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‘El Pepe uma vida suprema’, de Emir Kusturica, e a política como bem comum

Pepe cultiva a terra com seu corpo frágil, enquanto ensina algumas crianças a plantar.
O trabalho na terra é no filme uma metáfora sobre sua vida, mas também é concreto,
material.

Há pessoas que nos lembram com sua postura que o mundo também se transforma com
pequenos gestos. Em um momento de profunda crise e dúvidas em relação às lideranças
latino-americanas, o popular ex-presidente José Mujica, ou Pepe Mujica, como é
carinhosamente chamado, caminha na contramão. É um raro político que não depreciou
essa prática. Com seu voto de simplicidade, com seu desapego aos bens materiais e uma
vida dedicada ao bem comum, tornou-se um símbolo, incômodo, não só para adversários
mas principalmente para seus aliados, de como a política deveria ser exercida.
É um desafio enorme documentar alguém tão coerente em suas escolhas. Como retratar
um dos mais simpáticos e apaixonantes líderes políticos da história contemporânea, sem
incorrer no risco de mitificá-lo? É curioso que este desafio foi encarado não por um latino-
americano, mas por um sérvio, Emir Kusturica.
Kusturica, 65 anos, é um dos mais celebrados diretores de sua geração, autor de obras
importantes como ‘Quando Papai Saiu Em Viagem De Negócios’(1985), ‘Vida
Cigana’(1988) e ‘Underground - Mentiras De Guerra’(1995). Em paralelo aos seus filmes
dedica-se também à carreira de músico, com sua banda The No Smoling Orchestra. Sua
trajetória é repleta de prêmios e menções em festivais importantes, como Cannes, Berlim
e Veneza, onde ‘El Pepe uma vida suprema’ foi exibido.
Retratar ídolos latino-americanos não é uma novidade para esse diretor. Antes, ele
realizou uma cinebiografia de ninguém menos que Diego Maradona, o controverso
craque, que alguns incautos consideram melhor que Pelé. ‘Maradona by Kusturica' (2008)
é um documentário divertido e afetivo, que nos aproxima do maior ídolo do futebol
argentino, revelando suas fraquezas, sua visão de mundo, seu talento incontestável e a
idolatria em torno de sua figura _há até mesmo uma ‘Igreja Maradoniana’, formada por
pessoas do mundo todo para celebrá-lo com a um Deus.
Assim como fez no seu filme sobre Maradona, em ‘El Pepe uma vida suprema’ Kusturica
investe na intimidade de seu personagem para revelar seus segredos. A estratégia,
aparentemente simples, é construir o documentário como um dia na vida de um homem
singular. No entanto não é um dia qualquer. É seu último momento na Presidência do
Uruguai. Antes de chegar ao posto máximo, Pepe foi líder do grupo guerrilheiro
Tupamaros, lutou contra a ditadura e, após ser atingido por seis tiros, passou treze anos
preso, doze deles isolado do contato com outras pessoas (esse período é retratado no filme
ficcional ‘A noite de doze anos’, obra premiadíssima de Álvaro Brechner, em exibição
na Netflix).
Pois eis que em seu último dia na Presidência, Kusturica o encontra a cultivar a horta na
modesta chácara em que vive, nos arredores de Montevidéu, a conversar com amigos e a
tomar seu mate. É bonito ver a relação de cumplicidade com sua companheira de vida
Lucía Topolansky, também líder política e ex-guerrilheira, que ficou conhecida no
imaginário popular na ditadura por lutar ao lado de sua irmã gêmea. Um casal feliz de
idosos, que vivem uma vida austera, mas rica de significados. Nesse dia especial, Pepe
conversa com Kusturica, com a esposa e com amigos e relembra sua trajetória: revela as
dores da prisão, a importância do isolamento para sua reflexão sobre a sociedade, a
decisão, em comum acordo com a companheira, de não ter filhos para dedicarem-se à
política, e um sincero arrependimento por essa escolha.
Pepe cultiva a terra com seu corpo frágil, enquanto ensina algumas crianças a plantar. O
trabalho na terra é, no filme, uma metáfora sobre sua vida, mas também é concreto,
material. Pepe até hoje se dedica ao cultivo de flores, atividade que exerceu por toda vida,
em paralelo a suas atividades na guerrilha, no parlamento e na Presidência. Quando saiu
da prisão, ele levava consigo uma flor que plantara em um penico, fazendo companhia
para seu solitário confinamento. Kusturica extrai ao máximo esse simbolismo de um
homem que, para além da política, tem um ofício, que é ao mesmo tempo sua
sobrevivência e sua essência. E que em seu cotidiano construiu uma micro-política em
sintonia com a macro-política que propunha.
Não é pouco. Não se trata de uma escolha de ocasião, mas de 85 anos de percurso. Nada
mais longe desse personagem do que a ostentação e o consumismo. Ao olhá-lo, não
podemos deixar de perguntar: não deveria ser este o comportamento de todo líder
popular? Não deveríamos pensar a política a partir do seu exemplo? Pepe não é arrivista,
não faz parte da elite uruguaia, e nem aspira fazer. Há alguém mais distante do que se
tornou a esquerda hegemônica na América do Sul?
Por trás da simplicidade, há os pequenos símbolos e gestos de alguém que aprendeu que
a maior qualidade das pessoas é a coerência. Em um mundo de obscuridade, Pepe é o
oposto. Tudo nele é límpido, inclusive sua vocação política. Os tempos seguiram, o
governo de seu sucessor chegou ao fim com graves acusações de corrupção, a direita
voltou ao poder. Mas a imagem de Pepe cultivando suas flores e dirigindo seu
inesquecível carro velho resiste.
O momento síntese do filme talvez seja a simbólica viagem de Pepe em seu fusca azul,
modelo 1982, dos arredores de Montevidéu até o palácio de governo, onde passará a faixa
presidencial. As pessoas estão nas ruas, gritam seu nome. Ele responde singelamente,
apertando os olhos puxados, sorrindo. Cumpre o rito de passagem com despojamento, e
depois volta para casa. À noite, em uma roda de amigos, conversa e toma um mate, como
se fechasse mais uma jornada. Aquele pequeno senhor de bigode despertou a esperança
no povo uruguaio e estabeleceu uma forma de fazer política. Podemos concordar ou não
com suas convicções, mas ninguém põe em dúvida a sua integridade, a maior herança que
Pepe deixou para o futuro. É um dos raros políticos que são famosos por sua sinceridade,
com a qual não poupou nem seus pares (são famosas frases como “essa velha é pior que
o caolho”, referindo-se, respectivamente, a Cristina Kirchner e ao falecido ex-presidente
Néstor Kirchner, que era estrábico).
A viagem de fusca fecha mais um ciclo, um simbólico adeus aos tempos sombrios da
ditadura uruguaia, que nós, seus vizinhos, não fomos capazes de realizar. Acompanhado
do diretor Emir Kusturica, Pepe nos mostra, em sua incômoda e cativante simplicidade,
que a despedida da Presidência foi apenas mais um dia na vida de alguém que lutou toda
a vida. É uma daquelas raras pessoas que o dramatugo alemão Bertold Brecht classificou
como “imprescindíveis”.

‘El Pepe uma vida suprema’ (2018), de Emir Kusturica


Em exibição na Netflix https://www.netflix.com/

*Thiago B. Mendonça é crítico de cinema, diretor e roteirista.

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