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Brilhante ou aterradora?

Assim é a cidade do futuro


que o Google está construindo em Toronto
brasil.elpais.com/brasil/2020/02/20/estilo/1582204265_404361.html

21 de fevereiro de 2020

Arquitetura

A área terá inovações em urbanismo, mas seus críticos


denunciam que a empresa quer dirigir uma cidade sem passar
pelas urnas, e os residentes desconfiam do sistema de
monitoramento

Victoria Zárate
21 fev 2020 - 16:45 BRT ( Brasilia Standard Time)

Durante séculos, a humanidade quis construir cidades utópicas para realizar seus maiores
desejos. Foi o caso de Chandigarh, a metrópole que Corbusier esboçou para acompanhar a
nova Índia de Jawaharlal Nehru, que punha fim ao colonialismo britânico. Ou o
laboratório ecoarquitetônico que o italiano Paolo Soleri e sua mulher, Corolyn Woods,
construíram em 1970 no meio do deserto do Arizona sob o nome de Arcosanti.

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Mas o que ocorre quando a criação de uma cidade precisa responder a uma necessidade
forçosa, e não a um sonho de identidade no meio do nada? Os dados não enganam: o
crescimento das cidades está escapando das nossas mãos. Em 2050, segundo um estudo
da ONU, 68% da população mundial viverá em zonas urbanas. Para fazer frente a essa
migração centrípeta descontrolada, a organização considera fundamental estabelecer o
desenvolvimento urbano sobre objetivos sustentáveis, pondo o foco em moradia,
transporte, energia, escolas, serviços sanitários e emprego, para poder satisfazer as
necessidades dos cidadãos.

Para a Alphabet, empresa-matriz do Google, realizar essa proeza é uma questão de dados.
O futuro só será sustentável se o ligarmos à criação de metrópoles inteligentes, baseadas
na inteligência artificial, com uma alta conectividade propiciada por sensores e redes que
permitam seu funcionamento autônomo. Soa a ficção científica? Em 2022 deixará de ser.
A Sidewalk Labs, empresa de inovação urbana do gigante tecnológico, tornará realidade
seu projeto mais ambicioso até o momento, criando uma cidade futurista chamada
Quayside.

Aspecto atual da área portuária, ao sudeste do centro de Toronto, uma área industrial que ficou
degradada com o abandono da atividade. Em vermelho, a zona de Quayside, a primeira que passará
por mudanças do Google. |Sidewalk Labs

Essa ideia de construir um bairro a meio-caminho entre um Big Brother e as cidades


ideais planejadas na Antiguidade de Platão e Aristóteles surgiu como resposta à
solicitação das autoridades de Toronto que queriam revalorizar uma zona industrial em

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processo de abandono. Aquela anatomia sombria que serve de cenário ao filme A Forma
da Água, de Guillermo del Toro, seria o lugar perfeito para criar o primeiro bairro do
mundo construído a partir da Internet.

Para isso, conta com uma equipe de 130 pessoas e colaboradores externos, incluindo
dezenas de consultores como o Heatherwick Studio, criador do condomínio verde 1.000
Trees, de Xangai; o escritório Snøhetta, da Noruega, autor das novas cédulas monetárias
do país e do edifício do teatro Nacional de Ópera e Balé da Noruega, e o escritório Micheal
Green Architecture, que assina vários aeroportos na América do Norte e a Galeria de Arte
de Vancouver, entre outros projetos, e é uma das pontas de lança no estudo da madeira
como material construtivo do futuro.

Plano de execução do bairro de Quayside. |Sidewalk Labs

Dirigir uma cidade sem passar pelas urnas


A união de suas forças, segundo a Sidewalk Labs, seria capaz de catalisar dezenas de
milhares de empregos e ajudar a abordar os principais desafios e a problemática que
Toronto enfrenta hoje em dia. As ferramentas para isso seriam a gestão digital e o
desenvolvimento de aplicativos como o Commonspace, que permitiriam aos
administradores de espaços públicos reunirem dados confiáveis sobre o uso que as
pessoas fazem desses lugares, para assim responder melhor às necessidades variantes da
comunidade.

As vozes críticas não tardaram a chegar, questionando a aliança entre o Google e o


Waterfront Toronto, órgão público formado por três níveis de governo (municipal,
provincial e federal) que fiscaliza o projeto na orla do lago Ontário. Jathan Sadowski,
pesquisador de ética das tecnologias, disparou o alarme ao apontar que as cidades não são

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plataformas com usuários, nem negócios com acionistas, e sim lugares reais, com gente
real. “O Google quer dirigir cidades sem passar pelas urnas”, declarou ao jornal britânico
The Guardian.

Não se questiona apenas se uma empresa tecnológica saberá administrar uma cidade viva, e sim o
simples fato de isso acontecer, sem passar pelos sistemas democráticos como as eleições. |Sidewalk
Labs

Questões como “uma empresa tecnológica saberia administrar uma cidade viva e em
contínuo movimento?”, “a tecnologia é a ferramenta verdadeira e necessária para
melhorar nossas vidas?” e “quem controlará e será dono de todos os dados gerados em
pleno funcionamento?” deram lugar a dezenas de artigos recordando o papel do Canadá
como uma democracia ocidental que leva a sério os debates sobre a privacidade da
informação e a propriedade dos dados.

Madalena Mak, moradora do bairro, narra o descontentamento generalizado com a falta


de privacidade pelo fato de o Google estar “vigiando” seus passos: “Não nos sentimos
muito cômodos com a ideia, será como viver num Big Brother. Os moradores saberão a
que estão expostos, mas os transeuntes que passarem pelo parque ou visitarem alguém
não têm motivo para estarem vigiados...”.

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A cidade não terá apenas câmeras e sensores de vigilância. O desenvolvimento de aplicativos como o
Commonspace garantirá aos administradores de espaços públicos reunir dados confiáveis sobre o uso
que as pessoas fazem desses lugares. Na imagem, o Innovation Centre, uma incubadora de ‘start-ups’.
|Heatherwick

Por outro lado, pondera: “É verdade que se revitalizará uma zona que está desperdiçada e
em péssimo estado”. Mak aponta também a geração de emprego e o surgimento de zonas
verdes e modernas como dois dos grandes benefícios. “Em geral, gostamos do conceito,
mas deveria haver partido de uma companhia local. Acabará virando um bairro hipster
para millennials”.

Para fomentar a transparência, a Sidewalk pôs em marcha uma série de consultas – a


última em novembro passado – envolvendo cidadãos, empresas privadas e acadêmicos, a
fim de fornecer mais informações sobre o projeto e escutar dúvidas e sugestões.

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A empresa Sidewalk Labs está testando para o Quayside edifícios altos feitos de massa de madeira, tão
resistente quanto o aço e o concreto, e gesso Shikkui, elaborado com algas e casca de ovo. Imagem da
cidade vista do porto. |Snøhetta

Uma cidade onde tudo estará a 15 minutos


Enquanto isso, vão se revelando detalhes sobre como será a primeira cidade autônoma do
mundo. Com um investimento inicial de 1,3 bilhão de dólares canadenses (4,3 bilhões de
reais), seu plano de desenvolvimento urbanístico começa no bairro do Quayside, junto à
foz do rio Don e um dos pontos quentes da vida noturna na atualidade. Lá surgirá o IDEA,
sigla em inglês para Bairro de Design Inovador e Aceleração Econômica, uma iniciativa
que pretende aproveitar todo o potencial da orla e criar 44.000 empregos até 2040.

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Plano da área portuária de Toronto. Delimitado com linha tracejada, o bairro completo onde a
Sidewalk Labs intervirá, batizado de IDEA. A fase 2 prevê obras no resto do bairro, à exceção do espaço
vizinho ao Quayside (em vermelho), embora possa ser incorporado em uma segunda intervenção.
|Sidewalk Labs

Mas é a segunda fase a que desperta mais interesse. A área do River District, assim
chamado em homenagem ao rio Don e ao papel decisivo da água no futuro das cidades –
inclusive na maior metrópole canadense –, se propõe a revolucionar o desenho
convencional dos núcleos urbanos, com o lema dos 15-minute neighbourhoods, bairros
onde os moradores podem suprir todas as suas necessidades com deslocamentos de até 15
minutos.

Composto por cinco núcleos unidos ao centro por um trem leve, Villiers West será o local
escolhido para abrigar a nova sede do Google no Canadá, que incluirá um instituto de
pesquisas sem fins lucrativos, concebido para unir a indústria e os empresários aos órgãos
públicos.

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Os carros autônomos são um dos principais itens do plano de mobilidade, que também busca fomentar
o uso da bicicleta e os trajetos a pé, com ruas cujas calçadas se adaptam aos transeuntes nas horas de
pouco tráfego automotivo. |Sidewalk Labs

O uso de veículos autônomos é um dos pontos cruciais do seu plano de mobilidade. Seu
propósito é reduzir o trajeto até o local de trabalho, tornando-o mais confortável e sem
necessidade de um automóvel próprio. Para promover o uso da bicicleta e da caminhada,
as ruas serão desenhadas sob o conceito de people-first (as pessoas primeiro), com
calçadas mais largas, sem curvas e com meios-fios dinâmicos, que possam se transformar
em espaços públicos durante os horários de menor tráfego motorizado.

Por que não criamos nosso microclima?


Com a incorporação de pavimentos inteligentes, bem iluminados e com calefação, se
pretende não só evitar o gelo e a neve como também permitir uma das máximas do
projeto: viver a cidade ao ar livre – mesmo num lugar como Toronto, de clima frio e
ventoso no inverno, com temperaturas máximas em torno de zero grau em fevereiro.

Desenhar zonas verdes e espaços abertos não será a única medida para estimular os
moradores do Quayside a saírem para a rua. O projeto vai além. Com o slogan “O inverno
está chegando, mas um bom design pode ajudar”, o grupo empresarial de engenharia
RWDI é o responsável por aumentar a quantidade anual de horas diurnas que os
moradores do Quayside poderão efetivamente desfrutar. Com seus sistemas de controle
climático passivo e ativo, esse uso poderia passar de 30% para 74% das horas de luz.

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Isto não se traduzirá em um verão
sem fim, e sim em um maior
conforto graças ao aproveitamento
da radiação solar. Por um lado, “ao
estudar os padrões climáticos em
um nível muito local, o traçado de
um bairro e as massas de edifícios
podem ser adaptados para proteger
as ruas do vento ou dar passagem à
luz solar”, disse uma fonte da
Sidewalk ao EL PAÍS.

Protótipo do sistema Raincoat, que protege do vento e


ajuda a aproveitar ao máximo as horas de luz na cidade.
|RWDI

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Recriação digital de uma das áreas de Quayside coberta com o sistema Raincoat, que no verão pode ser
aberto para se tornar mais poroso e favorecer a ventilação. |Michael Green Architects

Por outro lado, o sistema Raincoat (“capa de chuva”), controlado de forma digital, será a
ferramenta que permitirá promover brisas frescas ou aumentar o número de horas de luz
por ano, bem como deter o vento frio no inverno. Trata-se de uma membrana mais ou
menos transparente que pende da fachada dos edifícios, cobrindo as calçadas, e poderá
ser aberta ou fechada.

Casas acessíveis e de uma madeira tão resistente como o concreto

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As propostas do escritório de arquitetura de Thomas Heatherwick incluem um projeto para a sede do
Google no Canadá, no bairro de Villiers West, dentro do distrito IDEA. |Heatherwick

No quesito moradia, a Sidewalk Labs deixa claro: será preciso edificar de forma rápida,
sustentável e a preço módico para todos. A ferramenta de software BIM coordenará toda a
cadeia de suprimento até a execução da obra, com um código baseado nos resultados
obtidos por sensores ambientais. A massa de madeira – tão forte e resistente como o aço e
o concreto, mas reutilizável – e o gesso Shikkui, elaborado com algas e cascas de ovo,
contribuem para rebater o efeito-estufa, além de diminuir os tempos de aplicação.

A transversalidade aplicada à construção de edifícios é um dos grandes desafios que o


projeto assume: a criação de espaços inteligentes e flexíveis que se acomodem a nossas
necessidades de maneira ágil. Raphael Gielgen, chefe de pesquisa e busca de tendências
da Vitra, descreve isso como uma das chaves para a criação de espaços inteligentes: “Há
dois aspectos fundamentais que aprendemos com a nossa experiência na arquitetura.
Primeiro, que ao construir uma cidade é preciso vê-la como um objeto escultórico que faz
parte de uma paisagem. Caminhamos por sua estrutura para desfrutar e compreender
tanto seu aspecto externo como sua forma global, bem como o jogo de luzes e sombras
que envolvem seu volume”.

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As calçadas incorporarão um sistema de calefação para melhorar a sensação térmica. A ideia é que as
pessoas vivam a rua. |Sidewalk Labs

O segundo, aponta, “tem um lado mais experimental e se baseia na experiência direta que
mantemos com o edifício através do tempo. Se nos movermos de um lugar para outro,
este também mudará conosco”. O apartamento tipo loft proposto pelo Sidewalk Labs
procura assumir essa função modular com um sistema de paredes flexíveis, que podem
ser facilmente movidas ou substituídas, reduzindo o custo de futuras reformas. Assim, os
prédios poderiam adquirir diferentes usos ao longo de seus ciclos de vida.

As ferramentas digitais são também a base de seu plano sustentável. Desenhar edifícios
com alta eficiência energética, que incluam wifi na parte frontal, poderia otimizar os
sistemas de construção e administrar o uso de energia para torná-los mais limpos, sem
depender de combustíveis fósseis. Outros resultados da gestão digital seriam melhorar a
reciclagem doméstica e a proteção da água em toda a costa. Para ver se as expectativas se
cumprem, teremos que esperar até 2022, quando os primeiros moradores se instalarem e
a cidade do futuro entrar em funcionamento.

Adere a
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