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O assassinato do santo Niño de La Guardia e as dinâmicas da acusação de crime ritual

contra os judeus na década de 1490

Vinícius de Freitas Morais1

Resumo: O caso da acusação do assassinato do Santo Niño de la Guardia em 1490 provocou


a perseguição de judeus e conversos aos arredores de Logroño. Várias correntes de acusações
de crime ritual estavam presentes por toda a Europa no final do século XV. Nesta lenda, os
judeus eram acusados de sequestrar uma criança, principalmente no período da Páscoa, para
matá-la em um ritual de blasfémia à Crucificação de Cristo. Contudo, neste caso,
diferentemente de outros como o de Simão de Trento (1475), não havia um corpo delito.
Apenas uma denúncia foi analisada e posteriormente se resultou em um conhecido processo
de inquisição. Logo o garoto foi nomeado por alguns clérigos como santo e mártir e a
devoção local ao menino persistiu nos séculos posteriores.
Palavras-chave: Crime Ritual. Libelo de Sangue. Profanação da Hóstia. Inquisição
Antijudaismo.

Abstract: The accusation’s case of Santo Niño de la Guardia in 1490 has caused the
persecution of many Jews and conversos around the region of Logroño. A couple of chains of
accusations, concerning the legend of ritual murder, were present all over Europe in the end of
the fifteenth century. In this legend, the Jews were accused of kidnapping a child, mainly in
Easter, to kill her for ritual purposes. However, in the Guardia’s case, differently as the Simon
of Trent’s case (1475), there was no crime body to confirm a murder. However, there was
only the rumor that resulted in a known process of inquisition. Soon after the boy was
nominated, by some clerics, as a saint and martyr and a local devotion to the boy remained in
the following centuries.
Keywords: Ritual Crime. Blood Libel. Host Desecration. Inquisition. Antijudaism.

1. Introdução
Em meados do século XIII teria ocorrido a primeira acusação de crime ritual no reino
de Aragão na cidade de Zaragoza. O menino Dominguito de Val, aprendiz do coral da Igreja
foi mais uma vítima do ritual anual feito pelos judeus com sangue cristão infantil. Esse garoto

1
Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense (PGGH-
UFF) Bolsista Capes. E-mail: vinicius.freitas94@hotmail.com.

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teria desaparecido em 31 de agosto de 1250, quando tinha sete anos de idade. O bispo da
catedral haveria então afirmado que a vítima havia sido enganada e raptada pelo judeu Mosse
Albayuceto. Após o sequestro, os envolvidos teriam assassinado o garoto em um rito de
simulação da Crucificação de Cristo. Após ter sido morto, Dominguito teria sido decapitado e
enterrado a beira do rio Ebro2.
Contudo outros casos de acusação de crime ritual ocorreriam na peninsula Ibérica,
dentre eles o mais conhecido foi: o do Niño de la Guardia (1490). As repercurssões deste
crime sem cadáver3, foram importantes para políticas locais contra os judeus e conversos que
resultaram em processo de inquisição que durou um pouco mais de um ano. Alguns autores
como Sanford Shepard4, Henry Charles Lea5 e Joseph Pérez6 relacionam esse suposto
assassinato como uma das motivações para a posterior expulsão dos judeus no reino de
Castela. (1492). Este artigo busca problematizar essa relação de causa e efeito, proposta pelos
últimos historiadores, entre essa expulsão oficial vinda da coroa (1492) e o caso de acusação
de crime ritual em La Guardia (1490).

2. O caso de Guilherme de Norwich (1144) e as origens da acusação de crime ritual


As acusações de crime ritual passaram a ser objeto de estudo no final do século XIX,
quando intelectuais como Hermann Strack buscaram desqualificar a acusação por pesquisas
que percebessem não só a origem da acusação, mas também como ela haveria se difundido ao
longo dos séculos no Ocidente. A partir de uma densa averiguação sobre as crenças pagãs
acerca dos variados possíveis usos do sangue humano, Strack anseia descobrir as origens
dessa lenda que ainda em sua época trazia repercussões negativas aos judeus. Em suma, os
estudos iniciais sobre o presente tema buscavam, a partir da percepção de suas origens, provar
como a acusação era apenas uma superstição7.
Em 1889, dois anos antes da publicação do livro Der Blutaberglaube in der
Menscheit, Blutmorte und Blutritus, foi encontrado um manuscrito proveniente de um

2
O Historiador Carlos Forcén e outros questionam a veracidade da existência de um culto direcionado ao Santo
Dominguito de Val anterior ao século XVI devido à falta de fontes, tanto que comprovem um culto ou uma
tradição hagiográfica anterior a este período. Ver: FORCÉN, Carlos Epsí. El corista de “Englaterra”: ¿San
Guillermo de Norwich, San Hugo de Lincoln o Santo Dominguito de Val de Zaragoza? In: Miscelánea Medieval
Murciana, XXXII (2008) p. 51-64
3
PERCEVAL, José Maria. Un crimen sin cadaver: el Santo Niño de La Guardia. In: Historia 16, 202. Fev. 1993.
p. 44-58
4
SHEPARD, Sanford. The presente state of the ritual crime in Spain. In: DUDES, Alan. (Org.) The blood libel
legend: a casebook in anti-semitic folklore. Madison: University of Wisconsin Press, 1991.
5
LEA, Henry Charles. El Santo Niño de la Guardia The English Historical Review, Vol. 4, No. 14 (Apr., 1889)
6
PEREZ, Joseph. Los judíos en España. Madrid: Marcial Pons História, 2005.
7
Cf: STRACK, Hermann. Der Blutaberglaube in der Menscheit, Blutmorte und Blutritus Munique: C. H.
Becksche Verlagsbuchhandlung, 1892. p. 25.

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mosteiro cisterciense da região de Norfolk em uma coleção privada de um antiquário8. Logo o
códice foi doado para a Biblioteca da Universidade de Cambridge e dois intelectuais
Augustus Jessopp e M. R. James propuseram-se a analisar o seu conteúdo e fazer uma
tradução do latim para o inglês, com uma grande introdução condizente ao contexto de
produção deste documento em questão. O manuscrito descoberto em 1887 e analisado pelos
estudiosos Augustus Jessopp e M. R. James trata-se de um conjunto de livros hagiográficos
chamado A Vida e a Paixão de Guilherme de Norwich, uma cópia feita por monges
cluniacenses no início do século XIII e que teria sido escrita originalmente pelo beneditino
Tomás de Monmouth entre 1150 e 11739. A tradução em conjunto com a introdução crítica,
no entanto, seria lançada cinco anos após a obra de Hermann.
Os intelectuais Augustus Jessopp e M. R. James, marcaram uma divisão importante
para os estudos da lenda de crime ritual. Ambos propuseram que acusação feita em Norwich
foi baseada em um trecho da obra Contra Apião, escrita por Flávio Josefo no séc. I d.C. A
passagem mencionaria que a cada sete anos os judeus capturariam um gentio, o torturariam,
comeriam a carne da vítima e fariam um discurso de maldição contra todos os gregos. No
entanto posteriormente, Jessopp conclui como Teobaldo de Cambridge se constitui como o
principal culpado para a formação da lenda pois ao descrever o simbólico enforcamento do rei
Hamã feito na festa de Purim e, a partir de uma distorção interpretativa desta comemoração
judaica, Tomás de Monmouth, monge beneditino de Norwich haveria criado a acusação de
crime ritual10.
Uma mudança significativa dos estudos acerca da acusação de crime ritual só pode ser
percebida com as proposições de Gavin I. Langmuir que ainda são levadas em consideração
ou questionadas por estudos recentes do tema. A historiadora Emily Rose, por exemplo, ainda
assume várias considerações do último autor em seu livro publicado recentemente em 2015.
Em suma, Gavin Langmuir não se distância muito da proposta dos autores anteriores e o
presente historiador ainda se preocupa com as possíveis origens da acusação de crime ritual.
Apesar de enfatizar não estar preocupado em encontrar um possível culpado para a morte de
Guilherme nas narrativas feitas pelo monge Tomás de Monmouth, Langmuir retoma essa
questão ao longo do seu texto Thomas of Monmouth: detector of ritual murder. Se
anteriormente, James e Jessopp teriam posto Teobaldo de Cambridge como bode expiatório

8
LANGMUIR, Gavin L. Toward a definition of antisemitism. Los Angeles: University of California Press, 1990
p.210
9
Ibid. p.209
10
JESSOPP, Augustus; JAMES, Montague Rhodes. The Cult and Iconography of William of Norwich, In: The
Life and Miracles of William of Norwich. Cambridge: University of Cambridge Press, 1892.

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para as perseguições entre os séculos XII ao XIX que essa narrativa, identificável a partir do
caso de Norwich (1144), teria proporcionado, Langmuir transfere toda a responsabilidade para
o monge Tomás de Monmouth ao afirmar:

Tomás foi uma figura influente na formação da cultura ocidental. Ele não alterou o curso das
batalhas, da política ou da economia. Ele não resolveu problemas de ordem filosófica ou
teológica. Ele não foi conhecido por possuir uma santidade ao longo de sua vida ou por
promover o oficio monástico. Com a ajuda de um judeu convertido comum, ele criou um
mito que afetou a mentalidade ocidental dos séculos doze ao vinte e causou mais mortes do
que o assassino de Guilherme poderia jamais sonhar em cometer11.

A tese de Langmuir, no entanto, não deve ser completamente descartada haja vista os
fortes indícios demonstrados por esse historiador para sustentar como a difusão da lenda em
questão teria ocorrido a partir do assassinato de Guilherme. Langmuir argumenta como uma
crescente referência às acusações de crimes rituais nas crônicas universais, escritas em
diferentes regiões na Europa, é perceptível, apenas a partir de meados do século XII. A
expansão da lenda teria como ponto de partida o reino inglês e posteriormente se difundiria,
no decorrer das décadas, no reino francês, no Sacro-Império Romano Germânico e na
península ibérica12. Esses indícios evidenciariam o pioneirismo do caso de Norwich (1144).
O ponto mais importante das considerações de Langmuir é como Tomás de Monmouth
teria sido o primeiro a escrever uma acusação, na qual os judeus seriam articuladores de uma
crucificação de cristãos13. O autor não nega que os judeus tenham sido alvo de discursos
acusatórios que envolviam o infanticídio durante a Antiguidade e a Alta Idade Média, e, no
entanto, vê uma descontinuidade entre as proposições do monge Tomás com outras anteriores
lendas de gênero similar e desta forma afirma que acusação seja inspirada na obra Contra
Apião, escrita por Flávio Josefo14. Como a associação de um infanticídio a uma crucificação
ainda não era comum na época, a mesma não teria sido mencionada por alguns cronistas
ingleses e franceses que citaram o incidente de Norwich. Em seus escritos no final do século
XII, eventualmente se afirmava que Guilherme havia apenas sido assassinado pelos judeus,

11
Tradução nossa do trecho: “Thomas of Monmouth was an influential figure in the formation of Western
culture. He did not solve no philosophical or theological problems. He was not even noteworthy for the holiness
of his life or promotion to monastic office. Yet with substantial help from an otherwise unknown converted Jew,
he created a myth that affected Western mentality from the twelfth century and caused, directly or indirectly, far
more deaths than William’s murder could ever dreamt of committing. LANGMUIR, Gavin I. Op. Cit. p. 234 –
235.
12
Ibid. p. 284 – 287.
13
Ibid. p. 282 – 283.
14
Langmuir argumenta como copias desta obra eram raras no Ocidente Medieval e como o texto tinha uma
relevância pífia no século XII e provavelmente o monge Tomás não teve acesso a obra. Cf: LANGMUIR, Gavin
L. Op. Cit. p. 212 - 215.

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mas não crucificado15. Em contrapartida, nota-se uma evidente difusão relativamente rápida
que se configurou em outras acusações, pautadas nas mesmas premissas do monge Tomás,
como as de Harold de Gloucester (1168), Ricardo de Pontoise (1179) e Roberto de Bury
(1181)16.

3. O surgimento da acusação de sangue e a posição da cúria papal no século XIII


Entre o final do século XII e meados do XIII, nenhum culto a uma criança vítima de
crime ritual se formou nem na Grã-Bretanha e nem no continente europeu17. No entanto no
século XIII importantes modificações na dinâmica das relações entre judeus e cristãos
ocorreriam e outras duas lendas novas surgiriam são essas: libelo de sangue e a profanação da
hóstia. Robert Stacey e Gavin Langmuir identificam a confirmação do dogma da
transubstanciação no IV Concílio de Latão (1215), a principal causa para a emergência das
duas supracitadas narrativas acusatórias. Essas lendas teriam suas origens a partir do incidente
de Fulda (1235) e da suposta hóstia roubada em Paris (1290), respectivamente.
Langmuir afirma que a historiografia, por diversas vezes, confundiu as acusações de
crime ritual feitas no período entre 1150 a 1235 nos reinos francês e inglês com o libelo de
sangue que só é identificável a partir do infanticídio ocorrido no natal de 1235 nas
proximidades do mosteiro de Fulda18. Apesar dos autores Hermann Strack, Joshua
Trachenberg e Cecil Roth apontarem em seus estudos que havia uma diferença entre
blutbeschuldigung (libelo de sangue) e ritual murder (crime ritual), a historiografia do século
XX teria se prendido ao verbete blood accusation presente na The Universal Jewish
Encyclopedia que afirma como o primeiro caso de libelo de sangue teria sido o assassinato de
Guilherme de Norwich (1144)19.
A definição de crime ritual seria, de acordo com Langmuir, basicamente “como o
assassinato de um humano, não meramente por motivações de ódio religioso, mas de uma
maneira que a forma do assassinato é, ao menos, em parte determinada por ideias

15
Assim como haveria assassinatos, atribuídos, nos quais a acusação de crime ritual não é mencionada - dentre
estes: Wützburgo (1147), Blois (1171), Gloucester (1168) e outros. Cf: Ibid. p.284. Além da menção da acusação
de crime ritual, Langmuir argumenta como a Anglo-Saxon Chronicle, escrita entre 1154 e 1155, cita a morte de
Guilherme de Norwich como uma crucificação e, no entanto, atribui o crime ao ano de 1137. Esse erro de
datação seria um indicio para provar como este cronista se baseou em rumores para escrever esse acontecimento
em sua crônica. Cf: Ibid. p.283. Em contrapartida, o autor também enumera o expressivo número de casos em
que os cronistas utilizam a palavra crucificação para qualificar os infanticídios, tanto o de Guilherme, como os
posteriores já ocorridos no século XII Cf: Ibid. p. 284- 285.
16
Ibid. p. 234 – 236.
17
STACEY, Robert C. From ritual crucifixion to host desecration: Jews and the Body of Christ. In: Jewish
History, Vol. 12 No. 1 (Spring, 1998) p. 23
18
LANGMUIR, Gavin L. Op. Cit. p. 266
19
Ibid. p.267.

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alegadamente ou, na verdade, importantes na religião dos assassinos ou das vítimas” 20. Ao
escrever essa definição, o autor tomou como referência a acusação presente no livro do monge
Tomás. Como apontada anteriormente, a morte de Guilherme de Norwich foi motivada por
um rito que não era apenas baseado no ódio religioso dos judeus, mas também por questões
importantes para os próprios praticantes, a principal dela seria: o sacrifício de crianças cristãs
promoveria a volta judaica para a Terra Prometida.
O libelo de sangue seria a acusação que afirma como os judeus matavam uma criança
para adquirir o seu sangue e assim usá-lo em outros rituais ou para fins medicinais21. Na
esteira de Hermann Strack, Langmuir afirma que não há nenhuma documentação que
afirmasse o suposto uso do sangue cristão feito pelos judeus antes de 123522. Por esse víeis o
incidente de Fulda em 1235 seria primordial para uma possível origem desta acusação que
logo após permaneceria em simbiose com a lenda de crime ritual.
No dia 26 de março 1247, os judeus de Valréas, uma cidade próxima de Avignon
foram acusados por dois franciscanos de crucificar uma menina de dois anos chamada Meilla
e tirar o seu sangue para fins rituais. A acusação veio inicialmente da mãe da menina que
alegou como sua filha teria sido vista pela última vez na rua dos judeus. O barão local
chamado Draconet se recusa a procurar a menina e, no entanto, logo o corpo da criança é
encontrado em um poço. Logo três judeus foram presos e, em julgamento, após algumas
seções de tortura, confessaram aos clérigos o suposto crime, o ritual anual que era feito por
sorteio em lotes. A cidade de Valréas haveria ficado responsável, naquele ano, pelo sacrifício
e pela coleta do sangue da vítima que posteriormente seria distribuído pela comunidade
judaica da região23.
Uma bula papal seria emitida no dia 28 de maio do mesmo ano, uma crítica direta,
tanto à acusação de sangue contra os judeus, como ao julgamento e morte dos acusados,
motivada graças a uma reclamação que teria sido levada pelos judeus à cúria papal:

Portanto foi tanto o zelo indigno como a detestável crueldade por parte dos cristãos, que
cobiçam as possessões dos judeus e estão sedentos pelo seu sangue. Eles roubam, torturam e
os matam sem nenhum julgamento legal, contraindo a clemencia da religião católica que os
permite a viver no meio dos cristãos, a mesma que decretou tolerância aos seus ritos. Os
20
Tradução nossa do trecho: “as the killing of a human, not merely from motives of religious hatred, but in such
a way that the form of the killing is at least partly determined by ideas allegedly or actually important in the
religion of the killers or the victims.” Ibid. p.240.
21
Ibid. p. 240.
22
Ibid. p. 268.
23
Resumo do caso baseado nas considerações do intelectual Grayzel presentes na nota de rodapé II Cf:
GRAYZEL, Solomon. The Church and the Jews in the XIIth Century: a study of their relations during the years
1198-1254, based on the papal letters and the conciliar decrees of the period. Philadelphia: The Dropsie College
for Hebrew and Cognate Learning, 1933. p. 264 – 265.

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judeus que moram em seu distrito trouxeram recentemente ao trono apostólico a triste
reclamação que certos prelados e nobres daquela província, causaram um abalo entre eles.
Eles culparem os judeus pela morte de uma certa menina que diz ter sido secretamente morta
em Valréas. Alguns entre os judeus, pensaram que não estavam nem legalmente convictos,
nem haviam confessado e, no entanto, foram cremados desumanamente na estaca24.

4. Parâmetros entre o libelo de sangue e a profanação da Hostia: o corpo de cristo


violado
À medida que a transumância se tornou essencial para o rito cristão a partir do século
XIII, no mesmo período, as acusações de profanação da hóstia começaram a ser relatadas25.
Embora o sacramento da eucaristia tivesse como principal objetivo a real presença de Deus na
hóstia e relembrar aos cristãos o triunfo de Cristo diante de sua morte, o seu corpo
manifestava sacralidade pela oposição entre sua vulnerabilidade e seu poder. Desta forma, a
hóstia sempre triunfaria apesar de estar suscetível a possíveis profanações, estando a sua
vitória relacionada à justiça dos fiéis cristãos e à derrota dos incrédulos26.
O alvo principal destas acusações eram os judeus, apesar da mesma também ser
lançada aos dissidentes27. O IV Concílio de Latrão, além de postular a doutrina da
transubstanciação como um dogma, também estabeleceu medidas para limitar as esferas de
contato entre os cristãos e judeus como por exemplo: a proibição do casamento entre os dois
grupos. Um ponto essencial a ser observado é como a presença judaica nas ruas, durante a
Semana Santa, também foi proibida no mesmo concílio, o que demonstra um certo receio de
possíveis profanações da eucaristia ou da quebra de crucifixos28. Apesar desse concílio não
ter traçado uma conexão estrita entre os judeus e a exposição da hóstia, os esforços feitos para
garantir uma separação entre a comunidade judaica e a presença do Corpo de Cristo
demonstram mais uma vez o acirramento das relações entre os judeus e os cristãos no período
em questão.
Uma das primeiras acusações de profanação da hóstia foi feita em 1290, na cidade de
Paris e está mencionada no livro Chronicon ecclesiae sancti Dyonisii29. A narrativa se baseia

24
Tradução nossa do trecho: “Propterea Christianorum est aut illaudabilis zelus aut detestanda crudelitas qui,
rerum cupidi vel avidi sanguinis eorundem, ipsos contra Catholice religionis mansuetudinem, que illos in suam
cohabitationem admittens in propriis decrevit ritibus tolerandos, sine judicio spoliant, lacerant et occidunt. Sane
Judei degentes in tua provincia flebilem nuper ad Sedem Apostolicam querimoniam detulerunt quod quidam
prelati et nobiles ejusdem provincie, ut in ipsos haberent materiam seviendi, eis cujusdam puelle que apud
Valria furtim perempta dicitur interitum imponentes, quosdam ipsorum non convictos legitime nec confessos
flammis ignium inhumaniter cremaverunt.” Cf: Bula CXIII in: Ibid. p.262.
25
Ibid. p. 40-44.
26
HSIA, Po-Chia R. Trent 1475: stories of a ritual murder trial. New Haven: Yale university press, 1992. p.4.
27
RUBIN, Miri. Gentile Tales: The Narrative of Assault on Late Medieval Jews. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1999. p. 40.
28
Ibid. p. 29.
29
Ibid. p. 40.

983
numa mulher cristã que haveria vendido uma hóstia que obteve por intermédio de um padre
para um judeu na Semana Santa. Este último homem, após várias tentativas de quebrar a
hóstia consagrada utilizando martelo e pregos, não conseguiu desintegrar o signo do corpo
divino. Logo após a tentativa de profanar o corpo de cristo, o judeu veria o milagre do
escorrimento do sangue vindo do sacramento que havia comprado. Uma outra mulher após
tomar conhecimento do milagre relata o ocorrido para o bispo da cidade. O desfecho é a morte
do judeu profanador, a punição da mulher má, a glorificação da relatora e a construção de
uma capela no lugar do suposto crime. Em julho de 1295, o papa Bonifacio VIII manda uma
carta ao bispo de Paris Raynier Flaming permitindo a construção desta igreja30.
Como aponta Miri Rubin, na maioria das narrativas da profanação da hóstia, uma
mulher consegue a eucaristia para os judeus, uma outra mulher relataria o abuso e então um
padre faz o intermédio para o retorno e o tratamento apropriado para a hóstia milagrosa 31. Há
uma oposição de vícios e virtudes sugerida por estas histórias. A mulher que compra o
sacramento de um padre, neste caso ambos cristãos visam ao lucro pessoal por meio de sua
venda ilícita feita aos infiéis. Por conseguinte, esses personagens são associados ao vício da
usura, defeito associado geralmente aos judeus. No caminho oposto, há a mulher que relata a
profanação e o milagre da hóstia assim como o padre que investiga o caso. Esses dois últimos
são vistos como a fiel e o clérigo exemplares por disporem um tratamento adequado ao
sacramento e por punir os cristãos e os judeus envolvidos. A esses bem-aventurados,
salvadores da hóstia roubada e vendida aos judeus, é associada à virtude da coragem 32. A
punição final para essas narrativas seria a morte do profanador, que sempre era um homem
judeu. Por sua vez os seus filhos e sua mulher seriam subjugados à conversão 33; punições
idênticas àquelas decretadas pelos processos de inquisição contra as três famílias judaicas de
Trento em 1475.
As narrativas do libelo de sangue e da profanação da hóstia estariam pautadas em um
reforço da aura sagrada do sacramento da Eucaristia pautada na real presença do Corpo e
Sangue de Cristo. À medida que os judeus eram vistos como os céticos desse importante
momento da missa, era necessário conferir aos ritos judeus parâmetros de comparação com
aqueles feitos pelos cristãos. Uma vez que se assumisse que o momento da consagração da
Hóstia era feito como uma memória ao sacrifício de Cristo, a profanação da hóstia e o crime
ritual possuiriam o papel inverso. Nessa inversão, de maneira progressiva se enxergava como

30
Ibid. p. 41 – 44.
31
Ibid. p.73.
32
RUBIN, Miri. Op. Cit. p.79.
33
STACEY, Robert C. Op. Cit. p. 15.

984
o exercício dos rituais judeus eram uma constante ameaça à fé cristã. Nesse embate de
significados rituais, em uma mesma medida se garantia não só a noção de pertencimento e
união cristã, mas um afastamento aos dissidentes e judeus, ponto que explicaria um
acirramento nas relações entre ambas as partes a partir do século XIII e o seu posterior ápice
no século XV.
De maneira similar, nota-se progressivamente como as narrativas do libelo de sangue e
da profanação da hóstia poderiam se mesclar em alguns pontos. O primeiro seria os objetos de
tortura utilizados pelos judeus em ambos os rituais. Na violação da hóstia como no momento
da flagelação do corpo dos meninos eram utilizados pregos e martelos. Em ambos os casos, o
resultado era o sangramento consequência da violação do Corpo de Cristo. O sangue jorrado
da hóstia confirmava a real presença de Cristo no sacramento. De forma similar, no crime
ritual a partir do momento em que a criança sangrava, confirmava-se como a pequena vítima
tomava o lugar de Jesus na hora de sua morte.

5. O caso do Niño de la Guardia: o crime sem corpo delito


O caso de La Guardia é indiretamente ligado à fundação da Inquisição Ibérica (1478) e
ao reino de Ferdinando e Isabela34. Apesar da Inquisição, em teoria, se ocupar em julgar
apenas os cristãos e os conversos, era difícil estabelecer uma linha efetiva de separação entre:
conversos, judaizantes e judeus. Desta forma, todos esses três últimos grupos ficavam sobre
uma constante áurea de suspeita para o tribunal do Santo Ofício35. Como defende Joseph
Perez, a luta contra os falsos conversos ou judaizantes parecia exigir uma extinção do
judaísmo no reino de Castela36 que havia já expulsado o domínio mouro de toda a península
Ibérica em 1492:

As dúvidas de Isabela frente a introdução da Inquisição foram removidas aparentemente pela


fortuita descoberta de uma assembleia de cristãos novos judaizantes em Sevilha, Seus
escrúpulos e aqueles de Ferdinando em expulsar os judeus foram balançados pelo incidente
do Santo Niño de la Guarda, o qual veio a luz em um curto laço do tempo, quando a
reconquista fez cair o reino de Granada, surgiu a promessa: a península inteira, de mar a mar,
seria inquestionavelmente dominada pela Cruz37.

34
SHEPARD, Sanford. The presente state of the ritual crime in Spain. In: DUDES, Alan. (Org.) The blood libel
legend: a casebook in anti-semitic folklore. Madison: University of Wisconsin Press, 1991.
35
PEREZ, Joseph. Op. Cit. p.185.
36
Ibid. p.185.
37
Tradução nossa do trecho: “Isabella’s doubts as to the introduction of the Inquisition were removed by the
apparently fortuitous Discovery of na assembly of judaising New Christians in Seville. Her scruples and those of
Ferdinand as to the expulsion of the Jews were shaken by the incident of the Santo Niño de la Guardia, which
came to light in the very nick of time, when the approaching downfall of the kingdom of Granada gave promise
that the whole peninsula, from sea to sea, would be under the unquestioned domination of the cross.” LEA,
Henry Charles. Op. Cit. p. 229-250

985
Em 16 de novembro de 1491, o tribunal referente ao assassinato do “Niño de La
Guardia” chega ao fim, após quase um ano de seguimento. Três judeus e cinco conversos são
condenados à morte e queimados vivos em praça pública posteriormente38. No dia primeiro de
junho de 1490, um cristão-novo da pequena vila de La Guardia chamado Benito Garcia fez
uma pequena parada na cidade de Astorga que mudaria o curso de sua viagem de volta para
casa. Dois bêbados na localidade descobrem, na bolsa de Benito, uma hóstia consagrada
roubada. Logo o converso é denunciado e precisa responder diante do vicário episcopal Pedro
de Villada. Após ser preso, Benito é submetido a uma série de torturas que o faria confessar
seus supostos crimes contra à fé cristã39.
As atas do processo referentes ao dia 6 de junho de 1490 relatam o passado judaizante
do Benito Garcia. Após algumas torturas, o acusado revelou ter feito um conjunto de ações
como: comer carne nas sextas e nos dias de vigília dos santos, descansar no sábado para
realizar cerimônias judaicas e trabalhar no domingo, dia de repouso para os cristãos. Além
dessas ações, Benito afirma que, em seus cinco anos como converso, nunca haveria acreditado
em Jesus Cristo e na Virgem Maria:

Dizendo que não existia Jesus Cristo, nem Virgem Maria e que a lei de Moisés era a
verdadeira e a qual, concebendo-o assim; e que, crendo nela, fez muitas obras judaicas e que
as fazia, mas apenas se tivesse lugar. E ao perguntar quais obras fez, ele disse que era: não ir
à Igreja, nem guardar as festas; e que comia carne nas sextas e nas vigílias dos santos na casa
de Mosé Franco e Yucé Franco judeus vizinhos de Tenbleque (Toledo), e onde ele podia
comer sem que o vissem40.

Por decreto do D. Alonso de Guevara no dia 17 de dezembro ficaria decidida a prisão


dos acusados: Alonso Franco, Lope Franco, Garcia Franco, Yucé Franco, Mosé Abenamías,
Juan de Ocaña e Benito García; o principal acusado. As atas mencionam que cada um foi
preso, no cárcere da Santa Inquisição da cidade de Segóvia, devido aos seus crimes cometidos
não só pessoalmente, mas também em grupo41. Os esparsos relatos, feitos por Benito Garcia e
outros acusados, entre julho e dezembro de 1490, levaram o tribunal do Santo Ofício a

38
Ibid. p.186
39
KRIEGEL, Maurice. La prise d’une décision : l’expulsion des juifs d’Espagne en 1492. In : Revue Historique,
T. 260, Fasc. 1 (527) (Juillet-Septembre 1978), p. 83.
40
Tradução nossa do trecho: “desiendo que non avía ihesu christo, nin Santa maría, é que la ley de moysén era
la verdadera; y quél, concibiéndolo dél ansí, lo creía; é que, creyéndolo, fiso muchas obras judaycas, é que
fesiera más si toviera logar. É preguntado quáles fiso, dixo que era non ir á la iglesia, ni guardar las fiestas; é
que comía carne los viernes y las vigilias de los Santos en casa de mosé franco é yucé franco judíos vesinos de
tenbleque, é donde él la podía aver é comer sin que gela viesen.” Cf: FITA, Fidel. La Verdad sobre el martirio
del santo Niño de la Guardia. Madrid: Boletín de la Real Academia de la Historia v. II, 1887. p.60.
41
Ibid. p. 9-11

986
descobrir gradualmente mais cúmplices envolvidos nos crimes da profanação da hóstia e do
assassinato do Niño de la Guardia que seriam confessados ao longo desse processo42.
Como afirma o historiador Paulino Rodríguez Barral, o testemunho dado por Yucé
Franco, algumas semanas antes da prisão dos acusados, teria sido o estopim para o
convencimento dos inquisidores acerca do envolvimento dos acusados em um crime ritual43.
Yucé confessou no dia 27 de outubro de 1490 que durante uma de suas visitas a La Guardia
para comprar trigo, Alonso Franco e algum de seus irmãos teriam crucificado uma criança em
uma Sexta-feira Santa, como lembrança da Fuga dos judeus do Egito. A criança assumiria não
só o papel do cordeiro sacrificado na época de Moisés, mas também do próprio Jesus
crucificado:

E esta testemunha disse que para fazer o pão ázimo para sua Páscoa. E para ele, Alonso
Franco, a testemunha diz que o perguntou: para que faziam este pão ázimo? E, para esta
testemunha, respondeu que era para a lembrança de quando Deus tirou os judeus da terra do
Egito. E que depois de palavra a palavra, o dito Alonso Franco disse a essa testemunha como
na Sexta-feira da Cruz havia trazido um carneiro a sua casa e o havia escolhido e o degolado.
[...] E logo depois de tê-lo dito a esta testemunha, de palavra a palavra, como em uma Sexta-
feira da Cruz o dito Alonso Franco e alguns de seus irmãos, os quais não nomeou, haviam
crucificado um menino como Jesus Cristo44.

Na demanda intitulada pelo D. Alonso de Guevara contra Yucé Franco, no dia 17 de


dezembro de 1490, é mencionado o envolvimento dos réus no assassinato do Niño de La
Guardia e na profanação da hóstia consagrada. Ambos rituais teriam como propósito:
confrontar e ridicularizar a fé católica. A violação da hóstia com uma faca seria equivalente a
uma mácula feita no corpo de Jesus e o assassinato da criança seria uma reconstituição da
Crucificação de Cristo. Por ambas as práticas, como afirma o inquisidor, os judeus
conseguiam praticar os mesmos atos horrendos que seus antepassados:

E com ânimo infiel e depravado foi juntamente com outros crucificar um menino cristão em
dia de Sexta-feira Santa, quase da forma cruel a qual os antepassados dos judeus
crucificaram o nosso Redentor Jesus Cristo, em escárnio e escrúpulo e dando-lhe muitas
bofetadas e abrindo outras feridas para violar e burlar a nossa santa fé católica e a Paixão de
nosso Salvador Jesus Cristo. Item contratou e fez um contrato, como principal, juntamente

42
BARRAL, Paulino Rodríguez. La Imagen del judío en la España Medieval: el conflito cristianismo y
judaísmo en las artes visuales góticas. Barcelona: Publicaciones i Edicions de la Universitat de Barcelona, 2009.
p.220-221
43
Ibid. p. 220-221.
44
Tradução nossa do trecho: “É este testigo le dixo que para faser el pan cenceño para su pascua. É el dicho
Alonso franco le demandó que para qué fasían este pan cenceño? É este testigo le respondió que á remenbrança
de quando dios sacó los judíos de tierra de egito. É que después de habla en habla, el dicho Alonso franco le
dixo á este testigo commo un viernes de la crus avía traído un carnero á su casa, é lo avía catado é lo avía
fallado trefe […] É luego después desto le dixo á este testigo de habla en habla commo un viernes de la crus el
dicho Alonso franco é algunos de sus hermanos, los quales no le nombró, avían crucificado un niño á la forma
que los judíos avían crucificado á ihesu christo.” FITA, Fidel. Op. Cit. p. 28

987
com outros, para obter uma hóstia consagrada para ultrajá-la ou escarnecer em ódio e
menosprezo a nossa santa fé católica, e porque entre outros judeus, com sorte no delito, é
certo como dito que havia certos feiticeiros, e um dia de sua Páscoa, com pão ázimo haviam
de comungar, com a dita hóstia e com o coração de um menino cristão e assim foi feito desta
forma e dessa maneira foi dito: todos os cristãos haveriam de morrer fumegantes45.
Nota-se como um crime, que supostamente havia sido cometido por um grupo de
judeus, estende-se para todos os judeus existentes e seus antepassados. A comunidade judaica
era claramente associada como culpada pela Crucificação de Cristo, além de serem vistos
como uma ameaça que exigia uma atenção constante de todos os cristãos. Seus ritos religiosos
são demonizados e associados a uma sucessão de maldições dirigidas a toda cristandade.
Durante a ceia da Páscoa judia ocorreria não só as cerimônias que caberiam as práticas
judaicas, mas também a violação do mais sagrado sacramento cristão e uma paródia da Paixão
de Cristo feita a partir de um infanticídio. No momento da morte do Santo Niño de la
Guardia, os judeus teriam professado a seguinte maldição direcionada a todos os cristãos:

Especialmente o diziam quando o açoitavam: A este traidor, enganador, que quando


pregava, pregava mentira contra a lei de Deus e contra a lei de Moisés; e agora pagarás
aqui pelas coisas que dizias naquele tempo. E o que diziam os ditos judeus Don Ça Franco e
Mosé Franco (defunto), Yucé Franco e seus filhos, mestre Yuça Tazarte e David Perejón:
Agora pagarás aqui o que fizeste em outro tempo; que pensaste desfazer de nós e exaltar a ti
mesmo; que mais mal há de haver ainda que isto; que pensaste em destruir a nós e nós
destruiremos a ti, como o falso enganador. Essas coisas disseram, os mencionados acima,
judeus e cristãos, quando estavam crucificando o menino e lhe fazendo outros insultos46”.

As múltiplas contradições desse processo são apontadas pelas suas próprias atas,
dentre elas: a falta de um corpo delito, desconhecimento do nome da criança assassinada e
ainda a fala de um dos réus que lembra como o julgamento do tribunal de Santo Ofício só

45
Tradução nossa do trecho: “É con ánimo infiel y depravado fué juntamente con otros en crucificar un niño
christiano en un día de viernes santo, quasi de la forma é con aquella enemiga é crueldad que los judíos sus
antepasados crucificaron á nuestro Redentor ihesu christo, escarnesciéndole é escupiéndole é dándole muchas
bofetadas é otras feridas por vituperar é burlar de nuestra santa fe católica é de la pasión de nuestro Salvador
ihesu christo. Item contrató é fizo contrato é monipodio, commo principal, juntamente con otros, para aver una
ostia consagrada por la ultrajar ó escarnecer en vituperio é menosprecio de nuestra santa fe católica, é porque
entre los otros judíos, consortes en el delicto é concierto susodicho, avía ciertos hechizeros, é en un dia de su
pascua de pan cenceño avía de comulgar 22con la dicha ostia é con un coraçón de un niño christiano; é así
fecho en la forma é manera que dicho es, todos los christianos avían de morir raviando.” FITA, Fidel. Op. Cit.
p. 12-13
46
Tradução nossa do trecho: “especialmente le desían todos muchos vituperios al dicho niño contra la fee de
ihesu christo, así como si ihesu christo nuestro Señor estoviera allí; especialmente le desían quando la
açotavan: Á este traydor, engañador, que quando predicava, predicava mentiras contra la ley de Dios é contra
la ley de moysén; é agora pagarás aquí las cosas que desias en aquel tienpo. É que desían los dichos judíos don
ça franco, é mosé franco defunto, é yucé franco sus fijos, é maestre yuçá tazarte é david de perejón: Agora
pagarás aquí lo que fesiste en otro tienpo; que pensaste desfaser á nosotros é ensalçar á tí; que más mal has de
aver aún questo; que pensaste destruir á nosotros e detroiremos á tí, commo á falso engañador. E questas cosas
desían los susodichos christianos é judíos, quando estavan crucificando el dicho niño é fasiéndole los otros
vituperios” FITA, Fidel. Op. Cit. p.63-64.

988
caberia, em teoria, aos cristãos e aos conversos47. Como afirma Barral, em nenhum momento
nota-se a preocupação do tribunal da inquisição em encontrar o corpo do menino assassinado
e nada é dito sobre os pais da criança48. As faltas de provas concretas do crime e a posterior
expulsão dos judeus após três meses do reino de Castela não são uma relação de causa e
efeito, mas como defende o historiador Yitzhak Bear é possível traçar uma relação entre a
efervescência antijudaica na península Ibérica e o edito de expulsão, a qual, permitiu como
resultado que acusações sem provas se tornassem longos processos que reforçariam o
antijudaísmo. Mesmo que o Edito de Expulsão dos Judeus de 1492, não mencione o processo
inquisitorial em questão, como podemos não o associar às repercussões contra a comunidade
judaica vide o caso de La Guardia49? :

O primeiro é, por quanto, muito geral, vaga e obscura; porque em sua denúncia não diz e não
se exprime e nem se esclarece os lugares, nem anos, nem meses, nem dias, nem tempos, nem
pessoas, em que e com que o acusado cometeu os delitos de que o denunciam, nem as
fronteiras dos ditos lugares, não guarda as solenidades necessárias, em tal caso, em relação à
lei da petição; porque, posto que a expressão do acima mencionado por ventura em outro
documento poderia cessar, por ser o crime tal; mas em minha parte, sendo judeu, não se
poderia dizer propriamente e nem verdadeiramente que eu tenha cometido um crime de
heresia ou apostasia50.

O principal crime, ou seja, o infanticídio é descrito em detalhes em uma das confissões


de Yucé Franco feita sob tortura. Esta descrição é primordial para o posterior culto ao menino
pois é esta que faz o parâmetro entre os sofrimentos da criança sacrificada e de Jesus Cristo.
A Crucificação do Niño teria sido feita numa caverna, perto de um caminho que levava a
Villapalomas. Em conjunto os judeus pegariam o garoto, colocá-lo-iam em uma cruz para
depois sujeitá-lo a todas as dores de Cristo, inclusive à Coroação de espinhos. Posteriormente
o menino seria açoitado com um cinto em alusão direta à Flagelação de Jesus e, finalmente, a
criança seria morta e teria seu coração tomado pelos judeus. Posteriormente, numa tentativa
de esconder as evidências desse crime, os réus enterrariam o corpo nas redondezas:

47
Posteriormente a tradição hagiográfica no século XVI vai atribuir a falta do corpo com um milagre feito por
Deus para confirmar a santidade do Niño de la Gaurdia e um nome Cristóbal será relacionado a esse pequeno
santo.Ver: BARRAL, Paulino Rodríguez. Op. Cit. p.223
48
Há apenas uma referência ao nome do pai do menino que teria sido confesado por Juan de Ocaña que haveria
afirmado que a vitima seria filho de um homem chamado Alonso Martín de Quintanar FITA, Fidel. Op. Cit. p.
64.
49
BAER, Yitzhak. A History of the jews in Christian Spain vol. II . Illinois: Varda Books, 2001. p. 437-439.
50
Tradução nossa do trecho: “Lo primero es por cuanto es muy general vaga y obscura; porque en su
denunciación no dize exprime ni aclara el dicho fiscal los lugares, ni años, ni meses, ni días, ni tiempos, ni
personas, en que y con que dize quel dicho mi parte cometió los delictos de que le denuncia, ni los linderos de
los dichos lugares, ni guarda las solennidades nescesarias, en tal caso, de la ley libellorum; porque, puesto que
la expresión de lo susodicho por ventura en otro documento pudiera cessar, por ser el crimen tal; pero en mi
parte, que siendo judío no se puede propia ni verdaderamente dezir ayer cometido crimen de herejía ó
apostasía.” FITA, Fidel. Op. Cit.p.17

989
Estando sob tortura, disse e confessou que ele, o dito judeu Yucé Franco, com outros cristãos
e judeus haviam crucificado um menino cristão em uma caverna, que estava à beira de uma
encosta, à caminho de Villapalomas, juntamente com outros; e que o crucificaram com dois
fios, que levaram para Santa Maria de Pera, um fio que era de cordeiro, um fio era
pertencente a parte superior de uma carroça; e que ataram os tais fios com uma corda lançada
em formato de cruz, e em primeiro lugar ataram os pés e as mãos do dito menino à dita corda
e puseram na dita cruz; e depois o encravaram os seus pés e as suas mãos; e que o dito
menino soltava vozes estando na cruz; e para que não fizesse barulho o amordaçaram. [...] E
disse esta testemunha que açoitaram o dito menino com um cinto, e puseram em sua cabeça
um coroa de ervas, tudo por escárnio e vitupério ao nosso Senhor Jesus Cristo; e sacaram-lhe
o coração por debaixo da costela com uma faca, e que levaram o dito menino para ser
soterrado em um vinheiro de Santa Maria de Pera51.

O desfecho do tribunal foi a queima dos judeus em praça pública, as atas mencionam
que alguns acusados, que ainda eram judeus, se converteram, podendo assim ainda encontrar
a misericórdia em Deus para apenas dizer suas culpas e morrer eternamente em suas
sepulturas no Inferno52. Aponta-se, também, a não descoberta do corpo no vinhedo do vilarejo
de Santa Maria de Pera, apesar das coordenadas detalhadas obtidas com os testemunhos dos
acusados sob torturas53. Por fim é mencionado, nos processos inquisitoriais em questão, que
um culto se formou logo após o infanticídio no local próximo, onde se acreditava, que o
menino havia sido enterrado. O texto ainda demonstra uma súplica do autor a Deus para que
os ossos do menino crucificado fossem mostrados aos devotos do pequeno mártir:

O senhor Alonso Domínguez vos dirá de onde era o Niño, e onde foi crucificado. Pedirá ao
nosso Senhor maravilhosamente para mostrar os seus ossos. Uma coisa suplico à vossa
graça, que aquele chifre de terra, onde Juan Franco sinalizou que ele havia sido enterrado,
onde apareceu uma cova que manifestamente foi vista que não a consistia arar; que essa
coisa há de ser vista por Suas Altezas, pelo senhor Cardial e por todo o mundo, vossas
graças, uma lembrança da sagrada Paixão do santo Niño, inocente mártir, devem por ali um
sinal; porque espero em Deus que, segundo os méritos daquele lugar, a terra fará maravilhas.
E assim continuo rogando a nosso Senhor conserve e guarde as vidas e honras de vossas
virtuosas pessoas para o seu santo serviço54.
51
Tradução nossa do trecho: “estando puesto en el tormento dixo é confesó quél é el dicho yucé franco con otros
christianos é judíos avían crucificado un niño christiano en una cueva, que está en un risco de una cuesta,
camino de villapalomas, juntamente con otros; é que le crucificaron en dos palos, que levaron de Santa maría
de pera; y el un palo era de un cabrío, y el otro palo era de una rabera de un exe de una carreta; é que ataron
los dichos palos con una soga desparto á manera de crus, y primeramente ataron los piés é las manos al dicho
niño con la dicha soga y le posieron en la dicha crus; y después le enclavaron los piés é las manos con clavos; é
quel dicho niño daba bozes estando en la crus; é porque non diese bozes, que le ahogaron. […] E dise este
testigo que le açotaron al dicho niño con un cinto, é le posieron en la cabeça una corona de yervas, todo por
escarnio é vituperio de nuestro señor ihesu christo; é le sacaron el coraçón por debaxo de la ternilla con un
Cochillo, bohemío; é que levaron á soterrar el dicho niño é lo soterraron cabe una viña de Santa maría de
pera.” FITA, Fidel. Op. Cit. p.55
52
Ibid. p.113
53
Cf: Ibid. p.113.
54
Tradução nossa do trecho: “El señor Alonso Domínguez vos dirá de dónde era el Niño, y dónde fué
crucificado. Plega á nuestro Señor maravillosamente mostrar sus huesos. Una cosa suplico á vuestras
merdedes, que aquel cornijal de la tierra, donde Juan Franco señaló que había sido enterrado, donde pareció
un hoyo que manifiestamente fué visto, que no lo consintais arar; porque es cosa que por Sus Altezas y por el

990
O culto ao Santo Niño progrediu ao longo do século XVI, atingindo seu ápice nos
séculos XVII e XVIII. Como demonstra Stephen Haliczer, as procissões locais destinadas ao
Niño55 eram aclamadas pelos sermões do frei Lopez de Haro na Capital de Toledo em 1614.
O pequeno Cristóbal, nome posteriormente atribuído ao Niño, tornou-se o santo patrono da
cidade de La Guardia e suas cêrimonias e procissões receberam visitas inclusive de pessoas da
corte como: Ferdinando o Católico, Carlos V e Felipe II56. O caso também proporcionou
alguns escritos antijuaícos incluindo um do frei Francisco de Torrejoncillo Centenella contra
Judios e tornou-se fonte de inspiração para dramatizações teatrais escritas por Lope de Veja e
José Cañizares. A tradição hagiográfica em torno do santo começou a ser redigida a partir de
meados do século XVI. Estas obras, como defende Barral, seriam de suma importância para
preencher lacunas deixadas pelos processos inquisitoriais acerca da história do menino como:
a falta do seu nome, da sua origem, do nome de seus pais. Livros como, Historia de la muerte
y glorioso martírio del santo inocente que llaman de La Guardia escrito em 1588 pelo frei
Rodrigo Yepes57, garantiam a manutenção da memória do pequeno santo mártir na localidade
e asseguravam uma justificativa ao culto que permaneceu oficial localmente até meados do
século XX.

5. Considerações Finais
As bases das acusações já haviam sido postas antes mesmo do começo do tribunal. A
crença na veracidade das lendas de crime ritual e profanação da hóstia, tornava pouco
provável uma possibilidade de defesa dos réus; mesmo que as provas e as evidências,
utilizadas em processos acusatórios, fossem incipientes para provar que houve um crime de
fato. O efervescente antijudaísmo, presente em toda Europa ocidental no século XV, criou
outros tribunais, motivados por libelos de sangue e regidos pela Inquisição nesse mesmo
período como: o de Trento (1475-1476) e o de Regensburgo (1476 -1480).
Esta crescente perseguição aos judeus gerou expulsões esporádicas em cidades do
Sacro Império Romano Germânico como em Nuremberg (1499), como também a famosa

señor Cardenal, y por todo el mundo ha de ser vista; antes, vuestras mercedes, en remembranza de su sagrada
pasión del santo Niño, inocente mártir, deben poner allí una señal; porque espero en Dios que, según los
méritos de aquel lugar, la tierra hará maravillas. Y ansí quedo rogando á nuestro Señor las vidas y honras de
vuestras virtuosas personas conserve y guarde á su santo servicio”. Cf: FITA, Fidel. Op. Cit. p.113-114
55
HALICZER, Stephan. The Jew As Witch: Displaced Aggression and the Myth of the Santo Niño de La
Guardia in: Cultural Encounters: The Impact of the Inquisition in Spain and the New World Berkeley:
University of Californa Press, 1991. p.153.
56
Ibid. p. 153.
57
BARRAL, Paulino Rodríguez. Op. Cit. p.224-225.

991
expulsão oficial vinda do reino de Castela em 1492. Logo no século XV e, principalmente na
Idade Moderna, a política de limpeza de sangue teria um importante papel nos reinos ibéricos.
Não ter descendência judia era essencial para ascender a um possível posto de nobre ou
ocupar um cargo burocrático ou militar nas instancias reais. Um antijudaísmo crescente no
continente europeu, principalmente a partir do século XII, tornou inviável as políticas de
tolerância frente aos judeus e mouros por diversas regiões, principalmente no reino dos reis
católicos depois da conquista de Granada.

Bibliografia

Fontes:
FITA, Fidel. La Verdad sobre el martirio del santo Niño de la Guardia. Madrid: Boletín de la
Real Academia de la Historia, v. II, 1887.

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