Você está na página 1de 23

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

DIMENSÕES DO PODER E PACTO FEDERATIVO


PROF. DR. GIOVANI DA SILVA CORRALO

NATÁLIA ROSA MOZZATTO

FEDERALISMO EM CRISE? UMA ANÁLISE CRÍTICA DO


SILENCIAMENTO DOS ESTUDOS DE GÊNERO NO PLANO DE
EDUCAÇÃO DO MUNICÍPIO DE PASSO FUNDO

Passo Fundo
Março/2021
SUMÁRIO

Resumo 1
Abstract 1
Introdução 2
1Problemas de gênero 4
2 O Município no pacto federativo 8
3 O caso do Plano Municipal de Educação de Passo Fundo: uma violação ao
pacto federativo? 11
Considerações finais 15
Referências Bibliográficas 17
FEDERALISMO EM CRISE? UMA ANÁLISE CRÍTICA DO SILENCIAMENTO
DOS ESTUDOS DE GÊNERO NO PLANO DE EDUCAÇÃO DO MUNICÍPIO
DE PASSO FUNDO

FEDERALISM IN CRISIS? A CRITICAL ANALYSIS OF THE GENDER


STUDIES’ SILENCE IN THE EDUCATION PLAN OF THE MUNICIPALITY OF
PASSO FUNDO

Natália Rosa Mozzatto1

RESUMO

A Lei Municipal nº 5.387/2019, aprovada pela Câmara de Vereadores de Passo


Fundo em 2018, alterou a definição de "gênero" no Plano Municipal de
Educação, a fim de relacionar o gênero sempre aos termos "masculino" e
"feminino", sob argumento de um combate à chamada "ideologia de gênero".
Por outro lado, no âmbito do federalismo o Município possui autonomia para
implementar políticas públicas, reforçando os direitos e garantias fundamentais
previstos na Constituição Federal. Assim, analisando-se no que consiste o
“gênero” e o papel da construção social patriarcal na violência de gênero,
busca-se propor uma análise crítica do silenciamento dos estudos de gênero
no PME de Passo Fundo, relacionando a mudança legislativa ao papel do
Município no pacto federativo à luz da Constituição Federal.

Palavras-chave: Gênero. Diversidade sexual. Pacto Federativo. Plano


Municipal de Educação. Federalismo.

ABSTRACT

The Municipal Law Nº 5.387/2019, approved by Passo Fundo’s City Council in


2018, changed the definition of "gender" in the Municipal Education Plan, in
order to relate gender always to the terms "male" and "female", under the
argument of combating the so-called "gender ideology". On the other hand,
within the scope of federalism, the Municipality has autonomy to implement
public policies, reinforcing the fundamental rights and guarantees provided in
the Federal Constitution. Thus, analyzing what constitutes “gender” and the role
of the patriarchal social construction in gender violence, it aims to propose a
critical analysis of the silencing of gender studies in the Passo Fundo’s PME,
relating the legislative change to the role of the Municipality in the federative
pact in the light of the Federal Constitution.

1
Advogada, Mestranda do curso de Mestrado em Direito do Programa de Pós-Graduação em
Direito – PPGD da Universidade de Passo Fundo, vinculada à linha de pesquisa Relações
Sociais e Dimensões do Poder, especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela
Universidade do Vale do Itajaí (2014). E-mail 96745@upf.br.
1
Keywords: Gender. Sexual diversity. Federative pact. Municipal Education
Plan. Federalism.

Introdução
No ano de 2018 um debate político gerou enorme polêmica no âmbito da
Câmara de Vereadores de Passo Fundo: foi discutida e votada a alteração da
redação original do Plano Municipal de Educação, representado pela Lei
Municipal nº 5.146/2015, a fim de alterar a definição da palavra "gênero" no
documento, relacionando-a exclusivamente aos termos "masculino" e
"feminino" a fim de inviabilizar debates concernentes aos estudos de gênero e
diversidade no âmbito da educação.2
Até então a palavra "gênero" aparecia nove vezes no Plano Municipal de
Educação (PME) de Passo Fundo, nas metas 7, 8 e 10 do documento, sendo
que após a aprovação da Lei Municipal nº 5.387/2019 pela Câmara de
Vereadores e devida sanção, o termo vem sempre como "gênero masculino" e
"gênero feminino".3
A motivação de referida mudança legislativa é combate travado pelas
alas conservadoras à chamada “ideologia de gênero” nas escolas.
Nos debates ocorridos não somente no Município de Passo Fundo, mas
em âmbito nacional, no Plano Nacional de Educação e nos Planos Municipais e
Estaduais de Educação a "ideologia de gênero" foi um termo utilizado pelos
defensores de posições tradicionais, reacionárias e fundamentalistas em
relação aos papéis de gênero do homem e da mulher, em oposição a uma

2
ROHRIG, Daniel. Definição de "gênero" retoma polêmica sobre Plano Municipal de Educação.
Matéria do Diário da Manhã. Publicada em 06/11/2018. Disponível em:
https://diariodamanha.com/noticias/definicao-de-genero-retoma-polemica-sobre-plano-
municipal-de-educacao. Acesso em 09/03/2021.
3
PASSO FUNDO. Lei Municipal nº 5.387, de 8 de janeiro de 2019. Altera as metas 7.72, 8.7,
8.8, 8.16, 8.18, 8.19, 8.32, 10.16 e 15.14 do anexo único da lei nº 5146, de 21 de setembro de
2015, que aprova o plano municipal de educação PME e dá outras providências. Disponível
em: https://leismunicipais.com.br/a1/rs/p/passo-fundo/lei-ordinaria/2019/539/5387/lei-ordinaria-
n-5387-2019-altera-as-metas-772-87-88-816-818-819-832-1016-e-1514-do-anexo-unico-da-lei-
n-5146-de-21-de-setembro-de-2015-que-aprova-o-plano-municipal-de-educacao-pme-e-da-
outras-providencias?q=plano+municipal+de+educa%C3%A7%C3%A3o. Acesso em
09/03/2021.
2
construção pedagógica que objetive a diversidade e a desconstrução dos
papéis tradicionais de gênero.4
Assim, tais propostas legislativas como a ocorrida no âmbito da votação
do Plano Municipal de Educação de Passo Fundo/RS objetivam silenciar
iniciativas destinadas aos debates sobre gênero e diversidade do âmbito
escolar.
Por outro lado, é cediço que a Constituição Federal, além de definir em
seu art. 3º a promoção do bem de todos, sem preconceitos - dentre outros - de
sexo e quaisquer outras formas de discriminação como objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil, também alicerça ao patamar de direito
fundamental em seu art. 5º, inciso I, a igualdade em direitos e obrigações de
homens e mulheres.
Deste modo, busca-se promover uma análise crítica acerca deste
silenciamento dos estudos de gênero e diversidade no âmbito do PME de
Passo Fundo em paralelo às definições do pacto federativo, para demonstrar
se de fato houve retrocesso social e violação ao pacto federativo pelo
Município de Passo Fundo ao extirpar a diversidade de gênero de seu PME.
Para tanto, inicialmente será definido no que consiste o gênero, a fim de
se contextualizar qual o papel que o gênero exerce como estrutura de uma
sociedade patriarcal.
Na sequência, serão fixadas premissas sobre o papel exercido pelo
Município no pacto federativo, à luz da Constituição Federal de 1988, a fim de
demonstrar se a municipalidade fica ou não vinculada aos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil e aos Direitos e Garantias
Fundamentais em seu âmbito de competências.
Por fim, será analisado o caso específico da alteração do PME de Passo
Fundo ocorrida no ano de 2018, pela qual o termo “gênero” ficou vinculado a

4
REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída nos Planos
Brasileiros de Educação. Educ. Soc. Campinas: 2017, vol. 38, p. 9-26. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/es/v38n138/1678-4626-es-38-138-00009.pdf. Acesso em 10/03/2021.
p. 17.
3
“masculino” ou “feminino” em um verdadeiro silenciamento de propostas
pedagógicas atinentes à diversidade e aos ideais republicanos.
Por fim, tenta-se propor uma reflexão crítica acerca da matéria, trazendo
luz à necessidade e importância da diversidade como um valor a ser debatido
no âmbito das escolas já que a partir do silenciamento dos estudos de gênero
do âmbito da escola é diminuído o caráter republicano da educação brasileira,
trazendo um caráter moralista ao ensino, valores estes que vão de encontro ao
pacto federativo.
O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as Conclusões, nas
quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da
estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre esta temática.
O método de análise utilizado quanto à metodologia empregada foi
utilizado o Método Dedutivo. Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas
as Técnicas, do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da
Pesquisa Bibliográfica.

1 Problemas de gênero
Antes de mais nada, importante se faz esclarecer que o gênero pode ser
considerado a construção social do masculino e do feminino5.
E, buscar respostas ao questionamento “O que é ser mulher?” tem sido
historicamente um objeto de reflexões de teóricas feministas das mais diversas
vertentes políticas e filosóficas.
Conforme bem consigna Luís Felipe Miguel, “a mulher é o sujeito do
feminismo, mas a categoria “mulher” foi construída em meio a relações
marcadas pelo patriarcado e pela dominação masculina”6.
Assim, para a distinção entre sexo e gênero, que se tornou central para
o feminismo, passa pela interpretação de que “não se nasce mulher, torna-se

5
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2004. p. 45.
6
MIGUEL, Luís Felipe. A identidade e a diferença. In: MIGUEL, Luís Felipe; BIROLI, Flávia.
Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 79.
4
mulher”, de modo que o que aceitamos como feminilidade não seria a
expressão de uma natureza, mas o resultado do trabalho de pressões,
constrangimentos e expectativas sociais que culminaram com o que
entendemos socialmente ser o sujeito “mulher”.7
Heleieth Saffioti, ao tratar da chamada "inferioridade da mulher"
consigna que há milênios o poder está concentrado em mãos masculinas há
milênios, de modo que os homens temem perder tais privilégios que
asseguram a sua supremacia sobre as mulheres8.
Pode-se dizer também que o gênero se trata de uma dinâmica complexa
e reverberada pelas relações sociais, conforme bem esclarecem Flávia Biroli e
Luís Felipe Miguel:
As relações de gênero atravessam toda a sociedade, e seus
sentidos e seus efeitos não estão restritos às mulheres. O
gênero é, assim, um dos eixos centrais que organizam nossas
experiências no mundo social. Onde há desigualdades que
atendem a padrões de gênero, ficam definidas também as
posições relativas de mulheres e de homens – ainda que o
gênero não o faça isoladamente, mas numa vinculação
significativa com classe, raça e sexualidade9.

Portanto, é a partir do gênero que, "o mundo social constrói o corpo


como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de
divisão, sexualizantes"10, uma vez que a força da ordem masculina se impõe
como neutra, que dispensa quaisquer justificações para ser legitimada.
Fica bastante evidente, portanto, o papel desempenhado não somente
pela construção social do gênero na sociedade por si só, mas também pela
estruturação das relações sociais baseadas em gênero, como a divisão sexual
do trabalho, apropriação da capacidade reprodutiva das mulheres pelos
homens, como importantes processos que culminam em um realidade social
alicerçada no patriarcado e na dominação masculina.

7
MIGUEL, Luís Felipe. A identidade e a diferença. In: MIGUEL, Luís Felipe; BIROLI, Flávia.
Feminismo e política: uma introdução. P. 79.
8
SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. p. 16.
9
MIGUEL, Luís Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução. p. 8.
10
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 11 ed. Rio
de Janeiro: Bertrand, 2012. p. 17.
5
Entretanto, entende-se que a própria categoria “mulheres” é um produto
dos mesmos agentes sociais, da mesma estrutura patriarcal de poder, que o
feminismo busca lhes emancipar.11
Daí surgiria um problema em se trabalhar sobre uma dicotomia de
gênero homem/mulher ou feminismo/masculino.
É por isto que Judith Butler ao trabalhar o conceito de "mulher" na teoria
e no movimento feministas, assevera que o feminismo problematizou pouco
este conceito, pressupondo uma categoria universal capaz de representar os
interesses de todas as mulheres. Entretanto, esta presunção de universalidade
e convergência de interesses, oculta as disputas e assimetrias entre as
próprias mulheres.12
Portanto, com base na relação entre poder e sujeito Judith Butler
denuncia as exclusões engendradas pelo sujeito universal, mesmo em
movimentos como o feminismo.13
Problematizando esta questão da universalização do sujeito mulher,
Djamila Ribeiro também consigna que "o feminismo precisaria, então, abdicar
da busca da estrutura universal da dominação da mulher e reconhecer que
essa universalidade é ilusória não apenas quando se refere ao fundamento da
dominação, mas também à própria identidade do dominado".14
Para Judith Butler a distinção entre sexo e gênero (sendo sexo a
realidade biológica e gênero a construção social) atende à tese de que o sexo
é intratável em termos biológicos, ao passo em que o gênero não é nem o

11
MIGUEL, Luís Felipe. A identidade e a diferença. In: MIGUEL, Luís Felipe; BIROLI, Flávia.
Feminismo e política: uma introdução. p. 81.
12
CYFER, Ingrid. Afinal, o que é uma mulher? Simone de Beauvoir e "a questão do sujeito" na
teoria crítica feminista. Lua Nova [online]. São Paulo: 2015, n. 94, p. 41-77. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/0102-64452015009400003. Acesso em 26/12/2020. p. 42.
13
CYFER, Ingrid. Afinal, o que é uma mulher? Simone de Beauvoir e "a questão do sujeito" na
teoria crítica feminista. Lua Nova [online]. p. 44-45.
14
SANTOS, Djamila Tais Ribeiro dos. Simone de Beauvoir e Judith Butler: aproximações e
distanciamentos e os critérios da ação política. 2015. Dissertação (Mestrado) - Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP),
Guarulhos, 2015. Disponível em:
https://repositorio.unifesp.br/bitstream/handle/11600/49071/dissertacao-djamila-tais-ribeiro-dos-
santos.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 26/12/2020.p. 25.
6
resultado causal do sexo, nem tampouco tão fixo quanto o sexo.15
Portanto, a ideia central de Butler se estrutura na concepção de que não
se pode separar corpo e mente. O corpo não teria nada de natural, sendo
construído à medida em que a criança é educada pelos instrumentos sociais de
poder que a levam a se transformar em uma mulher.16
A partir de uma desconstrução dos conceitos de "gênero", Judith Butler
ressalta o fato de que, além dos chamados gêneros inteligíveis, que possuem
uma relação de coerência e continuidade entre sexo, gênero e sexualidade, há
aqueles gêneros "falhados", como é o caso dos transgêneros e intergêneros.
Propõe, a partir desta perspectiva, a criação de uma desordem, desconstrução,
subversão do gênero, a fim de enfrentar o falocentrismo e a
heterossexualidade compulsória refletidos na dualidade homem/mulher,
feminino/masculino.17
Vê-se aí uma crítica à construção da identidade como algo que tenha
começo, meio e fim, com um caráter determinista, sua compreensão entende
que este processo seja contínuo e revelado pela forma como o sujeito se
expressa no mundo.
Judith Butler postula a inexistência de uma substância que garanta a um
corpo biológico marcado pelas características de fêmea ao “tornar-se mulher”:
Em outras palavras, a “unidade” do gênero é o efeito de uma
prática reguladora que busca uniformizar a identidade do
gênero por via da heterossexualidade compulsória. A força
dessa prática é, mediante um aparelho de produção
excludente, restringir os significados relativos de
“heterossexualidade”, “homossexualidade” e “bissexualidade”,
bem como os lugares subversivos de sua convergência e
ressignificação.18

15
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução de
Renato Aguiar. 16 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. p. 12.
16
FIGUEIREDO, Eurídice. Desfazendo o gênero: a teoria queer de Judith Butler. Revista
Criação & Crítica, [S. l.], n. 20, p. 40-55, 2018. DOI: 10.11606/issn.1984-1124.v0i20p40-55.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/138143. Acesso em
28/12/2020. p. 41.
17
FIGUEIREDO, Eurídice. Desfazendo o gênero: a teoria queer de Judith Butler. Revista
Criação & Crítica. p. 42.
18
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. p. 25.
7
O “tornar-se mulher”, portanto, mais do que ser um processo de
construção social sem um caráter definitivo, está diretamente relacionado às
violências e opressões sofridas, não havendo como não se falar em um esforço
coletivo pela libertação das estruturas opressivas de poder reforçadas pelos
homens.19

2 O município no pacto federativo


A Constituição Federal de 1988 já em seu art. 1º esclarece que o Brasil
constitui uma República Federativa formada pela união indissolúvel de
Estados, Municípios e do Distrito Federal.20 Ou seja, o Município se trata de
uma unidade autônoma da federação.21
Portanto, pode-se dizer que o Município "integra a ordem administrativa
e política brasileira, tendo reconhecida constitucionalmente a sua autonomia".22
No tocante à autonomia legislativa municipal, trata-se de uma
característica do federalismo, cláusula pétrea prevista no artigo 60, §4º, inciso I,
da Constituição Federal. Por federalismo se entende ser um sistema de
descentralização do poder, inspirado na Constituição do Estados Unidos da
América e concebido para o fim de reduzir os inconvenientes de uma
concentração de poderes em um só ente político.23
É por isso que a repartição de competências de um Estado Federal,
pode ser considerado o núcleo essencial das questões federativas. O pacto
federativo existente entre a União, os Estados e os Municípios à luz da

19
FIRESTONE, Shulamith. The dialectic of sex: the case for feminist revolution. New York:
Bantam, 1972. p. 15.
20
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: [...]
21
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende
a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta
Constituição.
22
RIGO SANTIN, Janaína; MENEGAZ BITENCOUR, Jean Carlos. Pacto federativo e
autonomia legislativa municipal. História: debates e tendências. Vol. 15, n. 1. P. 101-113.
Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2015. Disponível em:
https://www.redalyc.org/pdf/5524/552456385007.pdf. Acesso em 11/03/2021. P. 102.
23
RIGO SANTIN, Janaína; MENEGAZ BITENCOUR, Jean Carlos. Pacto federativo e
autonomia legislativa municipal. História: debates e tendências. P. 102.
8
Constituição Federal pressupõe uma confiança mútua entre cada um dos entes
federativos, tendo seus limites nos termos dos poderes recebidos por cada um
pela própria Constituição.24
Sendo o Estado Federal complexo e plural, estabelecem-se em uma
Constituição Federal as normas gerais e específicas, bem como os limites de
atuação de cada um dos entes federados.25 A fim de se evitar conflitos de
interesses entre os entes federativos é imperativa uma harmonia entre cada
uma das unidades e seus poderes correspondentes, a fim de ser mantida uma
coerência do próprio pacto federativo.26
A competência pode ser vista como a parte central da questão
federativa, já que "a partilha do poder de legiferar estabelece o alcance do
exercício das outras funções".27
A Constituição Federal de 1988 fortaleceu as municipalidades em sua
repartição de competências: além das competências próprias da União, da
competência residual dos Estados, há as competências concorrentes entre os
três entes federativos e ainda as competências comuns a todos eles. Ademais,
há competências expressas dos municípios, relacionadas ao interesse local.28
Portanto, compreendem-se cinco autonomias no tocante aos Municípios
à luz do pacto federativo: autonomia auto-organizatória, autonomia política,
autonomia financeira, autonomia administrativa e autonomia legislativa.29
Por outro lado, o pacto federativo brasileiro é complexo. No que tange às

24
LIZIERO, Leonam Baesso da Silva. Estado Federal no Brasil: o federalismo na Constituinte
de 1987/1988 e a descentralização pela assimetria. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 72. 2017.
25
LIZIERO, Leonam Baesso da Silva. Estado Federal no Brasil: o federalismo na Constituinte
de 1987/1988 e a descentralização pela assimetria. P. 72.
26
LIZIERO, Leonam Baesso da Silva. Estado Federal no Brasil: o federalismo na Constituinte
de 1987/1988 e a descentralização pela assimetria. P. 73.
27
LIZIERO, Leonam Baesso da Silva. Estado Federal no Brasil: o federalismo na Constituinte
de 1987/1988 e a descentralização pela assimetria. P. 78.
28
CORRALO, Giovani da Silva. O poder municipal na federação brasileira: reflexão sobre a
autonomia municipal e o federalismo. História: Debates e Tendências. Vol. 15, n. 1. p. 128-139.
Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2015. Disponível em:
http://seer.upf.br/index.php/rhdt/article/view/5281/3430. Acesso em 10/03/2021. p. 133.
29
CORRALO, Giovani da Silva. O poder municipal na federação brasileira: reflexão sobre a
autonomia municipal e o federalismo. História: Debates e Tendências. P. 133-134.
9
políticas públicas há um chamado "federalismo cooperativo": atuação conjunta
das três escalas de poder em setores comuns te intervenção, com o objetivo de
favorecer a flexibilidade e a cooperação na elaboração e gestão das políticas
públicas.30
A questão é que, inexistindo uma legislação complementar
regulamentada que trace diretrizes para a gestão compartilhada entre os entes
federativos, concretamente a divisão de tarefas fica ao juízo de jogos políticos,
sendo modificada sempre conforme vantagens e ônus que determinada
responsabilidade represente a cada ente federado.31
Não há como dissociar os papéis atribuídos ao Município no pacto
federativo da concretização da justiça social, segundo a qual o individualismo
liberal deve ser superado pela concretização dos direitos sociais, reforçando os
direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal.32
Se a justiça social repugna diferenças sociais e pugna pelos meios
materiais para uma existência digna, fica evidente o papel da municipalidade
em agir neste escopo, em sintonia a uma boa governança, objetivando o
desenvolvimento local.33
Neste contexto é que se define o poder municipal, com alicerces na
Constituição enquanto ente federado autônomo. O exercício da ordem
constitucional exsurge também do fortalecimento das localidades e da

30
RODRIGUES, Juliana Nunes. MOSCARELLI, Fernanda. Os desafios do pacto federativo e
da gestão territorrial compartilhada na condução das políticas públicas brasileiras. GeoTextos.
Vol. 11, n. 1. p. 139-166. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2015. Disponível em:
https://periodicos.ufba.br/index.php/geotextos/article/view/12714/9730. Acesso em 10/03/2021.
P. 140.
31
RODRIGUES, Juliana Nunes. MOSCARELLI, Fernanda. Os desafios do pacto federativo e
da gestão territorrial compartilhada na condução das políticas públicas brasileiras. GeoTextos.
P. 140.
32
CORRALO, Giovani da Silva. A boa governança local e a atividade econômica: o poder
municipal como indutor do desenvolvimento sustentável e da justiça social. Revista
Argumentum. n. 15, p. 73-97. Marília: Universidade de Marília, 2014. Disponível em:
http://ojs.unimar.br/index.php/revistaargumentum/article/view/37. Acesso em 10/03/2021. p. 90.
33
CORRALO, Giovani da Silva. A boa governança local e a atividade econômica: o poder
municipal como indutor do desenvolvimento sustentável e da justiça social. Revista
Argumentum. P. 90.
10
cidadania exercida pelas municipalidades no ente federativo.34
É a partir de tais premissas acerca do papel do Município no pacto
federativo que se buscam respostas ao questionamento: o Município de Passo
Fundo após a aprovação da Lei nº 5.387/2019, que excluiu a chamada
"ideologia de gênero" do PME, violou o pacto federativo sob o qual seus
poderes estão estabelecidos? O pacto federativo permite o retrocesso social
dos entes federativos à luz da Constituição Federal?

3 O caso do Plano Municipal de Educação de Passo Fundo: uma violação


ao pacto federativo?
A Constituição Federal, como visto, prevê a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, bem como a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade, ou quaisquer outras formas de
discriminação.35
No âmbito da educação, a nível Federal, em 2012 foram homologadas
as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, representadas
pelo Parecer CNE/CP nº 8/2012.
Referidas diretrizes foram construídas por uma comissão
interinstitucional, coordenada pelo Conselho Nacional de Educação e da qual
participaram a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
(SDHPR), a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (SECADI), a Secretaria de Educação Superior (SESU), a Secretaria
de Articulação com os Sistemas de Ensino (SASE), a Secretaria de Educação
Básica (SEB) e o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos
(CNEDH).36

34
CORRALO, Giovani da Silva. O poder municipal na federação brasileira: reflexão sobre a
autonomia municipal e o federalismo. História: Debates e Tendências. P. 134.
35
REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída nos Planos
Brasileiros de Educação. Educ. Soc. p. 12.
36
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer nº 8, de 6 de março de 2012. Aprova as
Diretrizes Nacionais Para a Educação em Direitos Humanos. Brasília: Diário Oficial da
República Federativa do Brasil, 2012. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-
por-temas/educacao-em-direitos-humanos/DiretrizesNacionaisEDH.pdf. Acesso em
11
O termo "gênero" surge por 8 (oito) vezes no documento, que considera
como necessário a criação de núcleos de estudos e pesquisas com atuação
nas relações de gênero, dentre outras.37 Também fixa como premissa que para
a implementação da Educação em Direitos Humanos que todas as pessoas,
independentemente de sexo, origem nacional, étnico-racial, condições
econômicas, sociais ou culturais, credo, orientação sexual, identidade de
gênero, faixa etária, transtornos, devem ter a possibilidade de usufruírem de
uma educação não discriminatória e democrática.38
Portanto, fica bastante claro que a promoção da diversidade é uma
diretriz básica da educação, em total consonância com os Direitos e Garantias
Fundamentais previstos na Constituição Federal, a fim de se promover a
equidade entre os gêneros e respeito à diversidade sexual.
No Brasil, se considerarmos as estatísticas alarmantes da violência
baseada em discriminações de gênero, fica mais evidente ainda o importante
papel que a educação deve exercer.
Em análise às edições X, XI, XII e XIII do Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, elaboradas pelo Fórum de Segurança Pública, observa-se
que no ano de 2015 houve 45.460 casos de estupro notificados, uma redução
de 10% em relação ao ano de 201439.
Já, no ano de 2016 foram contabilizadas 49.497 ocorrências de estupro,
um aumento de 3,5%, e uma mulher foi assassinada a cada 2 horas neste ano,
totalizando 4.606 feminicídios40.
Os casos de estupro notificados em 2017 subiram para 61.032, o que
representa um crescimento de 10,1%, tendo sido contabilizados 1.133

10/03/2021. p. 1.
37
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer nº 8, de 6 de março de 2012. P. 2.
38
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer nº 8, de 6 de março de 2012. P. 2.
39
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário Brasileiro de
Segurança Pública 2016. Edição X. São Paulo, 2016. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/storage/10_anuario_site_18-11-2016-retificado.pdf. Acesso
em 10/03/2021.
40
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário Brasileiro de
Segurança Pública 2017. Edição XI. São Paulo, 2017. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/01/ANUARIO_11_2017.pdf. Acesso
em 10/03/2021.
12
feminicídios e 221.238 registros de violência doméstica - uma média de 606
casos de mulheres vítimas de lesão corporal por dia41.
Na última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
analisando-se os dados de 2018 foram apurados 1.206 feminicídios, num
crescimento de 11,3%. Em 88,8% dos casos o autor do feminicídio foi o
companheiro ou ex-companheiro. No tocante ao crime de estupro, no ano de
2018 houve o recorde histórico de 66.041 casos contabilizados, 4,1% a mais
que em 2017. Os registros de lesão corporal dolosa no âmbito familiar foram
263.067, um registro a cada 2 minutos42.
No tocante à violência de cunho homofóbico, o Relatório sobre Violência
Homofóbica no Brasil publicado em 2012 pela Secretaria de Direitos Humanos
da Presidência da República revelou que naquele ano houve 9.982 denúncias
de violações de direitos humanos contra pessoas LGBTQI+. Por sua vez,
segundo a ONG Transgender Europe, entre 2008 e 2014 o Brasil liderou o
ranking mundial de assassinatos de travestis e transgêneros.43
Por outro lado, retomando os conceitos de gênero trabalhados na seção
1 do presente artigo, não há como desvencilhar o papel desempenhado pela
construção social do gênero na sociedade da violência de gênero, esta sendo
uma consequência do fenômeno social da dominação masculino e motivada
pela dinâmica patriarcal de exercício do controle sobre o corpo das mulheres e
de pessoas LGBTQI+ valendo-se da violência para tanto.
É por isso que o fundamento da "ideologia de gênero" utilizado nos
debates da votação do Plano Nacional de Educação, dos Planos Estaduais de
Educação e dos Planos Municipais de Educação, especialmente no PME de

41
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário Brasileiro de
Segurança Pública 2018. Edição XII. São Paulo, 2018. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/03/Anuario-Brasileiro-de-
Seguran%C3%A7a-P%C3%BAblica-2018.pdf. Acesso em 10/03/2021.
42
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário Brasileiro de
Segurança Pública 2019. Edição XIII. São Paulo, 2019. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019-
FINAL_21.10.19.pdf Acesso em 28/02/2021.
43
REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída nos Planos
Brasileiros de Educação. Educ. Soc. p. 14.
13
Passo Fundo, é falacioso.
Em entrevista concedida ao programa Redação Diário, do jornal Diário
da Manhã, em 11/01/2018, o então vereador Mateus Wesp, ao rebater críticas
recebidas pelo seu posicionamento contrário à "ideologia de gênero", trouxe a
seguinte afirmação:
Quem critica nosso posicionamento está ignorando milhares de
pessoas que compactuam com a retirada do termo ‘gênero’ do
Plano Municipal de Educação. É uma falta de respeito com os
vereadores e com todas essas pessoas. Quem defende a
ideologia de gênero quer fugir do debate de que este termo
consta no PME. Não de forma explícita, mas sim, aberta. Isso
abre uma brecha para que professores mal intencionados
possam explicar a crianças de seis, sete, oito anos de idade
que gênero é diferente de sexo, ou seja, você pode ter nascido
menino mas pode escolher outro gênero quando crescer.44

Entretanto, o termo "ideologia de gênero" não surge em nenhum dos


Documentos Finais das Conferências de Educação de 2008, 2010 e 2014, nem
na versão inicial do Plano Nacional de Educação45, na verdade no tocante ao
gênero, o objetivo uníssono a todos os documentos é "garantir o alcance da
equidade entre os gêneros e o respeito à diversidade sexual".46
Trata-se de evidente deturpação do papel do Município no pacto
federativo objetivar o silenciamento dos estudos de gênero do PME, se
considerarmos que a concretização da justiça social está intrinsecamente
relacionada ao pacto federativo, em um reforço aos direitos e garantias
fundamentais já estabelecidos no âmbito da Constituição Federal.
Ora, se é necessário aprender e ensinar que não importa a origem de
um indivíduo, este deve ser respeitado em suas diferenças, o gênero e a
sexualidade precisam ser discutidas na dimensão do respeito ao outro. Os

44
ROHRIG, Daniel. Afinal, o que implica a polêmica sobre o Plano Municipal de Educação?
Matéria do Diário da Manhã. Publicada em 13/01/2018. Disponível em:
https://diariodamanha.com/noticias/afinal-o-que-implica-a-polemica-sobre-o-plano-municipal-de-
educacao/. Acesso em 10/03/2021.
45
REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída nos Planos
Brasileiros de Educação. Educ. Soc. p. 17.
46
REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída nos Planos
Brasileiros de Educação. Educ. Soc. p. 17.
14
processos que envolvem a identidade de gênero de um indivíduo são
complexos e perpassam construções socioculturais e interações biológicas.47
Por outro lado, inexiste qualquer literatura que verifique o que se prega
sobre a expressão "ideologia de gênero".48
Que boa governança democrática é esta que se utiliza de argumentos
falaciosos como o da "ideologia de gênero", relacionando os estudos de gênero
e a promoção dos Direitos Humanos à pedofilia?

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É a partir do gênero que são construídos os papeis de homens e
mulheres na sociedade, organizando-a em um sistema patriarcal.
Considerando-se este contexto social alicerçado em ideais patriarcais o
gênero representa não somente uma realidade sexual sobre a qual a ordem
masculina se impõe, mas também uma categoria a ser desconstruída.
Isto porque, o gênero também se relaciona à construção de uma
identidade sem um caráter definitivo, uma vez que o dualismo de gêneros entre
"homem" e mulher, "feminino" e "masculino" exclui os chamados "gêneros
falhados", como é o caso das pessoas transgêneras e intergêneras.
Assim, esta dualidade de gênero acaba por reforçar uma visão social
falocentrada e refletida em uma heterossexualidade compulsória.
Por outro lado, é cediço que com o advento da Constituição Federal de
1988 a promoção do bem de todos sem preconceitos - dentre outros - de sexo
e quaisquer formas de discriminação foi alicerçada a objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil. De igual modo, a igualdade em direitos e
obrigações entre homens e mulheres se tornou direito fundamental.
47
BORGES, Rafaela Oliveira. BORGES, Zulmira Newlands. Pânico moral e ideologia de
gênero articulados na supressão de diretrizes sobre questões de gênero e sexualidade nas
escolas. Revista Brasileira de Educação. Vol. 23. Rio de Janeiro: Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 2018. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-24782018000100231&script=sci_arttext. Acesso
em 15/03/2021. P. 10.
48
BORGES, Rafaela Oliveira. BORGES, Zulmira Newlands. Pânico moral e ideologia de
gênero articulados na supressão de diretrizes sobre questões de gênero e sexualidade nas
escolas. Revista Brasileira de Educação. P. 16.
15
Ainda assim, no ano de 2018 sob forte polêmica foi votada e aprovada
pela Câmara de Vereadores de Passo Fundo a alteração da redação original
do Plano Municipal de Educação, representado pela Lei Municipal nº
5.146/2015, a fim de alterar a definição da palavra "gênero" no documento,
relacionando-a exclusivamente aos termos "masculino" e "feminino", com o
objetivo de combater a chamada "ideologia de gênero".
Após a aprovação da Lei Municipal nº 5.387/2019 a palavra gênero, que
aparecia nove vezes no PME de Passo Fundo, vem sempre como "gênero
masculino" e "gênero feminino".
Ocorre que sendo o Município ente federativo autônomo, que possui
competências à luz do pacto federativo, o ente está adstrito aos objetivos da
República Federativa do Brasil e aos direitos e garantias fundamentais, assim
como os Estados e a própria União.
A concretização do pacto federativo pela municipalidade não se dissocia
da justiça social e da concretização dos direitos sociais, repugnando-se
diferenças sociais e pugnando-se pelos meios materiais a uma existência
digna, objetivando uma boa governança que leve ao desenvolvimento local.
Nesta perspectiva, entende-se que ao promover o silenciamento dos
estudos de gênero de seu PME o Município de Passo Fundo veio a descumprir
as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, representadas
pelo Parecer CNE/CP nº 08/2012, o qual desmente a falácia da "ideologia de
gênero".
A promoção da diversidade é diretriz básica da educação e está em
consonância com os Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição
Federal e objetiva a promoção da equidade entre os gêneros e o respeito à
diversidade sexual.
As estatísticas brasileiras no tocante à violência de gênero e violência
contra a população LGBTQI+ demonstra a necessidade e premência de uma
educação que garanta o respeito às diferenças, dentre elas, de gênero.
Mostra-se uma falácia antidemocrática o argumento da "ideologia de

16
gênero" como um meio de promoção de "valores" como a pedofilia à crianças e
adolescentes e evidentemente a premência de tais debates no âmbito
Municipal viola o pacto federativo.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

BORGES, Rafaela Oliveira. BORGES, Zulmira Newlands. Pânico moral e


ideologia de gênero articulados na supressão de diretrizes sobre questões de
gênero e sexualidade nas escolas. Revista Brasileira de Educação. Vol. 23.
Rio de Janeiro: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-
24782018000100231&script=sci_arttext. Acesso em 15/03/2021.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena


Kühner. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília:


Diário Oficial da União, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.
Acesso em 10/03/2021.

______. Conselho Nacional de Educação. Parecer nº 8, de 6 de março de


2012. Aprova as Diretrizes Nacionais Para a Educação em Direitos Humanos.
Brasília: Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 2012. Disponível em:
https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/educacao-em-direitos-
humanos/DiretrizesNacionaisEDH.pdf. Acesso em 10/03/2021.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da


identidade. Tradução de Renato Aguiar. 16 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2018.

17
CORRALO, Giovani da Silva. O poder municipal na federação brasileira:
reflexão sobre a autonomia municipal e o federalismo. História: Debates e
Tendências. Vol. 15, n. 1. p. 128-139. Passo Fundo: Universidade de Passo
Fundo, 2015. Disponível em:
http://seer.upf.br/index.php/rhdt/article/view/5281/3430. Acesso em 10/03/2021.

______. A boa governança local e a atividade econômica: o poder municipal


como indutor do desenvolvimento sustentável e da justiça social. Revista
Argumentum. n. 15, p. 73-97. Marília: Universidade de Marília, 2014.
Disponível em:
http://ojs.unimar.br/index.php/revistaargumentum/article/view/37. Acesso em
10/03/2021.

CYFER, Ingrid. Afinal, o que é uma mulher? Simone de Beauvoir e "a questão
do sujeito" na teoria crítica feminista. Lua Nova [online]. São Paulo: 2015, n.
94, p. 41-77. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-64452015009400003.
Acesso em 26/12/2020.

FIGUEIREDO, Eurídice. Desfazendo o gênero: a teoria queer de Judith Butler.


Revista Criação & Crítica, [S. l.], n. 20, p. 40-55, 2018. DOI:
10.11606/issn.1984-1124.v0i20p40-55. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/138143. Acesso em
28/12/2020.

FIRESTONE, Shulamith. The dialectic of sex: the case for feminist revolution.
New York: Bantam, 1972.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário


Brasileiro de Segurança Pública 2016. Edição X. São Paulo, 2016.
Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/10_anuario_site_18-

18
11-2016-retificado.pdf. Acesso em 10/03/2021.

______. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017. Edição XI. São


Paulo, 2017. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2019/01/ANUARIO_11_2017.pdf. Acesso em 10/03/2021.

______. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018. Edição XII. São


Paulo, 2018. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2019/03/Anuario-Brasileiro-de-Seguran%C3%A7a-
P%C3%BAblica-2018.pdf. Acesso em 10/03/2021.

______. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Edição XIII. São


Paulo, 2019. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2019/10/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf. Acesso em
28/02/2021.

LIZIERO, Leonam Baesso da Silva. Estado Federal no Brasil: o federalismo


na Constituinte de 1987/1988 e a descentralização pela assimetria. Tese
(Doutorado). Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro. 2017.

MIGUEL, Luís Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução.


São Paulo: Boitempo, 2014.

PASSO FUNDO. Lei Municipal nº 5.387, de 8 de janeiro de 2019. Altera as


metas 7.72, 8.7, 8.8, 8.16, 8.18, 8.19, 8.32, 10.16 e 15.14 do anexo único da lei
nº 5146, de 21 de setembro de 2015, que aprova o plano municipal de
educação PME e dá outras providências. Disponível em:
https://leismunicipais.com.br/a1/rs/p/passo-fundo/lei-
ordinaria/2019/539/5387/lei-ordinaria-n-5387-2019-altera-as-metas-772-87-88-

19
816-818-819-832-1016-e-1514-do-anexo-unico-da-lei-n-5146-de-21-de-
setembro-de-2015-que-aprova-o-plano-municipal-de-educacao-pme-e-da-
outras-providencias?q=plano+municipal+de+educa%C3%A7%C3%A3o.
Acesso em 09/03/2021.

REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída nos
Planos Brasileiros de Educação. Educ. Soc. Campinas: 2017, vol. 38, p. 9-26.
Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/es/v38n138/1678-4626-es-38-138-
00009.pdf. Acesso em 10/03/2021.

RIGO SANTIN, Janaína; MENEGAZ BITENCOUR, Jean Carlos. Pacto


federativo e autonomia legislativa municipal. História: debates e tendências.
Vol. 15, n. 1. P. 101-113. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2015.
Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/5524/552456385007.pdf. Acesso
em 11/03/2021.

RODRIGUES, Juliana Nunes. MOSCARELLI, Fernanda. Os desafios do pacto


federativo e da gestão territorrial compartilhada na condução das políticas
públicas brasileiras. GeoTextos. Vol. 11, n. 1. p. 139-166. Salvador:
Universidade Federal da Bahia, 2015. Disponível em:
https://periodicos.ufba.br/index.php/geotextos/article/view/12714/9730. Acesso
em 10/03/2021.

ROHRIG, Daniel. Afinal, o que implica a polêmica sobre o Plano Municipal de


Educação? Matéria do Diário da Manhã. Publicada em 13/01/2018. Disponível
em: https://diariodamanha.com/noticias/afinal-o-que-implica-a-polemica-sobre-
o-plano-municipal-de-educacao/. Acesso em 10/03/2021.

______. Definição de "gênero" retoma polêmica sobre Plano Municipal de


Educação. Matéria do Diário da Manhã. Publicada em 06/11/2018. Disponível

20
em: https://diariodamanha.com/noticias/definicao-de-genero-retoma-polemica-
sobre-plano-municipal-de-educacao. Acesso em 09/03/2021.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora


Fundação Perseu Abramo, 2004.

______. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

SANTOS, Djamila Tais Ribeiro dos. Simone de Beauvoir e Judith Butler:


aproximações e distanciamentos e os critérios da ação política. 2015.
Dissertação (Mestrado) - Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Guarulhos, 2015. Disponível
em: https://repositorio.unifesp.br/bitstream/handle/11600/49071/dissertacao-
djamila-tais-ribeiro-dos-santos.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em
26/12/2020.

21

Você também pode gostar