste trabalho ataquei, segundo a minha
melhor compreensão, capacidade e convicção, a obra ferrei-
riana. Ataquei, com efeito, aquela parte do meu intelecto
que é Ferreira da Silva. Porque o pensamento de Ferreira da
Silva, na parte na qual o compreendi, é agora o meu pensa- Literatura brasileira de vanguarda?
mento. Como é parte do pensamento de todos os seus inter-
locutores. No ataque que lhe movo, e que lhe moverão os
outros, esse pensamento se formará e representará a imorta-
lidade daquele fenômeno chamado Ferreira da Silva. Espero, A Revista de Cultura Brasilefía impõe, logo no título
portanto, que este trabalho se incorpore, embora modesta- da pesquisa sobre a literatura brasileira da atualidade, uma
mente, na conversação como contribuição para a realização limitação severa. O termo "vanguarda", para ser usado sig-
da obra ferreiriana. Não sei de outra forma para expressar a nificativamente, pressupõe o conhecimento da direção do
minha gratidão pela indizível aventura intelectual que me processo sob estudo. Deve ser, a rigor, aplicado somente a
proporcionou e que continua a me proporcionar. processos encerrados. A literatura brasileira é um processo
em desenvolvimento. Não lhe conhecemos a direção, e se a
conhecêssemos, já estaria a literatura brasileira, por anteci-
pação, esgotada. Pelo contrário, entretanto, a literatura bra-
sileira é um processo explosivo que se expande em muitas
direções pelo método da tentativa e do erro, de modo que
toda tendência atual seja "vanguarda" para si mesma, e
"retaguarda" para todas as demais. "Literatura Brasileira de
Vanguarda" é portanto literatura brasileira atual tout court,
e creio ter eliminado, com esta consideração, a limitação
imposta pelo título desta pesquisa.
Pretendo, neste trabalho, dirigir a atenção do leitor
para a literatura filosófica, um segmento fundamental,
embora subdesenvolvido, da literatura brasileira. O prefá-
cio desta publicação fala em "levantamento da realidade"
que as letras brasileiras estariam levando a cabo. Mas o que
é essa realidade que as letras supostamente levantam? Cabe
à especulação filosófica responder a essa pergunta. Cabe
portanto a ela fornecer a própria matéria-prima à literatura,
132 133
se é que literatura é mesmo um "levantamento da realida- A filosofia européia serviu, no seu pensamento, de instru-
de". E se não o é, se é, pelo contrário, a criação de realidade mento para a pesquisa dessa realidade. Aliás, a dicotomia
nova (conforme creio), cabe à especulação filosófica orien- Europa-América que o prefácio estabelece é inexistente. A
tar essa criação e fornecer-lhe as armas teóricas para a sua civilização brasileira é uma parte orgânica da ocidental, e o
luta contra o caos. É, com efeito, exatamente este o papel recurso à tradição européia é tão autêntico no Brasil como
da especulação filosófica no desenvolvimento da literatura na Espanha. A influência de Heidegger sobre Vicente Fer-
européia ao qual o prefácio desta publicação se refere. A reira da Silva não impede que seja Ferreira da Silva tipica-
fenomenologia husserliana, por exemplo, é responsável, mente brasileiro, como a influência de Descartes sobre Hei-
direta e indiretamente, por muitos daqueles "ismos" que o degger não impede que seja Heidegger tipicamente alemão.
prefácio chama de anti-realistas, já que Husserl abriu um No pensamento ferreiriano articula-se, pela primeira vez, a
método para uma nova apreciação da "realidade". A especu- tensão dialética que informa, sustenta e ameaça a "realidade
lação filosófica brasileira não tem cumprido, até agora, o brasileirà', a saber, a tensão entre a racionalidade cristã lati-
papel que lhe cabe na literatura. Acanhada e acadêmica, na e a irracionalidade pagã negra. Mostra-nos o pensador,
tem-se limitado, até agora, a certos gestos rituais em torno com impiedosa clareza, a linha reta que conduz da subjeti-
dos grandes filósofos europeus, e mais especialmente em vidade transcendente (que é o cristianismo original) para a
torno das três ortodoxias do tomismo, do marxismo e do objetividade imanente (que ameaça estagnar no tédio da
positivismo. A literatura brasileira, muito mais audaciosa, sociedade tecnológica perfeita). E mostra-nos, simultanea-
avançou muito além, e vê-se abandonada pela suas fontes mente, a aventura e a festividade de uma vida dentro do
filosóficas, das quais deveria ter brotado. Em conseqüência, mito, de uma vida carnavalesca digamos. A realização irre-
busca a sua justificativa, muitas vezes post hoc, em filosofias vogável do projeto cristão, que é a civilização ocidental, traz
que lhe são parcialmente estranhas. Esta falta de uma consigo a sensação do tédio, do nojo existencial, do mergu-
autêntica filosofia brasileira como fundamento não somen- lho no cinzento do cotidiano. A festa pagã quebra esse pro-
te da literatura, mas da cultura em geral, caracteriza todos jeto e permite uma redescoberta da sacralidade e do caráter
os fenômenos intelectuais e artísticos, deixando-os como simbólico das coisas da natureza, aspectos do mundo que o
que a pairar no ar sem suporte. O presente trabalho preten- racionalismo ocidental encobriu. O Brasil, palco da con-
de mostrar os primeiros passos do pensamento filosófico na frontação dramática entre as duas tendências, é portanto
direção da autenticidade. um dos lugares decisivos para a civilização ocidental e para
a humanidade.
O Instituto Brasileiro de Filosofia prepara a publicação
das obras completas de Vicente Ferreira da Silva. Trata-se de As conclusões às quais Ferreira da Silva chega são quase
um pensador (falecido) que representa, a meu ver, a primei- inteiramente pessimistas. Escolhi, não obstante, a sua obra
ra realização do espírito filosófico autenticamente brasilei- como ilustração de uma filosofia geradora de literatura, por-
ro. Embora profundamente influenciado pelo pensamento que demonstra, mesmo num esboço superficial, as potencia-
europeu, e mais especialmente pelo pensamento existencial lidades de uma literatura brasileira genuína. Num país que
alemão, era Ferreira da Silva a própria expressão daquilo a oscila entre fenômenos como São Paulo (extrema realização
que chamam, com tanta leviandade, de "realidade brasileira". da tecnologia cinzenta e nojenta) e como o candomblé (festa

134 135
extática que sacraliza instintos), abre-se à literatura a possibi- isolados da cena brasileira, colaboração essa que deverá
lidade de criar um novo tipo de civilização para superar marcar o amadurecimento da literatura brasileira.
tanto o epigonismo ocidental como o primitivismo africa- Tentei dizer, no início deste trabalho, que o conceito
no. A uma literatura, bem entendido, que esteja fundada "vanguarda" é inaplicável à literatura brasileira da atualida-
sobre alicerces autênticos, e não empenhada ("engagée") em de. Tudo que se escreve é de vanguarda. Mas há um signifi-
prol de uma realidade preconcebida. cado que permite o uso do termo "vanguarda", embora não
A obra de Vicente Ferreira da Silva e, em verdade, um s seja esse o significado pretendido pelo título desta pesquisa.
esforço isolado. Mas há indícios de uma nova mentalidade A literatura filosófica representa, em certo sentido, o passo
filosófica a quebrar as algemas das ortodoxas. O curioso preparatório para toda atividade literária, cultural, artística,
desse desenvolvimento é que se desenrola quase à margem consciente de si mesma. Neste sentido toda literatura filo-
das faculdades. A vida universitária alienou-se da realidade sófica é de vanguarda. A modesta atividade filosófica no
intelectual, seja pelo empenho político dos estudantes, seja Brasil, da qual tentei dar um esboço muito superficial, é,
pelo academismo dos professores. A nova mentalidade filo- neste sentido, a literatura brasileira de vanguarda. M as, afi-
sófica manifesta-se em discussões promovidas por entidades nal, "vanguarda" é um termo militar e uma van;s;uarda
quase particulares, e a forma literária que assume é o ensaio modesta não exclui um exército poderoso a seguir-lhe os
publicado em revistas. Essas publicações espelham ainda,
pela sua temática, o acanhamento que caracterizava o pen-
samento filosófico até ontem. Consistem, em sua maioria,
I passos. A civilização brasileira, que já alcançou alturas apre-
ciáveis nos campos da música e da pintura, e que mesmo no
campo da literatura sensu lato tem realizações maduras, não
de críticas de pensamentos alheios. Ou, quando tratam de terá encontrado a sua personalidade antes de criar sua lite-
problemas originais, tratam deles de maneira indireta: não ratura sensu stricto, isto é, sua filosofia. E é para a formação
se escreve sobre o problema do outro, mas sobre o proble- dessa vanguarda, formação modesta mas promissora, que o
ma do outro em Ortega. Mas essa inibição é progressiva- presente trabalho quer chamar a atenção, contribuindo,
mente mais formal que essencial, e a temática serve de más- assim o espera, para que essa formação se realize.
cara para pensamentos originais e, às vezes, poderosos. O
ensaísta faz de conta que analisa Bergson, quando, na reali-
dade, desenvolve um pensamento original sobre o conheci-
mento. Assim surge uma literatura filosófica brasileira,
imperceptivelmente: portanto impercebida.
A vivência do pensador filosófico no Brasil é portanto
a da angústia do isolamento. Falta-lhe contato não somen-
te com outros pesquisadores filosóficos, mas ainda com a
literatura em geral, em prol da qual a sua atividade se reali-
za. Mas também esse isolamento está prestes a ser rompi-
do. Uma colaboração consciente entre o pensamento teóri-
co e a atividade literária criadora está surgindo em lugares
136 137
i
:f Resenha

j Vicente Ferreira da Silva: Obras Completas, VoI. I,


Instituto Brasileiro de Filosofia, 1964.
A obra de VFS é constituída de uns poucos livros, de
ensaios publicados em revistas e jornais, e de notas não
publicadas. O Instituto Brasileiro de Filosofia pretende reu-
f
nir esse material e publicá-Io em dois volumes. O primeiro
volume acaba de sair e inclui: (1) Ensaios filosóficos (publi-
cados em 1948 pela IPE), (2) Exegese da ação (publicada em
t 1949 pela Livraria Martins Editora), (3) Dialética das cons-
ciências (publicada em 1950 pelo autor), (4) Idéias para um
novo conceito do homem (publicadas em 1951 pela Revista
! Brasileira de Filosofia), (5) Teologia e Anti-humanismo
~,' (publicada em 1953 pelo autor), e (6) Filosofia da mitologia
e da religião (ensaios publicados em várias revistas). O livro
obedece a uma ordem cronológica, e apresenta-se portanto
caótico quanto à sua temática e mesmo quanto às linhas
mestras do seu argumento. Representa uma fase do pensa-
mento do A., portanto um fragmento de uma obra que é
fragmentária em sua totalidade. Exige do leitor um esforço
de integração e de sistematização, já que a morte não permi-
tiu que o A., o faça. Mas uma leitura, mesmo superficial, do
volume ora apresentado convence imediatamente e de
maneira violenta que estamos em contato com um pensa-
mento de extrema originalidade e profundidade, e que esse

139
esforço, embora penoso, precisa ser feito. A tareb é dificul- transformar o mundo em conjunto de objetos transformo-
tada por dois momentos: o ardor do pensamento seduz o me em sujeito que transcende o mundo. O ódio cria por-
leitor e o arrasta consigo; e o estilo alterna entre passagens de tanto um projeto existencial no qual o sujeito se lança con-
inspiração poética e outras de um artificialismo exasperante. tra o objeto para aniquilá-Ia. Este projeto se chama:
As considerações seguintes são resultado desse esforço de "história do Ocidente".
integração e sistematização, são portanto parciais e represen- O clima do amor estabelece outros tipos de mundo.
tam um único aspecto visto de um único ponto de vista. Esses mundos não consistem de objetos, mas de presenças.
A melhor avenida de acesso para um pensamento filo- O outro amado está presente em tudo, e tudo evoca o ser
sófico me parece ser a consideração da sua teoria de conhe- amado. Como a mulher amada está no lenço, na flor, na
cimento. O A. fundamenta a sua teoria de conhecimento brisa, no sol, assim está tudo em tudo no mundo que amo.
na ar1<Í.lisedo amor e do ódio. O amor é o clima do reco- Cada "coisa" revela todos os aspectos do mundo amado
nhecimento, o ódio é o clima do conhecimento no sentido (Weltaspekte), e todo aspecto é uma presença divina, é um
que a tradição ocidental dá ao termo "conhecimento". O deus. O mar está em todas as coisas e não somente naquele
amor é o clima no qual admito o crescimento e o poder do objeto "mar" ao qual o ódio quer restringi-lo. Todas as coi-
outro que amo. O ódio é o clima no qual procuro sufocar o sas evocam o mar, porque todas tevelam um aspecto do
outro que odeio. O primeiro movimento do ódio é restrin- mundo chamado Poseidon pelos antigos. Reconheço o mat
gir o âmbito do objeto odiado. É justamente nesse movi- em tudo, porque é símbolo de Poseidon sob este aspecto.
mento que o outro se torna "objeto". No clima do ódio Um mundo assim constituído não pode ser conhecido no
existo num mundo constituído de objetos, cujos lugares nosso significado do termo, porque o pensamento lógico
procuro determinar sempre mais rigorosamente. Um deter- não se aplica a ele.
minado objeto está em determinado lugar e não pode estar O pensamento simbólico que se desenvolve nesse
em outro. É prisioneiro desse lugar, no qual o meu ódio o clima não admite a divisão entre sujeito e objeto, entre
determinou para diminuí-Ia e poder oprimi-Io. Um mundo conhecedor e conhecido. O homem está integrado no
constituído de objetos aprisionados e oprimidos pelo ódio é mundo, e, já que não o transcende, não pode conhecê-Io.
um mundo logicamente conhecível. A lógica é, com efeito, Pode apenas reconhecer-se nele.
o método do ódio na sua tentativa de oprimir, e, em última O ódio ao mundo que fundamenta a história do Oci-
análise, aniquilar o odiado: neste caso o mundo. O mundo dente é resultado do mito da transcendência. Esse mito,
dos objetos pode ser manipulado para ser aniquilado. Ao que nos vem da Bíblia e dos mistérios órficos, desvenda o
transformar os objetos em instrumentos, aniquilo com efei- aspecto (Weltaspekt) odioso do mundo. A revelação judeu-
to progressivamente o mundo odiado, porque imprimo cristã revela o mundo como antivalor, como o "sacrificá-
sobre ele a minha marca e o torno mera sombra de mim vel". O reino de Deus não é deste mundo, e a meta do
mesmo, isto é, "humanizo o mundo". A manipulação dos empenho humano é ultrapassar o mundo.
objetos é conseqüência do conhecimento, e é portanto o Em conseqüência "temos" corpo e alma. O corpo é
segundo movimento do ódio ao mundo. O mundo atual da tudo aquilo que rejeitamos e odiamos. A alma é o "salvá-
tecnologia é o último estágio desse segundo movimento. Ao vel". A história do Ocidente é a realização progressiva desse
140 141
mito. Atualmente está se aproximando de sua realização O mito do progresso faz com que vivamos sempre para
derradeira. A "humanização" total do mundo será o o instante seguinte. Nenhuma das nossas ações é significati-
conhecimento total e portanto a aniquilação dos corpos. va em si e por si, já que visa ao futuro.
Tudo será alma. A sociedade perfeita será pura contempla- Existimos num mundo de andaimes. Dada essa nossa
ção dos instrumentos automáticos, será portanto o céu. loucura não vivemos sensu stricto, já que todo instante visa
Tendo sido esgotado o mito da transcendência, terá sido ao próximo, e nenhum tem significado. Somos seres aliena-
alcançada aquela perfeição que acabará com o projeto do dos, já que estamos em oposição ao mundo, e em oposição
Ocidente. ao instante. Mas essa nossa loucura é inevitável, já que
A revelação do aspecto odioso do mundo pelos mitos fomos lançados para cá pelo projeto do progresso, isto é,
cristãos é uma revelação negativa. O ódio fez com que os pelo mito do ódio que revela o aspecto profano do mundo.
deuses se retirassem do mundo. Com o cristianismo Em outras palavras: é inevitável que sejamos cristãos lança-
começou uma maré baixa dos deuses, que retiravam a sua dos como sujeitos em um mundo objetivo. É inevitável, a
presença do mundo. Águas que baixam revelam o fundo não ser que modifiquemos radicalmente o nosso conceito
lamacento do lago. Os deuses em retirada revelaram o do homem. Para tanto a contemplação de outros tipos de
fundo lamacento, material, do mundo. O mundo esvazia- existências e outros tipos de mundo pode ser proveitosa.
do da presença dos deuses, esvaziado portanto de sacrali- Por exemplo, daquelas existências e daqueles mundos que
dade, revelou o seu aspecto odioso de profanidade. Esta é os mitos gregos estabeleceram. São mundos do amor mar-
a revelação bíblica que o Ocidente realiza progressivamen- cados pelo ritmo da circularidade do rito. Nesses mundos a
te. Desta maneira a própria retirada dos deuses constitui atividade humana é ritual, é participação das festas sempre
uma proximidade divina (Gottesnaehe), embora negativa. recorrentes que festejam os aspectos sacros do mundo. O A.
Porque também a Bíblia revela um aspecto do mundo, no entanto não nos diz como podemos dar esse salto do
embora um aspecto negativo. Neste sentido também a tempo linear para o circular, do profano para o sacro, do
Bíblia atesta a proximidade de um deus. Também a Bíblia pensamento lógico para o simbólico, do afastamento para a
é um mito autêntico, e estabelece um mundo como todo proximidade dos deuses. No fundo, não crê, ele próprio,
mito. Mas sendo esse mito o da transcendência, estabelece nessa possibilidade. É pessimista. A perfeição se aproxima
o mundo objetivo a ser aniquilado pelo sujeito. Neste sen- inexoravelmente. O que podemos fazer é apenas esboçar o
tido tem razão Nietzsche quando fala em "niilismo do gesto da revolta.
Ocidente". Mas o gesto é tudo. Creio, no entanto, que a análise
O mito da transcendência pode ser chamado também do gesto (a meu ver a meta da filosofia do A.) aparecerá no
de "mito do progresso", já que o progresso é o método do segundo volume da sua obra. É óbvio que o gesto é um
ódio ao mundo. É por isto que apenas o Ocidente, realiza- problema ligado intimamente ao da linguagem. De pro-
ção do mito do progresso que é, tem a vivência da historici- pósito suprimi todos os argumentos contidos no presente
dade. É um projeto linear e acabará quando tiver profaniza- volume que tenham a língua por tema. Não devemos
do inteiramente o mundo odioso. Quando tiver eliminado esquecer que a primeira preocupação do A. era lógica neo-
o último vestígio dos deuses. positivista e análise da língua. Essa primeira tendência
142 143
pervaga, subterraneamente, todo o seu pensamento, e Mas, quanto mais me afasto dela, tanto mais parece crescer
procura, em sua última fase, rearticular-se. Toda a sua filo- em importância e beleza. Os seus defeitos, como aqueles
sofia é uma filosofia do gesto in statu nascendi. }i que o três perigos que mencionei, ou como o estilo e as palavras
destino não permitiu que se realizasse, calo-me a respeito. difíceis, ou como a aparente confusão de temas, empalide-
Calo-me, ainda, porque creio que tive certa influência cem com o tempo, e suas virtudes, como as profundas e
sobre esse desenvolvimento. penetrantes visões da nossa situação, ou como sua Íntima
O esboço que dei é resumido e, neste sentido, falsifica vibração com o mistério do mundo que nos envolve, ou
o pensamento, já que elimina, e eliminando distorce. Mas como sua força de tornar palpáveis as raÍzes mesmas do
deve ter se tornado óbvio ao leitor que se trata de pensa- nosso pensamento, resplandecem com o tempo. O A. nos
mento poderoso e perigoso. Falarei primeiro do seu perigo. lança um desafio. Podemos (a meu ver: devemos) discordar
É perigoso, em primeiro lugar, porque despreza o intelecto dele. Mas devemos igualmente aproveitar esse presente dos
no sentido ocidental do termo, e é duplamente perigoso, "deuses" ao nosso pensamento que é a obra de Vicente Fer-
porque o faz com um intelecto extremamente agudo. É o reira da Silva.
diabo em Fausto que aconselha: Verachte nur Vernunjt und
Wissenschajt, des menschen allerhoechste Krajt (despreze
razão e ciência, a suprema força humana). Em segundo
lugar, porque todo pessimismo desesperado é perigoso, já
que tende a paralisar ação e pensamento. Em terceiro lügar,
porque alguns dos argumentos apresentados se prestam a
uma interpretação filo-fascista por espíritos politicamente
ingênuos, e é preciso confessar que o próprio A. era ingê-
nuo neste sentido. Não digo que um fascista possa jamais
,I
assimilar o pensamento do A, já que fascismo pressupõe ou '5!

falta de inteligência, ou má fé patente. Mas digo que alguns


aspectos do pensamento do A nasceram do mesmo húmus
f
do qual brotou o nazismo, a saber, o romantismo alemão !
com todas as suas conseqüências nefastas. Estes três perigos
contribuíram para o isolamento do A em vida. Creio que
devem ser encarados e eliminados da nossa mente, depois
de refutados, para podermos entrar em conversação produ-
tiva com esta obra.
Não cabe, em resenha, entrar em conversação como a
esboçada. A meu ver, trata-se da maior contribuição brasi-
leira para a discussão filosófica do Ocidente. É verdade que
não tenho suficiente distância da obra para poder julgá-Ia.
144
145
Concreto - abstrato

Quando crianças, brincávamos esse jogo. Os poetas


atuais continuam a brincá-Io. Formam, com essa brincadei-
ra, a vanguarda daquela atividade lúdica chamada "civiliza-
ção humana". O propósito do presente artigo é defender a
tese de que a poesia cria a civilização, e de que a poesia con-
creta cria a civilização do futuro imediato. Os meus conta-
tos com poetas concretos, e mais especialmente com o Sr.
Haroldo Campos, me fazem crer, embora tenham sido con-
tatos fugazes, que esses poetas estão quase conscientes do
papel que lhes cabe. Se o presente artigo contribuir para a
consciencialização desse papel, terá alcançado a sua meta.
Mas, mesmo se falhar, se apenas provocar alguma reação na
~ mente dos poetas e seus leitores, dou-me por satisfeito.
Começarei por uma definição dos dois termos, com
uma definição que estará em desacordo com os dicionários
filosóficos, mas que concordará com uma teoria que forma,
a meu ver, a base inconsciente da poesia. Definirei os ter-
mos "concreto" e "abstrato" como qualidades lógicas de
conceitos. Direi que o conceito "Haroldo Campos" é um
conceito concreto, e o conceito "poeta concreto" um con-
ceito abstrato, porque o primeiro tem apenas um represen-
tante, enquanto o segundo tem vários, embora talvez enu-
meráveis. O conceito concreto é portanto uma classe de um
único membro, e o abstrato tem vários membros que

147
podem ser, por sua vez, classes. Assim, o conceito "Haroldo morto. Resumindo o argumento torturado, chegamos ao
Campos" tem um único membro, que é o Sr. Haroldo seguinte resultado: o nome próprio significa-se a si mesmo.
Campos, o conceito "poeta concreto" tem vários membros, E este é realmente o característico do concreto (tanto lógico
por exemplo, também o Sr. Décio Pignatari, e o conceito como existencial): o concreto significa-se a si mesmo. O
"poeta" tem vários membros que são classes, por exemplo, conceito "Haroldo Campos" é concreto, porque significa
"poeta concreto", "poeta romântico" e "poeta alienado". O Haroldo Campos, e o conceito "poeta concreto" é abstrato,
termo "abstrato" pode ser portanto graduado, e o conceito porque significa algo além de si, por exemplo Haroldo
"poeta" é mais abstrato que o conceito "poeta concreto". Campos. Conceitos são significativos, apontam para algo.
Em suma: de acordo com esta definição são conceitos con- Conceitos abstratos apontam para fora de si mesmos, con-
cretos os nomes próprios como "Haroldo Campos" e "esta ceitos concretos apontam para dentro. A poesia concreta é
caneta", e são conceitos abstratos todos os demais nomes. concreta porque e quando aponta para dentro de si mesma,
Esta definição está em desacordo com os dicionários porque e quando se significa a si mesma. Um poema con-
que definem "concreto" como "realidade não abreviada em creto é concreto porque e quando é, em sua totalidade, um
contato ileso com a realidade total" (Hegel). (Escolhi de único nome próprio, significando-se a si mesmo.
propósito a definição hegeliana, porque demonstra como Esta definição da poesia concreta é de tremenda radi-
definições podem obscurecer, em vez de iluminar, o termo calidade, e não sei se os poetas concretos se dão conta do
a ser definido.) A tradição filosófica dirá, em outras pala- quanto é radical e tremenda a sua tarefa. É radical a sua
vras, que o conceito "Haroldo Campos" é abstrato, e que tarefa, porque consiste na proclamação de nomes próprios,
concretas são as impressões que o Sr. Haroldo Campos me portanto na criação das raÍzes da realidade. E é tremenda
causa. Mas a tradição filosófica é prisioneira de um círculo porque essas raÍzes brotam do chão do nada, daquele chão
vicioso. Porque essas impressões são abstrações da concreti- que faz tremer o poeta que o pisa. O poeta concreto, ao
cidade que é o Sr. Haroldo Campos, por exemplo a impres- abandonar o chão firme repisado das abstrações, o chão
são "poeta concreto" que ele causa. Insisto portanto na defi- sólido tradicional do significado externo, mergulha na
nição do concreto como nome próprio e da concreticidade região misteriosa do vir-a-ser, para de lá voltar, tremendo,
como qualidade (lógica e existencial) que ao nome próprio com novos nomes próprios, reféns do nada. Cada um des-
adere. ses nomes próprios novos, cada um desses "poemas concre-
A tradição filosófica afirmará que o nome próprio tos" novos, é uma conquista do intelecto criador ao caos do
"Haroldo Campos" significa as impressões que aquele poeta nada, e enriquece o território da realidade. Assim, é o poeta
concreto me causa. Nessa afirmação a circularidade e a concreto a um tempo a abertura da realidade para o nada, e
viciosidade do argumento me parecem patentes. Afirma, a defesa da realidade ante o nada que a cerca.
com efeito, em sua tentativa fútil de ultrapassar os limites Criar realidade é uma atividade lingüística, já que con-
da língua, que o nome próprio significa aquilo que o nome siste na criação do concreto, que é o nome próprio novo. A
próprio causa, ou aquilo que causa o nome próprio é o que poesia concreta, que se sabe atividade lingüística, é portanto
é aquilo que o nome próprio causa. Não pode haver mais uma criação autoconsciente. Sabe que criando língua está
belo exemplo de uma roda gigante girando em ponto criando realidade, o "concreto". As pesquisas lingüísticas dos
148 149
poetas concretos são sintomas de consciência despertada. civilização decai de suas origens concretas e progride em
Mas ao ler os poemas concretos temos a sensação de uma direção a suas metas abstratas. A civilização é uma conversa-
força refreada, de uma aventura tímida, de um avanço cheio ção que substitui progressivamente nomes próprios por
de reservas. Embora conscientes da sua tarefa, parecem os nomes sempre mais universais e abstratos. Os nomes pró-
poetas concretos inibidos na sua tentativa de cumpri-Ia. Seja prios, significando-se a si mesmos, estão cheios de significa-
por concessões que fazem aos que continuam presos aos do, mas o seu campo é restrito. Quanto mais abstrato um
conceitos abstratos, seja por receio de um mergulho definiti- nome, tanto maior o seu campo de significado, e tanto mais
vo no caos do nada, não queimam os poetas concretos as vazio. O processo civilizante é um avanço a partir da pleni-
pontes que os ligam à terra firme do significado externo. O tude do significado em direção à amplitude do insignifica-
resultado é, a meu ver, uma poesia híbrida que deixa apenas do. Na história da civilização ocidental esse processo teve
entrever a esperança daquilo que seria uma autêntica poesia três fases, aproximadamente paralelas com as três "Idades"
concreta. que nos ensinaram no ginásio: na Idade Antiga, partiu-se
Baseando-me na "antologia noigandres 5" no "plano- do concreto dos mitos, de nomes próprios cheios de signifi-
piloto para poesia concreta", devo confessar que o que me cado como "Iogos", ou "Adão" ou "Ahriman", e progrediu e
choca é a timidez tanto da teoria como da prática dos seus decaiu em abstrações ocas como "lógica aristotélica" ou
autores. Sem dúvida, descobriram eles um continente "antropocentrismo" ou "plotinismo". No fim da Idade
novo, mas parece faltar-Ihes a coragem de colonizá-Io. Em Antiga, a civilização tinha esgotado pela abstração os nomes
vez de empenhar-se com toda energia em prol da língua, próprios concretos dos mitos e estagnava na universalidade
continuam a manter ligações com empenhos que já devem das filosofias e religiões esotéricas. A Idade Média partiu
ter reconhecido como superados. Não são suficientemente do concreto da fé, de nomes próprios cheios de significado
radicais, e não admitem portanto a língua como fonte da como "Deus" e "alma" e "salvação", e progrediu e decaiu
realidade. Os seus poemas são, em conseqüência, acanha- em abstrações ocas como "prova ontológica" e "realismo" e
dos. Teorizam sobre artes gráficas, e praticam compromis- "tomismo". No fim da Idade Média a civilização tinha
sos como "TOPOGRAMAS ", quando deveriam teorizar esgotado, pela abstração, os nomes próprios concretos da
sobre a estrutura visual e auditiva das palavras, e quando fé e estagnava na universalidade da escolástica. A Idade
deveriam praticar o abandono de si mesmos à língua. Não Moderna partiu do concreto sensorial, de nomes próprios
obstante, é através de poemas como aqueles que podemos cheios de significado como "pedra" e "queda" e "conheci-
vislumbrar, embora nebulosamente, uma nova abertura da mento", e progrediu e decaiu em abstrações ocas como
nossa civilização já esgotada em tantos aspectos. "antipróton" e "campo unificado" e "Indeterminabilidade
O processo civilizante pode ser encarado de três ângu- de Heisenberg". No presente momento a civilização parece
los: a partir da sua origem, a partir de sua meta, e de dentro. ter esgotado, pela abstração, os nomes próprios concretos
A partir de sua origem esse processo se afigura como deca- dos sentidos, e estagna na universalidade dos conceitos
dência, a partir de sua meta como progressivo, e a partir do científicos. É precisamente nesse momento que surge a
seu curso como abstração. Decadência, progresso e abstra- poesia concreta. Surge portanto em "tempo de penúrià' e
ção são os três aspectos da "histórià', e podemos dizer que a como esperança de uma nova abertura.
150 151
Para a Idade Antiga a realidade se concretiza nos mitos, voz alta, a vivência angustiante dos "mm", quando contem-
para a Idade Média na fé, para a Idade Moderna nos senti- plado visualmente, e o significado conceitual dos nomes
dos. Para nós, geração a um tempo epigônica e pioneira, a "homem", "moenda" e "luoagem" criam uma unicidade
realidade é problemática e a luta por um senso de realidade concreta que é um elemento da nossa realidade. Não direi
é o tema das nossas vidas. A poesia concreta aponta para que os poetas concretos tenham alcançado a sua meta de
um novo campo de realização: a língua. É na língua que ela criar realidade. Como já disse, parecem-me inibidos, cheios
procura restabelecer o senso de realidade perdido. Numa de compromissos, e presos a abstrações da Idade Moderna
língua, bem entendido, que não seja um sistema de símbo- ultrapassada. Não me parecem totalmente autênticos no
los significando algo externo, mas um sistema de nomes seu empenho em prol da língua. Ainda não surgiu entre
próprios cheios do significado de si mesmos. Se compreen- eles nenhum Bach, e nem me parece ter surgido um Mon-
dermos a poesia concreta assim ela não é, afinal, algo tão drian entre eles. Mas não tenho dúvida em afirmar que eles
novo. A música, tal como vem sendo composta há pelo plantaram uma semente da qual poderá brotar a árvore do
menos quatrocentos anos, é uma poesia concreta, porque futuro. De que esta semente está sendo plantada no Brasil é
procura a realidade dentro de um aspecto concreto da lín- sintomático o papel que este país está chamado a desempe-
gua. A música é um proclamar de nomes próprios, porque nhar no conjunto do Ocidente. Apelo portanto aos poetas
se significa a si mesma, e a música é uma atividade lingüís- concretos que se tomem mais a sério a si mesmos e, apelo
tica, porque a sua matéria-prima é a língua falada despida ao público inteligente que se aprofunde com seriedade e
de significado externo. E a pintura, tal como vem sendo humildade nas tentativas tremendamente radicais que os
composta há poucos decênios, aproxima-se rapidamente de poetas concretos estão empreendendo. Estamos todos, nós
um estágio que pode ser chamado de "poesia concreta". Ocidentais em geral e nós no Brasil em particular, empe-
Procura a realidade dentro de um outro aspecto concreto da nhados na procura de um novo senso de realidade. Nessa
língua. É um proclamar de nomes próprios, porque se sig- procura, os poetas concretos formam uma vanguarda, não
nifica a si mesma, e é uma atividade lingüística, porque a necessariamente a única, nem necessariamente a mais bem
sua matéria-prima é a língua escrita despida de significado sucedida, mas certamente uma das mais empolgantes. Se,
externo. A vivência imediata de realidade que a grande com estas considerações, forneci a esses bandeirantes algu-
música proporciona, e a visão fugaz da realidade que algu- ma arma nova na luta do intelecto contra o caos, o meu
mas das novas pinturas proporcionam, testemunham uma esforço terá sido amplamente recompensado.
nova abertura da civilização, uma nova concreticidade.
Mas os poetas concretos dos quais trata este artigo são
mais ambiciosos que os músicos e pintores. Pretendem cap-
tar a realidade na plenitude da língua. Pretendem reunir
numa única concreticidade o aspecto musical, pictórico e
conceitual da língua. Dou como exemplo o nome próprio
"homemmoendahomemmoagem", criado por Haroldo
Campos. O sussurrar musical desse nome quando lido em
152 153
r'

o "lapa" de Guimarães Rosa


Ommm! Jóia no lótus! Hummm! Há centenas de anos
moem os moinhos de reza do Oriente, moem o trigo sagra-
do da língua para reduzi-Io a pó, ao pó mágico do "iapa".
Trituram os moinhos de reza a casca dura do conceito e libe-
ram a palavra da sua prisão lógica, para que a farinha mági-
ca da língua se possa derramar, em torrente vivificante, sobre
o espírito e sobre a alma e possa arrastá-Ios rumo ao silêncio
do nirvana. A casca dura do conceito e a palha seca da gra-
mática prendem e oprimem o pensamento. O moinho de
reza, ao aniquilar o conceito e a gramática, permite ao pen-
samento alcançar nas asas da língua os céus do nada. Purifi-
cada das crostas do significado lógico, a língua desfralda as
suas asas mágico-musicais, desfralda o "iapà'. Deixa as pla-
nícies prosaicas da conversação para elevar o espírito aos
cumes poéticos que se aproximam do firmamento silencioso
do Nada. Ommm! Mani padme! Hummm!
E nós, os ocidentais, para os quais em vão moem os
moinhos tibetanos, estaremos nós condenados à prisão per-
pétua da gramática e do conceito? Não, temos Guimarães
Rosa. Neste artigo pretendo comunicar aos leitores algo da
força elementar do "iapà' que se derramou sobre mim, vio-
lenta e vivificante, quando fiquei exposto, há poucos dias, a
Guimarães Rosa. Acabo de publicar um livro, Língua e Rea-
lidade, no qual abordo, timidamente, o problema do "iapa".

155
Esse livro era a razão ostensiva do meu choque com Guima- cristalina da língua francesa e ad~ptam-se a ela. Os intelec-
rães Rosa. A razão profunda é a corrente majestosa da língua tos que participam da conversação francesa ou se rendem
portuguesa, contra a qual ambos nadamos, embora ele o ao seu espírito, ou se desfazem, como Beckett, Artaud e
faça de maneira gloriosamente produtiva, e eu de maneira Ionescu, em salada de palavras. O alemão, cujas fontes bro-
modestamente fragmentadora. Convidou-me Guimarães tam diretamente do fundamento pré-histórico da língua, e
Rosa para uma aliança neste esforço, e aceitei o convite, cujas palavras estão carregadas da penumbra misteriosa que
como a toupeira (ou "taIpa", como diz ele) aceita a aliança a proximidade da origem lhes proporciona, inunda a con-
com o vulcão no seu esforço contra a crosta terrestre. O pre- versação ocidental com seus conceitos e suas formas grama-
sente artigo quer ser a primeira contribuição a essa aliança. ticais dificilmente penetráveis. Surge, graças a essa língua,
A língua portuguesa em seu estágio atual e tal como está um novo tipo de filosofar, um novo tipo de poesia, uma
sendo falada, escrita e pensada no Brasil ofereceum espetáculo nova teologia. Os intelectos que participam da conversação
alemã, imbuídos como são do lusco-fusco dessa língua,
singular no conjunto das línguas do Ocidente. É uma língua
neolatina, o que equivale a dizer que é uma corrupção bárbara encontram um labirinto de significados em toda direção
da língua latina. Isto a distingue das línguas germânicas e esla- que escolham. O russo, herdeiro tardio do grego, irrompeu
vas, que brotam diretamente do húmus lingüístico sem terem dramaticamente há pouco mais de cem anos da crisálida de
passado pelo banho purificador do latim e pela decadência vul- um patois humilde, um patois que tem o aroma da terra,
garizante da migração dos povos. Mas o português se distingue para resplandecer em forma de poesia lírica, no romance e
das demais línguas neolatinas por ter sofrido um segundo pur- no teatro. Mas a sua força criadora, com seus verbos plásti-
gatório no curso do seu avanço. Purificou-se no Renascimen- cos, seus prefixos multiformes e sua melodia a um tempo
to, quando todas as línguas neolatinas (com exceção talvez do suave e vigorosa, ainda não se apoderou de todos os terre-
romeno) derrubaram finalmente a barreira do latim e começa- nos do pensamento, e a rigidez pedante da nova ortodoxia
ram sua marcha vitoriosa para um desenvolvimento indepen- que o oprime dificulta o seu avanço.
dente. Mas recaiu na barbárie da vulgaridade e do preciosismo O português ressurge do seu sono de duas direções
depois de um breve florescimento. No instante do seu emergir absurdamente incongruentes: do sertão e das bibliotecas. É
desse seu segundo purgatório Guimarães Rosa está à espreita como se tivessem guardado a língua de Cícero e de Camões
para captá-Ia. O espetáculo é empolgante. simultaneamente em estufa e em geladeira para conservá-la.
Para compreendermos o que acontece, comparemos o No sertão o português retomou contato com a natureza bruta
e, com a assistência de elementos índios e bantus, ensaiou
português com outras línguas. O francês, herdeiro aparente
do latim, vem reconquistando, há pelo menos quatrocentos como que uma terceira primitividade. Nas bibliotecas iniciou
anos, o terreno da clara e distinta beleza estrutural do pen- o português essa dança formalista em redor de si mesmo, esse
samento latino. O tecido da língua francesa, tendo integra- minuete narcisista que o caracterizava até um passado recen-
do em si os elementos bárbaros e latinos, expande-se siste- tíssimo que resultou na maré dos estudos gramaticais e retóri-
maticamente em largura e profundidade, para submeter cos, sinais da esterilidade. Agora os dois braços do rio portu-
territórios sempre mais amplos à sua ação ordenadora. guês estão convergindo, tendo à margem direita os campos
Ciência e filosofia, poesia e teologia submetem-se à estrutura gerais do pseudoprimitivismo, à margem esquerda a Serra do
157
156
Preciosismo, e, à terceira margem do rio, Guimarães Rosa. façamos uso em novos campos de significado.' Como exem-
Graças a ele o português está adquirindo, a olhos vistos, as plo de seu destino possível cito o título e a primeira palavra
características de língua poética, filosófica e teológica, para do romance Grande Sertão: Veredas e "Nonada". Proponho,
participar doravante da conversação do Ocidente. neste exemplo, traduzir estas palavras para o campo da
Neste esforço criador Guimarães Rosa se apóia tanto especulação existencial, tão característico da atualidade.
sobre o sertão como sobre a biblioteca. Viaja com os Traduzo Grande Sertão: Veredas para o alemão por Gros-
vaqueiros em busca de palavras e formas. Dorme com os ses Rolz: Rolzwege para forçar uma ligação entre Heidegger e
bezerros para captar os ruídos e as imagens brutais que ten- Guimarães Rosa. "Holz" é uma palavra antiga alemã que
dem a realizar-se na linguagem sertaneja. Sorve a plenitude significa "florestà', mas também "madeirà' e, com pequeno
das vogais e mastiga a dureza das consoantes para apalpar a salto, "matéria-primà'. "Holzwege" são veredas sem rumo,
matéria-prima da língua. veredas frustradas. E retraduzo Grande Sertão: Veredas para o
Mas, simultaneamente, mergulha nos compêndios, português por: "Grande matéria-prima: esforço frustrado".
anota e compara formas da gramática latina, húngara, sâns- A partir dessa retradução é possível construir toda uma
crita ou japonesa para penetrar o tecido da língua e desven- ontologia que estaria, conforme creio, dentro do espírito de
dar-lhe a estrutura. E, tendo assim reunido a massa viva e Guimarães Rosa. E proponho uma análise da palavra
palpitante da língua, põe-se a amassá-Ia com ambas as mãos "Nonadà' que aponta os seguintes horizontes: "Não nadà',
para dar-lhe consistência e forma. Nenhum truque, nenhum "Não ao nadà', "Não há nada", "No nadà', e finalmente
artifício, nenhum golpe baixo estão proibidos nesse catch as non rem natam. A negação do nichts heideggeriano e do
catch can, nessa luta livre do espírito criador com o seu mate- "néant" sartriano é o ponto de partida do Grande Sertão
rial, a língua portuguesa. A ingênua onomatopoesia entra com suas veredas. E traduzo a frase heideggeriana Das Nichts
nesse jogo ("berberro"), e a falsa etimologia ("equiparado = nichtet (o nada nadifica) para a língua de Guimarães Rosa:
parado em cavalo"), e uma sintaxe ad hoc ("pois é não?"), e o "Nonadà'. Assim, creio, devemos manejar a arma poderosa
balbuciar ("lua luala"), e a subjetivação heterodoxa ("uru- que Guimarães Rosa nos confia.
buir"), e um filosofar sub-reptício ("fazia vácuos"), e saltos Mas será que Guimarães Rosa está construindo a sua
abruptos de camadas de significado ("Damadossola = dama língua para as finalidades que acabo de propor aos leitores?
da sala, Utrecht = o trecho"). E todas as suas capacidades par- A resposta é um enfático "nonada".
ticipam desta luta: os sentidos, o sistema neuro-vegetativo, o Porque utilizando a língua para a especulação filosófica
intelecto, a sensibilidade, a intuição, o palpite, o espanto reli- estaremos engrossando as fileiras dos hermógenes, estare-
gioso. Surge, desse esforço inaudito, uma torrente de língua mos hermetizando a língua. E é justamente contra essa her-
que é o português do futuro. metização, essa intelectualização e conceitualização que
Essa nova língua chega até nós em forma de contos e Riobaldo luta. Hermes, o pai dos hermógenes, é o intelecto
em forma de um romance. Mas nós, os interlocutores de ensimesmado, fechado hermeticamente sobre si mesmo, é o
Guimarães Rosa, temos por obrigação lançar mão dessa lín- demo contra o qual Riobaldo lança o desafio do nonada.
gua em novos contextos, se quisermos continuar a conver- Há um profundo antiintelectualismo nos esforços lingüísti-
sação por ele iniciada. Ela está à nossa espera para que dela cos de Guimarães Rosa. São esforços dirigidos contra a
158 159
língua, esse intelecto palpável. Trata-se de um violentar
furioso da língua, de um triturar e um moer da língua, por-
que a língua, sendo intelecto, é o demo. O pacto que Gui-
marães Rosa assinou com a língua no trivium do grande
sertão, ele o usa para destruí-Ia. A força diabólica da língua,
pela qual é possuído, ele pretende usá-Ia como exorcismo. E
se nós, persuadidos por ele, nos entregamos a ela, encanta-
dos, estaremos nos entregando ao diabo. Do poder da língua portuguesa
Mas será esta toda a verdade? O nome Riobaldo o
nega. Qual rio, lança-se contra o intelecto, mas lança-se
debalde. O seu antiintelectualismo está frustrado. É ele
próprio invadido pelo doce veneno da língua. O próprio I- Da navalha de Occam
Riobaldo é um hermógenes disfarçado. E a dupla negação A nova velha história de Guimarães Rosa, "Fita verde
do nonada é uma afirmação dialética, tanto do intelecto
no cabelo", é uma peça brilhante, não no sentido gasto,
como da "intuição", tanto da língua como do silêncio,
cansado e empoeirado que a palavra "brilhante" tem na
tanto de Deus como do diabo. A impossibilidade terrível de
conversa fiada inautêntica, mas no sentido mineralógico
distinguir entre ambos, e o adorar dialético, o "Diadorim"
de ambos, é o tema fundamental da atividade criadora de da palavra "brilhante". Assim, mineralogicamente, peço
que seja considerada pelos leitores. É produto da ação
Guimarães Rosa, como o é de todo espírito imerso em lín-
abrasiva de um intelecto e uma sensibilidade aguda sobre o
gua. A nova língua que jorra de Guimarães Rosa é uma dia-
mineral quebradiço e traiçoeiro da língua portuguesa. O
doração que é um invocar, um provocar e um evocar do
diamante duro da conversação, quase irreconhecÍvel den-
inarticulável. É portanto equívoca essa língua, e justamente
tro da formação geológica cinzenta da conversa fiada,
por isto uma língua fértil em possibilidades futuras.
transformou-se, graças a essa ação abrasiva, no brilhante
Essa dupla adoração (de "ad-orare" = "falar em direção
que o leitor vê, e cujas cores mudam, perturbadoramente,
de"), essa oração hermafrodítica, que tem algo de Hermes e
de acordo com a luz com a qual o leitor o ilumina, e de
algo de Afrodite, e que Guimarães Rosa chama de "Diado-
acordo com a versão à qual o leitor o submete. O processo
rim", os tibetanos chama de "iapà'. Como os moinhos de
tem portanto quatro fases: a fase bruta, do diamante den-
reza elevam o espírito rumo ao nada pela trituração siste-
tro da sua formação, a grande conversação portuguesa; a
mática da língua, assim o nosso espírito é libertado do jugo
fase ingênua, do garimpeiro à procura do diamante, Gui-
do significado pela diadorim da língua de Guimarães Rosa. marães Rosa o bandeirante; a fase técnica, do talhado r a
Ele destroça em nós as algemas do conceito e da gramática, trabalhar o diamante, Guimarães Rosa o artífice; e a fase
e abre uma abertura para o nada pelo leve sussurrar das
final, do brilhante a serviço do joalheiro, a grande conver-
vogais e o suave deslizar das consoantes. É a partir dessa
sação portuguesa enriquecida. O presente artigo pretende
abertura que poderemos continuar a conversação portugue-
sa rumo ao inarticulável. Ommm! Diadorim! Humm! qirigir a atenção para a terceira fase. Submeterá a tese de

160 161
que o instrumento usado no talhar do diamante é a nava- como honestidade estilística e honestidade existencial se
lha de Occam. confundem.
Entia praeter necessita tem non sunt multiplicanda. (As Linguagem honesta são pensamentos honestos, e pen-
entidades não devem ser multiplicadas desnecessariamen- samentos honestos são o confronto honesto do intelecto
te.) Que arma terrível é a navalha de Occam, se brandida com o nada que o cerca. Linguagem honesta é portanto a
dentro da conversação portuguesa. O uso luxuriante do abertura do intelecto para o nada, é a resolução do intelec-
sinônimo e a preciosidade da forma gramatical caracteriza- to para a morte, para "o medo do Lobo". E é somente den-
va até há pouco, e caracteriza, levemente disfarçada, até tro desse medo, alcançado graças à honestidade lingüística,
hoje a prosa portuguesa. Essa flora tropical de cipós e para- que o intelecto "tem juízo pela primeira vez", isto é, que o
sitas sufocava, como ainda sufoca, as "plebeinhas flores" intelecto se torna livre. É somente dentro desse medo que o
das palavras e das formas honestas. E, sufocando as pala- intelecto pode exclamar: "Venha, Lobo!"
vras e as formas honestas, sufoca os conceitos e os pensa- A simplicidade ingênua do estilo do conto é, no entan-
mentos honestos. A força primordial da palavra autêntica, to, uma simplicidade que nasce da multiplicidade, e é ingê-
e o poder revelado r da forma autêntica, ficam quase intei- nua porque é nova. É por isto que Guimarães Rosa chama a
ramente encobertos pela selva intricada da desonestidade história de "nova velha". Para ilustrar esse fato, permitam
estilística. Guimarães Rosa, brandindo impiedosamente a que conte uma lenda. Quando foi destruído o templo do
navalha de Occam, desvenda as fontes da língua portugue- Senhor em Jerusalém pelas legiões romanas, os anjos do
sa e nos força a encarar o nada do qual ela brota. Ressur- Senhor carregaram as pedras para Praga e lá reconstruíram
gem, com impacto brutal, do colo escuro do nada, a vovó, o templo, mais tarde conhecido por templo "velho-novo".
a sua linda netinha, e ressurge o próprio Lobo. Estamos '" T / It-neu ) 101
velh o-novo " Ia c . reconstrlll'd o, "em memona / t
, . " la-
sendo mergulhados para dentro de uma daquelas situações tnai) do templo primitivo.
primordiais das quais fomos projetados. Tudo "era uma Assim Guimarães Rosa reconstrói, com as pedras velhas
vez", tudo é redescoberto como eterno retorno, se elimina- da língua portuguesa, o velho mito do Chapeuzinho Verme-
mos a conversa fiada pretensiosa que pretende encobrir o lho, destruído pela conversa fiada, constrói um "novo-velho"
mito. A vovó, Chapeuzinho Vermelho e o Lobo estão aí, mito. E, já que é autêntica essa construção, a qualidade do
dentro da língua portuguesa, dentro do núcleo do nosso "novo-velho" permeia toda construção gramática, informa
Eu, portanto encobertos tão-somente pelos conceitos e os toda palavra do conto. Toda forma gramatical, toda palavra
pensamentos falsos e ocos, "que a gente não vê que não vibra com essa novidade velha, com essa antigüidade revolu-
são". Tendo rasgado a falsidade do estilo, Guimarães Rosa cionariamente nova. As palavras readquirem a força invoca-
rasgou o véu que tapa nossa visão da situação existencial dora que lhes é própria originalmente, como por exemplo "o
dentro da qual fomos jogados. Força-nos a ter medo do repentino corpo", e as formas o seu poder ordenado r da rea-
Lobo. lidade, como por exemplo "quando a gente tanto por elas
A clara noite desse medo, dentro da qual Guimarães passa". Mas readquirem essa força e essepoder "em memória"
Rosa nos coloca, deve a sua clareza à sua honestidade estilís- da força e do poder primitivo. A velha situação mítica ressur-
tica. Com efeito, ao contemplarmos o conto, sentimos ge, mas ressurge metamorfoseada. Justamente por ser tão
162 163
velho o mito do Chapeuzinho Vermelho, é tão radicalmente seu título, brota organicamente qual semente que se desen-
nova a história da Fita-Verde. Justamente por ser tão velha a volve em planta. O próprio estilo é o conteúdo do conto, e
palavra "de repente", é tão radicalmente nova a palavra o conteúdo do conto é o seu estilo. É por isto que toda
"repentino corpo". Justamente por ser tão velha a forma palavra e toda forma do conto já são o conto todo, e é por
"passar tanto", é tão radicalmente nova no presente contex- isso que o conto todo pode ser considerado como uma
to. A velha situação mítica, invocada e reconstruída, é nossa única palavra: em breve, um mito.
situação existencial de aqui e agora. Ao pôr a velha situação Os mitos brotam da proximidade do nada. Surgem
para cá (herstellen, poiein), Guimarães Rosa se revela "poetà': naquele ponto, no qual o intelecto se choca contra o nada. O
cria a situação do aqui e agora. E o mito diz respeito, "repen- choque do intelecto contra o nada resulta num grito de
tino", não ao ciclo das gerações (kyklos tés genéseos) que são espanto, que é o mito. Esse grito de espanto arranca como
eternamente engolidas pelo Lobo para sair eternamente de que pedaços ao nada e os lança para dentro da conversação,
sua barriga, mas diz respeito ao Lobo que está dentro da para que esta deles se apodere. A história de Guimarães Rosa
nossa barriga para devorar-nos, de dentro para fora, definiti- é um grito de espanto assim, um grito de espanto ante o
vamente. O mito de Guimarães Rosa, justamente por ser o Lobo. Espanta Guimarães Rosa que, embora tenham os
velho mito de Chapeuzinho Vermelho, é o novo mito de lenhadores exterminado o lobo, no curso dos últimos dez mil
Fita Verde, e o medo do Lobo, justamente por ser a velha anos, nada tenha perdido o Lobo do seu terror primitivo. E
angústia da reencarnação, é a nova angústia da morte. esse espanto problematiza todo aquele enorme processo cha-
E justamente por ter sido tão autenticamente "desco- mado "progresso". O mito da Fita Verde é a resposta do
bertà' a velha história, é tão autenticamente "inventadà' a homem angustiado à absurdidade desse "progresso". É uma
história nova. Saiu de lá, com a fita verde inventada no resposta autêntica, porque haurida nas fontes da língua.
cabelo. Mas há um elemento dentro da simplicidade ingênua
Na literatura abundam mitos ressuscitados. São outras da história, que mitiga a angústia e torna diáfano o mito.
tantas falsidades. Correm, sombras, empós do mito. Mas a Esse elemento é a sua ironia. Embora Guimarães Rosa este-
história de Guimarães Rosa sai atrás de suas asas ligeiras, ja empenhado no seu conto, não está por ele englobado.
porque ela não fala do mito, ela fala o mito. Toda palavra e Uma parte da sua existência transcende o conto. Conserva
toda forma da história faz parte do mito, é palavra e forma uma distância irônica, uma distância contemplativa. E essa
mítica, porque não só a história, ma toda palavra e forma é ironia, ela também, não pervaga somente o conto todo,
nova-velha. O conto conta, não algo que lhe é estranho e mas permeia toda palavra e toda forma. É graças a essa iro-
externo, mas conta-se a si mesmo. O Lobo não está somen- nia que o mito não é nem novo, nem velho, mas novo-
te dentro da avó, mas está dentro de toda palavra e dentro velho. Falta-lhe a qualidade do engagement total, da fé abso-
de toda forma. A partir da primeira palavra do conto o luta. Embora essa ironia mitigue a angústia da morte,
Lobo já está lá, nenhum, desconhecido nem peludo, e a intensifica a absurdidade da situação existencial na qual o
avó, a partir da primeira palavra do conto, já não está mais mito se deu.
lá, sendo que demasiado ausente. O conto todo não faz Porque demonstra que a simplicidade ingênua da his-
mais que desenvolver o seu próprio projeto, já contido no tória é uma simplicidade sem fundamento (bodenlos), e
164 165
uma ingenuidade sofisticada. Esta a dicotomia da situação 11 - Da flauta de Pã
de Guimarães Rosa, que é a situação de todos aqueles que
se negam a decair na conversa fiada: a impossibilidade irô- A natureza, aquele conjunto vivo de coisas vivas e mor-
nica de distinguir entre a avó e o Lobo, e a falta conseqüen- tas que os gregos chamavam de physis, respira ritmicamen-
te da fé em ambos. E essa profunda dicotomia, essa profun- te. As ciências naturais estão dedicadas ao esforço de desco-
da tragédia da nossa geração, ela também se espelha em brir esse ritmo, essas "leis que regem a natureza", e
toda palavra e toda forma do conto. É que Fita Verde não transformá-Ia, destarte, de deusa em serva. Essa transforma-
só se espanta, mas também se entristece de ver que perdera ção tem duas conseqüências inesperadas: mata a natureza,
em caminho sua "grande fita verde". que doravante se torna conjunto morto de coisas vivas e
Como vêem os leitores: o mito de Guimarães Rosa é mortas, e aliena o homem da natureza. Os gregos arcaicos,
um mito que chora a morte do mito, e não a morte de um inspirados pelas musas, conheciam o ritmo da respiração
Deus. É o mito da ironia. sem recurso às ciências, porque vibravam em simpatia com
Eis o poder tremendo da língua portuguesa: aplicando ele. Era o ritmo musical, o ritmo das musas, que regia a res-
contra ela a navalha de Occam, limpando-a das impurezas da piração da natureza. Era um canto esse ritmo, e a natureza
conversa fiada, do preciosismo e do soit-disant realismo, ela por ele era encantada. Os deuses e homens que cantavam o
brilha e resplandece com aparente lucidez e profunda opaci- canto, bocas das musas que eram, eram encantados e
dade. Ela, a língua portuguesa, justamente por ter sido tão encantadores como a natureza da qual brotaram e a qual
abandonada, abusada e estrangulada no passado, rende-se a cantaram. O canto suspirado por Pã na flauta, o canto cho-
quem dela se aproxime autenticamente e desvenda a quem rado por Orfeu e dançado pelas bacantes, o canto da fuga
dela se apodere aquilo que chamamos de "realidade". Um pânica, da harmonia órfica, da síncope dionisíaca, estas
pedaço dessa realidade brilha na história de Guimarães Rosa. eram as "leis que regiam a naturezà'.
Quem ler atentamente o conto, quem se render à magia das Pitágoras tentou formulá-Ias em números mágicos e
suas palavras e formas, captará algo dessa realidade. E aquele iniciou assim a longa caminhada a partir da flauta de Pã até
que não conseguir captá-Ia, que diga que são rebuscadas e à equação maxwelliana. Mas surge, ainda assim e de vez em
artificiais as considerações desenvolvidas neste artigo. Terá quando, um cantor entre nós e retoma a flauta de Pã, aban-
razão em afirmá-Io, do seu ponto de vista. Porque, para poder donada e escondida no vale do Sirimim, e, de repente, vibra-
captar as vibrações misteriosas da língua, é preciso ter uma mos nós, os seres cientificamente alienados, com a respira-
capacidade toda especial, por que não chamá-Ia de "graçà'? ção rítmica da natureza rediviva. "As garças" de Guimarães
Quem tem o dom dessa graça, escutará o murmurar podero- Rosa, o conto-canto que acompanha este artigo, é uma
so da língua portuguesa numa pequena história aparentemen- redescoberta da flauta de Pã na forma da língua portuguesa.
te despretensiosa como "Fita Verde", e para quem não a tem É um conto musical, inspirado pela musa chamada "língua",
todos os tomos da literatura do mundo não revelarão o mito que canta a espiral de uma alta saudade: os círculos crescen-
mestre, o mito dos mitos, que é a língua. tes da natureza viva. O presente artigo é um convite ao leitor
para contemplar o poder musical da língua portuguesa que
jorra daquela boca das musas que é Guimarães Rosa.

166 167
Há um personagem no conto que abre uma fenda na sua Juntas aparecem, de jusante, no mito de Íbico, ano por
construção compacta: o "entendido". É um intruso do mundo ano, quando os jogos olímpicos das nossas vidas se travam.
"sujeitiforme" (Vicente Ferreira da Silva) dentro do mundo A espécie de recado que têm é a mensagem pitagoréica da
mágico do vale do Siri mim, e assume uma posição irônica regra, da ordem, do logos. São os legisladores. Seus bicos,
dentro dele. O presente artigo tem o dever ingrato, mas neces- pontuais, marcam as horas no relógio das nossas vidas.
sário, conforme creio, de assumir para com o conto a posição Nigra (sedfirmosa) persegue-Ihes as sombras no chão, ela -
do "entendido". O impacto do conto é direto e vivencial, é tão negra; elas - tão brancas.
"denso" (dicht) e "poético" (Dichtung). A crítica afrouxa a den- Sirimim, o nosso vale, está situado entre a brancura
sidade, traduz o conto da camada vivencial para a intelectual e das garças que nos visitam porque querem, e a negrura do
o integra na grande conversação que somos. Dentro dela ele se cachorro. As garças são de um branco indubitável, formam
propaga em busca da imortalidade. Diante do olhar crítico a o horizonte indubitável do vale. Nigra, que é uma bondosa
inspiração poética se torna transparente e os fios do seu tecido cachorra, late, aborrecida, ante essa falta de dubiedade. Mas
aparecem: são palavras e formas gramaticais, e o poeta é um há, no nosso vale, um homem que anda comendo bicho
criador e ordenador de língua. "As garças" são um hino da lín- branco, e há o horrível e voraz bicho garceiro. Estes, o
gua portuguesa em louvor da língua portuguesa, e, ao enaltecê- homem e o bicho, destroem a imaculada e virgem brancu-
Ia engrandecem-na produtivamente. Guimarães Rosa ressusci- ra, a qual, morrendo, fura o olho de Nigra, já quase cega. O
ta a natureza porque a cria com seus bichinhos se-mexentes, homem comedor e o bicho voraz eliminam os limites do
com suas garças em-pé-zinhas, com suas infundadas urupucas. nosso vale. Morreram as garças, demasiado brancas, e agora
A natureza vive, é nova, porque vivem, são novas as palavras e está muito escuro. (Ou, como diz Nietzsche, cada dia se
as formas que Guimarães Rosa cria. Criando língua, cria natu- torna mais frio.) Este o conto do nosso vale, este o conto de
reza, e, louvando a natureza, louva a língua por ele criada. A "As garças" e das nossas desgraças.
natureza é um subproduto da língua, e o vale do Sirimim é um As leis que regem o vale do Sirimim, e junto das quais
sub-produto da língua de Guimarães Rosa. Criticando a lín- Guimarães Rosa vai embora, horizonte acima, são as regras
gua de Guimarães Rosa, estaremos fazendo "ciência natural" da língua portuguesa. As próprias garças, legisladoras, não
num sentido ontologicamente mais imediato que pelo sistema passam de portadoras de um recado setentrional, da har-
da física ou biologia. É lingüisticamente que compreendere- monia mágica da língua. Guimarães Rosa, criador e legisla-
mos os discardumes de peixes, e não ecologicamente, e é lin- dor do Sirimim, a ela está subordinado. De que lugar, pelo
güisticamente que compreenderemos as graças nivais, e não rio, do norte, vem ele? Do bosque de Pã, onde nasce a lín-
mecanicamente. A natureza é regida primariamente pela poe- gua. Lá, na fronteira entre a angústia pânica e o mistério do
sia, e só secundariamente pela matemática, essa bisneta da poe- deus, surge o logos, surge o sete e o três sagrado, surge o
sia. A função ontológica primordial da língua salta aos olhos contar de contos. O sussurrar pânico que Guimarães Rosa
em "As garças". ausculta, com suas conotações fastas e nefastas, é o murmu-
Setentrionais, vindas das regiões do sete e três, são as rar denso e cheio de significado que um desenvolvimento
garças brancas, têm outra espécie de recado. São as aves do milenar transformou nas proposições claras e isentas de sig-
destino. Já são conhecidas nossas. nificado da semântica, linguagem na qual a ciência conta os
168 169
seus contos. Ambos, Guimarães Rosa e a ciência, vêm do
Os poetas são os criadores de palavras e regras, portan-
mesmo bosque, ambos são regidos pelas mesmas regras, to os criadores de natureza. Tendo criado a palavra "jere-
ambos contam os mesmos contos. Mas Guimarães Rosa miar", Guimarães Rosa criou o conceito, e, tendo criado o
mora perto do bosque e conhece a angústia pânica de perto. conceito, criou o fenômeno que o conceito "intende". Os
A ciência (o comedor de garças) e a matemática (o bicho biólogos e os psicólogos virão, no seu tempo, para inseri-Io
garceiro), aparentemente abrigados pelo vale, ignoram ou dentro da sua realidade. Mas os poetas criam sem saber o
pretendem ignorar suas fontes. A realidade na qual nos que fazem. São instrumentos inconscientes da língua. Gui-
conta Guimarães Rosa é portanto, conscientemente, a reali- marães Rosa é a língua tornada consciente de si mesma e da
dade sorvida na fonte da língua, enquanto que a realidade sua função produtora da realidade. Em Guimarães Rosa a
da qual a ciência nos conta se dá ares de ser mais "realida-
língua portuguesa despertou para si mesma. Talvez tenha
de". Enganados pela ciência somos tentados a afirmar que o acontecido algo parecido com o inglês em Joyce, mas o
vale do Sirimim é fictício, enquanto que os mundos da físi- fenômeno, por ser português, não admite paralelos. Em
ca e da biologia são "dados". Justamente o contrário é a ver-
contos como ''As garças" a língua portuguesa cria conscien-
dade. O vale do Sirimim é "dado" pela língua, a qual, para temente, se quiserem cerebral e metodicamente, realidade
dar-se, abriu uma boca chamada Guimarães Rosa, enquan- nova. Cria essa realidade dentro do projeto que lhe é pró-
to que os mundos das ciências são abstrações fictícias de
prio, isto é, à maneira portuguesa, mas ao mesmo tempo
dados como este. A natureza das ciências naturais é uma
vira-se contra si mesma, modifica-se e expande-se, é uma
abstração da natureza de contos como este, e as diversas
língua nova. E vejam como é essa realidade que surge desse
espécies e gêneros da biologia são abstrações dos bichinhos esforço reflexivo da língua: cheia de significado estético e
se-mexentes. É por isto que a natureza das ciências é morta, ético, uma realidade bela e empolgante.
e as espécies e gêneros da biologia são mortos, enquanto A beleza do vale do Sirimim dispensa comentários que
que o vale do Sirimim vive. Mas as regras que regem ambas a diminuiriam, em vez de ressaltá-Ia. Mas a sua qualidade
as naturezas são as mesmas; são as regras da língua. No vale ética quer ser comentada. Os dois pólos éticos da realidade,
do Sirimim essas regras funcionam vitais e palpitantes, por- o destino indubitável, as garças, e a dúvida chão, Nigra a
que jorram diretamente do centro da língua portuguesa. liberdade, heimarmené portanto e hybris, formam as duas
Nos mundos das ciências funcionam cansadas e repetitivas, colunas autênticas da situação humana. Quando rui uma
porque provêm de uma linguagem abstrata e universal que pela ação destruidora da inautenticidade, arrasta consigo a
é a matemática pura. A matemática é uma língua que com- outra. A tentativa inautêntica de destruir a necessidade,
prou sua universalidade pelo preço da abstração, pelo preço empreendida pelos comedores de garças e assistida pelo mis-
do esvaziamento. As línguas vivas que lhe servem de fonte, terioso bicho garceiro, implica a destruição da liberdade. Os
e das quais o português é uma, crescem e se desenvolvem à
comedores de garças, nós os conhecemos bem, são os racio-
sua revelia. O conto de Guimarães Rosa é uma bela ilustra-
nalistas que não sabem que carne de garça não presta, com
ção desse crescimento e desenvolvimento. E é tanto mais
ranço de peixe. Mas o bicho garceiro, que não consegue
significativo, por representar um crescimento e um desen-
volvimento conscientes. devorar a garça, arrancando-lhe apenas a asa, essa força anti-
racional e bárbara, este, por ser menos conhecido, é mais
170
171
perigoso. A aliança entre o racionalismo e anti-racionalismo, Dados do autor
que é resultado da perda da fé, e que torna cega a liberdade
tanto quanto mata a necessidade, caracteriza nossa situação
moral, caracteriza nosso vale. Duvido que Guimarães Rosa
concorde inteiramente com esta interpretação da mensagem Vilém Flusser nasceu em Praga em maio de 1920.
ética do seu conto, mas, talvez malgré lui, me parece ser este Ainda como estudante da Universidade Karlov, foi expulso
o recado que nos traz das fontes da língua. A conversação pelos nazistas em 1939, vindo para o Brasil. Chegou ao Rio
que ampliará o conto desvendará essa mensagem de manei- de Janeiro em 1940 e em seguida fixou residência em São
ra muito mais satisfatória que este artigo curto pode tentar, e Paulo/SP. A partir de meados dos anos 50, dedicou-se ao
que esta posição engagée pode vislumbrar. Porque, como trabalho intelectual, participando do Instituto Brasileiro de
mensagem poética que é, tem ela muitas facetas. Filosofia, lecionando na Escola de Arte Dramática e no
Futuramente, e com o correr da conversação, o conto Instituto Tecnológico de Aeronáutica, e escrevendo no
"As garças" se tornará parte integrante da conversação por- Suplemento Literário de O Estado de São Paulo e na
tuguesa. Será parte da realidade portuguesa, e como tal Revista Brasileira de Filosofia. Entre 1963 e 1971,
parte da realidade do Ocidente. Futuras mentes por ele colaborou com o Prof. Milton Vargas, a quem posterior-
serão parcialmente informadas e o conto agirá, desta mente substituiu, ministrando a disciplina Filosofia e
maneira, e em muitos níveis, em prol deste grande processo Evolução da Ciência, na Escola Politécnica da Universi-
lingüístico chamado "pensamento". Mas hoje, quando pela dade de São Paulo. Em 1972, mudou-se para a Itália,
primeira vez penetra o real a partir do potencial, podemos depois foi para a França, iniciando uma contínua atuação
sentir-lhe toda a originalidade. Lendo o conto podemos como conferencista em vários países da Europa, sobretudo
sentir, vivencialmente, como surge realidade. Dou graças ao na Alemanha, mantendo sempre viva a relação afetiva e
deus das línguas que permitiu o fenômeno Guimarães profissional com o Brasil. Publicou em diversos países,
Rosa, como que para provar de forma prática as minhas sendo alguns títulos originalmente em português, com
teorias. O poeta é o único criador de realidade, e os demais destaque para Natural: mente - Vários acessos ao signifi-
esforços intelectuais são meramente epigônicos e parasitá- cado de Natureza; Pós-História: Vinte instantâneos e um
rios, inclusive este artigo. modo de usar; Filosofia da Caixa Preta, Ficções Filosófi-
cas. O presente texto foi publicado inicialmente em 1967
na Coleção Ensaio, do Conselho Estadual de Cultura/São
Paulo, passando a integrar, a partir de agora, a Coleção
Ensaios Transversais, da Escrituras Editora.

172 173

Você também pode gostar