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O limite do limite

Um ensaio no território da Via Light

Mariana Maciel de Farias

Menção Honrosa do Prêmio Arquiteto do Amanhã de 2019

Projeto de Trabalho Final de Graduação na FAU UFRJ,


desenvolvido no ano de 2019 sob orientação de Cauê Capille

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Limites infraestruturais
A RJ-081, oficialmente denominada Rodovia Carlinhos da Tinguá, popularmente
conhecida como Via Light, é uma via expressa que liga a metrópole do Rio de Janeiro ao
município de Nova Iguaçu. Sua estrutura rígida e monofuncional consolida a separação
entre as densas malhas urbanas dos municípios que a margeiam. Em particular, o trecho
de 3,5 km de fronteira administrativa entre os municípios de São João de Meriti e
Nilópolis sintetizam profundos problemas espaciais para o projeto urbano nas escalas
locais e metropolitanas.
A lógica metropolitana carioca é responsável pela configuração do território conurbado
e genérico, fruto do fenômeno da dispersão urbana da Baixada. Através de uma
política de centralidades, na qual há uma forte relação de dependência dos municípios
metropolitanos com o Rio de Janeiro, esses espaços periféricos são recortados por
diversos eixos com destino à metrópole. As infraestruturas de transporte, esgoto e
iluminação - apesar de cumprirem seu papel no sistema – têm caráter frequentemente
fragmentador para a cidade que se molda ao seu redor.
No caso em estudo, tal fato agrava-se devido à sobreposição de agentes limitadores,
onde a rodovia coexiste com as linhas de transmissão de energia elétrica. A proibição
de construção sob os cabos, por medidas de segurança, acaba produzindo um vazio
urbano desconectado do restante da cidade, o que ratifica os fatores de inabitabilidade e
insegurança já criados pela condição rodoviária. Além disso, o território estudado está
afastado dos centros dos municípios que ele separa, o que reforça seu caráter periférico.
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SÃO JOÃO DE MERITI


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-11
LIG

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MESQUITA
HT

TR
A
RIO PAVUNA

NILÓPOLIS
RIO DE JANEIRO

101
BR- SI L
RA
AB
NID
AVE

principais rodovias 0 5km 10km

principais ferrovias
limites admnistrativos
centralidade dos municípios

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Convivência oscilante no acesso à Via Light,
Google Street View, Agosto 2017
É um território que se conforma com a somatória da negação. Nega-se
a rodovia, as linhas de alta tensão, o lixo, a existência. Entende-se que,
aqui, o vazio é o criador da barreira, no qual a densa malha flexível
e mutável das cidades ao redor se interrompem por essa desabitada
porção de terra, renegada pelo poder administrativo.

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A arquitetura do limite
A proposta é resultado de um processo experimental que teve como objetivo principal
evidenciar a potencialidade de um objeto urbano que se posiciona na fronteira entre
arquitetura e/ou espaço público. Essa investigação integra ensaio e projeto, buscando,
com o exercício propositivo, debater acerca da noção de limite em si, e a arquitetura que
o mesmo pode vir a produzir.
Sendo assim, foi desenvolvida uma pesquisa dos limites urbanos, aqueles entre a
arquitetura e o espaço livre de edificação, investigando - através de projeto - o território
formado na periferia metropolitana do Rio de Janeiro e buscando entender como os
espaços limítrofes entre os domínios público e privado se conformam nesse tipo de
ambiente urbano.
Nesse sentido, o objetivo foi menos o de definir soluções para problemas comuns das
áreas de periferia urbana e, mais, de levantar um repertório de condições projetuais
desses contextos. Assim, esse repertório é feito não de ‘dados objetivos’ que permitem
a frequente abordagem ‘problema-solução’, mas, sim, de uma coleção de fragmentos
(fotografias, cartografias, maquetes, ensaios) que compõe, em conjunto, uma ‘condição
de limite’. Com uma proposta mais indagadora do que definitiva, o produto deste
trabalho está mais no seu desenvolvimento do que na sua forma plástica final.

A espessura do limite
O Google Street View foi importante ferramenta para identificação
das particularidades desse território rodoviário superficalmente
homogêneo. Os recortes demonstram momentos de ocupações das
bordas livres, travessias improvisadas e ineficiência do poder público.

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as linhas de alta tensão
geram luz

as infraestruturas de transporte
geram produtos

A lógica metropolitana
Os espaços periféricos são formados por dois elementos urbanos sempre em constante ampliação e consolidação. É válido ressaltar que
essenciais. Aqui, classificamo-os como fixos e fluxos. Fixo é tudo aquilo não é o conjunto da cidade que está sendo considerado como algo
que estrutura a expansão da cidade: as rodovias, as ferrovias, as linhas mutável, o que se pondera aqui é a fragilidade individual de cada objeto
de transmissão elétrica e os grandes maciços preservados; tais peças arquitetônico colocado na periferia.
são monofuncionais e inabitáveis. Como fluxo, considera-se aquilo Sendo assim, entende-se que a expansão periférica é permitida - mas
que costumamos entender por arquitetura a nível do pedestre; as ruas também limitada - por essas estruturas fixas que não podem deixar de
e edificações - que tem como característica sua fácil mutabilidade, existir para que a lógica metropolitana continue fazendo sentido.

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STOP CITY
Dogma
2007-08
a marcação do fim

CONTINUOUS MONUMENT
Superstudio
1969-70
estrutura absoluta

THE RIVER THAT IS NOT


LCLA office + Agenda
Medellin
edifício ponte

PONTE VECCHIO
Taddeo Gaddi
1345
Florença, Itália
continuação da malha

PROPOSTA PARA ESTAÇÃO


DE BRNO
Dogma
2015
Brno, República Checa
edifício limite

PARQUE ATERRO DO
FLAMENGO
Lota de Macedo Soares / Affonso
Eduardo Reidy
1965
Rio de Janeiro, Brasil
topologia camuflada

FESTIVAL TEMPO Construção de repertório


Grua Arquitetos Fez-se uma coleção de projetos que abordam a noção de vazio e limite
2019 para serem base para as estratégias a serem propostas. A escolha de
Rio de Janeiro, Brasil representação do território em maquete foi desenvolvida baseando-
reforço da existência se no processo utilizado por Andrea Branzi no seu ateliê de projeto
da graduação em Design de Interiores da universidade Politecnico di
Milano.
Segundo a descrição disponível em CUTLAK, “no exercício projetual
proposto por Branzi na PoliMi, cada grupo de estudantes constrói
THE FIELD uma caixa sem tampa feita de espelhos voltados para o interior que
Zagreb Society of Architects servirá de suporte para os projetos. Cada peça colocada nesta caixa
2012 espelhada — uma estrutura arquitetônica, um poste ou mobiliário —
Neuchâtel, Suíça será multiplicada indefinidamente em todas as direções. O arquiteto
mudança de sistema leva o pensamento do projeto do produto industrial para o urbanismo,
dissolvendo limites a partir da lógica de um sistema de objetos. Branzi
propõe que, nas cidades, não haja diferenciação entre interior e
exterior.”

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A Coleção de Projetos
Os projetos selecionados possuem escalas
e abordagens diferenciadas, mas todos
transmitem uma lógica que busca integrar
os espaços contruidos e livres, seja por
semelhança ou contraste.
Para todos os estudos de caso foram
produzidas colagens do projeto aplicado
na área do ensaio crítico; os casos acima
são o produto dessa fase dos projetos Stop
City e Intervenção Tempo.
Ressalta-se, ainda, que não há intensão de
uma comparação qualitativa
entre projetos, visando apenas
compreender como determinada
estratégia influenciaria no espaço a ser
projetado.

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a

b
a c

b
30 c

30

Análise das particularidades b c


a
O território foi explorado, considerando quatro filtros -
topografia, equipamentos, legislação e atravessamentos. Usada para Corredor Faixa de
movimentação localizado bem terra que
c
a de veículosbe abaixo dos complementa
Topografia equipamentos cabos, ao longo a largura
O projeto da Via Light cortou o relevo existente, o que nos trabalhos da linha total da faixa
acabou reforçando a separação entre os municípios de São de manutenção de sevidão
João de Meriti e Nilópolis. Em alguns trechos a variação do
nível da rodovia para o nível da malha urbana pode chegar
a 9 metros.
Usos Permitidos
* os itens da coluna à direita se replicam para as
Equipamentos próximas colunas
A malha urbana é composta em sua maioria por casas, com - plantações - culturas de -depósito de
altura média de um a dois pavimento. Os equipamentos de rasteiras pequeno e materiais não
maior relevância são educacionais (CIEP), mas não possuem -irrigação médio porte inflamáveis
uma relação direta com os acessos à rodovia. Há uma grande -cercas - veículos
quantidade de quadras esportivas, formais e informais. de arame, agrícolas
passagens, - benfeitorias
porteiras de apoio à
Legislação - deslocamento agricultura
O território é marcado por várias restrições de ocupação, de pessoas na
apesar de na prática o uso não ser controlado. A legislação de faixa
ocupação na faixa de servidão elétrica permite a construção
de benfeitorias de apoio à agricultura.

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Atravessamentos
As travessias podem ser formais (por cima e por
baixo) ou informais. Tendem a acontecer a cada
250m, e no trecho de 3,5 km analisado, existem 14
delas.

Atravessamento Formal por baixo

Atravessamento Formal por cima

Atravessamento Informal

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Muro e Fazenda; Ponte e Catraca
A proposta projetual tem duas partes: ‘muro e fazenda’ e ‘ponte e catraca’. É uma
tentativa de produzir uma arquitetura absoluta¹ que pretende designar a
transição entre o espaço público e privado perimetropolitano², buscando ser
em si limite e/ou travessia.
Primeiro, ‘muro’ implica em assumir e projetar o limite do limite. Isto é, se a
infraestrutura é um limite urbano e tem ‘espessura’ (não se trata de uma linha
imaginária, mas de uma faixa de 100m de largura), tem, inclusive, um limite, uma
borda. Essa borda tem a potência de ser a fachada, a representação e performance do
limite urbano tornado arquitetura. Falta-lhe, entretanto, um projeto.
Ao mesmo tempo, a estratégia ‘fazenda’ implica em se posicionar contrário à mera
aplicação do conceito de ‘terrain vague’³ para os espaços inocupados da periferia
metropolitana: enquanto, nos centros urbanos dos países do norte global, o conceito
de ‘terrain vague’ permite uma contraposição importante ao conceito de ‘utilidade’ do
território, implicando em uma crítica à financeirização da terra urbana e ao capitalismo;
nas periferias do sul global, ‘terrain vague’ apenas romantiza situações de extrema
precariedade. Dessa forma, a primeira estratégia de projeto – ‘muro e fazenda’ –
consiste em conformar arquitetonicamente o limite (através do ‘muro’, limite do limite)
e subdividir as áreas de faixa de servidão em lotes para as áreas de cultivo, que é uma das
únicas atividades que podem ocorrer abaixo das linhas de alta tensão.
A estratégia ‘ponte e catraca’ implica, em seguida, na compreensão da função urbana
das arquiteturas que atravessam a faixa da infraestrutura. Para esses atravessadores,
a proposta é de uma arquitetura de uso indeterminado com um raciocínio estrutural
como estratégia para qualificação do espaço público. Portanto, a abordagem da proposta
não está na particularidade de cada um dos objetos, mas no papel que cada um deles
desempenha no plano urbano geral.
Em síntese, as arquiteturas propostas, independente da escala, deverão estabelecer
pelo menos uma das três funções propostas: catraca, muro e/ou ponte. Os nomes de
cada uma das funções foram definidos justamente por imageticamente simbolizarem
a função que ocupam. Entretanto, eles não dizem respeito à concepção formal dos
objetos em si. Cada uma dessas funções pode ter formas distintas, dependendo das
circunstâncias de cada trecho. O objetivo deste trabalho não é determinar exatamente
cada um dos trechos, mas estabelecer um sistema.

deverão estabelecer pelo menos uma das três


deverão estabelecer pelo menos uma das três funções propostas.
funções propostas.
São elas:
São elas:

objeto cumpre a função


objeto cumpre a função de impedir o atravessamento.
Muro Ponte e Catraca
de impedir o atravessamento. dividir.
dividir. é barreira.
é barreira.
Cumpre a função barreira, limite, fim. Tem como objetivo impedir o Essas funções estão relacionadas à um papel de mediador de
acesso direto à infraestrutura elétrica e rodoviária, impossibilitando atravessamentos. É ativador de atravessamentos formais já existentes
o atravessamento irregular. Se divide em em suas subcategorias, que ou a serem criados criados. Diferentemente do muro, esses
podem coexitir: muros como superfície (permeável ou opaca) e muros objetos serão sempre vinculados a uma edificação com programa
como edificação. arquitetônico.

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Muro como superfície

Muro Permeável + Vista Muro Opaco + Função


A permeabilidade visual pode ser atingida com diversos materiais - Caso não seja interessante visualizar através do muro, é permitido
cobogó, tijolos intertravados, gradil. Altura máxima = 3m que seja opaco, desde que nele seja acoplado algum tipo de mobiliário
urbano. Altura máxima = 3m

Muro + Banco e Mesa Muro + Poste


Cada ponto de luz deve ser
colocado a cada 50 metros.
Deve ter 6m de altura.

Muro + outros
Cada ponto de luz deve ser
colocado a cada 50 metros.
Deve ter 6m de altura.

Situação: Rua + Servidão + Rodovia Situação: Fim de Rua / Lote + Servidão ou Rodovia
Objeto se posiciona paralelamente à via local que ocorre ao longo da Objeto se posiciona ao fim da via local que ocorre perpendicular à
margem infraestrutural. Programa arquitetônico sugerido: comercial, margem infraestrutural. Programa arquitetônico sugerido: comercial,
ensino, infraestrutura pública. ensino, infraestrutura pública, religioso.

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Infraestrutura potencializada
O projeto busca gerar multiplicidade de funções. Considera que o uso
único da faixa de servidão elétrica e da rodovia são os fatores
que levam o espaço a não ser habitável e seguro. Criar lotes
para policulturas e vinculá-los a equipamentos para troca de
produtos, incorpora ao espaço um novo uso; e portanto, uma nova
centralidade.

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Catraca, o edifício vigilante
Os edifícios com função catraca podem ter dois posiconamentos
principais e sempre estão relacionados com estruturas já existentes.
Os que ficam imediatamente antes do acesso, em terrenos adjacentes à
area ocupada pela Via Light

Situação: Inserção do objeto arquitetônico na Faixa de Situação: Inserção do objeto arquitetônico


Servidão na malha urbana adjacente

Ponte
Os edifícios com função ponte unem as cidades que margeiam a
rodovia, interando tanto horizontalmente como verticalmente.

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-
RIO SARAPUI / MESQUI TA
TRANSBAIXADA SÃO JOÃO DE MERITI

NILÓPOLIS SÃO JOÃO DE MERITI

RIO PAVUNA

SÃO JOÃO DE MERITI


RIO DE JANEIRO

Os Edifícios Âncora
Os equipamentos âncora são edifícios com maiores dimensões,
mas devem seguir as mesmas funções já citadas anteriormente. Se
desenvolvem em paralelo aos demais elementos propostos e possui em
si uma conjunção de todas as funções propostas. Tem objetivo de gerar
centralidade ao longo do eixo rodoviário, sendo posicionado a partir de
uma análise de pontos de interesse existentes que o margeiam. Seu uso
e formas devem variar, se adequando às necessidades do entorno.

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muro com espessura

Edifício-Praça Fazenda
O Edifício-Praça
A isométrica ilustra o trecho da implantação do Edifício-Praça.
Edificação de uso indeterminado, tem a sugestão de uso como suporte
ao esporte - exemplo: salas de dança, luta, comércio alimentíceo, etc -
por se associar com duas quadras esportivas existentes.

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cultivo 11

cultivo 11

Nilópolis São João de Meriti

cultivo 10

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A

0 10 50 100m 0 10 50 100m

Planta Baixa - Nível Nilópolis Planta Baixa - Nível São


Com função de passarela edificada, o objeto João de Meriti
arquitetônico conecta as duas cidades vizinhas,
antes divididas pela topografia e os elementos
infraestrutuais. Com sua forma circular com pátio
interno, a edificação sugere uma crítica à própria
condição do lugar, contemplando o vazio inacessível
que precisa continuar existindo. Entretanto, com essa
nova implantação, o espaço da infraestrutura, antes
degradado, passa a fazer parte do espaço urbano.

Corte A

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Rotina do ócio x negócio x cívil
Rodovias não são consideradas como parte da cidade devido à sua
monofuncionalidade estrutural. Rodovias não são ruas. A proposta
considera a potencialidade da superfície plana e não construída da
Via Light, que constitui um cenário diferente das densas cidades à sua
margem.Tal cenário é oportuno para acoplar uma rotina do ócio à
rotina do negócio já existente.

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Notas:
1. AURELLI, Pier Vittorio . The Possibility of an Absolute Architecture

2. FARIAS FILHO, J. A. O Projeto Urbano Ex-Cêntrico como Instrumento de Política Metropolitana. In: COSTA, Lucia
Maria S. A.; MACHADO, Denise B. Pinheiro. (Org.). Conectividade, Resiliência: estratégias de projeto para
a metrópole., 1ªed.Rio de Janeiro: Rio Book’s / PROURB, 2012, v., p. 31-61.

3. SOLÀ-MOALES, Ignasí de. Terrain Vague

4. BRANZI, Andrea. Tradução - CUTLAK, Barbara; GARCEZ, VITOR. Modernidade enfraquecida e difusa: o universo
dos projetos no início do século XX¹. Revista online do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia
Universidade Católica - Puc-Rio – Rio de Janeiro Brasil. Ano I – N° I - ISSN 2446-7340

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