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Ensaio sobre a solidão em tempos de quarentena

Quando a vida transmuta-se em filme e os filmes transmutam-se no que há de vida em se viver


isolado à margem de uma sociedade que ainda não colapsou.

Em isolamento, a janela é um dos poucos contatos que se tem do lado de fora.


Observar as pessoas indo e vindo na calçada, as nuvens passeando pelo céu, a luz do sol
refletindo-se nas janelas espelhadas e nas construções ao redor. Se seu lar possui um janela
voltada para a rua, você pode observar o cotidiano de sua vizinhança – verificar quem segue a
quarentena, observar quais lojas se mantêm abertas, quão vazias estão as ruas. Se você mora
nos fundos, porém, não tem a mesma sorte - as janelas desses lugares ou dão para quintais, ou
para interiores de quarteirões, ou outras janelas de apartamentos e casas vizinhas. Há, nesses
casos, outra possibilidade de observação: através dessas janelas, se tem uma visão mais íntima
– quiçá invasiva – do mundo particular das pessoas que habitam sua vizinhança. É possível ver
e ouvir as pessoas cozinhando, comendo, ou até mesmo te observando de volta; é possível
escutar as músicas que ouvem, bisbilhotar as brigas familiares, ver que roupas secam em seus
varais. Se a sua janela dá para uma casa repleta de gatos em seu extenso quintal – como é o
meu caso – você pode observar seus comportamentos: como fogem com tranquilidade de seu
lar, pulando muros e telhados, como escondem-se conscientemente para realizar travessuras,
como deitam-se no asfalto quente no sol da manhã. Se as janelas de rua dão uma visão do
coletivo social, denunciando quais são os corpos que continuam a ocupar espaços públicos
mesmo em tempos de pandemia, das relações socioeconômicas e até mesmo das convicções
políticas de determinado grupo da população, as janelas de fundo evidenciam furtivamente
como as pessoas – e animais domésticos, eventualmente – se ocupam em tempos de reclusão
compulsória.

Há elementos que mudam em ambas as janelas antes e durante a pandemia. Um bar à


janela da rua, que aos finais de semana pré-quarentena se mantinha lotado de jovens e
ocupava o ambiente sonoro da região com as músicas de sucesso, jaz fechado e silencioso no
começo do isolamento social, indicativo visual e sonoro de que as coisas mudaram. A mesma
janela denuncia também a eventual transgressão do estabelecimento às diretrizes indicadas
para contenção da pandemia à medida que o tempo passa: conforme os fins de semana vêm e
vão, é possível ver um certo movimento aumentando ao seu redor. Suas luzes internas passam
a ser acesas todos os sábados, é possível ver gente furtivamente entrando e saindo de seu
interior e é possível até mesmo ouvir uma música – muito mais baixa que antes, claro –
emanando de suas paredes. À janela de fundo, porém, conhece-se os vizinhos sem sequer
precisar vê-los. Num final de semana, numa tentativa de trazer para a casa a animação de uma
festa, jovens moradores de um apartamento ao lado cantam num karaokê. Numa tarde de
domingo, filho e mãe brigam, cansados de ficar tanto tempo juntos trancados um com o outro.
A presença do cotidiano dos seus vizinhos torna-se muito maior no seu próprio cotidiano – já
que você está preso em casa o dia inteiro também – e você passa a saber exatamente o
horário em que almoçam, quando chegam em casa – caso ainda trabalhem – quais seus
horários preferidos para martelar insistentemente durante mais de um mês o que você infere
ser o móvel mais trabalhoso do mundo para se montar, ou a renovação completa dos –
provavelmente milhares - enfeites de parede da sala.
Em meu apartamento, tenho a possibilidade de observar através desses dois tipos de
janelas. A janela do meu quarto é uma espécie mista, dando visão tanto para um
estacionamento/quintal vazio da casa ao lado e à uma porção da rua do meu prédio. A janela
da cozinha dá para os fundos do prédio, onde as outras janelas de fundo desse e do prédio
vizinho se encontram próximas demais, obrigando-me a denunciar quando queimo o almoço
que estou preparando para todos que moram ao meu redor através da fumaça que vaza para
fora e dos gritos de insatisfação que profiro em meu breve momento de raiva. Me pergunto,
claro, se meus vizinhos são tão curiosos e bisbilhoteiros como eu, e ficam a me observar e
escutar também, ou se ficam a fumar nos fins de tarde à janela para observar os movimentos
da rua também como eu. Isso só me resta imaginar, pois nunca pude testemunhá-los
criminosos em seus atos: os ângulos de visão que tenho de praticamente todas as janelas do
lado de fora são tais que praticamente não é possível ver quando alguém está lá – quando é
possível, e eu vejo, por exemplo, meu vizinho em sua cozinha preparando o almoço, não tenho
coragem de encará-lo até que me encare de volta – cruzar nossos olhares denunciaria minha
curiosidade, ingênua, mas provavelmente invasiva – então logo volto meu olhar para o meu
próprio apartamento e sigo com minhas tarefas domésticas. Apesar de nunca ter visto meus
vizinhos observando seus arredores através de suas janelas, hei de imaginar que eles devam
fazer isso, pelo menos os que estão seguindo a quarentena à risca – afinal, restam poucas
distrações para aliviar o tédio que não se demonstrem demasiado repetitivas e que
mantenham algum contato com o real.

Não é de hoje, mas certamente não é à toa que a participação política através das
janelas se elevou nos últimos tempos, através de panelaços, gritos de revolta, atos coletivos de
palmas ou vaias. Até mesmo discussões inteiras entre opiniões divergentes pude presenciar
como silencioso ouvinte entre duas janelas. Me pergunto se as pessoas se viam enquanto
discutiam, ou se apenas se ouviam e retrucavam frases de efeito e questionamentos. Me
pergunto se essas pessoas que discutiram eventualmente, depois da quarentena, tomariam
um elevador juntas ou se cruzariam na rua sem ter a menor ideia de que se xingaram com
muita voracidade num dia particularmente tenso de crise. O contato com o real através de
uma janela é, afinal, muito limitado. Basta uma parede para delimitar sua visão de algo, um
ângulo à menos para você deixar de observar o que as pombas estão fazendo no topo dos
prédios, um contracampo inteiro para impedir que você descubra onde se localiza a colmeia
de onde vêm tantas abelhas diariamente pro seu apartamento. A janela é um enquadramento,
a visão limitada pelo arquiteto que a projetou.

Não só de janelas físicas se compõe o cotidiano da quarentena. As janelas virtuais são


tão – ou mais – proeminentes. O monitor do seu computador, a televisão de sua sala e a tela
do seu celular também são as outras possíveis janelas para o externo através do virtual. Um
vídeo do youtube apresenta o passado e o presente de pessoas ao redor do mundo. Os
noticiários te alimentam do que está acontecendo atualmente enquanto você está trancado
em casa. As videochamadas te dão o tão necessário conforto de se comunicar com as pessoas
importantes de sua vida, distantes na vida real mas tão presentes na sua saudade. Conforme
os meses de isolamento vão passando, surge a necessidade de se comemorar aniversários e
datas comemorativas com o intermédio do digital. O aniversário do meu irmão me dá um
pequeno contato com a família paterna: vejo minha avó, meus tios, meu pai, sua esposa,
minha irmã mais nova, meu irmão mais velho. Descubro que a minha avó compra álcool de
posto para limpar sua casa porque é mais barato, verifico que meus primos mais novos estão
detestando suas aulas online, relembro que certas distâncias com algumas pessoas da minha
família vão muito além de serem apenas físicas. Brindamos os trinta anos de vida do meu
irmão, que está no Amapá enquanto eu estou em Minas Gerais, e bebemos o que quer que
tenhamos em casa: ele com seu guaraná, meu pai com seu vinho e eu com a cachaça que
comprei antes da quarentena na esperança de consumi-la em companhia. Já no aniversário do
meu tio materno, converso com meus familiares que, assim como eu, estão em estágios de
grande mudança em suas vidas: minha mãe acabou de trocar de emprego, eu me mudei de
cidade, meu tio está mudando de casa. Como conheço a minha família, sei o que eles
enquadram em suas janelas digitais: o silêncio do meu tio denuncia que ele pode não estar tão
feliz assim, a testa cortada do meu avô indica sua inabilidade em compreender por completo
as novas tecnologias, a agitação da minha prima mais nova denuncia seu cansaço por estar
isolada em casa por tanto tempo sem ter o que fazer. Eu, que estudei cinema e não sou bobo
nem nada, sei muito bem da força do enquadramento quando converso com a minha mãe no
dia das mães, e calculo milimetricamente onde tenho que colocar a câmera do meu
computador para que ela não veja minha cama bagunçada ou minha louça suja. A baixa
resolução da minha câmera também me ajuda a evitar que ela perceba que deixei de fazer
minha barba há meses.

Assisto filmes sozinho e acompanhado. Estar acompanhado na quarentena significa


deixar o microfone do meu celular ligado para poder conversar com a minha namorada
enquanto sincronizamos nossos filmes na tela de nossos computadores e simulamos estar o
mais junto possível estando há centenas de quilômetros de distância. A tecnologia é incrível,
mas também sádica: se há silêncio por mais de dois minutos, tenho que perguntar se ela ainda
está lá, se a chamada não caiu, e ela tem que me responder. O pior terror seria achar que
estava assistindo um filme acompanhado enquanto nesse tempo todo estava sozinho em
virtude de um defeito tecnológico. Quando assisto filmes sozinho, porém, eles têm que bastar
como contato com o mundo externo.

Os filmes são janelas também, mas muito particulares em sua forma e concepção. Na
quarentena, eles não são apenas visões de seus realizadores, ou um retrato de determinada
comunidade, lugar, ou indivíduo, sejam eles ficcionalizados ou não. Eles são, principalmente,
uma janela para o passado. Pensar que em tempos de isolamento social todos os sets de
filmagem foram paralisados por tempo indeterminado faz com que o tempo de produção de
um filme torne-se muito mais pesado para sua absorção. Assisto um, dois, dez, vinte, setenta
filmes enquanto estou preso em meu lar, e não consigo deixar de me perguntar como essas
pessoas que filmaram e foram filmadas estão passando suas quarentenas. Assisto Bruce Lee e
os Fora-Da-Lei de Joost Vandebrug, que passa no MUBI, plataforma online de streaming, e nele
acompanho um grupo de garotos sem pais nem casa vivendo nas ruas e esgotos de Bucareste
num período de seis anos entre 2012 e 2018, e vejo histórias extremamente trágicas que
imagino em terror o quanto devem ter sido agravadas por conta da transmissão do
coronavírus. Assisto A Oeste dos Trilhos, documentário monumental de 9 horas (sim, a
quarentena nos dá muito tempo livre) de Wang Bing que explora uma região de fábricas em
declínio na China da virada do milênio, e a vida e trabalho dos operários que se veem cada vez
mais abandonados pelo estado e pela economia de mercado aberto que toma o país. Seus
sangues estão repletos de chumbo, suas casas são desapropriadas, suas conversas denunciam
o abandono social. Alguns deles devem estar vivos hoje. Como eles estão passando pela
pandemia?

Os filmes têm essa relação estranha com espaço e tempo. Sinto-me equivocadamente
próximo às pessoas que vejo na tela, mas elas estão em outros continentes, outras épocas.
Qualquer passado torna-se distante em tempos de quarentena. Isolado, também tenho uma
relação estranha com o espaço e com o tempo. Os dias passam rápido demais, e só nas minhas
quinzenais idas ao supermercado me lembro de que não estou em São Paulo, mas em Belo
Horizonte. Sinto-me mais próximo das personagens de Sonata de Tóquio, de Kiyoshi Kurosawa,
do que de grandes amigos que tive na adolescência e na juventude e que já não falo há vários
anos. Como anda meu melhor amigo da infância, com quem comecei a fumar, que via todo dia
e que podia visitar sempre que estivesse entediado em casa? Como andam meus amigos da
faculdade, com quem viajava e com quem compartilhei vários dos meus segredos mais
embaraçosos? O isolamento social batalha com o seu contato com o presente e te convida à
revisitar o passado, e revisitar, e revisitar...

Os filmes embaralham suas memórias e seus sonhos.

Ante a inevitável previsão de que essa será só a primeira de muitas quarentenas que
iremos vivenciar nos próximos anos, meu pai compartilha comigo uma notícia de que as redes
de streaming começaram a investir novamente em licenciar e exibir clássicos do cinema, ante
a impossibilidade se gravar novas produções no momento atual. Fico pensando que, se os
filmes são um dos poucos contatos que tenho com o mundo externo, se esse retorno ao
passado fará com que eu comece a acreditar que esse passado é de fato o mundo que está lá
fora. As janelas do meu apartamento não me bastam para saber o que acontece do outro lado
delas, as telas virtuais me apresentam com atraso as reações e falas de meus entes queridos.
Quando imagino o mundo lá fora, que mundo é esse que estou imaginando? Penso nas ruas
que percorri no começo do ano, nos cinemas que frequentei, nos parques em que passeei e
nas pessoas que vi passar em todos esses lugares. Mas as coisas não estão mais assim. Não
imagino o mundo do lado de fora com máscaras, mas é assim que vejo as pessoas que passam
na rua à minha janela. Verdade seja dita: não há mais mundo para voltar. Há um lugar novo
para se ir. É impossível frequentar as mesmas ruas por onde passei. Quais dos meus
restaurantes favoritos vão continuar abertos? Teremos todos mais medo daquele que tosse ao
seu lado no ônibus?

O mistério do futuro assombra o presente que se imagina no passado. Trancado em


meu apartamento, consumindo e pensando cinema, penso constantemente no que acarretará
essa pandemia para os filmes. Há de se imaginar que a maioria das questões políticas
exploradas nos documentários futuros deverão perpassar por essa crise de saúde de um jeito
ou de outro. Em âmbitos macropolíticos, a particular situação brasileira há de repercutir-se de
forma negativa em todos os aspectos sociais, e seu impacto será tamanho que não há assunto
que possa ignorar esse período. Nos cinemas comerciais, em especial os blockbusters
americanos, haverá uma retomada ainda maior nos filmes de zumbis e apocalipses ou, pelo
contrário, uma onda de filmes que propositalmente evitam o assunto e partem para outras e
mais inexploradas áreas, na tentativa de se renovar ou de fazerem os telespectadores se
esquecerem da crise que viveram? Se é que as megaproduções conseguirão existir da mesma
forma que existiram, afinal, se quarentenas serão algo constante no mundo, como grandes
sets poderão dar conta dos limites do isolamento? Talvez os executivos de hollywood sejam
influentes o suficiente para criarem exceções para que seus sets possam se manter ativos
durante quarentenas – afinal, cultura é essencial em momentos como esse, custe ela o que
custar. Pelo menos os executivos americanos não são inocentes. A Netflix tomar o espaço vazio
deixado pelo governo brasileiro para ajudar os trabalhadores da indústria cinematográfica
nacional com dinheiro certamente dará ainda mais força para ela. Me parece mais inevitável a
dominação dessa e de outras redes de streaming na produção de conteúdo no país.
Certamente não haverá outra forma de obtenção de dinheiro de produções de maior
orçamento pelos próximos anos no Brasil. A dominação será total, e não só nas produções: em
tempos de constantes isolamentos sociais, as janelas exibidoras com mais força serão as de
vídeo-on-demand. Não há substitutos para a experiência coletiva de se assistir a um filme em
uma sala de cinema, mas quando não se pode sair de casa, certamente não há como fazer
parte dela. Não à toa as redes de cinema estão tentando desesperadamente lançar
plataformas de streaming para garantir que elas possam ter continuidade de alguma maneira
nesse novo mercado tão misterioso e desafiador para presenças físicas e experiências
materiais. O mercado pornográfico também parece saber muito bem disso – talvez até antes
de todos – e sabe ainda melhor sobre como bancar-se dos desejos e necessidades físicas das
pessoas que estão trancadas em casa. Vale notar a distribuição gratuita de vibradores que
alguns sites eróticos estão promovendo. O isolamento físico é gradualmente substituído pela
experiência virtual. A geração atual já é a que menos transa, imagina-se o que tais quarentenas
constantes podem trazer para isso.

Penso no que esse futuro trará para o conteúdo dos filmes em si, em especial sobre
que forma de mundo eles representarão. Há quem diga que os filmes já previam essa crise sob
diversas formas. Apocalipses zumbis ou filmes de contágios em massa foram populares nos
anos 2010, afinal, e neles podemos ver paralelos bem diretos com o que acontece no mundo
atual. O que eles irão prever num mundo em que esse futuro já chegou? Haverá a ideia de que
não só teremos mais crises de saúde, mas também crises ambientais que selarão de fato o
nosso fim? Essas previsões se tornarão realidade muito mais rápido do que sequer podemos
imaginar? Voltando na ideia de que as plataformas de streaming estão buscando filmes
clássicos e antigos para agregar a seus catálogos, como isso pode traduzir-se no real? Quem
sabe a cultura atual não retome aspectos do passado por conta disso. Se o contato com a
realidade externa se dá através dessas imagens em movimento, não muito distantes passam a
estar os atores e atrizes de outra época das nossas vidas. Mas eu sei que esses filmes são
antigos. Sei que eles são frutos de outra época. O mundo não é preto-e-branco. Será, porém,
que vou me lembrar de como as pessoas conquistam umas as outras nos bares? Alguns
aspectos do mundo que acredito ainda ser real parecem tão rotineiros, tão cotidianos, que
parece que eles nunca vão deixar de existir. Se um filme me mostra a jornada de metrô de um
trabalhador de cidade grande num vagão lotado, não acho estranho pois não só vivi isso
muitas vezes, mas sei que é assim que se dão esses transportes na hora do rush. Não consigo
imaginar um mundo em que o metrô não esteja lotado. Mas sei que estranharia se visse
alguém de máscara no metrô aqui no Brasil. Nunca vi em nenhum filme brasileiro pessoas
usando máscaras nos transportes públicos, isso não é coisa que acontece por aqui. O mundo
externo que imagino é esse. Mudar o que imagino só será possível quando voltar a ter contato
com o real. Da próxima vez que andar de metrô, ele não vai ser o mesmo metrô de antes. E
não será a exceção. Contudo, enquanto estou preso em casa, o metrô não é esse transporte
mais vazio e cheio de pessoas mascaradas.

O movimento do cinema, pelo menos, é constante. Vinte e quatro quadros por


segundo, e disso eu sei. Não o das videochamadas. No movimento delas não dá para confiar.
Sua cadência digital é fluida, seus engasgos de conexão travam a imagem que se apresenta
para seus olhos. Será que deverei me acostumar ainda mais a seus movimentos, eu que
sempre detestei celular e Skype? Essa cadência inconstante transmutar-se-á na cadência do
que será real para mim? Afinal, quando converso com alguém online, é melhor eu esperar a
pessoa terminar de falar para não interrompê-la, ou preciso me conformar com sua gargalhada
tardia à incrível piada que fiz. No mundo real que conheço, as pessoas riem na hora quando
acham engraçado. Contudo, está sendo cada vez menos estranho para mim quando as pessoas
reagem um ou dois segundos mais tarde do que espero. Não me estranham os parabéns
desconjuntados que tanto meu irmão quanto meu tio receberam. Não há ritmo nas vídeo
chamadas. Não há como produzir música ao vivo nelas, apenas se todas as pessoas que a
performam estiverem numa mesma sala, num mesmo espaço físico. Como estou sozinho, hão
de me bastar a minha voz e o meu violão. Não vou mentir, dá vontade de cantar junto com os
meus vizinhos do karaokê: assim, pelo menos, sei que estou performando ao vivo algum tipo
de música com alguém. Mas não tem jeito, terei que me acostumar com isso: se as
videochamadas são uma das poucas janelas que tenho para o lado de fora, essa cadência
também será a cadência do mundo externo. A etiqueta do digital é mais relevante para mim
do que a etiqueta do real. Por precaução, será melhor manter a distância com as pessoas na
rua.

Mas apesar do inevitável colapso dos mercados, das profundas mudanças econômicas
e da reconfiguração das relações que terei com meus entes queridos, sei – e espero – que
algumas coisas devem permanecer. Eu sei que não poderei comprar minha própria casa – o
mercado imobiliário continuará caro. Sei que quem não tem emprego continuará a não ter
emprego. Sei que estamos entrando no inverno porque faz frio em minha casa, sei que ainda
posso contar com a minha família para o que precisar. Sei que a minha rua não mudou de lugar
– posso vê-la da janela do meu quarto. O sino da igreja continua batendo pontualmente então
sei que horas são. Ele bateu oito vezes, então sei que são oito da noite. Depois do
cancelamento do horário de verão de 2019, confio mais nele do que nos meus relógios, que
são todos digitais. Para algumas coisas, ainda prefiro confiar no real. Vejo um vizinho jogando
pedras de gelo nos gatos da casa ao lado para que eles não acasalem e parem de miar. Para
algumas coisas, só jogando pedras – não para os gatos, que ignoraram completamente a ação
desesperada do morador inconsolado do meu prédio.

As pessoas que mantiveram-se total ou parcialmente isoladas durante o período da


pandemia sabem que há certas coisas que devem permanecer. Elas imaginam o lado de fora:
imaginam o carnaval do ano seguinte, imaginam a visita que farão à seus pais idosos depois da
crise, imaginam o trânsito que vão pegar novamente ao ir e voltar de seus trabalhos. Sabem
que a política brasileira continuará um caos, que a Globo voltará a passar o futebol ao vivo e
que haverá cerveja gelada nos bares que estiverem abertos. Se não é possível saber o que é o
mundo externo nesse exato momento de isolamento, é possível, pelo menos, algo intrínseco
ao ato de ser: imaginar é o que há de mais concreto. E é através do imaginar que elas saberão
o futuro e o que as espera do outro lado da janela.

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