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Revista Brasileira de Ensino de Fı́sica, v. 26, n. 2, p.

185 - 192, (2004)


www.sbfisica.org.br

História da Fı́sica e Ciências Afins

Amoroso Costa e o primeiro livro brasileiro sobre a Relatividade Geral


(Amoroso Costa and the first brazilian book on General Relativity)

Jean Eisenstaedt1 e Júlio C. Fabris2


Syrte, Observatoire de Paris
1

Departamento de Fı́sica, Universidade Federal do Espı́rito Santo


2

Recebido em 14/03/01; Revisado em 17/09/02; Aceito em 24/03/04

Em 1922, o fı́sico-matemático brasileiro Amoroso Costa publicou um livro de introdução à Teoria da Relatividade. Este
livro, um dos primeiros textos sobre o assunto no mundo, surpreende ainda hoje pela sua limpidez, precisão e concisão.
Fazemos uma análise do texto de Amoroso Costa, situando-o no contexto cientı́fico mundial e brasileiro.
Palavras-chave: Relatividade Geral, História da Fı́sica.

In 1922, the Brazilian physicist and mathematician Amoroso Costa published an introduction to the Theory of Relativity.
This book, one of the first on the subject in the world, is until now an impressive example of precision, clarity and concision
in the treatement of this difficult subject. We present an analysis and evaluation of the text of Amoroso Costa in the scientific
context of that period.
Keywords: General Relativity, History of Physics.

1. Introdução cido durante muito tempo, objeto de uma reedição pela editora da
UFRJ em 1995, mas ainda pouco difundido no meio acadêmico, a
Quando de seu retorno ao Brasil, em 1928, Santos Dumont deveria “Introdução à Teoria da Relatividade” escrita por Amoroso Costa é
receber uma homenagem especial: no momento em que seu navio uma obra excepcional, mesmo considerando os grandes livros es-
entrasse na baı́a da Guanabara, um avião descreveria cı́rculos em critos na mesma época, como os de Weyl e de Eddington, muito
torno do transatlântico que o transportava. No avião estavam três embora deva-se ressaltar a grande contribuição destes autores à
professores e um estudante, todos da Escola Politécnica do Rio de construção da teoria da Relatividade Geral. Sua leitura revela, so-
Janeiro, que era a mais prestigiosa instituição de ensino voltada bretudo, a necessidade de restituir à “Introdução à Teoria Relativi-
para as ciências exatas no Brasil na época. Mas, a homenagem re- dade” de Amoroso Costa o lugar que lhe é de direito. O presente
sultou em uma catástrofe: o avião caiu no mar, e todos os seus ocu- texto pretende re-analisar este livro, tendo como pano de fundo a
pantes morreram. Entre estes professores, encontrava-se Amoroso história da Relatividade Geral, particularmente no perı́odo em que
Costa, que aos 43 anos de idade era uma das maiores eminências viveu Amoroso Costa. Isto nos permitirá avaliar a contribuição que
cientı́ficas brasileiras da época. Os professores Tobias Moscoso, ele deixou.
Ferdinando Labouriau Filho e um estudante, Frederico de Oliveira
Coutinho, estavam também ao seu lado.
Com a morte de Amoroso Costa (1885-1828), interrompeu-
se uma das mais promissoras carreiras cientı́ficas brasileiras do 2. A situação da Relatividade
inı́cio do século. Matemático, astrônomo, conhecedor das prin-
cipais novidades cientı́ficas da época, dedicado à divulgação das 2.1. As relatividades Restrita e Geral no
novas idéias cientı́ficas junto ao grande público, ele fora o au- mundo, 1905-1930
tor, alguns anos antes, de um livro de introdução à teoria da rela-
tividade, que ainda hoje surpreende pela sua clareza e justeza. E Mas, antes de nos interessarmos no Brasil e em Amoroso Costa,
isto em uma época em que a teoria de Einstein era compreen- vamos dizer algumas palavras sobre a relatividade no mundo. A
dida por pouquı́ssimos especialistas, embora objeto de uma grande relatividade, Restrita e Geral, teorias bem mal denominadas e
divulgação na mı́dia. freqüentemente mais ainda mal compreendidas.
O livro de Amoroso Costa permaneceu um dos poucos livros A relatividade Restrita é uma cinemática, quer dizer que ela
brasileiros sobre o assunto antes do renascimento da teoria. Esque- se interessa pela descrição do movimento, pelas relações entre
1 Enviar correspondência para Jean Eisenstaedt. E-mail: fabris@cce.ufes.br.

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o espaço e o tempo. A relatividade Restrita toma o lugar da Newton. Tão logo Einstein obtém as equações fundamentais da
cinemática clássica ou, para falar de forma mais simples, da lei, relatividade Geral, ele mostra que estas novas equações permitem
que se diz geralmente “de Galileu”, de adição das velocidades. Ela explicar o único fato que a teoria (quase perfeita) de Newton tinha
surge após as experiências de Michelson e Morley que, no final do deixado de lado: uma anomalia no movimento de Mercúrio.
século XIX, punham em questão as leis clássicas de adição das ve- De fato, como então já tinha sido observado há mais de meio-
locidades, particularmente quando está em jogo a luz: velocidades século antes, o periélio de Mercúrio, o ponto de sua órbita mais
muito grandes não podem mais simplesmente serem somadas. As- próximo do Sol, acusa um avanço de menos de um minuto de arco
sim, a relatividade Restrita não é nada mais que a maneira de tratar por século, uma anomalia que nenhum cálculo, nenhuma hipótese,
o tempo e o espaço. conseguira explicar satisfatoriamente. Assim, no final de 1915,
A relatividade Restrita toma forma definitiva em 1905, após Einstein dispõe de uma teoria da gravitação que é coerente com
longos anos de dificuldades diversas; dificuldades que em parti- a nova cinemática, e que explica todos os fatos astronômicos, in-
cular Lorentz tentava resolver graças a hipóteses ad-hoc. Einstein cluindo, e em primeiro lugar, todos aqueles que eram bem com-
foi, a este respeito, o melhor artesão, insistindo em um caminho preendidos utilizando-se a teoria newtoniana, mas também os que
profı́cuo. É que em fı́sica, a cinemática, a ciência da descrição eram rebeldes a esta teoria. Além da explicação que fornece ao
do movimento, é o pré-requisito fundamental para todo o resto: avanço do periélio de Mercúrio, a teoria de Einstein prevê dois
sem cinemática, não se pode fazer nada, não se pode ir além. Ela fenômenos novos: o desvio dos raios luminosos em um campo
é a base de toda a fı́sica. Assim a relatividade Restrita torna-se, gravitacional e o deslocamento das raias de emissão de um átomo
ou mais precisamente deveria se tornar, de um dia a outro, “a também em um campo gravitacional.
cinemática moderna” que, se não toda fı́sica, pelo menos a fı́sica Em maio de 1919, uma dupla expedição inglesa organizada por
dos movimentos rápidos deve, a partir daquele momento, empre- Stanley Eddington e Frank Dyson consegue verificar o efeito do
gar. Por outro lado, não há necessidade de “relativisar” o eletro- desvio dos raios luminosos na proximidade do Sol. Os melhores
magnetismo pois ele já obedece à relatividade Restrita. O que resultados vêm das observações então realizadas no Brasil pelos
mostra até que ponto essas novas idéias são necessárias, já que elas astrônomos ingleses A. Crommelin e Charles Davidson. Desde
se encontram incluı́das no eletromagnetismo de Maxwell. 1912, quando da expedição astronômica de Passa Quatro, à qual
Mas, como se comporta, a este respeito, a “primeira das teo- Eddington participa, e na qual ele encontra Henrique Morize, dire-
rias fı́sicas”, a teoria da gravitação universal de Newton? Ela tor do observatório do Rio de Janeiro, a questão estava sob estudos.
não obedece à relatividade Restrita e ela não é invariante pelas Tais observações, muito delicadas, devem ser preparadas muito
transformações que esta impõe, as transformações de Lorentz; ela cuidadosamente. Os brasileiros, e particularmente Morize, farão
permanece fiel às antigas transformações, clássicas, de adição de de tudo para que a expedição inglesa a Sobral, Ceará, transcorra
velocidades de Galileu. Apesar desta contradição teórica, para nas melhores condições possı́veis. Aliás, inaugurou-se no local da
muitos pesquisadores isto tem pouca importância pois a teoria de expedição um museu consagrado a este acontecimento.
Newton “funciona” muito bem. Naquele momento em que a rela- Até então, a relatividade Geral não tinha suscitado interesse
tividade Restrita surge, pode-se dizer que a gravitação de Newton no público, nem nos fı́sicos. A verificação do efeito de desvio
explicava tudo, ou quase tudo, a que ela se aplicava, em todo o seu dos raios luminosos em um campo gravitacional teve um efeito
campo de ação e, em primeiro lugar, a astronomia, em particular a espetacular. De um dia para outro, a imprensa se interessa pelo
mecânica celeste. assunto, pela relatividade Geral, e Einstein torna-se um homem
Mas, insiste Einstein, não é possı́vel que se tenha uma público e o mais conhecido dos fı́sicos. Em quase todos os paı́ses,
cinemática para a teoria de Newton, a de Galileu, e outra para a teo- no inicio dos anos vinte, numerosos artigos de divulgação serão
ria de Maxwell, a de Lorentz-Einstein! A natureza é conseqüente e publicados e vários livros sairão das editoras. É um perı́odo muito
seria absurdo (tanto para Einstein, como para qualquer um de nós) dinâmico para a relatividade Geral: vários artigos técnicos são pu-
que seja assim. Então, visto que tudo vai bem, pelo menos por en- blicados. Mas, esta situação não vai durar muito tempo: após 1923,
quanto, por que construir uma teoria relativista da gravitação? Sem a queda da produção cientı́fica sobre a relatividade Geral é enorme,
dúvida porque isto é necessário, mas também porque isto apaixona assim como a de livros consagrados a esta teoria. Esta situação se
o nosso herói: há qualquer coisa para fazer, qualquer coisa de diver- agravará posteriormente e, ao passo que o interesse pela mecânica
tida, e então por que deixá-la para os outros? Ele inicia esta tarefa quântica cresce, a relatividade Geral sofrerá, até o fim dos anos
em 1907. Solitariamente, é preciso dizê-lo, mas sem esmorecer em cinqüenta, uma verdadeira travessia do deserto.
seus esforços: com exceção de um parêntese de dois ou três anos, Uma das causas deste declı́nio de interesse reside no fato que
Einstein dispenderá oito anos nesta tarefa. os efeitos que esta teoria pode prever e explicar são muito pe-
Não é aqui o lugar de descrever as grandes dificuldades que quenos. A relatividade Geral está adiantada em relação ao seu
enfrentou: digamos apenas que, apesar dele pensar então que a tempo, sendo que a teoria newtoniana responde, quase que perfeita-
natureza é simples e que deveria bastar uma matemática relativa- mente, às questões ditadas pelas observações. Mas este declı́nio
mente rudimentar para alcançar o seu objetivo, ele finalmente uti- ocorre também pelo fato de que a gravitação é uma interação muito
lizará instrumentos matemáticos bastante sofisticados e recentes, fraca e de longo alcance. Isto explica porque se torna necessário
visto que muito dos resultados por ele utilizados datam do inı́cio esperar muito tempo antes que se possa identificar efeitos relativis-
do século. Enfim, a relatividade, logo denominada de “Geral” para tas. Após 1915, e até os anos 60, nenhum efeito novo, que poderia
distinguir da primeira, a “Restrita” que ela emprega e subentende, reforçar a posição da teoria de Einstein, será exibido. Isto explica o
torna-se a nova teoria da gravitação que toma o lugar da teoria de pequeno interesse acordado a esta disciplina pelos fı́sicos. Aliás, a
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dificuldade surge também do instrumental matemático que a teoria 2.3. A formação de Amoroso Costa
exige. Poucos fı́sicos teóricos se interessarão por uma teoria onde
os investimentos intelectuais são pesados e a rentabilidade é fraca. A formação de Amoroso Costa deve-se muito a seu mestre,
A situação da relatividade Restrita é muito diferente. Ela será Otto de Alencar Silva, professor de mecânica racional na Escola
muito rapidamente, e cada vez melhor, verificada e fará rapida- Politécnica do Rio de Janeiro. A ciência brasileira era então bas-
mente parte dos instrumentais essenciais da Fı́sica Moderna, em tante influenciada pela ideologia positivista de Augusto Comte. A
particular da fı́sica de partı́culas. O espaço a quatro dimensões de este respeito, disse muito apropriadamente Antônio Ferreira Paim:
Minkowski se tornará logo a base sobre a qual as novas teorias de-
“a ascensão do positivismo corresponde ao fenômeno mais sig-
verão ser construı́das. Para a relatividade Geral, a situação é bem
nificativo durante a República[...]; era quase uma religião de es-
diferente: empregando espaços curvos, ela se torna isolada. É uma
tado”.
situação que perdurou, aliás, até recentemente e isto apesar das
relações cada vez mais próximas que a gravitação de Einstein man- Em 1856, Auguste Comte publicou o último volume de sua
teve com a astrofı́sica e das perspectivas de uma integração entre a grande obra “La philosophie positiviste”, a “Synthèse positiviste”,
gravitação e o campo quântico no âmbito de uma teoria unitária. cuja leitura foi determinante para Alencar, que tinha sentido,
como toda sua geração, particularmente como aluno da Escola
Politécnica, a influência da doutrina positivista, mas da qual se li-
2.2. A situação da relatividade no Brasil no berara posteriormente. Em uma conferência na Escola Politécnica
inı́cio do século em 1918, em homenagem a Otto de Alencar, recém desaparecido
com a idade de 38 anos, Amoroso Costa explicitará seu desacordo
Durante o perı́odo que vai dos anos dez aos anos trintas, a relativi- com o positivismo comtiano:
dade Geral no Brasil sofrerá as conseqüências da situação descrita “Aceitar a Sı́ntese Subjetiva é rejeitar toda a obra matemática
anteriormente. De forma mais pronunciada visto que a situação da do século passado, a obra de Gauss e de Abel, de Cauchy e de
fı́sica-matemática no Brasil no inı́cio do século não é muito bri- Riemann, de Poincaré e de Cantor. [...] a Sı́ntese, escrita quando
lhante. No que diz respeito à relatividade Geral, como em todos Comte já estava seduzido pela construção sociológica, é uma das
os outros domı́nios, faz-se pouca, muito pouca, quase nenhuma tentativas mais arbitrárias que jamais foram feitas de submeter o
pesquisa original, um fenômeno que está ligado às dificuldades pensamento a fronteiras artificiais.”
próprias deste paı́s longe do Europa, dos Estados Unidos, onde se
encontra a maior parte dos pesquisadores que trabalhavam nesse De fato, Alencar tinha tomado como pretexto “alguns erros de
assunto; mesmo no meio cientı́fico não se tem mais do que uma matemática na Sı́ntese Subjetiva” para condenar a doutrina com-
visão superficial da teoria. tiana. Seu artigo foi visto como um sacrilégio e teve uma grande
repercussão. Já em 1835, no segundo volume do mesmo curso de
A situação, nós vimos, não é muito diferente em outras
filosofia positivista, Augusto Comte havia assim se exprimido a
partes do mundo. Não apenas a relatividade Geral está adi-
respeito das estrelas:
antada em relação ao seu tempo, mas também Einstein, (além de
Schwarzschild, de Sitter, Weyl e outros teóricos) obtiveram, no “Nós podemos conceber a possibilidade de determinar sua
começo da história da nova teoria, muitos dos resultados essenci- forma, sua distância, sua grandeza e seu movimento, ao passo que
ais; mas entre 1920 e 1960 poucos trabalhos realmente deixarão nós não poderemos jamais estudar sua composição quı́mica”.
traços. Muitos dos trabalhos que são então feitos tentam com- De fato, para Comte a mecânica celeste esgota, de uma certa
preender melhor “o que a teoria traz em seu bojo”, mas com forma, a ciência; tudo deve partir dela e tudo deverá a ela se rela-
muitas dificuldades, ao preço de muitos erros de interpretação! A cionar. A tal ponto que ele recusa a possibilidade de um estudo
interpretação moderna, padrão, da relatividade Geral data, no final fı́sico-quı́mico das estrelas e, por conseguinte, recusa a possibil-
das contas, do fim dos anos sessenta, senão dos anos setenta ou idade de uma astrofı́sica. A astrofı́sica que, é preciso lembrar,
ainda mais tarde. Assim, não se deve estranhar a reduzida pesquisa se tornou posteriormente uma parte maior da relatividade Geral.
original brasileira neste domı́nio. Amoroso Costa estava em substância de acordo com o seu mestre,
Apesar desta situação “banal”, previsı́vel, o Brasil vai conhecer que ele apóia e com quem ele partilha totalmente o ponto de vista;
nos anos 1920 alguns eventos particulares. Em primeiro lugar sem ele está também na primeira fila do combate contra o comtismo.
dúvida porque um acontecimento marcante no processo inicial da Desde o inı́cio do século, com a idade de quinze anos, ele freqüenta
teoria ocorreu sobre o solo brasileiro: as melhores medidas do a Escola Politécnica e se torna logo discı́pulo de Otto Alencar.
desvio da luz na borda do Sol foram feitas em Sobral, no Ceará, Este é, antes de tudo, um matemático, que se interessa pela fı́sica-
em 1919 onde muitos astrônomos brasileiros estão presentes, como matemática, mas sempre mantendo uma grande aproximação com
Henrique Morize, o diretor do Observatório Nacional do Rio de a mecânica celeste. A linha que seguirá Amoroso Costa tem mais
Janeiro. de um aspecto em comum com a do seu mestre, em particular no
É evidente que o interesse que o mundo cientı́fico e intelectual que diz respeito ao seu interesse pela fı́sica e, mais ainda, pela
tem pela relatividade Geral está ligado à verificação da teoria em astronomia; um interesse que não lhe faz esquecer a matemática.
Sobral. É neste contexto que Amoroso Costa se interessa e trabalha Acrescenta-se um grande entusiasmo pela filosofia, que não se apa-
na relatividade Geral. De uma certa maneira, a visita que Einstein gará com o tempo. Matemática, fı́sica, astronomia, filosofia... são
fez ao Rio em 1925 fecha este perı́odo. A partir daı́, o interesse as raı́zes da relatividade Geral, e não é preciso procurar outros mo-
pela relatividade Geral será bem menor. tivos para o seu interesse por este assunto.
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3. A “Introdução à Teoria da Rela- mia à qual ele consagrará sua tese de livre docência. Paralelamente
ao grande número de obras que aparecem em todo o mundo so-
tividade” de Amoroso Costa bre o assunto, ele publicará em 1922 sua “Introdução à Teoria da
A obra de Amoroso Costa é consagrada principalmente à Relatividade”, na coleção “Cultura Contemporânea”, da Livraria
matemática e à astronomia. Mas ele tratava também da filosofia Cientı́fica Brasileira, editada por Sussekind de Mendonça e Cia do
da matemática e da relatividade Geral. A sua “Introdução à Teoria Rio de Janeiro.
da Relatividade”, publicado em 1922 (ano da Semana de Arte Mo-
derna e da fundação do Partido Comunista Brasileiro) é o primeiro 3.1. Uma visão geral do livro de Amoroso
livro brasileiro sobre a relatividade Geral. Bem além de uma sim- Costa
ples apresentação popular da teoria da gravitação de Einstein, é
um livro de introdução à teoria destinada aos estudantes, aos ci- É um livro baseado em quatro conferências que ele apresentou en-
entistas. Neste livro não há “novidades”, não há novos resulta- tre abril e maio de 1922 na Escola Politécnica. Não se trata, no
dos de pesquisas; também não é um curso, apenas uma introdução entanto, de um livro de divulgação, mas de uma real introdução
para um curso. De fato, ele publicará poucos trabalhos originais, à teoria da relatividade, uma introdução elementar destinada a um
mesmo que se tenha que ressaltar que, dada a realidade da ativi- público cientı́fico. Neste livro, ele consegue expor tanto a relativi-
dade cientı́fica no Brasil na época, sua contribuição original não dade Restrita quanto a Geral, que ele inclui no conjunto das teorias
pode ser considerada desprezı́vel. A maior parte dos seus artigos, clássicas, ao lado da relatividade galileniana, por conseguinte, da
em particular os artigos matemáticos, é de natureza pedagógica; teoria da gravitação de Newton.
Amoroso Costa realizou poucas pesquisas originais. E este texto é É um livro muito curto, de pouco mais de cem páginas, onde
bem, como o tı́tulo o indica, uma introdução à relatividade Geral, Amoroso apresenta o essencial, o indispensável. Em uma rápida
precedida de uma detalhada apresentação da relatividade Restrita. exposição histórica ele critica, com razão, a palavra “relatividade”,
O interesse de Amoroso Costa pela relatividade, sem dúvida insistindo no caráter intrı́nseco, invariante da teoria. Ele enxergou
muito profundo, é paralelo ao interesse manifestado pelo público com precisão, o que não era então algo muito freqüente, que a teo-
culto, e se desenvolve precisamente depois da expedição de So- ria de Einstein é uma teoria dos invariantes que serão projetados,
bral. Este é o tema do primeiro artigo que ele consagra à teoria exprimidos, relativamente a um sistema no qual eles serão medi-
de Einstein em “O Jornal”, em novembro de 1919, assim que os dos.
resultados da observação do eclipse se tornam conhecidos, sendo Este é um aspecto muito importante, que é raro de ser encon-
o efeito do desvio dos raios luminosos perto do Sol confirmado, trado tão cedo nas obras sobre a relatividade Geral, sendo uma
como um telegrama de Londres lhe afirma. das razões que nos fazem considerar o livro de Amoroso Costa
Este primeiro artigo já expressa (e o livro que publicará três uma obra notável; aproveitemos para dar outras razões. Algu-
anos mais tarde o confirmará) de forma simples, mas de uma mas páginas depois, fazendo alusão à questão da inércia, Amoroso
maneira esclarecedora, o essencial da teoria: o limite newtoni- Costa escreve: “a [...] teoria nova tem a imensa superioridade de
ano, o avanço do periélio de Mercúrio, o desvio dos raios lumi- evitar a consideração de um espaço absoluto”, o que é evidente-
nosos perto do Sol, cuja verificação é exposta de uma maneira mente um ponto importante, e primeiramente para Einstein que
muito inteligente. Amoroso Costa observa a importância destas não podia aceitar o recurso (newtoniano) a um espaço absoluto,
observações que “poderá até certo ponto compensar a estranheza “este fantasma”. Depois ele observa que na “hiper-geometria do
que causam alguns princı́pios da nova teoria, em que as noções espaço-tempo, introduz-se um invariante que generaliza a noção
de senso comum sobre o espaço e o tempo sofreram modificações de distância, e que é o intervalo entre dois acontecimentos”, o que
profundas.” E observa que “a mecânica newtoniana continuará a é uma maneira procedente de falar da teoria. Duas páginas depois,
existir, porque é muito simples e desempenha perfeitamente o pa- a questão do tempo é abordada: “o tempo não é mais universal”.
pel que lhe cabe em um domı́nio limitado.” Este pequeno artigo é, “O objeto final da teoria é de exprimir as leis dos fenômenos natu-
de fato, revelador da clareza, da simplicidade da visão de Amoroso rais sob forma independente do sistema de referência adotado” , e
Costa, qualidades que serão também encontradas no seu livro. Ele ele insiste sobre o fato que se abandona o sistema rı́gido dos eixos
percebeu o que importa, o essencial da teoria, assim como os re- pelos “sistemas que se deformam continuamente”, uma observação
sultados maiores, seu caráter revolucionário, incluindo suas con- sem dúvida muito bem aceita hoje, mas não muito bem compreen-
seqüências para o “senso comum”. dida na época. Um dos capı́tulos é intitulado “A geometria apli-
Amoroso Costa domina bem a essência da teoria, o que estava cada”, o que é, outra vez, bem assinalado (e, seja dito, retomado
longe de ser o caso tanto para os seus colegas brasileiros quanto de “A geometria e a experiência” um artigo de Einstein que ele
para muitos fı́sicos franceses ou ingleses. Em vez de ser um artigo leu logo que apareceu e que o marcou). Posteriormente, há uma
árido, como poderia se temer, ele esclarece de uma forma fı́sica o observação que faz Amoroso Costa quanto ao “apelo à intuição”:
fenômeno que acabou de ser observado. Isto é ao mesmo tempo “É uma ilusão pretender que a mecânica se apóie unicamente
raro, pois muitos artigos se limitarão a uma visão matemática da sobre as chamadas leis do movimento; suas demonstrações estão
teoria, e surpreendente, pois era de se esperar de um matemático cheias de postulados implı́citos e de apelos à intuição, que uma
um artigo formal onde a técnica toma o lugar dos fenômenos fı́sicos critica minuciosa poderá algum dia analisar e isolar.”
fundamentais: não é este o caso, e Amoroso Costa em poucas Nós terminaremos nosso pequeno passeio inicial pelas boas
palavras revela um conhecimento rigoroso da teoria. É verdade idéias de Amoroso Costa relembrando sua insistência quanto à ex-
que Amoroso Costa é também um bom especialista em astrono- periência, o que não se encontra geralmente em tantas obras da
Amoroso Costa e o primeiro livro brasileiro sobre a Relatividade Geral 189

época. Ele enfatiza (seguindo Eddington, é verdade) um ponto espaço da geometria clássica. Isto se considerarmos que o teo-
essencial relacionado ao sucesso da expedição de Sobral: “O Sol rema de Pitágoras é sempre, e em todos os lugares, verificado; ou
se achava então na constelação do Touro e atravessara o grupo das ainda que a soma dos ângulos de um triângulo é sempre igual a
Hı́ades, muito rico em estrelas brilhantes.” Pois é devido à den- dois ângulos retos. Nós não distinguimos mais o teorema pro-
sidade estelar e à repartição das estrelas no campo atravessado priamente dito que sai da teoria matemática subjacente, de sua
pelo Sol no momento do eclipse, o motivo central do sucesso aplicação à realidade fı́sica. Em “a geometria e a experiência”,
da expedição, e que será discutido até estes últimos anos. Da do qual Amoroso retoma o tema, Einstein distinguiu muito clara-
mesma forma, ele comenta a questão do deslocamento das raias de mente a geometria axiomática da geometria prática. A geometria
emissão, explicando que “os resultados até há pouco tempo fossem axiomática é, antes de mais nada, a geometria de Euclides, e só de-
muito discordantes”; mas ele segue a opinião de Langevin segundo pende das hipóteses primeiras, os “postulados” de Euclides. Mas,
a qual “pode se considerar como definitiva a confirmação experi- como Amoroso mostra, depois de Lobatcheviski, depois de Bolyai,
mental.” Gauss, Riemann, outras geometrias são possı́veis, para as quais os
Uma outra forma de julgar as qualidades do livro de Amoroso postulados de Euclides não são mais necessariamente verdadeiros.
Costa é compará-lo aos outros raros livros publicados no Brasil Assim, a soma dos ângulos de um triângulo não é mais necessaria-
sobre o assunto no perı́odo entre as duas guerras mundiais. Nós mente igual a dois ângulos retos. De onde a questão da geometria
pudemos, com muita dificuldade, ter acesso a dois outros livros da prática, que está no âmbito da fı́sica: saber em qual mundo, em
época, um de Carlos Penna Botto, publicado em 1923, o outro de qual Universo, em qual geometria, nós vivemos. A relatividade
Pedro Demosthenes Rache, em 1932. Basta abrir o livro de Penna Geral trata da geometria, sendo a primeira teoria neste sentido; a
Botto, que não justifica aliás seu tı́tulo, no entanto um pouco es- relatividade Geral formula e propõe uma solução para o problema
tranho, “O neo-relativismo einsteiniano”, para ficar convencido do da geometria.
seu caráter banal. É um livro de divulgação, mais ou menos como De fato, as equações fundamentais da relatividade Geral não se
o de Amoroso Costa, que não chega a ser dramaticamente ruim, referem propriamente à gravitação, mas ao espaço, o espaço-tempo
apesar de alguns erros técnicos grosseiros, mas é verborrágico, e que implica na gravitação. Supondo, por exemplo, em cosmolo-
que não tem grande interesse além de o de existir, e de ser autor gia relativista, conhecida a distribuição de matéria existente no
ter sido uma curiosa personagem no cenário polı́tico brasileiro nos Universo deve-se deduzir a estrutura do espaço-tempo. O espaço-
anos 50. É um livro escrito rapidamente, onde o assunto não foi tempo, em particular sua estrutura, é a incógnita que deve ser deter-
repensado. A comparação com o livro de Amoroso Costa é im- minada. A gravitação é apenas um produto secundário. Esta visão,
placável. O livro de Rache é um texto universitário, um livro de que é essencialmente a de Einstein, é também a de Amoroso Costa.
curso usual, relativamente clássico para a época, mas excessiva- Contrariamente ao que se poderia pensar, ela não é compartilhada
mente matemático: a primeira parte, que cobre metade do livro, é por todos os fı́sicos, nem mesmo por todos os relativistas. Afinal,
consagrada à exposição da geometria riemanniana; a segunda parte não é fácil mudar nossa forma habitual de viver, pensar, fazer os
é dedicada à relatividade Restrita e, em 350 páginas, encontram-se cálculos...
apenas 60 consagradas à relatividade Geral. É um texto pesado,
coberto de cálculos, ao passo que muito freqüentemente os con-
ceitos são deixados de lado. Trata-se de um livro um pouco sufo-
3.3. Popularização
cante, defeito que se encontra muito comumente na literatura rela- Amoroso Costa não sacrifica a exposição do formalismo
tivista, e que permite melhor sublinhar as qualidades do livro de matemático, necessário à expressão da relatividade, e é por
Amoroso Costa. isto que seu livro se trata de uma introdução, e não de uma
popularização da teoria; ao contrário, encontramos em sua obra
3.2. O papel da geometria uma apresentação clara e simples, mas precisa, dos principais
instrumentais matemáticos necessários para se compreender a re-
Voltemos ao livro de Amoroso Costa que introduz inicialmente latividade: cinemática clássica, lorentziana, elemento linear do
os espaços não euclidianos, expondo-os matematicamente através espaço-tempo, teoria dos tensores, equações de campo da teoria da
das idéias de Gauss e de Riemann, o que o permite apresentar relatividade Geral, esboço de sua derivação lagrangiana. Amoroso
a relatividade Restrita no contexto quadri-dimensional pensado aborda o que é essencial. Ele o faz de maneira simples, limpa,
por Minkowski, insistindo sobre os dois conceitos mais impor- passo a passo, sem cair numa visão tecnicista; ele percorre as
tantes das teorias relativistas: o de evento espaço-temporal e o de grandes linhas da teoria se concentrando nos princı́pios básicos e
tempo próprio. A experiência de Michelson-Morley é descrita, e as insistindo sobre os resultados fı́sicos, numéricos, observacionais e
transformações de Lorentz são apresentadas sob o ponto de vista, experimentais. A história é apresentada ao longo do livro, o que o
muito moderno para a época, da teoria de grupos. Os resultados permite acentuar a necessidade da relatividade.
experimentais são abordados. Apesar de próximo ao espı́rito de Ele expõe detalhadamente a fórmula do periélio, que está
Poincaré, por quem ele foi profundamente influenciado desde seus na base de um dos três testes da relatividade Geral: o desloca-
tempos de estudante, Amoroso Costa sabe bem tomar distância mento do periélio de Mercúrio, uma observação que durante meio
dele. A questão, essencial no que diz respeito à relatividade Geral, século constituiu uma anomalia inexplicável da teoria de Newton,
é saber se, e até onde, a geometria euclidiana é verdadeira. da qual Amoroso faz uma análise precisa, lembrando as diversas
Desde Euclides, nós estamos de fato habituados a considerar explicações propostas antes de Einstein. Isto também ocorre para
que o espaço no qual nós vivemos é dado desde o inı́cio: é o o caso do desvio da luz em um campo gravitacional, onde ele in-
190 Eisenstaedt e Fabris

siste, como já dissemos, sobre um ponto crucial destas observações Papapetrou, um grande relativista do pós-guerra.
de 1919: que as Hı́ades, a constelação onde o Sol então se encon-
trava, é muito rica em estrelas brilhantes, uma circunstância que
permitiu medidas muito precisas, possibilitando a verificação deste 4. Conclusão
efeito essencial da teoria da gravitação de Einstein.
Amoroso Costa não tem, em geral, uma visão pessoal da teo- Excetuando esta “prudência cósmica”, a obra de Amoroso fornece
ria. O que é muito bom, pois muitos autores naquele perı́odo de maneira simples, e ainda quase atual, uma visão justa; ela
tinham, cada um, “sua” interpretação - na maior parte dos casos, soa bem. O que era em 1922 tão raro quanto admirável. Ainda
discutı́vel - da gravitação einsteiniana. Mas, a sua exposição da mais raro que poucas obras visavam o público de estudantes, o
teoria é bem trabalhada, analisada, “cola-se” bem aos fatos, à sua que era de se lamentar. O livro de Amoroso Costa não consti-
realidade fı́sica, observacional. Amoroso Costa entendeu bem o tui um texto de divulgação, tão comuns no inı́cio dos anos vinte
essencial da teoria, ou simplesmente a aceitou inteligentemente. - escreveram-se então centenas -, nem uma obra para especialista,
Ele deve, possivelmente, essa clareza à suas leituras ecléticas, que para estudantes avançados, como os que escreveram Eddington e
ele muito bem analisou, retendo apenas aquilo que lhe era útil, o Weyl desde o fim da primeira guerra mundial, ou von Laue um
que está no âmago da teoria. Ele certamente leu não apenas os pouco mais tarde. Não se trata de uma obra composta como um
artigos fundamentais, mas também os artigos de divulgação es- compêndio de leituras, mas, como diz o próprio autor no prefácio,
critos por Einstein. Ele conhecia as obras de Poincaré, Edding- trata-se de uma obra diferente, onde a teoria é percorrida em suas
ton, de Painlevé, que por sinal é criticado por Émile Borel, que grandes linhas. Trata-se de uma exposição particularmente clara,
Amoroso conhece pessoalmente. O texto do seu livro decorre, so- onde Amoroso mostra uma excelente intuição da teoria.
briamente, da compreensão que ele tem da teoria; não se percebe É relativamente fácil de se ter uma idéia das influências
mais traços de suas leituras, do trabalho importante que ele teve sofridas por Amoroso Costa: referem-se, antes de mais nada, a
que realizar para alcançar essa compreensão. Ele se limita a apre- alguns livros (e artigos) clássicos publicados então: o livro de
sentar a teoria o mais clara e rigorosamente possı́vel. Mas, mesmo divulgação que Einstein publicou em 1917; os dois livros publi-
se a matemática ocupa um lugar importante neste livro (o que não cados por Eddington, o “Report” de 1918 mal distribuı́do e não é
é de se surpreender, tendo em vista a formação de Amoroso Costa) certo que Amoroso Costa o tenha lido, assim como o “Space, Time
ele está longe de se limitar a uma visão matemática da teoria, e in- and Gravitation” publicado em 1920 que ele certamente leu; e o
siste - naquele momento mais que qualquer outro talvez, a exceção “Raum-Zeit-Materie” de Weyl também publicado em 1918. Sem
de Einstein e de Eddington - sobre os (raros) resultados observa- dúvida, ele pôde ler outros livros quando de sua estada de dois anos
cionais. em Paris, em 1920/1921. Suas ligações com Borel tornam provável
que ele tenha lido o livro (ou pelo menos as provas) que aquele
3.4. Cosmologia publicou em 1922. Não é impossı́vel que ele tenha lido o livro
de Becquerel publicado também em 1922. O livro de Amoroso
Um parêntese a propósito da cosmologia. Sem dúvida, ele apre- Costa não seria, então, uma pálida cópia, ou pelo menos muito in-
senta a cosmologia (hoje uma aplicação essencial da relatividade fluenciado, por alguns destes livros, quanto à estrutura, quanto à
Geral) corretamente; mas sem depositar muita crença nela. Ele filosofia e quanto ao conteúdo? É óbvio que tudo o que Amoroso
deixa, a respeito deste assunto, manifestar suas dúvidas. Sobre a Costa sabia sobre a relatividade vem destas leituras, e marginal-
cosmologia, ele fala de “especulações” e mesmo de ”uma parte mente de discussões; mas também da análise que ele faz destes
de fantasia”, ainda que insistindo em sua ”profunda beleza”; mas elementos. E precisamente, nos parece que os elementos que o au-
parece não enxergar senão o seu interesse filosófico. Ele enfatiza tor pescou aqui e ali foram re-trabalhados profundamente. Assim,
de novo estes aspectos na sua exposição técnica do assunto, em- como foi observado na nota 19, pode-se ver a influência de Einstein
prestando a análise de Borel: ”uma ousada extrapolação (...) que nas quatro conferências que parecem responder àquelas de Prince-
equivale a tentar descrever o oceano de que apenas conhecemos ton. Mas, uma comparação rápida dos dois livros originados dessas
uma gota”. Mas ele concorda que estas questões “nem por isso conferências basta para nos convencer que Amoroso Costa (se ele
deixam nos preocupar (...) mas parecem ultrapassar a inteligência pôde ter acesso a eles, o que não é seguro, tendo em vista as datas
humana”. da publicação do livro de Einstein) não se inspirou diretamente
É preciso localizar esta opinião no seu contexto e se lembrar nesta obra. Sem dúvida, pode-se perceber, como observa Ildeu de
que este livro foi publicado em 1922, e que seria ainda preciso es- Castro Moreira, a influência de Eddington na parte cosmológica,
perar seis anos antes dos primeiros trabalhos de Hubble, e dez anos aliás a parte menos interessante, mais rapidamente abordada, do
para que a idéia propriamente dita da expansão do Universo seja livro. Sem dúvida, mas sem grandes excessos, e é preciso assinalar
apresentada. Amoroso Costa tem razão em ser prudente. Quem que encontra-se também a influência de Einstein através de uma
poderia imaginar, no inı́cio da década de 20, o avanço que se- citação de “A geometria e a experiência”, que ele tinha acabado de
ria proporcionado pela relatividade Geral à cosmologia, tornada ler. É um livro que não tem nada em comum com as outras obras
relativista? Quem poderia acreditar que a hipótese da homogenei- similares publicadas na época. E, simplesmente, um dos melhores
dade do espaço, base de todos os modelos cosmológicos, seria uma livros de introdução à relatividade que terá sido publicado durante
hipótese sólida no que diz respeito aos fatos observacionais? A muito tempo no mundo. Poucos livros posteriores possuem esta
cosmologia seria considerada ainda por muito tempo como espe- clareza, esta simplicidade, limpidez e compreensão da relatividade.
culativa, como um “esporte”, retomando a expressão de Achille O que há de particular nesta pequena obra, é que ela pouco enve-
Amoroso Costa e o primeiro livro brasileiro sobre a Relatividade Geral 191

lheceu. Podemos dá-la para os estudantes ler sem temer que eles [5] Auguste Comte, Cours de Philosophie Positive (Bachelier,
encontrem estas interpretações abusivas que foram durante tanto Paris, 1835).
tempo comuns na literatura relativista.
[6] Manuel Amoroso Costa, in Conferência sobre Otto de Alen-
Durante aqueles anos, os fı́sicos brasileiros publicarão pou-
car (Realizada na Escola Politécnica a 29 Abril de 1918), edi-
cas coisas sobre o assunto. Nenhuma publicação, mesmo as de
tado por Manuel Amoroso Costa, As Idéias Fundamentais da
Amoroso Costa, terão uma audiência internacional. Mas, esta
Matemática e Outros Ensaios (Introdução de Arthur Gehrardt
situação não é particular ao Brasil: aqui ou em outros lugares a
Santos, Lélio Gama e Antonio Paim), (Convı́vio/EDUSP, São
maior parte dos artigos sobre o assunto eleva Einstein e suas teo-
Paulo, 1981), 3a ed., p. 67-86.
rias às nuvens, ou o condenam por motivos subjetivos, ideológicos.
A visita que Einstein fez ao Rio em 1925 trará poucas coisas [7] Manuel Amoroso Costa, in A Teoria de Einstein (O Jornal,
para a fı́sica brasileira. Mas, como bem escreveu Antonio Paim Rio de Janeiro, ano I, N?149 de 12 novembro de 1919), edi-
“a presença de Einstein no Rio de Janeiro enseja uma discussão tado por Manuel Amoroso Costa, As Idéias Fundamentais da
comprobatória da derrota do comtismo nos cı́rculos cientı́ficos Matemática e Outros Ensaios (Introdução de Arthur Gehrardt
nacionais.” Mas trata-se de uma visita formal, solene e Einstein Santos, Lélio Gama e Antonio Paim), (Convı́vio/EDUSP, São
parece não ter encontrando interlocutores. Amoroso Costa, sem Paulo, 1981), 3a ed., p. 101-102.
dúvida o único cientista que poderia atrair o interesse de Eins-
[8] Manuel Amoroso Costa, Introdução à Teoria da Relatividade
tein, estava então na França, e lamentou sem dúvida não ter tido
(Süssekind de Mendonça, Rio de Janeiro, 1922).
a possibilidade de encontrar aquele que tinha recebido, três anos
antes, o prêmio Nobel. Essa será, no entanto, a ocasião de um [9] Manuel Amoroso Costa, As Idéias Fundamentais da
artigo condenando a “relatividade imaginária”, em nome de Au- Matemática e Outros Ensaios (Introdução de Arthur Gehrardt
gusto Comte, que Licı́nio Cardoso lê na Academia Brasileira de Santos, Lélio Gama e Antonio Paim), (Convı́vio/EDUSP, São
Ciências, depois de tê-lo publicado em O Jornal. Mas, Licı́nio Paulo, 1981), 3a ed., p. 330.
parece já isolado e o comtismo em franca regressão, como atestam
as refutações que publicarão vários cientistas brasileiros quando [10] Manuel Amoroso Costa, Introdução à Teoria da Relativi-
das sessões seguintes da Academia. dade (Livraria Cientı́fica Brasileira/Editora da UFRJ, Rio de
Não pode se deixar de lamentar que Amoroso Costa não tenha Janeiro, 1995) 2a edição.
formado alunos na relatividade Geral, o que não está ligado apenas [11] John Earman and Clark Glymour, Historical Studies in the
ao seu desaparecimento prematuro em 1928, mas também ao fato Physical Sciences 11, 49 (1980).
que ele não fez realmente pesquisas em relatividade, e também ao
fato que a relatividade Geral será marginalizada durante os anos [12] Arthur S. Eddington, Report on the Relativity Theory of
1925-1960. Talvez isto se deva ao fato da relatividade Geral, Gravitation (Physical Society of London, London, 1918).
devido à falta de contato com a observação, ter perdido veloci- [13] Arthur S. Eddington, Space, Time and Gravitation. An Out-
dade, velocidade que só será retomada uns quarenta anos depois da line of the General Relativity Theory (Cambridge University
morte de Amoroso Costa. De Qualquer modo o seu livro foi muito Press, Cambridge, 1920).
mal distribuı́do, pela Süssekind de Mendonça e foi durante muito
tempo praticamente ignorado por todos, inclusive os cientistas, a se [14] Editorial A Grande Perda, Boletim da Associação Brasileira
julgar pela dificuldade de se achar um exemplar da edição original de Educação 13, 1 (1929).
nas bibliotecas brasileiras. [15] Albert Einstein, Über die Spezielle und die Allgemeine Rela-
tivitätstheorie. (Gemeinverstandlich) (1917). Braunschweig:
Agradecimentos Friedrich Vieweg und Sohn. O prefácio é datado ”December
1916”. As páginas são citadas da tradução inglesa Relativ-
Expressamos nossos agradecimentos a Ruben Aldrovandi, Arthur ity, the Special and General Theory: A Popular Exposition,
Carlos Gehrardt Santos, Ennio Candotti e Sérgio Vitorino de Borba Tradução de Robert W. Lawson (Methuen, London, 1920;
Gonçalves pelas sugestões e leitura atenta deste texto, assim como Holt, New York, 1921).
ao árbitro anônimo da RBEF.
[16] Albert Einstein, La Théorie de la Relativité Restreinte et
Généralisée Mise à la Portée de Tout le Monde Traduzido
Referências da décima edição alemã por Traduit J. Rouvière, com um
prefácio de Emile Borel (Gauthier-Villars, Paris, 1921).
[1] Silva Otto de Alencar, Revista da Escola Polytechnica (Rio
[17] Jean Eisenstaedt, Archive for History of Exact Sciences 35,
de Janeiro) 2, 113-130 (1898).
115-185 (1986).
[2] Fernando de Azevedo, As ciências no Brasil (Melhoramen-
tos, São Paulo, 1955), 2 vols. [18] Jean Eisenstaedt, Einstein et la Relativité Générale. Les
[3] Jean Becquerel, Le Principe de Relativité et la Théorie de la Chemins de l’Espace-Temps (Collection Histoire des Sci-
Gravitation (Gauthier-Villars, Paris, 1922). ences, Cnrs Éditions, Paris, 2002).

[4] Carlos Penna Botto, O Neo-Relativismo Einsteiniano (Im- [19] Jean Eisenstaedt e Antonio Augusto Passos Videira, Ciência
prensa Naval, Rio de Janeiro, 1923). Hoje 20 24 (1995).
192 Eisenstaedt e Fabris

[20] Lélio Gama, in A obra de Amoroso Costa, editado [26] Antônio Paim, in Trajetória da Filosofia no Brasil, editado
por Manuel Amoroso Costa, As Idéias Fundamentais da por Mário Guimarães Ferri e Shozo Motoyama, História das
Matemática e Outros Ensaios (Introdução de Arthur Gehrardt Ciências no Brasil (EPU EUDSP, São Paulo, 1979), p. 9-34.
Santos, Lélio Gama e Antonio Paim), (Convı́vio/EDUSP, São [27] Antônio Paim, in O Neopositivismo no Brasil. Perı́odo de
Paulo, 1981), 3a ed., p. 27-37. Formação da Corrente, editado por Manuel Amoroso Costa,
[21] J. Leite Lopes, Prefácio à 2a edição in Introdução à Teoria da As Idéias Fundamentais da Matemática e Outros Ensaios
Relatividade (Livraria Cientı́fica Brasileira/Editora da UFRJ, (Introdução de Arthur Gehrardt Santos, Lélio Gama e An-
Rio de Janeiro, 1995). tonio Paim), (Convı́vio/EDUSP, São Paulo, 1981) 3a ed., p.
[22] Ildeu de Castro Moreira, in Amoroso Costa e a Introdução da 39-63.
Relatividade no Brasil, editado por Manuel Amoroso Costa, [28] Michel Paty, Archives Internationales d’Histoire des Sciences
Introdução à teoria da relatividade (Livraria Cientı́fica 49, 331 (1999).
Brasileira/Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 1995) 2a edição,
[29] Pedro Demosthenes Rache, A Relatividade e sua Aplicação
p. xv-xliii.
ao Estudo dos Fenômenos Fı́sicos, Precedida dos Elementos
[23] Ildeu de Castro Moreira e Antonio Augusto Passos Videira Indispensáveis de Matemática, (Imprensa Oficial de Minas
(eds.), Einstein e o Brasil (UFRJ, Rio de Janeiro, 1995). Gerais, Belo Horizonte, 1932).
[24] Ildeu de Castro Moreira, in A Recepção das Idéias da Rela- [30] Arthur Gehrardt Santos, in Apontamentos para a Biografia
tividade no Brasil editado por Ildeu de Castro Moreira e An- de Amoroso Costa, editado por Costa, Manuel Amoroso,
tonio Augusto Passos Videira, Einstein e o Brasil (UFRJ, Rio As idéias Fundamentais da Matemática e Outros Ensaios
de Janeiro, 1995) p. 177-206. (Introdução de Arthur Gehrardt Santos, Lelio Gama e An-
[25] Ildeu de Castro Moreira, in Bibliografia Brasileira sobre a tonio Paim), (Convivio/EDUSP, São Paulo, 1981) 3a ed., p.
Teoria da Relatividade no Brasil, Apêndice à A Recepção das 14-25.
Idéias da Relatividade no Brasil editado por Ildeu de Cas- [31] Hermann Weyl, Raum-Zeit-Materie (Julius Springer, Berlin,
tro Moreira e Antonio Augusto Passos Videira, Einstein e o 1918).
Brasil (UFRJ, Rio de Janeiro, 1995) p. 201-206.

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