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LEITURA EM UM COLÉGIO

É melhor que não saibam para que


serve ler poesia, ou se alguém ainda a lê.
Não os explique,
cala,
que não saibam
que tal beleza não é tão neutra, e que faz
insuportáveis a crueldade, a estupidez,
o barulho, por isso volvemos solitários.

Alguns ainda a leem.


Se te perguntam
o que é ou para que, tartamudeia,
refuta imprecisões e ri sem jeito.
Mais tarde, ao terem a alma em carne viva
depois de muitas lágrimas, recordarão
que sim você podia, mas não os preveniu
e te agradecerão.

Trad. João Filho.

LECTURAS EN UN COLEGIO

Más vale que no sepan para qué


sirve leer poesia, si algunos aún la leen.
No les expliques,
callas,
que no sepan
que su belleza no es neutral, que hace
insoportables la crueldad, la idiotez y el ruído
y por eso nos vuelve solitários.

Algunos aún la leen.


Si te preguntan
qué es o para qué, tartamudea,
contesta imprecisiones, y sonríe.
Más tarde, cuando tengan el alma en carne viva
y hayan llorado mucho, rocordarán que tu
pudiste hacerlo y no les preveniste,
y te darán las gracias.

GARCÍA-MÁIQUEZ, Enrique. Con el tiempo. Editorial Renacimiento, 2010, p.40.


TUDO ACONTECEU PARA QUE VOCÊ NASCESSE

E para a sua vida quantas vidas


foram necessárias... Pense nos quartos, nas festas,
nas guerras, nas cidades,
tudo que é secretamente seu ontem,
a confabulação milenar que fez
que você fosse.
O seu pai – Teruel, Brunete, o Ebro...1 –
lendo nessas trincheiras
hexâmetros desfeitos pelo fogo
de morteiro, também seu avô nas difíceis
alturas de Cerdedo2 ou Pedamúa
com um embornal convulso de perdizes,
seu bisavô em um entardecer
melodioso em Cuba, olhando o mar do Caribe,
vendo, porém, a doce Catalunha,
“Ferro Velho”3 pousando prum daguerreótipo
com leontina e cartola e puro e guarda-chuva,
e os Peix, os Vidal, os Estévez, os Orge,
os Pérez, os Rovira..., todos, com seus ofícios,
suas barbas, mulheres,
seus males, dissipando-se no tempo,
nesse fosso comum do esquecimento...
E avança,
mas penetre na névoa desses séculos,
suponha ser um peregrino
adivinhando Astorga, além, na madrugada,
imagine um mouro ferido, vendo a fuga
da poeira feroz do seu exército,
olhe um homem que estira, em uma rocha,
o couro fedorento de uma loba,
veja os centuriões resplandecentes
em torno da fogueira, e Aníbal e Cartago,
e a mulher sangrando, que arqueja
parindo sobre um feixe de feno, e o hirsuto
pintor de renas e bisões que por machados
médios troca uma fêmea... e tudo aquilo que teve
que acontecer pra que você nascesse
desde que aquelas Mãos amassaram

1
Batalhas acontecidas durante a Guerra Civil Espanhola, 1936-1938.
2
Cerdedo é um município da província de Pontevedra, Galícia, Espanha. Pedamúa uma região
montanhosa.
3
Apelido do tataravô do poeta.
o barro primitivo. Modelado
também para que dele, esta manhã,
brotasse este poema.

Trad. João Filho

TODO OCURRIÓ PARA QUE TÚ NACIERAS

Para tu sola vida cuántas vidas


hicieron falta... Piensa las alcobas, las fiestas,
las guerras, las ciudades,
todo lo que es tu ayer secretamente,
la confabulación milenaria que hizo
que tú fueras.
Tu padre –Teruel, Brunete, el Ebro...–
leyendo en la trinchera
hexámetros desbaratados por el fuego
de mortero, tu abuelo por las arduas
alturas de Cerdedo o Pedamúa
con un morral convulso de perdices,
tu bisabuelo en una atardecida
melodiosa de Cuba, mirando el mar Caribe
pero viendo la dolça Catalunya,
“Ferro Velho” posando para un daguerrotipo
con leontina y sombrero y paraguas y puro,
y los Peix, los Vidal, los Estévez, los Orge,
los Pérez, los Rovira..., todos, con sus oficios,
sus barbas, sus mujeres
y sus males, desvaneciéndose en el tiempo,
en la fosa común del olvido... Y avanza,
adéntrate en la niebla de los siglos,
suponte un peregrino
adivinando Astorga allá en la madrugada,
imagínate un moro que, herido, ve alejarse
la fiera polvareda de su hueste,
mira un hombre que extiende en una roca
la fétida pelleja de una loba,
mira los centuriones rutilantes
en torno a la fogata, y Aníbal y Cartago,
y la mujer sangrienta que jadea
pariendo en un brazado de helechos, y el hirsuto
pintor de renos y uros que cambia por seis hachas
medianas una hembra... y todo lo que tuvo
que suceder para que tú nacieras
desde que aquellas Manos amasaron
el limo primigenio. Modelado
también para que de él esta mañana
brotara este poema.

10-IX-78

D’ORS, Miguel. El misterio de la felicidad. Sevilla: Renacimiento, 2009, p.56-58

CASA VAZIA

Poema nenhum, nunca mais,


será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,

para esse público dos ermos


composto apenas de nós mesmos

uns joões batistas a pregar


para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,

ou cães latindo, noite e dia,


dentro de uma casa vazia.

MELO, Alberto da Cunha. Dois caminhos e uma oração. Rio de Janeiro: Record,
2017, p.415-416
NEL MEZZO DEL CAMIN...

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada


E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada


Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida


Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,


Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

BILAC, Olavo. Poesia. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1959, p.56.

NEL MEZZO DEL CAMIN...

Che/guei./Che/gas/te./ Vi/nhas/ fa/ti/ga/da (2ª, 4ª, 6ª e 10ª, decassílabo)


E/ tris/te, e/ tris/te e/ fa/ti/ga/do eu/ vi/nha. (2ª, 4ª, 8º e 10ª, sáfico)
Ti/nhas/ a al/ma/ de/ so/nhos/ po/vo/a/da, (1ª, 3ª, 6ª e 10ª, decassílabo)
E a al/ma/ de/ so/nhos/ po/vo/a/da eu/ ti/nha... (1ª, 4ª, 8ª e 10ª, sáfico)

E/ pa/ra/mos/ de/ sú/bi/to/ na es/tra/da (3ª, 6ª e 10ª, decassílabo)


Da/ vi/da:/ lon/gos/ a/nos,/ pre/sa à/ mi/nha (2ª, 4ª, 6ª, 8ª e 10ª, deca e sáfico)
A/ tu/a/ mão,/ a/ vis/ta/ des/lum/bra/da (2ª, 4ª, 6ª e 10ª, decassílabo)
Ti/ve/ da/ luz/ que/ teu/ o/lhar/ con/ti/nha. (1ª, 4ª, 6ª, 8ª e 10ª, deca e sáfico)

Ho/je,/ se/gues/ de/ no/vo.../ Na/ par/ti/da (1ª, 3ª, 6ª e 10ª, deca)
Nem/ o/ pran/to os/ teus/ o/lhos/ u/me/de/ce, (1ª, 3ª, 5ª, 6ª e 10ª, deca)
Nem/ te/ co/mo/ve a/ dor/ da/ des/pe/di/da. (1ª, 4ª 6ª e 10ª, deca)

E eu/, so/li/tá/rio,/ vol/to a/ fa/ce, e/ tre/mo, (1ª, 4ª, 6ª, 8ª e 10ª, deca e sáfico)
Ven/do o/ teu/ vul/to/ que/ de/sa/pa/re/ce (1ª, 3ª, 4ª, 8ª e 10ª, deca)
Na ex/tre/ma/ cur/va/ do/ ca/mi/nho ex/tre/mo. (2ª, 4ª, 8ª e 10ª, deca)
SÓ O SONHO DE AMAR JÁ NÃO ME INFLAMA
A Edson Nery da Fonseca

O fantasma do pai anda lá fora


e mesmo morto não me deixa a sós:
por isso entendo que me cabe agora
cultivar o verão e os girassóis.
Permanente é o barulho das esporas
do pai e essa angústia que me rói:
hoje a chuva não cai sobre as amoras
mas cai sobre meu pai e o meu pai dói.
Atravessando as grades do terraço
o pai chega na chuva esmaecido
para morrer na ausência dos meus braços.
Refaço o calendário e me refaço
meu pai é um menino comovido
e eu sou um homem feito de cansaço.

BEZERRA, Jaci. Linha d’Água. Recife: CEPE, 2007, p.145.

SÓ O SONHO DE AMAR JÁ NÃO ME INFLAMA


A Edson Nery da Fonseca

O/ fan/tas/ma/ do/ pai/ an/da/ lá/ fo/ra (6ª/10ª)


e/ mes/mo/ mor/to/ não/ me/ dei/xa a/ sós/: (6ª/10ª)
por/ is/so en/ten/do/ que/ me/ ca/be a/go/ra (4ª/8ª/10ª sáfico)
cul/ti/var/ o/ ve/rão/ e os/ gi/ra/ssóis/. (6ª/10ª)
Per/ma/nen/te é o/ ba/ru/lho/ das/ es/po/ras (6ª/10ª)
do /pai/ e/ e/ssa an/gús/tia/ que/ me/ rói/: (6ª/10ª)
ho/je a/ chu/va/ não/ cai/ so/bre as/ a/mo/ras (6ª/10ª)
mas/ cai/ so/bre/ meu/ pai/ e o/ meu/ pai/ dói/. (6ª/10ª)
A/tra/ve/ssan/do as/ gra/des/ do/ te/rra/ço (6ª/10ª)
o/ pai/ che/ga/ na/ chu/va es/ma/e/ci/do (6ª/10ª)
pa/ra/ mo/rrer/ na au/sên/cia/ dos/ meus/ bra/ços. (6ª/10ª)
Re/fa/ço o/ ca/len/dá/rio e/ me/ re/fa/ço (6ª/10ª)
meu/ pai/ é/ um/ me/ni/no/ co/mo/vi/do (6ª/10ª)
e eu/ sou/ um/ ho/mem/ fei/to/ de/ can/sa/ço. (6ª/10ª)
A CONCHA ALHEIA

A concha alheia, paguro4!


A concha alheia...
Procuras, como procuro,
e achamos só, no monturo,
uns grãos de areia.

A concha alheia, paguro!


A concha alheia...

Castelo de ontem... − os muros,


a torre, o povo da aldeia
− o que era meu, e seguro
em cada ameia

hoje dissolve, obscuro


na maré cheia:
castelo de ontem, futuro
de grãos de areia.

Agora, eu e paguro
− quem mais tateia? −
aqui procuramos − procuro
a bela ou feia:

a concha alheia, paguro!


A concha alheia...

SALDANHA, Wladimir. Lume Cardume Chama. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p.19

4
Paguro: “[...] um caranguejo desprovido de carapaça, que se mete na concha espiralada de certo
caramujo marinho.” “[...] bernardo-eremita, ou eremita-bernardo, ou ermitão, ou sacuritá”.
A CONCHA ALHEIA

A/ con/cha a/lhei/a, /pa/gu/ro! (2ª/4ª/7ª)


A/ con/cha a/lhei/a... (2ª/4ª)
Pro/cu/ras,/ co/mo/ pro/cu/ro, (2ª/4ª/7ª)
e a/cha/mos/ só,/ no/ mon/tu/ro, (2ª/4ª/7ª)
uns/ grãos/ de a/re/ia. (2ª/4ª)

A/ con/cha a/lhei/a, /pa/gu/ro! (2ª/4ª/7ª)


A/ con/cha a/lhei/a... (2ª/4ª)

Cas/te/lo/ de on/tem.../ − os/ mu/ros, (2ª/4ª/7ª)


a/ to/rre, o /po/vo /da al/de/ia (2ª/4ª/7ª)
− o/ que e/ra/ meu,/ e/ se/gu/ro (2ª/4ª/7ª)
em/ ca/da a/me/ia (2ª/4ª)

ho/je/ di/ssol/ve, o/bs/cu/ro (1ª/4ª/7ª)


na/ ma/ré/ che/ia: (3ª/4ª)
cas/te/lo/ de on/tem,/ fu/tu/ro (2ª/4ª/7ª)
de/ grãos/ de a/re/ia. (2ª/4ª)

A/go/ra,/ eu/ e/ pa/gu/ro (2ª/4ª/7ª)


− quem/ mais/ ta/te/ia? – (1ª/2ª/4ª)
a/qui/ pro/cu/ra/mos/ − pro/cu/ro (2ª/5ª/8ª)
a/ be/la ou/ fe/ia: (2ª/4ª)

a/ con/cha a/lhei/a, /pa/gu/ro! (2ª/4ª/7ª)


A/ con/cha a/lhei/a... (2ª/4ª)
II. 129

Como o pião rodando só, como um pião,


como o delírio circular do beduíno
na areia às soltas, como essa revolução
interminável, esse único genuíno
sentido da paixão do ser, como o contínuo
sem sentido do ser, girândola na mão
da imperfeição, rodopiando ante a noção
do centro imaginário, o ponto repentino
e migratório do precário, do destino
andarilho do corpo, esse brilho em que vão
se reunindo e dispersando o desatino
e seus fantasmas convergentes, coração,
é assim que vais da Alexandria da emoção
à Meca do real, coração peregrino...

TOLENTINO, Bruno. A imitação do amanhecer. São Paulo: Globo, 2006, p.196

Co/mo o /pi/ão/ ro/dan/do/ só/, co/mo um/ pi/ão, (4ª/6ª/8ª/10ª/12ª)


co/mo o /de/lí/rio/ cir/cu/lar/ do/ be/du/í/no (4ª/8ª/12ª)
na a/rei/a às/ sol/tas/, co/mo es/sa/ re/vo/lu/ção (2ª/4ª/6ª/12ª)
in/ter/mi/ná/vel,/ es/se ú/ni/co/ ge/nu/í/no (4ª/6ª/7ª/12ª)

sen/ti/do/ da/ pai/xão/ do/ ser/, co/mo o/ con/tí/nuo (2ª/6ª/8ª/12ª)


sem/ sen/ti/do/ do/ ser/, gi/rân/do/la/ na/ mão (3ª/6ª/8ª/12ª)
da im/per/fei/ção/, ro/do/pi/an/do an/te a/ no/ção (4ª/8ª/12ª)
do/ cen/tro i/ma/gi/ná/rio, o/ pon/to/ re/pen/ti/no (2ª/6ª/8ª/12ª)

e/ mi/gra/tó/rio/ do/ pre/cá/rio/, do/ des/ti/no (4ª/8ª/12ª)


an/da/ri/lho/ do/ cor/po, es/se/ bri/lho em/ que/ vão (3ª/6ª/9ª/12ª)
se/ re/u/nin/do e/ dis/per/san/do o/ de/sa/ti/no (4ª/8ª/12ª)

e/ seus/ fan/tas/mas/ con/ver/gen/tes,/ co/ra/ção, (4ª/8ª/12ª)


é as/sim/ que/ vais/ da A/le/xan/dri/a /da e/mo/ção (4ª/8ª/12ª)
à/ Me/ca/ do/ re/al,/ co/ra/ção/ pe/re/gri/no... (2ª/6ª/9ª/12ª)
A UMA DEUSA

Tu és o quelso do pental ganírio


Saltando as rimpas do fermim calério,
Carpindo as taipas do furor salírio
Nos rúbios calos do pijom sidério.

És o bartólio do bocal empírio


Que ruge e passa no festim sitério,
Em ticoteios de partano estírio,
Rompendo as gâmbias do hortomogenério.

Teus lindos olhos que têm barlacantes


São camençúrias que carquejam lantes
Nas duras pélias do pegal balônio.

São carmentórios de um carce metálio,


De lúrias peles em que pulsa obálio
Em vertimbáceas do pental perônio.

Atribuído ao poeta Luís Lisboa, do Maranhão.

O GRANDE DESASTRE AÉREO DE ONTEM


Para Cândido Portinari

Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a
hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua
cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na
explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue
no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas
mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque
vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas como se dançassem ainda.
E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a
prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino
que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo
que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranqüila e cega! Ó amigos,
o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as
pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que
pensam que é o arrebol.

LIMA, Jorge de. Anunciação e encontro de Mira-Celi. Rio de Janeiro: Record, 2006,
p.128.
CICLO

Sob o sol Sob o tempo


(em seu próprio agudo
ritmo)
dispersam-se intercruzam-se
–– em ciclo implacável ––
pássaros.
Sob o sol Sob o tempo
reinventa-se
(esplendor cruel) o
ritmo.
Sob o sol Sob o tempo
automáticas flores
inauguram-se.
Sob o sol Sob o tempo
a vida se cumpre
autônoma.

FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.105.
A TEMPESTADE

Um raio
Fulgura
No espaço
Esparso,
De luz;
E trêmulo
E puro
Se aviva,
Se esquiva,
Rutila,
Seduz!

Vem a aurora
Pressurosa,
Cor de rosa,
Que se cora
De carmim;
A seus raios
As estrelas,
Que eram belas,
Tem desmaios,
Já por fim.

O sol desponta
Lá no horizonte,
Doirando a fonte,
E o prado e o monte
E o céu e o mar;
E um manto belo
De vivas cores
Adorna as flores,
Que entre verdores
Se vê brilhar.

Um ponto aparece,
Que o dia entristece,
O céu, onde cresce,
De negro a tingir;
Oh! vede a procela
Infrene, mas bela,
No ar se encapela
Já pronta a rugir!

Não solta a voz canora


No bosque o vate alado,
Que um canto d’inspirado
Tem sempre a cada aurora;
É mudo quanto habita
Da terra n’amplidão.
A coma então luzente
Se agita do arvoredo,
E o vate um canto a medo
Desfere lentamente,
Sentindo opresso o peito
De tanta inspiração.

Fogem do vento que ruge


As nuvens aurinevadas,
Como ovelhas assustadas
D’um fero lobo cerval;
Estilham-se como as velas
Que no alto mar apanha,
Ardendo na usada sanha,
Subitâneo vendaval.

Bem como serpentes que o frio


Em nós emaranha, — salgadas
As ondas s’estanham, pesadas
Batendo no frouxo areal.
Disseras que viras vagando
Nas furnas do céu entreabertas,
Que mudas fuzilam, — incertas
Fantasmas do gênio do mal!

E no túrgido ocaso se avista


Entre a cinza que o céu apolvilha,
Um clarão momentâneo que brilha,
Sem das nuvens o seio rasgar;
Logo um raio cintila e mais outro,
Ainda outro veloz, fascinante,
Qual centelha que em rápido instante
Se converte d’incêndios em mar.

Um som longínquo cavernoso e oco


Rouqueja, e n’amplidão do espaço morre;
Eis outro inda mais perto, inda mais rouco,
Que alpestres cimos mais veloz percorre,
Troveja, estoura, atroa; e dentro em pouco
Do Norte ao Sul, — d’um ponto a outro corre:
Devorador incêndio alastra os ares,
Enquanto a noite pesa sobre os mares.

Nos últimos cimos dos montes erguidos


Já silva, já ruge do vento o pegão;
Estorcem-se os leques dos verdes palmares,
Volteiam, rebramam, doudejam nos ares,
Até que lascados baqueiam no chão.
Remexe-se a copa dos troncos altivos,
Transtorna-se, tolda, baqueia também;
E o vento, que as rochas abala no cerro,
Os troncos enlaça nas asas de ferro,
E atira-os raivoso dos montes além.

Da nuvem densa, que no espaço ondeia,


Rasga-se o negro bojo carregado,
E enquanto a luz do raio o sol roxeia,
Onde parece à terra estar colado,
Da chuva, que os sentidos nos enleia,
O forte peso em turbilhão mudado,
Das ruínas completa o grande estrago,
Parecendo mudar a terra em lago.

Inda ronca o trovão retumbante,


Inda o raio fuzila no espaço,
E o corisco num rápido instante
Brilha, fulge, rutila, e fugiu.
Mas se à terra desceu, mirra o tronco.
Cega o triste que iroso ameaça,
E o penedo, que as nuvens devassa,
Como tronco sem viço partiu.

Deixando a palhoça singela,


Humilde labor da pobreza,
Da nossa vaidosa grandeza,
Nivela os fastígios sem dó;
E os templos e as grimpas soberbas,
Palácio ou mesquita preclara,
Que a foice do tempo poupara,
Em breves momentos é pó.

Cresce a chuva, os rios crescem,


Pobres regatos s’empolam,
E nas turvas ondas rolam
Grossos troncos a boiar!
O córrego, qu’inda há pouco
No torrado leito ardia,
É já torrente bravia,
Que da praia arreda o mar.

Mas ah! do desditoso,


Que viu crescer a enchente
E desce descuidoso
Ao vale, quando sente
Crescer dum lado e d’outro
O mar da aluvião!
Os troncos arrancados
Sem rumo vão boiantes;
E os tetos arrasados,
Inteiros, flutuantes,
Dão antes crua morte,
Que asilo e proteção!

Porém no ocidente
Se ergueu de repente
O arco luzente,
De Deus o farol;
Sucedem-se as cores,
Que imitam as flores,
Que lembram primores
Dum novo arrebol.

Nas águas pousa;


E a base viva
De luz esquiva,
E a curva altiva
Sublima ao céu;
Inda outro arqueia,
Mais desbotado
Quase apagado,
Como embotado
De tênue véu.

Tal a chuva
Transparece,
Quando desce
E ainda vê-se
O sol luzir;
Como a virgem,
Que numa hora
Ri-se e cora,
Depois chora
E torna a rir.

A folha
Luzente
Do orvalho
Nitente
A gota
Retrai:
Vacila,
Palpita;
Mais grossa,
Hesita,
E treme
E cai.
DIAS, Gonçalves. Poesia e prosa completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.
Pp.623-627

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