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O legado de Guy Debord: reflexões sobre o espetáculo a partir de sua obra 3
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moldada por ela. Só lhe é permi- mostra sempre a mesma coisa – tendo apenas
tido aparecer naquilo que ela não é a aparência de novidade, de que ele existe
(DEBORD, 1997:18). porque ele é o seu próprio fim e que ele vale
pelo seu desenrolar: “O caráter fundamental-
A segunda fase evidenciada por Debord mente tautológico do espetáculo decorre do
encontra correspondência com o pensamento simples fato de seus meios serem, ao mesmo
de Schwartzenberg (1978), quando o último tempo, seu fim. É o sol que nunca se põe no
define o star system em política. Nesse con- império da passividade moderna” (DEBORD,
texto, o homem político enfatiza o parecer, 1997:17).
ainda que lhe seja preciso simular ou dis- Para exemplificar as discussões de Debord
simular. É a composição de um personagem acerca da ideia de que o que vale no es-
que atrai atenção e impressiona a imagi- petáculo é o seu desenrolar, podemos falar da
nação que deve ser alcançada. “Atualmente, cobertura do telejornalismo ao caso da morte
o poder tem uma fisionomia; a do dirigente de Eloá Pimentel. Vamos abordar especifica-
que o exerce” (SCHWARTZENBERG, 1978: mente o caso do Jornal Nacional e do Jornal
2). Utilizar um representante (por exemplo, da Band. Nas coberturas destes dois telejor-
o homem político) que substitui o conjunto nais, podemos falar da semelhança do jorna-
que representa, serve como estratégia para lismo com a narrativa de teleficcção (SOUSA
desviar a discussão a respeito daquilo que é JUNIOR , 2006). O JN e o JB apresentaram
representado. “(...) falar o mínimo possível o caso em capítulos, os quais foram forma-
do fundo das coisas” (SCHWARTZENBERG, dos por diversos personagens e foram apre-
1978: 9). Avalia-se aquilo que é represen- sentando a história “aos poucos”, com base
tado a partir do representante, que é com- no seu desenrolar.
posto segundo conveniências. É um princí- Na concepção de A Sociedade do Es-
pio semelhante ao de Debord, quando diz petáculo, o caráter repetitivo e vago do es-
que a aparência da mercadoria é mais im- petáculo leva à dominação total dos homens,
portante que o seu valor de uso, pois é a da mesma forma que eles foram domina-
aparência que vai atrair a contemplação do dos pelo capitalismo. A expansão do es-
público e vai fazer com que a mercadoria petáculo significa, na concepção debordiana,
tenha aceitação. É a imagem colocada a perda do livre arbítrio por parte do especta-
serviço do capitalismo. dor, o qual fica totalmente fascinado com a
Segundos as discussões debordianas, o es- contemplação das imagens e seduzido pelos
petáculo está focado no seu desenrolar, é enredos que está acompanhando. Na Tese
no meio de um espetáculo que o público 18, Debord visualiza que o espetáculo mexe
se prende, mesmo que não vá chegar a ne- com o sentido da visão do homem, mas recai
nhum lugar específico. Debord acrescenta na perspectiva de que tudo é alienação:
que o espetáculo não precisa acrescentar
nada, basta ter um enredo com detalhes atra- Quando o mundo real se trans-
tivos. Na Tese 13, o autor reforça a ideia forma em simples imagens, as
que vem trabalhando de que o espetáculo simples imagens tornam-se seres
não traz nada de novo ao público, de que reais e motivações eficientes de um
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tadas por Szpacenkopf (2003). A autora vida social. A mercadoria está em tudo e o
salienta que o telejornal não é nada mais homem não consegue ver nada além dela, “o
que um espetáculo formado por informações mundo que se vê é o seu mundo” (DEBORD,
perecíveis. Para ela, o telejornal tem a 1997:30). Com a dominação da mercadoria
função de informar e de divertir o público e entre os agentes sociais e com a alienação
é submisso às leis espetaculares. dos espectadores, o consumo não se dá so-
As discussões de Szpacenkopf (2003) e mente pelo valor de uso, mas pela aparência
de Debord (1997) são complementares no do produto e pelas ilusões que ele gera:
pensamento de que o telejornal espetacu-
larizado tem como característica a apresen- (...) o uso sob sua forma mais po-
tação exaustiva de imagens, as quais acabam bre (comer, morar) já não existe
dando a impressão de serem mais reais que a a não ser aprisionado na riqueza
própria realidade que deu origem a elas. ilusória da sobrevivência amplia-
da, que é a base real da aceitação
da ilusão geral no consumo das
2 O fetichismo da mercadoria mercadorias modernas. O con-
Das ideias de Marx, Debord destaca o sumidor real torna-se consumidor
fetichismo da mercadoria e a alienação. O de ilusões. A mercadoria é essa
autor salienta na Tese 36: ilusão efetivamente real, e o es-
petáculo é a sua manifestação geral
O princípio do fetichismo da mer- (DEBORD, 1997: 33).
cadoria, a dominação da sociedade
por “coisas supra-sensíveis embo- Então, o valor de troca é preponderante,
ra sensíveis”, se realiza comple- é o que verdadeiramente interessa, enquanto
tamente no espetáculo, no qual o o valor de uso está impregnado de signifi-
mundo sensível é substituído por cações impostas pelo espetáculo, que está a
uma seleção de imagens que e- serviço do capitalismo. Neste ponto, é pos-
xiste acima dele, e que ao mesmo sível identificar pontos importantes no pen-
tempo se faz reconhecer como o samento de Debord, pois ele salienta a lógica
sensível por excelência (DEBORD, da publicidade. A publicidade cria ilusões de
1997: 28). necessidades no espectador para levá-lo ao
consumo. O consumidor, nesse caso, pode
Para Debord, o mundo que o espetáculo comprar um produto por ser de uma marca
mostra aos homens é o mundo da mercado- reconhecida como “boa” e pagar valor su-
ria que domina tudo o que é vivido. Os perior ao de outro cuja marca não traz o
homens acabam se afastando uns dos outros mesmo significado. É importante reiterar,
e tendo relações superficiais, as quais ocor- entretanto, que não se pode levar em consi-
rem de acordo com a circulação da mercado- deração a perspectiva da total alienação e de
ria, o que evidencia as relações sociais me- que o consumidor seja necessariamente pas-
diadas pelo capitalismo. A espetacularização sivo em relação a sua postura diante do que
é a materialização da mercadoria em toda a lhe é oferecido.
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O espetáculo é tratado por Debord como Debord deixa clara a sua opinião sobre
um agente de manipulação social e con- as bases do espetáculo, as quais, segundo
formismo político, chegando a ser com- ele, estão plenamente vinculadas ao capi-
parado a uma permanente Guerra do Ópio, talismo: “A raiz do espetáculo está no ter-
que tem como objetivos embriagar a cons- reno da economia que se tornou abundante,
ciência dos atores sociais e fazer com que e daí vêm os frutos que tendem afinal a do-
eles se identifiquem com as mercadorias que minar o mercado espetacular, a despeito das
estão sendo oferecidas pela indústria cul- barreiras protecionistas ideológico-policiais
tural e venham a consumi-las. Na medida de qualquer espetáculo local com pretensões
em que o espetáculo é alienante, deixando autárquicas” (DEBORD, 1997: 39).
o público refém da contemplação e atuando Ao observar a sociedade como alienada e
na criação de necessidades de consumo para como vislumbrada pelo fetiche da mercado-
esse público através da publicidade, ele será ria, Debord confere ao tempo espetacular
um agente da indústria cultural e terá to- o poder de desassociar o público do tempo
tais vinculações com a obtenção de lucro por cronológico, do tempo presente, e de inseri-
parte de seus idealizadores. Esse mecanismo lo em um tempo virtual. O tempo virtual
também evidencia sua ligação com o capita- está completamente ligado ao consumo da
lismo: mercadoria e forma uma base de alienação.
“O espetáculo, como organização social da
O espetáculo é a outra face do paralisia da história e da memória, do aban-
dinheiro: o equivalente geral abs- dono da história que se erige sobre a base
trato de todas as mercadorias. do tempo histórico, é a falsa consciência do
O dinheiro dominou a sociedade tempo” (DEBORD, 1997:108).
como representação da equivalên- Da mesma forma que o espetáculo tira as
cia geral, isto é, do caráter inter- bases reais do tempo, transformando-o em
cambiável dos bens múltiplos, cujo virtual, atua sobre os limites de espaço. Na
uso permanecia incomparável. O concepção de Debord, a produção capitalista
espetáculo é o seu complemento unificou os espaços; dissolvendo a autono-
moderno desenvolvido, no qual mia e as individualidades dos lugares. Che-
a totalidade do mundo mercan- gamos, assim, a espaços também virtualiza-
til aparece em bloco, como uma dos.
equivalência geral àquilo que o
conjunto da sociedade pode ser e A produção capitalista unificou o
fazer. O espetáculo é o dinheiro espaço, que já não é limitado por
que apenas se olha, porque nele a sociedades externas. Essa unifi-
totalidade do uso se troca contra cação é ao mesmo tempo um pro-
a totalidade da representação abs- cesso extensivo e intensivo de ba-
trata. O espetáculo não é apenas nalização. A acumulação das mer-
o servidor do pseudo-uso, mas já é cadorias produzidas em série para
em si mesmo o pseudo-uso da vida o espaço abstrato do mercado, as-
(DEBORD, 1997:34). sim como devia romper as bar-
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reiras regionais e legais de todas lismo burocrático, vinculado aos regimes to-
as restrições corporativas da Idade talitários. O espetáculo difuso está presente
Média que mantinham a qualidade em regimes mais democráticos, onde a pro-
da produção artesanal, devia tam- dução de mercadorias em larga escala dá a
bém dissolver a autonomia e a impressão ao consumidor de que ele tem a
qualidade dos lugares (DEBORD, possibilidade de escolha.
1997: 111). Em Comentários sobre a sociedade do es-
petáculo, de 1988, Debord deposita seu o-
Na perspectiva de pensamento do autor, lhar sobre a presença da mídia como um ele-
estamos diante de um senso de inautentici- mento forte na vida das sociedades:
dade, onde o homem perdeu as suas capaci-
dades de criticar, pensar e agir. A mercado- Assim como a lógica da mercado-
ria é absolutamente suprema e o capitalismo ria predomina sobre as diversas
dirige toda a sociedade. Então, aparente- ambições concorrenciais de todos
mente, ao homem só resta contemplar, não os comerciantes, ou como a lógi-
há mais nada a fazer senão consumir e aceitar ca da guerra predomina sobre as
passivamente as ordens do sistema vigente. freqüentes modificações do arma-
Daí, Debord propõe uma possível saída para mento, também a rigorosa lógica
o homem escapar das armadilhas de sedução do espetáculo comanda em toda
da sociedade espetacular, que é a luta, a cri- parte as exuberantes e diversas ex-
ação de atitudes práticas. Na Tese 203, ele travagâncias da mídia (DEBORD,
apresenta seu ponto de vista: “Para destruir 1997: 171).
de fato a sociedade do espetáculo, é pre-
Com a observação sobre o poder da mí-
ciso que homens ponham em ação uma força
dia, Debord institui um terceiro tipo de es-
prática. A teoria crítica do espetáculo só
petáculo, o integrado. O espetáculo in-
se torna verdadeira ao unificar-se à corrente
tegrado constitui-se pela combinação das
prática da negação na sociedade” (DEBORD,
duas formas anteriores e tende a imprimir-
1997: 131-132). É pertinente observar que o
se mundialmente devido à força com que se
autor percebe a necessidade de realização de
apresenta diante dos cidadãos.
movimentos práticos de contestação, de cri-
A lógica do espetáculo integrado se dá na
ação de “situações”, as quais devem ser ne-
forma de integração da sociedade através da
gadoras das ordens do capitalismo e da so-
alienação. A sociedade compartilha os va-
ciedade vigente.
lores da passividade que são impostos pela
mídia.
3 O desaparecimento da opinião
O governo do espetáculo, que
pública
no presente momento detém to-
Dois tipos de espetáculo foram definidos dos os meios para falsificar o con-
por Debord (1997) em A sociedade do es- junto da produção tanto quanto
petáculo: o concentrado e o difuso. O es- da percepção, é o senhor abso-
petáculo concentrado é o típico do capita- luto das lembranças, assim como
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é senhor incontrolado dos proje- petáculo como um “elemento” que está cons-
tos que modelam o mais longín- tantemente a serviço do capitalismo e que faz
quo futuro. Ele reina sozinho por com que a vida das sociedades seja sem au-
toda parte e executa seus juízos tenticidade, baseada na alienação.
sumários (DEBORD, 1997:174). Na concepção de Debord, devido à pre-
sença do espetáculo, as sociedades moder-
De acordo com Debord, a sociedade mo- nas são caracterizadas pela alienação gene-
dernizada até o estágio do espetacular in- ralizada. O fetichismo da mercadoria é mar-
tegrado se caracteriza pela combinação de cante no cotidiano da população. O tempo
cinco aspectos principais: a incessante re- e o espaço perderam sua configuração “nor-
novação tecnológica, a fusão econômico- mal” e se tornaram virtuais. E as pessoas
estatal, o segredo generalizado, a mentira perderam a autenticidade nas suas formas de
sem contestação e o presente perpétuo. A viver – a vida tornou-se representação e pura
falta de contestação deu à mentira uma nova ilusão; as relações sociais passaram a ser me-
qualidade. Ao mesmo tempo em que a ver- diadas por imagens.
dade deixou de existir em todo lugar, a men- Debord tem um ponto de vista severo
tira sem contestação consumou o desapare- e radical sobre a sociedade moderna,
cimento da opinião pública, a qual ficou in- percebendo-a somente como alienada e es-
capaz de se formar em meio a um cenário petacular. Ele não demonstra em seus es-
dominado pelas informações midiáticas. critos conseguir perceber que as pessoas que
Debord salienta que o desaparecimento contemplam o espetáculo estão inseridas em
da opinião pública na sociedade do es- uma determinada cultura e que a competên-
petáculo traz importantes consequências cia cultural vai ser fundamental no momento
para a política, para as ciências aplicadas, em o espectador vai receber as mensagens
para a justiça e para o conhecimento artís- midiáticas. Quando ele fala da propaganda,
tico. O autor comenta que o espetáculo orga- deixa claro que esta tem poderes supremos
niza com habilidade a ignorância do público, sobre o público e que consegue criar neces-
a qual foi gerada por ele mesmo, e logo sidades de consumo – demonstrando, assim,
em seguida proporciona o esquecimento de a sua concepção acerca da supremacia do
tudo o que conseguiu ser conhecido. Afirma emissor sobre o receptor.
ainda que o discurso espetacular faz calar Não se pode desconsiderar a importância
as vozes que não lhe convém, e só faz vir do espetáculo em diversos momentos da vida
ao público um discurso descontextualizado, das sociedades. Temos que ter em mente que
sem história. o espetáculo precisa ser discutido e não so-
mente condenado, como fez Debord. O pen-
Considerações finais sador francês caiu no erro de só visualizar
perspectivas “ruins” em torno da espetacu-
Guy Debord, na obra A Sociedade do Es- larização, de desconsiderar todo o contexto
petáculo, faz uma incisiva crítica às ma- da sociedade em que ela ocorre e de não
nifestações espetaculares presentes nas so- mencionar em seus estudos a importância da
ciedades modernas. O autor situa o es- midiatização no contexto social.
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10 Michele Negrini & Alexandre Rossato Augusti
Referencias
D EBORD , GUY (1997). A Sociedade do Es-
petáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.
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