Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Não é de hoje, mas certamente não é à toa que a participação política através das
janelas se elevou nos últimos tempos, através de panelaços, gritos de revolta, atos coletivos de
palmas ou vaias. Até mesmo discussões inteiras entre opiniões divergentes pude presenciar
como silencioso ouvinte entre duas janelas. Me pergunto se as pessoas se viam enquanto
discutiam, ou se apenas se ouviam e retrucavam frases de efeito e questionamentos. Me
pergunto se essas pessoas que discutiram eventualmente, depois da quarentena, tomariam
um elevador juntas ou se cruzariam na rua sem ter a menor ideia de que se xingaram com
muita voracidade num dia particularmente tenso de crise. O contato com o real através de
uma janela é, afinal, muito limitado. Basta uma parede para delimitar sua visão de algo, um
ângulo à menos para você deixar de observar o que as pombas estão fazendo no topo dos
prédios, um contracampo inteiro para impedir que você descubra onde se localiza a colmeia
de onde vêm tantas abelhas diariamente pro seu apartamento. A janela é um enquadramento,
a visão limitada pelo arquiteto que a projetou.
Os filmes são janelas também, mas muito particulares em sua forma e concepção. Na
quarentena, eles não são apenas visões de seus realizadores, ou um retrato de determinada
comunidade, lugar, ou indivíduo, sejam eles ficcionalizados ou não. Eles são, principalmente,
uma janela para o passado. Pensar que em tempos de isolamento social todos os sets de
filmagem foram paralisados por tempo indeterminado faz com que o tempo de produção de
um filme torne-se muito mais pesado para sua absorção. Assisto um, dois, dez, vinte, setenta
filmes enquanto estou preso em meu lar, e não consigo deixar de me perguntar como essas
pessoas que filmaram e foram filmadas estão passando suas quarentenas. Assisto Bruce Lee e
os Fora-Da-Lei de Joost Vandebrug, que passa no MUBI, plataforma online de streaming, e nele
acompanho um grupo de garotos sem pais nem casa vivendo nas ruas e esgotos de Bucareste
num período de seis anos entre 2012 e 2018, e vejo histórias extremamente trágicas que
imagino em terror o quanto devem ter sido agravadas por conta da transmissão do
coronavírus. Assisto A Oeste dos Trilhos, documentário monumental de 9 horas (sim, a
quarentena nos dá muito tempo livre) de Wang Bing que explora uma região de fábricas em
declínio na China da virada do milênio, e a vida e trabalho dos operários que se veem cada vez
mais abandonados pelo estado e pela economia de mercado aberto que toma o país. Seus
sangues estão repletos de chumbo, suas casas são desapropriadas, suas conversas denunciam
o abandono social. Alguns deles devem estar vivos hoje. Como eles estão passando pela
pandemia?
Os filmes têm essa relação estranha com espaço e tempo. Sinto-me equivocadamente
próximo às pessoas que vejo na tela, mas elas estão em outros continentes, outras épocas.
Qualquer passado torna-se distante em tempos de quarentena. Isolado, também tenho uma
relação estranha com o espaço e com o tempo. Os dias passam rápido demais, e só nas minhas
quinzenais idas ao supermercado me lembro de que não estou em São Paulo, mas em Belo
Horizonte. Sinto-me mais próximo das personagens de Sonata de Tóquio, de Kiyoshi Kurosawa,
do que de grandes amigos que tive na adolescência e na juventude e que já não falo há vários
anos. Como anda meu melhor amigo da infância, com quem comecei a fumar, que via todo dia
e que podia visitar sempre que estivesse entediado em casa? Como andam meus amigos da
faculdade, com quem viajava e com quem compartilhei vários dos meus segredos mais
embaraçosos? O isolamento social batalha com o seu contato com o presente e te convida à
revisitar o passado, e revisitar, e revisitar...
Ante a inevitável previsão de que essa será só a primeira de muitas quarentenas que
iremos vivenciar nos próximos anos, meu pai compartilha comigo uma notícia de que as redes
de streaming começaram a investir novamente em licenciar e exibir clássicos do cinema, ante
a impossibilidade se gravar novas produções no momento atual. Fico pensando que, se os
filmes são um dos poucos contatos que tenho com o mundo externo, se esse retorno ao
passado fará com que eu comece a acreditar que esse passado é de fato o mundo que está lá
fora. As janelas do meu apartamento não me bastam para saber o que acontece do outro lado
delas, as telas virtuais me apresentam com atraso as reações e falas de meus entes queridos.
Quando imagino o mundo lá fora, que mundo é esse que estou imaginando? Penso nas ruas
que percorri no começo do ano, nos cinemas que frequentei, nos parques em que passeei e
nas pessoas que vi passar em todos esses lugares. Mas as coisas não estão mais assim. Não
imagino o mundo do lado de fora com máscaras, mas é assim que vejo as pessoas que passam
na rua à minha janela. Verdade seja dita: não há mais mundo para voltar. Há um lugar novo
para se ir. É impossível frequentar as mesmas ruas por onde passei. Quais dos meus
restaurantes favoritos vão continuar abertos? Teremos todos mais medo daquele que tosse ao
seu lado no ônibus?
Penso no que esse futuro trará para o conteúdo dos filmes em si, em especial sobre
que forma de mundo eles representarão. Há quem diga que os filmes já previam essa crise sob
diversas formas. Apocalipses zumbis ou filmes de contágios em massa foram populares nos
anos 2010, afinal, e neles podemos ver paralelos bem diretos com o que acontece no mundo
atual. O que eles irão prever num mundo em que esse futuro já chegou? Haverá a ideia de que
não só teremos mais crises de saúde, mas também crises ambientais que selarão de fato o
nosso fim? Essas previsões se tornarão realidade muito mais rápido do que sequer podemos
imaginar? Voltando na ideia de que as plataformas de streaming estão buscando filmes
clássicos e antigos para agregar a seus catálogos, como isso pode traduzir-se no real? Quem
sabe a cultura atual não retome aspectos do passado por conta disso. Se o contato com a
realidade externa se dá através dessas imagens em movimento, não muito distantes passam a
estar os atores e atrizes de outra época das nossas vidas. Mas eu sei que esses filmes são
antigos. Sei que eles são frutos de outra época. O mundo não é preto-e-branco. Será, porém,
que vou me lembrar de como as pessoas conquistam umas as outras nos bares? Alguns
aspectos do mundo que acredito ainda ser real parecem tão rotineiros, tão cotidianos, que
parece que eles nunca vão deixar de existir. Se um filme me mostra a jornada de metrô de um
trabalhador de cidade grande num vagão lotado, não acho estranho pois não só vivi isso
muitas vezes, mas sei que é assim que se dão esses transportes na hora do rush. Não consigo
imaginar um mundo em que o metrô não esteja lotado. Mas sei que estranharia se visse
alguém de máscara no metrô aqui no Brasil. Nunca vi em nenhum filme brasileiro pessoas
usando máscaras nos transportes públicos, isso não é coisa que acontece por aqui. O mundo
externo que imagino é esse. Mudar o que imagino só será possível quando voltar a ter contato
com o real. Da próxima vez que andar de metrô, ele não vai ser o mesmo metrô de antes. E
não será a exceção. Contudo, enquanto estou preso em casa, o metrô não é esse transporte
mais vazio e cheio de pessoas mascaradas.
Mas apesar do inevitável colapso dos mercados, das profundas mudanças econômicas
e da reconfiguração das relações que terei com meus entes queridos, sei – e espero – que
algumas coisas devem permanecer. Eu sei que não poderei comprar minha própria casa – o
mercado imobiliário continuará caro. Sei que quem não tem emprego continuará a não ter
emprego. Sei que estamos entrando no inverno porque faz frio em minha casa, sei que ainda
posso contar com a minha família para o que precisar. Sei que a minha rua não mudou de lugar
– posso vê-la da janela do meu quarto. O sino da igreja continua batendo pontualmente então
sei que horas são. Ele bateu oito vezes, então sei que são oito da noite. Depois do
cancelamento do horário de verão de 2019, confio mais nele do que nos meus relógios, que
são todos digitais. Para algumas coisas, ainda prefiro confiar no real. Vejo um vizinho jogando
pedras de gelo nos gatos da casa ao lado para que eles não acasalem e parem de miar. Para
algumas coisas, só jogando pedras – não para os gatos, que ignoraram completamente a ação
desesperada do morador inconsolado do meu prédio.