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psicológica*
Bernard Lahire**
Resumo
O autor esboça neste artigo o programa científico de uma sociologia psicológica. Realizar uma análise
sociológica na escala do indivíduo socializado é, entre outros, estudar muito precisamente a constitui-
ção das disposições sociais, as formas de interiorização e de exteriorização dos hábitos, os efeitos
mentais e identitários da incorporação de disposições heterogêneas e, às vezes, contraditórias... Essa
sociologia psicológica, que responde a uma dupla necessidade (histórica e científica), não é contrária
aos métodos estatísticos e generalizantes, mas pretende somente dotar a sociologia de ferramentas
(conceituais e metodológicas) adequadas à apreensão das marcas mais singulares do social.
Existem objetos mais sociais É por não excluir a priori nenhum as-
que outros? sunto de seu campo de estudo que as ciênci-
as sociais podem obter um progresso rumo à
Onde e como apreender o social? Eis aqui maior autonomia científica. Assim como a lite-
uma questão que, no fundo, nunca cessou de se ratura “mais pura” que, por manifestar a ruptura
colocar aos pesquisadores em ciências sociais, e com as demandas externas, afirma o primado
que deu lugar a uma inacreditável diversidade de do mundo da representação sobre o objeto
respostas conforme as diferentes tradições soci- representado, as ciências sociais devem mostrar
ológicas. As ciências do mundo social teriam, que não há nenhum limite empírico àquilo que
aliás, objetos prediletos no mundo? Uma elas são suscetíveis de estudar, isto é, que não
epistemologia realista levaria a pensar que certos há objetos mais sociológicos, mais antropoló-
objetos do mundo seriam “sociais”, enquanto gicos ou mais históricos que outros, mas que o
outros não (ou menos). Assim, os movimentos essencial reside no modo científico (sociológi-
coletivos, os grupos, as classes, as instituições co, antropológico, histórico etc.) de tratamen-
seriam “por evidência” objetos para as ciências to do assunto 1.
sociais, enquanto o comportamento de um indi- No entanto, essas extensões cognitivas
víduo singular, as neuroses, as depressões, os que uma disciplina científica é suscetível de
sonhos, as emoções, os objetos técnicos que nos constituir em objetos de estudo não são jamais
rodeiam etc. seriam objetos de estudo para simples de operar. É, dessa forma, impossível,
psicossociológicos, psicólogos, psicanalistas,
médicos, engenheiros, ergonômicos etc. Ora, sabe- * Título original: Cahiers Internationaux de Sociologie, v. CVI, p. 29-55,
1999. Tradução de Felipe de Souza Tarábola, mestrando em Psicologia e
se que, em sua prática científica efetiva, os pes- Educação na Faculdade de Educação da USP.
quisadores estão em vias de fazer explodir em **Professor de Sociologia da Ecole Normale Supérieure Lettres et Sciences
faíscas essas fronteiras realistas. De fato, como Humaines. Diretor do Grupo de Pesquisa sobre Socialização (UMR 5040 CNRS).
1. Por exemplo, a sociologia progrediria de modo diretamente proporci-
afirmou enfaticamente Saussure, é o ponto de onal ao fato de não se contentar em se entricheirar na periferia dos lugares
vista que cria o objeto e não o objeto que obe- clássicos da psicologia. Não é questão de estudar somente a percepção
social e histórica da doença mental ou da trajetória socioinstitucional de
deceria/esperaria docilmente no real (na realida- uma doença mental, mas sim a produção social da própria doença. E o
de) o ponto de vista científico que viria revelá-lo. mesmo se aplica ao sonho, ao estresse, à depressão...
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na maioria dos casos, aplicar mecanicamente a deslize foi insensível, imperceptível e tornou,
novos temas ou assuntos os conceitos ou os desse modo, difícil o exercício da lucidez teó-
métodos antigamente aprovados. É nisso que rica. Sem mesmo se dar conta — e sem medir as
os temas de estudo resistem muito mais além conseqüências —, a sociologia se interessou
daquilo que a idéia de uma epistemologia tanto pelos indivíduos socializados como tais
nominalista nos permitiria pensar. A aplicação (nos estudos de caso ou nos trabalhos que
de antigos esquemas interpretativos sobre no- apresentavam, entre outros tipos de “dados”, os
vas realidades pode simplesmente contribuir retratos individuais, sustentados metodologica-
com o reforço da crença na incapacidade intrín- mente pela prática das narrativas de vida ou de
seca da disciplina em estudar essas realidades. entrevistas aprofundadas), quanto pelos grupos,
Um outro risco reside na utilização pela soci- categorias, estruturas, instituições ou situações
ologia, sob a forma de uma importação fraudu- (quais sejam seus tamanhos e tipos). O movi-
lenta e, por conseqüência, não controlada, de mento seria mais visível se os pesquisadores
esquemas interpretativos oriundos de tradições não tivessem o hábito de reivindicar a perti-
disciplinares alheias a seu próprio desenvolvi- nência de suas propostas qual seja a escala de
mento científico. contextualização (do grupo social mais amplo
ao indivíduo mais singular).
O social individualizado Entre o conjunto desses trabalhos desen-
volvidos, uma corrente sociológica foi mais repre-
A dificuldade de compreender o social sentativa que as demais – e caracterizou teorica-
sob sua forma individualizada ocorre, assim, mente essas “pequenas máquinas produtoras” de
devido a dois riscos permanentes: primeiramen- práticas (no sentido amplo do termo), essas “ma-
te, o fato de crer poder estudar o novo (tema trizes” que retêm no corpo de cada indivíduo o
de estudo), reciclando simplesmente o antigo produto das experiências passadas. Quando, por
(conceitos e métodos); em um segundo mo- exemplo, as noções (e as realidades às quais elas
mento, o fato de supor poder alcançar esses fins se remetem) de estruturas cognitivas, psíquicas
científicos fazendo uma bricolagem entre uma ou mentais, de esquemas, disposições, habitus,
sociologia disso (de origem sociológica) e da- incorporação e interiorização não estavam no
quilo (de origem psicológica). âmago do estudo — servindo somente, nos rela-
Ao se colocar voluntariamente de lado o tórios das entrevistas, como conectores necessá-
segundo tipo de risco (que já deu lugar, por rios para legitimar o motivo da adoção de práti-
exemplo, às infelizes tentativas científicas de cas que evocam grosseiramente a socialização
reaproximação do marxismo e da psicanálise passada incorporada —, esses modelos teóricos
nos anos 1970), o qual precisaria de um lon- poderiam parecer satisfatórios. Os termos empres-
go desenvolvimento sobre a inter (ou a pluri) tados da psicologia (principalmente piagetiana)
disciplinaridade2 — o primeiro tipo permaneceu permitiriam indicar um vazio ou uma ausência
largamente invisível aos olhos dos pesquisado- entre as estruturas objetivas do mundo social e as
res. Dessa forma, as mudanças de escala — de práticas dos indivíduos. O habitus, a mentalidade,
análise dos grupos, dos movimentos, das estru- a visão do mundo etc. poderiam então também
turas ou das instituições, às quais os indivídu- ser tão grupais quanto individuais. Isso não co-
os singulares que, sempre ao mesmo tempo, loca nenhum problema particular, pois não se
“vivem em” e “são constitutivos de” esses presta uma atenção específica a essa questão e a
macro-objetos — não foi tão brutal ao ponto de teoria não se propõe verdadeiramente a estudar
forçar a vista dos pesquisadores, de lhes pro-
vocar algumas dores de cabeça e, concomi- 2. LAHIRE, B. Certitudes et incertitudes des sociologues In: HARDY, M. (et
tantemente, de lhes fazer tomar consciência. O al.) L’École et les changements sociaux, Montréal, Éd. Logiques, 1998.
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“diferenças sociais” significa tacitamente que se sos, instituições, grupos, situações etc.); ele é o
fala de diferenças entre classes sociais, catego- fruto (e o portador) de todas as experiências (nem
rias socioprofissionais ou socioculturais... Já se sempre compatíveis, nem sempre acumulativas e,
tem menos o reflexo de pensar nas diferenças, às vezes, altamente contraditórias) vividas nesses
socialmente construídas, entre os sexos ou en- múltiplos contextos.
tre as gerações (entre matrizes de socialização).
Entretanto, quase nunca surge espontaneamente A vida das disposições
a idéia de que a sociologia possa se interessar
pelas diferenças mentais e/ou comportamentais O desenvolvimento de uma sociologia
entre dois indivíduos singulares, oriundos do psicológica implica que a própria noção de
mesmo meio social ou da mesma família. No “disposição”, central para se pensar o passado
entanto, tais diferenças interindividuais são o incorporado na escala individual, seja examina-
produto mesmo das relações sociais, das expe- da. Ora, analisando minuciosamente a utilização
riências sociais (socializadoras). Do mesmo desse conceito feita nos trabalhos sociológicos,
modo, é muito raro entender o social por meio dá-se conta rapidamente do fato de ele não ter
do estudo de casos estatisticamente atípicos, recebido a devida importância (até o momen-
excepcionais6, ou do ponto de vista da varieda- to) como ferramenta de análise do mundo so-
de de diferentes situações sociais às quais um cial8. Assim, o sociólogo raramente aumenta o
mesmo indivíduo está permanentemente vincu- próprio conhecimento do mundo social nos
lado ao longo do mais cotidiano de sua vida7. usos rotineiros desse conceito. Por exemplo,
É importante destacar, então, que o social quando Pierre Bourdieu explica que não existe
não se reduz às relações sociais ou às diferen- práticas mais “classistas” que a freqüentação de
ças sociais entre grupos ou categorias (quaisquer um concerto ou a prática de um instrumento
que sejam os critérios utilizados para caracterizá- musical “nobre” pelo fato da “raridade das
los), caso não se queira ensejar a visão de que condições de aquisição das disposições corres-
diferenças mais sutis não seriam mais socialmen- pondentes”9, ele tomou como verdadeiro algo
te engendradas e que, por conseqüência, as sobre a função da distinção de certas práticas
estruturas cognitivas, emotivas, sensíveis, indivi- culturais, sobre sua raridade, mas não disse
duais... estariam fora da intelecção sociológica. nada sobre o que seriam as tais “disposições
Os indivíduos são aquilo que suas múltiplas correspondentes” a essas práticas. Da mesma
experiências sociais fazem deles. Assim, longe de forma, quando ele afirma que as obras literári-
ser a unidade mais elementar, o indivíduo é, sem as de Mallarmé ou de Zola carregam a marca
sombra de dúvida, a realidade social mais comple- das “disposições socialmente constituídas de
xa a ser apreendida. Compreende-se bem que a seus autores”10, o leitor interessado se mostra
sociologia não poderia começar pela análise des- inteiramente “disposto” a acreditar em sua in-
ses compostos complexos de experiências sociais terpretação, mas nenhuma análise das disposi-
heterogêneas, essas “misturas de estilos”, segundo ções desses autores, daquilo que se entende
a bela expressão de Mikhaïl Bakhtine, que consti-
tuem os atores individuais. No fundo, contraria- 6. LAHIRE, B. Tableaux de familles: heurs et malheurs scolaires em
millieux populaires, Paris, Gallimard/Seuil, 1995.
mente ao que as concepções elementaristas e 7. GOFFMAN, E. Les cadres de l’experiénce, Paris, Minuit, 1991;
atomistas possam nos fazer crer, é bem menos BOLTANSKI, L. & THÉVENOT, L. De la justification: les économies de la
complexo estudar os universos sociais, os campos, grandeur, Paris, Gallimard, 1991.
8. Por outro lado, quando dissociada a utilização das condições nas quais
os grupos sociais, as instituições ou as situações ela é iniciada-mobilizada, acaba-se por essencializá-la e reificá-la. Cf.
que os desdobramentos individuais do social. Cada LAHIRE, B. L’Homme pluriel, op. cit., p. 63-69.
9. BOURDIEU, P. La distinction: critique sociale du jugement, Paris, Minuit,
indivíduo atravessou no passado — e o faz perma- 1979, p. 17.
nentemente — múltiplos contextos sociais (univer- 10. Op. cit., n. 6, p. 19.
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modos de socialização que formaram esse ou ção "plena", mas uma teoria do conhecimento
aquele tipo de disposição social deveria ser e dos modos de socialização "vazia". O que é
parte integrante de uma Sociologia da Educa- precisamente a escola? Quais são os vínculos
ção concebida como uma sociologia dos mo- de interdependência especificamente "escola-
dos de socialização (escolares e extra-escolares) res"? O que se "transmite" escolarmente? Como
e articulada a uma sociologia do conhecimen- essa transmissão12 opera? As questões se colo-
to (no sentido mais amplo do termo "conheci- cam analogamente do lado da família e de toda
mento"). Aliás, esse é um ponto da sociologia instituição cultural13?
geral inscrito na reflexão weberiana: Uma parte das investigações da Sociolo-
gia da Educação e da cultura progressivamente
Na medida em que a ação social é 'carrega- induz ao estabelecimento de diferenças entre as
da' pelos homens ("por trás da 'ação' há o modalidades da "interiorização do social" ou,
homem"), Weber sempre considerou que a mais exatamente, da interiorização ou incorpo-
análise social deveria integrar precisamente ração dos hábitos, dos modos de fazer, de ver,
a questão 'do homem', aquilo que ele cha- de sentir. Percebe-se, então, principalmente pe-
ma de 'ponto de vista antropocêntrico', ao las maneiras de falar de suas práticas culturais,
se colocar a questão do 'tipo de homem' que os entrevistados não incorporaram o con-
que as relações sociais são capazes de, em junto de seus hábitos do mesmo modo. As pes-
sua duração, moldar 11. quisas empíricas deveriam, por conseqüência,
permitir precisar as diferentes maneiras pelas
Formas de interiorização e de quais os hábitos incorporados e suas atualiza-
exteriorização ções são vividas.
Dessa forma, nem tudo se explica sobre
O programa científico de uma sociologia o modo da "necessidade feita virtude", isto é,
psicológica viria preencher o vazio deixado por pelo amor ao necessário, do prazer experimen-
todas as teorias da socialização ou da tado ao se praticar, consumir... aquilo do que
inculcação (como a teoria do habitus ou a te- não se pode escapar. Essa relação encantada
oria da "construção social da realidade", por com o mundo impede que se encare o fato de
exemplo) que se referem retoricamente à "inte- que as coisas poderiam se passar de outra for-
riorização da exterioridade" ou à "incorporação ma, que uma outra escolha poderia ser feita.
das estruturas objetivas" sem jamais verdadei- Uma vez que a coerção cultural inicial esteja
ramente lhes "materializar" pela descrição fortemente interiorizada, a escolha se impõe por
etnográfica (ou historiográfica) e pela análise si mesma, aparecendo como natural e eviden-
teórica. Por muito tempo, preocupados princi- te. O modelo da "necessidade feita virtude" é
palmente com a questão da reprodução social aquele da coerção objetiva exterior transforma-
pela família, pela escola e as diferentes institui- da em motor interior, em gosto (ou em paixão)
ções culturais e sociais, os sociólogos se satis- pessoal, em necessidade vital. Por exemplo,
faziam por constatar uma desigualdade face às algumas crianças de meios populares parecem
instituições legítimas (escolas e outras institui-
11. GROSSEIN, J-P., Présentation In: WEBER, M. Sociologie des religions,
ções culturais) e/ou de uma herança cultural e Paris, Gallimard, 1996, p. 61. O autor precisa que “o grau de unidade e de
social intergeracional (família). Em síntese, homogeneidade internas de uma conduta de vida não é pressuposta por
pode-se dizer que devido à reiterada insistên- Weber; só podendo ser estabelecido pela análise empírica”.
12. A própria noção de “transmissão” deve ser revista, caso se queira
cia sobre o "isso se reproduziu", acabou-se por progredir no sentido de uma sociologia psicológica dos fenômenos de co-
negligenciar o "o que se reproduziu" e o nhecimento. Cf. LAHIRE, B. L’Homme Pluriel, op. cit., 1998, p. 206-210.
13. Para uma análise das modalidades da socialização escolar na esco-
"como, segundo quais modalidades, isso se re- la primária, ver LAHIRE, B. Culture écrite et inégalités scolaires: sociologie
produziu". Resultado: uma teoria da reprodu- de l’”échec scolaire” à l’école primaire, Lyon, PUL, 1993.
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adquiridas essas disposições ou esses hábitos17, comportamentos e de pensamento são, por
do momento da biografia individual no qual exemplo, mais vividos pelas crianças e pelos
eles foram adquiridos e, enfim, do "contexto" adolescentes sobre o modo da coerção, é por-
atual de sua (eventual) atualização. Assim, os que a escola — qual seja seu grau de integração
hábitos que foram interiorizados precocemente, familiar — permanece sendo freqüentemente um
nas condições favoráveis a sua boa interiorização universo relativamente "estrangeiro" e coerciti-
(sem fenômeno de injunção contraditória, sem vo, sobretudo quando exige um grau máximo
ruído na "transmissão cultural" pelas dissonâncias de ascese, como nos períodos de preparação
culturais entre os pais ou entre aquilo que dizem para provas e concursos. Se as crianças estavam
os adultos e aquilo que fazem, entre o que dizem submetidas ao duro regime da ascese escolar
e a maneira como falam...) e que acham condi- intensiva desde a escola primária, talvez a
ções positivas (gratificantes socialmente) de pôr ascese do liceu, seguida de uma parte do En-
em prática, podem dar lugar àquilo que chama- sino Superior, seria vivida como normal, o que
mos paixão, vontade ou desejo. só é muito evidente em casos excepcionais.
Poder-se-ia passar ao largo de certas
nuances importantes do ponto de vista do grau Transferência e estado de
de interiorização-instalação de hábitos, das con- espera (stand by)
dições nas quais eles o foram, das modalidades de
sua aquisição e das condições nas quais são Uma parte da sociologia toma também por
postos a "funcionar", considerando-se, da maneira moeda corrente, explícita ou implicitamente nos
mais rigidamente durkheimiana, que formulados modos de interpretar os dados da investigação, a
na ilusória linguagem do amor, da rotina ou da idéia de “transferabilidade” ou de “possibilidade
coerção, os comportamentos individuais não são, de transposição” e do caráter “generalizável” dos
em todos os casos, mais que a exteriorização do esquemas ou das disposições socialmente cons-
produto da interiorização das coerções sociais. Ao tituídas. A noção de “transferabilidade”, todavia,
colocar, então, ao lado do senso comum e da aumentou a imaginação sociológica ou, dito de
ideologia, todo o discurso sobre a escolha, o outra forma, ela tornou possível investigações em
desejo, a paixão, a espontaneidade, não se deu ciências sociais que, sem ela, seriam impensáveis?
conta da negligência dos detalhes das condi- Nada é menos certo. Para verificar que houve uma
ções, modalidades e efeitos da socialização. boa transferência, seria necessário estudar deta-
Por que, salvo exceção, a interiorização lhadamente um modo de socialização e ver os
de modelos de comportamentos sexuais é vivida efeitos precisos de sua difusão. Por exemplo, a
de maneira diversa do modo de interiorização socialização escolar produz efeitos de socializa-
de uma obrigação, da coerção? No entanto, ção julgados, geralmente — entre os sociólogos
não há nada mais coercitivo e arbitrário (cultu- da Educação —, como duráveis e transferíveis.
ral, historicamente...) que os modelos sexuais, Entretanto, o que se transfere da situação esco-
com o mundo social constituindo uma espécie lar a outras situações extra-escolares? Um senti-
de instituição total que socializa de maneira do da legitimidade dos produtos culturais (por
permanente os indivíduos a tais diferenças. O exemplo, um sentido da “pequena” e da “grande”
mundo social é continuamente supersaturado literatura)? Uma concepção geral do conheci-
de diferenças sexuais. No entanto, é justamente mento, uma relação com o saber? Um número
porque essas diferenças são, às vezes, precoces maior de gestos de estudo ou de hábitos intelec-
e onipresentes que as coerções são raramente tuais? Um sentimento pessoal da importância (da
percebidas como tais ou, em todo caso, com própria auto-estima) que essa instituição legítima
bem menos força que outros tipos de coerções pode conferir a todos aqueles que se conforma-
sociais. Se os hábitos e os modelos escolares de rem a ela? Difícil dizer que tais processos de trans-
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de sua leitura do texto de Alex de Tocqueville, A blica, por exemplo), ele os deixa se exprimir em
democracia na América, nos parecem característi- uma outra esfera (como a vida privada). Enfim,
cos de uma interpretação do mundo social que, o efeito de soma zero não pode ser compreen-
sem o saber, desafia o problema da pluralidade de dido sobre o mesmo registro. Ele se ancora,
esferas de atividade atravessadas por cada indiví- sobretudo, na constatação antropológica que o
duo, ele mesmo portador de uma pluralidade de volume de tempo do qual nós dispomos é uma
disposições. Elster escreveu: “Os hábitos e os de- quantidade finita. O tempo dispensado em um
sejos podem se reforçar, se compensar e se limitar domínio é um tempo que não será investido
uns aos outros, por três mecanismos que chama- em outros: assim, se nossas disposições sociais
rei o efeito de transbordamento, o efeito de com- nos induzem a investir com ardor no universo
pensação e o efeito de soma zero”21. O efeito de profissional; no universo doméstico, seremos
transbordamento é um efeito de transferência: "Os mais relaxados. A pluralidade dos mundos ou
hábitos adquiridos em uma esfera são transferidos dos âmbitos sociais é assim também um proble-
para outra". O efeito de compensação supõe da ma para cada indivíduo que deve dividir seu
parte do indivíduo que "aquilo que ele não acha tempo entre esses diferentes universos.
em uma esfera, ele procura em alguma outra". Como o indivíduo vive a pluralidade do
Enfim, o efeito de soma zero está ligado à impos- mundo social assim como sua própria pluralidade
sibilidade de se ter uma infinidade de investimen- interna? O que produz essa pluralidade (externa e
tos sociais, o investimento em uma esfera de ati- interna) sobre a economia psíquica e mental dos
vidade que explique a ausência ou a diminuição na indivíduos que a vivem? Em quais disposições o
mesma medida que os outros. indivíduo investiu nos diferentes universos (no
Poder-se-ia julgar tão duramente essa sentido mais comum do termo) que foi levado a
aparente obsolescência teórica que pode identi- atravessar? Como distribui sua energia e seu tem-
camente "fazer referência à presença do fenô- po entre os mesmos universos? Eis aqui uma sé-
meno mental A na esfera X para explicar por- rie de questões que uma sociologia psicológica, em
que A está também presente na esfera Y: é o escala do indivíduo, necessariamente se coloca.
efeito de transbordamento", quanto "fazer
menção à ausência de A em X para explicar sua O singular plural
presença em Y: é o efeito de compensação" ou,
ainda, "fazer referência a sua presença em X Por um simples efeito de escala, a compre-
para explicar porque está ausente em Y: é o ensão do singular enquanto tal, ou seja, do indi-
efeito de soma zero" 22. Entretanto, então se víduo como produto complexo de diversos pro-
passaria ao largo de certas características do cessos de socialização, força a ver a pluralidade
funcionamento do mundo social em uma soci- interna do indivíduo: o singular é necessariamen-
edade diferenciada. Dessa forma, o efeito de te plural. A coerência e homogeneidade das dis-
transferências se explica pela analogia das situ- posições individuais pensadas pelas sociologias
ações passadas com as presentes: quando em escala de grupos ou das instituições é subs-
construíram uma parte de suas disposições em tituída por uma visão mais complexa do indivíduo
algumas situações, os indivíduos as colocaram
21. ELSTER, J. Psychologie politique, Paris, Minuit, 1990, p. 181.
em funcionamento em situações análogas. O 22. Op. cit., p. 185.
efeito de compensação não pode ser compre- 23. O estudo de caso de “trânsfugas de classe” é essencial afim: 1) de
endido a não ser admitindo-se que o indivíduo compreender como um indivíduo pode incorporar disposições contraditórias,
como ele vive com essa contradição (sufocando ou deixando em espera suas
é portador de disposições heterogêneas (e antigas disposições?, cindindo-separando muito sensivelmente os universos
mesmo contraditórias): forçado a colocar em nos quais ele colocará em funcionamento essas ou aquelas disposições?,
sofrendo a cada instante da contradição entravante das disposições?); e 2) de
stand by, a inibir uma parte de suas disposições avaliar em que medida a pluralidade relativa das disposições portadas pelos
sociais em uma esfera de atividade (a vida pú- indivíduos redunda ou não em conflitos psíquicos ou em cãibras identitárias.
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diferenças que às permanências — de múltiplas singularidade, de autonomia, de interioridade, de
pequenas contradições, de heterogeneidades identidade de si a si25.
comportamentais não percebidas pelas investiga- Um canteiro de pesquisa poderia ser
ções que geralmente tentam, pelo contrário, também utilmente constituído no sentido de
manter a ilusão da coerência e da unidade do uma história e/ou de uma sociologia das for-
“próprio eu”. mas de unificação discursiva (principalmente
É preciso não somente comparar as prá- narrativa) do “eu”. A ilusão de um eu unifica-
ticas dos mesmos indivíduos em universos so- do, homogêneo, coerente, não carece de fun-
ciais (mundos sociais que podem, em certos damento social. Poder-se-ia mesmo dizer que a
casos, mas não sistematicamente, se organizar celebração da unidade de si é uma empresa
sob a forma de campos de lutas), tais como o permanente em nossas sociedades. A começar
mundo do trabalho, a família, a escola, a vizi- pelo “nome próprio” associado ao “prenome”,
nhança, a igreja, o partido político, o mundo simbolizado na assinatura manuscrita, que con-
do lazer, as instituições culturais etc., mas tam- sagram a inteira singularidade da “pessoa” e
bém diferenciar as situações no interior desses que nos acompanham durante toda nossa vida,
diferentes grandes domínios — nem sempre e terminando por todas as formas discursivas
também perceptivelmente separados na realida- de apresentação de si, de sua história, de sua
de social —, considerando as diferenças intra- vida (curriculum vitae, elogios fúnebres, notíci-
... (familiares, profissionais...). as necrológicas, apologias, biografias e autobi-
ografias, narrativas de vida, bildungsroman ,
A produção do indivíduo reconstituição da vida do acusado perante um
tribunal...). Em numerosos desses gêneros
Um programa que se interesse pelo mun- discursivos, o postulado da unidade do sujei-
do social na escala do indivíduo, pelo social in- to é forte. O “eu” que se exprime ou o “ele” que
dividualizado, não pode fazer a economia do é narrado garantem uma série de perenidades
estudo das condições sociais (e discursivas) da e de permanências de uma unidade pessoal
produção do indivíduo moral e ideológico como coerente e uniforme.
um ser isolado, coerente, autônomo, singular, Enfim, um diálogo renovado é assim
fundamentalmente fechado sobre si mesmo antes possível com a história a propósito da prática
de todo contato com outros, que disponha de da biografia histórica26. Como modificar o gê-
uma interioridade ou de um “eu autêntico”. Se a nero biográfico que privilegia, tanto quanto o
sociologia psicológica se interessa pelo sujeito gênero discursivo, a coerência de uma trajetó-
empírico (no sentido de Louis Dumont) e pelas ria, de uma vida, de uma caminhada..., à custa
lógicas sociais apreendidas na escala desse sujeito de todas as incertezas, as incoerências, ou
empírico (que não tem nenhuma espécie de se- mesmo as contradições pelas quais são molda-
melhança com o indivíduo dessocializado do
individualismo metodológico), ela não pode dei- 24. Cf. DUMONT, L. Essais sur l’individualisme: une perspective
anthropologique sur l’idéologie moderne, Paris, Seuil, 1983 ou TAYLOR, C.
xar de se interessar pela produção da imagem Les sources du moi: la formation de l’identitémoderne, Pari, Seuil, 1998.
(moral, ideológica...) do eu individual. 25. Cf. ELIAS, N. La societé des individus, Paris, Fayard, 1991, p. 64-
67. Nós trabalhamos, por nosso turno, a maneira pela qual a escola ele-
Essa produção do indivíduo como indivíduo mentar contribui para formar o aluno autônomo, entendendo a autonomia
singular, autônomo, é freqüentemente entendida como uma forma de dependência histórica específica e a escola como o
pelo conteúdo dos discursos (ideológicos, filosó- lugar onde se opera a aprendizagem progressiva dessa nova relação com
o poder e com o saber.
ficos...)24, mas não se pode negligenciar o estudo 26. Retoma-se assim a vontade exprimida por Giovanni Lévi quando instou
das instituições, dos dispositivos sociais ou das a reconsiderar-se a “tradição biográfica estabelecida”, assim como a “própria
retórica” da história, que repousa sobre “modelos que associam uma crono-
configurações de relações de interdependência que logia ordenada, uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e
contribuem na produção desse sentimento de decisões sem dúvidas” (Les usages de la biographie, op. cit., p. 1326).
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singular, costuma-se opor o conhecimento das ten- ções (mais ou menos fortemente constituídas) re-
dências gerais, das recorrências do mundo social lativamente contraditórias, eles são mais numero-
estatisticamente apreendidas. Entretanto, “singular” sos estatisticamente que seus companheiros
não significa “não sujeito à repetição” ou “único”. “exemplares” (do ponto de vista da referida opo-
Ao constituir o singular como o inverso do geral, sição teórica). E mesmo os estudantes mais típicos
atualiza-se uma velha oposição entre ciências dos pólos opostos poderiam ser trabalhados pelos
nomotéticas e ciências idiográficas, método desejos contraditórios, ao menos simbolicamente.
generalizante e método individualizante28 que não Da mesma forma, quando o sociólogo
recuperou a pertinência. da Educação tenta compreender os processos
Paradoxalmente, o estudo de caso, em de “fracasso” e de “sucesso” escolares a partir
sua singularidade — e não a título de caso da oposição conceitual entre dois tipos de
ilustrativo por relação às figuras idealtípicas ou códigos sociolingüísticos (restrito e elabora-
às tendências ou propriedades gerais estatistica- do)31, duas arbitrariedades culturais (o arbitrá-
mente associadas mais freqüentemente a um rio cultural dominante e o dominado)32, dois
grupo —, pode restituir às situações estatistica- tipos de relações com a linguagem (relação
mente mais freqüentes muito mais do que se escrita-escolar com a linguagem e relação oral-
acredita. Desse modo, os pesquisadores em Ci- prática com a linguagem) 33, ele geralmente
ências Sociais trabalham quase sempre utilizan- concentra sua análise sobre os pólos de opo-
do dicotomias que lhes permitem ver como se sição, esquecendo-se das situações mistas e
distribuem os diferentes grupos ou categorias de ambivalentes dos alunos “medianos” cujas dis-
indivíduos entre os dois pólos opostos. Por posições escolares não são inexistentes, mas
exemplo, a Sociologia da Educação pode opor os fracas ou, em todo caso, não fortes o suficiente
estudantes conforme suas tendências ascéticas para se impor sistematicamente face às dispo-
ou hedonistas. Poder-se-á, assim, obter duas sições não escolares. Não é um mero acaso
figuras idealtípicas do espírito dos estudantes, a epistemológico o fato de os sociólogos da
saber: de um lado, o estudante asceta, inteira- Educação estarem essencialmente voltados a
mente voltado ao trabalho escolar, que sacrifica dar explicações aos casos de “sucessos” e aos
tudo (sociabilidade amical, sentimental e familiar, casos de “fracassos” escolares, negligenciando
lazer e viagens...) para se dedicar aos estudos e, totalmente o caso desses alunos “medianos”.
de outro, o estudante boêmio, amante de festas, No entanto, mesmo no caso das crianças com
de lazeres, de amizades, de amores e que traba- grande dificuldade escolar, elas não saem ja-
lha de maneira forçosamente descontínua, oca- mais intactas da escola e desenvolvem também
sional29. No entanto, ao se procurar na realida- comportamentos escolares ambivalentes34.
de os estudantes que correspondem melhor a Não se pode então criticar o programa da
esses dois pólos, arrisca-se a não se ter — esta- sociologia psicológica por se limitar ao estudo —
tisticamente — mais que um punhado de candi- interessante, mas secundário e mesmo marginal —
datos. A grande maioria deles estaria entre os dois, das exceções estatísticas, muito pelo contrário.
em situações “medianas” que são, de fato, as situ- Paradoxalmente, vários pesquisadores, ao comen-
ações mistas, ambivalentes: eles não são nem
28. FREUND, J. Sociologie de Max Weber, Paris, PUF, 1983, p. 32-36.
máquinas de trabalho nem arroz-de-festa, mas 29. Cf BOURDIEU, P. & PASSERON, J-C. Les héritiers, les étudiants et
alternam, de acordo com os contextos e, sobretu- la culture, Paris, Minuit, 1964 et LAHIRE, B. Les manières d’étudier, Paris,
do, seus entornos (e suas pressões) no momento, La Documentation française, 1997.
30. LAHIRE, B. L’homme pluriel, op. cit., 1998, p. 76-79.
épocas de dedicação ao trabalho e momentos de 31. BERNSTEIN, B. Langage et classes sociales, Paris, Minuit, 1975.
relaxamento, sofrendo alternativamente da dor de 32. BOURDIEU, P. & PASSERON, J-C. LA reproduction: éléments pour
une théorie du système d’enseignement, Paris, Minuit, 1970.
sua adoção do ascetismo e da dor-de-consciência 33. LAHIRE, B. Culture écrite et inégalités scolaires, op. cit.
do estudante hedonista30. Portadores de disposi- 34. Op. cit.
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ao coletivo ou ao geral, mas que avança nas (sócio)lógico que se vê os indivíduos resistirem
marcas mais singulares de cada indivíduo. fortemente à idéia de um determinismo social.
Desse ponto de vista, a sociologia deve- É por ter grandes chances de ser plural e por
ria se focar em produzir uma visão do homem se exercerem, sobre ele, “forças” diferentes
em sociedade de modo mais científico que as conforme as situações sociais nas quais ele se
(necessárias) caricaturas feitas quando se ima- encontra que o indivíduo pode ter o sentimento
gina o indivíduo a partir de figuras idealtípicas de uma liberdade de comportamento.
retiradas dos trabalhos sobre grupos sociais, Essa idéia complexa e sutil do determinismo
épocas históricas ou instituições. Ela deveria, social sobre os comportamentos individuais foi, de
sobretudo, ser capaz de responder às questões uma certa maneira, já apropriada por parte da li-
comuns, profanas mais essenciais, quanto à teratura, principalmente por Marcel Proust. Já
vida dos indivíduos em sociedade. Por exemplo, quase-teoricizando sobre a pluralidade do “eu” em
como compreender que um indivíduo possa sur- cada indivíduo37, em seu Contre Sainte-Beuve, o
preender seu entorno próximo (onde há, portan- romancista desenvolveu uma escrita literária que
to, pessoas que chegam ao ponto de elaborar não somente colocou em cena essa pluralidade de
um conhecimento intuitivo-prático desse indiví- heranças e de identidades individuais, mas deu um
duo) e mesmo surpreender-se a si mesmo pelo exemplo de uma “sociologia individual” sutilmen-
fato de ter sido capaz de fazer isso ou aquilo, te determinista38.
em tal circunstância ou em tal momento de sua Enfim, é 1) porque cada um de nós pode
biografia? Qual concepção do determinismo ser portador de uma multiplicidade de disposi-
social deve-se ter para descobrir a razão dessa ções que não se acham sempre os contextos de
indeterminação relativa do comportamento indi- sua atualização; 2) porque nós podemos ser
vidual que faz o charme da vida social? desprovidos de boas disposições que permitam
É, dessa forma, impossível prever a apa- fazer face a algumas situações mais ou menos
rição de um comportamento social como se inevitáveis em nosso mundo social multidife-
prediz a queda dos corpos a partir da lei uni- renciado; e 3) porque a multiplicidade dos in-
versal da gravidade. Essa situação é o produto vestimentos sociais (familiares, profissionais,
da combinação de dois elementos: de um lado, amicais...) objetivamente possíveis podem se
a impossibilidade de reduzir um contexto social tornar, no final das contas, incompatíveis, que
a uma série limitada de parâmetros pertinentes nós podemos viver inquietos, em crises ou em
como no caso das experiências físicas ou quí- conflitos pessoais com o mundo social. Primei-
micas e, por outro lado, a pluralidade interna ramente, sentimentos de solidão, incompre-
dos indivíduos cujo patrimônio de hábitos (de ensão, frustração, mal-estar podem ser frutos
esquemas ou de disposições) é mais ou menos dessa (inevitável) distância entre o que o mun-
heterogênea, composto de elementos mais ou do social nos permite “exprimir” objetivamen-
menos contraditórios. Dificilmente se consegui- te em um determinado momento do tempo e o
ria predizer com certeza o que, em um contexto que foi posto em nós ao longo de nossa soci-
específico, vai “jogar” (“pesar”) sobre cada in- alização passada. Porque somos portadores de
divíduo e o que, dos múltiplos hábitos incor- disposições, capacidades, saberes e habilidades
porados por ele, será deslanchado em/por tal que talvez vivam em permanente estado de es-
contexto. A constatação sociológica que somos pera por razões sociais objetivas, nós podemos
obrigados a tirar de nosso conhecimento atual então sentir um mal-estar que se traduz geral-
do mundo social é que o indivíduo é tão mente por ilusão de que nosso “eu autêntico”
multissocializado e tão multideterminado que
37. LAHIRE, B. L’homme pluriel, op. cit., p. 43-46.
se torna difícil crer que possa ter consciência 38. DUBOIS, J. Pour Albertine: Proust et le sens du social, Paris, Seuil,
de seus determinismos. É desse ponto de vista 1997, p. 130.
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