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XCVII.

Sobre Nossos Tempos Degenerados

Saudações de Sêneca a seu amigo Lucílio,

Enganas-te, caro Lucílio, se pensas que o luxo, o desprezo pelos bons costumes e aquilo que cada um
em geral critica na sua própria época são vícios do nosso tempo: tudo isso é próprio dos homens, não
das épocas. Nenhuma era esteve isenta de culpa. Se te puseres a avaliar o desregramento de cada
época, (envergonho-me de o dizer!), nunca ele foi mais patente do que no tempo de Catão. Haverá
quem possa acreditar que houve tentativas de 2 suborno no julgamento em que Clódio compareceu
como réu devido ao adultério cometido durante os Mistérios com a mulher de César, com total violação
dos rituais do sacrifício dito "em interesse do povo'', durante o qual era tão rigorosa a exclusão dos
homens do recinto sagrado que até se tapavam as pinturas representando animais machos? Pois não
só foi oferecido dinheiro aos juízes como ainda - o que ultrapassa em abjeção o próprio suborno - se
praticou estupro (para cúmulo!) sobre matronas e adolescentes da nobreza! Foi menos desonroso o
crime do que a absolvição: o réu de adultério compartilhou os seus adultérios e não se sentiu seguro
da absolvição antes de ter tornado os juízes iguais a si. E tudo isto sucedeu durante um processo em
que, se mais não houvera, Catão comparecera como testemunha. Cito-te as próprias palavras de
Cícero, pois o caso excede quanto se possa crer:

"Convocou os juízes para sua casa, prometeu, garantiu, ofereceu. Mais ainda (ó bons deuses, que
perversidade!), passar a noite com determinadas mulheres e em entrevistas galantes com adolescentes
da nobreza foi prenda suplementar oferecida a vários juízes". Já nem vale a pena deplorar o salário,
o pior de tudo foi o suplemento.

"Interessa-te a mulher daquele indivíduo austero? Queres antes a deste ricaço? Arranjarei modo de
dormires com ela. Se não cometeres um adultério, podes condenar- me! Esta beldade que tu pretendes
aparecerá. Prometo-te uma noite com ela, e sem tardar muito: antes que passem vinte e quatro horas,
a minha promessa estará cumprida." Tem mais que se lhe diga distribuir adultérios do que cometê-los;
aquilo é o que se chama uma notificação às mães de família! Os juízes de Clódio pediram ao senado
uma escolta, coisa que só seria necessária se eles estivessem dispostos a condená-lo, e obtiveram-na,
o que fez Cátulo dizer-lhes espirituosamente, depois de absolvido o réu:

"Para que nos pedistes a escolta? Foi para não vos roubarem o dinheiro?"

Entre estas insinuações, Clódio saiu-se impunemente; adúltero antes do julgamento, cafetão durante o
julgamento, evitou a condenação de um modo mais infamante do que aquele por que a tinha merecido.
Achas que poderá haver costumes mais corruptos do que estes, em que a lascívia nem sequer era
refreada pela religião, nem pelos tribunais, em que durante o inquérito instaurado por Senarusconsulto
se cometeram mais delitos do que os que faziam o objeto do inquérito? A questão era se, depois do
adultério, alguém podia viver em segurança; verificou-se que em segurança ninguém podia viver sem
adultério!

Eis ao que se chegou nos tempos de Pompeio e César, de Cícero e Catão, daquele mesmo Catão ante
cuja presença a multidão se recusou a admitir a comparência, nas festas de Flora, das habituais
prostitutas nuas, se é que devemos acreditar que esses homens eram mais rigorosos como espectadores
do que como juízes! Casos destes dar-se-ão, como se têm dado; o desregramento das cidades pode
ocasionalmente diminuir pelo medo da autoridade, mas nunca espontaneamente. Não há, portanto,
razão para pensares que nós nos distinguimos por excesso de licenciosidade e falta de respeito pela
lei. A nossa juventude é mais saudável do que a dos tempos em que o réu negava o seu adultério
perante os juízes mas os juízes confessavam o seu diante do réu, em que se cometia estupro para poder
prosseguir o julgamento, em que Clódio - caído em boas graças devido aos vícios que o sujavam -
fazia ofício de alcoviteiro durante a própria instrução do processo. Quem poderá crer que um homem
a quem um adultério devia fazer condenar foi, afinal, absolvido graças a vários adultérios?

Qualquer época tem os seus Clódios, mas nem todas produzem Catões! Facilmente enveredamos pelo
mal, em que nunca faltará guia ou · companheiro, embora para progredir no mal não faça falta guia ou
companheiro. Para o vício há, não apenas uma tendência, mas um verdadeiro instinto cego, que torna
muitos homens incapazes de qualquer correção; em qualquer outra arte as imperfeições são motivo de
vergonha para o respectivo artífice, o qual se sente confuso ante o seu erro; as imperfeições na arte da
vida, essas são motivo de prazer! Um timoneiro não se alegra quando o barco se vira, um médico não
se alegra quando o doente morre, um orador não se alegra se o réu é condenado por culpa do advogado,
mas, inversamente, qualquer vício é fonte de prazer para quem o possui: àquele, agrada-lhe o adultério,
cujas dificuldades mais lhe acendem o apetite; aquele outro compraz-se na falcatrua e no roubo, e o
seu crime só lhe causa desagrado quando não lhe sorri a sorte. Uma depravada habituação conduz a
este resultado. De resto, para veres como mesmo os espíritos propensos aos piores crimes conservam
a noção do bem (não ignoram que agem mal, mas não ligam) repara como todos dissimulam os seus
atos e, quando as coisas lhes correm a contento, gozam os benefícios do crime mas nunca revelam o
que fizeram! A consciência tranquila aspira a surgir ante a vista de todos; a maldade, essa, até as trevas
receia. Em meu entender, teve toda a razão Epicuro quando disse: "Um criminoso pode ter a sorte de
conservar-se oculto, mas não pode estar seguro de assim permanecer." Talvez percebas melhor a
ideia se eu disser por outras palavras: é inútil aos criminosos ocultarem-se, pois ainda que tenham a
sorte de encontrar um esconderijo nunca se podem sentir totalmente confiados. É assim mesmo, um
crime pode conservar-se escondido, mas nunca pode alcançar a segurança.

Não creio que, ao resolver deste modo o problema, eu vá contra os princípios da nossa escola. E
porquê? Porque o primeiro e maior castigo de um criminoso é ter cometido o ato, e nenhum crime,
por muito que a fortuna o adorne com os seus dons, o proteja e o reivindique, escapa ao castigo, uma
vez que o próprio crime constitui a punição por esse crime. Além disso, persegui-lo-ão estreitamente
as penas do segundo grau: o medo contínuo, o pavor, o nunca confiar na aparente segurança. Porque
havia eu de libertar deste suplício a iniquidade? Porque não hei-de deixá-la sempre em suspenso? Mas
devemos discordar de Epicuro · no ponto em que ele diz que nada é justo por natureza, e que devemos
evitar os crimes porque nos é impossível evitar o medo; mas podemos estar de acordo em que os maus
atos são castigados pela consciência de os ter cometido, e que tanto maior é o grau de tortura que se
lhes segue por ser contínua a angústia que oprime e atormenta a consciência, a tal ponto que nem
sequer consegue confiar nas garantias de segurança que se lhe oferecem. Isto prova precisamente,
Epicuro, que é natural em nós a repugnância pelo crime, pois mesmo na mais completa segurança
ninguém consegue escapar ao medo. A sorte pode evitar a muitos o castigo, mas a ninguém evita o
medo. E porquê, senão porque é inata em nós a aversão por qualquer ato condenado pela natureza?
Por isto nunca podem confiar no seu esconderijo nem mesmo os que estão bem escondidos, porque a
consciência os acusa e os mostra a si - mesmos como são. Tremer de medo, aqui está o sinal que
distingue os criminosos. Imperfeita seria a espécie humana (pois muitos crimes escapam à Lei, à
justiça, às penas estabelecidas) se a natureza não fosse a primeira a exigir desde logo reparação, e se
o medo não atuasse como sucedâneo do castigo.

Adeus

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