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O legado de Guy Debord:

reflexões sobre o espetáculo a partir de sua obra


Michele Negrini∗
Alexandre Rossato Augusti†

Índice Palavras-chave: espetáculo, fetichismo


da mercadoria, alienação, opinião pública.
1 As imagens 2
2 O fetichismo da mercadoria 6
3 O desaparecimento da opinião pública 8
comum ligarmos a televisão e nos de-
Considerações finais
Referencias
9
10 É pararmos com cenas onde as emoções
dos envolvidos nos casos são exploradas.
Resumo Recentemente, foi marcante a cobertura feita
pelas principais televisões do Brasil ao as-
A espetacularização está cada vez mais sassinato do executivo da Yoki, Marcus Mat-
presente no cotidiano das sociedades atuais. sunaga, que foi morto e esquartejado pela
O espetáculo pode ser observado em diver- sua esposa. Podemos falar também de acon-
sos locais, como no espaço midiático e na tecimentos mais antigos, como o do aci-
política. Assim, o objetivo deste artigo é dente com o voo 3054 da TAM. Neste caso,
fazer uma reflexão sobre o espetáculo com o choro dos parentes das vítimas foi cap-
bases no olhar de Guy Debord sobre o tema, tado por todos os ângulos possíveis, en-
em A Sociedade do Espetáculo. Fixamos- quanto repórteres questionavam estas pes-
nos, especificamente, em refletir as ideias do soas sobre questões da vida dos que mor-
autor sobre as imagens na sociedade, sobre o reram. Tal cenário nos remete à visibili-
fetichismo da mercadoria, sobre a alienação dade proveniente da espetacularização da in-
do público através da espetacularização e so- formação.
bre a opinião pública. A espetacularização tem presença cons-

Jornalista; doutora em Comunicação pela Pon-
tante nos meios de comunicação, principal-
tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. mente quando falamos do jornalismo televi-
Docente da Universidade Federal de Pelotas. Email: sivo, e pode sustentar elevados índices de au-
mmnegrini@yahoo.com.br. diência. No contexto da TV, é comum encon-

Jornalista; doutorando em Comunicação pela trarmos programas que lembram verdadeiros
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul. Docente da Universidade Federal do Pampa. shows e que são voltados à dramaturgia.
Email: araugusti@yahoo.com.
2 Michele Negrini & Alexandre Rossato Augusti

A “espetacularização midiática” é discu- uma imensa acumulação de espetáculos.


tida pelo crítico Guy Debord, em A So- Tudo o que era vivido diretamente tornou-se
ciedade do Espetáculo. O autor, que se representação” (DEBORD, 1997: 13).
definia como “doutor em nada” e “pensador Na opinião do autor francês, a teatrali-
radical”, foi um dos fundadores – junto dade e a representação tomaram totalmente
com artistas e escritores de diferentes países, a sociedade. Para ele, o natural e o autên-
em 1957, na Itália, da Internacional Situa- tico se tornaram ilusão. O autor define o
cionista, um movimento internacional de espetáculo já na Tese 4: “O espetáculo não
cunho artístico e político, que aspirava trans- é um conjunto de imagens, mas uma re-
formações sociais. Debord acreditava que lação social entre pessoas, mediada por ima-
se devem fazer críticas ao sistema através da gens” (DEBORD, 1997:14). Ao definir o es-
criação de “situações significativas”. petáculo, Debord demonstra que, na sua con-
Para o autor francês, o capitalismo é um cepção, as relações entre as pessoas não são
dos grandes problemas da sociedade. O autênticas, elas são de aparência.
pensamento de Debod tem perspectiva mar- Na Tese 6, Debord expõe uma forte crítica
xista e se concentra na crítica radical ao ao espetáculo como sendo um resultado dos
fetichismo da mercadoria, tal como ela se a- modos de produção existente. Nesta pas-
presenta no seu modo de produção. Um dos sagem, o autor deixa claro que vê o es-
pontos fortes do pensamento debordiano é a petáculo como um meio de dominação da so-
crítica radical contra a presença de imagens ciedade e como uma forma de afirmação das
na sociedade – na sua concepção, elas po- escolhas já feitas na hora da produção. O es-
dem induzir à passividade e à aceitação do petáculo atua a favor do capitalismo e o con-
capitalismo. sumo acaba sendo consequência.
Elementos espetacularizados, como a ex- A partir dessa inferência, já fica claro no
posição das pessoas na cena televisiva, po- pensamento do autor a ideia de que o público
dem ser percebidos no cotidiano do jorna- é alienado e passivo1 frente às investidas do
lismo. A união do jornalismo com a espeta- espetáculo e que só lhe resta consumir as i-
cularização pode ser percebida como prática magens e os produtos que lhe são oferecidos.
de diversos telejornais. Ao discutirmos so- A alienação do espectador é um ponto que
bre grandes coberturas jornalísticas a even- é reforçado pelo autor consistentemente na
tos mortuários, é possível exemplificar a es- obra. Como na Tese 30:
petacularização.
A alienação do espectador em fa-
1 As imagens 1
Os Estudos Culturais já corrigiram esses
“deslizes” do pensamento debordiano, inserindo a
Guy Debord, já na primeira tese da obra ideia de um receptor ativo, mediado, com poder de
A Sociedade do Espetáculo, mostra que na filtrar os conteúdos provenientes dos meios de co-
sua concepção o espetáculo está presente municação de massa. Os pesquisadores dos estudos
culturais procuram compreender os significados das
em toda a sociedade: “Toda a vida das práticas culturais no contexto em que elas acontecem,
sociedades nas quais reinam as modernas discordando que as pessoas possam ser alienadas
condições de produção se apresenta como pelas transmissões dos meios de comunicação.

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vor do objeto contemplado (o que formações que recebe. A consciência hu-


resulta da sua própria atividade mana e a capacidade do homem de pen-
inconsciente) se expressa assim: sar ficam submissas a um conjunto de in-
quanto mais ele contempla, menos fluências que recebem do espetáculo. O
vive; quanto aceita reconhecer-se espetáculo desvincula o espectador de sua
nas imagens dominantes da ne- própria história, de suas origens e de seu
cessidade, menos compreende sua modo de pensar e agir.
própria existência e seu próprio de- O espetáculo, segundo o pensamento de-
sejo. Em relação ao homem que bordiano, tem sua estrutura baseada na
age, a exterioridade do espetáculo aparência, mostrando somente “o que é
aparece no fato de seus próprios bom”, que carece ser contemplado e o que
gestos já não serem seus, mas de vai despertar desejos de consumo no es-
um outro que os representa por ele. pectador. Ele imprime a aceitação pas-
É por isso que o espectador não se siva por parte do público e transmite um
sente em casa em lugar algum, pois efeito de circularidade, não deixando mar-
o espetáculo está em toda parte gens para réplicas: “O espetáculo se apre-
(DEBORD, 1997: 24). senta como uma enorme positividade, indis-
cutível e inacessível. Não diz nada além de
Na Tese 32, Debord salienta que o es- ‘o que aparece é bom, o que é bom aparece’”
petáculo é uma fábrica concreta de aliena- (DEBORD, 1997: 16-17). O autor, em sua
ção e que a alienação do público alimenta o análise, também faz uma crítica forte ao foco
crescimento da economia. Dentro desta con- generalizado do “parecer”, o qual é cultuado
cepção, uma pessoa alienada tem seu pen- no momento em que a vida social deixou de
samento facilmente moldado e acaba sendo ser autêntica e se transformou em simples
um consumidor em potencial. O autor acres- imagens:
centa: “A expansão econômica é sobretudo a
expansão dessa produção industrial especí- A primeira fase da dominação da
fica. O que cresce com a economia que economia sobre a vida social acar-
se move por si mesma só pode ser a alie- retou, no modo de definir toda a
nação que estava em seu núcleo original” realização humana, uma evidente
(DEBORD, 1997: 24). degradação do ser para o ter. A
Para Debord, as artimanhas do espetáculo fase atual, em que a vida social está
estão constantemente atuando na luta pela totalmente tomada pelos resulta-
identificação de seus receptores com a so- dos acumulados da economia, leva
ciedade de consumo. A alienação é o meio a um deslizamento generalizado do
para esta constante identificação e o lucro é ter para o parecer, do qual o “ter”
o fim primordial. Enquanto o capitalismo efetivo deve extrair o seu prestí-
consegue lucros imensos, os públicos do es- gio imediato e sua função última.
petáculo permanecem alienados. Debord Ao mesmo tempo, toda a realidade
salienta que o espetáculo induz o homem individual tornou-se social, direta-
apenas a dizer “sim” e a não duvidar das in- mente dependente da força social,

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moldada por ela. Só lhe é permi- mostra sempre a mesma coisa – tendo apenas
tido aparecer naquilo que ela não é a aparência de novidade, de que ele existe
(DEBORD, 1997:18). porque ele é o seu próprio fim e que ele vale
pelo seu desenrolar: “O caráter fundamental-
A segunda fase evidenciada por Debord mente tautológico do espetáculo decorre do
encontra correspondência com o pensamento simples fato de seus meios serem, ao mesmo
de Schwartzenberg (1978), quando o último tempo, seu fim. É o sol que nunca se põe no
define o star system em política. Nesse con- império da passividade moderna” (DEBORD,
texto, o homem político enfatiza o parecer, 1997:17).
ainda que lhe seja preciso simular ou dis- Para exemplificar as discussões de Debord
simular. É a composição de um personagem acerca da ideia de que o que vale no es-
que atrai atenção e impressiona a imagi- petáculo é o seu desenrolar, podemos falar da
nação que deve ser alcançada. “Atualmente, cobertura do telejornalismo ao caso da morte
o poder tem uma fisionomia; a do dirigente de Eloá Pimentel. Vamos abordar especifica-
que o exerce” (SCHWARTZENBERG, 1978: mente o caso do Jornal Nacional e do Jornal
2). Utilizar um representante (por exemplo, da Band. Nas coberturas destes dois telejor-
o homem político) que substitui o conjunto nais, podemos falar da semelhança do jorna-
que representa, serve como estratégia para lismo com a narrativa de teleficcção (SOUSA
desviar a discussão a respeito daquilo que é JUNIOR , 2006). O JN e o JB apresentaram
representado. “(...) falar o mínimo possível o caso em capítulos, os quais foram forma-
do fundo das coisas” (SCHWARTZENBERG, dos por diversos personagens e foram apre-
1978: 9). Avalia-se aquilo que é represen- sentando a história “aos poucos”, com base
tado a partir do representante, que é com- no seu desenrolar.
posto segundo conveniências. É um princí- Na concepção de A Sociedade do Es-
pio semelhante ao de Debord, quando diz petáculo, o caráter repetitivo e vago do es-
que a aparência da mercadoria é mais im- petáculo leva à dominação total dos homens,
portante que o seu valor de uso, pois é a da mesma forma que eles foram domina-
aparência que vai atrair a contemplação do dos pelo capitalismo. A expansão do es-
público e vai fazer com que a mercadoria petáculo significa, na concepção debordiana,
tenha aceitação. É a imagem colocada a perda do livre arbítrio por parte do especta-
serviço do capitalismo. dor, o qual fica totalmente fascinado com a
Segundos as discussões debordianas, o es- contemplação das imagens e seduzido pelos
petáculo está focado no seu desenrolar, é enredos que está acompanhando. Na Tese
no meio de um espetáculo que o público 18, Debord visualiza que o espetáculo mexe
se prende, mesmo que não vá chegar a ne- com o sentido da visão do homem, mas recai
nhum lugar específico. Debord acrescenta na perspectiva de que tudo é alienação:
que o espetáculo não precisa acrescentar
nada, basta ter um enredo com detalhes atra- Quando o mundo real se trans-
tivos. Na Tese 13, o autor reforça a ideia forma em simples imagens, as
que vem trabalhando de que o espetáculo simples imagens tornam-se seres
não traz nada de novo ao público, de que reais e motivações eficientes de um

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comportamento hipnótico. O es- tem vinculações com a fraqueza do projeto


petáculo, como tendência a fazer filosófico ocidental:
ver (por diferentes mediações es-
O espetáculo é herdeiro de toda
pecializadas) o mundo que já não
a fraqueza do projeto filosófico
se pode tocar diretamente, serve-
ocidental, que foi um modo de
se da visão como um sentido
compreender a atividade domi-
privilegiado da pessoa humana –
nado pelas categorias do ver; da
o que em outras épocas fora o
mesma forma, ele se baseia na
tato; o sentido mais abstrato, e
incessante exibição da racionali-
mais sujeito à mistificação, corres-
dade técnica específica que decor-
ponde à abstração generalizada da
reu desse pensamento. Ele não re-
sociedade atual (DEBORD, 1997:
aliza a filosofia, filosofiza a reali-
18).
dade. A vida concreta de todos se
É possível ilustrar a espetacularização degradou em um universo especu-
midiática como a exaltação da visualidade lativo (DEBORD, 1997: 19).
falando da cobertura dos principais telejor- Para Debord, é através do espetáculo que
nais do país ao acidente com o avião da se dá a construção das necessidades de con-
TAM, ocorrido em julho de 2007. Neste sumo na sociedade. Pela lógica do pen-
casso, foram levados ao ar choros e gritos samento do autor, cada vez que um novo
dos parentes das vítimas ao saberem do ocor- produto é lançado no mercado pela indús-
rido; repórteres questionaram familiares so- tria cultural, a necessidade de consumo deste
bre detalhes da vida privada dos mortos, oca- produto é criada pela publicidade entre o
sionando o choro dos entrevistados; o lo- público, o qual é passivo e acrítico – é assim
cal do acidente se transformou em cenário que se dá a alienação. A Tese 21 demonstra a
para a transmissão ao vivo de telejornais. concepção de Debord sobre o poder de alie-
Enfim, formou-se um verdadeiro espetáculo nação do espetáculo: “À medida que a ne-
imagético, o qual deu oportunidade para que cessidade se encontra socialmente sonhada,
o público pudesse ficar bem próximo dos de- o sonho se torna necessário. O espetáculo é
talhes da morte. Mas, apesar de Debord ter o sonho mau da sociedade moderna aprisio-
um olhar pertinente sobre o ser humano pos- nada, que só expressa afinal o seu desejo de
suir na visão um sentido forte, na maioria das dormir. O espetáculo é o guarda desse sono”
vezes, o autor acaba caindo em sua perspec- (DEBORD, 1997: 19).
tiva radical e verificando em tudo a contami- E ele reforça a perspectivas de seu pen-
nação do capitalismo, que vai alienar a po- samento de que o espetáculo tem completas
pulação através do espetáculo. vinculações com o capitalismo ressaltando,
Na Tese 19, Debord reforça a ideia de que na Tese 34, que o espetáculo é o capital em
o espetáculo cativa o público pelo sentido da tal grau de acumulação a ponto de se tornar
visualidade. Mas, deixa clara a sua opinião imagem.
de que o espetáculo é algo “negativo”, que Discussões interessantes sobre o es-
petáculo no âmbito televisivo são apresen-

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tadas por Szpacenkopf (2003). A autora vida social. A mercadoria está em tudo e o
salienta que o telejornal não é nada mais homem não consegue ver nada além dela, “o
que um espetáculo formado por informações mundo que se vê é o seu mundo” (DEBORD,
perecíveis. Para ela, o telejornal tem a 1997:30). Com a dominação da mercadoria
função de informar e de divertir o público e entre os agentes sociais e com a alienação
é submisso às leis espetaculares. dos espectadores, o consumo não se dá so-
As discussões de Szpacenkopf (2003) e mente pelo valor de uso, mas pela aparência
de Debord (1997) são complementares no do produto e pelas ilusões que ele gera:
pensamento de que o telejornal espetacu-
larizado tem como característica a apresen- (...) o uso sob sua forma mais po-
tação exaustiva de imagens, as quais acabam bre (comer, morar) já não existe
dando a impressão de serem mais reais que a a não ser aprisionado na riqueza
própria realidade que deu origem a elas. ilusória da sobrevivência amplia-
da, que é a base real da aceitação
da ilusão geral no consumo das
2 O fetichismo da mercadoria mercadorias modernas. O con-
Das ideias de Marx, Debord destaca o sumidor real torna-se consumidor
fetichismo da mercadoria e a alienação. O de ilusões. A mercadoria é essa
autor salienta na Tese 36: ilusão efetivamente real, e o es-
petáculo é a sua manifestação geral
O princípio do fetichismo da mer- (DEBORD, 1997: 33).
cadoria, a dominação da sociedade
por “coisas supra-sensíveis embo- Então, o valor de troca é preponderante,
ra sensíveis”, se realiza comple- é o que verdadeiramente interessa, enquanto
tamente no espetáculo, no qual o o valor de uso está impregnado de signifi-
mundo sensível é substituído por cações impostas pelo espetáculo, que está a
uma seleção de imagens que e- serviço do capitalismo. Neste ponto, é pos-
xiste acima dele, e que ao mesmo sível identificar pontos importantes no pen-
tempo se faz reconhecer como o samento de Debord, pois ele salienta a lógica
sensível por excelência (DEBORD, da publicidade. A publicidade cria ilusões de
1997: 28). necessidades no espectador para levá-lo ao
consumo. O consumidor, nesse caso, pode
Para Debord, o mundo que o espetáculo comprar um produto por ser de uma marca
mostra aos homens é o mundo da mercado- reconhecida como “boa” e pagar valor su-
ria que domina tudo o que é vivido. Os perior ao de outro cuja marca não traz o
homens acabam se afastando uns dos outros mesmo significado. É importante reiterar,
e tendo relações superficiais, as quais ocor- entretanto, que não se pode levar em consi-
rem de acordo com a circulação da mercado- deração a perspectiva da total alienação e de
ria, o que evidencia as relações sociais me- que o consumidor seja necessariamente pas-
diadas pelo capitalismo. A espetacularização sivo em relação a sua postura diante do que
é a materialização da mercadoria em toda a lhe é oferecido.

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O espetáculo é tratado por Debord como Debord deixa clara a sua opinião sobre
um agente de manipulação social e con- as bases do espetáculo, as quais, segundo
formismo político, chegando a ser com- ele, estão plenamente vinculadas ao capi-
parado a uma permanente Guerra do Ópio, talismo: “A raiz do espetáculo está no ter-
que tem como objetivos embriagar a cons- reno da economia que se tornou abundante,
ciência dos atores sociais e fazer com que e daí vêm os frutos que tendem afinal a do-
eles se identifiquem com as mercadorias que minar o mercado espetacular, a despeito das
estão sendo oferecidas pela indústria cul- barreiras protecionistas ideológico-policiais
tural e venham a consumi-las. Na medida de qualquer espetáculo local com pretensões
em que o espetáculo é alienante, deixando autárquicas” (DEBORD, 1997: 39).
o público refém da contemplação e atuando Ao observar a sociedade como alienada e
na criação de necessidades de consumo para como vislumbrada pelo fetiche da mercado-
esse público através da publicidade, ele será ria, Debord confere ao tempo espetacular
um agente da indústria cultural e terá to- o poder de desassociar o público do tempo
tais vinculações com a obtenção de lucro por cronológico, do tempo presente, e de inseri-
parte de seus idealizadores. Esse mecanismo lo em um tempo virtual. O tempo virtual
também evidencia sua ligação com o capita- está completamente ligado ao consumo da
lismo: mercadoria e forma uma base de alienação.
“O espetáculo, como organização social da
O espetáculo é a outra face do paralisia da história e da memória, do aban-
dinheiro: o equivalente geral abs- dono da história que se erige sobre a base
trato de todas as mercadorias. do tempo histórico, é a falsa consciência do
O dinheiro dominou a sociedade tempo” (DEBORD, 1997:108).
como representação da equivalên- Da mesma forma que o espetáculo tira as
cia geral, isto é, do caráter inter- bases reais do tempo, transformando-o em
cambiável dos bens múltiplos, cujo virtual, atua sobre os limites de espaço. Na
uso permanecia incomparável. O concepção de Debord, a produção capitalista
espetáculo é o seu complemento unificou os espaços; dissolvendo a autono-
moderno desenvolvido, no qual mia e as individualidades dos lugares. Che-
a totalidade do mundo mercan- gamos, assim, a espaços também virtualiza-
til aparece em bloco, como uma dos.
equivalência geral àquilo que o
conjunto da sociedade pode ser e A produção capitalista unificou o
fazer. O espetáculo é o dinheiro espaço, que já não é limitado por
que apenas se olha, porque nele a sociedades externas. Essa unifi-
totalidade do uso se troca contra cação é ao mesmo tempo um pro-
a totalidade da representação abs- cesso extensivo e intensivo de ba-
trata. O espetáculo não é apenas nalização. A acumulação das mer-
o servidor do pseudo-uso, mas já é cadorias produzidas em série para
em si mesmo o pseudo-uso da vida o espaço abstrato do mercado, as-
(DEBORD, 1997:34). sim como devia romper as bar-

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reiras regionais e legais de todas lismo burocrático, vinculado aos regimes to-
as restrições corporativas da Idade talitários. O espetáculo difuso está presente
Média que mantinham a qualidade em regimes mais democráticos, onde a pro-
da produção artesanal, devia tam- dução de mercadorias em larga escala dá a
bém dissolver a autonomia e a impressão ao consumidor de que ele tem a
qualidade dos lugares (DEBORD, possibilidade de escolha.
1997: 111). Em Comentários sobre a sociedade do es-
petáculo, de 1988, Debord deposita seu o-
Na perspectiva de pensamento do autor, lhar sobre a presença da mídia como um ele-
estamos diante de um senso de inautentici- mento forte na vida das sociedades:
dade, onde o homem perdeu as suas capaci-
dades de criticar, pensar e agir. A mercado- Assim como a lógica da mercado-
ria é absolutamente suprema e o capitalismo ria predomina sobre as diversas
dirige toda a sociedade. Então, aparente- ambições concorrenciais de todos
mente, ao homem só resta contemplar, não os comerciantes, ou como a lógi-
há mais nada a fazer senão consumir e aceitar ca da guerra predomina sobre as
passivamente as ordens do sistema vigente. freqüentes modificações do arma-
Daí, Debord propõe uma possível saída para mento, também a rigorosa lógica
o homem escapar das armadilhas de sedução do espetáculo comanda em toda
da sociedade espetacular, que é a luta, a cri- parte as exuberantes e diversas ex-
ação de atitudes práticas. Na Tese 203, ele travagâncias da mídia (DEBORD,
apresenta seu ponto de vista: “Para destruir 1997: 171).
de fato a sociedade do espetáculo, é pre-
Com a observação sobre o poder da mí-
ciso que homens ponham em ação uma força
dia, Debord institui um terceiro tipo de es-
prática. A teoria crítica do espetáculo só
petáculo, o integrado. O espetáculo in-
se torna verdadeira ao unificar-se à corrente
tegrado constitui-se pela combinação das
prática da negação na sociedade” (DEBORD,
duas formas anteriores e tende a imprimir-
1997: 131-132). É pertinente observar que o
se mundialmente devido à força com que se
autor percebe a necessidade de realização de
apresenta diante dos cidadãos.
movimentos práticos de contestação, de cri-
A lógica do espetáculo integrado se dá na
ação de “situações”, as quais devem ser ne-
forma de integração da sociedade através da
gadoras das ordens do capitalismo e da so-
alienação. A sociedade compartilha os va-
ciedade vigente.
lores da passividade que são impostos pela
mídia.
3 O desaparecimento da opinião
O governo do espetáculo, que
pública
no presente momento detém to-
Dois tipos de espetáculo foram definidos dos os meios para falsificar o con-
por Debord (1997) em A sociedade do es- junto da produção tanto quanto
petáculo: o concentrado e o difuso. O es- da percepção, é o senhor abso-
petáculo concentrado é o típico do capita- luto das lembranças, assim como

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é senhor incontrolado dos proje- petáculo como um “elemento” que está cons-
tos que modelam o mais longín- tantemente a serviço do capitalismo e que faz
quo futuro. Ele reina sozinho por com que a vida das sociedades seja sem au-
toda parte e executa seus juízos tenticidade, baseada na alienação.
sumários (DEBORD, 1997:174). Na concepção de Debord, devido à pre-
sença do espetáculo, as sociedades moder-
De acordo com Debord, a sociedade mo- nas são caracterizadas pela alienação gene-
dernizada até o estágio do espetacular in- ralizada. O fetichismo da mercadoria é mar-
tegrado se caracteriza pela combinação de cante no cotidiano da população. O tempo
cinco aspectos principais: a incessante re- e o espaço perderam sua configuração “nor-
novação tecnológica, a fusão econômico- mal” e se tornaram virtuais. E as pessoas
estatal, o segredo generalizado, a mentira perderam a autenticidade nas suas formas de
sem contestação e o presente perpétuo. A viver – a vida tornou-se representação e pura
falta de contestação deu à mentira uma nova ilusão; as relações sociais passaram a ser me-
qualidade. Ao mesmo tempo em que a ver- diadas por imagens.
dade deixou de existir em todo lugar, a men- Debord tem um ponto de vista severo
tira sem contestação consumou o desapare- e radical sobre a sociedade moderna,
cimento da opinião pública, a qual ficou in- percebendo-a somente como alienada e es-
capaz de se formar em meio a um cenário petacular. Ele não demonstra em seus es-
dominado pelas informações midiáticas. critos conseguir perceber que as pessoas que
Debord salienta que o desaparecimento contemplam o espetáculo estão inseridas em
da opinião pública na sociedade do es- uma determinada cultura e que a competên-
petáculo traz importantes consequências cia cultural vai ser fundamental no momento
para a política, para as ciências aplicadas, em o espectador vai receber as mensagens
para a justiça e para o conhecimento artís- midiáticas. Quando ele fala da propaganda,
tico. O autor comenta que o espetáculo orga- deixa claro que esta tem poderes supremos
niza com habilidade a ignorância do público, sobre o público e que consegue criar neces-
a qual foi gerada por ele mesmo, e logo sidades de consumo – demonstrando, assim,
em seguida proporciona o esquecimento de a sua concepção acerca da supremacia do
tudo o que conseguiu ser conhecido. Afirma emissor sobre o receptor.
ainda que o discurso espetacular faz calar Não se pode desconsiderar a importância
as vozes que não lhe convém, e só faz vir do espetáculo em diversos momentos da vida
ao público um discurso descontextualizado, das sociedades. Temos que ter em mente que
sem história. o espetáculo precisa ser discutido e não so-
mente condenado, como fez Debord. O pen-
Considerações finais sador francês caiu no erro de só visualizar
perspectivas “ruins” em torno da espetacu-
Guy Debord, na obra A Sociedade do Es- larização, de desconsiderar todo o contexto
petáculo, faz uma incisiva crítica às ma- da sociedade em que ela ocorre e de não
nifestações espetaculares presentes nas so- mencionar em seus estudos a importância da
ciedades modernas. O autor situa o es- midiatização no contexto social.

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10 Michele Negrini & Alexandre Rossato Augusti

Para finalizar, reiteramos que a visão de-


bordiana acerca do espetáculo é integradora,
deixando claro que as mídias têm o poder
de integrar as sociedades através alienação,
além de ser totalitária. Em contrapartida,
sabemos que não se pode eliminar a possi-
bilidade de uma consciência crítica por parte
do espectador e que não se pode desconsi-
derar a importância do espetáculo para as so-
ciedades.

Referencias
D EBORD , GUY (1997). A Sociedade do Es-
petáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.

S CZPACENKOPF, Maria Izabel (2003). O O-


lhar do poder: a montagem branca e a
violência no espetáculo telejornal. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira.

S CHARTZENBERG, Roger-Gérard (1978). O


estado espetáculo. São Paulo: Difel.

S OUSA J UNIOR, Walter (2006). Apropria-


ções melodramáticas: o caso Pedrinho
no Jornal Nacional e em Senhora do
Destino. Comunicação & Educação.
Ano XI, n.2, p.197-206, maio/agosto
2006.

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