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Um sistema de treinamento adequado não é simplesmente um conjunto de temas sobre os

quais se deve acumular conhecimento mecanicamente. O treinamento adequado tem


natureza orgânica, indivisível, e fundamenta-se no desenvolvimento da percepção,
compreensão e reação - essas podem ser consideradas as habilidades do enxadrista. A título
de esclarecimento, uma breve descrição sobre o significado dessas habilidades:

A percepção é o poder de recolher informações (de qualquer natureza) sobre determinada


posição;

A compreensão forma o senso crítico do enxadrista, que irá filtrar as informações "percebidas"
e ordena o quê é relevante e por quê;

A reação é a capacidade de combinar elementos abstratos (percebidos e filtrados) e tomar


atitudes em seu favor.

De acordo com a minha teoria, o conhecimento ou a memorização não são considerados


habilidades, mas acompanham todo o processo de aperfeiçoamento técnico.

Uma vez firmado o objetivo do treinamento (desenvolver a percepção, a compreensão e a


reação), podemos focar nos temas a estudar: finais, tática, estratégia e aberturas. Chamo este
grupo de fundamentos técnicos, tal qual o "saque" ou o "bloqueio" no vôlei; são divididos
assim por sua característica distinta, que exige um método de aprendizado diferenciado.

A ordem dos temas expostos acima não foi ocasional. Baseado na opinião de mestres e em
minhas observações, a respeito de meus alunos e a mim mesmo, os finais devem ser a
prioridade inicial do enxadrista. É claro que não pode ser regra estudar somente os finais
quando se inicia, nem é regra estudar exclusivamente algum tema em nenhum momento;
estuda-se de tudo, sempre, mas deve haver prioridade no estudo, de acordo com as próprias
necessidades. Por isso recomendo que, no estágio inicial do aprendizado, os finais sejam
priorizados.

Essa idéia não é nova. Na verdade, Capablanca já afirmava em sua época e foi seguido por uma
série de treinadores desde então. Cito aqui Capablanca porque foi em sua compilação "Lições
Elementares de Xadrez" que passei a ver essa recomendação com outros olhos. Segundo ele,
após a abertura e o meio-jogo chegamos ao final; por isso, devemos considerar que toda a
partida bem jogada deve ser decidida no final, senão, algum dos contendores cometeu erros
graves e permitiu uma derrota nos estágios primários - aí está uma justificativa lógica para
iniciar pelos finais: de nada adianta jogar em bom nível a abertura e o meio-jogo se não se
sabe jogar o final. Penso que isso, apenas, não é justificativa suficiente pois pode-se
argumentar "mas se não souber jogar a abertura e o meio-jogo, pode-se perder antes de
chegar ao final!". Pois bem, há um segundo motivo: os lances efetuados na abertura irão
moldar a posição do meio-jogo, bem como os lances efetuados no meio-jogo darão origem à
posição do final; portanto, um final pode emergir vantajoso ou desvantajoso de acordo com os
lances efetuados nas fases que o precederam. O enxadrista que não sabe jogar os finais
também não compreenderá muitos lances na abertura e meio-jogo que servem para obter
uma possível posição de final superior ou para evitar uma posição de final inferior para si.

O estudo dos finais tem dois objetivos:

- Construir um repertório de posições de final exatas (durante uma partida, um enxadrista se


encontra sempre em dois tipos de posição: exatas, quando ele sabe exatamente o que fazer e
como proceder, ou problemáticas, quando está em terreno desconhecido e precisa analisar
profundamente e tomar uma decisão por si);

- Assimilar conceitos gerais válidos para tipos específicos de posição de final (de acordo com o
material restante, a posição dos reis ou a estrutura de peões, por exemplo).

A partir desses objetivos, o estudo dos finais exige quatro tarefas:

- Analisar em profundidade posições elementares; as características que as distinguem, o


método de jogo (modus operandi) e os recursos que possuem ambos os lados (as minúcias da
posição), criando assim um repertório de posições de final;

- Analisar finais de partidas magistrais, comentadas pelos próprios mestres, a fim de absorver
suas idéias;

- Comentar, por si, finais de partida magistrais para posteriormente comparar com os
comentários dos próprios mestres;

- Analisar e comentar os próprios finais, em partidas de torneio e treinamento.

O segundo tema, na ordem de prioridade, é a tática. Todo o jogador iniciado compreende a


diferença de estratégia e tática, mesmo assim deixarei aqui uma pequena síntese: tática é o
fundamento que engloba as operações forçadas que visam um objetivo específico e imediato -
muitas vezes o ganho material ou mate. Cabe aqui observar a correlação entre tática e
estratégia, fazendo claro o motivo do estudo tático ser priorizado antes do estudo da
estratégia: a estratégia se relaciona aos elementos de longo prazo em uma posição: análise,
avaliação e planejamento - elementos intuitivos e abstratos; a tática se apresenta no imediato
e sempre se revela clara, ao alcance dos olhos. O raciocínio estratégico depende da perícia
tática, senão careceria de objetividade, afinal, todo o bom plano deve prever golpes e
armadilhas; a tática, por sua vez, não depende diretamente da estratégia: é possivel efetuar
golpes táticos sem conhecer sequer o signifcado da estratégia no xadrez (muito embora seja a
perícia estratégica que constrói posições vantajosas e, consequentemente, chances de golpear
a posição adversária, estabelecendo assim uma dependência indireta).

O estudo da tática tem três objetivos:


- Desenvolver a sensibilidade tática - um sentido de alerta que indique quando há perigos ou
oportunidades;

- Aprimorar o poder de cálculo de variantes;

- Preparar o enxadrista para posições taticamente complexas e ricas, onde a análise estratégica
se torna quase ou totalmente supérflua, cedendo o papel principal à sensibilidade tática e ao
cálculo de variantes.

A partir destes objetivos, o treinamento tático exige duas tarefas:

- Encontrar o melhor lance em posições onde um dos lados dispõe de uma operação tática
ganhadora [no popular: realizar exercícios de "joga e ganha"...]

- Selecionar uma posição complexa onde não há, necessariamente, um ganho forçado mas é
rica taticamente para então "desmembrá-la": calcular as variantes consideradas relevantes,
uma a uma, observar os perigos, oportunidades e assinalar uma continuação, tomando nota
de todas as variantes importantes. É interessante usar um tempo limite (de 15 a 40 minutos,
dependendo da posição) e trabalhar na tal posição até que o tempo se esgote - o objetivo não
é encontrar uma resposta "certa", mas calcular de forma ampla, profunda e organizada.

Uma vez construído um repertório razoável de posições de final e estando familiarizado com a
tática, a estratégia deve ser priorizada. Este é, certamente, o fundamento mais importante e
difícil do xadrez. Enquanto o estudo de finais e aberturas resumem-se à fases do jogo, a
estratégia (assim como a tática) está presente ao longo de toda a partida e, diferente da tática,
não é um campo onde há certezas vistas a olho nu: toda a estratégia se baseia em métodos,
indícios e padrões - onde há um enorme espaço para exceções e divergências de opinião.
Como esclarecido acima, a estratégia é o fundamento que trata do longo prazo no xadrez -
análise, avaliação e planejamento -, e é aí que reside o controle sobre os acontecimentos em
uma partida. A estratégia é o maestro dos fundamentos técnicos: está presente nas aberturas,
orienta o caminho correto no final e é o sucesso na luta estratégica que aumenta as
possibilidades de golpes táticos.

O estudo da estratégia se dá em duas etapas, uma de reconhecimento e outra de


aperfeiçoamento.

Na etapa de reconhecimento o enxadrista tem como objetivo dominar a técnica de análise e


planejamento. Para isso ele precisa:

- Conhecer os elementos posicionais (material, posição dos reis, potencial das peças, estrutura
de peões e espaço) e suas representações durante uma partida, quer dizer, as formas como se
apresentam estes elementos no tabuleiro, quais vantajosas ou não, etc. Num estágio inicial,
provavelmente é necessário estudar algum manual de estratégia que descreva os elementos
separadamente.
- Assimilar o modus operandi, o melhor método de jogo em determinadas situações;

- Aprender a analisar, identificando os elementos estratégicos mais relevantes em dada


posição e a avaliar - pesar a posição própria contra a posição adversária, para saber qual lado
está melhor ou se há equilíbrio (estático ou dinâmico);

- Aprender a traçar planos de longo prazo efetivos e coerentes com a análise


posicional/estratégica e com a avaliação.

Depois que o enxadrista domina a técnica de análise e planejamento, precisa desenvolver sua
nova perícia das seguintes maneiras:

- Analisando partidas comentadas por mestres;

- Comentando partidas magistrais por si, para posterior comparação com os comentários do
mestre;

- Comentando as próprias partidas e, de preferência, publicando-as.

Por fim, resta apenas um fundamento, propositalmente deixado para o fim. Os iniciados no
xadrez costumam buscar com avidez o conhecimento neste campo, sem perceber que isso é
pouco ou nada relevante até um determinado estágio de compreensão.

A preparação de aberturas é uma poderosa arma, mas apenas nas mãos daqueles que são
capazes de raciocinar estrategicamente, sobreviver às complicações e dominar os finais. e o
pior: os amadores citeados acima, além de priorizar o estudo de aberturas (como se isso
pudesse melhorar seus resultados por si), ainda as estudam da forma errada, simplesmente
memorizando variantes ou posições chave - essa é a menor das etapas no processo de
preparação, apenas um complemento.

Antes de trabalhar seriamente nas aberturas é preciso desenvolver-se até certo estágio nos
outros fundamentos. Não sei dizer exatamente onde se dá essa divisão de águas, mas acredito
que depende de cada um. O que todo o enxadrista deve ter em mente que a preparação de
aberturas é uma arma de efeito, mas coadjuvante - o que define a disputa é o domínio dos
finais, a compreensão estratégica e percepção tática. Uma boa preparação de aberturas pode,
no máximo, proporcionar um meio-jogo favorável ou mais confortável e alguma vantagem de
tempo no relógio. Raras são as vezes em que uma boa preparação define as coisas
rapidamente - mesmo acertando na abertura, há uma longa luta a seguir.

Conscientes desse princípio, é o momento de explanar a melhor forma de estudar as


aberturas. Como disse acima, memorizar variantes e subvariantes é uma pequena parte do
todo, um complemento. O primeiro passo é selecionar um grupo de aberturas, chamado de
repertório. Por exemplo, escolher se, com brancas, iniciará com 1.d4, 1.Cf3, 1.e4, etc. A partir
de então sobra um número reduzido de aberturas para estudar. Da mesma forma, escolher
uma maneira de combater, com negras, a 1.e4, 1.d4, 1.c4, etc. Assim, com um grupo seleto, o
trabalho requer menos tempo de estudo.

Uma vez selecionado o repertório, começa-se a trabalhar nas aberturas escolhidas, com os
seguintes objetivos em sua respectiva ordem:

- Compreender o fundamento estratégico da abertura - o que há de mais genérico em sua


concepção;

- Dividir a tal abertura em subgrupos, classificados pelo tipo de estrutura e disposição de peças
resultante, e compreender os planos de desenvolvimento plausíveis em cada um desses
subgrupos de posições;

- Familiarizar-se com o tipo de meio-jogo resultante em cada abertura selecionada e os temas


táticos recorrentes;

- Estudar as variantes para aumentar a precisão na hora de conduzir o plano de abertura e


economizar tempo no relógio durante a partida.

Esses quatro objetivos servem para que o jogador se integre com a abertura, esteja
familirizado com seus objetivos estratégicos e por isso não fique sem direção quando sua
memória não puder mais ajudar. Há um ponto importante que engloba todos esses objetivos e
é negligenciado pela maioria dos enxadristas que gastam sua energia estudando aberturas: é
preciso verbalizar as idéias da abertura. Não basta saber os lances; é preciso saber por quê são
feitos, para onde levam e como se portar nos tipos de posição que surgem após a abertura.

O estudo desses quatro fundamentos provê o que o enxadrista precisa do ponto de vista
técnico. Reafirmo que, diferente dos chamados fatores secundários, o desenvolvimento deste
componente da força só depende do próprio esforço e disciplina. Também é importante
acautelar que o desenvolvimento da técnica é uma fase preparatória, anterior às batalhas. O
enxadrista deve, nos intervalos entra as competições, usar todo o tempo que dispor para se
preparar tecnicamente e avaliar suas performances anteriores (a única forma de desenvolver
de forma concreta os componentes secundários da força). No momento da competição não há
tempo nem energia disponível para refletir sobre esses dois componentes:

o único foco do enxadrista deve ser a terceira parte de sua força, que será detalhado em um
próximo post.

FONTE

http://xadrezdojo.blogspot.com.br

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