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A alma e a cítara / 26

– Há também um desperdício bom de tempo e de coisas


ao serviço de relações grandes e verdadeiras
COMO PERFUME E ORVALHO
“O que mais me confortava e alegrava vinha-me do conforto dos amigos… as conversas, as
gargalhadas em companhia, a troca de cortesias afetuosas, as desavenças ocasionais, sem
rancor, como de cada homem consigo mesmo e os mais frequentes consensos, temperados
pelas mesmas raríssimas desavenças; ser cada um, ora mestre, ora discípulo, do outro; a
saudade de quem está longe, os acolhimentos festivos de quem volta”
Santo Agostinho, Confissões, IV
O Salmo 133 é conhecido como o salmo da fraternidade que, enquanto nos fala da beleza da
fraternidade do sangue, anuncia-nos uma fraternidade diferente do espírito.
A fraternidade é uma grande palavra da Bíblia porque é uma grande palavra da vida. É um
outro nome da felicidade. Os irmãos e as irmãs fazem parte da paisagem normal de casa,
são componente essencial da nossa vida. O amor pelos irmãos e pelas irmãs não tem a
característica do eros nem da philia (nem sempre somos amigos dos nossos irmãos, mas
amamo-los muito). É um outro amor, diferente e especial, que usa a linguagem da carne e
das vísceras (e, nisto, assemelha-se ao amor pelos pais). Uma nota típica da fraternidade é a
dor visceral que sentimos quando uma irmã ou um irmão adoece, quando sofre, quando é
ofendido ou humilhado – ver uma irmã sofrer é para nós, homens, uma das dores maiores.
Há também uma alegria típica e especialíssima, talvez uma das maiores sobre a terra. É a
que experimentam os pais, sobretudo as mães, quando vêm que os seus filhos se amam,
quando os vêm a estimarem-se reciprocamente, a abençoarem-se um ao outro, a
consolarem-se, defenderam-se, ajudarem-se, a fazer festa juntos.
Não surpreende que a Bíblia, para dizer a bênção-felicidade maior de Job, diga que os seus
filhos e as suas filhas almoçavam juntos: «Os seus filhos costumavam ir, cada dia, à casa
uns dos outros, para fazerem banquetes, e mandavam convidar as suas três irmãs para
comerem e beberem com eles» (Jb 1, 4). Aqui, é importante a referência às irmãs porque, se
já e bonito encontrarem-se para fazer festa entre irmãos, é estupendo encontrarem-se entre
irmãos e irmãs, quando as raparigas e as mulheres, com a sua típica graça, exaltam a charis
e a festa da casa. Esta típica alegria pela concórdia dos filhos aumenta com os anos, porque,
se é bonito ver as próprias crianças e adolescentes quererem-se bem, muito mais bonito é
vê-los amarem-se como adultos, quando crescem as distâncias e os motivos para os
dissabores e as divisões. Talvez não haja fim de vida mais bonito, para um pai, que ver
filhos e filhas que conservaram o amor recíproco; como é um amor maior, que se pinta de
todas as cores do ágape, o de um filho que prefere renunciar aos legítimos interesses apenas
para evitar este sofrimento especial aos próprios pais.
Podemos, agora, imaginar que o belíssimo salmo 133 tenha sido composto – ou, elo menos,
cantado – por uma mãe. Num dia de festa, talvez na noite de Pesah, uma mulher olhou para
os filhos, sentados à volta da mesa, e, no íntimo do seu coração, nasce-lhe esta oração, uma
das mais bonitas: «Vede como é bom e agradável que os irmãos vivam unidos!» (Salmo
133, 1). O salmo da fraternidade. A palavra hebraica que o salmista usa para descrever esta
especial beleza e suavidade é twb, a mesma que encontramos no primeiro capítulo do
Génesis, no termo da criação: “Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito twb” (Gn
1, 31). Talvez a dizer-nos que, quando os irmãos e as irmãs, se “sentam juntos”, a família
volta a passear no jardim do éden, volta a primitiva inocência e pureza, a morte é vencida de
novo, comemos o fruto da árvore da vida e vivemos numa e-terna juventude – enquanto
alguém nos chama “filho”, somos ainda jovens. São muito belas e estão profundamente
radicadas na linguagem e no simbolismo bíblico as duas metáforas que o salmo usa para
desenvolver o tema da fraternidade: «É como óleo perfumado derramado sobre a cabeça, a
escorrer pela barba, a barba de Aarão, a escorrer até à orla das suas vestes. É como o
orvalho do monte Hermon, que escorre sobre as montanhas de Sião» (133, 2-3). O óleo era
sinal da consagração do sacerdote (Aarão), mas também do rei, do profeta e é o gesto que
acolhe o hóspede, que é honrado ungindo, com óleo perfumado, o seu corpo fatigado da
viagem. Um óleo que transborda, que escorre da cabeça até cobrir o rosto, a barba e desce,
depois, para a veste.
É uma imagem que mostra o excedente da fraternidade. A fraternidade é anti avara; se a um
irmão não se dá o manto nem a túnica, porque é quanto não devemos dar e, no entanto,
damo-lo, mostra o que é um irmão ou uma irmã. É o óleo que uma mulher derramou nos
pés de Jesus, que valia dez vezes mais que o preço da traição. O ecónomo-economista não
compreende este desperdício e continua a criticar o excedente não eficiente. Na fraternidade
não se empresta com juros, nem sequer à taxa da inflação para recuperar os gastos. Aos
irmãos dá-se e basta: emprestar é um bom verbo dos negócios, mas não é um verbo da
fraternidade – “aqui está o dinheiro que precisas; devolve-mo quando e se puderes”. Um
irmão tem a mesma dignidade do rei, do sacerdote e do profeta, nada menos; e quando vem
a casa visitar-nos é honrado como na Bíblia se honra um hóspede, como Abraão e Sara
acolheram os três homens no carvalho de Mambré, como Salomão à Rainha de Sabá, como
o bom pastor do Salmo 23, como as duas irmãs acolheram Jesus m Betânia. Como a viúva
que hospedou Elias na sua casa e deu ao profeta o último punhado de farinha e a última gota
de azeite que restava. Aos profetas, aos irmãos e às irmãs, não se dá o supérfluo; dá-se o
necessário; para eles, priva-se do último pão. O pão quotidiano é dom do Pai mas, quase
sempre, nos chega pela mão de um irmão, de uma irmã. Quando, em adultos, deixamos a
casa comum e um irmão chega à nossa nova casa, é honrado como a Bíblia honra o
hóspede. E mesmo que venha visitar-nos frequentemente, o dia da visita do irmão é o dia da
toalha mais bonita, de uma flor nova. O tempo para e toca-se a eternidade. As horas
passadas com os irmãos são mais longas; a fraternidade alonga a vida. Cada hóspede traz
uma bênção, mas a bênção que trazem os irmãos e as irmãs, honrados como anjos, é uma
bênção infinita.
A segunda imagem é a do orvalho, palavra amadíssima da Bíblia. O orvalho do monte mais
alto, que mitiga as longas secas. É sempre surpreendente encontrar, ao acordar, nos nossos
tórridos verões, a erva molhada pelo orvalho, dom de uma frescura diferente quando não há
água. O orvalho é a grande imagem da gratuidade, de um dom que está ali para nós, para
todos. Como o orvalho, a fraternidade, para perolar de luz o campo da nossa vida, precisa
de uma noite serena e calma de vento. Como o orvalho, a fraternidade é a frescura dada que
acompanha a aridez da vida, que chega sem olhar às nossas virtudes e aos nossos méritos. A
fraternidade é anti meritocracia, quer quando olhada pela perspetiva dos pais, quer quando
observada pelo olhar dos outros irmãos – mesmo se o irmão mais velho da parábola está ali
para nos recordar que a meritocracia é uma tentação da fraternidade que, se não for vencida
em cada dia, produz as várias formas de fratricídio.
O óleo que escorre da barba de Aarão mostra também um outro elemento fundador da
fraternidade, que é a outra face do excedente: o desperdício bom. Como para outras
palavras primeiras da vida, o desperdício tem duas caras: há uma cara má e uma boa. A boa
pertence à fraternidade, que vive também do desperdício: de tempo, de palavras, de
alimento. O desperdício de tempo escorraça a pressa, a inimiga de todas as relações
primárias. O desperdício das palavras é a bênção dos serões e noites infinitas, gastas a dizer
com cem palavras o que poderíamos dizer com dez, porque as noventa desperdiçadas são as
palavras que damos um ao outro, libertos da escravidão da eficiência. E não há festa de
família onde o alimento não exceda o necessário, onde o que parece desperdício é apenas a
celebração de um bem maior, é linguagem arcaica e profundíssima para dizer que as horas
passadas juntos valem mais que o PIB nacional, que este bem relacional é o maior bem. Nas
refeições da fraternidade se não se come muito, não se come o suficiente. E também quando
a pobreza nos oferece apenas cinco pães e dois peixes, temos de levar, no fim, sete cestos de
sobras.
No entanto, apesar de toda esta beleza, a Bíblia apresenta-nos a fraternidade natural como
algo de ambivalente e, geralmente, problemático. Abel, o primeiro irmão é um irmão
assassinado. Jacob e Esaú lutam, combatem e separam-se; depois, Lia e Raquel, as duas
irmãs rivais; depois, José vendido pelos seus irmãos, Jefté expulso pelos seus meios-irmãos,
a violência de Amnon sobre Tamar até ao irmão do filho pródigo. Na Bíblia, são poucos e
raros os casos de irmãos e irmãs que se amam como os do Salmo 133. Talvez para nos dizer
que a fraternidade do sangue, por grande e, frequentemente, maravilhosa, não é suficiente
para compreender o humanismo bíblico, o novo povo, a aliança, a nova e diferente
fraternidade universal bíblica e cristã. E, assim, para nos indicar a sua nova fraternidade,
desligada do sangue, a Bíblia não se contenta em louvar a fraternidade natural; ela destaca a
sua insuficiência. Também nós sabemos que a primeira fraternidade natural não é pleno
humanismo se não floresce uma segunda fraternidade. Não se permanece irmãos e irmãs
durante toda a vida se, num dado momento, a ligação de sangue, de si grande e bela, não se
torna grandíssima e belíssima, florescendo em ágape.
Os irmãos e as irmãs permanecem irmãos e irmãs até ao fim se, um dia, também se tornam
amigos, mães, pais um do outro. A fraternidade é aurora, é orvalho; mas o sol não mantém,
ao meio dia, toda a luz da aurora se o sangue não se torna espírito, se não renascemos neste
espirito. Mas a Bíblia quis dar-nos também o Salmo 133 com as suas maravilhosas palavras
porque, enquanto nos recorda que a fraternidade se realiza morrendo na carne e ressurgindo
no espírito, aqueles irmãos e irmãs que se sentam juntos, estão entre as coisas mais bonitas
debaixo do sol: «É ali que o Senhor dá a sua bênção, a vida para sempre» (133, 3)
Luigino Bruni, Avvenire, 27 de Setembro de 2020

A alma e a cítara / 27 – Regressamos dos exílios e saímos dos lutos quando reencontramos a
nossa voz
E COM O CANTO RECOMECOU A VIDA
“Apesar de a dor de uma perca poder ser grande, impõe-se, imediatamente, a nós, a tarefa
de evitar a perca mais irreparável e determinante: a de nós mesmos. Por isso, na morte da
pessoa amada, somos, perentoriamente, chamados a tornar-nos procuradores de morte dessa
mesma morte”
Ernesto de Martino, Morte e pianto rituale nel mondo antico
O Salmo 137, o do exílio, contem uma grande mensagem sobre como e porquê pegar
novamente e com ânimo nas velhas cítaras.
A nossa época está dentro dum longo eclipse dos lugares e, por isso, do sentido da terra.
Com o progressivo desencanto do mundo, não deixámos apenas de acreditar que a terra
estivesse cheia de deuses; também esquecemos que os lugares têm uma alma, diferente mas
não menos viva e eficaz que a das pessoas. Inventámos o espaço, o anónimo e racional dos
mapas e, assim, desaprendemos de reconhecer os lugares com as suas vocações únicas, os
seus sinais, com o seu destino. Na Bíblia, Deus é uma voz que fala nos lugares. Deus não é
u-tópico, porque tem o seu lugar: um altar, um monte, um templo. Lugares que não
aprisionam Deus (que permanece livre dos nossos e dos seus lugares), mas conservam, para
sempre, os estigmas do seu toque. O homem bíblico pode ser nómada e errante, porque o
seu território está marcado pela presença verdadeira de Deus e, assim, embora peregrino,
nunca está perdido. O tempo e o espaço são, frequentemente, inimigos; o lugar, pelo
contrário, é amigo do tempo porque é ali – naquela comunidade, naquela família, naquela
terra – que as gerações transmitem a vida. E os bens comuns não se destroem se, de espaço,
se transformam em lugar.
Tendo esquecido a linguagem dos lugares, não compreendemos o que tenha sido a Bíblia no
exílio. Para compreender-lhe alguma dimensão, deveremos compará-lo a uma experiência
extrema nossa: o luto. Porque, quer no exílio babilónico quer no luto, há a crise da presença.
E como nos grandes lutos se faz a experiência do desenraizamento, esvaziamo-nos de
certezas e valores e corremos o risco de também nós passarmos com quem passou, de
morrer com quem morreu; no exílio babilónico o grande desafio foi o de conseguir não
morrer juntamente com a pátria, com o templo destruído, com a terra prometida, com o seu
Deus derrotado. Não admira, portanto, que Ezequiel, no seu livro, chame com o mesmo
nome – “a luz dos meus olhos” – à mulher morta e à Jerusalém destruída.
A elaboração do luto (operação dificílima, hoje) é conseguir não deixar que saia
completamente da totalidade da nossa vida a pessoa amada, evitando, porém, que o seu
continuar a viver em nós comporte o início da nossa morte. A elaboração do exílio foi, para
Israel, a grande tarefa de não esquecer Sião, mas também não recordá-la demasiado e,
assim, morrer juntamente com ela: «Junto aos rios da Babilónia nos sentámos a chorar,
recordando-nos de Sião. Nos salgueiros das suas margens pendurámos as nossas cítaras»
(Salmo 137, 1-2). É o estupendo salmo do exílio, talvez a elegia mais bela da Bíblia. O
salmo que, mais que todos os outros, nos conta, em direto, o processo espiritual e ético
coletivo com que Israel tentou dar sentido à sua maior tragédia, para continuar a viver.
A primeira imagem que nos chega é a de uma greve dos músicos, talvez um grupo de ex-
cantores do templo. Dependuraram as cítaras nos ramos dos salgueiros (ou dos choupos)
que cresciam ao longo das férteis margens dos rios de Babilonia. Ali, sentavam-se juntos;
juntos choravam. E, um dia, deixaram de cantar. Um jejum coral de artistas, talvez o
primeiro da história humana. Talvez por esta razão, o Salmo 137 foi muito estimado pelos
artistas, pelos músicos e pelos poetas (de Camões a Verdi, de Bach a Quasimodo). Não se
canta em “terra desconhecida” – adamah nekhar. Naquela terra só se pode entoar o pranto
fúnebre, elevar o lamento ritual; só se podem gritar palavras desesperadas para as sublimar
dentro de uma representação sagrada (137, 7-9). Mas cantar os cânticos do templo, não, não
se pode: na terra errada, é impossível. E, assim, chega forte a resposta daqueles cantores:
não podemos: «Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor, estando numa terra
estranha?» (137, 4). Porque, naquele humanismo, o primeiro cantor e tocador são os muros
do templo; depois, o solo sagrado e só no fim, chegam os homens e os seus instrumentos.
Aqueles cânticos só se podem cantar em Sião e voltarão a ser cantados só quando voltarem
para lá. Certos “saltos” só se podem fazer em “Rodes”.
Depois, o salmo dá-nos a conhecer um típico cinismo e sarcasmo dos seres humanos: «Os
que nos levaram para ali cativos pediam-nos um cântico; e os nossos opressores, uma
canção de alegria: “Cantai-nos um cântico de Sião”» (137, 3). Há uma maldade típica, entre
as piores, que obriga quem está no pranto a fazer rir os outros – sarcasmo, literalmente,
significa “lacerar a carne”, sarx). Como fizeram os filisteus - «Como o seu coração estava
alegre, os filisteus disseram: “Mandai vir Sansão para nos divertir”» (Jz 6, 25) –, como os
poderosos sempre fizeram e continuam a fazer com os pobres, com as mulheres, com as
vítimas. Naquele jejum da arte, o povo revive, em conjunto, a mesma experiência de
Ezequiel, o grande profeta do exílio: «Ele disse-me: “Farei aderir a tua língua ao teu palato,
de tal maneira que emudecerás”» (Ez 3, 26). Ezequiel, sacerdote sem templo, profeta sem
palavra; cantores e músicos com as cítaras mudas, dependuradas. Imagens tremendas e
maravilhosas que dizem muito, quase tudo, da gramática da vida de quem segue,
honestamente, uma voz.
Neste momento, encontramos, no salmo, um juramento ou uma forma de auto maldição:
«Se me esquecer de ti, Jerusalém, fique ressequida a minha mão direita! Pegue-se-me a
língua ao paladar, se eu não me lembrar de ti, se não fizer de Jerusalém a minha suprema
alegria!» (137, 5-6). Os exilados estavam aterrorizados pela possibilidade de esquecer
Jerusalém e o seu Deus. Estavam aterrorizados porque sentiam o fascínio dos deuses
daqueles rios de Babilónia, experimentavam na carne a tentação de emprestar as suas cítaras
a cânticos diferentes dos aprendidos em Sião. E, assim, uniram-se com uma promessa feita
a Deus e à sua alma. As promessas são também a corda que une o que somos hoje ao que
fomos ontem para salvar do precipício o que podemos ser amanhã. Toda a promessa é
oração que pede ao futuro que não traia a sua origem. Quando o caminho nos conduz ao
exílio, no princípio queremos apenas dependurar as cítaras, deitar fora a pena, calar, chorar
e fazer luto. A Bíblia diz-nos que estes jejuns são bons, que também estes mutismos são
palavras de vida. Estamos desorientados, desenraizados, com dentro de nós e no meio de
nós, uma infinita “saudade de Sião” e daquele templo maravilhoso, sobretudo uma saudade
infinita do Deus que já não é porque foi destruído – pelos outros, por nós mesmos e pelo
próprio Deus. Queremos e podemos apenas estar sentados e elevar altos lamentos para o céu
e para a vida. Esta fase pode durar muito tempo. Para alguns, toda a vida e não mais voltam
a casa.
Por vezes, um resto, um pequeno resto – uma parte daquela comunidade destruída ou um
cantinho ainda vivo na nossa alma ferida – um dia, pega novamente na cítara e começa um
cântico novo. Começa-o ali, junto dos mesmos rios, rodeado pelos mesmos torturadores e
carrascos. Não sabe porquê; apenas sabe que deve cantar. Consegue cantar os mesmos
cânticos da juventude e compreende que a voz que o tinha acompanhado durante a
destruição e, depois, no exílio, a voz desconhecida e temida como voz de ídolo ou do nada,
era, na realidade, a mesma voz boa que lhe falava em Sião, mas não o sabia. Uma
compreensão nova que é apenas e totalmente graça, toda gratuidade. Compreende que Deus
não tem medo do exílio e que não há melhor lugar que os rios de Babilonia para cantar e
louvar. E à pergunta: «Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor, estando numa
terra estranha?», acrescenta uma nova resposta: canta-os exatamente como os cantavas em
Sião: eu também moro aqui e nunca te deixei só. Começou o fim do exílio.
Para alguns, este novo salmo é o último cântico, entoado junto ao anjo da morte. Outros
estão cantando-o há muitos anos, mas não se deram conta ainda, porque o confundem com o
choro do luto. Nem todos os exilados hebreus regressaram da Babilónia, depois do edito de
Ciro. Uma parte nunca superou aquele grande luto e deixou-se morrer. Alguns integraram-
se com os babilónios e não mais voltaram. Regressaram, após setenta anos, apenas os filhos
e os netos dos poucos que conseguiram retomar as cítaras dos salgueiros ao longo dos rios,
para cantar os cânticos de Sião numa terra estrangeira. Voltou quem aprendeu a tocar no
exílio. Todo o luto acaba verdadeiramente quando ainda conseguimos cantar. Os salmos
mais bonitos de Israel foram compostos quando algum daqueles cantores exilados
encontrou as energias espirituais para voltar a pegar nas cítaras. Desprenderam-nas das
árvores, recomeçaram o seu canto. Dos exílios, volta quem aprende a cantar os antigos
cânticos numa terra desconhecida. Quando uma nova alma toca a antiga cítara e nascem
outros cânticos.
Existem cânticos espirituais, poesias, obras de arte, profecias que nascem nos tempos da
alegria e da luz, que brotam como excedente do coração nos dias maravilhosos da vida.
Quando somos senhores das nossas mãos e das nossas palavras, que nos obedecem,
gerando. Estes podem ser autênticas obras de arte, músicas muito bonitas, poesias
verdadeiras, profecias autênticas. Mas existem outros cânticos espirituais, outras obras de
arte, profecias diferentes que não nascem assim. Estas têm necessidade da garganta colada
ao palato, de cítaras dependuradas dos salgueiros, de mãos com artrite, de compositores
surdos, de pintores cegos, de relatores espáticos e balbuciantes, de escritores que falam de
Deus quando não sabem nem quem é nem se existe verdadeiramente. Estas obras diferentes
não são o fruto da nossa força, mas da nossa debilidade; estas palavras não nos obedecem
porque são livres, estes gestos não são os nossos gestos, este Deus não é o nosso Deus, este
paraíso é para os outros. Estas são as obras da gratuidade, os cânticos que não deviam
existir, a espiritualidade que comove o céu, o humano que toca os anjos. Temos a Bíblia,
porque alguém conseguiu cantar no exílio, reaprendeu a tocar a cítara junto dos rios de
Babilónia. E não mais parou.
Luigino Bruni, Avvenire, 4 de outubro de 2020

A alma e a cítara / 28
– Da nossa intimidade habitada, aprendemos que todo o universo é habitado por Deus
MAIORES QUE O NOSSO CORAÇÃO
“Se há um Outro, qualquer que seja, onde quer que esteja e quaisquer que sejam as suas relações comigo, embora não
atue sobre mim de outro modo se não com a simples aparência do seu ser, eu tenho um fora, uma natureza; o meu
pecado original é a existência do outro”.
Jean Paul Sartre, O ser e o nada
O Salmo 139 é uma grande mensagem poética sobre a existência da fé e sobre o mistério da pessoa que, enquanto se
descobre olhada, compreende uma beleza mais profunda e maior.
Na alma, há um lugar secreto e profundíssimo, onde mora uma subtil e delicada melancolia. É a que desabrocha
quando nos damos conta que também a comunhão com quem nos ama para à porta de uma intimidade secreta, aquela
onde se encontra a parte mais bela e verdadeira de nós. Sabemos que os nossos amigos, os pais, a mulher, os filhos
nos amam verdadeiramente e nos conhecem de verdade; mas o conhecimento amoroso que têm de nós não consegue
atingir o jardim secreto do nosso coração. Só se chegassem ali, nos conheceriam verdadeiramente, porque veriam
uma beleza desconhecida; se alguém conseguisse atingir-nos nessa profundidade, compreenderia que somos melhores
do que parecemos, que somos mais belos que a pessoa que até então tinham conhecido. Se é verdade que o outro é
«aquele que nos olha» (J. P. Sartre), ainda é mais verdadeiro que o outro não me olha suficientemente, não vê a parte
melhor de mim. Os outros conhecem alguma coisa, alguns conhecem o essencial; mas o essencial não basta; nestas
coisas o essencial é demasiado pouco.
É ali que habita, também, a nossa inocência. Naquele fundo do fundo da alma, há uma pureza invisível, a que
perdemos, ao crescer, mas não foi apagada nem pelos maiores erros, que acredita em nós, quando já ninguém crê (nós
em primeiro lugar). É o jardim do Adão que ainda somos; é a cabana que os índios construíam, em crianças, onde se
refugiavam dos fantasmas; é a casa das bonecas. E, àquela pequena casa, que, crescendo, se torna cada vez mais
pequena, voltamos nos dias mais cinzentos da vida, quando somos perseguidos e condenados por todos, mas sabemos
que há um ângulo do universo melhor que o homem e a mulher que os outros veem. É este refúgio invisível que torna
possível a vida nos exílios, nos cárceres, nos grandes pecados. Um dia, nós compreendemos que esta diferença entre
o que somos verdadeiramente e o que os outros reconhecem permanecerá sempre intransponível e que aquela beleza
mais íntima será o segredo e o dote que levaremos para o último encontro. E nascerá uma nova paz, uma nova
reconciliação com a vida e com os outros, deixaremos de nos lamentar por não sermos suficientemente amados.
Porque compreendemos que é a existência deste núcleo de beleza, protegido dos olhares dos outros, a tornar a
experiência da reciprocidade e do reconhecimento sempre insuficiente. Às reciprocidades da nossa vida, devemos
pedir muito, mas não devemos pedir demasiado.
A Bíblia não conhecia o inconsciente nem a psicanálise e não sabia, diferentemente de nós, que, naquele ângulo
escondido, estão acumuladas muitas coisas diferentes. Mas conhecia os homens e as mulheres e conhecia Deus. E,
assim, diz-nos algo de importante, que permanece verdadeiro ainda hoje, que conhecemos outros “habitantes”
invisíveis da nossa intimidade. Disse-nos e diz-nos que aquele fundo inexplorado é habitado por um hóspede bom
que sempre lá morou, que o conhece melhor que nós o julgamos conhecer. Diz-nos que aquela certeza de sermos
melhores do que nos tornarmos é tudo amor, é o primeiro dom de Deus para nós, o dispositivo com que continua, em
cada dia, a salvar-nos: «YHWH, Tu examinaste-me e conheces-me, sabes quando me sento e quando me levanto; à
distância conheces os meus pensamentos. Vês-me quando caminho e quando descanso; estás atento a todos os meus
passos. Ainda a palavra me não chegou à boca, já Tu, Senhor, a conheces perfeitamente… É uma sabedoria profunda,
que não posso compreender; tão sublime, que a não posso atingir!» (Salmo 139, 1-6).
O conhecimento a que se refere este Salmo, entre os mais altos e poéticos do Saltério, não diz respeito a um
conhecimento abstrato ou omnisciência de Deus. O conhecimento “maravilhoso” que, aqui, interessa ao salmista é o
conhecimento que Deus tem de nós, que tem dele, o autor do salmo, que tem de mim, de ti. É a experiência de ser
conhecido por um olhar amigo e mais profundo que o dos outros, mais amigo e mais profundo que o nosso próprio
olhar: “que a não posso atingir”. É-nos dada, aqui, uma raiz profunda da fé bíblica. A fé é, antes de mais, a
experiência de ser olhado dentro, de estar no centro de uma inteligência boa. Sou amado porque sou olhado, amado
enquanto sou olhado naquele fundo onde reside o meu mistério. Então, a fé bíblica, antes de ser um conjunto de
normas e de verdades para acreditar, é a experiência pessoal deste olhar profundo. A religião pode começar com o
culto e com a lei, mas a fé começa quando nos sentimos olhados, vistos e chamado pelo nome.
Os homens, desde sempre, intuíram serem vistos por Deus e pelos seus espíritos, viver sob um olhar invisível do alto.
Mas, geralmente, era uma experiência de angústia. O homem antigo tinha medo do olhar dos deuses. Escondia-se,
queria fugir porque, ser visto, era a experiência da revelação dos pecados e, portanto, da culpa. Era um olhar do juiz,
o olho de quem nos quer ver para condenar. “Deus vê-te” era instrumento de medo e de terror. Também aqui, a Bíblia
realiza uma revolução. O olhar de Deus é, antes de mais, olhar de amor, é libertação e alegria. Deus também vê os
pecados mas, antes, vê que somos filhos; vê o gesto de Caim mas, antes, vê o gesto de Eloim que criou Adão à sua
imagem e semelhança. Está aqui a antropologia bíblica do pecado de Adão sobre Caim, porque o Adão vive num
ângulo do coração mais íntimo que aquele que alberga o seu filho fratricida. Partindo desta intimidade habitada,
aprendemos também que todo o universo é sustentado e habitado por Deus: o céu estrelado dentro de mim faz ver o
céu estrelado por cima de mim. Uma experiência que, imediatamente, se torna canto: «Se voar nas asas da aurora ou
for morar nos confins do mar mesmo aí a tua mão há de guiar-me e a tua direita me sustentará. Se disser: “Talvez as
trevas me possam esconder, ou a luz se transforme em noite à minha volta”, nem as trevas me ocultariam de ti e a
noite seria, para ti, brilhante como o dia. A luz e as trevas seriam a mesma coisa!» (139, 9-12). Fantástico!
Se o encontro com Deus é um ser vistos por dentro, então aquele olhar existia mesmo quando não o sabíamos. Estava
ali, invisível, mas presente: «Tu modelaste as entranhas do meu ser e formaste-me no seio de minha mãe… Quando
os meus ossos estavam a ser formados, e eu, em segredo, me desenvolvia, tecido nas profundezas da terra, nada disso
te era oculto. Os teus olhos viram-me em embrião. Tudo isso estava escrito no teu livro. Todos os meus dias estavam
modelados, ainda antes que um só deles existisse.» (139, 13-16). Versículos que recordam os de Job, mas também os
“ossos” de Jeremias (20, 9) e a história da sua vocação profética. A fé começa um dia, mas existia desde sempre. Um
dia, toma-se consciência de algo que pré-existia à consciência que desabrocha num preciso momento, quando se
compreende que a frase que estamos a escrever naquele dia é parte de um “livro”. E um dos maiores dons que o dom
da fé traz consigo – na dimensão explicada pelo Salmo 139, a fé é de verdade e autenticamente dom, antes de ser
também virtude (não fosse outro a guardá-la) – é o admirável exercício que continua o início da fé; quando andamos
para trás na nossa história e, como comum velho álbum de fotografias, folheamos, página após página, o nosso
passado e, finalmente, o compreendemos, compreendemos de modo diferente as mesmas fotografias de ontem que se
iluminam imensamente. Quem acredita, sempre acreditou e não o sabia.
Nestes versículos então, encontramos também uma esplêndida síntese do que é uma vocação. No princípio, há um
olhar, sentir-se visto por um olho que me olha e me vê como ninguém alguma vez me viu. Um olhar que,
imediatamente, é voz, porque enquanto nos olha, pronuncia o nosso nome, revela-nos a nossa missão e o nosso lugar
no mundo, faz-nos entrever que os episódios que marcaram a nossa vida têm um sentido, são os capítulos do “livro”
que já estávamos a escrever e não o sabíamos. É neste nível íntimo e profundíssimo que se joga o destino de uma
vocação. Não é uma questão de felicidade ou infelicidade (a Bíblia e a vida transbordam de vocações infelicíssimas,
embora enormes), nem de cálculo custos-benefícios (que moeda usar?) nem, muito menos, de se encontrar em
condições subjetivas e objetivas de poder conseguir ter sucesso na missão (a maior parte das vocações autênticas não
são “vencedoras”; são histórias de insucessos). Nestas vocações, uma pessoa faz só e simplesmente o que é, o que viu
enquanto era vista, o que descobre o que sempre foi e o que será: «Para onde poderia fugir da tua presença? Se subir
aos céus, Tu lá estás; se descer ao mundo dos mortos, ali te encontras» (139, 8). Esta visão não é fatalista nem
estática, como seria se o papel da pessoa fosse apenas interpretar uma partitura já escrita – sem sequer a liberdade
executiva de uma partitura de jazz. Uma vocação move-se entre a liberdade máxima – porque não há liberdade maior
que quem obedece à parte mais verdadeira e bela de si – e a máxima não-liberdade, porque aquele olhar segue-nos
por toda a parte e recorda-nos, em cada momento, quem e que coisa somos verdadeiramente. Pode-se sair de uma
comunidade ou deixar uma mulher, mas não se sai da ação daquele olhar.
A impossibilidade de sair da órbita da pupila de Deus não oferece nenhuma garantia de não fazermos coisas erradas,
por vezes péssimas. A boa notícia da Bíblia é outra: mesmo “se desceres ao mundo dos mortos” para fugires de ti
mesmo, também ali continuas a ser olhado e visto. E sempre que apanhares “as asas da aurora” para fugir para longe,
para onde quer que te leve aquele voo louco, quando tocares a tua intimidade mais íntima, ali estará alguém que te
espera e te recorda que também tu és maior que o teu coração.
Luigino Bruni, Avvenire, 11 de outubro de 2020

A alma e a cítara / 29
– Há orações que também são cânticos civis, do trabalho, do tempo e do pão

COM O MESMO NOME DE DEUS


“A proibição das imagens era um preceito capital que, fatalmente, seria violado. Sobretudo
pelo próprio YHWH, que tinha plasmado o homem “à nossa imagem e semelhança”.
YHWH tinha querido criar um ser à imagem de si mesmo – e, também àquele ser, seria
transmitida a tendência a criar algo à imagem de si mesmo”.
Roberto Calasso, Il libro di tutti i libri
O nome e a imagem são categorias centrais na Bíblia e no Salmo 147, que revela como,
neste humanismo, a pobreza gera riqueza
Nalgumas regiões italianas – e, entre estas, a minha – em certos diálogos íntimos, os pais e
as mães chamam o filho e a filha com o seu próprio nome. Dizem-lhe: “vamos lá mamã,
porta-te bem”, “mas como és brilhante, papá”. Dizem-no às crianças mas, por vezes,
continuam a chamá-los assim também quando adultos. Não está escrito em nenhum livro de
gramática, não se aprende na escola. Repetimo-lo porque o ouvimos dos nossos pais, em
dias maravilhosos. São palavras diferentes, assimiladas por osmose e, depois, transmitidas
de uma geração a outra, parte da transmissão do essencial da vida. Estão entre as palavras
mais bonitas nos diálogos do coração, naqueles tu-a-tu delicados e secretos, que contêm
toda a típica e única ternura que desabrocha entre pais e filhos, que alimenta uns e outros,
sempre, mas sobretudo, nos momentos das grandes alegrias e das grandes dores.
A Bíblia diz-nos que o primeiro que nos chamou com o seu próprio nome foi e é Deus,
quando nos criou “à sua imagem e semelhança”. Dizendo-nos, disse-se a si próprio e repete
o nosso nome em cada momento. Porque, se por um lado, o Deus bíblico é a divindade mais
transcendente e diferente de todas, por outro lado, não há nada sobre a Terra que se lhe
assemelhe mais que um ser humano, não há coração mais semelhante ao seu que o nosso,
não há nome que, mais que o nosso, tenha o mesmo som do seu. A Bíblia hebraica tirou-nos
a imagem de Deus, mas deu-nos uma maravilhosa imagem de homem e de mulher:
escondendo-nos o rosto de Deus, exaltou o nosso rosto. Então, cada vez que se ama e se
respeita o nome de um homem ou de uma mulher, está a amar-se e respeitar-se também o
nome de Deus; e, pela lei da reciprocidade, sempre que um homem reza e louva o nome de
Deus, está a rezar e a louvar toda a humanidade, cada homem e cada mulher.
Nasce, aqui, o olhar positivo que a Bíblia, com tenacidade e resiliência, tem sobre os
homens e sobre as mulheres. Vê os seus limites, os pecados, os homicídios e os fratricídios
mas, antes e sobretudo, vê neles a imagem de Deus refletida, não é capaz de sair do Éden.
Vê os muitos gestos dos homens mas, antes, continua a vê-lo no seu diálogo com Eloim no
fim do dia. Como as mães e os pais que, mesmo quando a vida leva os seus filhos e fazer
coisas más e péssimas, para se salvarem e salvá-los, continuam a sonhá-los crianças puras e
belíssimas, a chamá-los até ao fim “papá” e “mamã”, mesmo dentro das prisões. Entre a fé,
a esperança e o ágape existe o mesmo tipo de relação que une as três Pessoas divinas: em
cada uma estão as outras duas, cada uma está voltada contemporaneamente para as outras; é
impossível separá-las sem as destruir todas. E, assim, nos Salmos, embora povoados por
sentimentos de tristeza, de desilusão e de dor, é mais forte e maior o olhar de esperança-fé-
amor que domina todo o Saltério, que o torna talvez o livro mais belo de todos, porque o
livro mais capaz de nos falar do paraíso dos infernos, de esperança dentro do desespero, de
beleza no meio da fealdade.
A força dos Salmos está na sua verdade. É preferível um inferno verdadeiro a um paraíso
fingido porque, enquanto chamarmos o inferno pelo seu verdadeiro nome, podemos sempre
desejar um paraíso que, pelo contrário, não desejamos se pensarmos tê-lo já alcançado:
«Aleluia! Louvai o Senhor, porque é bom cantar! É agradável e é justo louvar o nosso Deus.
O Senhor restaura Jerusalém e reúne os dispersos de Israel. Ele cura os de coração
atribulado e trata-lhes as feridas!... Cantai ao Senhor com gratidão; cantai ao nosso Deus ao
som da harpa» (Salmo 147, 1-7). É bonito cantar hinos ao Senhor. É bonito e bom louvar
YHWH, é bonito e bom para Deus, mas é bonito e bom também para nós. O salmo começa
com um elogio do louvor. É o momento de autoconsciência do orante, que chega (se chega)
quando nos apercebemos que o primeiro prémio do louvor é tomar consciência da sua
beleza e do seu dom intrínseco. Quando descobrimos que rezamos para louvar a Deus mas,
enquanto cantamos, sentimos que é Deus que está louvando e cantando-nos. Nós dizemos o
seu nome e um dia sentimos que, na realidade, é Deus que está a dizer o nosso e que, no
nosso nome, diz o nome de todos, o nome de cada criatura, o nome das estrelas e de todo o
universo. E é maravilhoso. E, enquanto procuramos as palavras e as notas mais bonitas e
elevadas para louvar Deus, estamos também a aprender as notas e as palavras para nos
louvarmos uns aos outros. Talvez não haja uma palavra esplêndida, pensada para louvar a
Deus, que algum poeta não tenha também usado para uma pessoa amada, e talvez não haja
poesia de amor que alguém, num outro dia, talvez sem o saber, tenha usado para cantar a
Deus. Tudo isto também é imagem e reciprocidade. Bendizendo os humanos, aprendemos a
bendizer a Deus e bendizendo a Deus, estamos já a bendizer homens e mulheres, mesmo
que o não saibamos.
O ser imagem do Criador torna, imediatamente, o nosso louvor a Deus em louvor cósmico:
«Ele fixa o número das estrelas e chama a cada uma pelo seu nome… Ele cobre de nuvens o
céu e para a terra prepara as chuvas, que fazem crescer as ervas nos montes. Ele dá de
comer aos animais e aos filhotes dos corvos, quando gritam» (147, 4.8-9). Ser imagem de
Eloim torna-nos maiores que a simples imagem humana. Sentimos, desde pequenos, uma
profunda fraternidade cósmica – só as crianças sabem sentir, verdadeiramente irmãos e
irmãs, os gatos e os passarinhos, as flores e as folhas –, deveremos não perdê-la ao
envelhecer e se a vida funciona, esta grande fraternidade cresce connosco e conclui-se com
o canto da irmã morte. A fraternidade inter-humana não nos basta; é demasiado pequena,
embora já imensa. Para que a fraternidade e a irmandade humana sejam autêntico
humanismo, temos de aprender a sentir irmãs também as estrelas, o sol, os passarinhos, toda
a natureza – existem poucos cânticos (se existem) mais bíblicos que o Cântico de Francisco.
Muito bonita e delicada é, aqui, a referência «aos filhotes do corvo que gritam». Neste
versículo, estão os corvos que alimentavam Elias, na sua fuga (1 Rs 17, 6), mas estão
também os passarinhos do ninho, guardados pela Lei de Moisés, que ordena não capturar a
mãe-pássaro que choca os seus ovos ou guarda os seus pequeninos, de deixá-la fugir, «para
que possas ser feliz e os teus dias se prolonguem» (Dt 22, 7). Uma lei de YHWH que
perscruta também dentro dum ninho de pássaros e que coloca uma equivalência que nos
pode parecer ousada e estupenda. A promessa reservada é a mesma do Quarto
Mandamento: Honra teu pai e tua mãe «a fim de prolongares os teus dias e viveres feliz»
(Dt 5, 16).
Na Bíblia, tudo é criação. Deus vê assim o mundo, é assim que nos vê e nós, sua imagem,
aprendemos a olhar o mundo do mesmo modo, embora ainda toda a criação “gema e sofra
as dores de parto”, porque “se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos
filhos de Deus” (Rm 8, 19-23). Toda a criação geme e espera, finalmente, ser olhada assim.
Nunca como nestes anos de crise ambiental e de destruição do planeta estamos em
condições de poder compreender os Salmos e aquela misteriosa passagem de Paulo aos
Romanos: a terra sofre e espera que os homens, finalmente, se revelem o que são, que se
comportem com ela como filhos e imagem de Deus criador e pai. Por isso, o Salmo 147
distingue-se também por ser um cântico profano. Não existem sacerdotes nem reis, não é
mencionado David nem se alude ao templo. São os cidadãos a elevar o seu canto. Os que
conheceram os tempos e os ritmos das estações e do trabalho, o valor da paz e do pão de
cada dia. Um salmo muito estimado, desde sempre, pelos camponeses: «Deus estabeleceu a
paz nas tuas fronteiras e saciou-te com a flor do trigo… Faz cair a neve, branca como a lã,
espalha a geada como se fosse cinza; faz cair o granizo como migalhas de pão; com o seu
frio, quem pode resistir? Envia a sua palavra e o gelo derrete-se; faz soprar o vento e correm
as águas» (147, 14-18). Toda a terra está envolvida por um olhar bom, tudo é governado
pela providência.
Depois de nos ter dado, até aqui, palavras acerca de Deus e sobre nós, o Salmo termina
louvando diretamente a palavra, e a Aliança e a Lei, que são o seu auge (147, 19-20). A
palavra é vista como uma mensagem enviada para nós, uma inteligência que nos leva a
descobrir a ordem e o sentido da criação: «Ele manda as suas ordens à terra, e a sua palavra
corre velozmente» (147, 15). A palavra é também logos, é raciocínio e ordem. Israel
estimou a palavra dum modo altíssimo e, para nós, hoje, incompreensível. Fez dela uma
experiência extraordinária com os Patriarcas, com Moisés e os profetas – “... e era apenas
uma voz”. Tendo de renunciar à imagem de Deus, amadureceu uma imensa competência
sobre a palavra, teve de aprender a desenhar Deus com as palavras, descobriu as muitas
dimensões escondidas na palavra bíblica e nas palavras humanas. Uma grande pobreza
produz uma riqueza infinita. Não teríamos talvez a extraordinária tradição literária ocidental
sem esta palavra bíblica desprovida das imagens, que a obrigou a tornar-se imagem sem se
tornar idolatria.
Quando João escreveu o Prólogo do seu Evangelho, um dos trechos mais geniais da
história, estava a pensar em muitas coisas mas, certamente, pensava nas palavras dos
Salmos, naquele logos capaz de abençoar o homem enquanto bendizia e louvava Deus. Ao
dizer-nos que aquele logos se tinha feito carne, que se tinha tornado homem como nós,
dizia-nos muitas coisas e todas estupendas e também nos chamou com o mesmo nome de
Deus. E continua, em cada dia, a chamar-nos assim.
Luigino Bruni, Avvenire, 18 de outubro de 2020

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