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Vyv Simson e Andrew Jennings

OS SENHORES DOS ANÉIS


Poder, dinheiro e drogas nas Olimpíadas Modernas

Tradução de Celso Nogueira

EDITORA BEST SELLER


CÍRCULO DO LIVRO
Título original: The Lords of the Rings
Copyright © Ceres Productions, Ltda, 1992
Publicado sob licença de Simon & Schuster, Londres
Licença editorial para o Círculo do Livro
por acordo com a Editora Nova Cultural Ltda.
e o detentor dos direitos autorais.
Todos os direitos reservados.

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CÍRCULO DO LIVRO
Caixa postal 7413
01051 São Paulo, Brasil
Fotocomposto na Editora Nova Cultural Ltda.
Impressão e Acabamento: Gráfica Círculo
Sumário

Introdução
Será que o Esporte é Isso?
1 Bem-vindos a Barcelona
2 O Sistema
3 Dassler Toma Coca-Cola
4 De Montreal a Monte Carlo
5 Com o Braço Erguido Eu o Saúdo
6 O Camaleão Manhoso
7 A Jóia da Coroa
8 O ISL Dita as Regras
9 O Peso Morto
10 O Ouro Negro de Olímpia
11 As Pedras na Bota
12 Vinte Milhões de Dólares
13 As Trapaças
14 Escândalo
15 Bem Na Cara de Todos
16 Um Advogado de Des Moines
17 Sinais de Alarme
18 O Ditador Benevolente
19 O Número do Sapato da Filha Mais Nova
20 Destruindo as Olimpíadas

Apêndice A: Calendário das Olimpíadas Modernas

Apêndice B: Membros do Comité Olímpico Internacional


INTRODUÇÃO
SERÁ QUE O ESPORTE É ISSO?

Este livro revela os fatos que a televisão e os jornais não contam a respeito
das Olimpíadas e do esporte internacional. Durante quatro anos procuramos
descobrir quem controla o esporte, para onde vai ,o dinheiro e porque um mundo
considerado belo e puro há dez anos, tornou-se antidemocrático, obscuro, cheio
de drogas e acabou leiloado para servir ao marketing das companhias
multinacionais.
Para nossa surpresa, nos deparamos com a investigação mais difícil de
nossas vidas. Nos últimos anos escrevemos e fizemos documentários para a
televisão sobre a Máfia, o caso Irã-Contras, o terrorismo, a corrupção na Scotland
Yard e outras áreas sombrias da vida pública.
O mundo do esporte amador olímpico provou ser o mais difícil de penetrar.
Jamais encontramos tantas dificuldades em conseguir entrevistas autorizadas,
documentos e fontes primárias. Um dirigente olímpico respeitado chegou ao ponto
de contratar advogados, para tentar impedir a publicação das críticas às lideran-
ças olímpicas, feitas durante uma longa entrevista gravada!
Esta foi nossa grande descoberta sobre o mundo do moderno esporte
olímpico. Trata-se de um domínio secreto, elitista, onde as decisões sobre o
esporte, o nosso esporte, são tomadas a portas fechadas, onde se gasta rios de
dinheiro para criar um estilo de vida fabuloso para um círculo restrito de dirigentes
em vez de providenciar melhores condições para os atletas, onde o dinheiro
destinado ao esporte acaba desviado para contas bancárias no exterior e onde os
dirigentes se perpetuam no poder, sem se perturbar com eleições.
Este livro, portanto, não fala dos competidores que lutam pelas medalhas
de ouro. Trata do mundo oculto dos homens engravatados, dos homens que
manipulam o esporte segundo seus próprios objetivos.
Não somos jornalistas esportivos. Não fazemos parte do círculo onde
muitos repórteres preferiram concentrar a atenção nos eventos esportivos,
ignorando o modo como o esporte vem sendo destruído pela cobiça e pela
ambição. Como resultado, um dos momentos mais reveladores para nós foi
quando sofremos críticas veementes do diretor de informação do Comité Olímpico
Internacional (COI), na Suíça, só porque fizemos perguntas diretas a um alto
dirigente olímpico. Agimos como um repórter age, em qualquer matéria. Tal
comportamento não é aceitável no mundo clandestino e egoísta do COI. Se o
esporte pretende sobreviver, necessitará da atenção de muitos outros jornalistas
sem vínculos ou compromissos com os Senhores de Lausanne.
Ao avançar além da pompa e da hipocrisia das Olimpíadas modernas e de
seu líder, recordamos repetidamente do comentário de uma criança no dia em
que o imperador desfilou com seu novo traje: "O rei estava nu". Isso deveria ser
óbvio para qualquer pessoa a quem a propaganda não conseguiu cegar.
Como no restante de nosso trabalho de muitos anos, não podemos
agradecer em público às fontes que mais nos ajudaram. Depois de muito esforço,
os documentos chegaram às nossas mãos, e pessoas gentis, preocupadas com o
esporte, deram sugestões e apontaram áreas que exigiam investigações e
denúncias. Esperamos que este livro as ajude em suas batalhas para tirar o
esporte das mãos de um pequeno grupo.
Assumimos a responsabilidade final pelo conteúdo deste livro, é claro.
Gostaríamos de agradecer a Pat Butcher, Mark Dowie, Jock Ferguson, Pierlunghi
Ficoneri, sir Arthur Gold, Nick Ha-yes, Fred Holder, Dennis Howell, Arquivo de
Segurança Nacional de Washington, Susan O'Keefe3 Ron Pickering (já falecido),
Claire Powell, John Rodda, Claire Sambrook, Montse Trivino e Giovanni Ulleri por
sua ajuda e participação de várias formas.
Temos um grande débito para com nossos tradutores, Sabas-tian Balfour,
Franco Bossari, Patrick Buckley, Lucy Davies e Nic-ki DiCiolla, pêlos conselhos
esplêndidos, que foram muito além do significado das palavras. Recomendamos
aos leitores que desejam saber mais a respeito da história de Juan António Sara-
manch a consulta ao livro El Deporte dei Poder, de Jaume Boix e Arcadio Espada,
publicado em 1991 pelas Ediciones Temab -ie Hoy, em Madri.
Agradecemos também aos dirigentes da Associação Olímpica Britânica,
por permitir a consulta de sua biblioteca.
Finalmente, e como sempre, somos gratos pelo apoio das pessoas mais
próximas a nós, sem o qual este projeto não teria sido realizado.
Vyv
Simson
Andrew
Jennings
Janeiro
de 1992
1
BEM-VINDOS A BARCELONA

Bem-vindos à Espanha. Bem-vindos a Barcelona, a antiga cidade romana de


Barcino, a "Cidade dos Condes" medieval, rodeada de muralhas.
Bem-vindos a Barcelona. Capital da Catalunha orgulhosa e independente,
segunda cidade da Espanha, e por séculos rival ferrenha de Madri, a capital.
Bem-vindos a Barcelona. Cidade para onde Cristóvão Colombo retornou
após a descoberta do Novo Mundo, em 1492.
Bem-vindos a Barcelona. Cidade de Salvador Dali e Pablo Picasso, de
Pablo Casais e José Careiras e de Cobi, o cão surrealista.
Cobi, o cão surrealista? Certamente. Pois Barcelona também é a sede dos
Jogos Olímpicos de 1992, e Cobi, um cachorro de gibi, é o mascote olímpico da
cidade.
Estamos às vésperas da estréia das Olimpíadas. A capital da Catalunha,
abarrotada de gente. Quatrocentos mil espectadores são esperados em
Barcelona. Eles incharão a cidade, a ponto de explodi-la. O maior espetáculo da
terra vai começar. Bem-vindos a Barcelona.
o comité organizador dos Jogos Olímpicos, para os responsáveis pelo
planejamento e financiamento das duas semanas fantásticas, aproxima-se a hora
da verdade. O comité, como acontece com quase tudo no mundo do esporte
internacional, tem uma sigla: COOB'92 (Comité Organizador das Olimpíadas de
Barcelona). Seu presidente é o prefeito socialista de Barcelona, Pasqual Maragall.
Ele fala com entusiasmo sobre o "caso de amor" entre sua cidade e as
Olimpíadas. A paixão de Barcelona custou a Maragall e sua diretoria executiva
mais de l bilhão de libras, apenas para sediar um evento de duas semanas.
Mais 2 bilhões de libras do dinheiro público foi gasto pela cidade, para
comprar e desapropriar terrenos, construir a Vila Olímpica e 43 quilômetros do
novo anel viário, reformar ou erguer do zero quarenta e três locais exigidos pelo
extenso programa esportivo das Olimpíadas e, finalmente, para ampliar o
aeroporto de Barcelona.
Seis anos antes, em outubro de 1986, Barcelona derrotou Brisbane, Paris,
Amsterdã, Belgrado e Birmingham na corrida para sediar os Jogos Olímpicos de
1992. Os bate-estacas, guindastes e máquinas de terraplenagem tomaram conta
da cidade. Desde então, os moradores de Barcelona vivem em um gigantesco
canteiro de obras. Mas o prefeito Maragall e sua equipe podem dormir
sossegados, sabendo que tudo está pronto para as Olimpíadas.
No dia 2 de outubro de 1988, na cerimônia de encerramento dos Jogos de
Seul, a bandeira olímpica criada pelo fundador dos jogos modernos, barão Pierre
de Coubertin, foi entregue a Maragall. No sábado, 25 de julho de 1992, a bandeira
branca com os cinco anéis entrelaçados representando os cinco continentes, que
se tornou o símbolo mais conhecido no mundo depois da cruz cristã, será içada
no estádio Montjuic de Barcelona. Tudo estará pronto para a cerimônia de
abertura da 25? Olimpíada.
O estádio de Montjuic é a peça central na orgia de esportes de duas
semanas e na orgia de gastos de seis anos. Nesta cerimônia, 70 mil espectadores
rodearão reis e rainhas, príncipes e princesas, xeques e rajás, primeiros-ministros
e presidentes acomodados na Tribuna de Honra. Os ingressos valerão US$ 500.
O estádio se destaca no "Anel Olímpico", nome dado pelo comité
organizador para a área de Montjuic de onde se pode avistar a cidade, a oeste, e
o Mediterrâneo, a leste.
O estádio tem uma longa história olímpica. A pedra fundamental foi
colocada há 64 anos, pelo conde Henri Ballet-Latour, então presidente do comité
olímpico. Montjuic fora construído na tentativa anterior feita por Barcelona para
sediar os jogos. Em 1931 a 30? sessão — ou reunião anual — do Comité
Olímpico Internacional, detentor dos direitos dos Jogos Olímpicos, realizou-se no
Hotel Ritz, em Barcelona.
Dez dias antes da abertura, o novo governo esquerdista da Espanha
proclamou a república no país. Um marquês e cinco condes encontravam-se
entre o grupo refinado que se reuniu no Ritz de Barcelona, mnco condes
encontravam-se entre o grupo refinado que se reuniu no Ritz de Barcelona, mas a
maioria de seus pares se manteve a distância. Eles resolveram promover pelo
correio a votação que escolheria a cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 1936.
Quando os votos retornaram, Barcelona descobriu que perdera a indicação para a
Berlim de Adolf Hitler.
Desapontados e revoltados, os cidadãos radicais de Barcelona
promoveram uma competição alternativa no novo estádio de Montjuic. Balizaram
o evento de "Olimpíada Popular de Barcelona", caracterizando seu desafio. Em
julho de 1936, 5 mil atletas e 20 mil espectadores foram recebidos em Barcelona
pelo prefeito da cidade e participaram da Olimpíada Popular.
Os jogos de Barcelona terminaram pouco depois do início. O dia seguinte
foi marcado pelo início do levante militar que deu origem à Guerra Civil
Espanhola. A Olimpíada Popular foi cancelada, e muitos atletas e espectadores
juntaram-se às forças republicanas concentradas na capital catalã. Barcelona
tornou-se um pólo de oposição ao general Franco e seus seguidores fascistas. O
ditador jamais perdoou esta oposição, e fez com que os cidadãos de Barcelona
pagassem um alto preço por ela, nos quarenta anos seguintes. Milhares de
opositores de Franco morreram, e muitos outros milhares foram presos, mas os
catalães que se dispuseram a erguer os braços na saudação tradicional do
Movimento fascista do ditador prosperaram.
A vingança do Generalíssimo sobre Barcelona incluiu até as ambições
olímpicas da cidade. Em dezembro de 1965 Barcelona competiu contra Madri
pela indicação como candidata da Espanha à sede dos Jogos de 1972. A reunião
para decidir entre as duas cidades foi marcada para a véspera do Natal. Poucos
dias antes, o representante de Barcelona recebeu um telefonema e foi avisado
que não precisava se dar ao trabalho de comparecer à reunião. "Não será
importante. Apenas uma prestação de contas", disse o autor da chamada.
Barcelona fora lograda. Três dias antes do Natal, a sede do movimento
olímpico na Suíça recebeu a informação de que Madri era a cidade espanhola
escolhida como candidata para sediar o evento em 1972.
— Naquele tempo o homem de El Pardo ainda vivia — lembra um catalão,
referindo-se ao poder absoluto do general Franco. Mas agora o líder está morto. A
Espanha tornou-se novamente uma democracia, e os fascistas companheiros de
Franco trocaram os uniformes por ternos. Em 1992, o estádio de Montjuic
realizará finalmente seu destino olímpico.
Nos últimos seis anos o local passou por uma reforma completa.
Reconstruído, manteve a aparência de 1930, preservada como "um tributo ao
esporte e ao espírito olímpico das pessoas da cidade, das gerações que lutaram
desde o início do século para sediar os Jogos."
Quatro escadas rolantes gigantescas levarão 14 mil pessoas por hora para
o Anel Olímpico, onde acompanharão os lances das estrelas do atletismo contra
os recordes mundiais; assistirão os embates entre as estrelas da ginástica, vôlei e
basquetebol no ginásio esportivo futurista de Palau Saint Jordi; acompanharão os
esforços dos nadadores nas magníficas piscinas de Picornell.
Em Poblenou, à beira-mar, encontra-se o Pare de Mar. Um terreno de 640
mil metros quadrados abriga prédios de seis andares, com vista para o mar. Pare
de Mar é a Vila Olímpica, recebendo por duas semanas 15 mil atletas de mais de
160 países. Toda a área foi rodeada de uma cerca de segurança alta. A segu-
rança dos atletas ganhou prioridade desde que onze competidores israelenses
foram assassinados por terroristas em Munique, em 1972.
Por trás da cerca, o complexo possui restaurante, agência dos correios,
banco, agência de viagens, aluguel de carros, supermercado, livraria, farmácia,
bar, salões de descanso e leitura. O restaurante servirá aos atletas mais de 900
mil refeições durante as Olimpíadas.
Próximo ao estádio Montjuic, na borda do Anel Olímpico, situa-se o Centro
de Imprensa Principal. Liga-se a centros de imprensa satélites instalados nos
locais de competição, na Vila Olímpica ,e nas duas "vilas de imprensa"
especialmente construídas em Badalona e Vai d'Hebron, nos subúrbios de
Barcelona. O Centro de Imprensa receberá 10 mil profissionais credenciados, re-
presentando jornais e emissoras de rádio e televisão de todo o mundo que se
encaminharão para Barcelona.
Finalmente, na famosa Diagonal, a rua mais comprida de Barcelona, fica o
luxuoso Hotel Princesa Sofia. Nos últimos dois anos, os proprietários espanhóis
investiram US$ 10 milhões em reformas. Ò hotel foi redecorado luxuosamente,
para receber os hóspedes mais importantes dos jogos. Não haverá ali estrelas do
atletismo, natação ou ginástica. O Princesa Sofia será, nas duas semanas dos
Jogos Olímpicos, sede do Clube.
O "Clube" é uma das sociedades fechadas mais poderosas, lucrativas e
secretas do mundo. Por intermédio do Clube, um punhado de "presidentes"
nomeados comanda o esporte mundial.
A suíte presidencial do Princesa Sofia receberá o membro mais importante
do Clube, o supremo pontífice olímpico, o rei inconteste do esporte mundial, o
espanhol Juan António Samaranch.
Ele preside o COI, o discrepante grupo de indivíduos "proprietários" das
Olimpíadas. No comando há uma década, Samaranch considera as Olimpíadas "o
movimento social mais importante e de maior prestígio no mundo
contemporâneo". Isso pode surpreender os milhões de telespectadores que
consideravam as Olimpíadas somente um evento esportivo quadrienal.
"Ele é igual a um rei, o meu chefe", confidencia um membro do COI. Ao
que parece, os líderes políticos do mundo concordam. Tratam aquele senhor de
72 anos, baixo, com cabelos prateados, que disputou apenas uma eleição em
doze anos de presidência, como um verdadeiro chefe-de-estado. Quando não
está visitando a Casa Branca, o Vaticano, o Kremlin ou o Palácio do Povo em
Pequim, Juan António Samaranch concede audiências exclusivas para os
primeiros-ministros e presidentes do mundo, em sua residência olímpica de
Lausanne. Recebe homenagens por toda a parte. Universidades e chefes-de-
estado o cobrem de comendas e medalhas, prêmios e títulos honoríficos.
Samaranch afirma que o Comité Olímpico Internacional constitui a "maior
autoridade moral em esportes competitivos do mundo". Esta afirmação parte do
líder de uma organização humilhada em Seul, quando precisou tomar a medalha
de ouro nos 100 metros de Ben Johnson, que correu entupido de esteróides.
Samaranch compara o movimento olímpico a uma pirâmide. Naturalmente,
ele e seus noventa e poucos companheiros do COI, escolhidos aleatoriamente em
apenas 75 países, ocupam o topo. Durante os Jogos Olímpicos de 1992, os
membros do COI, acompanhados de familiares e convidados, chegarão de todas
as partes do mundo, em vôos de primeira classe, para lotar centenas de
apartamentos no Princesa Sofia. O hotel inteiro foi reservado, há alguns anos,
para servir de quartel-general para o Clube.
Nas Olimpíadas de Barcelona, Samaranch será um presidente realizado,
ao comandar sua corte no Princesa Sofia, Barcelona é a cidade natal de
Samaranch. Levar os Jogos Olímpicos para casa constitui a suprema glória para
o líder.
Em uma suíte ligeiramente mais discreta no Hotel Princesa Sofia, como
dita o protocolo olímpico, hospeda-se outro poderoso membro do Clube: o
brasileiro Dr. João Havelange. Membro do COI desde 1963, dois anos a mais do
que Samaranch, ele reina sobre o esporte mais popular do mundo — o futebol.
Em 1974, Havelange elegeu-se presidente da Federação Internacional de Futebol
Association, mais conhecida por sua sigla, FIFA. Assim como o presidente
olímpico, Havelange não enfrentou mais nenhuma eleição depois de assumir o
comando do esporte mais popular do mundo. Há quase vinte anos o presidente
Havelange tem sido um dos dirigentes esportivos mais influentes.
Quando Barcelona lançou sua campanha para sediar as Olimpíadas, no
início da década de 1980, o presidente Samaranch, sendo espanhol e catalão,
declarou que se manteria neutro na disputa. Podia se dar a este luxo. Todos
conheciam a posição do presidente, e não faltou quem se dispusesse a defender
sua cidade natal. O mais poderoso, seu amigo brasileiro, João Havelange,
organizou os membros do COI de fala espanhola para apoiar a campanha de
Barcelona.
O processo foi pouco edificante, segundo uma descrição: "Revelou-se o
lado inaceitável do Movimento Olímpico, com suas recepções suntuosas, convites
aos membros de todo o mundo para visitar os locais das provas e distribuição de
presentes, um quadro que se completou com o envolvimento de reis e primeiros-
ministros no processo final de escolha."
Em 1985, na reunião do COI em Berlim, Jacques Chirac, ex-premiê
francês, líder do grupo que lutava pela escolha de Paris, atacou as manobras
políticas de Havelange, que pretendia levar os Jogos para Barcelona. Chirac,
acostumado aos corredores do poder, percebeu que Paris estava perdendo
terreno. Segundo um comentarista, Chirac "ameaçou usar sua influência na África
para impedir que Havelange se reelegesse para a presidência da FIFA. Não resta
dúvida que Havelange, com seu poder sobre a América do Sul e Central, pode
gerar uma maioria dentro do COI."
Mais adiante, na Rua Diagonal de Barcelona, fica o Hotel Hilton, reservado
para um dos esteios da pirâmide olímpica de Samaranch, as federações
esportivas internacionais, conhecidas como IFs. As federações controlam, a nível
mundial, os vinte e cinco esportes presentes nos Jogos Olímpicos de Barcelona.
Elas determinam as regras e regulamentos para as competições olímpicas.
Em um carro com chofer, seguindo do aeroporto para sua suíte, encontra-
se um membro do Clube, o presidente Primo Nebiolo. Uma série de escândalos
reduziu temporariamente seu poder no mundo esportivo, mas quando se trata dos
Jogos, ele ainda dá as cartas. Nebiolo comanda o atletismo, o esporte-chave das
Olimpíadas, o que o torna o terceiro membro do Clube em importância.
Esse italiano é vital para Samaranch. O presidente olímpico teme o poder
de Nebiolo, porque sem o atletismo os Jogos Olímpicos deixariam de ser o
espetáculo esportivo número um do mundo. Os eventos de Nebiolo são as jóias
da coroa olímpica. Fornecem brilho e dólares. As companhias de televisão de
todo o mundo soltam seu dinheiro para registrar as imagens das estrelas que-
brando recordes.
Não se lucra com atletas convictos de que o importante é apenas competir.
Na Federação Internacional de Atletismo Amador, um nome curioso para a
entidade que controla o suprimento de estrelas olímpicas, dirigida por Nebiolo, os
atletas "amadores" passeiam em Ferraris e Porsches.
Primo Nebiolo, peça fundamental para a continuidade do sucesso dos
Jogos Olímpicos, vem sendo mantido fora do Comité Olímpico Internacional.
Muitos membros do COI desconfiam de Nebiolo. Sua ambição é palpável,
transpira por cada poro de seu rosto permanentemente bronzeado. Ele não
possui os modos suaves e diplomáticos de Samaranch, presidente do COI, nem a
elegância mundana e sofisticada de Havelange. Nebiolo é um bataIhador, um
sobrevivente, um encrenqueiro, e isso ofende a sensibilidade de muitos dos
seletos membros do Comité Olímpico Internacional.
Nebiolo não perdeu as esperanças. No ano passado, um u>i-gente
esportivo igualmente controvertido tornou-se membro do comité. Chegando a
Barcelona em seu jatinho particular, o multimilionário Mário Vasquez Rabina,
magnata da mídia mexicana, ocupará outra suíte presidencial, Rabina também
ocupa posição de destaque no Clube. Ele preside a Associação dos Comitês
Olímpicos Nacionais, conhecida pela sigla ANOC.
Os comitês olímpicos nacionais formam o terceiro ponto de apoio da
pirâmide olímpica de Samaranch. Cada país possui o seu, mas eles pouco
aparecem, a não ser no ano da Olimpíada, quando levantam fundos para enviar
equipes aos Jogos.
As tarefas dos NOCs, os Comitês Olímpicos Nacionais, são detalhadas em
um dos documentos menos lidos do mundo, apesar de sua importância: a Carta
Olímpica. No passado, a Carta era apenas uma declaração de ética, objetivos e
ideais. Com o crescimento dos Jogos, cresceu também a pomposidade da Carta.
A função dos NOCs é "divulgar os princípios fundamentais das olimpíadas a nível
nacional... e contribuir também para a difusão dos ideais olímpicos nos programas
pedagógicos escolares". Os NOCs decidem qual a cidade, entre as maiores do
país, será candidata à sede dos Jogos. Apenas uma cidade de cada país con-
corre, mas em função dos custos poucos países se inscrevem.
Existem atualmente mais de 160 comitês olímpicos nacionais,
representando países como a República Popular da China, com mais de l bilhão
de habitantes, até Mônaco, com cerca de 25 mil. A Carta Olímpica estabelece que
eles devem "resistir a todas as pressões, de qualquer tipo, inclusive aquelas de
natureza política ou econômica." Trata-se de uma regra ignorada nos anos em
que os partidos comunistas comandaram o Bloco Oriental, quando os dirigentes
esportivos eram nomeados somente em função de sua devoção a Marx e Lênin.
Muitas nações do Terceiro Mundo integram seus NOCs aos Ministérios do
Esporte controlados pelo governo. Vários membros do COI e presidentes dos
NOCs são oficiais de alta patente, originários de países governados por juntas
militares. A independência política e econômica é tão remota, em países assim,
quanto à urna eleitoral.
No restante dos 2.300 quartos de hotel reservados exclusivamente para a
Família Olímpica, irão hospedar-se outros membros do Clube. Entre eles, o
presidente Un Yong Kim, da Coréia do Sul. O Dr. Kim preside a Federação
Mundial de Taek-wondo, uma arte marcial coreana. Segundo Samaranch, "Kim é
um consultor em quem confio plenamente."
Kim é um veterano do mundo olímpico. Destacou-se como o membro mais
importante do comité encarregado de organizar os Jogos Olímpicos em Seul. O
Dr. Kim, tendo feito carreira em uma das ditaduras militares mais brutais do
mundo, foi recompensado com o cargo de conselheiro especial do presidente da
Coréia. Alguns membros do COI apontam Kim como sucessor de Samaranch.
Outro nome lembrado para o mais alto cargo olímpico é o de um membro
canadense do Clube, um advogado de Montreal, Dick Pound, conhecido por ser
direto — às vezes até demais. Em 1991 Pound deixou o cargo de vice-presidente
do COI, quando seu mandato de quatro anos chegou ao fim. Mas ele continua
sendo uma das figuras mais influentes do mundo olímpico, pois Pound é o
negociador de direitos para a televisão mais experiente do COI. Este canadense
de aparência complacente representa o COI quando as Olimpíadas vão a leilão.
Um membro do Clube, ausência notável da festança de Barcelona, antigo
colega norte-americano de Pound, é o advogado Robert H. Helmick, de Dês
Moines, lowa. Até o final de 1991, Helmick presidia o poderoso Comité Olímpico
dos Estados Unidos — conhecido como USOC. Ele assinava os contratos
multimilionários de suporte financeiro, em dólares. Ao mesmo tempo, era membro
da diretoria executiva do COI. Helmick se posicionava para suceder Samaranch,
mas no ano passado foi acusado de receber dinheiro de organizações esportivas
e empresas de marketing e televisão interessadas em contratos com o movimento
olímpico. Foi forçado a renunciar ao USOC, e depois ao próprio COI.
Desfrutam também de todos os luxos os membros do Clube que
representam o outrora poderoso Bloco Oriental: Vital Smirnov e Marat Gramov, da
Rússia; Alexandru Siperco, da Romênia; Vladimir Cernusak, da Tchecoslováquia;
Shagdarjav Mag-van, líder sindical da Mongólia; Wlodzimierz Reczek, da Polônia;
Ivan Slavkov, da Bulgária; e, claro, o veterano Gunther Heinze, vindo de Berlim
Oriental, agora representando a nova Alemanha unificada.
Com o inesperado triunfo da democracia em seus países, muitos deles
foram demitidos de seus cargos e poderes no esporte — mas permanecem no
COI até o final da vida, viajando pelo mundo e representando apenas a si
mesmos.
Nos vinte e sete anos passados desde a entrada de Juan António
Samaranch para o COI, a organização passou da miséria à riqueza. No início dos
anos 1960, a situação financeira do Comité Olímpico era catastrófica. Os Jogos
de Roma, em 1960, deram um prejuízo de 300 milhões de liras. Mas ainda havia
uma esperança. As empresas de televisão vieram em seu socorro. Contudo, a
sobrevivência se dava precariamente. Reggie Alexander, na época representando
o Quênia no COI, ofereceu-se para arranjar um contador disposto a cuidar dos
livros do COI de graça. Desde então, as coisas melhoraram bastante. Atualmente
a renomada empresa internacional Price Waterhouse cuida da auditoria das
contas.
A contabilidade do COI é mantida em segredo. Descobrimos que em
dezembro de 1990, o presidente Samaranch cuidava de uma organização com
US$ 20 milhões de orçamento anual e bens no valor de US$ 118 milhões. Possui
quase US$ 60 milhões em dinheiro — sabiamente divididos em francos suíços (75
por cento) e dólares (25 por cento), para tirar proveito das taxas de juros mais
altas.
O COI de Samaranch, com base na Suíça, passou de um grupo de onze
pessoas amontoadas em três salas no segundo andar de uma casa chamada
Mon Repôs para uma equipe de 61, instalada em um luxuoso complexo de
prédios revestidos de mármore rodeados por jardins bem-cuidados, em volta do
castelo de Vidy, em Lausanne. Apenas a folha de pagamento anual atinge hoje a
soma de 8 milhões de francos suíços. Em breve haverá mais escritórios. Uma
ampliação e salas subterrâneas ligarão o castelo de Vidy com a Casa Olímpica
vizinha.
E o império continua a crescer. Quando o COI se reunir em Lausanne, para
sua 100? sessão, em junho de 1993, o presidente Samaranch inaugurará seu
projeto mais ambicioso: um museu olímpico no valor de 40 milhões de dólares. A
idéia foi custeada por conglomerados internacionais agradecidos, felizes pela
oportunidade de formar fila para doar um mínimo de US$ l milhão cada para o
presidente. Samaranch, confiante no toque de Midas das Olimpíadas, não hesitou
em arrematar o Atleta Americano, uma estátua em bronze de Auguste Rodin. O
presidente Samaranch tinha certeza de que um patrocinador apareceria para
bancar seu custo. Não se pode chamar seu otimismo de exagerado. As doações
para o museu superaram a casa dos US$ 20 milhões.
Os comitês olímpicos auto-nomeados, responsáveis pelas finanças,
doping, medicina esportiva e organização dos jogos olímpicos de inverno e verão,
cresceram de sete, quando Samaranch entrou em cena em 1966, para os
dezessete atuais. Apenas estes comitês consomem anualmente 4,5 milhões de
francos suíços.
Passagens de primeira classe em vôos de carreira ou aviões fretados e
hospedagens em hotéis luxuosos para membros do COI custa mais 2 milhões de
francos suíços por ano. Outros 3 milhões de francos suíços vão para a assessoria
de imprensa, material de divulgação e atividades de relações públicas.
Manipular profissionalmente a cobertura da mídia é algo crucial -para
Samaranch. O COI contratou uma das maiores agências de relações públicas do
mundo. Samaranch declarou: "O mundo do esporte está mudando rapidamente, e
a complexidade das questões e a amplitude dos interesses comerciais cresce
constantemente. Para lidar com estas circunstâncias, decidimos aumentar o
alcance e a profissionalização de nossas comunicações."
A agência de publicidade Grey, contratada para "aumentar o alcance e a
profissionalização" das comunicações coloca a questão de forma mais clara: "Em
nossa opinião", insiste o diretor Ed Meyer, "o movimento olímpico internacional é
como uma marca', e precisa de um guardião para preservá-la e desenvolver seu
potencial futuro. A Grey se orgulha de seu rol de sucessos em termos de
assistência aos clientes na implementação de marcas mundiais importantes, e
pretendemos ajudar o COI neste sentido."
A Olimpíada como uma "marca mundial": O movimento olímpico de
Samaranch encontra-se num mundo diferente daquele descrito por um ex-
presidente olímpico, que declarou: "As Olimpíadas não são um negócio, e aqueles
que almejam ganhar dinheiro com o esporte não são bem-vindos. É isso e
pronto!" Aqueles que desejam ganhar dinheiro com o esporte, hoje em dia, são
recebidos de braços abertos. O preço que o Comité Olímpico Internacional de
Samaranch cobra das companhias de televisão e conglomerados comerciais
multinacionais é assombroso.
Para os Jogos Olímpicos em Barcelona só as companhias de televisão de
todo o mundo concordaram em pagar um total de US$ 663 milhões. A rede norte-
americana NBC entrou com US$ 416 milhões. A União Européia de Emissoras
pagou US$ 90 milhões. A NHK lidera um grupo de emissoras de televisão japo-
nesas, bancando US$ 62,5 milhões. O Canal 7 australiano pagou quase US$ 34
milhões. Mesmo com o caixa baixo, o Leste Europeu contribuiu com US$ 4
milhões. Todo este dinheiro se soma aos US$ 289 milhões que as companhias de
televisão mundiais já pagaram este ano pêlos direitos de transmitir as Olimpíadas
de Inverno, realizadas em fevereiro em Albertville. Na Olimpíada de Roma, em
1960, a televisão pagou apenas US$ l milhão.
E isso é só o começo da avalanche de dólares. Graças à televisão, uma
audiência global de quase 3,5 bilhões de consumidores está disponível. Uma
dúzia de multinacionais — entre elas a Coca-Cola, Visa e Mars — pagaram até
US$ 30 milhões cada para garantir os direitos mundiais de vincular seus produtos
aos Jogos Olímpicos, com exclusividade. Outras dez companhias, incluindo
nomes como Seiko, Danone e Asics, cujos produtos não podem concorrer com as
marcas dos patrocinadores principais, pagaram um mínimo de US$ 6 milhões
pelo direito de incorporar o logotipo dos Jogos em seus anúncios.
A Rank Xerox, Philips, IBM, Seat e outras quatro companhias, cuja
contribuição foi considerada "essencial para a organização dos jogos", e que se
dispuseram a pagar um mínimo de US$ 23 milhões cada, foram aceitas como
colaboradoras dos organizadores do evento de Barcelona. Outras dezoito
companhias, dispostas a fornecer serviços e produtos no valor mínimo de US$ 2
milhões, como equipamentos de escritório, cabos de força e sinais, completam o
quadro, como fornecedores oficiais das Olimpíadas de Barcelona.
Ancorados no porto de Barcelona estarão dezesseis transatlânticos de
luxo. Foram alugados para atender às necessidades destas corporações
patrocinadoras, colaboradoras e fornecedoras. Elas contam com 2,5 mil
apartamentos flutuantes para uso de seus executivos e convidados.
Na cabines e decks do Royal Viking Sun passearão 740 magnatas,
convidados e celebridades da rede norte-americana NBC. Ao lado dos homens de
televisão e seus convidados estarão os navios Danae e Seabourn Spirit. Estes
hotéis flutuantes, igualmente luxuosos, hospedarão os diretores, amigos e clientes
da IBM espanhola e da companhia norte-americana 3M — mais dois dos doze
patrocinadores mundiais das Olimpíadas.
O estilo de vida dos patrocinadores olímpicos nos transatlânticos
ancorados em Barcelona deverá espelhar o tipo de vida desfrutado pêlos
membros do Clube, em terra. Todo evento social olímpico é um carrossel
constante de viagens de primeira classe, hotéis cinco estrelas, recepções regadas
a champanhe, banquetes nababescos, montanhas de presentes e programas
requintados. E, frequentemente, não há um único atleta à vista.
O hotel cinco estrelas Hyatt Regency situa-se em frente ao novo Centro
Internacional de Convenções de 160 milhões de libras, na parte nobre da
segunda cidade britânica. O Hyatt é o hotel mais novo e caro de Birmingham.
Grande, imponente, pintado de azul, foi classificado, para desespero de seus
proprietários, como o mais pavoroso dos novos prédios ingleses. A torre de
concreto e vidro repete o estilo arquitetônico "insosso" internacional moderno.
Poderia ter sido construído em qualquer lugar do mundo onde os executivos das
grandes empresas resolvessem torrar dinheiro.
Na frente do hotel tremula a bandeira olímpica. Em junho de 1991, o
Birmingham Hyatt Regency serviu de quartel-general temporário do Clube, que se
reunia pela última vez antes do ano olímpico. O grosso da conta foi pago pêlos
anfitriões, ou seja, a prefeitura de Birmingham.
— Lamento, senhor, mas é proibido circular nesta área —, informou um
dos muitos policiais da região de West Midlands, parado na entrada do Hyatt.
Bem, ele não estava realmente na entrada, e sim a uns seis metros da porta.
Ninguém pode se aproximar do acesso ao hotel. Há um grupo numeroso de
policiais operando um sistema de segurança imenso, do tipo existente em
aeroportos, montado na calçada. O sistema inclui raios-X para examinar a
bagagem e detetor de metais. Tanto o Hyatt quanto o Centro Internacional de
Convenções se transformaram em uma "ilha se segurança total", no jargão dos
especialistas. Na prática, isso significa que os meros mortais não podem entrar.
— Mas somos jornalistas credenciados — protestamos.
— Sinto muito, senhor, mas não permitem a entrada de ninguém — foi à
resposta. Uma frota de limusines brancas, todas ostentando os cinco anéis
olímpicos e a placa "carro oficial", entram e saem do Hyatt. Ao volante sempre há
moças louras idênticas, de pernas longas. As limusines conduzem uma fila de
pessoas bem-vestidas, homens em sua maioria, na entrada do hotel. Trata-se dos
noventa e poucos membros do Comité Olímpico Internacional, recém chegados
na primeira classe dos jatos que pousam no aeroporto internacional de
Birmingham.
A polícia cuida da bagagem daquela gente tão importante, e escolta os
grupos pêlos controles de segurança. Uma limusine, maior do que as outras,
chega escoltada por batedores de motocicleta. A prefeitura de Birmingham
poderia hospedar uma família sem teto num carro daqueles, e ainda sobraria
espaço para alguns parentes. Oculto na barriga do monstro, um Rover Regency
cinza-metálico de vinte e quatro cilindros, encontra-se o membro mais importante
do Clube: o presidente olímpico Juan António Samaranch.
Como no caso do Princesa Sofia de Barcelona, o Hyatt foi inteiramente
reservado para o uso do movimento olímpico. Teve as portas fechadas ao público
três dias antes do início da 97a. sessão, a reunião anual do COI. Patrocinar a
burocracia esportiva do presidente Samaranch, e a publicidade decorrente, é tão
desejável que hoje em dia as cidades disputam vigorosamente o privilégio de
sediar até as meras reuniões do COI. Imaginem o que não fariam para ter as
Olimpíadas!
Os rivais de Birmingham no privilégio de sediar a reunião eram Moscou,
Belgrado, Nairobi, Riad, Monte Cario e Budapeste. Como acontece na disputa
pelas Olimpíadas, foram realizadas várias sessões de votação, onde se
descartava a cidade na última colocação, até que a vencedora conseguisse
maioria absoluta. Na última rodada restaram apenas Budapeste e Birmingham.
Um dos membros favoráveis a Budapeste, representante do Kuwait, resolveu sair
da sala para fumar um cigarro. Enquanto estava fora, Birmingham ganhou a
parada — por um voto. Respondendo a uma pergunta do presidente Samaranch,
Mary Glan-Haig, um dos dois membros britânicos do COI, disse que o resultado
foi "decisão de Alá".
Os organizadores do evento em Birmingham concordaram em pagar as
diárias dos 319 apartamentos do Hyatt durante uma semana — independente de
sua ocupação ou não. Só as despesas de hospedagem neste hotel chegam a
34.689 libras por dia, ou 277.512 libras por semana. Na suíte presidencial de
cobertura, onde a diária chega a 595 libras, está Juan António Samaranch. O
presidente pode receber seus convidados para jantar numa mesa com doze
lugares; descansar nos sofás perto da lareira da sala de estar; fazer
hidromassagem na imensa banheira Jacuzzi; tocar piano de cauda ou
simplesmente tirar uma soneca na cama com dossel.
A suíte já foi ocupada anteriormente por estrelas do show business, como
Gloria Estefan, Paul Simon, Rod Stewart e Billy Idol. Tina Turner queria ficar ali,
mas Cher chegou primeiro.
— A suíte costuma ser usada às vezes por empresas privadas — disse a
gerente de relações públicas do Hyatt, Catriona McFad-den. — Mas isso era mais
comum no ano passado. Este ano tivemos muitos cancelamentos, por causa da
recessão. Falta dinheiro, na verdade. Por isso esta reserva foi ótima para nós.
Temos uma semana garantida, em vez de ficarmos às moscas.
As suítes executivas do Hyatt, um pouco menos luxuosas, com diárias de
295 libras, foram reservadas para os três membros mais antigos do mundo
olímpico. O restante da corte olímpica, seus parentes e convidados, precisam se
contentar com 8 suítes júnior, 35 apartamentos Regency Club e 242
apartamentos de luxo.
— O COI cuidou da distribuição das acomodações — disse McFadden. —
São muito cuidadosos com o protocolo. Visitaram o hotel pela primeira vez há um
ano, para ver se as instalações estavam à altura. Levaram uma planta do hotel,
com os quartos e seus tamanhos, e organizaram a distribuição. Depois nos visi-
taram mensalmente, para manter contato e conferir as providências tomadas.
"Lausanne informava a distribuição dos quartos por fax. Havia mudanças a
todo momento. A certa altura, mandavam fax com tanta freqüência que nem
registrávamos as alterações no computador! Nunca vi algo assim, e duvido que
um dia isso aconteça novamente. O mais próximo que vi foi uma reunião do Parti-
do Conservador — mas não chegava nem aos pés. Estas pessoas agem como se
fossem chefes-de-estado.
"Mas sem dúvida trata-se de um bom negócio para o hotel, A situação do
mercado não é das melhores no momento, e o evento nos dá muita publicidade.
Aparecemos na televisão todas as noites, esta semana!"
Lá dentro do Hyatt, o circo olímpico completo está montado. Membros do
COI, patrocinadores das grandes empresas, pessoal de marketing, dirigentes dos
comitês olímpicos nacionais e presidentes de federações internacionais
encontram-se e conversam num local que mais parece uma gigantesca estufa. Há
palmeiras nos vasos, árvores em jardineiras de terracota e fontes iluminadas. Sob
a luz discreta do teto de vidro, um violinista toca clássicos populares. Uma
pianista se instala no piano de cauda. Surge um conjunto de cordas. Eles tocam
Take a Good Care of Yourself (Cuide Bem de Si Mesmo). Não precisam se
preocupar com este aspecto.
Os grupos se distribuem pelo saguão. Rodeiam a piscina como piranhas,
esperando por uma oportunidade de dar sua mordidinha. Por trás das colunas
neo-clássicas no setor da recepção principal, formam-se as rodinhas de agentes e
pessoal da mídia, cheios de idéias para vender e negócios para fechar. Os funcio-
nários do hotel circulam discretamente, nas áreas públicas, polindo
constantemente os tampos das mesas de mármore e vidro.
A televisão do Kuwait, num canto, filma o jovem xeque Ah-mad. Seu traje
bordado em ouro combina com a bengala de ouro em sua mão. O pai do xeque,
já falecido, representava o Kuwait no COI, e foi morto a tiros pelas tropas do
Iraque na invasão de agosto de 1990. O jovem xeque assumiu o lugar do pai,
como titular do comité olímpico nacional do Kuwait. Espera substituir o pai no
COI, também. Cada gesto seu é filmado. O xeque se levanta. A câmera começa a
funcionar. O xeque senta. A câmera começa a filmar. O xeque pede chá. A
câmera, pelo jeito, não pára nunca.
Nos quartos do Hyatt encontram-se flores, vinhos e frutas de boas-vindas.
Outra maneira de recepcionar os hóspedes é enviar caixas de chocolates de uma
fábrica local, Cadbury's. Repentinamente, os corredores se agitam. Os chocolates
são arrancados das mãos dos hóspedes! A empresa Mars pagou dezenas de mi-
lhões de dólares para patrocinar, em escala mundial e oficialmente, as
guloseimas olímpicas, e não podem ter seu território invadido pela concorrência.
"Boas-vindas especiais ao departamento de marketing do COI", diz uma nota
impressa no cardápio da brasserie do hotel. Muito especiais, sem dúvida.
Um dos membros destacados do Clube, o italiano Primo Nebiolo, senhor
supremo do atletismo mundial, desce as escadarias do hotel. Ele se move pelo
saguão como se usasse patins. Abraça Charles Mukora, antigo representante da
Coca-Cola no Quênia, agora membro do COI. Mukora também participa do
conselho da federação de atletismo de Nebiolo. A um passo atrás do presidente
segue um de seus assessores de imprensa. As pessoas se cumprimentam com
beijos e abraços exagerados.
Esposas e filhos acompanham os hóspedes. O programa de atividades
cobre a semana inteira, preenchendo as horas disponíveis, nos períodos em que
os membros do COI se reúnem. A "programação social" inclui uma visita à fábrica
real de porcelana de Worcester e uma excursão a Stratford-upon-Avon, local de
nascimento de Shakespeare. Isso sem falar no passeio pelas antiguidades de
Shropshire, com direito a almoço em Stanley Hall, residência de um dos diretores
da Christies, a famosa firma internacional de leilões. Para terminar, uma exclusiva
visita a Willey Park, em companhia dos proprietários da famosa mansão, lorde e
lady Forester.
Essas saídas se somam às atividades sociais já previstas para os
membros da família olímpica. Uma companhia de bale apresenta o Lago dos
Cisnes. A orquestra sinfônica da cidade de Birmingham dá um concerto, na outra
noite. Há também os banquetes. Um jantar formal, oferecido pelo próprio
presidente Samaranch; um almoço com a presença de Sua Majestade a rainha e
o jantar promovido pela Associação Olímpica Britânica, em homenagem ao
Comité Olímpico Internacional.
Este último evento glamouroso teve como anfitriã a Princesa Real Arme, no
castelo de Warwick, um dos mais belos castelos medievais da Inglaterra. A
princesa Anne faz parte do COI, onde a Grã-Bretanha tem dois representantes, e
preside a BOA, Associação Olímpica Britânica. A bem da verdade, ela também
preside a Federação Eqüestre Internacional, um cargo herdado do pai, o príncipe
Philip. Para realizar este evento, a BOA reservou uma noite no castelo, e recebeu
cerca de 300 convidados com champanhe, no salão principal. Em seguida, numa
tenda erguida nos gramados do castelo, aconteceu o banquete, com sopa gelada
de agrião, salmão e morangos com biscoitos ao brandy e creme.
O presidente Samaranch e esposa compareceram ao banquete como
convidados de honra. A esposa do presidente desceu graciosamente pela porta
traseira da limusine com chofer, e, num reflexo condicionado, ergueu a mão e
acenou para a multidão — embora não houvesse multidão alguma. A festa era
particular.
Um cavaleiro de armadura e uma banda de gaita de foles saudou os
membros do Clube que chegavam. Um gaiteiro solitário tocava nas ameias
iluminadas da Torre Guys, quando os convidados partiram, cerca de três horas
depois. Ao receber os agradecimentos, no dia seguinte, um dirigente graduado do
BOA retrucou: "Não foi nada. Preferimos as coisas simples."
A abertura da sessão, por si só, já foi um grande espetáculo. A cerimônia
começou às 15 horas, no dia 12 de junho de 1991, no salão principal do Centro
Internacional de Convenções. Acompanhado de uma fanfarra, com os
trombeteiros dos Life Guards, o presidente e a Sra. Samaranch entraram na
tribuna real, com Sua Majestade a Rainha e o duque de Edimburgo. Atrás deles
sentaram-se os membros do COI. Na tribuna real, quebrando o protocolo do COI,
instalou-se também Primo Nebiolo. Ele entrou graças a um pedido do presidente
Samaranch. Alguns membros do COI ficaram contrariados com a presença do
italiano, mas como confidenciaram mais tarde a nós, "como alguém poderia dizer
ao presidente do COI quem ele deveria pôr ou não na tribuna real, na abertura da
sessão do COI?"
Após as referências obrigatórias à visão do barão Pierre de Coubertin,
fundador das Olimpíadas modernas, Samaranch disse à platéia: "O esporte
olímpico não pode se transformar em mero show business." Ele sugeriu que o
modo de se evitar isso seria "convencer os meios de comunicação de massa a
nos ajudar a dar mais importância aos valores éticos do esporte."
Ele devotou um parágrafo aos problemas éticos do doping, e depois bem
mais tempo atualizando os presentes sobre os progressos de seu museu
olímpico. Afirmou que "as soluções podem ser encontradas para tudo." Em
seguida Sua Majestade a Rainha discursou. Ela disse ao presidente Samaranch
que "os olhos do mundo estarão voltados para os resultados das deliberações.
Confio que o movimento olímpico continuará a prosperar, sob a direção de
pessoas que, como o senhor, servem à causa com tanta devoção." Depois disso,
a rainha declarou aberta a 97a. sessão do Comité Olímpico Internacional.
A platéia foi brindada, em seguida, com uma apresentação de uma hora da
Royal Variety Performance de Birmingham. Em um espetáculo intitulado "Uma
Amostra da Grã-Bretanha", membros da Escola de Dança Contemporânea do
Norte, Guarda dos Granadeiros, gaitistas e percussionistas da Guarda Escocesa
e cantores dos Corais Masculinos dos Midlands apresentaram uma cansativa
história das olimpíadas antigas, e depois uma explicação do desenho da bandeira
britânica, o Union Jack, com música e da dança.
Os membros do COI adoraram tudo. Quando o segundo batalhão da
Guarda Escocesa entrou pêlos fundos do auditório e marchou pelo meio da
platéia, subindo ao palco de saiote, tocando gaita de foles, os membros do COI
acompanharam o ritmo com os pés e as mãos. Depois de ouvirem Amazing
Grace em silêncio, embevecidos, começaram a aplaudir com entusiasmo.
As estrelas do show foram as crianças fantasiadas de lepre-chauns, uma
espécie de duende irlandês. "Elas são sensacionais!" exclamou um membro do
COI ao voltar para o Hyatt, onde descansaria um pouco. "Uma das melhores
festas de abertura já realizadas." Certos membros do COI, mais idosos,
precisavam mesmo de uma soneca, para enfrentar o restante das atividades
previstas para aquele dia. Dentro de duas horas, os membros do COI e seus
hóspedes deveriam comparecer a um concerto, seguido de ceia no final da noite.
Em meio a tanta badalação, cerimônias e programas, fica difícil lembrar
que a sessão do COI é o parlamento anual e órgão supremo do movimento
olímpico. Na teoria, este encontro anual debate e depois vota a política a ser
implementada em nome das Olimpíadas. Apesar do comparecimento maciço da
imprensa — 500 repórteres, fotógrafos e equipes de televisão credenciados com-
pareceram a Birmingham —, quase nada do que se debate realmente no COI é
revelado. As reuniões se realizam a portas fechadas. Representantes da
imprensa não podem entrar. Em geral, as informações sobre os temas discutidos
e decisões tomadas sofre o controle rígido da assessoria de imprensa do COI.
Esta operação é controlada por Madame Michele Verdier. Segundo o COI, trata-
se de "uma pessoa bem-informada, que os jornalistas adoram questionar." A
imprensa britânica, contudo, a chama de "o Bernard Ingham do COI", em uma
comparação ferina com o famigerado responsável pelo controle das informações
de Margaret Thatcher.
Madame Verdier controla tudo. Aquela mulher espevitada, pálida, de
cabelos escuros cacheados, sempre imaculadamente vestida com trajes escuros,
calçando sapatos confortáveis e pesados, desempenha suas tarefas olímpicas
como um dobermann. Ela serve de filtro oficial ao COI. De acordo com o sistema
de Madame Verdier, a agenda olímpica não muda nunca. Pela manhã, exata-
mente às 8h45, no início de cada reunião do COI, ela escolta fotógrafos e
cinegrafistas até o saguão, para uma "chance de registrar imagens". Ali eles
podem fotografar e filmar o Clube, que se prepara para discutir os grandes temas
do dia. Sobre o tablado instalam-se os membros do círculo íntimo de Samaranch,
a diretoria executiva. Entre eles, Dick Pound, do Canadá, Un Yong Kim, da Coréia
do Sul, Kevan Gosper da Austrália e Zhenialing He, da China. Esta "chance" dura
exatos quinze minutos. Madame Verdier, depois de sobrevoar a cena
ansiosamente, escolta fotógrafos e cinegrafistas para fora, e tranca a porta atrás
deles. Os representantes da imprensa mundial sentam-se para tomar café,
cortesia da casa. Alguns querem beber algo mais forte.
— Uma cerveja, por favor.
— Certamente, senhor. Mas infelizmente precisará pagar por ela.
O centro de imprensa ostenta os logotipos e produtos dos financiadores
das Olimpíadas. O local é inundado por Coca-Cola e chocolates Mars grátis. As
máquinas de escrever eletrônicas são fornecidas pela Brother, e o fax pela Ricoh,
patrocinadores mundiais dos Jogos Olímpicos. Os jornalistas aceitam,
deslumbrados, as sacolas Adidas, tudo faz parte do esquema de relações públi-
cas. A imprensa entra para a família olímpica, para o time olímpico.
No fim da reunião matinal realiza-se a entrevista coletiva, sob o comando
de Madame Verdier. Atrás dela, duas gigantescas bandeiras olímpicas são
desfraldadas. Os jornalistas presentes ouve*:1 seu relato resumido dos
acontecimentos. Se pedem esclarecimentos sobre pontos obscuros, ela se vale
de desculpas como "Isso não foi discutido em profundidade", ou "não creio que tal
tema estivesse em pauta".
Alguns jornalistas mais ousados reclamam. Não tiveram acesso ao hotel
Hyatt. Não permitem que entrem e conversem a sós com membros do COI, para
tentar descobrir o que realmente aconteceu na sessão secreta. Mas Madame
Verdier vê o problema de um outro ângulo. Dois jornalistas japoneses ousaram
aproximar-se de um membro graduado do COI, no final de uma sessão, antes que
escapassem para seu santuário no Hyatt. Em função disso, a segurança foi
reforçada no lado de fora do salão de reuniões, para impedir a repetição do fato.
Depois de dois dias de negociações, Madame Verdier anuncia um acordo.
Receberemos passes especiais. Mas haverá apenas quarenta passes para o
contingente de quinhentos e tantos jornalistas. No dia seguinte apareceu um aviso
no centro de imprensa: "Por favor, não abusem do sistema de passes, ou este
privilégio será cancelado." Foi posto ali por ordem de Madame Verdier.
O sistema de fotos posadas e entrevistas coletivas prossegue. Somente no
último dia o presidente Samaranch comparece em pessoa, para falar à imprensa
mundial. A última coletiva acontece no salão recém-ocupado pêlos membros do
COI. Mesmo no final das deliberações, o serviço de segurança não permite que
os jornalistas entrem no local de conferência antes do sinal verde de Madame
Verdier.
Samaranch chega. Ele inicia sua fala ressaltando: "Encontramos aqui
excelentes condições de trabalho." Usa o inglês, idioma oficial do COI, ao lado do
francês. Nos fundos do salão, os tradutores vertem as declarações para seis
línguas. Samaranch permite perguntas. Querem saber como ficam os casos da
Catalunha e Gibraltar, que pressionam por um representante independente no
COI. Samaranch responde que acabou de formar mais uma comissão para
estudar a questão. Será comandada pelo juiz Mbaye, do Senegal. "Pedirei a ele
que comente este tema", diz Samaranch.
O juiz, sentado ao lado do presidente, parece perplexo. Diz ao jornalista
que fez a pergunta: "Ainda não posso adiantar nada. Fui nomeado para a tarefa
hoje de manhã." Os problemas de um recente escândalo de doping são
levantados. Samaranch vai abrir inquérito? "Não. Trata-se de um assunto para a
Federação Atlética Amadora Internacional", diz o presidente, que encerra o
assunto.
Conseguir informações específicas vai se tornando difícil, abundam as
generalidades. Mas poucos jornalistas o apertam para valer. Depois de 45
minutos, Samaranch declara que a entrevista está encerrada. Quando sai, boa
parte dos jornalistas se ergue para aplaudi-lo.
O aplauso entusiástico será indubitavelmente ouvido novamente em
Barcelona, saudando o líder do Clube. O moto desta Olimpíada é "Amigos para
Sempre". Os membros do Clube já são amigos para sempre. E levam uma boa
vida, num circo constante de reuniões, negócios e acordos no agora lucrativo,
poderoso e badalado mundo do esporte internacional. A ironia é que, em
Barcelona, as duas únicas pessoas ausentes desta última reunião do Clube foram
os homens que tornaram tudo possível.
2
O SISTEMA

Naquela manhã de abril o Clube se reuniu em um cenário diferente do


carrossel costumeiro de hotéis cinco estrelas, banquetes e espetáculos esportivos
internacionais. A reunião ocorreu em 1987, um ano antes da Olimpíada de Seul.
O Clube compareceu a um serviço fúnebre, na igreja de Notre-Dame de
Lausanne, na Suíça.
Os dirigentes do esporte mundial representavam os três ramos da família
olímpica — O Comité Olímpico Internacional, as federações esportivas
internacionais e os comitês olímpicos de cada país. Sentaram-se em silêncio,
chocados, enquanto o presidente Juan António Samaranch lembrava a todos o
motivo de sua presença. "Estamos aqui reunidos para prestar uma tributo a um
grande homem, e rezar por ele." O grande homem, razão do comparecimento dos
presidentes e secretários-gerais do vasto mundo do esporte, normalmente tão
festeiros, não era nenhum grande atleta olímpico, e muito menos um membro
importante do COI. Tratava-se de um empresário. Os altos dirigentes do esporte
mundial, atentos e compenetrados nos bancos da igreja de Notre-Dame naquela
manhã, estavam ali para honrar a memória de Horst Dassler, diretor da Adidas
alemã, a maior companhia fabricante de artigos esportivos do mundo.
"Horst Dassler dedicou a vida ao esporte", entoou Samaranch. "Não há
necessidade de repetir aqui o que realizou durante sua carreira, pois todos os
presentes estão bem-informados." Samaranch não exagerava. Horst Dassler não
era a penas o homem que vendia os tênis mais conhecidos do mundo, com as
famosas três listas. Horst Dassler criou o Clube.
"Ele tinha muitos amigos entre nós", prosseguiu o dirigente olímpico. "E
será lembrado e respeitado, durante muito tempo, por todos nós. Lamentamos
sinceramente a perda de seu conhecimento, visão e profunda compreensão da
complexa realidade esportiva do esporte mundial."
Sob a orientação de Dassler no trato da "complexa realidade" esportiva, os
dirigentes internacionais ganharam um poder e um prestígio jamais sonhados.
"Falo por mim, e com certeza por muitos outros", prosseguiu Samaranch,
"ao afirmar que a qualidade mais notável de Horst Dassler foi sua contribuição
pessoal a todos os necessitados de assistência no mundo esportivo."
Manipulando com astúcia os "necessitados de assistência no mundo
esportivo", Dassler criou a estrutura atual do esporte internacional, dominado
pêlos empresários. Durante o processo, ele também transformou a Adidas,
fabricante de equipamentos esportivos e a empresa de marketing ISL em duas
instituições esportivas de grande influência internacional.
Cinco anos se passaram desde a morte de Dassler, e a marca Adidas não
é mais controlada por sua família. Mas a companhia de marketing ISL sim. Possui
exclusividade mundial na venda dos direitos da Copa do Mundo de futebol, do
Campeonato Mundial de atletismo, do Campeonato Mundial de basquete e, final-
mente, dos Jogos Olímpicos. Além disso, os direitos da ISL sobre alguns destes
contratos avançam até o próximo século.
"Orgulhamo-nos por fazer parte de seu círculo de amizades. Estou seguro
que cada um de nós guarda lembranças muito especiais deste homem
extraordinário, a quem o esporte tanto deve. Obrigado, Horst, por tudo que
realizou. Adeus, velho amigo. Sentiremos sua falta!"
Os louvores de Samaranch ainda ecoavam nos ouvidos dos mais
poderosos dirigentes esportivos mundiais quando estes saíram da igreja de Notre-
Dame e voltaram imediatamente para seus negócios.
Horst Dassler morreu de câncer no dia 10 de abril de 1987. Com apenas
51 anos, encontrava-se no auge de seu poder. Na época de sua morte, o império
Adidas faturava mundialmente US$ 2,2 bilhões. Ele empregava mais de 12 mil
pessoas, e fabricava 400 produtos esportivos, de bolas a sacolas, de jaquetas a
raquetes. As fábricas, espalhadas da Europa até o Extremo Oriente, despejavam
no mercado mais de 250 mil pares de tênis por semana.
Grande pane dos clientes da Adidas não pratica esportes. Segundo um
obituário, "milhões de pessoas usam os calçados da companhia para tarefas
pouco cansativas, como apanhar o controle remoto da televisão". Mas, para
manter os entusiastas da poltrona como compradores de seus produtos, Dassler
fazia questão de que os vencedores também usassem Adidas. Nas Olimpíadas
de Los Angeles, as últimas antes da morte de Dassler, ele se gabou de que 80
por cento dos atletas, na corrida, natação, futebol, basquete ou boxe usavam
seus produtos, levando as três listas e o trevo da Adidas a uma platéia de bilhões,
via televisão.
Uma pessoa não compareceu à reunião de membros do Clube no serviço
fúnebre de Lausanne, em homenagem ao colosso do mundo dos negócios. O
ausente era Patrick Nally, antigo sócio nos negócios e braço direito de Horst
Dassler. Nally também guarda "lembranças muito especiais" de Horst Dassler,
para usar as palavras do presidente Samaranch. E até agora Patrick Nally con-
servou estas lembranças só para si.
"Quando o presidente Samaranch conferiu a Horst a medalha da Ordem
Olímpica, três anos antes de sua morte", declarou Nally, "ele anunciou que Horst
a recebia por sua fidelidade aos ideais olímpicos do fundador das Olimpíadas
modernas, Pierre de Coubertin. Sei que os dirigentes esportivos mundiais balan-
çaram a cabeça em sinal de aprovação, mas o pobre Coubertin deve ter se
revirado na cova."
Patrick Nally foi o homem que trabalhou ao lado de Horst Dassler para
desenvolver o Clube. Juntos, eles lançaram as bases dos campeonatos mundiais
esportivos: montanhas de dólares, cobertura maciça da televisão, federações
fabulosamente milionárias e presidentes badalados.
"Horst tornou-se o dono das marionetes do mundo esportivo", afirmou
Nally. "Mexeu os pauzinhos para criar mudanças significativas, sendo a maior
delas seu legado de controle dos Jogos Olímpicos modernos. Horst adorava
controlar e manipular. Era realmente excelente, comandar as marionetes o
entusiasmava. Agindo nos bastidores, sabia muito bem que as coisas acabavam
acontecendo inteiramente de acordo com seu plano."
Quando Nally associou-se a Dassler, no começo acreditava que agiam em
benefício do esporte. Mas no início da década de 1980 ele começou a ter
algumas dúvidas. "Cheguei a um ponto onde se tornou difícil descobrir de que
lado eu estava. Do lado dos patrocinadores, que despejavam dinheiro para
melhorar sua imagem? Do lado das federações esportivas, que gastavam o
dinheiro? Ou do lado de Horst Dassler, que explorava tudo em função da Adidas?
A história das origens da Sportschuhfabriken Adidas é bem conhecida.
Parece um conto de fadas de Hans Christian Andersen ou uma história dos
irmãos Grimm. Era uma vez um rapaz chamado Adolf Dassler, que vivia com o
irmão Rudolph na pequena cidade alemã de Herzogenaurach. Os dois
trabalhavam como sapateiros. Certo dia, os irmãos brigaram seriamente. A
discussão foi tão pesada que Adolph e Rudolph resolveram nunca mais se falar.
Separaram-se, e passaram a trabalhar como concorrentes no ramo da sapataria,
em margens opostas do rio Aurach. Rudolph batizou sua oficina de Puma. A
empresa fundada por Adolph e sua esposa recebeu o nome de Adidas, uma
'combinação não muito criativa de Adolph, mais conhecido como Adi, e Dassler.
Mas, ao contrário do que ocorre nos contos de fadas, eles não viveram felizes
para sempre.
"Mesmo depois do famoso rompimento que gerou a Adidas e a Puma as
brigas na família Dassler continuaram freqüentes", recorda-se Nally. "Horst tinha
quatro irmãs, e vivia com medo que estas disputas familiares terminassem com
outra separação completa, igual à ocorrida entre seu pai e o tio Rudolph. Este
medo constante, que um dia coincidiu com mais um dos intermináveis confrontos
dentro da família, finalmente levou Horst a deixar a Adidas da Alemanha. Ele
mudou para a França, e iniciou sua própria Adidas, em Landersheim. Implantar a
Adidas francesa foi a solução de Horst para se afastar dos problemas familiares."
Embora a Adidas alemã e ele ainda mantivessem vínculos, por intermédio
da companhia holding familiar, havia uma atitude muito competitiva entre as duas.
"Todos os choques se deviam, basicamente, a um conflito de personalidades",
disse Nally. "Mas, ironicamente, de certo modo os constantes atritos eram muito
bons, porque todos ficaram mais competitivos. Horst e a família eram em geral
agressivos e bem-sucedidos."
Dassler usou a Adidas francesa para erguer seu próprio império dentro do
esporte. Secretamente, através da companhia, ele conseguiu monopolizar o
mercado de equipamentos esportivos. Adquiriu sub-repticiamente outras
empresas fabricantes de material esportivo, e comprou quotas de concorrentes do
ramo de calçados, como a Pony.
"Horst não tinha apenas a marca Adidas", declarou Nally. "Ele estava
criando um segundo grupo para fabricar equipamentos esportivos, desvinculado
do nome Adidas, caso outro racha fundamental acontecesse. Neste caso, deixaria
a Adidas de lado, reforçaria sua base na França e levaria o que pudesse consigo."
Dassler amava os esportes genuinamente. Era um esportista en-
tusiasmado. Na juventude jogou hóquei e ganhou campeonatos de arremesso de
dardo. Mas, acima de tudo, adorava o atletismo.
"Ele se considerava um velocista, de certo modo", disse Nally. "De vez em
quando me desafiava para uma corrida. Mesmo dez anos mais velho, ele me
deixava para trás.
"Também viva fascinado com os ídolos do esporte, com os melhores
atletas. Como um eterno garoto, ficava maravilhado com as estrelas. Eu achava
extraordinária a maneira como aquele homem se emocionava ao conhecer a nata
do esporte. Quando os encontrava, invariavelmente os adulava. Era realmente
muito estranho, levando-se em conta o quanto ele se tornaria poderoso.
"Horst sempre empregou muitos atletas. Gente como Robbie Brightwell e
John Boulter, o corredor dos 800 metros nas Olimpíadas, constavam de sua folha
de pagamentos. Conhecia profundamente o atletismo. Estava profundamente
envolvido com as Olimpíadas, onde o atletismo reinava. O atletismo é uma das
chaves para o mundo olímpico. A Adidas construiu seu nome e reputação graças
a este esporte. Jesse Owens, na Olimpíada de 1936 em Berlim, ganhou quatro
medalhas de ouro calçando Adidas. É só olhar para as fotografias dos campeões
olímpicos. Os anos passam, mas a imagem das três listas nos calçados se repete
regularmente.
"O pai de Horst, o velho Adolph, compreendeu a importância de fixar a
marca, e a importância das Olimpíadas. As pessoas se esquecem, hoje em dia,
de que este era o único evento realmente internacional em atletismo, na época.
Adolph Dassler percebeu que se tornava cada vez mais importante criar o mito de
que só a Adidas fazia tênis para campeões. 'O vencedores usam Adidas.' Em
outras palavras, se alguém ia ganhar a medalha de ouro, a ganharia usando
Adidas."
A estratégia de Horst Dassler, herdada do pai, se baseava em contatar os
atletas e pagá-los. A meta era garantir que todos os esportistas de destaque
usassem equipamento Adidas. Ele se encarregaria, então, de associar o "mito"
dos grandes atletas com a marca Adidas. Havia um problema nisso, pois os
atletas eram teoricamente amadores. As tentativas de Dassler para garantir que
todos os esportistas de destaque usassem Adidas provocou atritos tanto com o
Comité Olímpico Internacional, na época presidido por um norte-americano
austero, Avery Brundage, quanto com a Federação Internacional de Atletismo
Amador, dirigida pelo britânico lorde Exeter.
Como resultado da "guerra do tênis" entre as companhias rivais, que se
estendeu aos vestiários e pistas dos Jogos Olímpicos de 1968 no México, as
federações atléticas decidiram que nos eventos internacionais futuros, apenas
tênis sem marcas seriam permitidos.
"Resolvemos introduzir esta regra em função dos acontecimentos no
México", disse lorde Exeter. "Na próxima reunião do conselho, na Inglaterra,
discutiremos a abrangência da proibição. A regra deve ser aplicada apenas a
provas internacionais, ou também a campeonatos nacionais, regionais e locais?"
Dassler disse que sentia muito, prometeu se comportar e continuou agindo como
antes.
Em uma entrevista coletiva olímpica, o presidente Brundage queixou-se:
"Este é o preço que pagamos pelo sucesso dos Jogos Olímpicos. Todos querem
tirar proveito comercial e político." E ninguém desejava isso mais do que Horst
Dassler.
"Horst era adepto da manipulação de pessoas", disse Nally. "Ele
costumava me explicar os incentivos e formas de persuasão utilizados para ter
certeza de que os atletas usariam Adidas. Uma das histórias mais vívidas de que
me lembro envolvia a derrota de seu primo Armin, na época trabalhando com o tio
Rudolph, na Puma.
"Horst foi enviado pelo pai a Melbourne, nas Olimpíadas de 1956. Não
passava de um adolescente. Melbourne foi provavelmente o primeiro contato de
Horst com o mundo olímpico. As Olimpíadas ainda eram muito modestas,
Melbourne teria recebido, pêlos direitos televisivos, a principesca soma de 80
libras! Adidas disputava o terreno com a Purna, palmo a palmo. Horst deu um jeito
de subornar algumas pessoas no porto australiano, para impedir o desembarque
do equipamento da Puma. Ficou muito orgulhoso por ter derrotado o primo com
tanta facilidade.''
O sucesso de Horst Dassler contrastava profundamente com os resultados
obtidos por empresários mais diretos. Em Melbourne, o Comité Olímpico
Internacional foi abordado por um fabricante que pretendia doar relógios de pulso
aos atletas ganhadores de medalhas. A oferta foi recusada, com agradecimentos:
"u COI não pretende alterar a condição de amadores dos participantes, nem
permitir a comercialização dos Jogos." O infeliz fabricante de relógios deveria ter
tentado a sorte com Dassler, no porto.
Mas a atenção de Horst Dassler não se concentrava apenas nas estrelas
do atletismo. Vinte e cinco anos depois das Olimpíadas de Melbourne, Horst
Dassler permanecia ativo. Em 1982 um escândalo do "calçado pago" estourou no
rúgbi britânico, ainda um esporte considerado amador. Os vilões do caso? Adidas
e Puma.
Dirigentes da União de Rúgbi da Inglaterra ameaçaram expulsar dos
campeonatos qualquer pessoa considerada culpada por aceitar dinheiro para usar
produtos de qualquer dos dois fabricantes alemães. Os times ingleses, dos
juvenis em diante, recebiam kits gratuitos há anos. Um diretor da Adidas foi
forçado a fornecer os nomes dos esportistas pagos para usar calçados Adidas
aos fiscais do imposto de renda britânico. "Os fiscais não revelarão os nomes dos
envolvidos à União do Rúgbi", disse um relatório. "Esperam, portanto, que o
responsável pela Adidas, Horst Dassler, esclareça tudo em uma reunião com os
dirigentes."
A União do Rúgbi ficou desapontada. Dassler recusou-se a dar nomes.
Preferiu afirmar: "Somos vítimas de uma situação criada por nossos rivais. Não
fomos os primeiros a pagar aos jogadores de rúgbi." Ele foi mais longe, admitindo
que a Adidas entregara a jogadores "amadores" cerca de 50 envelopes recheados
de dinheiro, nos últimos dois anos. A circunstância atenuante, declarou, era que
"ninguém recebeu mais do que uma cifra de quatro dígitos."
Os jogadores de rúgbi do País de Gales foram menos acanhados. O ex-
capitão de Gales, Mervyn Davies, confessou que recebia até 50 libras por jogo da
Adidas, e justificou-se: "Eu não era o único". Arthur Young, servindo de
representante para a Adidas, declarou à BBC que era encarregado dos
pagamentos aos atletas do Welsh International desde o início da década de 1970.
Segundo Young, os jogadores recebiam dele até 75 libras por jogo. Um ex-
jogador do Welsh International, confirmou a história de Young: "Arthur era como
um Papai Noel para num, quando me pagava 50 libras!"
A reação de Horst Dassler às revelações de Young foi dizer: "Revelar
nomes é antiético!" Sua postura trouxe muitos benefícios.
"Os anunciantes ingleses, e o setor de promoções se encheram de
admiração pela maneira como Horst Dassler, da Adidas, tratou o envolvimento de
sua companhia no grande escândalo do calçado pago", afirmou um jornal
empresarial. "Ele conseguiu realizar uma obra-prima de promoção de sua
companhia, praticamente sem gastar nada", disse um executivo de relações pú-
blicas de Londres. "Dassler se comportou bem do início ao fim. Quando tudo
terminar provavelmente usaremos a campanha como um exemplo clássico para
nossos estagiários, mostrando como alguém transforma uma publicidade
potencialmente desastrosa em dividendos promocionais gratuitos."
"Achamos tudo aquilo muito engraçado", disse seu antigo sócio Patrick
Nally. "Era só um negócio, não considerávamos tais atitudes imorais, de modo
algum. Horst faria o que fosse preciso para desbancar a concorrência. Creio que
as batalhas familiares geraram esta paranóia do sucesso. Horst sempre acreditou
que havia alguém esperando na virada da esquina, pronto para passar a perna
nele.
"Sua vida inteira foi marcada pelo segredo. Vivia olhando por cima do
ombro, espionava a oposição e pagava para passar os outros para trás. No
relacionamento com Horst, tudo era intriga, tudo era suspeita. Ele mantinha um
arquivo com informações sobre as pessoas e detalhes de suas atividades.
Treinava seu pessoal como se fossem espiões! Toda a equipe envolvida com es-
portes cujo trabalho era acompanhar atletas, recebia ordens de espionar a
concorrência. Eram treinados para vasculhar as pastas alheias. Sei que parece
ridículo, mas aprendiam até a grampear telefones. Horst se mostrava disposto a
fazer qualquer coisa ao inimigo. E não lhe faltava competência para tanto."
Do outro lado do canal da Mancha, Patrick Nally aprimorava os vínculos
entre comércio e esporte de um modo bem diferente de Horst Dassler. Nally é um
relações-públicas e especialista em marketing. Na adolescência trabalhara na
Littlewood Pools, estimulando as pessoas a acreditar no desenvolvimento do
futebol inglês. Ele se envolveu com as promoções de uma grande cervejaria, mas
durante todo esse tempo o germe de uma idéia crescia na mente de Nally.
"Milhões de pessoas assistiam jogos, milhões de pessoas acompanhavam
o esporte. Se eu pudesse de alguma maneira vincular este interesse esportivo a
uma mensagem comercial, faria um bom negócio. Procurava uma forma de usar o
esporte como instrumento de comunicação."
No final da década de 1960, Nally conheceu Peter West, uma celebridade,
conhecido como comentarista esportivo da televisão inglesa. West trabalhara na
BBC por muitos anos, comentando vários esportes, do críquete ao rugbi. Chegou
a apresentar o tradicional programa da BBC Come Dancing (Venha Dançar), um
concurso de danças de salão.
"Quando conheci Peter", declarou Nally, "ele pensava que sua carreira na
televisão estava em decadência. Mas sua imagem ainda era das melhores.
Entendia de esporte, mas não de negócios. Ficamos sócios, fundando a Peter
West e Associados, mais tarde chamada de West Nally Ltd. A idéia era usar o
esporte para veicular uma mensagem comercial, e o jeito de se conseguir isso era
convencendo as empresas a investir dinheiro no apoio ao esporte.
"Em uma de nossas primeiras tentativas abordamos a Green Shield, uma
empresa de cupons de desconto e brindes. Convencemos a Green Shield a
patrocinar um programa que ensinava as crianças inglesas a jogar tênis. Muita
gente considerava o jogo coisa de rico, mas nós, graças ao dinheiro da Green
Shield, percorremos o país dando às crianças a oportunidade de pegar numa
raquete de tênis e aprender a jogar. Chegamos ao auge quando a Green Shield
patrocinou o campeonato juvenil de Wimbledon.
"Não existia nenhuma empresa especializada em patrocínio esportivo na
época. Peter e eu fomos os primeiros. Havia sujeitos como Mark McCormack, nos
Estados Unidos, cuidando das estrelas esportivas — mas ele só entrou no ramo
de patrocínio muito mais tarde. Peter e eu mostramos que existia uma
oportunidade de atrair as companhias para o patrocínio esportivo, algo que nin-
guém havia conseguido fazer antes.
"Se voltarmos a mente para aquela época, final da década de 1960 e início
da década de 1970, é difícil lembrar o quanto o conceito de patrocínio
representava uma novidade, e quanta resistência enfrentava por parte do esporte
estabelecido. Os jornalistas, por exemplo, recusavam-se a usar os nomes dos
patrocinadores. Não admitiam chamar um evento de Copa Benson & Hedges, ou
Copa Gillette.
"Peter não poderia imaginar, nem em um milhão de anos, que teríamos
mensagens comerciais nos sagrados domínios de Twickenham — achava que
morreria antes deste dia. Mas provamos que dava certo. Conseguimos atrair a
Ford e a Kraft também, além da Green Shield, e nossa pequena empresa
transformou-se em um negócio de tamanho razoável."
John Boulter, ex-corredor olímpico britânico, compareceu um belo dia ao
escritório da West Nally. Em 1974, ele trabalhava para Horst Dassler. Boulter
continua na Adidas até hoje. Compareceu à sessão do Comité Olímpico
Internacional do ano passado em Birmingham, reforçando seus laços com os
membros mais importante do Clube. Ele agora lidera a divisão de relações in-
ternacionais da Adidas.
Boulter sabia que Nally se dava bem no ramo do patrocínio esportivo no
Reino Unido, e acompanhara o processo no qual a empresa abrira os cofres das
grandes companhias e aplicara o dinheiro no esporte. "Nally era um jovem
ambicioso, e queria conhecer Horst Dassler", declarou Boulter. "Horst disse que
nunca tinha ouvido falar no inglês. E pediu que eu checasse Nally."
O primeiro encontro entre Patrick Nally e Horst Dassler ocorreu no refúgio
do fabricante de tênis em Landersheim, sede da Adidas francesa. O moderno
edifício se situa no alto de um morro, na Alsácia, com vista para a planície
cultivada, típica da região. Na frente do prédio, confirmando o amor de Dassler
pêlos esportes, há uma quadra de tênis e um campo de futebol de grama
sintética.
Já na primeira conversa ficou claro que Dassler estava intrigado com as
atividades do jovem inglês, e animado com a possibilidade de obter dinheiro para
o esporte nas grandes companhias.
"Ele falou sobre as guerras comerciais nos esportes, que ocorriam nos
bastidores das Olimpíadas, e das táticas implacáveis usadas pelas empresas de
calçados rivais, na tentativa de convencer os atletas a usarem seus produtos",
recorda-se Nally. "Ele me disse que a briga ia até o início da corrida. Os atletas
haviam aprendido a negociar tão bem que trocavam de tênis até no momento de
entrar na pista!
"Ele travava batalhas enormes contra o COI e algumas federações
esportivas, por causa dos pagamentos a atletas 'amadores'. Horst sofria pressões
para pôr um fim àquilo. Quem não se lembra de Lassie Viren, o grande atleta
finlandês, ganhador de medalhas de ouro, tanto em Munique quanto em Montreal,
erguendo seus calçados Tiger na frente das câmeras? Ficou óbvia demais o
desenrolar de uma guerra enorme e pouco edificante para levar atletas
supostamente amadores a usar determinados produtos.
"Devo admitir que o primeiro contato com Horst foi um tanto confuso. Lá
estava eu, sentado na frente de um sujeito muito dinâmico — dava para sentir
isso imediatamente. Havia um hotel e restaurante particulares, ao lado da sede
francesa. A gente chegava lá, para falar com ele, e recebia um tratamento de pri-
meira, com comida e vinhos fantásticos. Olhando para trás, percebo o quanto
tudo era modesto, naquela época pioneira. A extravagância aumentou conforme o
poder de Horst e o restaurante de Landersheim cresciam simultaneamente.
"Ele era o tipo de pessoa que fazia questão de deixar a gente à vontade,
antes de mais nada. Não costumava ir direto ao assunto, pular no pescoço da
vítima, tratar de negócios logo de cara. Bater papo combinava melhor com seu
estilo, preferia conversar com calma, conhecer melhor o interlocutor. E, daquela
primeira conversa, emergiu uma pessoa muito decidida, resoluta, que definira
realisticamente sua situação atual, e queria falar comigo sobre sua visão do
futuro."
Cada esporte olímpico é controlado, em última análise, por sua federação
internacional respectiva. Na passagem da década de 1960 para a de 1970, muitas
ainda eram organizações bem amadoras. Poucas possuíam uma equipe fixa, a
maioria se valia de voluntários que amavam o esporte em questão, normalmente
haviam competido na juventude e se dispunham a arcar com o ônus de ad-
ministrar uma federação. Muitos presidentes das federações trabalhavam em
casa. Muitas federações esportivas poderosas, como de futebol e atletismo, ainda
eram organizações bem pequenas. AIAAF (International Amateur Athletic
Association), Associação Internacional de Atletismo Amador, possuía um escri-
tório modesto, no subúrbio londrino de Putney. O quartel-general da FIFA era uma
casa em Zurique. Somente o Comité Olímpico Internacional começava a exibir
sua importância, graças à entrada do dinheiro da televisão.
"Horst fora criado dentro do esporte e das Olimpíadas, e tinha plena
consciência da importância das federações esportivas", declarou Nally. "As
federações eram a base para o futuro que sonhava. Ele foi suficientemente
esperto para ver que as federações passavam por uma rápida transformação.
Teriam sua importância e recursos financeiros aumentados, graças aos valores
cada vez maiores pagos pela televisão para transmitir as Olimpíadas.
"Horst pretendia ocupar uma posição na qual pudesse controlar essas
mudanças em benefício próprio. Conhecia bem a estrutura das federações, e a
necessidade de eleger pessoas para dirigi-las. Sua nova estratégia era deixar de
lado o pagamento a atletas individuais, e trabalhar com federações e equipes
nacionais. Viu que o futuro pertencia às federações, que elas decidiriam o que os
atletas usariam, e que, se conseguisse controlá-las, todo mundo usaria seus
produtos.
"O dinheiro deu o impulso para este desenvolvimento. De repente, a
televisão tornou-se importante, e parte integral do quadro. A cobertura ao vivo
praticamente não existia antes. O dinheiro injetado pela televisão forçou o
crescimento das federações, e atraiu o .interesse de Horst e outros, que
começaram a manipulá-las e a se envolver com elas.
"Dassler acreditava que poderia tornar realidade sua visão. Era um sujeito
esperto, e já estudava diversos idiomas. Além de alemão, falava francês, italiano,
inglês, espanhol e possuía noções de japonês. Também acreditava em viajar e
conhecer pessoas. Sabia como negociar e lidar com as pessoas.
"Mesmo no início, não era sempre dinheiro que a Adidas oferecia", disse
Nally. "Horst sabia quem deveria atrair oferecendo dinheiro, e quem preferia outro
tipo de atrativo."
Quando Nally conheceu Dassler em Landersheim, em 1974, o industrial
alemão já lançara os fundamentos de seu ataque às federações internacionais.
As operações de Dassler tinham duas bases: Landersheim e Paris. "Havia uma
loja Adidas muito sofisticada, na Rue de Louvre, mas não passava de fachada",
disse Nally. "No andar de cima, trabalhava a equipe de promoção da Adidas. Os
negócios de verdade aconteciam no subsolo."
No porão havia um restaurante fechado. Ali Dassler recebia os dirigentes
das federações que o visitavam, e os políticos do esporte. Também mantinha
apartamentos no Hotel Terrasse, de Montmartre, disponíveis para pessoas que o
interessavam. Havia um barman cujo serviço era arranjar moças para os convida-
dos importantes de Dassler.
Dassler começou a montar sua "equipe política". O grupo assumiu a
responsabilidade pelo levantamento internacional de informações, pela
aproximação com as federações e políticos ligados ao esporte e eventos de
destaque. Cada um dos membros da equipe de Dassler cuidava de uma parte
diferente do mundo.
Dassler cuidava pessoalmente da América Central e do Sul. John Boulter
respondia pela Europa.
A Ásia era uma responsabilidade do professor Anwar Chowdhry. Ele
trabalhou bem; atualmente Chowdhry preside a Federação Internacional de Boxe
Amador.
A África de fala inglesa e o controle dos meios de comunicação ficavam por
conta de um jornalista, Bobby Naidoo. Ele dirigia a Associação Internacional de
Cronistas Esportivos, que possui estreitos laços com o Comité Olímpico
Internacional.
A África de fala francesa era controlada pelo coronel Hassine Hamouda, da
Tunísia, uma antiga colónia francesa. O coronel fora membro da equipe francesa
nas Olimpíadas hitleristas de Munique, em 1936. A partir de seu escritório em
Paris, um centro importante para os africanos de fala francesa, ele editava uma
revista bilíngüe, chamada Champion D'Afrique. Hamouda também servia de
técnico em atletismo para a Tunísia, além de ser vice-presidente da Federação de
Boxe da Tunísia.
"O senhor Hamouda pretende ajudar atletas africanos, para que cresçam e
se aprimorem, por intermédio do Champion D'Afríque", dizia um texto da IOC
Review, uma publicação do COI.
Horst Dassler providenciou o escritório para Hamouda, além de contribuir
para a edição da revista. Também criou prêmios sem expressão — como das
medalhas de ouro Champion D'Afrique, pagando as contas dos banquetes em
que eram distribuídos.
"Poucas companhias se interessam pela África enquanto mercado", disse
Nally. "Mas, politicamente, a região era importante para Horst, porque ali havia
muitos votos de federações. Não são os dirigentes esportivos que decidem sobre
os votos, e sim os políticos. A idéia de Horst era usar o coronel Hamouda e a
Champion D'Afrique para ganhar influência junto aos políticos africanos
importantes, e ajudá-los a crescer dentro das federações. O coronel Hamouda
dedicava muito tempo e energia à África.
"Os africanos eram muito pobres, e Horst tinha uma oportunidade extra de
ajudá-los. Fornecia produtos esportivos para a África. Isso também era importante
politicamente. Em termos comerciais não fazia diferença, porque não haveria uma
avalanche de pedidos no atacado, nem encomendas enormes de tênis Adidas por
parte dos africanos. Horst direcionava seu apoio para os esportes mais populares
da África, o que lhe garantia o apoio das federações mais importantes. O boxe
desfrutava de grande popularidade no continente, além do futebol e do atletismo,
o esporte olímpico por excelência. Horst fornecia bastante equipamento para a
África. Se olharmos para estes esportes hoje, veremos uma grande influência
africana nas federações internacionais."
A Rússia e o Leste da Europa pertenciam a um francês chamado Christian
Jannette. Era o tipo de pessoa que Horst considerava útil: Jannette era ligado e
influenciava os Jogos Olímpicos há muito tempo. Foi o principal encarregado do
protocolo nas Olimpíadas de Munique em 1972, e recebeu a medalha de Mérito
Nacional francesa, por sua "gentileza e competência durante sua estada de
quatro anos em Munique."
Depois das Olimpíadas de 1972, Jannette tinha dois empregos: trabalhava
como adido francês no comité olímpico da França, e constava na folha de
pagamentos da Adidas. Esteve em Montreal nas Olimpíadas seguintes, e depois
mudou-se para Moscou, nos anos anteriores aos Jogos de 1980, quando era, ao
mesmo tempo, "Chef de Mission" da equipe francesa e funcionário de Dassler.
"Os contatos pessoais permitem aos organizadores preparar uma recepção muito
mais calorosa", foi a lição aprendida por Jannette em Munique. "Meu conselho é
tentar conhecer os dirigentes da melhor forma possível."
"Estive na Rússia 62 duas vezes, entre 1974 e 1980, a serviço da Adidas",
declarou Jannette. "Já na metade da década de 1960, Dassler cultivava um bom
relacionamento com os países da Europa Oriental. Eu me lembro de ter assinado
um contrato com a Polônia em 1974, para fornecer equipamentos a todas as fede-
rações do país. E já havíamos assinado contratos com algumas federações na
União Soviética."
Segundo Nally, "Christian era o contato permanente de Horst com os
russos. Vivia voando para Moscou, levando presentes. Potencialmente, havia um
imenso mercado comercial para a Adidas. Em termos olímpicos, o Bloco Leste
estava em primeiro lugar nos resultados. Os russos e alemães orientais lideravam
em medalhas de ouro. Para Dassler, era importante mostrar aos europeus
orientais que ele poderia funcionar como o canal para a obtenção de auxílio do
Ocidente.
"Assim como na África, o fornecimento de material da Adidas era a chave
de tudo. Eles não fabricavam tênis ou roupas de primeira, e faltavam recursos
para comprar o equipamento no Ocidente. Horst mantinha uma posição de
destaque distribuindo kits da Adidas. Outra coisa importante era financiar viagens
internacionais atraentes, que tirava as pessoas da melancólica Europa Oriental.
"Horst não chegava distribuindo dinheiro. Seu modo de agir era primeiro
conhecer os dirigentes. Ganhava a confiança deles e colocava seus produtos à
disposição das várias federações: tênis de alta qualidade e roupas.
"Tratar com a maioria das federações da Europa Oriental não era o mesmo
que lidar com as equivalentes do Ocidente. No Leste era preciso tratar com um
ministério dos esportes, que desempenhava um papel fundamental em tudo que
dizia respeito ao esporte e portanto às Olimpíadas. O sistema de comando centra-
lizado tornou tudo mais fácil para a penetração de Horst na infra-estrutura. Dentro
do sistema, ele conversava a respeito de quais dirigentes e administradores
esportivos participariam das federações internacionais, e garantia que houvesse
um russo e um europeu oriental nos conselhos de todas as federações
importantes. "Assim, os russos e os alemães orientais, como os africanos,
pensavam que Horst era um amigo. Eles eram importantes, tratava-se de um
grupo influente, com muitos votos. Menor do que o grupo africano, mas ainda
assim pesavam na balança. Garantindo que seu prestígio sempre fosse levado
em conta — colocando-os em posições de destaque — Horst podia controlar seu
apoio, quando precisasse dele. Era urna grande barganha. Os europeus orientais
são grandes negociantes. Se recebiam uma coisa, davam outra em troca."
Nally seria a chave para o sonho de Horst de ter bilhões de
telespectadores assistindo os maiores atletas do mundo em sua subida ao pódio,
usando as três listas da Adidas.
"O fato de que eu estava conseguindo que as grandes companhias
investissem no esporte era um achado. Horst disse: Vamos juntas as duas coisas,
e aí poderemos realmente começar a avançar.' Horst desejava encontrar um meio
de unir o patrocínio esportivo e o esporte, para beneficiar a Adidas. Em sua
perspectiva, isso lhe daria poder. Horst ficaria com o crédito pelo que faria para as
federações, e isso o deixaria numa posição de força. Ele queria arranjar alguém
para pagar a conta."
Dassler precisava de Nally para arranjar quem pagasse a conta com
urgência. Quando se conheceram em Landersheim, em 1974, Dassler já havia
assumido um compromisso com um homem que, no decorrer dos vinte anos
seguintes, se tornaria um dos mais importantes nomes no mundo do esporte.
3
DASSLER TOMA COCA-COLA
Quando Diego Maradona liderou a entrada dos jogadores argentinos para
a final da Copa do Mundo de 1990 no Estádio Olímpico de Roma, seu time tinha
algo em comum com os oponentes da Alemanha Ocidental. As duas equipes
usavam Adidas. Assim como o juiz. E os bandeirinhas. Quinze das vinte e quatro
seleções presentes à Itália exibiam o trevo e as três listas em suas camisas,
shorts, meias e chuteiras.
O jogo teve início com uma bola Adidas branca e preta. Todos os jogos
foram disputados com bolas Adidas. Era a bola oficial. A empresa fornecia as
chuteiras oficiais.
Do lado de fora do campo, Horst Dassler tinha tudo arranjado. Sua
empresa de marketing, a ISL, detinha os direitos exclusivos de venda da Copa do
Mundo. Uma das poucas coisas não fornecidas pela Adidas na final da Copa de
1990 foi o apito do árbitro.
Oito anos antes, no estádio de Barcelona, o quadro fora o mesmo. Na
cerimônia de abertura da Copa do Mundo, Victor Puente, um menino de doze
anos, soltou a pomba da paz de dentro de uma bola de futebol. A bola de futebol
havia sido fornecida pela Adidas. Victor usava um uniforme Adidas. Até mesmo o
sorteio para as finais daquela Copa foi realizado com miniaturas da bola oficial
preta e branca da Adidas.
"Não temos vínculos estreitos com a Adidas", insistiu Harry Cavan, vice-
presidente da FIFA. "A companhia Adidas, pelo que sei, é uma empresa muito
generosa para com o esporte em geral, e para com o futebol em particular. Se
eles desejam fornecer o equipamento, não vejo nada de errado nisso."
A final da Copa do Mundo de 1974, em Munique, entre a Alemanha e a
Holanda, foi disputada por dois times europeus, com um juiz europeu apitando em
um campo europeu. Do lado de fora do campo, aquele ano marcava o fim da
dominação européia do futebol internacional.
O troféu reluzente erguido por Franz Beckenbauer levou os torcedores
alemães ao delírio. Era novo em folha. O homem que comandava o campeonato
também estreava em sua função. Três semanas antes, o Dr. João Havelange fora
eleito presidente da Federação Internacional de Futebol Association, tornando-se
o dirigente mais poderoso do futebol mundial.
Foi preciso providenciar um novo troféu, porque o antigo havia sido levado
para casa pêlos brasileiros, em 1970. Qualquer time ganhador de três Copas
ficava para sempre com o troféu. A Copa Jules Rimet original foi levada para
sempre para o Brasil, depois que seus incríveis jogadores chegaram ao
tricampeonato.
Jean Marie Faustin Godefroid Havelange, mais conhecido como João,
também era brasileiro. Agora, aos 76 anos, Havelange tornou-se um fazedor de
reis. Possui mais de cinqüenta medalhas e comendas: Cavaleiro da Legião de
Honra da França; Comandante dos Cavaleiros da Ordem do Infante Dom
Henrique de Portugal; agraciado com a Grã-Cruz de Isabel, a Católica, da
Espanha; Cavaleiro da Vasa-Orden da Suécia e Comandante da Ordem do Leão
do Senegal.
Havelange reuniu os votos necessários para que Barcelona sediasse as
Olimpíadas de 1992. Havelange uniu-se a Horst Dassler para fazer de Juan
António Samaranch presidente do Comité Olímpico Internacional.
Alguns dirão que ele ficou muito velho, que seu poder declina, que
Havelange já passou por seus dias de glória. Este brasileiro, contudo, continua
sendo a única figura no mundo do esporte capaz de ditar seus próprios termos ao
todo-poderoso presidente das Olimpíadas. A capacidade de Havelange em fazer
isso deriva diretamente de sua aliança com Horst Dassler.
João Havelange é membro fundador do Clube. Sua eleição para a
presidência da FIFA, poucas semanas antes do início da Copa do Mundo de
1974, marcou o início de um novo domínio, o latino, na direção do esporte
internacional. Houve uma virada dramática, com o afastamento do antigo controle
anglo-saxônico e sua tão proclamada valorização do esporte amador. Esta é só
uma parte da história. Nunca foi contado que a eleição de Havelange também
marcou o início da campanha de Horst Dassler para controlar o desenvolvimento
do esporte mundial.
"A eleição de Havelange deu a Horst a noção da importância das
federações", declarou Patrick Nally. "Para Horst, a eleição de Havelange foi o
divisor de águas."
Havelange enfrentou um obstáculo principal em seu desejo de se tornar o
comandante do futebol mundial. A FIFA já tinha alguém. O presidente em
exercício da FIFA era um inglês, sir Stanley Rous, que não pretendia deixar o
cargo. Rous, sexto presidente da FIFA, era europeu, como os outros cinco.
Apaixonado pelo futebol, considerava o esporte uma das coisas mais importantes
em sua vida. Havia abandonado sua profissão, professor, para se tornar juiz de
futebol. Em 1933, Rous já podia ser encontrado nos grandes centros do futebol
mundial, com seus sapatos imensos e calças largas, apitando jogos
internacionais. Grandalhão, dava grande importância ao conceito de jogo limpo.
Rous possuía um conhecimento enciclopédico das regras do futebol.
Escreveu a História das Regras do Jogo. Foi sagrado cavaleiro pelo rei George
VI, por seu trabalho durante os Jogos Olímpicos de Londres, em 1948. Tornou-se
presidente da FIFA em 1961.
Sob o comando de sir Stanley Rous, a FIFA era "muito conservadora e
discreta em suas decisões", afirma o livro que narra a história oficial da entidade.
"Os fundos provinham exclusivamente da Copa do Mundo, e todos precisavam
viver e trabalhar com esta verba por quatro anos. Seria impossível fazer mais sem
correr riscos."
"Naquele tempo", disse Nally, "a FIFA trabalhava com recursos limitados.
Sua sede era uma casa antiga, a Villa Derwald, em Zurique. Ali ficava o veterano
secretário-geral, Dr. Kaser, muito querido por todos, com dois cachorros sempre
deitados no chão, a seu lado. As pessoas eram recebidas por uma recepcionista
de voz esganiçada, com quem o Dr. Kaser acabou se casando. Creio que havia
mais um funcionário, pau para toda obra. Fora ele, eram só os dois cachorros e
uma mesa com livros empilhados. Estranho, antiquado, o ambiente parecia
pertencer a um romance de Dickens."
Havelange possuía um estilo completamente diferente. Seu passado
esportivo estava mais ligado ao pólo aquático do que ao futebol. Nos anos 1930,
quando Stanley Rous apitava jogos internacionais, Havelange nadava para o
Brasil, nas Olimpíadas de Hitler, em Berlim. Ele fez parte do time de pólo aquático
brasileiro, nas Olimpíadas de Helsinque, dezoito anos depois. Comandou a
delegação brasileira nas Olimpíadas de 1956 em Melbourne; enquanto Havelange
ocupava a tribuna de honra, o jovem Horst Dassler subornava os estivadores no
porto australiano, para manter os equipamentos esportivos da concorrência nos
caixotes.
Havelange declarou: "Sou um homem de negócios, tenho muito dinheiro e
não preciso ganhar mais com o futebol." Isso pode ser verdade, mas Havelange
percebeu, segundo um observador, "que o esporte representa um dos veículos
mais magníficos do mundo moderno para o exercício do poder puro, absoluto,
direto e incontestável."
Havelange iniciou sua carreira no mundo dos negócios. Cuidou de
importação e exportação de aço, mineração, produtos químicos e transporte.
Comanda hoje uma empresa de ônibus no Brasil. Mas ganhou dinheiro com
seguros. Dirigia uma empresa em São Paulo e outra no Rio.
Graças a seu passado no pólo aquático, ele se tornou presidente da
federação de natação de São Paulo, e em 1955 conseguiu entrar para o Comité
Olímpico brasileiro. Em 1963 passou a participar do grupo de elite do Comité
Olímpico Internacional. Três anos depois, ganhou a companhia do futuro líder
olímpico, Juan António Samaranch.
Seu cargo mais importante foi a presidência da abrangente Confederação
Brasileira de Desportes. O material promocional do próprio Havelange afirma que
ele, na condição de chefe supremo do esporte brasileiro, tornou-se o "dirigente
mais bem-sucedido do futebol brasileiro", tendo sido "o arquiteto das vitórias
brasileiras nas Copas de 1958, 1962 e 1970."
Embora alguns pensem que o sucesso do futebol brasileiro tenha mais a
ver com a habilidade de Pele e Garrincha do que com Havelange, poucos
poderiam negar um fato: ele usou sua posição como alavanca para se lançar na
campanha pelo controle da FIFA.
"Havelange viu o futuro", disse Nally. "Ele sabia que, ao se tornar o
próximo presidente da única federação já possuidora de um campeonato mundial
de grande popularidade, desfrutaria de um imenso poder político e econômico."
Havelange lançou sua campanha para a presidência em 1970. Escorado
nas três vitórias brasileiras na Copa do Mundo, ele percorreu o mundo,
angariando eleitores potenciais.
"Jamais houve uma campanha assim para a presidência de uma
organização esportiva", afirmou Nally, "Sir Stanley Rous nunca chegou a
conhecer todos os países da África e da Ásia, e seguramente jamais esteve nas
pequenas ilhas espalhadas pelo mundo.
A mudança foi radical. De repente aquele sul-americano dinâmico,
charmoso e boa praça viajava pelo mundo, acompanhado da mulher, encontrando
pessoas, apertando as mãos, acompanhado do time brasileiro, viajando ao lado
de gente como Pele. Foi a hora do Carnaval brasileiro."
Havelange desafiou a antiga supremacia européia na FIFA, e agiu com
sagacidade. Percebera que os países recém-convertidos ao futebol, na Ásia e na
África, ficavam de fora do campeonato mais importante. Em troca de seus votos,
Havelange prometeu aumentar o número de times na Copa do Mundo, de 16 para
24. Prometeu criar um Campeonato Mundial de Juniores. Prometeu dinheiro para
os países construírem estádios, promoverem cursos para árbitros, médicos e
técnicos, além de mais campeonatos interclubes no Terceiro Mundo.
"Sir Stanley de repente se deu conta de que ele estava a ponto de ser
derrotado por um brasileiro", contou Nally. "E seus amigos alemães sugeriram, no
último minuto, que ele falasse com Horst, para ver se conseguia algum apoio."
Dassler não o decepcionou. Colocou o time em campo, e começou a fazer
lobby, pressionando os delegados que compareciam a Frankfurt para o 39o.
congresso da FIFA. Ele quase mudou o resultado da eleição. Até o último
momento, parecia que Havelange ia perder. A eleição foi para o segundo turno, e
Havelange ganhou por uma margem apertada: dezesseis votos.
"Havelange gastou uma fortuna viajando pelo mundo com o time brasileiro,
e angariou o voto de cada um dos membros da FIFA", disse Nally. "Foi algo
inédito. Nenhum presidente de federação esportiva percorrera o mundo antes,
distribuindo abraços e fazendo campanha.
"Horst socorreu sir Stanley no último minuto, e quase o elegeu. Isso
assustou Havelange. E os aproximou. Horst impressionou Havelange com sua
capacidade de quase derrubá-lo antes que ele começasse, e Havelange pensou:
'Meu Deus, se este sujeito pode fazer isso comigo, e quase me derrubar antes
que eu pudesse começar, é melhor tê-lo do meu lado.' "Horst, por sua vez, viu um
homem que, vindo do nada, derrubou Sir Stanley, apesar de suas tentativas de
impedi-lo. E Horst sempre gostou de ficar do lado dos vencedores. Se a pessoa
não fosse mais útil para ele, seria cuspida sem pudores. O vínculo entre os dois
foi criado pelo respeito ao que o outro podia fazer.''
Uma vez eleito, Havelange se deparou com o fato de não ter o dinheiro
necessário para colocar suas promessas em prática. Ele se voltou, então, para
Horst Dassler. Chegaram a um acordo. Se o dono da Adidas queria os benefícios
do relacionamento com a FIFA, e os contratos com as federações nacionais, para
que os atletas usassem uniformes Adidas, então o preço a ser pago por Dassler
seria financiar o projeto de Havelange.
"Horst tampouco dispunha do dinheiro. Foi por isso que se ligou a mim",
explicou Nally.
"Em Landersheim, falamos sobre a FIFA. Ele perguntou se eu ajudaria a
levantar o necessário para ajudar Havelange a cumprir suas promessas eleitorais.
"Eu era um instrumento para seus objetivos. Como profissional de
marketing, poderia conseguir as verbas, e ele os benefícios decorrentes.
"Isso era fundamental para seu plano de penetrar e controlar as federações
esportivas. Desejava estimular seu crescimento, algo bom para elas, que
desejavam crescer. Mas Horst queria desenvolvê-las de modo a se tornar o pivô
do processo. Assim, Horst elegeria um presidente adequado, estabeleceria as
promessas a fazer e realizaria os acordos que tornaria seu cumprimento possível.
"Uma vez dentro das federações, ele estaria com um pé no Comité
Olímpico Internacional, o que representava o controle das Olimpíadas, o maior
evento do mundo. Horst queria ser a peça chave de todo o processo. Tornar-se
indispensável. Quando as decisões fossem tomadas, quando alguém precisasse
de alguma coisa, ele pretendia ser o único a quem fosse possível recorrer."
Mesmo após a morte de Dassler, o envolvimento da Adidas com o futebol
mundial continuou sendo total. As estrelas da música pop recebiam o Grammy, as
estrelas do cinema, o Oscar. Jogadores de futebol ficavam com o Troféu Adidas.
E usavam chuteiras Adidas, bolas Adidas e o logotipo da Adidas, com o trevo e as
três listas em ouro, prata e bronze.
No festa de gala que marcou o encerramento da Copa do Mundo de 1990,
todas as estrelas estava presentes. Lothar Matthaus, capitão do time vitorioso da
Alemanha Ocidental (mora na mesma cidade que serve de sede para a Adidas
alemã, Herzogenaurach), recebeu a "mais alta comenda do futebol". É assim que
a Adidas chama o "Trevo de Ouro Adidas", dado ao melhor jogador do ano de
1990.
Para receber o Prêmio Adidas Franz Beckenbauer das mãos do homem
que ergueu a Copa do Mundo há vinte anos, para delírio da torcida de Munique, o
centroavante fã de lambada do Camarões, Roger Mula, deu um passo à frente.
O agradecido ganhador da Chuteira de Ouro Adidas, para o artilheiro da
Copa do Mundo, foi Salvatore Schillaci, da Itália. "Ele chegou à Copa do Mundo
como reserva, e saiu como superstar", publicou a revista de divulgação da Adidas,
Adidas News. "Como prêmio adicional", segue a reportagem, "Totó recebeu a
Bola de Ouro Adidas como melhor jogador do campeonato." Quanta sorte, né,
Totó?
As Chuteiras de Ouro Adidas também foram conferidas a Hugo Sanchez e
Quisto Stoichkov, artilheiros europeus. Na mesma festa em que a Adidas mostrou
toda sua generosidade com as estrelas do futebol, a FIFA entregou a Gary
Lineker, capitão da Inglaterra, o Prêmio Jogo Limpo, pelo desempenho leal do
time na Itália. Lineker ganhou também o Prêmio Jogo Limpo da FIFA como
jogador individual, no valor de 50 mil francos suíços.
Apesar destes vínculos ostensivos entre a Adidas e a FIFA, o presidente
João Havelange afirmou com firmeza que "o senhor Dassler não interfere na
política da FIFA." E depois demonstrou seu espanto com a possibilidade de
alguém sugerir uma coisa dessas. "Por que tanto ódio contra mim, se trabalhei
duro para o desenvolvimento do futebol?" Ele pergunta. "O futebol serve para
vender produtos no mundo inteiro. E isso se deve ao meu trabalho." Sem dúvida,
e muitos destes produtos são fabricados pela Adidas.
Mesmo o próprio presidente da FIFA, ao comparecer a um amistoso que
comemorou a inauguração da nova sede da entidade em Zurique, foi visto
calçando sapatos com as três listas inevitáveis.
Uma história edulcorada da FIFA, editada para comemorar o octogésimo
aniversário da entidade, diz que a "principal preocupação" de Havelange, depois
de sua eleição em 1974, era um programa abrangente, mundial, de
desenvolvimento do futebol. "Como a FIFA não possuía os recursos financeiros
necessários, o presidente se valeu de sua vasta experiência e visão como homem
de negócios, de modo a materializar seus planos ambiciosos." O que a história
oficial deixa de informar é que a "vasta experiência e visão como homem de
negócios" de Havelange era na realidade a parceria entre Horst Dassler e Patrick
Nally.
"Politicamente, para Havelange, era importante cumprir as promessas
feitas aos africanos e asiáticos", declarou Nally. "Ele prometeu que o Terceiro
Mundo teria mais países africanos e asiáticos na Copa do Mundo; prometeu criar
um campeonato mundial juvenil; prometeu um programa de aprimoramento que
levaria o melhor do futebol europeu e sul-americano para a África e Ásia; fora
eleito com esta plataforma. Se Horst pretendia ajudar Havelange a colocar em
prática tudo isso, precisava de muito dinheiro para implantar os eventos."
"Horst se comprometera a levantar o dinheiro para Havelange. Eu me
perguntava: Como vou conseguir isso?' Fui encarregado de criar um projeto de
marketing, capaz de justificar a aplicação de verbas imensas no futebol, ajudando
Horst a honrar seus compromissos. Para fazer isso, precisaria de uma
multinacional das grandes como patrocinadora."
A revista Time publicou certa vez uma capa mostrando a Terra como um
homem com uma garrafa de Coca-Cola nos lábios. O título dizia: "O Mundo Bebe
Nesta Garrafa". O mundo do esporte internacional também toma Coca-Cola.
A Coca-Cola é o maior e mais conhecido patrocinador das Olimpíadas em
todo o mundo. A venda do produto se baseia na pureza, juventude, energia e
estímulo associados ao refrigerante. A bebida mais apreciada do mundo e o
admirável novo mundo do esporte internacional foram feitos um para o outro.
A Coca-Cola tem um longo histórico de envolvimento com os Jogos
Olímpicos. Esteve em Roma (1960) e na cidade do México (1968), quando
"astronautas" em trajes espaciais vermelhos e brancos bombeavam o mágico
elixir dos cilindros instalados em suas costas.
Não faltou Coca-Cola em Munique (1972) e Montreal (1976), e nem mesmo
em Moscou (1980). Os atletas americanos boicotaram os Jogos na Rússia, mas a
Coca-Cola compareceu, promovendo seu refrigerante Fanta laranja.
Em Los Angeles (1984), a Coca-Cola tornou-se "o refrigerante oficial das
Olimpíadas". Isso se repetiu em Seul (1988) e Barcelona.
Nos últimos 65 anos a empresa sediada em Atlanta despejou mais de um
bilhão de dólares no esporte mundial. O primeiro esporte a receber verbas da
Coca-Cola em escala mundial foi o futebol.
"A Coca-Cola é uma das maiores companhias do mundo", disse Nally.
"Qualquer coisa feita pela Coca-Cola se transforma em sucesso. E todos seguem
a Coca-Cola. Se for possível convencer a Coca-Cola a fazer algo, tem o caminho
aberto. Ao entrar na Coca-Cola, penetra-se no mundo da maior e mais segura
empresa do planeta.
"Horst sempre sustentou que nossa parte era arranjar dinheiro para que as
pessoas realizassem seus sonhos, o que não deixava de ser verdade, e todos
agradeciam profusamente, despejando honrarias em cima dele. Mas, na
realidade, isso o colocava numa posição de incrível força para manipular e
organizar as federações e os patrocinadores.
"Não havia, na época, nenhuma companhia no mundo que tivesse um
orçamento global de marketing. Nossa abordagem era totalmente inédita. Não
dava para simplesmente chegar dizendo 'queremos que tomem uma decisão em
escala mundial'. A maioria das companhias, por maiores que fossem, mantinham
seus orçamentos promocionais a nível local.
"Por este motivo, as companhias japonesas se tornaram tão importantes na
expansão dos negócios, mais tarde. Os japoneses tinham duas vantagens. Em
primeiro lugar, normalmente usavam uma marca padrão no mundo inteiro. A
Toyota era Toyota em qualquer pane, enquanto muitas empresas norte-
americanas e européias adotavam nomes diferentes conforme o país. Em segun-
do lugar, os japoneses costumam centralizar o processo de decisão. Quando
possuem diretores locais, preferem nomear japoneses, e eles sempre recorrem a
Tóquio para tomar decisões.
"Eu sabia que tentar fechar um contrato com a Coca-Cola daria um
trabalho enorme, mas não havia percebido a tarefa gigantesca que teria pela
frente. Levei cerca de um ano e meio, viajando pelo mundo inteiro, e enfrentei
rodadas intermináveis de negociação, achando frequentemente que não dariam
em nada."
A Coca-Cola, tida por todos como um conglomerado internacional
gigantesco, estava estruturada em uma série de feudos. Os alemães controlavam
a Alemanha, os ingleses a Inglaterra. No nome a empresa era multinacional, mas
suas operações se realizavam nacionalmente. A administração se estruturava de
modo a manter o poder de decisão dentro do país, e a responsabilidade pelo
orçamento nas mãos da diretoria local.
"Quando eu disse que pretendia casar os interesses da companhia com um
único esporte, em escala global, foi um Deus nos acuda", contou Nally. "Todos
diziam, 'nada disso, tenho meus próprios esportes. Estou mais interessado em
cuspe a distância do que em futebol'. Entrei numa guerra. O sangue correu pêlos
carpetes. Ninguém queria abrir mão do privilégio de controlar suas próprias
decisões."
"Finalmente, numa reunião extremamente confusa em Atlanta, a decisão
foi tomada", contou Nally. "A Coca-Cola participaria de um projeto mundial de
patrocínio e todos os mercados regionais contribuiriam para isso. Não pediram a
eles que participassem, foram obrigados. Teriam de reservar uma porcentagem
de seu orçamento promocional para um caixa central em Atlanta, e a verba seria
investida no futebol."
A decisão da Coca-Cola deu a Havelange um poder de fogo de vários
milhões de dólares. Ele agora poderia cumprir as promessas feitas para se eleger.
Não havia uma organização capaz de levar adiante as idéias grandiosas de
Havelange. Nally ficou encarregado de transformar as promessas do novo
presidente em realidade. O que era o tal programa de aprimoramento? Como
organizar um campeonato mundial de juniores? A FIFA não sabia responder a
estas perguntas, a federação não possuía uma equipe em tempo integral. Dassler
e Nally não conseguiram o dinheiro, apenas, eles precisaram montar os novos
eventos e implementar os programas. Estavam assumindo o futebol mundial.
Tudo foi feito fora da federação, Dassler e Nally passaram a determinar as regras.
Horst procurou Klaus Willing, que trabalhava para a federação alemã de
natação. Klaus era uma pessoa adorável. Falava inglês fluentemente, era
eloqüente e sabia escrever muito bem. Ele montou o plano que acabou se
transformando no programa de aprimoramento da FIFA. Klaus ficou encarregado
de pôr no papel toda a estratégia de transferência dos conhecimentos sobre fute-
bol dos países da América do Sul e Europa para cerca de cem países, levando
técnicos, administradores esportivos e especialistas em medicina esportiva para a
África e Ásia, para os locais onde os votos foram importantes para Havelange.
Infelizmente Klaus morreu em um acidente de carro, depois de sair de um jantar
político da Adidas em Landersheim.
Nally e Dassler criaram o campeonato mundial de juniores. Junto com a
Coca-Cola, começaram a dar forma ao contrato de patrocínio esportivo
multimilionário. Decidiram que o novo campeonato seria restrito a jogadores com
menos de vinte anos, e se realizaria a cada dois anos, com o nome de Copa
FIFA/Coca-Cola. O primeiro campeonato aconteceu em Tunis, em 1977.
Quando a terceira copa de juniores foi disputada na Austrália, em 1981,
dinheiro não era mais problema para a FIFA. Os executivos de Atlanta, que
haviam dito "Sim!" para Nally entraram com mais de US$ 600 mil, pelo privilégio
de ver seu nome no troféu. Eles também bancaram a conta de transporte dos
quinze times até a Austrália, bem como as despesas com a arbitragem. Quarenta
dirigentes da FIFA, do mundo inteiro, também participaram da festança. A Coca-
Cola também garantiu uma reserva de US$ 250 mil, para o caso da Copa dar
prejuízo.
"Além de tudo isso, criamos um programa mundial de aprimoramento do
futebol", contou Nally. "Isso ficou por conta dos fabricantes locais de Coca-Cola.
Tiveram boas oportunidades promocionais com este programa. Depois,
lentamente, atraímos a Coca-Cola para a Copa do Mundo da Argentina, em
1978." A Coca-Cola investiu uma soma inédita, US$ 8 milhões, para participar do
evento.
Nally e Dassler também criaram as novas regras comerciais para as
competições da FIFA. Havia muita coisa em jogo, bem mais do que simplesmente
colocar o logotipo da Coca-Cola no estádio. "Era preciso controlar as licenças
para os bares de cada estádio, de modo que a Coca-Cola fosse o único
refrigerante à venda", explicou Nally. "Tivemos uma briga enorme no estádio de
Madri, na Espanha, em 1982. A Pepsi já possuía a licença para explorar os bares,
mas a Coca-Cola entrou como patrocinador único. A Pepsi precisou sair."
"O estádio também precisava ficar limpo', deixando todo o espaço em volta
do campo para nossos patrocinadores", disse Nally. "Precisamos colocar isso no
regulamento. Antes de sediar um evento da FIFA, o estádio precisava dar
garantias de que estaria limpo. Estas idéias eram novas. Determinávamos as
regras para o marketing, o modo de organizar os eventos, a forma de implementar
os programas de aprimoramento e desenvolvimento. Nosso relacionamento com
a federação era completo."
Sem dúvida, tratava-se de um relacionamento "completo". Dassler assumiu
a direção da FIFA, chegando a escolher o novo secretário-geral. "Horst percebeu
que a FIFA, com o Dr. Kaser, dois cachorros e uma secretária esganiçada, não
teria condições de administrar a nova postura da federação'', contou Nally. "Sendo
assim, Horst encaixou Joseph Blatter, que trabalhava para a Swiss Timing na
época. Blatter foi treinado na sede da Adidas, em Landersheim, antes de ir para a
FIFA. Passava boa parte do tempo trabalhando ao lado de Horst, conhecendo o
sistema da Adidas. Horst e Blatter se aproximaram muito, nos meses em que ele
morou em Landersheim."
A forma com que Nally e Dassler atraíram a Coca-Cola para que
patrocinasse o futebol tornou-se um modelo para o desenvolvimento das outras
federações esportivas. Havelange pertencia a uma nova geração de presidentes
esportivos. Tinha classe, e o mundo empresarial lhe dera uma gigantesca conta
corrente para administrar.
Em 1979, as despesas de Havelange chegavam a 100 mil libras anuais.
Em 1986, o custo de manutenção de seu escritório particular no Rio atingiu a
soma de 250 mil libras. Quando os dirigentes da FIFA voaram para a Copa do
Mundo da Espanha, em 1982, suas despesas se aproximavam dos 2 milhões de
libras — quase o valor gasto para transportar e hospedar os vinte e quatro times
participantes. A nova riqueza do esporte era estonteante. Nos dois anos seguintes
a FIFA consumiu 650 mil libras em presentes e viagens internacionais. Como a
torneira do dinheiro da Coca-Cola continuava aberta, Havelange continuou sendo
o presidente indiscutível da FIFA.
"Mas foi Horst quem ficou, em última análise, com os benefícios políticos e
comerciais do investimento da Coca-Cola", lembrou Nally.
"Ele trabalhou como unha e carne com a nova federação criada por nós, e
se manteve muito próximo a Havelange. Os contratos voltavam para a Adidas.
"Horst precisava da imagem e do nome da Coca-cola. Outras companhias
ficariam felizes em seguir o exemplo da Coca-Cola, e outras federações
adorariam repetir a atitude da FIFA. É só pensar na imagem limpa da Coca-Cola,
e no feto de que, ao mesmo tempo, o dinheiro da empresa era usado por Horst
em benefício próprio. A Coca-Cola deu legitimidade ao sistema, mas nunca se
deram conta da importância de sua associação, e como esta foi abusada,
permitindo ao Clube, esta máfia dentro do esporte, se manter. A Coca-Cola deu o
pontapé inicial de tudo isso."
4
DE MONTREAL A MONTE CARLO
Quando Dennis Howell, ex-ministro dos esportes da Grã-Bretanha,
perguntou a Horst Dassler: "Por que um fabricante de sapatos precisa se envolver
com a administração dos esportes?", recebeu uma resposta bem direta:
"Fabricamos sapatos e camisas, e precisamos estar onde as coisas acontecem,
seja onde for." Howell, um político de Birmingham com os pés no chão, aprecia
uma resposta sincera.
"O que me perturbou", declarou Howell, cerca de dez anos depois de seu
encontro com o diretor da Adidas, "foi a insistência dele, em seguida, em me dizer
que possuía uma visão de conjunto do esporte melhor do que qualquer outro. Ele
possuía um departamento' encarregado de reunir e classificar informações sobre
os comitês olímpicos nacionais e federações internacionais."
Dassler insistiu que os arquivos continham apenas informações de
"publicações oficiais", e afirmou que se sentiria muito feliz em compartilhar de seu
banco de dados com qualquer interessado. "O ponto central", prosseguiu Howell,
"era que ninguém, em sua posição de industrial, deveria tentar controlar o mundo
das organizações esportivas. Considero tal concentração de poderes pouco
saudável."
O ex-ministro dos esportes teria ficado mais perturbado ainda se o alemão
fabricante de sapatos revelasse toda a extensão de seu poder, as ligações com
os principais dirigentes esportivos mundiais, a equipe dedicada de pessoas
encarregadas de reunir informações e suas operações a nível mundial.
Na metade dos anos 1970, a campanha política de Dassler começava a
decolar. A equipe política montava um arquivo abrangente dos dirigentes
esportivos consagrados e promissores do mundo. Eles faziam relatórios de todas
as partes do mundo, sobre as federações internacionais, os diversos comitês
olímpicos nacionais e o COI.
"Estar onde as coisas acontecem, seja onde for", Dassler disse a Dennis
Howell, e Dassler agia assim mesmo. Não havia lugar no mundo onde um
representante das famosas três listas não comparecesse aos campos, adulando e
cultivando a amizade dos homens que comandam o esporte mundial.
"Sempre que uma federação esportiva internacional, um comité olímpico
nacional, ou o próprio COI se reuniam, acontecia sempre o jantar compulsório da
Adidas", contou Nally. "Sempre que acontecia um congresso anual, ou algo
assim, a única companhia sempre presente era a Adidas."
Dassler desempenhava o papel da boa fada madrinha. A Adidas aparecia e
todos entravam na dança. "Horst foi o único a dar tanta atenção a eles", relatou
Nally; "com freqüência oferecia suas próprias instalações para que realizassem as
reuniões, e depois aparecia convidando todo mundo para jantar. Lá estava a
Adidas, afável, generosa, agradável e cordial. Não havia pressões. Horst era um
amigo. A relação era quase natural, e Horst começou a montar um grande
esquema de alianças."
Dassler e sua equipe política não precisavam sair sempre à cata de
informações, muitas vezes estas chegavam a eles. Seu banco de dados
transbordava de informações vindas de uma procissão de visitantes do mundo
esportivo, contentes por poder contar com a hospitalidade de Dassler em seu
hotel e restaurante, vizinhos da sede da Adidas em Landersheim. "Lá se
realizavam reuniões e encontros constantes, entre Horst e dirigentes esportivos,
com a equipe política distribuída em torno da imensa mesa de jantar em
Landersheim", contou Nally.
Houve festejos monumentais quando a cidade canadense de Montreal
ganhou o direito de sediar os Jogos de 1976. O grande sonho do prefeito Jean
Drapeau tornara-se realidade. A vinda das Olimpíadas para sua cidade era um
fato. Seis anos depois, o sonho virou pesadelo. As Olimpíadas de 1976 deu um
prejuízo de US$ l bilhão, e os contribuintes de Montreal ainda estarão pagando a
conta quando o Clube descer dos jatos em Atlanta para celebrar o centenário das
Olimpíadas em 1996.
O prefeito Drapeau dizia que seria impossível ter prejuízo com os Jogos
Olímpicos, tanto quanto um homem ter um bebê. Depois de examinar as páginas
de um relatório de quatro volumes produzido por Albert Malouf, o juiz mais
importante de Montreal, Drapeau tornou-se o primeiro homem a experimentar
algo parecido com as dores do parto. O juiz disse que Drapeau "se autonomeara
capataz e gerente do projeto" das novas instalações olímpicas de Montreal, sem
ter "a aptidão e os conhecimentos" necessários para a tarefa. O prefeito
encomendou "instalações luxuosas e impressionantes", ditadas por
"considerações estéticas e de grandeza", sem realizar estudos sérios sobre os
custos envolvidos.
As coisas pioraram quando Sua Majestade a Rainha abriu os Jogos, e
faltavam 22 países africanos na cerimônia inaugural. Dois dias antes eles
abandonaram as Olimpíadas, em protesto pela excursão realizada pelo time de
rúgbi da Nova Zelândia à África do Sul.
Duas grandes estrelas dominaram os Jogos de Montreal: o finlandês
Lassie Viren e o cubano Alberto Juantorena. Viren, um policial do interior, com
sua barba rala, defendeu com sucesso seus títulos olímpicos, tanto nos 5 mil
quanto nos 10 mil metros rasos. Juantorena, com suas passadas largas, foi o
primeiro homem a ganhar as medalhas de ouro nos 400 e 800 metros numa
mesma Olimpíada.
Os Jogos de Montreal provavelmente ficarão na história pelas conquistas
destes dois grandes atletas. Mesmo a investigação severa do juiz Malouf registrou
que, para os canadenses, os Jogos foram "motivo de alegria e orgulho nacional".
Patrick Nally se recorda das Olimpíadas de Montreal por outras razões:
"Montreal serviu como catalisador. A equipe política de Horst estava
montada. Os arquivos com quem é quem transbordavam. Diziam quais os
indivíduos certos para agradar, quais os candidatos com chances de sucesso. Ele
discutia com os Samaranches daquele mundo, preparando-se para as eleições
futuras.
"O terceiro estágio do projeto de Horst nasceu em 1976. O primeiro estágio
foi pagar aos competidores para que usassem Adidas. O segundo estágio, o
período em que se deu conta de que precisaria controlar as federações. O
terceiro era o lançamento de uma estratégia completa. Fomos a Montreal com um
plano estruturado, pela primeira vez. Ali começamos a espalhar as sementes de
nosso trabalho com as federações e o COI. Montreal funcionou como plataforma
de lançamento da era Dassler e Nally."
O quartel-general para o lançamento da "era Dassler e Nally" funcionava
em uma mansão requintada, no bairro mais chique de Montreal. Os dois sócios
importaram um chef 'inglês para preparar uma série de delícias culinárias para
uma interminável sucessão de jantares e almoços, nos quais Dassler e Nally
faziam contatos e completavam arquivos.
"Muito antes do início dos Jogos, já estávamos instalados em Montreal",
lembrou Nally. "Escolhemos uma casa magnífica, onde poderíamos criar um bom
ambiente, para receber pessoas que não viam a hora de fugir dos hotéis.
Esperava-se muita animação em torno dos Jogos Olímpicos, mas pelo jeito isso
faltou em Montreal — talvez porque os canadenses já estivessem fartos de tudo,
naquela altura. Era muito difícil encontrar animação nas Olimpíadas de Montreal."
A mansão alugada pêlos dois empresários logo preencheu o vácuo.
Tornou-se o centro da política esportiva nas Olimpíadas de Montreal, fornecendo
idéias e estratégias para as rodadas de reuniões, encontros e discussões que se
seguiriam.
Nestes encontros, os sócios possuíam uma isca especialmente apetitosa
para balançar na frente das federações esportivas: o contrato multimilionário
fechado por Nally com a Coca-Cola, para a FIFA de Havelange. O dirigente
máximo do futebol mundial logo iria anunciar, para os outros presidentes, que
conseguira milhões de dólares da Coca.
"Poderíamos conseguir companhias interessadas em investir nas
federações internacionais", disse Nally. "E também mostrar as maneiras de ajudar
os interessados em presidir federações em seus objetivos de campanha.
"Em Montreal, fomos capazes de usar o crescimento da FIFA e a
consolidação de Havelange como um presidente esportivo poderoso para mostrar
o que se poderia fazer com uma federação internacional. O dinheiro injetado na
FIFA pela Coca-Cola mudou claramente a cara da organização. Havelange
estava construindo uma nova sede internacional em Zurique, contratando uma
equipe profissional em tempo integral, além de relações-públicas e pessoal da
área financeira. A FIFA indicava o caminho. As outras federações importantes,
como a de atletismo, acompanhavam tudo de perto. Muitas outras se mostravam
ansiosas para seguir no mesmo rumo, e caíram logo nas mãos de Horst, e nas
minhas."
Conforme Havelange se mostrava mais rico e poderoso, todos queriam
chegar lá. Ganhariam viagens, passeios, melhorariam sua imagem, ganhariam
medalhas e status.
"Voar na primeira classe para eventos internacionais importantes pelo
mundo era sem dúvida muito melhor do que varrer o quintal no final de semana",
disse Nally. "Assim que as pessoas mostravam interesse em chegar à presidência
das federações internacionais, Horst começava a negociar, para garantir que os
sujeitos certos fossem eleitos."
Dassler dedicava especial atenção ao estabelecimento de contatos
valiosos dentro das organizações olímpicas propriamente ditas. Muitas das
pessoas que ocupavam postos-chave nos Jogos de Montreal eram funcionários
da Adidas, ou serviam de consultores não remunerados da empresa. "Estávamos
todos no mesmo time", explicou Nally. "Sua carreira futura estaria ligada a Horst,
e portanto, durante o período em que se realizavam os jogos, eles mantinham
Horst atualizado, passando as informações mais recentes, contatos, forneciam
passes para entrada nas áreas reservadas aos atletas ou qualquer outra coisa
que se fizesse necessária.
"Em Montreal, estávamos totalmente integrados com os atletas mais
importantes, como Artur Takac, que servia e ainda serve como conselheiro
técnico das Olimpíadas. Artur foi praticamente a primeira pessoa que encontrei
em Landersheim. Ele costumava jogar tênis com Horst, na quadra da Adidas.
Takac era iugoslavo, e precisava de apoio do Ocidente. Horst cuidou disso, e
Takac ajudava nos contatos com a Europa Oriental e o COI."
Dassler também cultivava contatos mais difíceis, durante sua estada em
Montreal. "Eu me lembro de ter saído com Horst", contou Nally, "e onde ele fosse,
claro, os presentes o acompanhavam. Levávamos sempre caros relógios Omega.
Conversávamos um pouco com a pessoa, sobre a vida em geral, como era tudo
maravilhoso, e como procurávamos oportunidades comerciais no esporte. E de
repente Horst dizia: 'Ah, por falar nisso, trouxe um presentinho, sinal de amizade
da Adidas', ou algo no gênero, e os sofisticados relógios apareciam.
"Conforme circulávamos, dava para perceber que isso já era esperado. A
quantidade de presentes e brindes que as pessoas recebem no mundo dos
esportes é extraordinária. Alguns críticos dizem que não passa de suborno, mas
acho a palavra muito dura. Isso é feito apenas para que as pessoas se sintam
bem em sua presença. Havia a necessidade de distribuir brindes e presentes para
que as pessoas se mostrassem receptivas e amigáveis.
Circular por Montreal com Horst foi muito educativo, porque ele sabia tratar
cada indivíduo como se fosse seu amigo. Cada um era tratado de modo distinto,
dava para perceber que ele avaliava a personalidade e o caráter de cada um com
perfeição, porque conseguia se aproximar de todo mundo."
Tommy Keller, conhecido por sua sinceridade, era diretor da Swiss Timing
e presidente da Federação Internacional de Remo. Há anos dirigia seus cáusticos
ataques contra os líderes do esporte mundial que considerava de segunda classe.
"As carreiras na administração do esporte servem frequentemente como
substitutos para ambições não realizadas em outros campos, como por exemplo o
meio empresarial, a vida militar ou a política", escreveu Keller, com a virulência
habitual. "As funções dos dirigentes esportivos, portanto, são com freqüência
meios de preencher seu orgulho pessoal, antes de mais nada."
Nos anos anteriores à sua morte, ocorrida em 1989, Keller manifestou-se
com mais veemência ainda, castigando o Clube construído por Dassler. Ele
reclamava amargamente que o novo mundo esportivo fora "dominado por uma
máfia latina, da Europa e América do Sul", e tentava lembrar aos colegas o que
realmente importava no esporte internacional, em sua opinião. "Hoje os fatores
dominantes são a busca do dinheiro e a satisfação das ambições pessoais", disse
Keller. "Para mim, a função do esporte é ensinar aos jovens, através da
competição, a se submeterem às regras das sociedades humanas, e não a servir
aos interesses dos dirigentes esportivos que não tiveram muito sucesso em suas
vidas profissionais ou políticas. Eles encontraram um refúgio. Os interesses
pessoais tornaram-se mais importantes do que os interesses esportivos."
Os partidários do Clube hostilizaram Keller, comparando-o a Dom Quixote
lutando contra os moinhos de vento. Seu obituário olímpico oficial ressalta
maliciosamente que ele "empreendeu uma cruzada contra as pressões comerciais
e empresariais, exigindo que os membros de sua federação mantivessem o status
de amadores, e que os dirigentes trabalhassem de graça."
Mas em Montreal, durante os Jogos de 1976, o relacionamento de Keller
com Dassler era bom. Keller era há muito uma figura poderosa no esporte
internacional. Lutara muito pêlos interesses das federações, contra o poder do
COI, excessivo em sua opinião. Já em 1967, Keller fora um dos primeiros a tentar
que as federações formassem uma frente única nos contatos com o comité
olímpico. Ao lado das federações de natação e luta, ele fundou a Assembléia
Geral das Federações Esportivas Internacionais, conhecida pela sigla GAISF
(General Assembly of International Sporting Federations).
Desde o início a idéia gerou problemas com o COI. Avery Brundage,
presidente do Comité Olímpico Internacional na época, recusou-se a reconhecer o
GAISF, por não incluir alguns esportes mais importantes. Um dos membros
italianos do COI disse que o GAISF seria uma ameaça tanto para o COI quanto
para o movimento olímpico, exigindo "competência e dinheiro" que pertenciam ao
COI.
Na origem desta disputa inusitadamente calorosa no mundo normalmente
pacato do COI estava o dinheiro. Os direitos para televisionar os Jogos Olímpicos
seriam uma fonte cada vez mais importante de recursos. As companhias de
televisão pagaram quase US$ 10 milhões para transmitir os Jogos Olímpicos do
México, e isso era só o começo.
O bolo da televisão chega a US$ 633 milhões nos Jogos de Barcelona,
mas na época o total arrecadado no México era inédito. Nos anos seguintes, as
empresas de televisão continuaram aumentando suas ofertas. Quatro anos
depois, em Munique, pagaram US$ 17,8 milhões. No momento em que Dassler e
Nally lançavam a terceira etapa de seu projeto em Montreal, a verba das te-
levisões totalizava US$ 34,8 milhões. A ABC (American Broadcasting Company)
pagou sozinha US$ 25 milhões.
"Tommy Keller era o que se poderia chamar de um dos poucos', pertencia
à honrada velha escola de dirigentes esportivos",
segundo Nally. "Tommy via que os Jogos se tornaram repentinamente
valiosos. No passado, as Olimpíadas não passavam de um divertimento
simpático, feito por amigos alegres, onde todos se reuniam por causa do esporte.
Ninguém precisava pensar no dinheiro, porque não havia dinheiro. De repente,
surgiu o dinheiro da televisão.
"As redes norte-americanas decidiram que as Olimpíadas eram um bom
negócio. Aumentavam os índices de audiência, atraindo anunciantes, pela
primeira vez havia a possibilidade de se lucrar para valer com os Jogos. E o que
isso causa? Como as federações levam sua pane no bolo? Quem fica com
quanto? Vai haver uma divisão em panes iguais? Como uma federação interna-
cional se relaciona com um organismo como o COI, que está ficando rico?"
Keller foi um dos primeiros a ver que seria necessário um novo fórum para
responder a tantas perguntas. Ele também queria que as federações se
tornassem um contrapeso para a crescente influência do COI, e por isso fundou o
GAISF. Dassler e Nally também perceberam as vantagens de uma organização
que servisse de anteparo, embora por motivos completamente diferentes.
"Naquele estágio", disse Nally, "o GAISF era um órgão informal, que se
reunia uma vez por ano. Não possuía uma administração central, nem sede. Horst
e eu pensamos que, se conseguíssemos capturar o GAISF, providenciar uma
sede e torná-lo um centro de informações e dados, isso nos daria a condição de
conversar com muitas federações de uma vez só."
Um príncipe e uma estrela do cinema norte-americano providenciaram a
solução. Rainier, soberano de Mônaco, reina em um país miniatura, onde alguns
quilômetros quadrados da costa mediterrânea se estendem entre as garras da
França e da Itália. A Casa Grimaldi encara um problema perpétuo: como
sustentar seu pequeno principado. O clima da Cote d'Azur, mais a fama da
esposa do príncipe Rainier, a falecida estrela de cinema Grace Kelly, já ajudavam.
Aviões lotados de turistas americanos, encantados com a história da "deusa de
Hollywood que se apaixonou por um príncipe" voavam para Nice, "corriam a
Europa" e depois cruzavam a fronteira de Monte Cario, onde podiam falar inglês
novamente.
O jogo também colaborava. A lenda do homem que quebrou a banca em
Monte Cario era cuidadosamente cultivada há anos. Mas seria preciso mais do
que o brilho decadente do Grand Cassino e de Grace Kelly para sustentar as
atrações turísticas de Mônaco na década de 1980. O príncipe Rainier se dedicava
com afinco à busca de novas atividades, que pudessem injetar moeda forte em
Monte Cario.
"Horst se entusiasmava com algumas coisas, como uma criança", disse
Nally. "Ele viva deslumbrado com os heróis do esporte, por exemplo. Acontecia o
mesmo com Monte Cario, só o nome do lugar já exercia uma atração enorme.
Horst ficou terrivelmente lisonjeado e impressionado quando soube que o príncipe
Rainier desejava conhecê-lo.
"Ele ficou incrivelmente excitado. Rainier disse que tentava melhorar a
imagem do principado, associando-o a eventos internacionais de prestígio. Já
contavam com uma corrida de automóveis de sucesso, o Grand Prix, além de um
campeonato de tênis, e queria conversar sobre as possibilidades de tornar seu
país um centro esportivo internacional, com a ajuda de Horst.
"Como parte da aproximação com Rainier, Horst e eu abrimos um escritório
em Monte Cario. Resolvemos que a área de marketing de nosso trabalho com as
federações, como as atividades desenvolvidas junto a Havelange, na FIFA,
seriam realizadas através de uma sociedade que Horst e eu chamamos de SMPI
— Societé Monegasque de Promotion International.
"Eu ganhei um apartamento sensacional à beira-mar, com vista para o
Mediterrâneo, além de um visto de residente. Personalidades do mundo esportivo
começaram a mudar para lá na mesma época, e costumávamos nos reunir
regularmente na 'Cidade de Brinquedo', como a chamávamos. Quando todos se
encontravam era ótimo, mas depois que iam embora e ficávamos sozinhos, o
lugar era deprimente, cheio de velhos ricos aposentados e mais nada.
"Na época em que inauguramos o escritório de Monte Cario, Horst
conversava regularmente com a Madame Monique Berlioux. Ela era a diretora
executiva e 'grande dame' do COI. Monique tinha um problema, o governo suíço
relutava em fornecer vistos para estrangeiros que precisavam morar lá para
trabalhar na sede de Lausanne. Por algum tempo discutiu-se a possibilidade de
resolver a questão transferindo a sede do COI para Monte Cario. Horst encorajou
esta solução, pensando que assim agradaria Rainier.
"Num almoço com Monique, em Montreal, ficou claro que o plano não
funcionaria. Por isso, Horst conversou comigo sobre uma alternativa para Monte
Cario. Falamos muito sobre levar as maiores estrelas do esporte para morar e
cuidar de seus negócios lá, como Franz Beckenbauer e Bjorn Borg.
"Mas tivemos uma grande idéia: levar o GAISF. Conversamos com Tommy
Keller, e ele acabou concordando em montar uma sede permanente para o
GAISF em Monte Cario. O príncipe Rainier deu a Keller a base de sua
organização, e em maio de 1977 a elegante Villa Henri, tendo até limoeiro no
quintal, foi inaugurada, com Keller na presidência."
"As reuniões do pessoal das federações internacionais eram muito
divertidas", recordou Nally. "Eles erguiam as mangas da camisa e riam muito, ao
contrário do que acontecia nas sessões do COI, sempre muito pomposas e
formais."
As redes norte-americanas de televisão compareceram em peso. A ABC,
NBC e CBS brigavam pêlos direitos das Olimpíadas, e o dinheiro que se
dispunham a gastar crescia. Os gigantes televisivos americanos também
tentavam negociar os direitos de vários esportes, em separado. Os programas da
ABC, Wide World of Sports, da NBC, Sports World e da CBS, Sports Spetacular
ganhavam muita audiência. Em Monte Cario, o dinheiro não era problema.
Custasse o que custasse, as redes norte-americanas pagariam, e as federações
começaram a se amontoar para pegar o trem da alegria.
"Cada uma das redes deu uma festa", contou Nally. "Ótimo, parecia um
campeonato de badalação. Comíamos muito bem, bebíamos muito bem, nos
divertíamos muito, enquanto cada uma tentava suplantar a concorrência. Ali se
reuniam os dirigentes esportivos que no passado se esforçavam muito para
aparecer. De repente um mundo de riquezas se descortinou para eles. Se o novo
mundo era assim, melhor correr para garantir um bom lugar."
Monte Cario era um pote de mel para Dassler e Nally. Ali tinham liberdade
para circular nas federações, modificando-as conforme seus interesses. Eles
enfatizavam a importância de manter o controle sobre todos os direitos de venda
dos. esportes, separadamente. Nally realizava palestras, explicando como
organizar programas de desenvolvimento como o do futebol e a necessidade de
sair à luta pelo dinheiro. Ele conversava sobre a necessidade de reestruturar o
calendário esportivo, destacando a perda inevitável das receitas de televisão,
caso todos realizassem competições nas mesmas datas e ao mesmo tempo.
"O GAISF se tornou um fórum de debates positivo, não apenas para as
federações como também para nós, que pudemos desenvolver um sólido
relacionamento com elas", declarou Nally. "Os rudimentos básicos da educação
empresarial foram transmitidos em Monte Cario. O impulso para a realização de
campeonatos mundiais e competições de natação, atletismo e ginástica nasceu
ali. Nós modificamos a atitude das federações."
Cada esporte seguiu o exemplo do futebol, criando novos eventos. Nally
apresentou a eles o conceito de "pacote", por intermédio do qual se reunia um
grupo de companhias para patrocinar um evento específico.
"Não poderia haver mais um único patrocinador, como no caso da Coca-
Cola", explicou Nally. "Porque nenhum patrocinador se comportaria como a Coca-
Cola, injetando tanto dinheiro. Organizamos campeonatos de remo com Tommy
Keller, com apoio de meia dúzia de companhias, como Canon e Metaxa.
Participamos da Copa Mundial de Ginástica e Campeonatos Mundiais de Ciclismo
da Holanda. Neste último deu uma confusão incrível. O estádio detinha os direitos
de venda das placas em volta da pista. Quando chegamos, tendo a Heineken
como principal patrocinador, não havia espaço para colocar as placas em torno da
pista. Precisei mostrar às federações como conseguir estádios livres para seus
eventos. Nenhum deles tinha a menor noção dos procedimentos comerciais.
Nenhum deles conhecia nada sobre televisão. Não passavam de um grupo
inocente e esforçado de amadores. "Mas, conforme o dinheiro ia entrando, e a
importância das Olimpíadas crescendo, Deus do céu, tudo mudou. De repente
havia gente da política, que não desperdiçava oportunidades. Alguns eram
manipuladores muito astutos, espertos, e perceberam o potencial da coisa.
Empresários e políticos começaram a fazer acordos, batalhar votos, ganhar
eleições. Uma nova espécie de administrador esportivo surgiu, repentinamente,
no momento em que a área se tornou lucrativa."
5
COM O BRAÇO ERGUIDO EU O SAÚDO
Bem-vindo a Barcelona, mais uma vez. A cerimônia de abertura dos Jogos
Olímpicos aproxima-se de seu clímax. As equipes esportivas desfilaram em torno
da pista, e logo um corredor solitário entrará no estádio Montjuic carregando a
tocha Olímpica. Juan António Samaranch, presidente olímpico, dá um passo à
frente para falar aos 70 mil espectadores e bilhões de telespectadores de todo o
mundo.
"Tenho a honra de convidar o rei Juan Carlos a abrir oficialmente os Jogos
da 25a. Olimpíada". Observem o braço direito do presidente, não estaria inquieto,
tentando assumir vida própria, impelido por uma força visceral que o força a
erguer-se num ângulo de quarenta e cinco graus em relação ao ombro?
Não? Bem, muitas vezes ele fez isso. Durante quase quarenta gloriosos
anos, Juan António Samaranch foi um defensor ativo do mais longo regime
ditatorial da Europa. Olhando para a Espanha moderna, é fácil esquecer que por
dezessete anos o país foi um estado policial totalitário, chefiado pelo general
Francisco Franco. Muitos espanhóis emigraram, ou deram as costas para a
política, esperando que um dia a democracia retornasse a seu país.
Samaranch não; ele vestiu a camisa azul do fascismo e desfilou pelas ruas,
fazendo a saudação fascista. Fez carreira, tornando-se parlamentar, membro
fascista do Conselho da Cidade de Barcelona, presidente do Conselho Regional
Catalão e, por algum tempo, ministro dos esportes fascista. Em suas próprias
palavras, Samaranch era "cem por cento franquista". Ele saudou e apoiou o líder
de um sistema político renegado e boicotado pelas democracias ocidentais.
Samaranch não encara a história de sua vida desta forma. Ele se
apresenta como um amante do esporte, que se envolveu com a periferia da
política. "Considero correto a prática da política para a melhoria do esporte",
declarou. "Mas creio que seja errado usar o esporte a serviço da política." Os
fetos mostram o oposto. Apenas quatro dos vinte anos de sua carreira na política
totalitária na Espanha foram dedicados à administração do esporte em tempo
integral. No resto do tempo, o esporte foi um veículo para sua ascensão ao alto
da hierarquia do ditador. Quando o regime repressivo de Franco encerrou-se
abruptamente na Espanha, Samaranch não teve futuro na política real. A única
carreira possível era a política esportiva.
Como Samaranch conseguiu abraçar duas filosofias aparentemente tão
contraditórias? Como uma visão de mundo fascista, por ele proclamada até ter
mais de cinqüenta anos, pode se compatibilizar com a Carta Olímpica, que prega
a luta contra a discriminação e a manutenção da política fora do esporte? A res-
posta de Samaranch foi ter dois pesos e duas medidas.
Mesmo depois de se tornar vice-presidente do COI e percorrer o mundo
como guardião do ideal olímpico, Samaranch continuou a erguer o braço direito
para fazer a saudação fascista em manifestações políticas na Espanha.
Agora, na década de 1990, ocupando o centro da tribuna olímpica, sua
conquista é única. Todos os velhos fascistas daquela era da história do século 20
na Europa há muito desapareceram ou caíram em desgraça. Samaranch é a
última lembrança da Europa dos ditadores que ainda se destaca no palco do
cenário mundial.
Nas próximas duas semanas o centro deste palco será a arena olímpica.
Os Jogos serão o primeiro grande espetáculo público espanhol onde Samaranch
comparecerá com destaque desde a morte do generalíssimo Franco em 1975.
Pouco depois dela, Samaranch fez as malas e deixou a Espanha, com a
condenação de seus compatriotas ainda ecoando nos ouvidos. Desde então vive
fora do país.
O material distribuído pelo COI, referente a seu querido presidente, omite
tais informações. A verdadeira história de Juan António Samaranch, o grande
líder do esporte, é a história de um homem que se reinventou.
Samaranch reconstruiu meticulosamente sua imagem pública. "Ele devotou
a vida inteira ao ideal olímpico, sendo um homem de grande cultura", afirma um
texto divulgado em Lausanne. "Nenhum dirigente olímpico, desde Pierre de
Coubertin, possuiu tal variedade de talentos, como no caso do atual presidente do
COI", declarou o ex-membro suíço do COI, Raymond Gafner. "Juan António
Samaranch conseguiu ser ao mesmo tempo original e muito bem-sucedido em
sua liderança do movimento olímpico", disse Dick Pound, do Canadá. A palavra
"fascista" se mantém ausente das homenagens, claro.
Samaranch é retratado como um senhor idoso, benevolente, ligeiramente
imperial, que devotou generosamente seus anos de maturidade à juventude
mundial e à preservação do ideal olímpico, protegendo-o dos ataques do
comércio e da política. Isso impressiona terrivelmente, e é aceito sem
questionamento nos perfis publicados a cada ano olímpico. Há um problema, pois
pouco ou nada disso é verdade.
Samaranch ficou mais bonito com o passar do tempo. Fotos do jovem
empresário, há quarenta anos, em companhia dos generais que tomaram o poder
na Espanha, mostram o rosto agressivo de um oportunista voraz.
Seus traços, hoje, revelam suavidade. Ele tem a aparência de um senhor
simpático. Enquanto se prepara para fazer seu pequeno discurso na abertura dos
Jogos, Samaranch pode olhar para trás, e ver sua vida de riqueza e sucesso na
Espanha com orgulho. Mas sua experiência foi inusitada. Dezenas de milhares de
seus compatriotas espanhóis foram mortos com tiros, torturados ou encarcerados
pêlos tribunais militares. Por quê? Inicialmente porque lutaram no lado derrotado
na guerra civil, e mais tarde por oposição à vida miserável num regime de partido
único. Não havia liberdades civis na Espanha, nem eleições livres, até 1977. Os
partidos políticos viviam na ilegalidade.
Samaranch entrou para o movimento fascista na adolescência.
Permaneceu leal a ele, até sua dissolução, às vésperas das primeiras eleições
democráticas, cerca de quarenta anos depois. Samaranch jamais rasgou
voluntariamente a carteirinha do partido. Ele permaneceu leal até a morte do
fascismo.
O Movimiento, nome dado ao agrupamento fascista espanhol, controlava
cada aspecto da vida do país, da justiça à política, dos salários à administração
esportiva. A ditadura do general Franco reproduzia o despotismo do Leste
europeu, e isso também valia para o esporte. Atividades de recreação saudáveis
não se destinavam a beneficiar os jovens, a divertir os velhos e a promover a
decência e a harmonia. O esporte não passava de uma propaganda vigorosa da
credibilidade do regime ditatorial. Com o braço direito erguido em saudação,
vestindo o uniforme do Movimiento, camisa azul e jaqueta militar branca,
Samaranch usou o esporte para obter sucesso para si e para o movimento.
Ele fez a mesma coisa com as Olimpíadas. No decorrer da última década,
Samaranch transformou o cargo de presidente olímpico, tradicionalmente de meio
período, honorífico, em uma função executiva de comando em tempo integral.
Despediu o diretor remunerado anterior, criando uma corte e uma burocracia im-
periais. Apesar de todos os discursos pregando o "esporte para todos",
Samaranch conseguiu elevar a presidência olímpica a um status estratosférico,
olímpico. Como um monarca — ou um ditador — ele ocasionalmente desce para
tirar fotos com atletas selecionados e outros mortais. Mas, como político astuto,
com 25 anos de prática, Samaranch não apenas se reinventou, ele remodelou o
movimento olímpico de acordo com seu estilo de fazer política: o líder concede e
aceita audiências com chefes de estado; o líder dá as ordens; o líder escolhe os
novos membros do COI e os impõe ao movimento; o líder sabe de tudo; a
vontade do líder deve ser executada; o líder comparece a entrevistas coletivas
ladeado pelas bandeiras do movimento.
Um dos momentos mais significativos na vida do jovem Juan António
Samaranch foi o dia 17 de julho de 1936, data de seu 16o. aniversário. Naquele
dia o general Franco ergueu a bandeira da rebelião. No início do ano o povo
espanhol elegera um governo de centro-esquerda, da Frente Popular. Os ricos
conservadores e os militares se recusaram a aceitar o veredito das urnas. A
rebelião de Franco foi recebida com alívio no lar dos Samaranch.
Franco contava com o apoio de Hitler e Mussolini, que já haviam
estabelecido as duas outras grandes ditaduras européias. Guarnições militares
por toda a Espanha se revoltaram, apoiando Franco. Os orgulhosos catalães
resistiram aos exércitos de Franco por três anos, e Barcelona foi uma das últimas
cidades importantes a cair. A resistência entrou em colapso depois que a cidade
foi bombardeada pêlos alemães e italianos, num ensaio da guerra mundial que
começaria em um ano.
Samaranch pertencia a uma rica família de fabricantes de tecidos de
Barcelona. Sua inclinação natural era seguir o estandarte fascista, mas isso era
impossível. A Catalunha permaneceu leal ao governo eleito, e o exército
"nacionalista" de Franco estava a centenas de quilômetros, no sul.
Sendo assim, Samaranch entrou para uma organização fascista de
juventude. Suas atividades chamaram a atenção da polícia. Foi chamado para
interrogatório, e sua mãe o vestiu com shorts de tênis, para que aparentasse
menos idade. A polícia o liberou. Pouco antes de seu 18o. aniversário,
Samaranch foi convocado para o exército republicano.
"Desde o início ele se manteve muito distante dos outros soldados",
declarou Juan Llarch, convocado no mesmo dia. "Sua tática era ficar sempre
próximo do capitão e dos outros oficiais. Curiosamente, ele sempre tinha tabaco e
chocolate — naquele tempo raros — e quando o capitão ficava sem cigarros, ele
costumava oferecê-los."
Juan Llarch identificara o estilo de Samaranch: "Ele agiu assim a vida
inteira, oferecendo algo para conseguir coisas muito maiores."
Samaranch não tinha intenção de continuar servindo no exército
republicano nem um único dia além do necessário. Llarch se recorda do modo
como terminou a breve passagem de Samaranch pelo exército democrático. "Seu
objetivo era conseguir permissão para sair, e quando a conseguiu, disse que não
voltaria, ficando em Barcelona, na Cruz Vermelha. Depois eu soube que, ao
chegar em Barcelona, ele desertou e se escondeu."
Llarch tornou-se um escritor destacado depois da guerra. Ele não viu mais
seu colega refratário, a não ser muitos anos depois, quando Samaranch já se
tornara uma importante figura pública. Llarch disse que os modos de Samaranch
eram frios, e que não gostava de ser visto a seu lado.
"Samaranch agora grita 'Viva a Catalunha', e tenta parecer mais
democrático que todo mundo", declarou Llarch no final dos anos 1970. "Mas
sabemos que foi franquista a vida inteira."
Franco fez poucos prisioneiros na sua vitória, em 1939. Executou por volta
de 200 mil oponentes, segundo as estimativas, e mais de l milhão de refugiados
deixou o país. Sua vingança contra a Catalunha e Barcelona, que se opuseram a
ele energicamente, foi severa. No mês em que Samaranch comemorava seu 19?
aniversário, os fascistas executavam cerca de 500 pessoas por semana na
cidade. Os visitantes do estádio Montjuic, para os Jogos Olímpicos, estarão a
poucos minutos a pé da antiga guarnição de mesmo nome, onde os inimigos do
homem que se tornou presidente do COI eram abatidos como cães.
Os atos do movimento político de Samaranch na Catalunha, depois da
Guerra Civil, contrastam ostensivamente com os ideais olímpicos que ele hoje
proclama. A cidade sede dos Jogos se compromete a realizar também um festival
cultural; ele deve "simbolizar a universalidade e a diversidade da cultura humana".
Barcelona mostrará a diversidade da cultura catalã.
Há cinqüenta anos Franco e seu Movimiento tentaram esmagar aquela
cultura. Em cenas similares às queimas de livros nazistas na Alemanha, a língua
catalã foi banida, e as bibliotecas particulares e museus atacados. Até mesmo os
passes de ônibus impressos em catalão acabaram queimados em praça pública.
O banimento da cultura catalã prosseguiu, mesmo depois que os
esquadrões da morte foram desativados. Na década de 1960, quando Samaranch
era um político fascista em ascensão, uma cantora catalã, cantando em
castelhano, ganhou o primeiro prêmio no Festival da Canção do Mediterrâneo. A
canção foi inscrita para o Festival Eurosong, e a corajosa cantora avisou que a
interpretaria em catalão. O governo imediatamente recusou permissão para que a
artista participasse do festival.
O idioma do conquistador, o castelhano, foi imposto na região onde
Samaranch nascera. Embora falasse catalão desde a infância, Samaranch
renegou sua herança cultural sem problemas. Depois da morte de Franco, ele
repentinamente acrescentou à sua biografia do COI um detalhe. Além de
castelhano, francês, inglês e russo, Samaranch admitia que falava também
catalão.
Depois da Guerra Civil, Samaranch entrou para o ramo da família, a
indústria têxtil. Tornou-se diretor da empresa, e graças aos lucros consideráveis
obtidos com trabalhadores não-sindicalizados, estava livre para se dedicar a sua
prioridade real: manipular o esporte para atender a suas ambições políticas. Ele
usou a riqueza familiar para comprar favores e levar urna vida de playboy.
Aos vinte e poucos anos, Samaranch freqüentava as boates de Barcelona
preferidas pêlos ricos da elite. Moças atraentes conseguiam escapar da miséria
da época trabalhando como recepcionistas destes clubes. Eram conhecidas como
"cortesanas", e podiam ser "alugadas" pêlos fregueses masculinos. De acordo
com seus companheiros, Samaranch contratava mais mulheres do que todos os
outros. Ao que parece, poucas se destinavam a seu uso particular. Ele reservava
mesas, e também garotas, em meia dúzia de clubes, todas as noites, como
gentileza para os amigos. Através desta generosidade interminável, Samaranch
tornou-se um dos líderes do jovem jet-set de Barcelona.
Samaranch tornou-se alvo de mexericos. Seus amigos diziam que ele
mantinha agendas com detalhes sobre as moças, e ao longo dos anos reuniu
uma coleção de quarenta agendas. Seus conhecidos comentavam que ele
marcava o aniversário das moças, e os presentes comprados para elas. Desde a
juventude, mantinha fidelidade a um hábito que conservaria por toda a vida: dar
presentes e esperar o momento de pedir favores.
Na década de 1940 passou a praticar boxe, e competiu, como peso pena,
no campeonato catalão. Entrou uma vez no ringue com roupão de seda e o
emblema "Kid Samaranch" nas costas. Ganhou a luta no segundo assalto. Alguns
comentários maldosos davam conta de que, sem seu conhecimento, amigos seus
pagaram ao adversário para que este caísse!
Seu período de boxeador foi breve. Samaranch logo deixou de lado a
competição a sério para iniciar sua vida de dirigente. Procurou uma oportunidade,
algo que ninguém tivesse notado ainda. Considerou que o hóquei sobre patins
tinha um potencial razoável, por sua popularidade na Espanha e em outros
países. Faltavam recursos, e o esporte se beneficiaria, a longo prazo, com um
rico patrocinador.
Em 1943 ele contatou o clube esportivo Espanhol, e fundou um time de
hóquei. Dois anos depois persuadiu o ministro dos esportes da Espanha, general
Moscardo, a permitir que ele entrasse para a federação internacional de hóquei
sobre patins. Em 1946, compareceu ao congresso de Montreux. Era o primeiro
passo de Samaranch no cenário do esporte mundial.
Samaranch conseguiu o sucesso, em seu país e no exterior. Montou uma
seleção espanhola, financiando o projeto com seus próprios recursos.
Instintivamente, seguiu o mesmo caminho que produziu muitos dos atuais
dirigentes do Clube: usou seu dinheiro para comprar o sucesso no esporte — e
portanto na política esportiva.
Outra fatia dos lucros de Samaranch na indústria têxtil serviu para financiar
o campeonato mundial de hóquei sobre patins em junho de 1951, realizado em
Barcelona. Não foi puro altruísmo, e sim um investimento cuidadosamente
planejado e rentável. A Espanha amargava o ostracismo da comunidade
internacional desde 1945. A maioria dos governos ocidentais se recusava a reco-
nhecer o regime que enviara tropas para lutar ao lado dos nazistas. As Nações
Unidas bateram a porta na cara de Franco. A iniciativa de Samaranch,
organizando um evento internacional em Barcelona, marcou o início da lenta volta
do país à comunidade internacional. Para completar, o time espanhol venceu o
campeonato.
Para a maioria das pessoas, a vida em Barcelona era feita de migalhas de
pão e circo, ou seja, o hóquei sobre patins. Enquanto Samaranch desfrutava da
companhia paga das garotas, carros e sucesso com o tique de hóquei, o grosso
da população vivia no limite da fome. "A década de 1940, e o começo dos anos
1950 foram uma época de intenso sofrimento para o povo espanhol", escreveu o
historiador Raymond Carr, de Oxford. "Canetas-tinteiro eram compradas a
prestações, escovas de dente recuperadas. A pobreza gerava a prostituição, e
havia tantos mendigos que a polícia multava quem desse esmolas."
Samaranch podia ficar tranqüilo, que suas fábricas de tecidos dariam lucro.
Na Espanha de Franco as greves estavam proibidas, e os salários eram mantidos
baixos, à força. O desespero gerava a raiva. O campeonato de hóquei sobre
patins realizou-se num cenário horripilante. Os sindicatos proscritos convocaram
uma greve geral. Trezentos mil trabalhadores aderiram. Os reforços policiais
chegaram de trem, e navios de guerra desembarcaram tropas no porto. A polícia
abriu fogo contra os grevistas, dois trabalhadores morreram e 25 ficaram feridos.
Os operários voltaram à força para as fábricas. Milhares deles foram presos. Para
muitos, a greve fora um desastre. Para Samaranch, ela representou um grande
sucesso.
A vitória suspeita da seleção espanhola no campeonato de hóquei
aumentou a importância de Samaranch dentro da estrutura do partido único
espanhol, o Movimiento, que incorporara o partido fascista, a Falange. Na década
anterior ele aderira à ala jovem, a Frente de Juventudes. Apoiado em seu sucesso
esportivo, Samaranch tentou realizar sua ambição real, a carreira política.
No dia 22 de outubro Samaranch escreveu ao chefe regional do partido,
pedindo para ser selecionado como candidato nas eleições para o Conselho
Municipal de Barcelona. Não se tratava de uma eleição do tipo ao qual os
cidadãos de qualquer país democrático se acostumaram a reconhecer. O povo de
Barcelona não tinha voz ativa no resultado. O partido "elegia" sozinho o Conselho,
em uma reunião fechada, e as pessoas sabiam do resultado pêlos meios de
comunicação controlados pelo Estado, descobrindo quem seriam seus novos
governantes.
Nos arquivos do antigo governador civil de Barcelona, falangista, há dois
documentos fascinantes, datados de 1951. O primeiro — número 994 — está
cheio de elogios a Samaranch. Ao que parece, durante a greve geral, o partido
sentiu falta de seus ativistas, e o documento afirma que "Samaranch foi um dos
poucos falangistas presentes durante o período de greve". Havia falta de fura-
greves, e Samaranch realizou um trabalho notável na prefeitura local. Mas sua
vida particular constituía um problema.
A polícia secreta da Falange espionava todo mundo, e se sentiu
incomodada pela imagem de playboy de Samaranch. Consideraram tal
comportamento inaceitável em um líder político. O segundo relatório —
documento número 884 — 0 critica por dar carros de presente a "suas muitas
namoradas sucessivas". E concluía: "não acreditamos que ele possua a
maturidade necessária para assumir uma função pública."
Sem se abalar com a rejeição, Samaranch dedicou-se a granjear mais
prestígio esportivo para a Espanha. Tornou-se vice-presidente do comité
organizador do segundo Jogos do Mediterrâneo, que graças a sua imensa sorte
seriam realizados em Barcelona, em 1955. Mais um evento de porte, capaz de
desviar a atenção internacional da repressão contínua. Também daria a Sa-
maranch a oportunidade política que buscava. Um dos fatores de seu sucesso na
década de 1950 estava na falta de crítica por parte dos meios de comunicação,
algo que o acompanhou em sua carreira olímpica.
O comité dos Jogos Mediterrâneos buscava cobertura favorável e intensiva
da imprensa. Para atingir seu objetivo, simplesmente subornaram jornalistas.
Como eram bons burocratas falangistas, registraram todo o esquema, por escrito.
O documento encontra-se hoje nos arquivos do Governador Civil.
"Em cada publicação existe um homem chave, que ao se colocar a favor
da Organização — ou fechar os olhos — pode, sem escrever uma única linha,
influenciar o tratamento da Organização", diz o texto. "Precisamos conversar
pessoalmente com estes homens, antes que a campanha de propaganda na
imprensa se inicie, e oferecer dinheiro por sua colaboração."
Este tipo de suborno rotineiro servia como lubrificante das engrenagens da
Espanha franquista. A política corrupta gera uma sociedade corrupta. Os mesmos
empresários que elogiavam ostensivamente o generalíssimo com freqüência não
pagavam impostos, lesavam o Estado e praticavam fraudes escandalosas. Para
Franco, esta era uma forma aceitável de recompensar alguns partidários e
comprar outros que pudessem causar problemas.
Samaranch recebeu uma cobertura da imprensa mais favorável do que
muitos de seus companheiros do Movimiento. Um grupo de jornalistas em
Barcelona que despejava uma torrente interminável de elogios a seu respeito. Ele
era famoso por dar presentes aos jornalistas, com a mesma facilidade com que
alugava moças nas boates. Contam até que jornalistas receberam salvas de prata
como presente de casamento, sem nunca terem sido apresentados a ele.
De acordo com um texto publicado na IOC Review, os Jogos
Mediterrâneos de 1955 foram um tremendo sucesso. "Eles mostraram o triunfo do
ideal olímpico nos países banhados pelo 'Maré Nostrum', onde se originou nossa
civilização", dizia a reportagem. "O prestígio daqueles dias memoráveis em
Barcelona foi aumentado pela presença de oito membros do COI."
Os Jogos eram uma "manifestação educativa, lotados de história, arte,
filosofia e beleza. O mais importante não era vencer, e sim ter a honra de
participar." O autor esqueceu de dizer que a honra de participar fora negada a um
país banhado pelo Mediterrâneo — Israel. O responsável: Juan António
Samaranch.
Com o impulso extra da cobertura elogiosa da imprensa, Samaranch tentou
mais uma vez ser "eleito" para o Conselho da Cidade de Barcelona. Apelou
novamente ao Movimiento. Novamente a polícia secreta investigou sua vida
particular. O relatório subseqüente, datado de 6 de novembro de 1954, mostrou
que a vida privada de Samaranch não se alterara. O relatório foi escrito com muito
cuidado, deixando as farpas para o final.
"Este homem desfruta de grande prestígio no esporte. Trata-se de um
perfeito cavalheiro. Politicamente, identifica-se com o regime, quanto à sua
conduta moral, levando-se em conta a fortuna que dispõe, sua idade e círculo de
amizades, não se caracteriza nem pela ostentação nem pêlos escândalos nos
relacionamentos com as mulheres e casos amorosos. Estes são muitos, e corre o
boato de que ele mantém um apartamento para tais necessidades. Ele é solteiro."
Apesar de tudo, sua nomeação saiu. Samaranch, naquela altura, era muito
poderoso para ser ignorado politicamente. Pelo menos conseguiu abrir caminho
na política fascista, participando da administração da segunda cidade espanhola.
Ficou responsável por um rico subúrbio e pelo esporte na cidade. Havia apenas
uma condição. Até aquele momento ele era simpatizante do partido, mas não
membro oficial. Agora, se quisesse o cargo, precisaria da carteirinha do partido.
Samaranch assinou a ficha.
Faltava ainda mais um pequeno ajuste para garantir sua ascensão. O
Governador Civil o chamou para uma conversa em particular. "Samaranch", ele
disse, "creio que todos os conselheiros devem ser casados."
O sinal era claro. Se Samaranch queria subir politicamente dentro do
partido, precisaria arranjar uma noiva. Em pouco tempo seu casamento com
Maria Teresa Salisachs foi anunciado. Universalmente conhecida como "Bibis",
ela pertencia a uma família de posses. Casaram-se em um ano. Salvador Dali
criou o convite para as bodas.
Samaranch havia fixado os olhos na política nacional. Perdera quatro anos
desde a primeira tentativa de ocupar um cargo no Conselho da cidade, e
pretendia recuperar o atraso. Também desejava ser um político com assento no
conselho regional, que governava toda a Catalunha.
O processo eleitoral, como sempre, não teve nenhuma relação com as
urnas. Ele contatou um médico de Barcelona, figura influente no Movimiento,
coincidentemente apoiado pelo pai de Samaranch. O doutor deu um telefonema.
No dia seguinte a imprensa anunciou que Juan António Samaranch era agora
Conselheiro Regional, além de responsável pelo esporte na Catalunha.
O sucesso dos Jogos Mediterrâneos, realizado sem a presença israelense,
agradou ao governo. Novos telefonemas foram dados, e em 1956 o Conselho
Regional nomeou Samaranch para ocupar um cargo no comité nacional do
esporte, em Madri. Havia um preço a ser pago, mas para um homem com as
opiniões de Samaranch, este preço estava longe de ser odioso. Ele precisaria
continuar mostrando sua lealdade inabalável ao Movimiento. Coerente com tal
atitude, suas cartas aos dirigentes esportivos mais graduados se encerravam com
uma frase reveladora: "Sempre às suas ordens, com o braço erguido eu o saúdo."
Quando a Samaranch propriamente dito, isso elimina qualquer dúvida de
que, para ele, o esporte era a rota privilegiada para o sucesso na política. Na
Espanha franquista não havia diferença entre esporte t política. O esporte não
passava de mais um instrumento de governo, num estado totalitário abrangente.
E Samaranch poderia usar este instrumento à vontade. A geração de generais
que vencera a Guerra Civil e assumira o governo tinha raízes no século anterior.
Pouco entendiam do esporte moderno. Samaranch era esperto, enérgico, leal e
politicamente ambicioso. Buscava a ascensão política, e ao mesmo tempo
melhorar a imagem esportiva da Espanha, mantendo o esporte sob controle do
fascismo. Os generais gostaram da idéia, e progressivamente abriram-lhe as
portas do Clube.
Samaranch pulou da vida política periférica da Catalunha para o centro do
poder, em Madri. Mas depois se seguiu uma década de frustrações. Ele não foi
bem-recebido em todos os setores do sistema político de Madri. A riqueza de
Samaranch, e sua ambição flagrante o tornaram impopular e lhe valeram o
apelido de "senorito" — o rapaz mimado.
Mas Samaranch, o magnata do setor têxtil da Catalunha, usou o tempo
para fazer os contatos que lhe dariam sua segunda fortuna. Em Madri ele
conheceu o financista Jaime Castell, de quem se tornou sócio e amigo íntimo.
Eles se lançaram em uma série de empreendimentos imobiliários especulativos,
para atender ao movimento turístico na costa catalã. Samaranch também entrou
para a diretoria de várias companhias: bancos, indústrias e empresas de
construção civil. Castell possuía bons contatos em Madri. Através dele,
Samaranch conheceu a família de Franco. Ele e Bibis aproximaram-se bastante
da filha de Franco, Carmen.
Uma década de paciência e astuta distribuição de presentes foi finalmente
recompensada em dezembro de 1966, quando o ministro do esporte deixou o
posto. Samaranch foi escolhido por Franco para sucedê-lo.
Os jornais e noticiários de cinema desempenharam um papel fundamental
na ascensão de Samaranch. Ele aprendera antes que uma combinação de
censura, suborno e favores a jornalistas era essencial para promover sua carreira
política. Estava na hora de se aventurar como dono de um jornal. Entrou para a
diretoria do Tele-Exprés de Barcelona. Um jornalista que trabalhava lá descreveu
sua função: "inspetor político". Quando saiu uma notícia a respeito da demissão
de operários numa indústria têxtil, Samaranch recortou a matéria e a enviou ao
editor, com um bilhete: "Como sempre, escrevendo para quem não lê jornal.
Deste jeito não chegaremos a lugar nenhum."
Mas Samaranch chegaria. Entrou para o Comité Olímpico Espanhol,
controlado pêlos fascistas, em 1956. Um dos fatores decisivos em sua ascensão
política na Espanha era a influência que conseguira — para si e para a Espanha
— no movimento olímpico. Já em 1961, cinco anos antes de entrar para o COI,
Samaranch convidou a esposa de Avery Brundage, presidente do COI, para
passar o verão em sua vila na Costa Brava. A cortesia valeu a pena. Em 1965, o
COI realizou sua sessão anual em Madri. O Chefe do Estado abriu a conferência.
O general Franco podia se considerar um patrono do ideal olímpico de decência e
jogo leal.
Quando vagou um lugar na representação espanhola do COI, no ano
seguinte, poucos duvidavam que Samaranch seria o escolhido. Na reunião
seguinte do COI, Samaranch entrou para a elite olímpica.
6
O CAMALEÃO MANHOSO
A pira olímpica pega fogo. Começam os Jogos Olímpicos de Barcelona.
Finalmente o estádio Montjuic cumpre seu destino. O prefeito Pascal Maragall
tornou isso possível. Ele passou os últimos seis anos comandando a equipe que
organizou os Jogos da 25a. Olimpíada. Pode-se perdoar Maragall se ele não
cumprimentar o presidente do COI com muito entusiasmo. Trata-se do prefeito
socialista de Barcelona, e sua família sofreu nas mãos do Movimiento de
Samaranch, e isso não foi há tanto tempo assim. Seus irmãos foram presos, e a
irmã condenada por imprimir literatura anti-franquista.
Os dois homens simbolizam posturas contrastantes, dentro da política
espanhola. O socialista se elegeu através de um processo democrático justo. O
fascista chegou ao poder, inicialmente, por meio de contatos influentes, e se
manteve devido a um processo eleitoral falsificado. Eis aí mais uma história
verdadeira que não se encontra nas biografias de Samaranch divulgadas pelo
COI.
Na metade da década de 1960, a economia espanhola cambaleava. As
democracias ocidentais haviam batido a porta na cara de Franco. Recusavam-se
a permitir que a ditadura negociasse com a Comunidade Européia. Para
sobreviver, a Espanha necessitava do comércio com a França, Alemanha, Itália e
outros vizinhos além dos Pirineus. Franco procurava um modo de suavizar a
imagem de um regime repressor. Em 1967 teve uma nova idéia: realizar eleições.
O povo espanhol teria finalmente uma democracia, embora somente nas
condições estipuladas pelo Movimiento. Todos poderiam votar nas eleições para
o parlamento espanhol, as Cortes. O conceito de "eleição" democrática de Franco
permitiria que ele nomeasse 83 por cento dos deputados. O povo votaria para
eleger os 17 por cento restantes.
Dois tipos de candidatos seriam permitidos: os de direita e os de extrema
direita. Antes da campanha, os candidatos precisavam jurar fidelidade ao general.
Isso deixou de fora muitos candidatos centristas, liberais ou esquerdistas. Por via
das dúvidas, todos os partidos políticos continuavam proibidos — exceto o Mo-
vimiento oficial.
Um dos dois candidatos oficiais do Movimiento para a eleição de 1967 em
Barcelona foi Juan António Samaranch. Ele foi eleito com mais de meio milhão de
votos. Em segundo, com uma pequena diferença, ficou o direitista independente
Eduardo Tarragona. Desiludidos pela falta de escolha, apenas 53 por cento do
eleitorado se deu ao trabalho de ir votar.
Tarragona assustava o Movimiento. Ele deu a Barcelona a chance de
registrar seu voto contra o franquismo. Era preciso abalar sua campanha. "Eles
usaram todos os recursos possíveis para prejudicá-lo", escreveu um historiador.
"Impediram que realizasse comícios em Barcelona até que faltassem cinco dias
para a eleição. Para um de seus comícios, o governo reservou uma sala de aula,
com capacidade para trinta pessoas, em outro, um salão sem cadeiras. Em
contraste, Samaranch teve todos os recursos do Movimiento à disposição."
Muitos catalães preferiram votar de outro modo. Quando Samaranch se
elegeu para as Cortes, os operários entraram em greve, exigindo salários
decentes. O Estado de Emergência foi declarado, e os manifestantes presos. Este
era o cenário do triunfo "democrático" de Samaranch.
Samaranch podia ficar satisfeito com suas conquistas políticas. Em 1967
era membro do parlamento, ministro do governo e amigo íntimo da família de
Franco. Além de multimilionário e menina dos olhos da imprensa. Viajava pela
Espanha, promovendo a si mesmo e ao esporte. Ele e Bibis passaram o Ano
Novo em um palácio no campo, na companhia do ditador. Mas Samaranch estava
voando alto demais.
Em 1970 ele aterrissou. Foi demitido. Perdeu o cargo de ministro do
esporte. Sua ambição descontrolada o derrubou. O estilo de Samaranch
conflitava com os velhos cinzentos do regime de Madri. Os reacionários veteranos
da Guerra Civil concluíram que o senorito era ousado demais.
Seu erro fatal foi irritar os burocratas do Movimiento, extremamente
dedicados ao protocolo. Para começar, ele os atropelou, convidando o príncipe
Juan Carlos para viajar à Tunísia e assistir os Jogos Mediterrâneos. Sua segunda
gafe: convidar Franco para inaugurar um novo centro esportivo.
O secretário-geral do Movimiento espumou de raiva. Fora informado da
inauguração pêlos jornais! Samaranch passara dos limites. A velha guarda se
livrou daquele jovem arrivista e nomeou um novo ministro do esporte, Samaranch
não perdeu o cargo por ter abandonado o fascismo. Houve apenas um choque de
personalidades. Não o expulsaram, nem ele se afastou do Movimiento. Manteve
seus cargos no partido e na política espanhola. Sofrera apenas um pequeno
tropeço.
As "eleições" para as Cortes controladas pelo regime realizaram-se
novamente em 1971. Mais uma vez, havia por trás um cenário de
descontentamento da população civil. Trabalhadores e estudantes, apoiados
também pela classe média, se mostravam cansados da ditadura e da pobreza,
enquanto os amigos de Franco viviam no luxo. Para proteger seus privilégios, o
Movimiento deu carta branca à polícia. Que atirassem.
Três operários foram mortos com tiros em Granada. Em Barcelona, 300
intelectuais se reuniram para protestar, no convento de Montserrat, lar espiritual
do nacionalismo catalão. Era ilegal. A polícia cercou o convento durante três dias,
e ameaçou invadir o prédio. Quando os manifestantes saíram, muitos acabaram
presos e processados.
Nestas eleições, Samaranch foi novamente o candidato oficial, e mais uma
vez enfrentou o direitista independente Eduardo Tarragona. Após a eleição de
1977, Tarragona iniciara contatos semanais com os eleitores. Este perigoso
precedente sugeria que um representante deveria se relacionar com os eleitores.
Tarragona criou associações de moradores, para protestar contra a falta de
escolas, iluminação e saneamento. Denunciou a evasão de impostos da classe
média, e exigiu melhorias nos cortiços, moradia barata e mais escolas. Fez
campanha por apoio da previdência às crianças deficientes. Nas Cortes, ele votou
contra o orçamento, que considerou "inaceitável para qualquer contador compe-
tente."
Apesar das vantagens de ser um candidato oficial, a eleição de 1971 quase
representou um desastre para Samaranch. Ele fez sua campanha baseado em
dois slogans políticos: "Ninguém fez tanto pelo esporte" e "Queremos a semana
de quarenta horas". O eleitorado deu as costas para as urnas. O comparecimento
caiu para 35 por cento. Pior ainda, Tarragona vencia Samaranch, cuja votação
despencou. Samaranch conseguiu voltar às Cortes por pouco. Logo depois da
"eleição", um operário levou um tiro e morreu durante a greve da fábrica SEAT em
Barcelona. Ele não chegou a ver a semana de quarenta horas.
O fato de Samaranch ter desempenhado um papel destacado no sistema
totalitário espanhol nunca foi divulgado pelo COI. Em 1974, quando ele se tornou
vice-presidente do COI, a Revieiu olímpica publicou que Samaranch detinha "o
recorde de número de votos no parlamento espanhol". Isso ocorreu em 1967. A
Reviezu deu a informação muito tempo depois da queda da votação na segunda
eleição para as Cortes.
O movimento olímpico era vital para Samaranch, o político. Se o fascismo
entrasse em colapso na Espanha, o mundo olímpico poderia ser usado para
lançar uma carreira alternativa no exterior. O COI, guardião dos nobres ideais
coríntios dos Jogos Olímpicos, forneceria o disfarce ideal para que Samaranch
promovesse sua própria reinvenção.
O COI ainda era um clube de cavalheiros. Um oportunista batalhador
poderia ir longe. E foi. Nas Olimpíadas do México, em 1968, só dois anos depois
de sua entrada no COI, Samaranch ficou encarregado do protocolo olímpico. Uma
posição ideal para alguém apaixonado pelas regras, regulamentos e pela ordem.
Um posto-chave para um homem ambicioso. Agora o membro secundário teria
sua oportunidade de melhorar a imagem perante os membros do COI do mundo
inteiro.
O novo chefe do protocolo discursou para os titulares das delegações
durante os Jogos de Inverno de Sapporo, em 1972. O dever de todos era, disse
Samaranch, convencer os atletas da importância da cerimônia de abertura.
Qualquer atleta ausente do desfile seria culpado de "descortesia, violação das
normas e de prejudicar o valor moral dos Jogos".
Samaranch também insistiu na cerimônia de encerramento. Ele determinou
que "uma disciplina rígida, porém voluntária, deve ser observada por todos. Os
atletas não terão permissão para acenar com lenços nem carregar câmeras. Será
proibido abandonar a formação." Um reflexo da vida autoritária de Samaranch na
Espanha, onde se enfatizava o desfile militar, a ordem e a disciplina.
Os membros menos ambiciosos do COI raramente participavam dos
comitês olímpicos importantes. Samaranch subiu depressa. Em pouco tempo
entrou para a comissão de imprensa, e se tornou membro da diretoria executiva
— o comando central do COI. Samaranch parecia estar no caminho certo para o
topo. Mas isso, por si só, não bastava para garantir o posto máximo no esporte
mundial, a presidência do COI. Como Samaranch poderia ganhar mais destaque?
Só havia uma resposta: precisava fazer uma aliança com o homem que dava as
cartas em Landersheim.
Como Samaranch feria o contato com Horst Dassler? Desde o final dos
anos 1960 ele conhecia Christian Jannette, o francês encarregado do protocolo
nos Jogos de Munique. Jannette fora ; descoberto por Dassler, e levado para
trabalhar com a equipe política da Adidas.
"Em Munique, Samaranch chefiava o protocolo do COI, e eu precisava
trabalhar bastante com ele. Ficamos amigos", declarou Jannette. "Em 1974,
Samaranch ficou sabendo que eu trabalhava com Horst, e me disse que gostaria
de conhecê-lo. Ele nos convidou para ir a sua casa, em Barcelona, onde
passamos dois ou três dias.
* *; "Horst queria manter contato com qualquer pessoa envolvida com a
organização dos esportes, e Samaranch era um dos sujeitos mais importantes,
mesmo naquele tempo. Chefiava o protocolo do COI, e as pessoas costumam
dizer que o chefe do protocolo se torna o presidente seguinte. Eu disse a Horst
que ele era um bom sujeito, ambicioso e esforçado. Horst gostou dele. Mais tarde
ficaram muito amigos."
Patrick Nally logo encontrou Dassler e Samaranch, no circuito de
entretenimento da Adidas. Eles estavam juntos. "Horst falava com ele de modo a
indicar claramente que a conversa fazia parte de um esquema para conquistar o
COI", disse Nally. "Horst sabia que ele pretendia a presidência do COI, muito
antes do início da campanha declarada. Havelange chegou ao topo por conta pró-
pria, e depois se apoiou em Horst. Creio que Samaranch foi o primeiro dirigente
importante a sair em campanha em tempo integral, tendo sempre Horst a seu
lado.
"Samaranch era o início de uma nova espécie de dirigente, capaz de
identificar uma boa oportunidade. Eles iam à luta, dedicavam-se à campanha
política para conseguirem se eleger. Naquela época, qualquer um que
pretendesse fazer isso ia primeiro a Landersheim, falava com Horst e acertava um
acordo com ele. Quem se aliasse a Horst antes garantia sua ajuda na eleição."
Numa das tribunas de honra da cerimônia de abertura em Barcelona
encontra-se Jordi Pujol, o presidente democraticamente eleito da região da
Catalunha. Como Samaranch, é um conservador, além de banqueiro. As
semelhanças terminam aí. Samaranch ligou-se a Franco, ao Movimiento e ao
esmagamento da identidade catalã. Pujol lutou pelo idioma, cultura e liberdade
política de sua terra.
Franco realizou uma visita oficial a Barcelona em 1960. No concerto
especial várias pessoas da platéia começaram a entoar corajosamente o hino
nacional da Catalunha, que fora proibido. As autoridades ficaram furiosas.
Trancaram as portas e chamaram a polícia. Os manifestantes foram presos e
espancados. A polícia secreta de Franco entrou em ação e identificou Jordi Pujol
como organizador do protesto. Ele foi condenado a sete anos de prisão. Como
recompensa, recebeu do povo catalão, quando a democracia finalmente chegou,
o alto cargo que exerce. Seu antecessor, Juan António Samaranch, não se
elegeu: o Movimiento o nomeou em Madri.
A presidência do conselho regional títere de Franco na Catalunha, no início
da década de 1970, era um cargo político importante. E não tinha nada a ver com
o esporte. Em 1973, quando a vida de Franco se aproximava do final, um vento
de mudança soprou no país. O general moribundo reagiu, nomeando o almirante
Carrero Blanco, Unha dura e reacionário, para primeiro-ministro. Ele fora
companheiro de Franco na Guerra Civil. Um mês depois Carrero Blanco escolheu
o homem que, na opinião do regime, poderia manter a rebelde Catalunha sob
controle. Seu nome: Juan António Samaranch.
Samaranch mostrou, mais uma vez, sua oposição à democracia. Em sua
posse declarou: "Proclamo, de modo inequívoco, a lealdade e fidelidade que une
meu coração ao regime, fidelidade aos princípios do Movimiento, submissão ao
príncipe da Espanha e lealdade absoluta a Franco."
Cinco dias antes do Natal de 1973, uma bomba estraçalhou Carrero
Blanco. O grupo terrorista basco ETA realizou sua vingança nas ruas de Madri.
"Ele foi um dos maiores nomes da Espanha neste século", declarou o líder da
Catalunha. "Simboliza tudo que um bom espanhol deve ser." Samaranch conferiu
a medalha de ouro do conselho regional a Carrero Blanco, postumamente.
O assassinado detonou uma nova onda de terror. A tarefa de Samaranch
era supervisionar o esmagamento da Catalunha. "Durante 1974 e 1975, a
repressão, na forma de prisões generalizadas, tortura e execuções, bem como
através do uso constante de armas de fogo pela polícia e guarda civil, atingiu um
nível nunca visto desde o final dos anos 1940", escreveu um historiador.
Samaranch parecia incapaz de se distanciar do Movimiento. Um incidente
ocorrido no início de 1974 mostra sua lealdade interminável, no momento em que
os coveiros se preparavam para o maior funeral oficial da Espanha em quarenta
anos. Os opositores do regime tentaram atacar um monumento de Barcelona que
homenageava os franquistas mortos na guerra civil. Dezenas de milhares de
partidários do fascismo foram levados de ônibus para Barcelona, realizando uma
marcha de protesto pela cidade. Samaranch, usando a camisa azul, fez a
saudação fascista e participou da manifestação.
Até o final amargo Samaranch se manteve leal ao ditador. A saúde de
Franco piorou muito em 1975, mas Samaranch não abandonou o navio do regime
que afundava. Em 26 de janeiro, já vice-presidente do COI, Samaranch vestiu a
camisa azul e liderou a comemoração anual da "libertação" de Barcelona
empreendida pêlos fascistas. Como sempre, ele ergueu o braço na saudação
fascista.
Na Páscoa, quando o Movimiento celebrava a missa, ele usou seu
uniforme mais uma vez. Ainda naquele ano, também de camisa azul, ele
compareceu à missa pêlos fascistas mortos na guerra civil.
No fim do outono de 1975 Franco estava às portas da morte. A família e os
velhos generais da Guerra Civil observavam impotentes o velho moribundo,
deitado em seu leito, agarrado ao braço mumificado de Santa Tereza, ligado a
todas as máquinas capazes de prolongar sua vida disponíveis na medicina
moderna. Diziam no hospital que ele estava morto há vários dias. Seu círculo
íntimo se recusava a permitir que os médicos desligassem os plugues.
No dia 20 de novembro Samaranch, de camisa azul, participou da
cerimônia anual em Barcelona, comemorando a fundação da Falange. Trinta anos
depois da derrota do nazismo, o vice presidente do COI desfilava na rua com
seus companheiros uniformizados, desafiador, fazendo a saudação que é a
antítese absoluta do ideal olímpico.
Mais tarde, naquela mesma noite, ele recebeu o telefonema que tanto
receava. Franco estava morto. Samaranch dirigiu-se para o quartel regional da
Catalunha, e exortou a tropa a defender o prédio. Samaranch depois enviou
telegramas de condolências para a família de Franco, de lealdade ao rei e de
apoio ao governo.
No dia seguinte Samaranch falou no conselho regional: "A Espanha e a
Catalunha experimentam a amarga sensação da orfandade. Mas não há motivo
para o desespero, porque somos uma nação que possui uma fé e um rei. Este é o
legado de Franco."
Ele encerrou seu discurso com a seguinte frase: "O exemplo de Franco
estará sempre conosco, na luta por uma Espanha melhor." Não apenas o
sentimento era odioso. Samaranch falou em catalão, a língua que repudiara
durante quarenta anos e que seu líder tentara esmagar de todas as maneiras.
Seis semanas depois Samaranch compareceu à cerimônia que
comemorava, em 1976, a "libertação" de Barcelona, a primeira desde a morte de
Franco. Pela primeira vez Samaranch deixou a camisa azul no guarda-roupa.
Preferiu usar uma branca.
Samaranch procurava desesperadamente um novo espaço para exercer
seu estilo de política. Uma revista em catalão, chamada Arreu, publicou um texto
longo e arrasador sobre seus anos de serviço ao velho regime. Era a primeira
vez, em quarenta anos, que alguém criticava Samaranch publicamente.
A manchete do artigo anunciava: "Samaranch, não fazemos parte de sua
turma". Uma equipe de três jornalistas pesquisara a carreira política dele.
Concluíram que não dava para acreditar no que Samaranch sempre dizia:
"Considero legítimo exercer a política para aprimorar o esporte, mas creio que é
errado colocar o esporte a serviço da política." eles não tinham a menor dúvida de
que Samaranch usara o esporte para progredir na política.
"Estamos lidando com um camaleão manhoso", escreveram, "porque ele
soube dosar suas mudanças com esperteza — mas não foi capaz de iludir a
opinião pública."
Felizmente, para Samaranch, o espírito da nova Espanha era de
reconciliação. Não haveria julgamentos por crimes de guerra. Mas a carreira
política de Samaranch estava encerrada. Seu passado de cumplicidade com a
ditadura destruía qualquer futuro para ele, em seu país.
O final de Samaranch na Espanha aconteceu no dia 23 de abril de 1977:
Cem mil pessoas fizeram uma manifestação na frente da sede do conselho
regional da Catalunha em Barcelona. Enquanto o presidente se trancava lá
dentro, o povo gritava palavras de ordem como: "Samaranch, vá embora!"
"Tomei uma das decisões mais importantes de minha vida", admitiu
Samaranch alguns anos depois, "quando percebi que minha vida pública na
Espanha se encerrara. Não apenas política, como também socialmente." Mas
Samaranch não estava liquidado. Decidiu se reinventar. Isso não seria difícil para
o "camaleão manhoso".
O dilema para a Espanha, e para Samaranch, era como se livrar dele.
Ambos os lados precisavam manter as aparências. Ele continuava no cargo de
presidente do conselho regional, e o governo interino não desejava um confronto
enquanto planejava o retorno à democracia. A solução encontrada por Madri foi
um cargo diplomático. Com sua experiência internacional no COI, e sua
habilidade para sobreviver às reviravoltas dentro do Movimiento durante três
décadas, Samaranch poderia ser útil à Espanha — se estivesse no exterior.
A história que corre no ministério do exterior, em Madri, diz que ele
recebeu um convite para assumir uma função tranqüila e confortável em Viena,
mas recusou-se. Samaranch mostrou interesse em ser enviado para a austera
capital da União Soviética. O serviço público se surpreendeu, mas Samaranch
tinha lá suas razões. O camaleão pretendia iniciar uma nova campanha política.
A perda da Espanha representou um ganho para o COI. Com grande alívio
o país em que nascera assistiu à partida de um de seus fascistas mais
destacados. No dia 18 de julho de 1977 Samaranch seguiu para Moscou, no
reatamento das relações diplomáticas rompidas há quarenta anos. Em Moscou,
sua prioridade seria representar a si mesmo.
Aos russos só restavam três anos para completar os preparativos para as
Olimpíadas de 1980. Os Jogos seriam uma vitrine da excelência de seu sistema
político. Mas a burocracia soviética hesitava, e os dirigentes encontravam muita
dificuldade em atender às necessidades tanto das federações esportivas
internacionais quanto do COI. Agora, para imenso alívio, tinham Samaranch
batendo à sua porta. Ele era o principal vice-presidente do COI, o número dois da
hierarquia olímpica.
Todos os envolvidos na política esportiva podiam ver que um acordo se
delineava. Em 1980 lorde Killanin se aposentaria da presidência do COI.
Samaranch desejava ocupar a vaga. Andava ocupado, procurando obter todos os
votos europeus para o COI. Os russos controlavam um bloco de votos
considerável, da Europa Oriental e de outros países do mundo inteiro.
"Samaranch sempre quis ser presidente do COI, muito antes de sua
passagem por Moscou", disse Christian Jannette. "Os russos ficariam gratos por
qualquer ajuda recebida. E ele passava grande parte do tempo prestando
assistência a eles. Não era fácil, para a URSS, organizar os Jogos.
"Uma coisa precisa ser dita: os russos não esquecem o que se faz para
eles. Horst Dassler fez muito pelo país, e eles jamais se esqueceram disso. Antes
até de 1970, eu me lembro que a família Dassler era generosa, fornecendo
equipamento, mesmo que os russos não tivessem dinheiro."
O cenário estava montado. Dassler pretendia acionar todos seus contatos
para ajudar Samaranch — e esperar pelo troco.
A chegada do diplomata amador a Moscou deixou os profissionais
ressabiados. Todos haviam sido indicados para a capital de um dos superpoderes
porque representavam a nata da diplomacia de seus respectivos países. Como
poderia aquele cinqüentão, sobra de uma ditadura falida, se adaptar a uma
atmosfera tão rarefeita? Mas ele se revelou surpreendentemente eficaz. Por
vários motivos, o posto não apresentava muitas dificuldades para um camaleão
manhoso. A Espanha não tinha um papel preponderante em Moscou. Samaranch
poderia devotar seu tempo à sua própria imagem. Seu trabalho foi excelente.
O dedicado franquista, que durante quarenta anos apoiou a campanha de
extermínio dos comunistas espanhóis, que foram presos, torturados e
executados, realizou uma façanha. Ele se insinuava em todas as rodas. Era uma
suprema ironia. Samaranch combateu os "comunas" a vida inteira, e agora
precisava adulá-los para conseguir o prêmio máximo do esporte. Na data nacional
espanhola mais importante Samaranch apareceu na televisão e fez um discurso
de três minutos, sobre o congraçamento entre os dois povos — em russo. Ele
batalhou muito para aprender o idioma e decorar o texto. O sujeito não tinha
vergonha; em russo ou em catalão, o camaleão diria o que as pessoas desejavam
ouvir.
A nova embaixada espanhola na Rua Paliashvili abriu suas portas para
todos; requintadas "noites espanholas" agitaram Moscou, uma cidade
normalmente maçante. Mais uma ironia na vida de Samaranch. Sua verba não
era muito grande, e ele bancava as festas para os camaradas com o dinheiro
amealhado na Espanha, quando os baixos salários e impostos mínimos faziam a
alegria dos amigos do governo. A imprensa informava que Juan e Bibis davam as
melhores festas da cidade. Sua adega de vinhos reinava suprema.
Naquele período, como parte do processo de reinvenção de si mesmo,
Samaranch, o diplomata amador, adotou o título de embaixador — Sua
Excelência — geralmente abreviado para "S. Excia". Doze anos depois de sua
breve passagem pelo posto diplomático em Moscou, muita gente ainda se refere
a ele com reverência, no mundo olímpico, usando "S. Excia."
Os votos que deram a Samaranch a presidência do COI foram garantidos
em Moscou e nos bastidores do comité organizador da Copa do Mundo de 1982
em Madri. Embora ainda faltassem cinco anos para o maior torneio futebolístico
do mundo, o presidente da FIFA, João Havelange, encontrava-se em dificuldades.
Ele fora eleito com a promessa de aumentar os times da Copa de 16 para 24. Os
espanhóis aceitaram sediar a competição com 16 países. O orçamento não previa
dinheiro para os times restantes.
Havelange poderia perder a liderança da FIFA se não honrasse sua
promessa eleitoral. Socorreu-se com os dois homens que poderiam ajudá-lo:
Horst Dassler e Juan António Samaranch. Dassler arranjaria o dinheiro.
Samaranch, intimamente ligado ao comité organizador, conseguiria a mudança
nos planos iniciais.
Dassler e Nally detinham os contratos de marketing para a Espanha em 82.
Dassler, em seu estilo típico, prometeu ajudar Havelange —• e mandou que Nally
arrumasse o dinheiro extra. "Numa reunião em Madri" contou Nally, "no Palácio
de Congressos, enquanto estávamos no banheiro dos homens, Dassler men-
cionou que o valor necessário para cobrir o aumento dos times seria de 36
milhões de marcos alemães — cerca de 12 milhões de libras. Desnecessário
dizer, este dinheiro não sairia da Adidas. Eu teria de levantar os recursos com as
empresas patrocinadoras."
Obtido o dinheiro, era hora de Samaranch entrar em campo, os espanhóis
anunciaram, em maio de 1979, que o campeonato contaria com 24 times.
Havelange ficou tranqüilo. Ele reconheceu sua dívida para com Samaranch ao ser
reeleito para a presidência da FIFA em julho de 1982, em Madri: "Esta nova rota
só se tornou possível graças à Real Federação Espanhola de Futebol."
Em troca, Havelange despejaria em Samaranch os votos latinos, africanos
e asiáticos. Samaranch precisava deles para se eleger presidente olímpico.
Dassler confirmava sua posição de fazedor de reis. Apoiara Nebiolo, sustentara
Havelange e agora poria Samaranch no trono.
A vitória de Samaranch no COI parecia garantida. Aí, no Natal de 1979, o
Exército Vermelho invadiu o Afeganistão. Os norte-americanos não puderam
impedir isso, e o presidente Jimmy Cárter ordenou um boicote às Olimpíadas de
Moscou. Os diplomatas norte-americanos, no mundo inteiro, começaram a
pressionar seus aliados. O novo governo espanhol alinhou-se com os americanos
e anunciou que a Espanha não compareceria a Moscou. Samaranch ficou
desolado. Os russos, furiosos, poderiam desviar seus votos para outro candidato
à presidência do COI. Outros membros do COI também repensariam votar em um
candidato cujo país abandonara os Jogos.
Segundo fontes da chancelaria espanhola, Samaranch ficou atônito. "Como
podem fazer isso comigo, na reta final da corrida para a presidência do COI?" A
resposta de Madri foi clara: se comparecesse às Olimpíadas estava despedido.
Como representante oficial da Espanha em Moscou, não poderia comparecer às
Olimpíadas. Consta que Samaranch solicitou dispensa ao governo, sem êxito. A
renuncia ao posto garantiria a simpatia do COI, e diminuiria o constrangimento
pela ausência espanhola.
Samaranch voltou correndo para Madri. Nos bastidores do comité olímpico
espanhol, que Samaranch liderara por tantos anos, todos os velhos favores foram
lembrados. Seu lobby trabalhou duro, e o NOC decidiu ignorar o governo e
competir em Moscou. A máquina eleitoral de Samaranch pôs-se em movimento
outra vez.
No primeiro número da IOC Review saiu um profético artigo de Horst
Dassler. Seu título, "Esporte e Indústria". Dassler sabia qual seria o resultado da
eleição do COI, e já começava a cuidar de seus negócios futuros nas Olimpíadas.
Dassler colocou uma questão: "Como poderemos evitar uma situação na qual o
esporte seja controlado pela indústria?" O problema era "excesso de publicidade a
curto prazo". Seria muito melhor implantar projetos de marketing mais discretos, a
longo prazo. Dassler os batizou de "pacotes". O COI mediaria os contatos. Seu
papel não ficou claro. Como nunca perdia uma oportunidade, Dassler garantiu
que a foto ilustrando o artigo mostrasse jogadores de futebol usando produtos
Adidas.
Na manhã de 16 de julho de 1980, os membros do COI entraram no
Palácio dos Sindicatos da União Soviética para a sessão crucial. A portas
fechadas, eles escolheram um dos quatro candidatos à presidência do COI. O
advogado canadense James Worrall era o principal rival de Samaranch. Em um
encontro particular com Dassler ele foi informado, diplomaticamente, que contava
com um apoio restrito. Worrall jamais poderia pertencer ao Clube diligentemente
montado por Dassler.
Os outros candidatos eram Lence Cross, da Nova Zelândia e o dirigente
suíço do esqui internacional, Marc Hodler. Além do alemão ocidental Willi Daume,
que chegou a constituir uma ameaça a Samaranch, antes que seu país
boicotasse Moscou.
A eficiência do trabalho de Dassler nos anos anteriores se revelou na hora
da votação. Houve apenas um turno: Samaranch esmagou os rivais.
A machadinha está sendo enterrada. Samaranch, que saíra de Barcelona
sob os insultos de seus compatriotas, é agora saudado como o responsável por
levar as Olimpíadas para a Espanha. Ei-lo na tribuna. O líder do esporte mundial.
O camaleão trocou a pele pela última vez. Talvez a generosidade deva prevalecer
neste grande dia para Barcelona. Talvez Samaranch mereça respeito por seu
feito memorável. Em Moscou, há doze anos, ele rompeu as amarras que o
ligavam a seu passado fascista, ao assumir a presidência do movimento olímpico.
Mas basta um momento de pausa, pensando no preço que o mundo pagou
pelo legado de Dassler. A forma como Samaranch dirige o Clube, com seus
segredos, falta de democracia, uma elite perpétua, cerimônias, protocolos e
medalhas, não parece muito diferente do Movimiento que tanto amava. Melhor
lembrar a forma como ele erguia o braço, saudando o maior sobrevivente de
nossa era.
7
A JÓIA DA COROA
O presidente de Atletismo dava um pequeno jantar em seu apartamento de
Turim, localizado na frente da casa de Gianni Agnelli, o Todo-Poderoso da Fiat.
Ele sempre se orgulhou desta tênue ligação com a família mais poderosa da
Itália. Patrocinador do clube de futebol Juventus, considera-se, como muitos
industriais, um dos cidadãos mais importantes da província do Piemonte.
Um dos convidados daquela noite lembra: "Jantamos, a comida era ótima,
feita por um bufe, claro. Ele sorriu e disse, 'acham isso fabuloso? Esperem até ver
minha casa em Roma!'"
O Dr. Primo Nebiolo preside a Federação Internacional de Atletismo
Amador, a IAAF. Impressionado com um cenário tão magnífico, um convidado
perguntou qual era o segredo de tanto sucesso. Com sua voz grave, o presidente
confidenciou: "Todas as manhãs, quando acordo, fico na cama por cinco minutos,
e não penso em mais nada, a não ser na maneira de melhorar minha situação
naquele dia."
O Dr. Nebiolo sem dúvida melhorou sua situação no esporte mundial, na
última década. No final dos anos 1970 era praticamente desconhecido fora da
Itália. Quando se aventurou no palco internacional, muitos riram de Nebiolo, pelas
costas. Com suas longas costeletas e habilidade para conseguir acordos, foi
considerado um aventureiro vulgar. Sua ambição ostensiva não combinava com o
mundo do esporte, requintado e essencialmente amador. O sistema ligou a
ambição ao nome, comentando: "Primo só quer ser o primo''
Dez anos depois Nebiolo raspou as costeletas, construiu um labirinto de
alianças e favores no mundo promissor da política esportiva e abriu caminho até o
topo do Clube. Na travessia, ele esfaqueou pelas costas um dos dirigentes mais
decentes do esporte internacional, foi presidente durante o pior exemplo de fraude
já visto no esporte mundial, ignorou as seringas deixadas nos vestiários de
grandes atletas e passou a controlar um fundo de US$ 20 milhões, conseguido
nos Jogos Olímpicos.
A entourage de Nebiolo, em movimento, rivaliza-se até com o cortejo
imperial de Samaranch. Seu modo preferido de viajar é o jatinho particular,
trocado em terra por uma limusine escoltada por motocicletas da polícia. Gosta de
ficar na melhor suíte do hotel mais badalado. Sua astuta esposa Giovanna
costuma participar da corte, como secretária e assessora de imprensa particular.
Nebiolo não pode se arriscar demais com a imprensa. Sua assessora tem
a tarefa de divulgar os press releases e tentar impedir jornalistas curiosos de
perguntar sobre os freqüentes escândalos nas pistas de atletismo.
Para os corredores diletantes, esportistas dos clubes e estrelas mundiais
do atletismo, a organização liderada por Nebiolo não passa de uma burocracia
distante. A federação atlética organiza competições importantes e fornece juizes e
dirigentes para estabelecer regras. Fora isso, trata-se só de um nome pomposo.
O atletismo é a jóia da coroa olímpica, e sua federação tornou-se um
negócio extremamente lucrativo. AIAAF ganhou US$ 80 milhões com patrocínios
da televisão, nos últimos quatro anos, desde as Olimpíadas de Ben Johnson, em
Seul. Somas enormes são investidas nos países em desenvolvimento, para
melhorar as condições para a prática do esporte. Ainda assim, sobra muito
dinheiro para ser torrado com despesas excessivas e a extravagante promoção
de Nebiolo.
Ele pode ignorar calmamente as freqüentes críticas dos jornalistas bem-
informados. Nebiolo não precisa prestar contas a um eleitorado "local". Se de
tempos em tempos os críticos batem com muita força na porta da IAAF, Nebiolo
pode ter certeza de que acabará sobrevivendo ao escândalo. No mundo das
pistas de corrida, Nebiolo exerce um poder absoluto. Seu predecessor, Adriaan
Paulen, era um homem muito diferente.
A Holanda é um país pequeno, com uma grande tradição esportiva.
Adriaan Paulen serve de exemplo. Finalista nos 800 metros, na Olimpíada de
1920, conseguiu derrotar o ganhador da medalha de ouro de 1924, Eríc Liddell,
nas quartas de finais dos 400 metros em Paris. Quebrou o recorde mundial dos
500 metros nos Jogos de Bislet, em Oslo, e quase no fim de sua carreira
apresentou-se para seus compatriotas, nas Olimpíadas de 1928, em Amsterdam.
Adriaan Paulen gostava de diversos esportes. Quando encerrou a carreira
no atletismo, disputou oito ralies em Monte Cario, pilotou uma motocicleta no
Grand Prix da Holanda e jogou futebol em um time de Haarlam, onde morava.
Mas o atletismo era sua grande paixão, e ele compatibilizou sua carreira como en-
genheiro de minas com o trabalho de dirigente da federação holandesa.
Paulen era corajoso e patriota. Quando o exército alemão invadiu a
Holanda, entrou para uma célula do movimento de resistência, formada por
amigos e companheiros do clube de corridas local. Quando os mineiros
recusaram-se a trabalhar, ele foi um dos diretores da mina que se recusaram a
entregar uma lista com os nomes dos operários aos nazistas. Por causa disso
acabou na cadeia, sendo ameaçado de execução.
"Os alemães o prenderam, junto com os colegas", contou sua filha let
Nieuwenhuys-Paulen. "Todas as manhãs eles tocavam gravações de
fuzilamentos nos alto-falantes. Só mais tarde os prisioneiros descobriram que era
uma farsa cruel. Pura tortura mental. Quando finalmente os alemães libertaram
meu pai, porque precisavam desesperadamente de carvão, ele seguiu lutando.
"Ele participava dos grupos clandestinos de sabotagem que explodiam os
trilhos de trem durante a noite. Na manhã seguinte ele se encontrava com os
oficiais alemães, para explicar que o carvão não podia ser transportado."
Seus companheiros da resistência promoveram uma campanha de
assassinato de oficiais alemães de alta patente. Paulen, membro destacado da
classe média, corria risco constante de prisão arbitrária, como represália.
"Costumava dormir no telhado, caso os alemães viessem buscá-lo", contou a
filha. "Poderia ter rugido, mas escolheu ficar e lutar."
Outra das atividades de guerra de Paulen era controlar um trecho de 20
quilômetros da rota de fuga clandestina, para pilotos aliados abatidos. Um
relatório secreto seu foi levado à rainha, exilada em Londres. Quando os exército
aliados desembarcaram para libertar a Europa, Paulen lutou ao lado da Segunda
Divisão Blindada norte-americana, tornou-se coronel honorário e mais tarde
recebeu a Medalha da Liberdade dos Estados Unidos. A Holanda, agradecida,
deu-lhe sua mais alta honraria, a Ordem do Rei Guilherme.
Três anos após a guerra Paulen foi eleito para o conselho da federação
atlética. O mundo do atletismo internacional estava a anos-luz do que é hoje. As
pistas para qualquer tempo não haviam sido inventadas, não havia cobertura
televisiva e o patrocínio inexistia. Pouco mudou na década seguinte.
"Trabalhávamos em duas salas, perto da estação de trem de Victoria", contou
Fred Holder, ex-tesoureiro da IAAF. "Os recursos escassos nos permitiam ter
apenas uma secretária. E ela precisou pagar parte de sua própria passagem para
comparecer à Olimpíada de Melbourne, em 1956, além de hospedar-se com uma
família local para economizar dinheiro."
Apesar destas dificuldades, o atletismo progredia. Mesmo com a demora
na remessa dos rolos de filme por via aérea para partes distantes do globo, os fãs
do esporte se emocionavam ao ver os duelos entre Kuts e Pirie nas provas de
longa distância, o lançamento do disco de Al Oerter, que lhe valeu a primeira de
quatro l medalhas de ouro e as duas medalhas de ouro conseguidas por l Tâmara
Press no lançamento feminino — que desapareceu das competições quando os
testes de sexo foram introduzidos.
Como membro do conselho das federações de atletismo, Adriaan Paulen
encorajava os atletas e garantia a lisura das competições. "Meu pai sempre
acompanhou atletas em viagem", contou a filha. "Adorava estar com eles e
organizar eventos."
As Olimpíadas começaram a gerar grandes quantias em dinheiro por causa
da televisão. Conforme o lado empresarial do esporte se expandia, vozes novas e
desagradáveis se fizeram ouvir nas pistas. "Ele ficou horrorizado em Munique,
antes dos Jogos de 1972, ao receber a oferta de suborno por parte de uma
companhia interessada num contrato para a nova pista de corrida. Ele recusou
uma fortuna, dizendo que o melhor venceria", disse a filha.
A televisão mudou definitivamente o mundo de Paulen e dos atletas.
Quando os Jogos foram transmitidos via satélite no México, em 1968, o mundo
começou a pedir mais esporte ao vivo. Dassler ainda se concentrava nos
vestiários, fechando acordos para calçar os atletas famosos com a marca das três
listas, mas já vislumbrava a forma do futuro. O atletismo precisaria de verbas para
organizar novos eventos, e os atletas exigiriam sua parte. Se a televisão e os
promotores desejavam sua presença, teriam de pagar.
Depois de providenciar o casamento entre a Coca-Cola e o futebol, Horst
Dassler e Patrick Nally rapidamente se voltaram para as outras federações
importantes. O atletismo, fundamental para o êxito das Olimpíadas, estava no
topo da lista.' 'Conheci Adriaan no congresso europeu de atletismo, na metade
dos anos 1970", contou Nally. "Ele estava a aponto de se tornar presidente do
IAAF. Era o melhor nome para o cargo de dirigente do atletismo: subira por mérito
próprio, corria, todos o respeitavam e ele entendia, como no caso de Havelange
no futebol, que haveria uma mudança radical no esporte.
"É preciso tentar entender um homem que vive segundo seus princípios.
Embora fosse muito rígido, aceitava sentar e discutir. Ao contrário de gente como
Nebiolo, ele escutava. Adriaan mostrava muito entusiasmo pelas coisas. Achava
normal dirigir durante dez horas para comparecer a uma reunião. E, mais extraor-
dinário, ele parava quando se cansava, largava o carro no acostamento, deitava-
se no chão e dormia. Era duro como pedra. Um contraste notável entre o militar
experiente, forte, condecorado, que jamais se rendia, e uma exuberância quase
adolescente.
"Levava uma vida modesta. Não procurava as armadilhas da riqueza,
jamais pedia hotéis de luxo. Nunca esquecerei dos sapatos pesados que usava,
pareciam botas militares. Adriaan se vestia discretamente, e não gostava de se
enfeitar."
Fred Holder tem recordações semelhantes: "Adriaan chegava em
Heathrow, num vôo com desconto, seguia para o centro de metro e ficava em um
pequeno hotel. Ele não via necessidade de gastar o dinheiro da federação
desnecessariamente."
Quando Paulen conheceu Dassler, foi introduzido na boa vida da Riviera.
Discutiam contratos nos ambientes mais agradáveis. "Adriaan adorava passear no
avião ou no iate particular de Dassler. Um dos associados de Horst nos negócios
era dono do barco mais veloz do Mediterrâneo, segundo comentários", contou
Nally. "Eu me lembro de ir a Monte Cario no barco, com Adriaan, e sair a l milhão
de quilômetros por hora para St. Tropez.
"Era muito vantajoso para Horst entreter pessoas desta forma, e Adriaan se
divertia a valer. Parecia uma criança com um brinquedo novo, sentado na popa,
conversando."
Sua filha, em Haarlem, fizera dele um avô. "Meu pai ganhou certa vez uma
bola de futebol Adidas. Ele se recusou a dar a bola para o neto, preferiu mandá-la
para um clube local, onde havia jogado. E nunca aceitou um tênis sequer de
brinde. Ele dizia, 'se eu fizer isso, nunca mais confiarão em mim. Quem se vende
uma vez perde a liberdade para sempre.'"
A televisão exigia mais espetáculos esportivos, e graças à habilidade de
Dassler e Nally no marketing, haveria mais dinheiro ainda para investir.
Um dos últimos atos do antecessor de Paulen, lorde Exeter, foi concordar
com a realização da Primeira Copa Mundial de Atletismo em Dusseldorf, no
outono de 1977. A história recente do atletismo foi reescrita pêlos partidários de
Nebiolo, sugerindo que ele foi o grande arquiteto da explosão de eventos e do
fluxo interminável de verbas dos patrocinadores. Na verdade, a criação de novos
eventos fora das Olimpíadas teve apoio de Exeter, e decolou graças a Paulen.
Eles construíram a montanha russa, e Nebiolo deu o passeio. Enquanto Nally
arranjava o dinheiro.
"Adriaan comandou o campeonato mundial, um tremendo sucesso", contou
Nally. "No final, deu a volta da vitória com o time vencedor, que levava a taça.
Ficamos muito orgulhosos, porque o evento, em 1977, foi o primeiro grande
acontecimento do atletismo mundial fora das Olimpíadas.
"Ele sabia que não dava para voltar no tempo. O esporte crescia como
forma de entretenimento, e as rendas aumentavam. Também sabia que atletas
amadores recebiam dinheiro há anos, e que precisava regularizar a situação.
Lutava constantemente com sua consciência, para manter isso sob controle sem
destruir o esporte. Em suas próprias palavras, o atletismo precisava de uma lim-
peza."
Paulen e seus conselheiros precisavam agir rápido. Algumas estrelas
norte-americanas queriam receber dinheiro abertamente dos promotores, e já
falavam em seguir os passos dos tenistas, criando um circuito profissional. Um
grupo de Dubai oferecia dinheiro, para promover a imagem do país. Nally
encontrou-se com eles, sugeriu uma união, e o atletismo deu um salto qualitativo.
"Junto com Adriaan, criamos as Séries de Ouro. O primeiro evento foi a
Milha de Ouro, disputada em 1978 no Japão. As estrelas foram Steve Ovett,
Henry Rono e o norte-americano Steve Scott. O troféu era uma taça de ouro
imensa, custara quase US$ 40 mil. Atualmente acumula poeira num cofre de
banco, em Londres.
"Depois da primeira Milha de Ouro, criamos uma série de eventos — O
Dardo de Ouro, O Salto com Vara de Ouro e as Corridas de Ouro, além dos 10
mil metros de Ouro. Todos estes espetáculos foram incluídos nos eventos
existentes, principalmente na Europa. Entrou muito dinheiro novo."
Depois de Dusseldorf e das Séries de Ouro não havia mais volta. O
próximo passou foi criar o campeonato mundial de atletismo. Tradicionalmente, as
Olimpíadas eram o campeonato das federações atléticas.
"A Copa do Mundo era o pináculo do futebol", recorda Nally, "e Adriaan
criou algo equivalente no atletismo, o Campeonato Mundial. Começamos a redigir
as regras juntos, voando do Japão para Los Angeles. Fred Holder e Adriaan
estavam no avião, e, como de hábito, Adriaan se recusava a dormir na poltrona.
Deitou-se no chão.
"Quando não estávamos dormindo, sentávamos no chão do avião para
redigir o regulamento. Para mim foi um desafio. Se a idéia era comercial, como
fazer um regulamento para o campeonato mundial, de modo a proteger os
interesses de todos?
"E lá estava um senhor, na casa dos setenta, sentado no chão de um jato
jumbo, planejando o campeonato mundial, que tomou forma definitiva em
Helsinque em 1983. Obviamente Nebiolo levou a fama, porque na época ele
ocupava a presidência, e Adriaan era um homem alquebrado.
"Adriaan tomou as medidas necessárias para desenvolver o esporte. Com
o dinheiro novo que entrava iniciou o programa de aprimoramento, promoveu as
Séries de Ouro, organizou a Copa Mundial e criou o Campeonato Mundial."
Observando tudo em Roma, Nebiolo seguia planejando. Obviamente,
Paulen era muito velho. Não seguraria as rédeas do poder por muito tempo.
AIAAF, cada vez mais rica e influente, podia ser conquistada. Mas se Primo
queria ser o primo no atletismo mundial, precisaria fazer acordos. £ nisso Nebiolo
era excelente.
Nebiolo sentiu o gosto do poder pela primeira vez no mundo do esporte
estudantil. Um de seus colegas, que trabalhou com ele na década de 1950,
contou: "Ele procurava o poder no esporte estudantil porque era a única área
disponível." Mas havia outra razão. Nebiolo percebera o potencial de um mundo
dividido pela Cortina de Ferro, mas ocasionalmente unido através do contato
esportivo.
Uma das biografias oficiais de Nebiolo relata sua ascensão no esporte
estudantil: "Em 1961 o Dr. Nebiolo foi eleito presidente da Federação
Internacional do Esporte Universitário. Neste cargo, tomou medidas dramáticas,
que aumentaram a importância e o papel do esporte universitário mundial,
tornando-se, entre outras coisas, o fundador da Universíada — que só perde em
importância para os Jogos Olímpicos.
"Como presidente, Primo Nebiolo entrou em contato com políticos e
representantes das universidades do mundo inteiro, tornando a organização
importante no mundo do esporte, e contribuiu como poucos para o esporte
mundial."
Este texto foi publicado em 1980, junto com uma fotografia de Nebiolo ao
lado do "carniceiro de Bucareste", o ditador romeno Nicolae Ceausescu. Os dois
presidentes conversavam animadamente durante um evento esportivo na capital
romena.
Sem o apoio do bloco oriental, os Jogos Estudantis bienais teriam
afundado há anos. Os comunistas aceitaram financiar o evento para divulgar o
comunismo. Enquanto o resto do mundo bocejava, eles levavam os jogos a sério.
Negócio fechado: Nebiolo' entraria com os Jogos que tanto queriam, e em troca
teria seu votos, quando alçasse vôos mais ambiciosos. Significativamente,
Nebiolo foi eleito para comandar o esporte estudantil durante os Jogos de
1961, na cidade comunista de Sofia.
Nebiolo afirma que, graças ao esporte estudantil, "contribuiu como poucos
para o esporte mundial." O fato é que a televisão e os patrocinadores davam
pouca importância aos Jogos Estudantis, porque deixavam a desejar. Alguns
atletas de destaque se revelaram ali, mas a maioria dos jovens competidores
jamais alcançou fama internacional. Recentemente, Patrick Nally tentou con-
vencer várias cidades a sediar os jogos estudantis. "É impossível criar um
entusiasmo real e despertar o interesse da televisão e dos patrocinadores quando
os atletas não são conhecidos."
Sob a liderança de Nebiolo, os Jogos Estudantis realizaram-se em Tóquio,
em 1967, mas dois anos depois foram cancelados por falta de fundos, em Lisboa.
Em 1975 Belgrado também desistiu. Mas, em 1973, Nebiolo os levou para o
estádio Lênin de Moscou. Quatro mil participantes os disputaram, e Primo era o
primo novamente. Leonid Brejnev tinha bons motivos para investir nos jogos
estudantis. Moscou desejava sediar a Olimpíada de 1980, e precisava de um
teste para provar a capacidade de fazer um grande evento.
Os jogos estudantis cambalearam durante a década de 1980. Foram
cancelados em São Paulo, em 1989. Em 1991 aconteceram na cidade de
Sheffield, no norte da Inglaterra. A cidade se preparou para uma perda de l milhão
de libras, mas acabou com um prejuízo de quase 14 milhões de libras. Houve
uma perda pessoal para Nebiolo, também. Uma longa carta anônima exigindo sua
saída circulou entre as delegações presentes aos jogos. Seu texto denunciava
Nebiolo, dizendo:
"Trata-se de um diretor totalitário, que usou a política da 'guerra fria'.
Enquanto atuou como diretor, por tantos anos, acumulou poder pessoal, ao qual
adicionou certas características pessoais que não deveriam fazer pane do esporte
universitário. Seu comportamento era extravagante e megalomaníaco.
"Os gastos em hotéis de luxo, restaurantes, viagens, carros e outros
detalhes pessoais são escandalosos. Seu comportamento, quando participa de
eventos estudantis, é autoritário, inadequado a uma pessoa que representa os
estudantes do mundo. Ele exerce seu poder deturpando as decisões do esporte
estudantil.
"Acreditamos que este não é o tipo de líder compatível com as
necessidades de uma entidade esportiva internacional. Não precisamos de um
dirigente pomposo e dominador, que representa o esporte estudantil de modo tão
horroroso.0; nem precisamos de um dirigente totalitário em um mundo cada vez
mais democrático e menos envolvido na política suja do Leste contra o Oeste.
Depois de tantos anos no poder, o Dr. Nebiolo deveria entender que está na hora
de renunciar a seu cargo."
Desnecessário dizer que Nebiolo, aos 68 anos, foi reeleito sem muita
oposição, e continua a comandar o esporte estudantil.
O autor da carta anônima entendia bem a estratégia de Nebiolo: "No início,
Nebiolo entendeu que nos países comunistas o ministro da educação podia ser
tão importante quanto o ministro do esporte", explicou um veterano líder
estudantil. "O ministro da educação controlava os estudantes, e organizar os
jogos combinava com a política do bloco Leste. Sendo assim, instruía os
dirigentes do atletismo local a dar seu apoio a Nebiolo a nível internacional." O
apoio de Moscou era essencial, e a partir da década de 1970 Nebiolo podia contar
com ele.
O papel importante desempenhado por Nebiolo durante a guerra fria foi
demonstrado na Romênia, em 1981, durante os Jogos Estudantis. Quando
Nebiolo chegou ao aeroporto de Bucareste havia um carro do governo esperando
por ele. Adriaan Paulen, ainda presidente da IAAF, precisou esperar pelo ônibus
para chegar ao centro da cidade.
O líder estudantil de meia idade, já calvo, conseguiu progredir
erraticamente, subindo alguns degraus na federação atlética italiana. A partir da
base modesta no esporte universitário de Turim, foi eleito para o conselho diretor
da FIDAL, a federação atlética nacional italiana. Mas na década de 1960 ele se
afastou dela.
Voltou por cima em 1969, quando chegou à presidência da FI-DAL. Fora
eleito por um grupo de jovens dirigentes ansiosos por uma troca na liderança. Os
mais jovens não tinham um candidato, até que alguém se lembrou de Primo, um
sujeito enérgico e ambicioso. Nebiolo se manteria no cargo por vinte anos, até
que uma sucessão de escândalos o afastasse.
A primeira década de Nebiolo à frente da FIDAL foi um sucesso. Fez um
bom trabalho de promoção do atletismo italiano. Em um de seus maiores triunfos,
levou o primeiro grupo de atletas estrangeiros à China, e depois recebeu a equipe
chinesa em Roma. Com isso ganhou prestígio no Ocidente e o apoio do Bloco
Comunista não controlado por Moscou. Em 1976 a Itália o agraciou com a Grã
Cruz da República.
O primeiro passo do ambicioso plano de Nebiolo para controlar o atletismo
mundial era se eleger para o conselho diretor da IAAF. Fechou acordos com o
Terceiro Mundo e o Bloco Socialista, sendo eleito no congresso de atletismo
realizado durante as Olimpíadas de Munique, em 1972.
Quatro anos depois, durante o congresso seguinte, em Montreal, Nebiolo
tentou a vice-presidência, mas teve sorte em manter seu posto no conselho.
Muitos desejavam a eleição de uma mulher, e duas foram indicadas. Mas o voto
feminista ficou dividido, e Nebiolo entrou, mesmo no final da lista. Se houvesse
apenas uma candidata, ele provavelmente teria sobrado — e isso representaria o
fim de suas ambições.
No mesmo congresso, Adriaan Paulen elegeu-se presidente do atletismo
mundial. Ganhou o cargo aos 73 anos, e anunciou que cumpriria seu mandato e
se aposentaria, durante os Jogos de Moscou, em 1980. Mas ao se envolver no
planejamento do primeiro campeonato mundial de atletismo, marcado para 1983,
em Helsinque, preferiu ficar para acompanhar o evento.
Dassler começava a se inquietar. Apesar do progresso feito desde 1976,
desejava assumir o controle total. Isso jamais seria possível com Paulen no
comando, e Dassler tinha bons motivos para se preocupar com o futuro. Lorde
Exeter, antecessor de Paulen, se recusava a tratar com ele depois dos
escândalos nos Jogos do México em 1968. No ano seguinte o conselho das
federações de atletismo aprovou uma resolução drástica: "nas competições futu-
ras, apenas calçados sem marcas de identificação seriam permitidos."
Mais tarde realizou-se uma reunião em Londres, convocada por Fred
Holder, com representantes da Adidas e da Puma. Eles prometeram parar de
pagar para que usassem seus produtos. Em seu discurso de despedida em
Montreal, lorde Exeter alertou os atletas que usavam logotipos de fabricantes de
equipamentos esportivos. Estavam virando manequins de vitrina. Foi seu último
ataque a Dassler. Mas o industrial atingiria suas metas na década de 1980.
"Horst queria garantir que a Adidas fornecesse equipamentos para a IAAF
com exclusividade, e também controlar o lucrativo comércio dos direitos de
marketing. Nosso contrato ia até 1983, mas um novo presidente desconhecido
poderia favorecer outro grupo", disse Patrick Nally.
"Horst preocupava-se por não saber se controlava Adriaan na medida
desejada. Adriaan o ouvia, mas assumia uma atitude muito independente. Nos
jantares em Landersheim, a equipe política de Dassler costumava discutir o que
fazer. Desnecessário dizer que, no caso de uma reviravolta no atletismo, Horst
deveria estar envolvido.
"Debatíamos se Adriaan era mesmo o nome certo, e quem mais poderia
concorrer. Horst tinha interesse em garantir a escolha de um presidente que lhe
fosse eternamente grato. Horst conversou com o advogado de Nebiolo, Mino
Auletta. Ele diria a Horst exatamente o que poderia ser feito em seu benefício.
Este seria o fator decisivo na escolha de Nebiolo, ou outro qualquer. Claro, Primo
garantiu que tudo seria feito do jeito de Horst."
"Primo, sendo como era, facilitou o acordo com Horst. Nebiolo sabia
negociar. Mas restava um problema: como torná-lo presidente da federação de
atletismo sem que precisasse enfrentar candidatos melhores do que ele?"
O primeiro estágio da guerra para impor Nebiolo à IAAF foi a escolha do
campo de batalha. As eleições ocorreriam em Moscou, em 1980, e Dassler sabia
que Paulen derrotaria facilmente o ambicioso italiano. O secretário-geral Brejnev e
o presidente Cárter salvaram o dia. A invasão russa do Afeganistão teve como
contrapartida o boicote norte-americano às Olimpíadas. Imediatamente surgiram
dúvidas sobre a realização de uma votação tão importante com a ausência de
tantos delegados. Nebiolo aproveitou a chance e, graças à influência de Dassler
na África, América Latina e no bloco comunista, conseguiu adiar a eleição.
"O boicote a Moscou foi obra de Deus", disse Nally. "Horst percebeu seu
potencial imediatamente. No ano seguinte Roma sediaria a terceira copa mundial
de atletismo, oferecendo a oportunidade para realizar um congresso
extraordinário na terra natal de Nebiolo. E preferiu deixar que Paulen
permanecesse por mais um ano. Nada mais justo, ele andava profundamente en-
volvido com a organização do primeiro campeonato mundial de atletismo em
1983. Neste meio tempo, Horst organizaria o golpe."
Fred Holder tem lembranças semelhantes: "Nebiolo manobrou em 1980,
para adiar as eleições. Mas não era preciso esperar. Mesmo com a ausência dos
atletas norte-americanos em Moscou, os dirigentes compareceram. Nebiolo viu
'cair do céu' a chance de transferir a eleição para seu território, Roma, em 1981."
Nebiolo não deixou nada por conta do acaso. Em campanha, visitou Berlim
Oriental, jogando com os temores do bloco comunista: "Somos contra a
comercialização do esporte. Se desejamos o progresso esportivo, é essencial
desenvolver o esporte amador de todas as formas." O comandante de sua
campanha deve ter dado risada, em Landersheim.
O Segundo Estágio, segundo Nally, era garantir que não haveria eleição
alguma. "Dassler planejou o esquema. Queria apenas dois candidatos. Quando
fosse tarde demais para que outros candidatos entrassem na disputa, Paulen
seria convencido a desistir.
"Adriaan estava no atletismo apenas por amor ao esporte", contou Nally.
"Sua tragédia foi não ter tido a chance de fazer um sucessor. O plano de Horst
prosseguiu nos meses seguintes. Em primeiro lugar, precisava ter certeza de que
ninguém concorreria contra Nebiolo e Adriaan, porque isso poderia estragar tudo.
Qualquer um teria chances de ganhar, literalmente, arruinando os planos de
Horst.
"Era uma campanha militar. A própria importância de Adriaan foi usada
para impedir o avanço de outros possíveis candidatos. Quando anunciou
publicamente que Adriaan disputaria o cargo, todos os outros desistiram, em sinal
de respeito. As chances de Nebiolo contra Adriaan eram risíveis.
"O próximo estágio, decisivo, era fazer com que Adriaan desistisse. Horst
precisava convencê-lo de que iria perder, mas eu considerava isso impossível.
Horst persuadiu Adriaan de que conhecia melhor os africanos e asiáticos, e que
eles apoiariam Nebiolo. Horst convenceu Adriaan de que seria derrotado.
"Conforme os meses iam passando, os avisos se tornaram mais e mais
convincentes, até que Adriaan começou a acreditar que corria o risco de ser
completamente expulso do atletismo internacional, a não ser que fizesse um
acordo com Nebiolo e se retirasse da eleição.
"Horst lhe disse: 'Adriaan, não vai ser bom para o esporte, nem para você,
sair desta maneira. Vamos pensar um modo de trabalharmos juntos em benefício
do esporte.' Foi muito triste, apresentar a coisa de modo tão sincero, invocando os
interesses do atletismo e os de Adriaan.
"O golpe de misericórdia foi desferido no começo da primavera de 1981,
em um encontro num hotel parisiense. Ali ele foi posto cara a cara com Nebiolo,
por Horst, para fechar um acordo.
"Depois que todos se cumprimentaram, Adriaan disse: 'Muito bem, eu
desisto. Desde que vocês concordem com o seguinte'. As condições lhe davam
uma posição mais que simbólica. Depois foi feito um esforço enorme para
convencer Adriaan Paulen que seria melhor para ele desistir, garantindo que seu
papel no atletismo estaria seguro."
Paulen pedira um favor a Fred Holder: "Ele solicitou meu comparecimento
ao encontro com Nebiolo. Paulen já se decidira a abrir mão de sua candidatura, e
na reunião Nebiolo repetiria as garantias quanto ao futuro de Paulen na IAAF.
Paulen estava um tanto nervoso, temendo que Nebiolo renegasse seus
compromissos depois, e me queria como testemunha."
Traído e enganado por seu amigo Dassler, Adriaan Paulen escreveu uma
carta curta para a IAAF, retirando-se da disputa. Mencionava discussões, opiniões
emitidas. Segundo a carta, as federações, em sua maioria, apoiavam o Dr. Primo
Nebiolo, um sucessor perfeito...
"Meu pai era inocente, sempre via o lado bom das pessoas. Embora fosse
inteligente, não tinha malícia", disse a filha de Paulen. Quando contamos a ela a
verdadeira história do alijamento de seu pai da presidência da IAAF, não
acreditou em nada, inicialmente.
"Dassler fez isso? Ele conspirou contra meu pai? Eu sabia que havia algo
contra meu pai, para garantir a eleição de Nebiolo. Mas eu nunca pensei que
fosse Dassler, porque sempre foram amigos.
"Mesmo depois de desistir, meu pai se hospedou na casa de Dassler.
Nunca suspeitou de nada. Ele disse a minha mãe que desistiu porque havia muita
gente contra ele — mas nunca mencionou Dassler.
"Ele acreditava que havia algo por trás dos votos de Nebiolo. Meu pai não
queria passar pela indignidade de ser derrotado. Por isso desistiu. Ele se dedicou
de corpo e alma ao atletismo."
8
O ISL DITA AS REGRAS
Era uma vez um homem que montou uma pequena empresa para vender
anúncios de eventos esportivos, em 1980. Logo em seguida obteve os direitos
multimilionários para a copa do mundo de futebol. No ano seguinte, recebeu um
privilégio semelhante, para as Olimpíadas. Mais um ano e foi a vez do atletismo
mundial.
Uma pequena companhia sem história, sem experiência e sem currículo
monopolizou os contratos de marketing dos esportes mais importantes e
lucrativos do mundo. Foi uma das maiores jogadas comerciais do planeta.
Os contratos invariavelmente são renovados. Alguns avançam até o
próximo século. Ninguém disputa os contratos. Os concorrentes sabem que não
adianta perder tempo com lances. Os patrocinadores fazem fila para investir
centenas de milhões de dólares nesta companhia, pelo direito de ligar suas
marcas com o que restou de beleza e pureza no esporte. Cada vez que um fã do
esporte liga a televisão para assistir um evento do COI, FIFA ou IAAF, torna esta
pequena companhia um pouco mais rica. Cada vez que um rolo de fume ou um
refrigerante específico é adquirido, as porcentagens pingam. O fundador da
companhia e dono dos contatos que permitiram tal triunfo foi, claro, Horst Dassler.
Tendo criado o Clube, Horst Dassler tornou-se seu banqueiro.
A ISL Marketing ocupa um conjunto de escritórios em cima da estação
ferroviária de Lucerne. Possui filiais em meia dúzia de cidades do planeta.
Emprega pouco mais de cem pessoas. A receita anual, segundo estimativas,
passa de US$ 200 milhões. A ISL retém até 25 por cento do total como comissão
por seus serviços. Os valores exatos não podem ser divulgados porque a ISL não
é uma companhia aberta. Os esportes que vendem são públicos, mas poucos
conhecem a ISL fora do ambiente restrito do marketing esportivo internacional. A
empresa se mostra compreensivelmente constrangida em discutir os milhões que
passam por suas mãos. Fala uma linguagem diferente da maioria dos entusiastas
do esporte.
ser o "consumidor'
Para um fã ou um atleta, o maior prêmio ainda é ver ou ganhar uma
medalha de ouro olímpica, na pista de atletismo, ou a taça na copa do mundo de
futebol. Para a ISL, o valor destes eventos reside nas "oportunidades globais" dos
"segmentos de mercado" que tornam disponível em "pacotes" para os fabricantes
divididos por "categoria de produto". O alvo final pode
Qual-
ou ficar restrito aos "empresários".
quer que seja a atividade de uma empresa, se esta for muito rica, pode
comprar uma fatia da final da Copa, das Olimpíadas ou do Campeonato Mundial.
Quando os eventos se realizam em cidades históricas ou de destacada
beleza, o "máximo em hospitalidade empresarial" pode ser providenciado para os
preciosos clientes dos patrocinadores multinacionais. Ou seja, ninguém precisa
assistir as competições, se não quiser.
Um ano depois do final dos Jogos de Barcelona, o orçamento anual de
patrocínio ultrapassará os US$ 5 bilhões, em todo o mundo. Em troca, os
patrocinadores exigirão o direito de "adequar" os maiores eventos esportivos para
torná-los mais eficientes na televisão, cumprindo a função decisiva de melhorar a
"imagem do patrocinador". O que a maioria chama inocentemente de Olimpíadas
já leva o nome de "ferramentas de marketing" no mundo pseudo-científico da
pesquisa de mercado. Não há uma única palavra sobre o assunto na carta
olímpica.
Os cinco anéis interligados são hoje uma das mercadorias mais valiosas do
mundo — em termos financeiros. Há menos de 25 anos tinham um valor bem
menor. Não estavam à venda. O presidente do COI, Avery Brundage, emitia
circulares periódicas em Lausanne, recusando a competidores e federações o
direito de usar logotipos em seus uniformes. Ele chegou a formar uma Comissão
para Proteção dos Emblemas Olímpicos, impedindo que os anéis fossem
explorados pêlos anunciantes. A Comissão foi substituída, na gestão Samaranch,
pela Comissão de Novas Fontes de Financiamento, encarregada de vender o
emblema no mercado, pelo melhor preço possível.
A nova espécie de membros-empresários do COI adquiriram a consciência
de que dependem das verbas da televisão. A prudência, insistiram, exigia que se
levantasse dinheiro de outras fontes. O resultado, na opinião de um comentarista
olímpico, foi "a violentação sistemática da imagem do COI pelo mundo dos ne-
gócios."
"Horst sempre disse que teve a idéia básica para o marketing esportivo
assistindo a final de Wimbledon no início da década de 1970. Os jogadores,
Nastase e Smith, ambos contratados da Adidas, usavam uniformes brancos, com
discretos logotipos da companhia. O jogo recebeu uma cobertura tão grande da
televisão que Horst começou a pensar nos jogadores como anúncios ambulantes,
esperando a veiculação das mensagens", segundo o vice-presidente da ISL, Paul
Smith. Pela cartilha de Dassler, as roupas brancas eram um pecado contra a
natureza. A parceria com Patrick Nally nascia. Durante os oito anos seguintes os
dois homens transformaram as fontes de recursos e a aparência do futebol, do
atletismo e das Olimpíadas. As federações foram viradas de cabeça para baixo, e
uma nova leva de presidentes assumiu o timão do esporte mundial.
Em 1982, Dassler e Naüy se separaram. "Eu vivia em conflito", explicou
Naüy. "Não sabia mais se fazia aquilo para ajudar Horst e a Adidas, ou para
representar os interesses da Coca-Cola, da Canon e de outros clientes. As
federações ficavam com os benefícios financeiros, mas a pessoa que colhia os
dividendos políticos e manipulava a situação para proveito de suas próprias em-
presas era Horst."
Quando a sociedade se desfez, Dassler fundou apressadamente a ISL.
Levou os direitos do futebol internacional consigo, e os manteve desde então na
ISL. A FIFA mais tarde o recompensou com a opção de esticar os contratos até o
próximo século.
As garrafas borbulhantes estariam presentes durante todo o percurso. Por
vezes em garrafas pequenas, de 300 ml, e mais frequentemente em latas
vermelhas. A Coca-Cola, depois de fornecer o dinheiro e a imagem que manteve
Havelange no poder, iria agora fornecer o combustível para os planos de controlar
o marketing esportivo mundial de Dassler. A ISL ditaria as regras deste jogo,
todas as gentilezas do passado seriam lembradas, e a Coca-Cola pagaria a
conta.
A corporação de Atlanta era crucial para a nova empresa de Dassler. Nally
observa, quase deslumbrado: "Quando nos separamos, Horst precisava controlar
a conta da Coca-Cola, porque precisava de credibilidade, de imagem. Levou um
bom tempo para colocar a Coca-Cola a seu lado, e poder usar a força e o dinheiro
da companhia."
Paul Smith, da ISL, admite que o nome Coca-Cola possui uma "aura
mágica". Esta aura foi emprestada ao novo programa de marketing do futebol. O
nome "Inter-Soccer" foi mantido, e os eventos à venda incluíam as finais do
Campeonato Europeu de 1984 em Paris, as finais da Copa Européia e
culminavam com a Copa do Mundo do México em 1986.
Aos patrocinadores oferecia-se "um pacote completo de comunicação,
baseado na exclusividade por categoria de produto durante um período de quatro
anos. O programa para cada um dos 75 jogos inclui propaganda nos estádios,
título de fornecedor oficial, uso de mascotes e emblemas e oportunidades de
franquia." Se estivessem dispostos a pagar quase 7 milhões de libras cada um, os
patrocinadores poderiam, em 1986, ter sua quota do "maior evento televisivo do
mundo", com "alcance inédito, muito superior ao dos outros esportes."
Mas o preço era justo? Nally acha que não: "Quando criamos o Inter-
Soccer, incluímos no orçamento os valores a pagar para a Espanha, necessários
para aumentar o número de times de 16 para 24. Havelange precisava cumprir
suas promessas eleitorais, e Samaranch encontrava-se na beira das eleições
para o COI, em Moscou, necessitando do apoio de Havelange. Sendo assim, ha-
via uma margem maior 1982 do que seria preciso em 1986.
"Mas depois da Espanha, Horst não baixou os preços, na verdade eles
foram aumentados. A participação da Coca-Cola no projeto Inter-Soccer, ao preço
pedido por Horst, legitimou sua política de preços altos."
Em seguida, caiu na rede da ISL o que Dassler descreveu certa vez como
"a propriedade menos explorada": Os Jogos Olímpicos. A imagem deles era
perfeita para o marketing. Cada comité olímpico nacional detinha os direitos de
licenciar os cinco anéis em seu país. O plano de Dassler pretendia passar da
venda local para a mundial.
Conversas privadas foram mantidas com o COI, e em março de 1983
Samaranch anunciou que a ISL fora contratada para administrar o novo programa
de obtenção de fundos. A concorrência nem teve chance de vê-lo.
A reportagem do New York Times sobre esta jogada empresarial incluiu as
mais diversas opiniões. O Mark McCormack's International Management Group
declarou ter manifestado interesse, mas nunca foi convidado a apresentar sua
proposta. Patrick Nally declarou, segundo o jornal: "O fato da ISL, vinda do nada,
ter obtido um dos maiores contratos esportivos do mundo mostra claramente que
Dassler encontra-se na posição de conseguir qualquer contrato que queira." Dick
Pound, membro canadense do COI, disse: "A ISL foi escolhida por osmose."
Samaranch comentou: "Dassler está próximo do COI, mas não vejo nenhum
problema nisso". Dassler, sem dúvida com um enorme sorriso estampado no
rosto, disse: "Eu faço o que é melhor para o movimento olímpico. Não há nenhum
conflito de interesses."
"Não é estranho que nenhuma das grandes companhias de marketing, no
ramo há anos, não tenha conseguido ver projeto, nem conversar, nem mesmo ser
convidada para apresentar um pacote alternativo ao da ISL?" Perguntou Nally.
Mais dois anos se passaram antes que o contrato entre a ISL e o COI
fosse assinado. Dassler conseguira sua brecha. Ele agora possuía os direitos
para o esquema global de marketing dos Jogos em Seul. Mas, para que
funcionasse, precisava persuadir os mais de 150 NOCs a abrir mão de parte de
seus direitos de comercialização dos cinco anéis em seus países. Mesmo Sama-
ranch mostrou-se cético, e disse a Dassler, em particular: "Tente me convencer
de que você consegue a aprovação de todos eles."
Dassler encontrava-se numa posição única para atingir sua meta. Ele era a
pessoa mais bem-informada do meio, tinha os melhores contatos e muitos lhe
deviam favores. Agora usaria tudo. Cinco meses depois de receber a aprovação
de Samaranch, um grupo de executivos da ISL reuniu-se com o mexicano Mário
Vazquez Rafia em Caracas, durante os Jogos Panamericanos. Rana era uma
peça fundamental. Ele comandava a ANOC, a organização mundial dos comitês
olímpicos nacionais. Juntos, fizeram um lobby bem-sucedido, convencendo os
NOCs latino-americanos a assinar com a companhia de marketing de Dassler. Foi
um bom começo. Mas o novo plano de marketing olímpico não decolaria sem o
aval das grandes potências econômicas: Estados Unidos, Alemanha, Grã-
Bretanha, França, Japão e Austrália. Dassler prometeu dinheiro para todos, até
conseguir apoio suficiente para voltar a Samaranch, O contrato foi finalmente
assinado em março de 1985, e pela primeira vez o TOP — sigla do Programa
Olímpico — foi revelado.
O TOP conseguiu levantar US$ 100 milhões para os Jogos de 1988, mas
há dúvidas se a ISL teve algum lucro. Comprar os direitos de cada NOC,
garantindo mais dinheiro do que conseguiriam isoladamente, custou uma fortuna.
A maior agência de propaganda do mundo veio em socorro de Dassler. "A
Dentsu é enorme", disse Nally. "Uma companhia monstruosa, infiltrada
praticamente em todos os setores da vida comercial japonesa: televisão,
imprensa, editoras e publicidade.
"Quando eu trabalhava com Horst, vendi pacotes de futebol para a JVC,
fabricante japonês de produtos eletrônicos, e também para a Fuji Film. No Japão,
o sistema exige que se passe por uma agência. Escolhi a Hukuhodo, a agência
número dois do Japão, rival ferrenha da Dentsu, para se associar a nós nas
contas da JVC e Fuji.
"Eu não me dei conta de que, ao fazer isso, despertara o gigante
adormecido, o Rip Van Winkle chamado Dentsu. Tanto a JVC quanto a Fuji são
companhias de grande importância, e nenhuma das duas jamais trabalhara com a
Hukuhodo antes. As cabeças rolaram na Dentsu, por permitir que uma coisa tão
terrível acontecesse.
"Quando Horst e eu nos separamos, descobri que a Dentsu enviou uma
série de telexes para Horst, na Adidas francesa, tentando comprar uma
participação no ISL. Ofereciam uma fortuna, pois queriam a JVC e a Fuji fora do
alcance da Hukuhodo, e de volta aos braços da Dentsu.
"De repente Horst se animou, porque viu nisso a resposta para seus
problemas financeiros. Uma companhia japonesa de grande porte desejava
comprar uma parte de seu esquema, e se mostrava disposta a pagar qualquer
preço para conseguir seu intento. Ofereceram uma vasta soma a Horst, e
adquiriram metade da ISL.
"Os eventos no Japão foram a salvação de Horst. Eu arranjei o sócio ideal
para ele. Dassler, claro, tirou o máximo proveito. Ele disse para o pessoal da
Dentsu: 'Tudo bem, posso resolver o problema que Nally criou para vocês.
Precisam agir imediatamente, eis o número de minha conta bancária na Suíça,
por favor mandem milhões.' E foi o que ocorreu."
Tendo o dinheiro da Dentsu por trás, A energia e a inteligência de Dassler
triunfaram. "Nenhum executivo da ISL teria condições de levar os comitês
olímpicos nacionais a devolver ao COI seus direitos, para a implantação de um
projeto global de marketing. Só Dassler, pessoalmente, teria sucesso", declarou
Nally. "Samaranch poderia ter conseguido isso — mas não tinha o dinheiro para
distribuir — de modo que Horst deixou Samaranch mais uma vez em débito com
ele."
Nove companhias multinacionais — Coca-Cola, Visa, Brother, Federal
Express, 3M, Time Life, National Panasonic, Kodak e Philips participaram do
projeto TOP para a Olimpíada de 1988, contribuindo com mais de US$ 100
milhões — menos a comissão da ISL. Mas isso era só a semente. A única coisa
que conseguiram com este investimento foi usar os cinco anéis em qualquer parte
do mundo.
As Olimpíadas são um evento único no mundo esportivo. Placas de
propaganda não podem desfigurar os estádios. O COI alardeia isso
estridentemente. Dizem que as mensagens comerciais são proibidas nos estádios
para manter a pureza do ideal olímpico.
"Isso é enganoso", afirmou Nally. "A razão real para a ausência da
propaganda nos estádios é a alta soma paga pelas redes norte-americanas pêlos
direitos televisivos. Eles querem imagens limpas, para que possam vender seus
comerciais. Se pensarmos na NBC, que pagou cerca de US$ 400 milhões pêlos
direitos de Barcelona, veremos que a rede precisa vender de mais de US$ 600
milhões em publicidade para empatar, ou ter um pequeno lucro. A NBC não
conseguiria tanto se houvesse propaganda nos estádios."
Tendo pago milhões para entrar na elite olímpica, os nove patrocinadores
do TOP gastaram ainda mais procurando formas de incorporar os anéis e os
logos de Calgary, sede dos Jogos de Inverno de 1988 e Seul a seus pacotes,
comprando espaço na imprensa e na televisão. Visa colocou os anéis em seus
cartões de crédito, e produziu anúncios agressivos, de alto impacto, ressaltando
que os locais dos Jogos eram o único lugar do mundo onde "não aceitam
American Express."
O cartão verde rival patrocinou os Jogos de Los Angeles em 1984, mas
recuou quando soube que precisaria pagar um preço quatro vezes maior. A
American Express comentou: "Recusamos pagar US$ 15,5 milhões em Seul. O
preço estava muito além do que poderíamos ganhar com quaisquer benefícios
comerciais." A Sopa Campbell gastou US$ 500 mil para patrocinar os jogos de
inverno em Saravejo, em 1984, e quase perdeu a fala quando a ISL convidou a
empresa para entrar no TOP e patrocinar os jogos de Calgary. Um diretor, George
Mahrlig, disse: "Nunca vou me esquecer do preço pedido. O vendedor da ISL,
com a maior caradura, queria um valor 14 vezes maior: US$ 7,2 milhões."
Campbell caiu fora.
A revista Time e a Sports Illustrated ganharam o direito de produzir os
números especiais das Olimpíadas, vendidos como lembranças. A situação era
estranha. Teria um grande grupo editorial criado um vínculo tão forte com o
movimento olímpico, a ponto de abandonar sua condição de fazer um jornalismo
crítico?
As máquinas de escrever Brother concentraram-se mais na exploração dos
anéis olímpicos para impressionar seus revendedores. Levaram clientes
preferenciais para Seul, pagando pelo privilégio de apresentar seus convidados
aos ganhadores de medalhas de ouro, diariamente. Não se sabe o que os
campeões olímpicos acharam de desfilar e apertar as mãos dos convidados da
Brother. Cerca de 17 mil convidados dos patrocinadores conseguiram privilégios
em 1988.
Dassler ainda precisava de um grande favor. Depois do Campeonato
Mundial de Atletismo em Helsinque, o contrato de marketing com a IAAF era de
quem chegasse primeiro. As negociações seriam feitas durante os Jogos
Olímpicos de Los Angeles. Haveria um preço a ser pago pelo final do reinado de
Adriaan Paulen e a implantação do regime de Nebiolo?
Tentar o contrato com a IAAF representava um novo tipo de experiência
para a ISL, em ambiente diverso do encontrado na FIFA e no COI. Haveria
concorrência de verdade, entre dois candidatos. Patrick Nally continuou lutando
pelo contrato, depois do rompimento com Dassler. Queria dar seguimento ao
esquema que levantara tanto dinheiro para o primeiro campeonato em Helsinque,
em 1983. Dassler pretendia obter o contrato para si. Os dois rivais apresentaram
suas propostas para o comité de marketing da IAAF, recentemente fundado. Um
membro do comité recordou a cena: "Nally fez uma apresentação muito pro-
fissional, e depois veio a ISL. Eles disseram que poderiam oferecer uma garantia
enorme, talvez US$ 20 milhões para os quatro anos seguintes, se
concordássemos em entregar o contrato. Mas, por algum motivo, passaram-se
mais dois anos até a assinatura."
Nally declarou: "A ISL ficou com o contrato com a IAAF. De repente,
parecia que tinham feito um acordo melhor do que nós, responsáveis pelo
marketing há tantos anos e criadores de todos os projetos. Foi uma farsa." Com
isso, a ISL ficou com os três grandes.
A ISL descobriu que era muito mais difícil negociar com Nebiolo do que
com Samaranch. O presidente desperdiçava o dinheiro da IAAF, às vezes.
Durante os preparativos para o Campeonato de Atletismo de Roma, em 1987,
Nebiolo insistiu para que a marca do evento fosse produzida por um membro de
sua corte. "O logotipo era horrível", contou um membro da IAAF. "Muito feio. Não
significava nada. Odiamos, mas ele não quis saber, insistindo que o logo da IAAF
deveria ser divulgado antes do logo da FIFA para a Copa do Mundo de 1990 em
Roma. O logotipo acabou com a festa. A receita foi zero."
O relacionamento de Dassler com o atletismo florescia. Em 1986, Nebiolo
fechou um acordo com a Adidas, para o fornecimento de material para a IAAF. A
revista da federação publicou uma página de propaganda disfarçada de
reportagem sobre a tecnologia por trás da fabricação dos produtos Adidas. O
contrato do atletismo com a Adidas foi renovado em 1988, e novamente em 1991.
Paul Smith admite que a ISL se envolvia profundamente na política esportiva,
quando Dassler ainda vivia, "Desde a morte de Horst", disse, "a ISL tornou-se
apenas mais uma .companhia de marketing."
A ISL ganharia mais um contrato de peso. Em 1989 fechou um acordo com
a federação internacional de basquete. O contrato é limitado, porque o território
mais importante, os Estados Unidos, já está comprometido com outros acordos,
mas as possibilidades do marketing global devem explodir em 1994, quando as
maiores estrelas norte-americanas competirem na frente das câmeras, no
campeonato mundial de basquete.
O basquete é o que os publicitários chamam de um esporte "bom de
anúncio", na televisão. A quadra é pequena, o jogo confinado a ela, e a ISL pode
garantir aos clientes que somente dois cartazes de publicidade serão vistos,
durante até 30 por cento do "tempo de transmissão". Há outros benefícios a
oferecer. Os anunciantes poderão comprar o direito de ter seu nome incluído no
título de jogos específicos. A prática leva o nome de "reforço de mensagem", e dá
aos comentaristas da televisão um nome mais longo para dizer.
Na primavera de 1988 Roberto G. Goizueta, diretor da Coca-Cola, viajou
para Lausanne, onde recebeu de Samaranch a Ordem Olímpica. O presidente do
COI informou que tal honra se devia à "profunda visão positiva da vida"
demonstrada pela companhia. A Coca-Cola foi a primeira a entrar no TOP
seguinte, que atingirá seu apogeu em Barcelona. Samaranch em pessoa voou
para Atlanta, onde assinou o contrato. Com toda a transparência e honestidade
que hoje caracterizam as Olimpíadas, nenhuma das partes revelou o quanto foi
pago pela companhia. Estimativas confiáveis calculam algo em torno de US$ 30
milhões. A Coca-Cola pagará mais do que os outros patrocinadores porque o
mercado de refrigerantes é um dos mais competitivos do mundo.
As outras companhias que completam os "TOP 12" em Barcelona são
previsíveis. Kodak pagou uma fortuna, outra vez, no mínimo para deixar de fora
um rival, a Fuji Film. Igualmente decididas a participar encontram-se grandes
empresas japonesas, como Brother, National Panasonic e Ricoh. A Philips
holandesa também entrou, mas não pode promover produtos concorrentes da
Panasonic. Os outros patrocinadores de Barcelona são a revista Time, os
chocolates Mars, a Bausch & Lomb (fabricante dos óculos Rayban), a Visa, a
empresa entregadora EMS e a 3M. Em 1989 o Comité Olímpico dos Estados
Unidos de Bob Helmick premiou o presidente da 3M com o título de "Empresário
do Ano".
As Olimpíadas teriam sido "violentadas" pelas grandes corporações? Paul
Smith, da ISL, acha que não: "O público não pensa que as Olimpíadas estão
muito comerciais. O elemento marketing sofre controle eficaz. As companhias do
TOP investiram a longo prazo, e seu interesse é garantir que a imagem dos Jogos
não se degrade." Longo prazo tornou-se agora curto prazo. O COI introduziu uma
modificação decisiva no tradicional ciclo de quatro anos dos Jogos. A partir de
1994 os eventos de verão e inverno se alternarão a cada dois anos. As redes
norte-americanas pressionaram neste sentido, pois arcam com uma conta de
quase US$ l bilhão pêlos dois eventos, num ano olímpico. Os céticos acreditam
que os patrocinadores acreditam que seus investimentos dêem um retorno melhor
distribuídos a cada dois anos, ao invés de concentrados a cada quatro.
Em seu material de divulgação, a ISL aparece como um ponto de
confluência entre o conteúdo ético do esporte e as exigências benevolentes e
razoáveis dos empresários. Dentro da companhia trava-se há dois anos uma
guerra, desde que a Adidas da família Dassler foi vendida para o investidor
francês Bernard Tapie, em 1990.
As quatro irmãs de Dassler — Inge, Karen, Brigitte e Sigrid — foram
criticadas na imprensa alemã pela venda de 80 por cento das ações da Adidas a
um preço muito baixo. A filha Suzanne e o filho Adi conservaram uma pane da
holding Adidas. A família também possui 51 por cento da ISL, e a Dentsu o
restante. Embora pareçam interessados em evitar que a companhia decaia, como
ocorreu com a Adidas depois da morte de Dassler, as duas gerações da família
atualmente só se relacionam através de advogados. Perdida a Adidas, a ISL
tornou-se sua galinha dos ovos de ouro.
Seis meses depois da venda das ações da Adidas, pouco antes do Natal
de 1990, as quatro irmãs atacaram a ISL. Christoph Malms, marido de Sigrid, foi
nomeado presidente da companhia holding Sporis AG, e em seguida diretor da
ISL. Logo ficou claro que ele não conseguia trabalhar ao lado de Klaus Hempel e
Jürgen Lens, os dois administradores que Dassler escolhera para tocar o negócio.
Hempel, principal executivo, acostumara-se a dirigir a companhia sem
interferências, comunicando suas decisões à diretoria dominada pela família
depois de toma-las. Malms queria autonomia como diretor.
Em janeiro de 1991, Hempel e Lens deixaram seus cargos. A saída deles
foi anunciada no estilo dos comunicados corporativos, sugerindo harmonia para
normalmente mascarar as cenas de executivos lutando na diretoria. O press
release divulgado pelo escritório em Lucerne mencionava "mudanças
significativas na estrutura executiva da empresa". Hempel e Lens, claro,
demitiram-se "por acordo mútuo, para cuidar de outros negócios e assuntos
pessoais". A ISL estava em boas mãos, porque os principais executivos
continuavam nos postos.
No dia seguinte uma carta discreta, assinada por Hempel e Lens, seguiu
para seus melhores contatos nas federações. Deixava claro que ambos
continuavam ativos no ramo. Informava aos antigos clientes: "Pretendemos
capitalizar nossa experiência acumulada no marketing de eventos." A carta
terminava com uma nota diplomática: "Enquanto isso, agradecemos pelo apoio à
ISL." Os especialistas em conflitos administrativos sentiram o cheiro de um acordo
milionário.
Resta saber se Malms, ou Adi, filho de Dassler, possuem as habilidades
políticas do grande homem. Contudo, eles não possuem o profundo
conhecimento sobre tudo e todos que contam no esporte mundial. Dassler,
brilhante e intuitivo, explorava seus conhecimentos em benefício da Adidas e da
ISL. Hempel e Lens trabalharam a seu lado durante muitos anos, e mesmo que
não tivessem a mesma visão, conheciam intimamente a política esportiva. Dassler
tirou muito proveito, mas antes precisou investir pesado. A pergunta é se os
sucessores dele na ISL manterão o mesmo desempenho.
Patrick Nally mostra-se cético quanto ao futuro da ISL: "O relacionamento
com a FIFA, o COI, a IAAF e o basquete provinha de Horst. A infra-estrutura foi
solidamente preparada. Ele acompanhou as pessoas que hoje comandam o
esporte desde o começo. Colocou muitos deles em seus cargos atuais.
"Quando largarem os cargos de direção, o legado de Horst desabará. Aí a
necessidade da ISL poderá ser questionada. Quando começamos, as federações
não tinham equipes de especialistas. Hoje possuem estrutura própria de
marketing, com muita gente boa. Dispensarão intermediários. As federações
precisavam da ISL porque precisavam da política, do dinheiro e da credibilidade
de Horst, para chegar onde estão. Agora, claro, já podem cuidar de tudo
sozinhas."
Não surpreende que Paul Smith, da ISL, discorde: "Somos especialistas.
Compreendemos as sutilezas e as nuances do marketing esportivo. Assim como
as grandes empresas chamam agências de propaganda, ao invés de usar o
pessoal da casa, acreditamos que as federações continuarão a precisar de
nossos serviços."
Neste verão, os convidados das corporações desfrutarão as delícias dos
transatlânticos ancorados no porto de Barcelona. Consumidores do mundo inteiro
serão encorajados a beber Coca-Cola, e não Pepsi; a fotografar com Kodak, e
não Fuji; a ver as Olimpíadas numa televisão Panasonic e não Sony; a usar o
cartão Visa, e não o American Express. Estes são alguns dos patrocinadores
TOP. As pesquisas de mercado da ISL indicam que vale a pena: "Qualquer
companhia patrocinadora das Olimpíadas adquire qualidades olímpicas."
"O público não é mais tão inocente como antes", acredita Nally. "Eles
sabem que o motivo para promover uma companhia através das Olimpíadas não
tem nada a ver com uma missão olímpica. Ninguém é selecionado pela qualidade
ou imagem. Entra quem pagar mais do que os outros."
9
O PESO MORTO
O Samaranch que entrou para o COI em 1966 deve ter se sentido à
vontade entre tantos outros membros de passado autoritário ou antidemocrático.
Afinal, durante toda sua vida adulta apoiara ativamente um estado policial
baseado em um sistema ideológico que dizia agir no interesse da maioria.
Mudar para Moscou após o colapso da ditadura de Franco e do triunfo da
democracia na Espanha parecia ser um conveniente passo atrás na história. Era
tão fácil lidar com os russos quanto com os donos do poder em Madri. Ambos
exerciam um poder absoluto e recompensavam quem os ajudasse.
Iludido por sua falta de experiência em democracia, Samaranch avaliou
mal a força e a longevidade de seus novos aliados comunistas. Desde sua
ascensão ao poder no COI, recrutou e apoiou muitos membros do Leste,
verdadeiros dinossauros de uma outra era política.
Hoje o COI encontra-se lotado de delegados dos falidos regimes do antigo
Bloco Oriental. Eles não representam nada, fora seu próprio desejo de sobreviver
em um mundo novo e hostil, sem os privilégios antigos. Se Samaranch não pedir
sua renúncia, ofenderá os novos comitês olímpicos nacionais democraticamente
eleitos dos países do Leste, que não aceitam "jogadas" com seus representantes
no COI.
O contraste com as mudanças no restante do mundo é gritante. Quando
regimes corruptos caem, seus embaixadores e delegados nas Nações Unidas
voltam para casa em desgraça. Nada disso ocorre no COI. Um punhado de
membros desacreditados pode permanecer no poder até a morte.
Transformaram-se em apêndices do líder do COI. Sem reconhecimento ou
recompensas em seus próprios países, viajarão no eterno trem da alegria,
inspecionando cidades, comparecendo a sessões do COI e acompanhando os
Jogos e outros eventos esportivos de destaque.
Os países do Bloco Leste sempre mantiveram um relacionamento delicado
com o movimento olímpico. Quatro anos depois dos Jogos de Estocolmo os
russos boicotaram as Olimpíadas. Retornaram em 1952, em Helsinque, ganhando
as primeiras medalhas de ouro. Faturaram 22, ficando em segundo no total de
medalhas, atrás dos norte-americanos. Desde então o esporte tornou-se uma
atividade política prioritária. Os russos, alemães orientais, tchecos, romenos e
búlgaros ignoraram a escassez de recursos, criaram condições para a prática
esportiva de competição, treinaram equipes de ponta e tentaram derrotar o
Ocidente. Em 1956 os russos venceram no total de medalhas. E ficaram na frente
dos norte-americanos em três das cinco Olimpíadas seguintes.
Enquanto isso, a União Soviética continuava fechada. Os únicos
estrangeiros realmente bem-vindos eram os adeptos do regime e capitalistas
selvagens como Horst Dassler. "Sempre me impressionei com Dassler em
Moscou. Ele nunca falava em política", declarou Christian Jannette. "Sua única
política era a Adidas. Mesmo quando jantava com gente do Comité Central, nunca
ouvi Dassler tocar em política, nem por um minuto. Falava de negócios, de
organização esportiva, mas nunca de política."
O cabeça da Adidas levava dois presentes especiais. Os russos eram
gratos pelo material esportivo gratuito que ele doava às equipes, mas ansiavam
mesmo pelo acesso à mercadoria mais valiosa de Dassler — conhecimentos. O
isolamento do Bloco Leste, somado ao costume de viajar com uma falange de
agentes da KGB, os impedia de compreender a política esportiva. Desde o início
da década de 1970, Dassler tornou-se orientador e cicerone político dos russos.
Eles entenderam que os votos sob seu controle lhes dava um imenso poder, mas
não sabiam como usá-lo.
"Sempre que Horst viajava para os países da Europa Oriental recebia
tratamento VIP", disse Nally. "Era muito fácil a movimentação dentro daquele
mundo. Descíamos do avião na Rússia e ninguém olhava os passaportes.
Armand Hammer não era o único a fazer isso, Horst também fazia.
"Horst passava muito tempo na sauna, com políticos chaves, conversando
sobre quem deveria ser eleito e o papel desempenhado pêlos países da Europa
Oriental nas federações. O Leste europeu oferecia poucas oportunidades de
negócios, mas possuía grande importância do ponto de vista político."
Dassler queria duas coisas dos russos, principalmente: abrir uma fábrica
atrás da Cortina de Ferro e participar dos negócios decorrentes dos Jogos de
1980 em Moscou, Em ambos os casos ele encontrou a porta aberta. Os russos
precisavam de produtos de melhor qualidade para seu mercado interno — até há
pouco tempo o nome genérico para os tênis, entre os europeus orientais, era
"adidas" — e queriam exportar parte da produção, acumulando moeda forte.
Uma nova equipe foi formada em Landersheim, para tratar do desafio
olímpico. Nally participou bastante. "Horst selecionou um grupo, com pessoas
como Christian Jannette. Ele morou na Rússia entre 1976 e 1980, durante a fase
de preparativos para as Olimpíadas.
"As visitas a Moscou se repetiam constantemente, e minha função se
expandiu mais ainda conforme os Jogos se 1980 se aproximavam. A Rússia
precisava de tecidos e roupas, e fechamos acordos para fornecer o material.
Horst não tinha como bancar tudo sozinho, de modo que precisei procurar outras
companhias para ajudar.
"As negociações foram difíceis, mas Horst conseguiu obter alguns direitos
de marketing em Moscou. Assinou um contrato para vestir não só atletas, como
também dirigentes. Montamos um pacote na West Nally, e saímos à procura de
parceiros.
"Na época, nosso maior triunfo foi convencer a Levi's a fornecer 64 mil
calças jeans. Levamos os executivos para a Rússia, e eles ficaram
impressionados com os contatos políticos de Horst. A Levi's, como a Coca-Cola,
pretendia usar as Olimpíadas como instrumento para a abertura de fábricas na
Europa Oriental. E as calças jeans eram disputadas a tapa."
Ninguém previu o boicote norte-americano a Moscou. Samaranch, quando
ocupava a vice-presidência do COI, cultivara contatos comunistas, em detrimento
dos norte-americanos. Isso tinha sentido, do ponto de vista dele. Os americanos
pouco influíam na política olímpica. Não entendiam direito as maquinações em
Lausanne e nas federações internacionais. As qualidades diplomáticas de
Samaranch falharam no primeiro grande teste. As tentativas de reverter o boicote
promovido pêlos norte-americanos fracassaram.
Quando os russos se vingaram, em Los Angeles, Samaranch, já presidente
do COI, tentou de novo. E mais uma vez suas súplicas não foram ouvidas.
Embora ativo na política olímpica há dezoito anos, ele não conseguiu fazer com
que o Bloco Leste entendesse que se arrependeriam do boicote. Havia
divergências notórias entre os países comunistas, e na verdade ninguém queria
ficar fora de Los Angeles, a não ser Brezhnev.
Apesar dos anos passados em Moscou, como embaixador, Samaranch
jamais dominou as nuanças políticas do bloco comunista. E falhou na tentativa de
convencer seus amigos.
Mas Samaranch não deixou de cortejar os ditadores mais implacáveis do
bloco comunista. Continuou a agradar aos imperadores do Leste. As honrarias
fluíam livres, nas duas direções. Mesmo depois que lhe deram as costas em Los
Angeles, ele prosseguiu com as atenções, como se tratasse das estrelas das
Olimpíadas.
Quando o COI se reuniu em Berlim Oriental, em 1985, Samaranch foi
recebido por Manfred Ewald, o mais alto funcionário do esporte alemão oriental, e
incentivador do programa de doping do país. Ewald já possuía a Ordem Olímpica.
"A Alemanha Oriental se identifica profundamente com o conteúdo humanista do
ideal olímpico", declarou Ewald, e todos aplaudiram educadamente. Como os
anfitriões alemães pagavam a conta, teria sido descortês perguntar o papel dos
esteróides no ideal olímpico, ou quantos haviam sido abatidos com tiros naquele
ano, tentando pular o muro para o Ocidente,
A hipocrisia não parou aí: Erich Honecker, ex-líder da Alemanha Oriental,
hoje indiciado pêlos crimes cometidos durante seu governo assassino, abriu a
sessão do COI. Recebeu como recompensa a mais alta honraria disponível, a
Ordem de Ouro Olímpica. Dar a Ordem de Ouro a tais tiranos não apenas macula
o ideal olímpico: zomba das legiões de pessoas comuns, decentes, que com
freqüência dedicaram a vida ao esporte.
Outro alto dignatário recebeu a Ordem de Ouro naquele ano: o carniceiro
de Bucareste, Nicolae Ceaucescu. Premiado por ter ignorado os russos e enviado
uma delegação a Los Angeles. Difícil acreditar que o presidente do COI, que se
apresenta como diplomata viajado, não soubesse dos sofrimentos impostos aos
romenos pela ditadura de Ceaucescu.
Qual a mensagem recebida pelo romeno comum, assistindo à cerimônia
transmitida na íntegra pela televisão local? Que o mundo civilizado não se
importava com seus males e com a pobreza existente atrás das fronteiras
fechadas. Ver o cruel dirigente sendo condecorado por mandar atletas para os
Estados Unidos enquanto o povo levava os tiros tentando fugir deve ter sido bem
estranho.
A nível do esporte, Samaranch deve ter sido informado que as condições
da Romênia eram lamentáveis. Ele conferiu a medalha olímpica a um país com
reputação de dopar muitos de seus melhores representantes.
Samaranch parece ter o dom de escolher os piores ditadores para receber
honrarias. Dois anos depois de Berlim, ele foi à Bulgária e deu ao ditador Todor
Zhikov a Ordem de Ouro Olímpica.
Os agentes da contra-espionagem devem ter feito hora-extra em Moscou e
Washington para estudar as viagens de Samaranch durante a década de 1980. E
também devem ter pensado: para quem ele trabalha, afinal? A CIA pode ter
levantado a possibilidade de que o presidente do COI fosse agente do Comintern,
viajando "para casa" regularmente para receber ordens e entregar microfilmes.
Da mesma forma, a KGB deve ter pesquisado seus arquivos de viagens.
Entre 1981 e 1987, Samaranch visitou constantemente o Bloco Leste. Estaria
espionando para os norte-americanos? A pergunta deve ter sido feita na
Lubianka.
Enquanto o sistema comunista desabava lentamente, Samaranch era
fotografado em Moscou, na Albânia, Polônia e em Piongiang. As viagens só
diminuíram quando a casa caiu. O poder esportivo do Leste foi arrasado. Os
campos de doping fechados, a queda nas performances e a dissolução do bloco
de votantes chegou. Os barões do esporte no Leste perderam o emprego, na
maioria dos casos, desacreditados, e seus impérios perderam as contas ban-
cárias em moeda forte. O Leste agora suplica, e precisa chegar a Lausanne de
chapéu na mão.
Eles terão os melhores lugares, com a melhor vista para os eventos em
Barcelona. Andarão de limusine. Ficarão hospedados no melhor hotel. Eles
podem dar as Olimpíadas para uma cidade. Eles são o peso morto do Bloco
Oriental, os subprodutos da era Brejnev, os membros totalitários do COI.
Eis Shagdarjav Margvan, da Mongólia. Dirigente sindical e ex-lutador,
nascido em 1927, tinha 50 anos ao ser escolhido para o COI. No ano seguinte o
partido comunista o promoveu para dirigir uma fábrica de porcelana. Sua língua
nativa é o mongol, mas ele também fala russo. Trata-se de um dos poucos
membros do COI que nunca foi nomeado para participar de uma comissão. Ficará
no COI até atingir a idade limite para a aposentadoria compulsória de 75 anos, em
2002. só então a Mongólia poderá trocar de representante. Mesmo depois desta
data Magvan continuará membro do COI, embora sem poder de voto.
Há também Marat Gramov, de Moscou. Um dos maiores desastres de
Samaranch, Gramov foi o burocrata dedicado que organizou o boicote a Los
Angeles. Isso não incomodou Samaranch, que o escolheu para o COI em 1988.
Gramov era deputado no Soviete Supremo da União Soviética, além de
presidente do comité olímpico Soviético.
Sua nomeação para o COI sinalizou claramente que Samaranch não
compreendia as pressões crescentes na Rússia. Três anos como embaixador, e
inúmeras visitas nos oito anos seguintes, pelo jeito pouco ensinaram ao
presidente do COI, A escolha de Gramov deixou o COI mal representado no novo
esquema democrático do Leste.
Um ano depois de sua nomeação, Gramov foi forçado a renunciar de seu
cargo no Ministério do Esporte soviético. Adiando continuamente as reuniões do
NOC soviético, ele prolongou o inevitável, até que em abril de 1990 perdeu seu
último posto no esporte russo. Hoje Gramov não é ninguém no esporte. Isso não
o impede de viajar pelo mundo às custas do COI, recebendo as homenagens das
cidades visitadas, candidatas a sede de uma Olimpíada. Gramov permanecerá no
COI como membro pleno até 2002.
Outro membro soviético do COI, Vitaly Smirnov, nomeado em 1971, saiu-
se melhor. Pertencia ao Soviete de Moscou, mas distanciou-se da velha guarda e
substituiu Gramov no NOC. É vice-presidente do COI e membro pleno até o ano
2000. Ele entrou para o novo mundo esportivo com estardalhaço, arranjando com
a fábrica de automóveis alemã Mercedes dois carros para seu uso em Moscou. A
Mercedes apoia a tentativa de Berlim para sediar os Jogos no ano 2000.
Gramov e Smirnov representam a URSS no COI, mas o país deixou de existir.
Na Roménia, enquanto o país luta para superar os traumas da era Ceaucescu, seu
homem em Lausanne segue sendo Alexan-dru Siperco, que fala russo. Ele participou
ativamente da política comunista romena durante anos. Nascido em 1920, é membro vitalício
do COI.
A Polónia encontra-se em situação similar, com Wlodzimierz Reczek, também de fala
russa, como membro vitalício desde 1961, A Tchecoslováquia tem como representante outro
membro de fala russa, Vladimir Cernusak, que votará nas reuniões em Lausanne até 1996.
O representante da Bulgária também fala russo, mas Ivan Slav-kov parece ter superado
a desvantagem de ser genro do ex-presidente Todor Zhikov, agraciado com a Ordem de Ouro
Olímpica. Slavkov era ministro adjunto da cultura, na velha ordem, e comandava a televisão
estatal. Samaranch tem um alto conceito deste senhor de meia idade e muita personalidade.
Quando o governo do sogro caiu ele ficou em regime de prisão domiciliar e acabou depois na
penitenciária, acusado de uma série de crimes, desde tráfico de armamentos até apropriação
indébita de fundos da fracassada campanha de Sofia para sediar as Olimpíadas de Inverno
de 1994.
As acusações foram posteriormente retiradas, e ele acabou sendo reeleito presidente do
comité olímpico nacional, no único país da Europa Oriental onde o partido comunista é uma
força majoritária. Permanecerá no COI como membro pleno durante as próximas cinco
Olimpíadas — até o ano de 2015.
Um membro do COI, representante da lugoslávia, Slobodan Filipovic, também fala
russo. Ele luta desde 1989 para se desvincular dos antigos camaradas da liderança do partido
local. Seus oponentes o acusam de apoiar as milícias governamentais em Mon-tenegro, quando
estas dispararam contra os manifestantes. Filipovic nega, dizendo que os antigos
camaradas forjaram minutas de reuniões do partido para desacreditá-lo. Enfrenta
uma campanha dos dirigentes esportivos iugoslavos para tirá-lo do COI, já que
não conta com apoio em seu próprio país. Samaranch fez o possível para apoiá-
lo. Filipovic continuará como membro pleno até 2014.
Outro membro iugoslavo, Boris Stankovic, entrou para o COI em 1988, e
serve de secretário-geral para a federação internacional de basquete desde 1976.
Era ativo no mundo da política esportiva de Monte Cario, ao lado de Dassler, e
manteve distância do Partido Comunista de seu país. Ficará no COI até o ano
2000.
Pai Schmitt, da Hungria, tem a melhor reputação internacional entre os
membros do COI vindos do Bloco Leste. Esgrimista olímpico, Schmitt representa
o estilo independente da política húngara, que os russos tentaram esmagar.
Desde sua entrada para o COI em 1983, ele participa ativamente de diversas
comissões.
O colapso da Alemanha Oriental causou um problema para o COI. A nova
Alemanha unificada tinha representantes demais. Gunther Heinze, que fala russo,
era alto dirigente do sistema esportivo movido a droga da Alemanha Oriental, e
concordou em se aposentar prematuramente. Mas permanece como membro ho-
norário.
O último representante de um partido comunista monolítico e repressivo no
COI é o chinês Zhenliang. Ele entrou para o COI em 1981. É vice-presidente
olímpico e membro da diretoria executiva do COI. Continuará membro até o ano
2004.
10
O OURO NEGRO DE OLÍMPIA

Em uma noite especial de janeiro de 1987 o Clube se reuniu em um


exclusivo restaurante parisiense. Horst Dassler chegou com seus convidados:
Samaranch, Havelange, Nebiolo, Bob Helmick, representante americano do COI,
Mahtar M'Bow, secretário-geral da Unesco e um punhado de outros membros do
COI.
Entre os convidados, havia também um membro do COI que pensava
pertencer ao círculo mais íntimo. Como era rico o suficiente para comprar a todos,
ninguém queria desapontá-lo. Outro fato o diferenciava do resto: era o único dos
presentes cuja mãe fora escrava.
O xeque Fahd al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah, da bilionária família real do
Kuwait, tinha só mais três anos de vida, pois morreria em circunstâncias
misteriosas nas mãos dos invasores iraquianos. Seus atos não têm similar na
história do esporte.
Distribuindo prodigamente seus petrodólares, Fahd corrompeu uma parcela
considerável das Olimpíadas, rasgou a Carta Olímpica e tornou os ideais do
movimento sinônimo de trapaça e racismo. Nada disso teria sido possível sem a
bênção de Samaranch e outros membros do Clube.
O xeque Fahd nasceu em 1945, antes que as reservas de petróleo do
Kuwait tornasse o país um dos mais ricos do mundo, numa época em que era
comum, para os xeques, possuir escravos e concubinas. Seu pai, o xeque Ahmad
Al-Jaber Al Sabah, então soberano do Kuwait, tinha entre as concubinas favoritas
uma mulher vinda das tribos nômades do selvagem Baluquistão. Os kuwaitianos
não renegaram os filhos nascidos de escravas, e quando sua mãe deu à luz, o
pequeno Fahd teve o mesmo tratamento dos irmãos legítimos.
Ser filho de escrava não impediu sua ascensão — a mãe do atual primeiro-
ministro, príncipe Saad, era uma escrava negra da Somália. Mesmo assim, o
jovem Fahd era às vezes desprezado, por não ter somente o sangue dos Sabah.
Um amigo de infância declarou: "Fahd se ressentia com as menções a sua
origem, e cresceu voluntarioso e rebelde. Não era estúpido, mas faltava a ele a
astúcia de outros membros da família. Quando a escravidão foi abolida no Kuwait,
na década de 1950, passou a cuidar da mãe, mas sempre teve complexos por
causa de seu nascimento, o que pode explicar sua ânsia de aparecer."
Um conhecido de Fahd, já nos anos 1980, disse: "Fahd era o único irmão
do emir sem cargo no ministério. Isso o enfurecia. Restava o esporte, como única
maneira de ser notado."
Quando entrevistado pela IOC Reviezu, Fahd afirmou ter estudado na
universidade, mas não informou o curso freqüentado, nem o diploma obtido.
Tratava-se de mais um dos mitos permitidos aos ricos e poderosos do Kuwait. Ele
pode ter se matriculado na Universidade do Kuwait — como qualquer Al-Sabah —
mas não era um acadêmico.
Como muitos Al-Sabah, recebeu uma alta patente no exército do Kuwait.
Ao contrário da maioria dos parentes, Fahd queria ser visto como um homem de
ação. Enquanto a contribuição da família na defesa do Kuwait não passou do
estabelecimento de um novo recorde mundial de fuga pelo deserto até o refúgio
seguro na Arábia Saudita, Fahd demonstrou que não lhe faltava coragem pessoal.
Na casa dos vinte anos, sem avisar a família, ele foi para o sul do Líbano,
lutando ao lado da OLP contra os israelenses. A admiração provocada pelo
ousado gesto, no mundo árabe, deu sentido a sua vida. Quando apareceu no
mundo da política esportiva, Fahd não perdia uma oportunidade de aumentar o
boicote contra Israel, progressivamente excluindo o país das competições
internacionais.
O movimento olímpico, como muitas organizações esportivas, divide o
mundo em departamentos continentais. A Ásia é o maior deles, e o mais
populoso. Estende-se por milhares de quilômetros, da costa leste do
Mediterrâneo, passando pela Mongólia, China, Japão, Tailândia, Filipinas e
Coréias. Sendo uma mistura de etnias e grupos religiosos, miséria e riqueza,
apresenta estágios diferenciados de desenvolvimento esportivo.
Os países com tradição em esportes ao estilo ocidental reuniram-se em
Deli, em 1949, e formaram a Federação Asiática. Dominavam o grupo fundador
países nascidos do colapso do império britânico e outras potências colonialistas:
Birmânia, Sri Lanka, índia, Indonésia, Paquistão, Filipinas, Tailândia e Israel. O
objetivo da federação era realizar jogos regionais a cada quatro anos, segundo o
modelo das Olimpíadas e dos Jogos Panamericanos.
As federações esportivas internacionais não tinham com que se preocupar
até o início da década de 1960, quando a Indonésia sediou os quartos Jogos
Asiáticos, em Jacarta. Os promotores anunciaram que não dariam vistos a
competidores de Israel. Seguiam apenas o padrão determinado pêlos Jogos
Mediterrâneos de Samaranch. Desta vez o COI bateu o pé, e suspendeu a Indo-
nésia. O país foi perdoado um ano depois, na época da primeira Olimpíada
Asiática em Tóquio. A pressão para discriminar Israel vinha dos países árabes do
Golfo, ansiosos por mostrar seu apoio aos palestinos.
Os atletas israelenses voltaram a disputar os Jogos Asiáticos em Bangkok,
em 1970, pela última vez. Os países do Golfo exercitaram seus músculos
políticos. Como o mundo árabe fracassou na tentativa militar de jogar os judeus
no mar, a opção foi criar um gueto esportivo. A expulsão de Israel do esporte
asiático se daria na'proporção direta do aumento da riqueza dos países petrolífe-
ros do Golfo. Os árabes orquestraram a campanha que deturpou a política
esportiva e o próprio esporte em toda a Ásia.
Fahd, como muitos outros filhos de famílias reais milionárias, distraía-se
com atividades militares e um apetite prodigioso pela atividade esportiva. Ele
praticou todos os esportes, até que sua barriga o empurrou para a administração.
Passou a colecionar as federações esportivas do Kuwait como um menino
coleciona selos ou figurinhas. Nos anos seguintes assumiu o controle dos or-
ganismos responsáveis pela esgrima, futebol, basquete, vôlei e handball. Mais do
que isso, tornou-se presidente do comité olímpico nacional do Kuwait, um cargo
privativo da família Al Sa-bah. Também à sua disposição estavam os
intermináveis recursos dos campos petrolíferos.
Essa fortuna, que poderia ter sido investida na melhoria das condições
sociais, econômicas e esportivas dos países árabes mais pobres, era usada no
continente asiático para a compra de votos. Fahd, o ex-atleta, logo descobriu que
as glórias da cartolagem eram maiores. O pequeno Kuwait causaria um tremendo
impacto na política esportiva mundial.
A federação asiática vivia em luta permanente para financiar e organizar os
jogos regionais, até que uma gigantesca onda de dinheiro do golfo Pérsico
inundou todo o continente, até o mar da China. Ela varreu os princípios da maioria
dos dirigentes esportivos da Ásia. Estes receberam tudo o que sonhavam: recur-
sos para eventos, novas instalações, conferências, passagens aéreas e, claro,
recompensas pessoais. Havia uma única condição. Os países árabes exigiam que
a Federação Asiática fosse futuramente abolida. Seria substituída por uma
organização deles. A Ásia concordou.
As bases foram lançadas nos Jogos Asiáticos de 1974 em Teerã. Fahd e
seus aliados da Arábia Saudita ofereceram-se para pagar os jogos seguintes, na
Tailândia. Isso garantiu a influência necessária para dar o passo seguinte em seu
plano.
Na véspera dos Jogos de Bangkok em 1978, os organizadores anunciaram
a participação de Israel. Mas prepararam uma armadilha. Quando os israelenses
se inteiraram dos detalhes, descobriram que só poderiam mandar dirigentes para
as cerimônias de abertura e encerramento. Nenhum atleta seria aceito. A IAAF
ofendeu-se com esta demonstração ostensiva de anti-semitismo, e se recusou a
reconhecer os eventos de atletismo, impondo uma suspensão de três meses aos
atletas que participassem.
O Sr. Sathiavan Dhillon, secretário-geral do comité olímpico nacional de
Cingapura, e figura chave na política esportiva asiática, concordou em dar uma
entrevista. Soubemos que ele lutara contra o controle árabe até onde foi possível.
Mas, na entrevista, ele declarou: "O xeque Fahd é um grande líder do esporte,
além de meu amigo pessoal. Conhecemo-nos há alguns anos, em Bangkok,
quando reescrevíamos a constituição da Federação Asiática, para estudar um
modo de realizar os Jogos de 1978 em Bangkok sem criar problemas com a IAAF
por causa da exclusão de Israel.
"Depois de muitos debates e discussões, resolvemos que Israel ficaria de
fora, apesar das represálias da IAAF contra a Ásia. Nossa posição foi
comunicada, e a IAAF adotou algumas medidas — muito superficiais."
Tendo desafiado a IAAF, Fahd levou mais quatro anos para montar sua
nova organização. Seus esforços foram lubrificados com uma nova onda de
recursos. No final de 1980, num período de doze meses, o Kuwait ofereceu-se
para sediar e bancar os Jogos Asiáticos futuros, além de prometer US$ 15
milhões para os jogos seguintes, previstos para Deli em 1982. Seus aliados nos
Emirados Árabes ajudaram, prometendo financiar os Jogos Mediterrâneos em
Casablanca, em 1983.
Fahd tinha outro motivo para tanta generosidade. Depois de descobrir
como era fácil controlar a Ásia, ele ambicionava entrar para o Clube. Não
encontrou maiores dificuldades em comprar sua participação no COI.
O Kuwait capitalista e conservador procurou os inimigos de Israel. Acordos
esportivos foram fechados com a Hungria, china e URSS. Mais dinheiro do
petróleo pressionou os pontos sensíveis, e em março de 1981 o novo presidente
Samaranch viajou pêlos países árabes do Golfo. Fahd o acompanhou,
argumentando que os países árabes mereciam mais um representante no COI, e
quem mais capacitado do que ele mesmo?
Durante o verão de 1981 Fahd foi apontado como provável membro do
COI, e eleito na sessão de setembro, em Baden-Baden. Os israelenses, mantidos
fora do COI para evitar constrangimentos para os ricos árabes, observou tudo
impotente.
Apenas um país tentou reagir quando as muralhas do gueto foram
erguidas. Em um congresso especial da IAAF em Roma, no mês de agosto de
1981, quando Nebiolo assumiu o poder, o Japão apoiou o pedido israelense de
abandonar a área asiática. Israel queria passar para a Europa. Ali, sem
discriminações, poderia comparecer a reuniões internacionais. A proposta
japonesa foi derrotada. Para completar, a IAAF reconheceu a Palestina.
O cenário estava montado para o sucesso dos Jogos Asiáticos em Deli, no
final de 1982, a ser coroado com a criação da organização olímpica pessoal de
Fahd. Ele controlava os votos do Golfo Árabe, e contava com o apoio de
Bangladesh, índia, Paquistão e Nepal. Com o reforço da China, Coréia do Norte e
Mongólia, que o acompanhariam por causa da campanha contra Israel, garantiria
a maioria necessária. Israel tinha amigos na Ásia, mas eles não tiveram coragem
de se manifestar.
Os organizadores indianos deram novas desculpas para a exclusão de
Israel. Insistiram que não seriam capazes de providenciar a segurança
indispensável. Como os israelenses sempre viajam com uma equipe de
segurança armada, o argumento tinha pouco peso.
Fahd e os árabes não faziam segredo de seus planos, e em maio de 1982
a diretoria executiva do COI autorizou Samaranch a discutir com os indianos a
exclusão de Israel. Era tarde demais. O dinheiro já fora pago. Dois meses antes
dos Jogos de Deli os israelenses pediram a Samaranch, diretamente, em uma
reunião das federações internacionais em Mônaco, que tentasse de novo.
Samaranch inventou uma de suas soluções "diplomáticas".
Um mês antes da abertura dos Jogos de Deli os organizadores avisaram
que pretendiam retirar o pedido de patrocínio olímpico. Assim, não haveria a visita
tradicional do presidente do COI, marcando a aprovação do evento. Entretanto,
haveria um visitante chamado Juan António Samaranch, em caráter particular,
que ficaria apenas "um período bem curto."
Durante esta visita "particular e curta", Samaranch deu um jeito de se
reunir com o presidente Singh, a primeira-ministra Indira Ghandi e o ministro de
esportes da índia. Deu entrevista coletiva e visitou diversas instalações
esportivas. Recebeu a chave da vila dos atletas, passeou com os organizadores
dos jogos e com os dois membros indianos do COI, além de comparecer a um
jantar para 500 pessoas. A visita recebeu cobertura completa na Review, sem
referências ao escandaloso desprezo pela Carta Olímpica que rolava nos
bastidores. Apesar do COI ter retirado o apoio aos Jogos, dez membros do COI
compareceram ao evento, liderados pelo presidente do atletismo, Primo Nebiolo.
Terminados os Jogos, a política transferiu-se para os bastidores. A
Federação Asiática foi enterrada, dando lugar a um novo órgão, grandiosamente
batizado de Conselho Olímpico da Ásia (OCA). Israel, fora de Deli, não pôde pedir
admissão, ao contrário de todos os países fronteiriços. O orçamento da nova
organização foi estabelecido: US$ l milhão por ano, apesar do OCA, como ficou
conhecido, não ter fundos. O xeque Fahd ofereceu-se para conseguir o dinheiro,
e como era de se esperar, elegeu-se presidente.
O Sr. Dhillon, de Cingapura, declarou: "O OCA foi criado basicamente para
atingir Israel, como um instrumento político. Se alguém estudar a história de Fahd,
perceberá que ele sempre abraçou a causa palestina."
Outro alto dirigente esportivo asiático, que preferiu não ter seu nome
publicado, declarou: "A destruição da Federação Asiática foi planejada pêlos
países árabes produtores de petróleo. Infelizmente, nada pudemos fazer, e Israel
acabou fora do OCA."
Ele também contou como Fahd conquistou votos decisivos: "Os árabes não
se sentam, formam um grupo nas reuniões, e tentam evitar a votação secreta.
Espalham-se pelo salão, e ficam por perto das pessoas que subornaram. Quando
chega a hora de votar, pressionam as pessoas, e os braços se erguem. Em
determinada ocasião um deles ergueu as duas mãos, e na hora da contagem des-
cobrimos mais votos do que delegados.
"Comentava-se que eles pagaram suborno. Era um segredo de araque. O
dinheiro do petróleo é irresistível para os países mais pobres."
O Sr. Dhillon, de Cingapura, não tem tanta certeza do suborno. Ele
declarou: "Não há provas. Apesar de ter ouvido histórias, não posso afirmar que
isso ocorreu. Quem recebe suborno não comenta o assunto. Alguns acreditam
que houve compra de votos, mas pode-se ver a questão por outro ângulo. O
xeque Fahd ajudou financeiramente os países mais pobres, pagando passagens
aéreas e diárias aos delegados. Em outras palavras, foi um auxílio, não um
suborno. Prefiro que digam que ele possibilitou aos países mais pobres o envio de
representantes, o que não pode ser chamado de suborno."
A única coisa que poderia ter impedido Fahd de controlar o OCA foi seu
surpreendente comportamento na Copa do Mundo da Espanha, quatro meses
antes. Ele gastou cerca de US$ 4 milhões para preparar seu time de futebol para
a maior Copa do Mundo de todos os tempos, e queria garantir a classificação.
O sucesso do Kuwait nas eliminatórias regionais foi, pelo menos numa
ocasião, controverso. Pertenciam ao grupo Ásia-Oceânia. e o Kuwait jogou quase
todas as partidas em casa. Por coincidência, Fahd recentemente se elegera
tesoureiro da Confederação Asiática de Futebol. Em casa, o Kuwait derrotou a
Tailândia, Malásia e Coréia do Sul.
Depois o time viajou para Auckland, na Nova Zelândia, país que não quis
abrir mão do mando de campo, e recusou o oferecimento de uma viagem com
todas as despesas pagas para jogar no Kuwait. As estatísticas do jogo, com 33
faltas e 2 pênaltis para o Kuwait e 10 faltas para a Nova Zelândia enfureceu a
torcida local, que atirou latas de cerveja contra os dirigentes. O Kuwait ganhou de
2 a 1.
Na Espanha, o Kuwait jogou contra a Tchecoslováquia e depois contra a
França. O jogo terminou em desastre. A França marcou o quarto gol, mas o
Kuwait reclamou, dizendo que um apito na torcida foi confundido com o do árbitro
e levou os jogadores a deixar a bola entrar.
Fahd entrou em campo para protestar, e foi vaiado. Mais tarde um
comentarista disse: "Para dizer a verdade, o xeque só trata as pessoas como lixo
quando alguém discorda dele." O Kuwait recebeu uma multa de 7 mil libras, e
Fahd uma censura por "conduta antiesportiva". A nota triste ficou por conta dos
jogadores, que conseguiram um progresso admirável para um país tão pequeno,
chegando às quartas-de-final na Olimpíada de Moscou.
A versão de Fahd para o jogo na Espanha saiu em uma nova revista,
chamada Continental Sports, lançada em Paris no final de 1982. Editada por um
refugiado etíope, Fekrou Kidane, teria sido financiada por Fahd. Dois meses
depois do vexame de Fahd na Espanha, o editor escreveu: "a imprensa, que se
alimenta de sensacionalismo, aproveitou rancorosamente a oportunidade para se
vingar dos aumentos no preço do petróleo. Ele foi criticado porque era irmão do
emir do Kuwait." Segundo Kidane, tudo não passava de "racismo disfarçado".
Kidane também disse que os políticos, na Copa da Espanha, receberam lugares
melhores do que os membros do COI e da FIFA, o que soou suspeito.

Parecia despeito de Fahd.


No final de 1982, o jornal alemão Welt am Sonntag publicou uma
reportagem sobre Rudi Gutendorf, ex-membro da Bundes-liga. Ele acusou Fahd
de tentar manipular o resultado do jogo entre o Kuwait e o Nepal, no ano anterior.
Gutendorf, na época consultor da Federação de Futebol do Nepal, afirmou que
dois emissários do xeque ofereceram a ele um emprego de US$ 240 mil por ano,
como técnico da Associação de Futebol do Kuwait, se ele desse um jeito do time
nepalês perder de 8 a 0.
O Kuwait precisava ganhar de oito a zero para se classificar para a final
asiática do Campeonato Mundial de juniores. Aos 27 minutos do segundo tempo o
Kuwait ganhava de quatro a zero. Aí começou uma briga, segundo Gutendorf
provocada por um jogador do Kuwait. O jogo foi suspenso,
Os escândalos no futebol só serviram para melhorar a reputação de Fahd
no Kuwait, por enfrentar as grandes potências. Durante os três anos seguintes,
ele embarcou em aventuras cada vez mais caras, todas pagas com recursos do
estado. Mesmo sem pagar imposto de renda, inexistente no Kuwait, muitos
cidadãos importantes ficaram preocupados com o total gasto por Fahd no
financiamento de seu império asiático.
A primeira decisão era a localização da sede do OCA. O Japão e outros
países do Extremo Oriente não gostaram da sugestão de Fahd de pôr o OCA no
Kuwait, no limite da região. Os votos foram comprados e o OCA ganhou sua sede
na capital do Kuwait.
Mas Fahd ainda enfrentava problemas relativos ao futuro do OCA. A
organização não teria credibilidade, a não ser que recebesse o reconhecimento
formal do COI. O tema constava da agenda da sessão do COI em 1983, a ser
realizada em Deli, por sorte. Mais uma vez, os votos precisariam ser garantidos.
Fahd teve uma idéia nova.
O aparentemente infinito tesouro do Kuwait foi aberto, e Fahd anunciou
que o país sediaria os primeiros jogos Afro-Asiáticos em 1985. Seria uma boa
oportunidade para hospedar luxuosamente os dirigentes esportivos dos dois
blocos continentais, e também os membros do COI que rodam o mundo
constantemente, recebendo presentes, passagens aéreas de primeira classe e
acomodações em hotéis cinco estrelas.
O próprio Samaranch foi persuadido a parar no Kuwait, a caminho de Deli,
e participar de uma reunião com o OCA e o Comité Olímpico Africano. Tendo seu
novo membro árabe fazendo lobby vigorosamente, nos corredores, e graças ao
silêncio dos amigos de Israel, a sessão do COI em Deli resultou na bênção oficial
ao OCA, uma organização cuja única razão de existir era contradizer um dos
pontos fundamentais da Carta Olímpica. As necessidades dos eleitores asiáticos
não foram esquecidas. Em outubro de 1983, o Campeonato Atlético Asiático
realizou-se no Kuwait.
Para sua surpresa, Fahd descobriu que estava à beira da falência pessoal.
Como muitos outros especuladores irresponsáveis do Kuwait, ele investiu na
bolsa informal do país, o Suq al-Manakh. Os preços do petróleo subiram, bem
como ações e outros papéis. Presumindo que os preços continuariam em alta, os
especuladores kuwaitianos soltaram cheques pré-datados, pretendendo realizar
seus lucros antes que os cheques caíssem nas contas.
A única coisa a cair foram as ações, e Fahd ficou devendo US$ l bilhão.
Felizmente encontrava-se em boa companhia. Muitos membros da família Al-
Sabah arriscaram e perderam. O prejuízo total foi estimado em US$ 90 bilhões. O
governo — na verdade a família Al-Sabah — aceitou prontamente aprovar um
pacote de socorro aos maiores perdedores. A oposição política, composta
principalmente de famílias de negociantes que enriqueceram através da
especulação financeira, não gostou.
Fahd tinha seu próprio plano para recuperar a fortuna investida. Inabalado
com a perda de US$ l bilhão, embarcou numa orgia de gastos que levou sua
família à beira da ruína política. Uma fonte do Kuwait declarou: "Ele pedia dinheiro
do Estado para projetos esportivos, deliberadamente aumentando os custos para
se apropriar das sobras."
"Desta forma, matava dois coelhos de uma só vez. Aumentava seu
prestígio pessoal, pelas conquistas na política esportiva, e enriquecia. Ele alterou
orçamentos, roubando milhões de dólares. Sem dúvida o governo sabia de tudo.
Ele comentava os subornos com amigos, pois afinal de contas os dirigentes — o
emir e o primeiro-ministro — eram o irmão e o primo!
"Eles toleravam os subornos distribuídos pela Ásia, pois representavam
prestígio para o Kuwait. E enquanto sua vaidade era satisfeita, ficaram quietos.
Mas Fahd era um homem volátil, e dava escândalos quando contrariado.
"Ele sabia subornar as pessoas, fosse no Kuwait ou no exterior. Checava o
sujeito pessoalmente, para descobrir se o mais indicado seria doar instalações
capazes de angariar mais prestígio para o dirigente esportivo em seu país, ou
comprar o voto, com um suborno direto."
O modo despreocupado com que Fahd se servia do dinheiro do estado
enfureceu a oposição. Eles se ressentiam porque Fahd não trabalhava, vivendo
de roubar os lucros do petróleo, que deveriam beneficiar o país como um todo.
O primeiro ataque ocorreu em 1983, feito por Ahmed Al-Saadom, porta-voz
do parlamento do Kuwait. Naquela época, a coleção de federações esportivas
nacionais de Fahd incluía o boxe, handball e futebol.
Al-Saadom propôs uma lei proibindo qualquer pessoas de ser presidente
de mais de uma federação. Isso equivalia a uma declaração de guerra aos Al-
Sabahs pela oposição. A imprensa local, naquela época livre, publicou histórias
criticando o xeque temperamental. Ele era conhecido como Fahd, o louco, e
comentava-se que teria manipulado resultados de jogos de futebol no Kuwait. A
batalha prosseguiu durante as eleições de 1985. Os Al-Sabah mantiveram o
controle, mas não conseguiram calar seus críticos.
O novo parlamento iniciou uma investigação sobre as questões financeiras
de Fahd, mas ele se recusou a dar explicações. Outros membros da família real
entraram na lista de suspeitos de desvio de verbas, e em 1986 o emir suspendeu
a constituição, fechou o parlamento, ordenou rigorosa censura à imprensa e pas-
sou a governar por decreto. Desde então não houve mais eleições, e mais
nenhuma pergunta constrangedora do parlamento. Nem mesmo as diwanias,
grupos tradicionais de discussão, foram poupadas, sendo desbaratadas pela
polícia até a época da invasão iraquiana.
Com a abolição da democracia no país, o esporte tornou-se ainda mais
politizado. Há três famílias importantes no Kuwait, e a família real Al-Sabah vive
em conflito com as outras duas. Todas as quintas-feiras, dia tradicional para os
jogos de futebol no Kuwait, ocorria uma batalha política no estádio Al-Arabi,
localizado na frente do consulado britânico. Os Al-Sabahs controlavam o clube Al-
Arabi e outros dois. A oposição financiava três times, e quando clubes dos dois
lados se enfrentavam, surgia a chance de infligir uma derrota metafórica ao
governo.
Os escândalos da família Al-Sabah foram largamente noticiados na
imprensa estrangeira, mas ignorados pela IOC Review. Há anos a revista
publicava uma série irregular, chamada ''Figuras Influentes do Esporte". Fahd foi
entrevistado, e proclamou: "Sou um voluntário, trabalho vinte e quatro horas por
dia, sete dias por semana, quatro semanas por mês, doze meses por ano como
voluntário do esporte. Graças a Deus não preciso de um emprego." O COI
contribuiu para a manutenção do mito.
Depois de abolir a democracia em casa, Fahd saiu em campanha para
repetir o feito no exterior. Para manter o apoio dos países em desenvolvimento
nos fóruns esportivos internacionais, ele precisava ser considerado um
representante de seus interesses.
Logo depois a Continental Sports, que com demasiada freqüência refletia
as opiniões de Fahd, estava atacando a IAAF e seu sistema de votação, que
privilegiava as nações mais antigas e tradicionais do esporte, donas de mais
votos. Primo Nebiolo foi acusado de "presidir uma federação onde reina a
demagogia e o cinismo". Isso, claro, era a pura verdade, mas Fahd demonstrava
uma lamentável ignorância do mundo real da política esportiva. Longe de ignorar
os países pequenos, Nebiolo buscava desesperadamente chegar ao sistema de
um voto por país, de forma a poder diluir o poder dos países mais importantes,
alguns dos quais se opunham intensamente a sua gestão.
Para agradar o Terceiro Mundo, Fahd começou uma cruzada hipócrita para
manter a "pureza das Olimpíadas". Enviou cartas a diversas organizações,
afirmando que a admissão de atletas profissionais levaria à "total destruição dos
Jogos". Convidou os dirigentes esportivos a "cerrar fileiras conosco para deter
esta tendência devastadora". Era uma boa idéia: muitos países pobres, que
enfrentavam sérias dificuldades para desenvolver o esporte, temiam que o novo
profissionalismo estabelecesse padrões impossíveis de alcançar, para eles. Não
se fazia menção às fortunas pagas aos jogadores do Kuwait quando estes
ganhavam um jogo. A motivação de Fahd nada tinha a ver com o altruísmo. Sua
ambição era conseguir uma vaga na diretoria executiva do COI, nas eleições
marcadas para a sessão de Istambul em 1987. O apoio africano o ajudou, e Fahd
recebeu 28 votos, mas acabou derrotado por Chiharu Igaya, do Japão. Vale
observar que numa votação secreta, sem pressões, a maioria dos votos asiáticos
tenha ido para Igaya.
No ano seguinte haveria as Olimpíadas de Seul. Agora a coisa era séria, e
mesmo realizadas na Ásia, haveria pouco espaço para Fahd. Sua única
contribuição marcante foi um protesto a Samaranch quando a capital de Israel
apareceu no quadro de Seul como sendo Jerusalém. Os israelenses retrucaram
dizendo que esta era a capital há 4 mil anos.
Conforme sua vida se aproximava do final, ficou claro que Fahd conseguira
pouca coisa fora do Kuwait. Seus "êxitos" no cenário internacional eram
marginais, e quando se estudava o caso a fundo, os progressos no esporte
asiático aconteceram apesar dos esforços de Fahd, e não por causa deles.
Seu último capricho extravagante foi a realização dos Jogos da Paz e da
Amizade, no Kuwait, em novembro de 1989. O evento teve a organização da
Conferência Esportiva Islâmica, presidida pelo emir do Kuwait. O Iraque
compareceu, e no futebol empatou com o Ira sem gols, o que foi um progresso,
depois de oito anos de guerra. Samaranch compareceu, acompanhado de
Havelange e vários membros do COI. Eles elogiaram o "espírito de disputa leal e
respeito mútuo", e depois ouviram atentos quando Fahd recitou um poema escrito
para a ocasião. O Kuwait fez questão de mostrar aos vizinhos árabes quanto
dinheiro poderia ser desperdiçado no esporte, providenciando hotéis cinco
estrelas para os competidores e limusines para jornalistas. A reportagem da
Review levou a assinatura de Fekrou Kidane, e afirmava, sem surpresa, que o
evento alcançou "um sucesso estrondoso". Ele também revelou que se formara
um comité para os próximos jogos. Por aclamação, escolheram Fahd para presidi-
lo.
O presidente do COI, Samaranch, fez outra viagem ao Oriente Médio, em
1990. Esteve pela última vez com o xeque Fahd em Ama, e viajou com ele pela
região. Acabaram no Kuwait, onde Fahd organizara uma conferência para discutir
"o apartheid e o espírito olímpico". Um assunto estranho para se debater,
levando-se em conta os milhões gastos por Fahd para discriminar Israel, aliás
com êxito. Mas ajudou a manter o apoio africano.
Dois meses depois Fahd concentrou-se na FIFA. Em uma reunião da
Confederação Asiática de Futebol, ele foi nomeado vice-residente regional na
executiva da FIFA. Um analista descreveu a eleição como "muito peculiar", e ele
ganhou por dezessete votos a dezesseis. A campanha de Fahd foi descrita como
"veemente". Dentro da mais pura tradição olímpica, ele fretou um Boeing para
levar os eleitores à reunião de Bali.
Foi o último triunfo esportivo de Fahd. Na noite de 2 de agosto de 1990 as
tropas de Saddam Husseim entraram na cidade do Kuwait. Há várias versões
sobre sua morte, e a verdade pode não surgir nunca. A versão oficial divulgada
pela família Al-Sabah conta que Fahd morreu heroicamente, lutando contra o
invasor.
Mas a família não poderia saber com certeza, todos já haviam rugido.
A versão mais aceita diz que a família não conseguiu encontrá-lo na hora
da fuga, porque ele passara a noite em um estabelecimento conhecido localmente
como "o bordel". Aparentemente ele saiu na rua de madrugada, viu as colunas de
tanques e foi ao palácio real de Dasman para descobrir o que estava aconte-
cendo. Discutiu com as tropas iraquianas e um franco-atirador o acertou na nuca.
O que aconteceria com o OCA depois da morte de seu líder e
patrocinador? Os delegados presentes ao congresso de Pequim, dois meses
depois, ficaram atônitos quando a delegação árabe chegou com o jovem filho de
Fahd, Ahmad, à frente, exigindo que substituísse o pai!
Enquanto isso, no Kuwait, a resistência local lutava corajosamente contra
os invasores. A família real se instalara em segurança na localidade saudita' de
Taif. Ignorando as prioridades da guerra, Ahmad, aos 25 anos, sem nenhuma
experiência em administração esportiva, conseguiu se "eleger" presidente do Co-
mité Olímpico do Kuwait, ao se cansar do exílio na cultura restrita da Arábia
Saudita, ele se mudou para Londres, e passou a planejar a maneira de herdar os
cargos do pai.
Os representantes asiáticos no OCA ficaram furiosos. Se tivessem
conseguido votar imediatamente para a presidência, o poder árabe poderia ter
sido quebrado. "Não somos uma monarquia", disse um delegado. As tradicionais
táticas persuasivas dos dirigentes árabes foram acionadas, numa tentativa de
adiar a eleição até que tivessem certeza da vitória. Ahmad declarou aos jor-
nalistas: "Eu não quero que a votação se realize em Pequim, para não ameaçar a
unidade do esporte asiático, embora eu tenha uma maioria de 24 votos a meu
favor." Ele tinha razão. As medidas costumeiras foram tomadas, e finalmente um
congresso do OCA aprovou o adiamento da eleição para a reunião seguinte, dali
a seis meses, na Arábia Saudita. Mas o controle anterior perdia força, e durante o
ano de 1991 novas reuniões foram marcadas e desmarcadas, porque o grupo de
Fahd ainda não garantira a vitória.
Pela primeira vez vários delegados asiáticos deram entrevistas. Um
presidente do NOC disse sem rodeios: "Eles nos compraram e nos enganaram".
Enquanto isso, o OCA mudou para seu novo endereço. A revista do organismo,
Horizons, cheia de fotografias do falecido Fahd e seu ambicioso filho, foi
publicada na sonolenta estância balneária inglesa de Eastbourne, onde o se-
cretário pessoal de Fahd, Abdul Muttaleb Ahmad se refugiara.
O jovem xeque Ahmad compareceu à sessão do COI em Birmingham, em
junho de 1991, sugerindo claramente que seria melhor para o COI nomeá-lo para
ocupar o lugar do pai. O presidente Samaranch o saudou. Numerosos membros
do COI apareceram na frente das câmeras da televisão do Kuwait para dizer que
lamentavam a morte de Fahd, uma perda para o movimento olímpico.
Em agosto de 1991 David Miller, do Times de Londres, enviou reportagem
de Seul, dizendo que haveria um racha no OCA, entre os grupos asiáticos e
árabes. Ele se referiu à atitude "desprendida e altruísta de Fahd, que manteve a
unidade do OCA", e depois escreveu que os sul-coreanos, como muitos países
asiáticos do Pacífico, estavam cansados da hegemonia árabe. Eles reclamavam
que "as reuniões eram adiadas, as pautas nunca definidas, as contas do Fundo
de Solidariedade perdidas, e as comprovações de despesas jamais apareciam."
Estas críticas incomodaram os árabes, mas não detiveram sua obstinação
em arranjar um jeito de impor o jovem xeque Ahmad ao OCA. Como as regras do
OCA proibiam que qualquer pessoa com menos de 35 anos assumisse a
presidência, enfrentavam um problema. Isso parecia tirar o jovem Ahmad de
cena. Após uma cuidadosa leitura da constituição do OCA, descobriram uma
cláusula estabelecendo que tal disposição poderia ser revogada por maioria
simples. Ou seja, bastava reunir votos suficientes.
No outono passado, os adiamentos prosseguiram, enquanto tentavam
reunir votos para ajudar o filho de Fahd. Um dirigente do sudeste da Ásia
declarou: "O OCA seguia à deriva, sem um comando central. Creio que o OCA
deve voltar à sua antiga estrutura de Federação Asiática. A concentração
excessiva do poder nas mãos do presidente causou muitos danos.
"Seria lamentável se os países árabes impusessem o filho, só pelo amor ao
poder. Esta é a razão para uma ação conjunta dos países do leste e do sudeste
da Ásia. Devemos falar em conjunto, e lutar pelo desenvolvimento do OCA.
Precisamos impedir as ir-regularidades e outro atos errados."
O diplomático Sr. Dhillon, de Singapura, declarou: "Acho que perdemos um
grande homem, sinto muito sua falta, e no momento o organismo debate quem
deve assumir a liderança. Por isso há discussões, várias pessoas desejam
modificar o esquema de liderança. Não querem que um dirigente passe tempo
demais na presidência — talvez um mandato máximo de oito anos."
Numa tentativa de impedir um golpe do xeque Ahmad e seus milhões de
petrodólares, os comitês olímpicos nacionais do Leste da Ásia — China, Japão,
Coréia, Mongólia, Taiwan e Malásia — reuniram-se em Tóquio no dia 15 de
setembro de 1991, e discutiram o problema durante nove horas. Todos assinaram
uma resolução criticando a maneira como o xeque Fahd dirigia o OCA, que
tratava como um brinquedo pessoal. O documento afirmava: "O OCA está em
desordem. Muitas irregularidades e anomalias surgiram. Os principais problemas
são a concentração excessiva de poderes na presidência, irregularidades
administrativas no programa de Solidariedade Olímpica e descaso na organização
de pautas e implementação das decisões da diretoria e da Assembléia Geral."
Eles exigiam que uma reunião extraordinária do OCA, marcada para dali a
uma semana, em Deli, fosse adiada até que a organização preparasse a
assembléia geral marcada para dali a três meses, no Japão. Receberam o apoio
tardio de Samaranch, que enviou um telegrama sugerindo que o OCA ouvisse as
nações da Ásia.
Foram ignorados. O Kuwait comprara votos em número suficiente, e
ansiava para elevar o jovem xeque ao trono. Uma semana depois, no sábado, 21
de setembro de 1991, os delegados do OCA reunidos em Deli elegeram o xeque
Ahmad para a presidência, por unanimidade.
Man Lip Choy, secretário-geral do comité olímpico da Coréia, ainda
demonstrava raiva quando deu uma entrevista, poucos dias depois. A maioria dos
dirigentes esportivos asiáticos com quem conversamos na Ásia pediam que não
fossem identificados antes de revelar seus sentimentos. Não foi o caso do
corajoso Sr. Choy. Ele fez questão que citássemos seu nome.
"Por nove anos o xeque Fahd não fez nada, e mesmo assim havia um
sentimento forte entre os países do leste da Ásia, como China, Coréia e Japão,
impedindo a manifestação das opiniões, porque tinham medo dos árabes.
"Muitos acreditavam que era hora de mudar a liderança, porque os países
árabes são pequenos, não devemos ignorá-los, mas pouco praticam esporte, e
não permitem que as mulheres o pratiquem. Se tivessem feito algo para aprimorar
o esporte na Ásia tudo bem, mas não fizeram nada.
"Temos dezoito ou vinte países no sudeste da Ásia. Nos Jogos Asiáticos,
poucos países árabes participam — mandam por volta de cinco pessoas. Há
também problemas com o fundo de solidariedade do COI. Precisamos montar um
projeto, mas eles simplesmente não fazem nada. Quanto ao dinheiro, não
prestam contas de nada ao OCA.
"Os países do oeste da Ásia foram praticamente todos subornados. Eles
pagam aos delegados — entre US$ 25 mil e US$ 50 mil, chegando às vezes a
US$ 100 mil. A cada eleição eles fazem os pagamentos e esperam que as mãos
dóceis se ergam."
O Sr. Choy forneceu uma lista de dirigentes olímpicos que, segundo ele,
recebiam propinas. Depois nos contou detalhes estranhos da reunião em Deli,
onde o xeque Ahmad se elegeu. Inevitavelmente, mesmo com mais da metade
dos delegados comprados, o problema da idade de Ahmad foi levantado. Como
fazer?, perguntaram alguns. Ele é dez anos mais moço do que o mínimo exigido
pelas regras, 35 anos. Este problema foi solucionado pelo Sr. C. L. Mehta, há
muito secretário-geral do OCA, além de amigo íntimo do falecido xeque Fahd.
O Sr. Choy explicou: "O xeque Ahmad não falou nada. O secretário-geral
Mehta disse: 'Ele pode ter 32, ou pode ter 35.' Foi tudo. Mas o pai tinha 45 anos
quando morreu. Creio que Mehta quis dizer que não havia maneira de estabelecer
a idade do filho.
"Eu disse ao xeque Ahmad na índia, pouco antes da eleição, sem rodeios:
Entenda, meu amigo, conheci seu pai, estive por duas vezes em sua casa.
Gostava de seu pai no início, mas depois ele não realizou nada. Agora você tenta
desrespeitar a constituição, mas não estamos numa monarquia. Tem um longo
caminho pela frente. Prove que é competente, e dentro de quatro anos, se provar
sua capacidade, eu o apoiarei. Ahmad não respondeu.
"Vamos tomar providencias, mas creio que os japoneses estão um pouco
temerosos, os Jogos Asiáticos se aproximam. Os chineses esperam sediar as
Olimpíadas no ano 2000, de forma que não se comprometerão. Quanto a nós,
queremos justiça.
"Se vocês não escutarem, e a predomínio árabe injustificado continuar,
creio que surgirá um sentimento forte contra a nossa participação no OCA. Não
passa de uma monarquia, agora, apenas isso.
"Nunca mais comparecerei a uma reunião do OCA. Avisei minha equipe de
que isso não tem nada a ver com o movimento olímpico. Pessoalmente, prefiro
ficar de fora. Não vejo futuro neste tipo de ambiente. Só a política suja do jogo do
poder."
Perguntamos ao Sr. Choy como o COI via a crise no OCA. Ele respondeu:
"Não sei. Samaranch deveria saber de tudo, pois Zen-liang He, da China, esteve
em Tóquio conosco, e depois seguiu para a reunião da diretoria executiva do COI
em Berlim. Ele deve ter feito um relatório a Samaranch. Ele tornou o xeque Fahd
membro do COI, e a responsabilidade pelo problema é dele. Creio que o COI
deveria ameaçar não reconhecer o OCA agora. Se Samaranch fizesse isso,
ajudaria muito."
Outro importante dirigente olímpico do oeste da Ásia disse: "O presidente
Samaranch não apóia Ahmad, mas quer nossa união. O COI pressionou para que
houvesse uma eleição pacífica, em harmonia.
"Ahmad não tem experiência na administração esportiva, mal domina o
inglês, não conhece esporte direito e lhe faltam muitas outras coisas. Não sabe
fazer nada, na verdade. Havia uma pequena chance de derrotar Ahmad, mas
agora o OCA tornou-se uma monarquia. Tal pai, tal filho."
Mas a herança do novo monarca já começa a se desfazer. Os países do
leste da Ásia — as nações mais importantes do OCA, do ponto de vista esportivo
— estão cansados. Em novembro de 1991 anunciaram a realização dos Primeiros
Jogos do Leste da Ásia, em Xangai ou Pequim, em 1993, repetidos a cada dois
anos. O comportamento do xeque Ahmad e seus partidários foi considerado tão
escabroso que países antagônicos como Taiwan e China, ou Coréia do Sul e do
Norte entraram na aliança para salvar o esporte na região. O império asiático de
Ahmad, sem China, Japão, Coréias, Taiwan e Hong Kong perde credibilidade. O
anúncio de um novo evento regional ocorreu simultaneamente com uma
reportagem da IOC Review informando que o xeque Ahmad fora "eleito por
unanimidade para a presidência do OCA."
O xeque Fahd não era um mau sujeito. Mas, rodeado de bajuladores e
atordoado pela riqueza, nunca teve a chance de compreender os valores
olímpicos. Ganhou prestígio em sua comunidade, tornando as coisas difíceis para
os israelenses. Mas não era um anti-semita violento. Uri Afek, do comité olímpico
israelense, nos contou: "O xeque Fahd se dirigia a nossos representantes com
toda a cortesia, nas reuniões. Mesmo assim, não resta dúvida de que fez todas as
tentativas para eliminar Israel para sempre de todas as atividades na Ásia,"
Fahd foi vítima de sua família corrupta, que aboliu a democracia em seu
próprio país para não prestar contas de gastos. Também foi vítima do COI, que se
curvou a seu poder e nunca teve coragem de afirmar que o poder deles era maior,
e dotado de estatura moral.
A Carta Olímpica proclama que o COI "combate qualquer forma de
discriminação que interfira no Movimento Olímpico", e que se "dedica a garantir
que prevaleça o espírito da disputa justa". Samaranch e os membros do COI
ignoraram suas próprias regras. Difícil não acreditar que tiveram dificuldade em
abrir mão dos benefícios distribuídos pelo OCA de Fahd, em caráter privado ou
público.
O COI deveria recusar o reconhecimento do OCA racista de Fahd, e dar
aos países membros a escolha de parar de utilizar o esporte como arma política
contra outros países ou ficar fora do movimento olímpico.
Não surpreende muito que o COI, dirigido por um homem que tolerou a
discriminação contra Israel nos Jogos Mediterrâneos, estivesse preparado para
tolerar o OCA, cuja razão para existir era excluir Israel do esporte mundial.
Quando o COI reconheceu o OCA em 1983, deram um aviso ao mundo: Os
princípios olímpicos podem ser abandonados quando o candidato é
multibilionário.
11
AS PEDRAS NA BOTA
Cada Olimpíada tem seu slogan. Em 1988, para Seul, a escolha recaiu em
"Harmonia e Progresso", uma frase muito ao gosto do líder militar Chun Doo
Hwan. Quando Seul foi escolhida para sediar os Jogos, ele anunciou que o papel
das Olimpíadas seria o de "restaurar a ordem". Na Coréia isso significa gás
lacrimogêneo, cassetetes de borracha e tiros. Os militares aplicaram a receita
amplamente, nos sete anos dedicados à organização dos Jogos de Seul — o
evento que o presidente Samaranch diz "unir as pessoas em paz, para o benefício
da humanidade".
Os coreanos tinham um segundo slogan: "O mundo em Seul, e Seul no
mundo". Ou seja, "vamos aos negócios".
Cada Olimpíada tem seu mascote. Seul escolheu o tigre, um animal nobre
transformado em brinquedinho de pelúcia com um boné alpino incompreensível.
Cada Olimpíada possui um emblema oficial. Em Seul "modificou-se" um
tradicional símbolo coreano. O original representava a harmonia entre homem,
céu e terra, no universo. Os especialistas em relações públicas o refizeram, para
indicar "o progresso por intermédio da compreensão e da paz".
A paz é uma palavra popular nos discursos esportivos, embora não se
registre nenhuma guerra evitada, nem nações aproximadas permanentemente
pêlos Jogos. Quando a tocha olímpica se apagou, os Jogos de Seul foram
declarados um "tremendo sucesso", uma volta ao "ideal olímpico".
Os Jogos de Seul nasceram com o desejo da junta militar de melhorar sua
imagem de brutalidade e abrir novos mercados para a dinâmica economia do
país. Os coreanos tiveram a sorte de disputar a indicação numa época em que
poucas cidades queriam correr o risco de boicote ou falência. Ganharam graças a
erros dos rivais, votos conseguidos por Dassler e a capacidade política invejável
do Dr. Un Yong Kim. O Dr. Kim, um advogado empresarial quieto, troncudo, é
exatamente o que parece: alguém capaz de matar com as mãos nuas.
Atualmente o Dr. Kim, membro destacado do Clube, senta-se à direita de
Samaranch, como candidato a herdar o cargo de presidente em Lausanne.
O Dr. Kim não faz segredo de seu passado. Admitiu ter dirigido as forças
de segurança da presidência. Esta unidade protegia o presidente Park Chung
Hee, que governou o país com muita brutalidade e nenhuma democracia, durante
quase vinte anos. Foi assassinado em 1979, quando o Dr. Kim já trafegava em
esferas mais altas.
Mais tarde, a profissão do Dr. Kim recebeu o nome de ' 'diretor geral do
gabinete da Presidência". Ele estudou em três universidades norte-americanos, e
foi enviado a Washington, para as Nações Unidas e Londres, como diplomata. Em
1973 fundou a Federação Mundial de Taekwondo, uma arte marcial ensinada a
todos os escalões das forças armadas coreanas. Os recrutas aprendem a quebrar
tijolos com um golpe da mão.
O taekwondo recebe considerável apoio governamental na Coréia.
Especula-se que o Dr. Kim, com sua mescla de inteligência considerável e
destreza nas artes marciais, tenha sido e talvez ainda seja uma figura importante
na CIA da Coréia. Em uma reunião do COI em Atlanta, em 1991, os
organizadores ficaram surpresos quando o Dr. Kim ausentou-se para passar um
dia em Fort | Benning, para "ficar com os colegas" do exército norte-americano.
Conversamos com um ex-membro da CIA, Philip Liechty, que t; serviu na Coréia
no final dos anos 1960.' 'É preciso levar em conta l o tipo de gente recrutada para
a Força de Proteção Presidencial, a guarda pessoal do presidente Park", disse
ele. "Naquele tem-| pó havia muitas tentativas de assassinato do presidente,
cuidadosamente planejadas por grupos paramilitares, enviados da Coréia do
Norte, e por isso ele se cercou de assassinos experientes. O ponto importante é
que o homem encarregado de proteger o presidente num país assim precisa ter
provado sua disposição de matar sem hesitação, para proteger o chefe, e ser
capaz de fazer qual-H quer coisa que o presidente mandar.
"Eles insistiam na lealdade absoluta ao presidente, recrutavam | gente sem
idéias malucas de democracia ao estilo ocidental, capazes de dar a vida para
proteger o presidente, cegamente obedientes, crentes que juravam estar fazendo
o que era melhor para o país."
Liechty, agente da CIA, também nos abriu os olhos para o papel do
"esporte" chamado taekwondo. "Sei de muitas histórias, algumas de fontes
confiáveis, indicando que a CIA usou, durante o governo Park, as escolas de
taekwondo como base de operações e cobertura para agentes estrangeiros,
particularmente aqui nos Estados Unidos. Houve um período em que alguns se
envolveram, ao que consta, em seqüestros e remoção clandestina de estudantes
coreanos que se opunham ao regime de Park, levando-os de volta para a Coréia.
Há muitas evidências disso e operações similares, com envolvimento da KCIA, na
década de 1970."
Então, perguntamos, qual seria o papel do Dr. Kim no serviço secreto
coreano? "Nunca tive contato com Kim, mas presumo que estivesse ligado às
atividades da inteligência coreana", disse Liechty. "Como agente operacional, ou
pelo menos na condição de amigo do pessoal da KCIA, cooptado para operações
|; coreanas que procuravam exercer influência em áreas onde ele desempenhava
funções internacionais. Baseando meu raciocínio das informações sobre seu
passado na embaixada coreana nos Estados Unidos, em seus estudos nas
universidades americanas, em seu papel de fundador da federação de taekwondo
e em sua função na Força de Proteção Presidencial, eu diria que restam poucas
dúvidas quanto a seu envolvimento, no passado, com atividades coreanas de
inteligência no exterior. Esta é a forma mais branda que encontrei para definir
minha opinião sobre seu possível passado na inteligência."
O Dr. Kim tem credenciais únicas entre os organizadores de Seul. Foi o
único coreano que conseguiu brilhar no cenário esportivo mundial. Associou-se a
um empresário de Nova York, chamado Don Kalfin, dono da Sanshoe,
importadora de calçados coreanos. Kalfin estava envolvido com um grupo da Cali-
fórnia que pretendia realizar os Jogos Mundiais em 1981. Estes jogos seriam uma
reunião de todos os esportes não-olímpicos, algumas pessoas acreditavam que
Kalfin se considerava uma espécie de Dassler americano, misturando venda de
calçados com política esportiva. Com apoio de Kalfin, o Dr. Kim tornou-se
presidente dos Jogos Mundiais.
Os jogos enfrentavam problemas de financiamento, e os organizadores se
voltaram para Patrick Nally. "O dinheiro não estava entrando, e eu fui chamado
para ver se podia ajudar. Foi muito difícil, porque estava em cima da hora, mas
levantei mais de US$ 100 mil, e já deu para realizar os jogos.
"O Dr. Kim era um sujeito muito misterioso naquele tempo. Ninguém sabia
direito qual seu poder ou influência dentro da Coréia. Começamos a conversar
bastante. Creio que ele percebeu que Kalfin e a Sanshoe não eram os únicos que
poderiam apoiá-lo. Ansiava obviamente por um desempenho grandioso no mundo
do esporte internacional.
"Ele convidou um monte de dirigentes esportivos para ir a Seul nos anos
1970. Fazia parte do projeto de sediar as Olimpíadas. Eles precisavam convencer
a comunidade esportiva internacional de sua capacidade de realizar os Jogos.
Minha primeira visita foi surpreendente. Compareci ao ginásio do Dr. Kim em
Seul, onde seus convidados assistiam a demonstrações impressionantes. Nunca
tinha visto nada parecido em minha vida inteira de viagens.
"Fui conduzido ao camarote VIP e acomodado em uma luxuosa poltrona
bordada, para assistir os exercícios de taekwondo realizados por centenas de
adolescentes e jovens coreanos. Jamais vira tanto movimento de tantos corpos
em um só local, para uma platéia tão pequena."
Em 1980 o Dr. Kim deu dois passos decisivos em sua carreira. O COI
"reconheceu" o taekwondo, a mais agressiva e perigosa das artes marciais, e ele
foi eleito para o conselho da Assembléia Geral das Federações Esportivas
Internacionais — conhecida como GAISF. "Kim começou a conviver com os presi-
dentes internacionais mais importantes, e a perceber as possibilidades oferecidas
pelo sistema", disse Nally. "E por meu intermédio, conheceu Horst."
A cidade favorita para sediar as Olimpíadas de 1988 era Nagoya, no
Japão, apoiada pela poderosa fábrica de automóveis Toyota. Os japoneses já
haviam realizado os jogos de verão e inverno com sucesso. As chances de
Melbourne, Atenas e Seul não eram das melhores. A Coréia, considerada uma
ditadura militar instável, vivia em constante risco de guerra com os vizinhos
comunistas do norte.
Dassler avaliou os candidatos, levando em conta os benefícios para sua
pessoa. Melbourne e Atenas não conseguiram decolar, de modo que a disputa se
concentrou em Nagoya e Seul, e Dassler decidiu para quem deveriam ir os votos.
"Seul possuía atrativos muito maiores do que o Japão, por várias razões",
explicou Nally. "Primeiro, Horst não controlava os japoneses. Eles eram muito
independentes. Horst falou com eles sobre cooperação, mas a reunião não correu
muito bem. Arrogantes, tinham certeza de que ficariam com os Jogos.
"A Coréia era diferente. Dispostos a cooperar, também fabricavam os
equipamentos esportivos e calçados de quase todo mundo. Boa parte da
produção da Adidas saía de lá, e Dassler conhecia bem os coreanos.
Politicamente, tratava-se de um país importante para ele.
"A vitória de Seul sobre Nagoya foi uma vitória de Dassler, a seu modo de
ver, porque provou a ele que sua equipe política, com o coronel Hamouda,
Chowdhry e outros, poderia pesar na balança. Foi a primeira vez que Dassler
pôde provar que seu apoio fora decisivo para a escolha da sede das Olimpíadas."
Outro associado de Dassler nos contou: "Antes da decisão, Horst dizia a
nós que Nagoya ganharia. Mas no último momento ele passou para o lado de
Seul, e deve ter dito para as pessoas que os japoneses eram arrogantes e não
podia ficar do lado deles."
Quando a votação foi realizada em Baden-Baden, no final de 1981, teve
um resultado arrasador: Seul arrasou Nagoya, com 52 votos a 27.
Contudo, havia uma questão constrangedora, que precisava ser varrida
para debaixo do tapete. Os coreanos não apenas fabricavam roupas e sapatos
para todo mundo, por encomenda. Produziam quase o mesmo tanto ilegalmente.
Eram vigaristas. A indústria de falsificação na Coréia despejava no mercado cerca
de US$ 10 bilhões por ano em imitações. Howard Bruns, presidente da
associação dos fabricantes de equipamentos esportivos dos Estados Unidos
disse: "A pirataria das marcas mais conhecidas tornou-se altamente sofisticada na
Coréia do Sul. Pode-se comprar etiquetas e rótulos de quase todas as marcas
famosas do mundo." Ele recebeu o incentivo da federação mundial dos
fabricantes de equipamentos esportivos, que denunciou a Coréia como o maior
fabricante mundial de produtos falsificados. Não acharam graça quando os
funcionários do governo coreano olharam em seus olhos e disseram: "Não existe
falsificação aqui."
A situação se complicava ainda mais porque os coreanos, sempre
protecionistas em relação a seu mercado interno, queriam usar as Olimpíadas
como uma gigantesca vitrine para seus pró-J dutos. Não pretendiam promover o
maior festival esportivo do: mundo, para a maior audiência de televisão, e divulgar
marcas estrangeiras. A federação de futebol da Coréia deu o sinal, proibindo seus
atletas de usarem marcas estrangeiras. O órgão responsável pelo esporte no
país, a Associação Coreana de Esportes, proclamou que "usar marcas
estrangeiras é vergonhoso".
Quando passou a euforia pela vitória na indicação, os coreanos se
defrontaram com alguns fatos duros. Por mais que tivessem recebido ajuda
externa para sediar os jogos, agora precisavam montar uma equipe capaz de
organizar as Olimpíadas. Além de arranjar o dinheiro. O fato de uma sociedade
ser controlada pêlos militares ajudava a tomar decisões rápidas. Infelizmente,
rechear o comité organizador das Olimpíadas de Seul com militares foi um
desastre.
O Dr. Rim tinha idéias próprias quanto à composição do comité
organizador ideal. Segundo ele, deveria reunir "burocratas, militares, policiais,
agentes de inteligência, esportistas, jornalistas e radialistas, diplomatas e até
mesmo empresários". Um ano depois da escolha de Seul, o COI começou a
temer que esta reunião de gorilas, policiais e burocratas não estava à altura da
tarefa.
A liderança do SLOOC era periodicamente despedida, ou, para livrar a
cara, transferida para cargos decorativos. Novos nomes surgiam e desapareciam,
até que o COI não sabia mais quem se responsabilizava pelo evento. Felizmente,
os escalões inferiores mostravam competência. Sua capacidade de desviar recur-
sos do país garantiu a construção das instalações.
Os coreanos calcularam que os custos seriam repostos pelo mundo
agradecido, ansioso para inundar o país com pagamentos maciços das
televisões. As três grandes redes norte-americanas — ABC, NBC e CBS —
ficaram em estado de choque quando os coreanos anunciaram que o preço pêlos
direitos televisivos ; para os Estados Unidos seria de US$ l bilhão. Isso
representava mais de quatro vezes o valor pago (US$ 225 milhões) pêlos jogos
anteriores, em Los Angeles. 'Tradicionalmente, os jogos de verão valiam cerca de
duas vezes e meia os de inverno", disse um consultor dos coreanos. "Depois de
Calgary, onde a ABC pagou US$ 300 milhões, os coreanos chegaram ao valor de
US$ 700 milhões. Nos escalões superiores o total subiu, tornando-se não uma
possibilidade, mas uma probabilidade. Depois virou uma meta, e finalmente o
único valor aceitável. Eles criaram a desenvolveram esta expectativa irreal,
ignorando totalmente quaisquer considerações sobre o mercado e a situação da
televisão norte-americana naquele período."
Os executivos da televisão americana disseram publicamente que as
exigências de Seul estavam "completamente fora da realidade". Quando os
coreanos abaixaram a cifra em US$ 300 milhões, um executivo da NBC comentou
secamente: "Não há como se chegar a um total de US$ 700 milhões, após os
cálculos financeiros".
O vice-presidente do COI, Dick Pound, participante da equipe de
negociações de Lausanne, declarou: "Os problemas eram graves, porque os
coreanos superestimaram o valor dos direitos, e criaram uma expectativa
impossível de ser realizada.
"A isso somou-se a suspeita, quando se depararam com números muito
menores do que o esperado, de terem sido enganados pêlos americanos por
serem coreanos. Talvez o gigantes pisassem neles porque não passavam de um
pequeno país asiático, sem noção da capacidade do mercado.
"O terceiro problema estava na despesa excessiva da ABC na cobertura
em Calgary, o que deixou a rede praticamente de fora. A CBS não entrava no
esquema de transmissão das Olimpíadas desde Roma, em 1960, e sua cultura
corporativa impedia que pagassem muito por direitos, embora estivessem no
mês- • mo ramo das outra duas redes."
Mas os coreanos não deram atenção aos argumentos dos norte- j
americanos. Quando informados que cada rede tinha um orça-,:] mento anual de
apenas US$ 2 bilhões, os coreanos continuaram suspeitando de trapaça.
Um dos negociadores americanos declarou: "Os coreanos surgiam com
números insanos. Eles chegavam e diziam que era o valor calculado, a NBC
ofereceu US$ 325 milhões e participação na receita. A ABC e CBS ofereceram
US$ 300 milhões. Os coreanos ficaram atônitos com estas propostas, e foi aí que
descobrimos que a equipe de negociação deles não tinha nem liberdade para
negociar.
"Eles vieram de Seul com instruções para aceitar qualquer valor acima de
US$ 500 milhões. Estávamos sentados à mesa de reuniões em Lausanne, e eles
não podiam fazer nada, precisavam esperar horas até que amanhecesse na
Coréia, para telefonar e pedir novas instruções. O Dr. Kim compareceu, mas não
disse nada. Ficou sentado na poltrona, dormindo. Era um bando de inúteis
fazendo nada."
Finalmente Samaranch entrou em contato com o governo coreano e
insistiu para que aceitassem a oferta de US$ 325 milhões da NBC. Relutantes,
concordaram. Quando voltaram a se reunir, a NBC retirou a proposta.
A consternação tomou conta do COI. Eles estavam ansiosos para aceitar o
lance da NBC. Samaranch temia que a ambição coreana atrapalhasse o bom
relacionamento com as redes americanas. Ele saiu do Château de Vidy, em
Lausanne, para anunciar: "No que diz respeito ao comité organizador, o relaciona-
mento com as companhias de televisão termina com os Jogos. Para o COI, este
relacionamento continua, e sempre dependeremos da boa vontade delas. O COI
não tem interesse em elevar os preços até o infinito." O recado de Lausanne a
Nova York era claro: o COI estava puxando o tapete dos coreanos.
Quando o recado chegou ao governo coreano em Seul, eles r puxaram o
tapete da equipe de negociações. O ministro de esportes foi chamado de volta a
Seul, e o Dr. Un Yong Kim promovido à condição de principal interlocutor.
Ele havia aprendido com os mestres. "Eu tinha um escritório Japão, e o Dr.
Kim observava enquanto eu e meus cole-; fechávamos acordos com a televisão",
contou Patrick Nally.
"Ele acompanhava as vendas de direitos, e está na cara que aprendeu
rápido. Começou puro e inocente, e tornou-se, de repente, o negociador - chefe
do SLOOC. Era esperto, assimilou o que ensinamos. Frio, calculista e
competente, aproveitava cada vantagem disponível."
Dick Pound, líder das negociações do COI, lembra-se de que a última
etapa de negociações com a televisão foi intransigente e mal-humorado. "Os
detalhes dos contratos eram minuciosos. A NBC queria garantias de recuperar
todo o dinheiro que gastariam antes dos Jogos, se algo saísse errado. Insistiam
que as garantias oferecidas pelo Banco Central da Coréia não eram suficientes —
queriam uma carta de crédito que fosse aceita por um consórcio de bancos norte-
americanos.
"Tudo que diziam insultava os coreanos, e as negociações levaram meses.
Não sabíamos, na tarde em que partimos para assinar o contrato em Lausanne,
se haveria acordo. Foi assim, difícil".
Eles selaram o trato com um mínimo de US$ 300 milhões, US$ 25milhões
a menos do que os coreanos recusaram antes. Para salvar as aparências em
Seul, a NBC ofereceu uma porcentagem nos lucros que poderia elevar os
pagamentos a US$ 500 milhões — mas todos sabiam que isso jamais
aconteceria.
O poder real, atrás da equipe organizadora coreana, estava agora com o
Dr. Kim. Ostentava o título de vice-presidente, mas todos os assuntos importantes
passavam por ele. Depois de concluir as negociações com a televisão norte-
americana, vendeu os direitos para o resto do mundo. Foi nomeado chefe de
relações internacionais, chefe do protocolo e finalmente convidado a controlar a
organização dos eventos esportivos. O Dr. Kim se transformara no centro dos
Jogos.
Sua ambição era maior ainda. Queria entrar para o Clube. "Qualquer que
fosse o assunto, ele dizia sim para todos, para ser convidado a participar do COI",
disse um membro. Em novembro de 1985 abriu-se uma vaga no COI. O
representante da Coréia, Chong Kyu Park, morreu de câncer, e menos de um
anos depois o Dr. Kim prestava o juramento olímpico em Lausanne. Passaram-se
mais nove dias e ele se elegeu presidente do GAISF. Uma ascensão notável no
mundo dos esportes.
A admissão do Dr. Kim no Clube aconteceu num clima de guerra civil. Em
1987 o clima na Coréia era similar ao das Filipinas, onde o "poder popular"
derrubou a corrupta ditadura de Ferdinand Marcos. Em Seul e nas principais
cidades coreanas, a classe média, as donas de casa, os trabalhadores e os estu-
dantes saíram às ruas para exigir eleições livres e o final do governo autoritário do
presidente Chun. No início do ano ele anunciara que não haveria reformas
constitucionais antes do final dos Jogos. Os protestos de rua transformaram-se
em combates.
Chun foi forçado a renunciar, a presidência foi reivindicada por seu braço
direito, Roh Tae Woo, o padrinho dos Jogos. Ele liderara a campanha coreana, e
presidira o comité organizador. No final do ano elegeu-se presidente.
Os norte-coreanos ficaram furiosos quando Seul ganhou a indicação para
sediar os Jogos. Tentaram arrastar os países comunistas a um boicote, como
gesto de solidariedade. Os Jogos de 1988 corriam perigo? Samaranch entrou em
ação. O diplomata amador, que conviveu constrangido com os profissionais de
Moscou, tentaria conferir alguma substância ao título de V. Excia., que o COI
sempre colocava antes de seu nome. De 1985 até a véspera das Olimpíadas, três
anos depois, Samaranch dedicou-se a jogadas diplomáticas intermináveis,
pulando de uma capital comunista para outra, visitando Pyongyang regularmente
e recebendo delegações da Coréia do Sul e do Norte na residência oficial de
Lausanne.
Reportagens emocionantes surgiram em várias partes do mundo,
sugerindo que Samaranch era um super-diplomata, lutando para salvar as
Olimpíadas da destruição. Superficialmente, parecia uma cruzada contra o mundo
real da política do poder. Mesmo comentaristas famosos, que deveriam saber das
coisas, elogiaram a capacidade política de Samaranch.
Tratava-se de uma charada. Os russos e alemães orientais emitiram sinais
de solidariedade, mas de jeito nenhum ficariam de fora de mais uma Olimpíada. O
boicote norte-americano reduzira a competição de Moscou ao Bloco Leste, e os
comunistas ficaram em casa em 1984. Se não fossem a Seul, seus atletas es-
tariam fora das Olimpíadas por doze anos. Não poderiam permitir que dezesseis
anos se passassem — de Montreal a Barcelona — antes de enfrentar os
americanos novamente. Um boicote era impensável. Gerações de jovens estrelas
surgiriam e desapareceriam antes que o Bloco Leste pudesse se apresentar na
Espanha, em 1992. A moral nos campos de treinamento seria seriamente
abalada, e a valiosa propaganda derivada dos montes de medalhas perdidas.
Por mais que os países comunistas mais poderosos odiassem o regime
militar de extrema direita de Seul, não fariam mais do que se solidarizar
simbolicamente com a ditadura absolutista de Kim II Sung na Coréia do Norte.
Mais importante de tudo, agora o poder do Kremlin se encontrava com
Gorbachev. A perestroika e a glasnost entraram para o vocabulário ocidental,
enquanto Gorbachev se dedicava a afastar a velha guarda. A URSS se dedicava
à construção de vínculos sólidos com o Ocidente.
O único incidente preocupante, capaz de prejudicar os Jogos de Seul, foi a
derrubada de um jato de passageiros coreano pela Rússia, em 1983, quando
sobrevoava o espaço aéreo soviético. Duzentas e sessenta e nove pessoas
morreram, em sua maioria coreanos. Horst Dassler, num esforço para acalmar os
ânimos e o pesar, promoveu um jantar particular em Beverly Hills, durante os
Jogos de Los Angeles, com a presença dos dois representantes russos no CO! e
o presidente Roh, do SLOOC.
A imagem belicosa da Coréia do Norte causou preocupações legítimas
quanto à segurança dos Jogos. Em novembro de 1987 um terrorista norte-
coreano colocou uma bomba num avião da Korean Airlines, no vôo Bagdá-Seul, e
115 pessoas morreram na explosão.
O público norte-americano ficou chocado. Os telefones começaram a tocar
no Departamento de Estado, e os pais angustiados dos atletas selecionados para
ir a Seul perguntaram o que Tio Sam faria para protegê-los.
Clayton McManaway, na época trabalhando com contra-terrorismo no
Departamento de Estado, declarou: "Preparamos instruções especiais da Agência
de Segurança Diplomática para todos os atletas norte-americanos, antes que
partissem para a Coréia. Depois meu setor coordenou o apoio governamental
americano à segurança coreana nas Olimpíadas." McManaway pouco depois
deixou o Departamento de Estado, para trabalhar em uma das mais discretas
companhias particulares de segurança do mundo, o Fairfax Group, sediado na
Virgínia do Norte, do outro lado do Potomac, em frente a Washington. A empresa
foi contratada pela NBC para proteger os vários grupos de repórteres, técnicos e
equipamentos em Seul.
Um ex-agente do FBI, David Faulkner, também funcionário da Fairfax,
disse: "Depois da bomba no avião, estávamos quase certos de que os norte-
coreanos tinham outros atentados planejados, mas ele foram pegos antes, e não
podiam atacar. A maioria dos envolvidos com a segurança concluiu isso."
O maior problema para as equipes da NBC era conseguir realizar seu
trabalho. Seul encontra-se cercada de instalações militares, e isso provocava
dores de cabeça para os câmeras. "Queríamos uma câmera bem no alto", contou
Faulkner. "Mas se a focalizássemos no local errado, pegaríamos algo que não po-
dia ser visto. Por isso, os coreanos puseram soldados armados no alto do prédio,
para garantir que a câmera se movesse somente o previsto. Eles mantinham o
pessoal da NBC sob a mira de armas, e em uma ocasião ameaçaram atirar!"
Nunca houve um perigo real de sabotagem dos Jogos por parte dos norte-
coreanos, depois de seu início. Milhares de camaradas seus do Bloco Leste
encontravam-se em Seul, como competidores ou dirigentes, e seriam vítimas
prováveis dos ataques terroristas. O governo dos Estados Unidos organizou três
exercícios militares ostensivos, e encheu o mar em torno da Coréia de navios de
guerra. Era um sinal óbvio para a Coréia do Norte não tentar nada.
Conforme os Jogos se aproximavam, os norte-americanos ficaram
preocupados com a possibilidade de uma missão terrorista de Pyongyang. A
milhares de quilômetros de distância, no Quênia, a CIA correu um risco
considerável para persuadir um agente da inteligência norte-coreana a desertar
na véspera dos Jogos. Eles queriam saber se havia algum plano de sabotagem
em curso.
As autoridades sul-coreanas não deixaram nada por conta do acaso.
Usaram os Jogos Asiáticos de Seul, em 1986, como ensaio para as Olimpíadas. A
polícia prendeu um número assustador de pessoas, 263.564, durante a disputa.
Explicaram que isso fazia parte de um "programa de purificação social". O
exercício se repetiu na véspera das Olimpíadas, e milhares de dissidentes foram
encarcerados em campos fora de Seul. Sem dúvida explicaram a eles que a
detenção era parte da "Harmonia e Progresso".
No que dizia respeito às medalhas de ouro, os organizadores de Seul se
dedicaram ao progresso, em detrimento da harmonia. Dezoito meses antes dos
Jogos, o ministro dos esportes da Coréia divulgou um relatório governamental
afirmando que a nação sede ganharia mais de uma dúzia de medalhas de ouro —
inclusive três no boxe. Depois que uma promessa temerária dessas foi feita, fi-
caria muito chato não ganhar as medalhas.
A previsão do sucesso da Coréia no boxe não se baseava só no otimismo.
O trabalho de base feito nos dois anos anteriores às Olimpíadas teve pouco a ver
com os ringues. O resultado seria a cena mais vergonhosa transmitida pela
televisão durante os Jogos, seguida de embaraço para o país sede e manchetes
sobre corrupção.
Desde 1986 o boxe amador era presidido pelo professor Anwar Chowdhry,
do Paquistão, antes membro muito bem-remunerado da equipe política de Horst
Dassler. Durante anos o boxe amador realizou reuniões graças à cortesia da
Adidas na base francesa de Dassler em Landersheim. A Adidas era fornecedora
oficial dos lutadores em Seul, e houve um escândalo ao lado do ringue quando
um lutador surgiu na frente das câmeras usando uniforme fornecido por um
concorrente.
O professor Chowdhry não costuma mencionar suas ligações passadas
com a Adidas. Em um perfil recente, divulgado pela revista de sua federação, com
milhares de palavras, não se fez menção aos anos de pagamentos recebidos
feitos pelo fabricante alemão de material esportivo.
Chowdhry foi eleito para a presidência no congresso anual da federação
em Bangkok, em novembro de 1986. No mesmo congresso, Seung-Youn Kim, da
Coréia do Sul, elegeu-se vice-presidente para a Ásia. Kim, que comandava o
comité de finanças da federação, tem a fama de ser um dos homens mais ricos
do mundo. É conhecido internacionalmente por seu apelido, "Dinamite", por causa
do pai, fabricante de munições. Kim — que não é parente do Dr. Un Yong Kim —
presidia a Federação Coreana de Boxe Amador desde 1982, e ficou encarregado
do boxe nas Olimpíadas.
No período anterior aos Jogos, os coreanos tentaram subornar os juizes
olímpicos. Um dos maiores problemas do boxe amador é garantir que os juizes
sejam capazes de atuar corretamente na luta. Os juizes e árbitros potenciais das
Olimpíadas foram convidados para um seminário em março de 1988 em Seul.
Um membro da federação, presente ao seminário, contou: "Todos foram
recebidos com pompa, ganharam pilhas de presentes e visitaram casas noturnas.
Qualquer juiz do torneio poderia pedir o que quisesse. Alguns dirigentes se
preocuparam muito, porque quando voltassem para julgar as Olimpíadas, os
coreanos obviamente pediriam a contrapartida."
Um juiz, o neozelandês Keith Walker, que mais tarde ocuparia as
manchetes dos jornais, comentou que o nível dos presentes era "fenomenal".
A cena que muitos telespectadores ainda se recordam aconteceu durante a
luta entre os pesos-galo Jong-il Byun da Coréia e Alexander Hristov da Bulgária.
O árbitro Keith Walker advertiu o coreano duas vezes, por usar a cabeça de modo
perigoso, mas mesmo assim alguns observadores acreditam que ele foi muito
complacente. Depois de três rounds os juizes declararam a vitória de Hristov por 4
a l. Todos os especialistas consideraram o resultado justo. Mas os torcedores
coreanos viram que mais uma esperança de medalha de ouro se perdera. O
ginásio de Chamsil pegou fogo. O técnico da Coréia e outro dirigente entraram no
ringue e começaram a espancar o árbitro. Receberam reforço de pessoas que
puxaram os cabelos de Walker.
Ele conseguiu escapar, foi para o aeroporto e pegou o primeiro avião para
a Nova Zelândia, os coreanos derrotados promoveram um protesto,
permanecendo no ringue por 67 minutos. As imagens do perdedor inconformado
correram o mundo. A Coréia ficou numa situação ainda pior. David Faulkner, que
cuidava da segurança dos comentaristas da NBC, contou: "A NBC repetiu a cena
várias vezes, e os coreanos diziam que não tinha acontecido nada. Precisamos
reforçar a segurança dos comentaristas da NBC nas lutas seguintes, porque a
multidão tentou intimidá-los." O professor Chowdhry teve de admitir que se tratava
"do incidente mais lamentável" que já vira. Veria algo pior, antes do final do
torneio. Para aplacar a fúria da imprensa, foi anunciada a renúncia do presidente
do boxe coreano, Seung-Youn Kim. As câmeras de televisão dedicaram-se a
outros temas, mas os escândalos do boxe não pararam. No dia seguinte o peso
meio-médio norte-americano Todd Foster derrubou o coreano Jin-chul Chung e
concluiu que ganhara a luta. Chung disse que havia parado de lutar porque ouvira
o gongo no ringue adjacente e se confundira. Os dirigentes do boxe determinaram
imediatamente a anulação da luta, para irritação dos norte-americanos. Na
revanche do dia seguinte Chung foi nocauteado no segundo round. O desespero
começou a tomar conta da cena quando o peso pesado iugoslavo Havrovic
perdeu do oponente coreano. Segundo os especialistas, o iugoslavo ganhou os
três assaltos. A cena que conta melhor a história real do boxe em Seul ocorreu na
última noite do torneio. Mostrava o médio-ligeiro coreano Park Si Hun, ganhador
da medalha de ouro, levantando o homem que acabara de derrotar no ar, o norte-
americano Roy Jones.
Os dois lutadores foram vítimas de um dos piores exemplos de trapaça já
vistos nas Olimpíadas. Antes das finais, Park derrotara o italiano Vincenzo
Nardieüo. A decisão surpreendeu muitos observadores, que davam como certa a
derrota de Park. Nardiel-lo bateu o pé na lona com raiva quando o veredito de 3 a
2 foi anunciado.
O pior ainda viria. Na final Jones bateu em Park durante os três rounds. No
segundo o coreano foi forçado a esperar a contagem até oito. No final da luta, o
computador da NBC acusou 86 socos acertados por Jones, contra apenas 32 de
Park.
Os juizes russos e húngaros deram a medalha de ouro a Jones por
diferenças enormes. Mas Jones perdeu. Os outros três juizes fizeram o oposto.
O técnico norte-americano Ken Adams correu até a mesa do presidente e
gritou para Chowdhry: "Eu não acredito. Você não vai ter coragem de dar a vitória
ao coreano!" Chowdhry nem olhou para cima.
O juiz britânico Rod Robertson, que assistia a luta, chamou o resultado de
"desastroso". O alemão ocidental Heinz Birkle classificou o resultado de
"criminoso", e o escocês Frank Hendry ficou "chocado". O presidente do boxe
coreano considerou a planilha dos juizes "justa".
Dirigentes dos dois países, inclusive alguns da Coréia, alegaram que os
três juizes teriam sido subornados. A imprensa mundial encampou a denúncia.
Usaram palavras como "fedor" e "corruptos". Park, medalha de ouro, afirmou que
se envergonhava da vitória, e ergueu Jones no ar para deixar claro quem era o
vencedor, em sua opinião.
Em benefício da nação anfitriã, vale lembrar que 50 mil pessoas
telefonaram para a emissora de televisão local protestando contra a vitória do
coreano. Os três juizes favoráveis a Park, Larbi do Marrocos, Duran do Uruguai e
Kasule de Uganda deram desculpas. Alegaram que se todos votassem a favor de
Jones, o veredito unânime poderia provocar tumultos. Ninguém acreditou neles.
Talvez tenha sido a única ocasião, na controversa história do boxe, que lutadores,
imprensa mundial e um bilhão ou mais de telespectadores concordaram que os
juizes estavam errados.
Um dirigente chamou jornalistas de lado e disse que precisavam entender
a posição do juiz Larbi, do Marrocos. O resultado foram combinado antes, e Larbi,
um professor primário, nunca mais trabalharia se deixasse de dar a vitória ao
coreano. Chowdhry, ignorando as críticas universais, continuou escalando os três
juizes para as finais olímpicas restantes.
No ano seguinte a federação internacional de boxe reuniu-se em Nairobi.
Em pauta, a questão dos procedimentos a adotar em relação aos três juizes que
quase conseguiram expulsar o boxe das Olimpíadas. Os árbitros da federação e a
comissão de julgamento decidiu que os três deveriam ser banidos para sempre.
Eles se prepararam para levar tal ponto de vista ao presidente Chowdhry.
O presidente ficou sabendo disso antes. Um de seus assessores diretos
contatou um membro da comissão e disse: "O presidente acredita que a decisão
não deve ser anunciada. Prefere realizar outra reunião primeiro." E outras
reuniões ocorreram. Finalmente, os três juizes foram suspensos por dois anos, e
mais da metade deste período já transcorrera. Em 1989, o desacreditado Larbi
surgiu em um torneio de Moscou, como técnico da equipe marroquina.
Todas as exigências de uma investigação dos escândalos de Seul foram
ignoradas pelo presidente Chowdhry. Tentando recuperar a imagem danificada na
mídia mundial, um velho amigo de Chowdhry, seu colega na equipe política de
Dassler, foi chamado para melhorar a imagem do boxe amador: o coronel
Hassine Hamouda.
Chowdhry proclamou: "Temos condições de aperfeiçoar o sistema,
tornando-o imune a bobagens." Mas ninguém falou que os juizes eram bobos.
O presidente do boxe coreano, Sy Kim, renunciou ao cargo,
mas apenas por um ano. Depois apareceu em Moscou, foi efusivamente
saudado por Chowdhry, e continua sendo o vice-presidente da federação de boxe
para a Ásia, Samaranch fez críticas veladas ao boxe, logo depois de Seul, mas o
esporte permaneceu na agenda de Barcelona porque os telespectadores norte-
americanos desejam ver seus boxeadores no ringue. As Olimpíadas perderiam
muitos dólares se o boxe fosse banido.
Após o encerramento das Olimpíadas de Seul, os coreanos começaram as
rodadas de agradecimentos aos que ajudaram a tornar os jogos um "tremendo
sucesso". Prepararam uma lista especial de pessoas que receberiam presentes.
No topo, os membros do COI e suas esposas. Depois vinham os presidentes das
federações internacionais, dirigentes e juizes. No final, os atletas. O valor dos
presentes era de US$1.100 no topo e US$110 no fim da lista. Os organizadores
de Seul sabiam quem realmente mandava nas Olimpíadas. A conta total chegou a
US$ 4,5 milhões.
Horst Dassler, o nome mais merecedor de agradecimentos, morrera no ano
anterior aos jogos. O presidente Roh, responsável pelo projeto de levar os Jogos
para a Coréia, convidou Suzanne e Adi, filhos de Dassler, para ir a Seul receber
seu agradecimento pessoal. Roh conferiu a Dassler a Ordem do Mérito da Coréia,
em caráter póstumo. A confidente de Dassler, Huguette Clegironnet, também se
encontrou com Roh.
Na sessão do COI em Birmingham, em 1991, conversamos rapidamente
com o Dr. Un Yong Kim. Perguntamos sobre seu envolvimento com Dassler. "Não
fiz muitos negócios com Dassler, só sei que ele se destacava pelo apoio dado ao
movimento olímpico", insistiu o Dr. Kim. "Não o conheci pessoalmente. Não
tivemos negócios diretos." Ao encerrar a entrevista, ele desfiou a ladainha
olímpica, concentrada em uma única frase: "As Olimpíadas são o maior festival da
humanidade, onde a juventude se reúne pela paz e fraternidade mundial.
"O Dr. Kim participou do comité de Seul em Baden-Baden, trabalhou com
Dassler para levar as Olimpíadas à Coréia, e acabou conseguindo entrar para o
COI", afirmou Patrick Nally. "Kim era um dos poucos que considerávamos
politicamente astuto, e via exatamente o que se poderia obter. Mas Kim não era
um prodígio criado por Dassler, como Nebiolo, Havelange ou Samaranch. Ele
fazia acordos com Dassler, mas para ser justo com Kim, ele aprendia muito
depressa, e saiu da obscuridade, entrando para o COI em tempo recorde.
"Acredito que ele seja uma mistura de lutador com espião", declarou um
membro do COI. "Dizem que dirigiu a CIA na Coréia. Certamente foi treinado por
eles. É muito misterioso e ambicioso. Montou o esquema do taekwondo,
totalmente financiado pelo governo coreano, esta era sua tarefa. Ele é tudo que
se pode temer de uma pessoa daquela parte do mundo, em posição de poder."
O Dr. Kim se destaca hoje como possível sucessor de Samaranch para o
cargo de presidente olímpico. Seria uma escolha apropriada. Como o espanhol,
ele fez carreira em um estado totalitário que assassinava dissidentes como rotina,
e usou o esporte para melhorar sua imagem deteriorada. Ambos sobreviveram à
democracia em seus países, e se afastaram de suas origens para se concentrar
no cenário esportivo internacional.
Vale perguntar se uma pessoa como o Dr. Kim, com tal passado, deveria
fazer parte do COI, para começar. Ele sem dúvida ficaria ofendido com a questão.
Afinal de contas, seu predecessor no COI, Chong Kyu Park, conhecido como Park
Pistola, por ser também vice-presidente da união internacional de tiro, teve a
mesma origem. Park Pistola foi chefe de Kim na Força de Proteção Presidencial,
e presidente do comité olímpico nacional coreano, mas precisou renunciar por
"motivos políticos", depois do assassinato do presidente em 1979. "Park era
totalmente leal ao presidente", disse o antigo agente da CIA Philip Liechty. "Era
perigoso, mortífero. O Assassino Número Um da Coréia."
Park Pistola foi nomeado para o COI pelo presidente Samaranch.
Estranhos caminhos levam ao COI.
12
VINTE MILHÕES DE DÓLARES
Esta é a história secreta de como os Jogos Olímpicos de Seul quase foram
destruídos antes da chegada da tocha olímpica. A ameaça não partiu dos
terroristas norte-coreanos, nem de boicote comunista, e sim de um dos mais
destacados membros do Clube. Ele ameaçou os jogos de 1988 e pressionou os
coreanos até deixá-los de joelhos. Depois aceitou que o subornassem com de-
zenas de milhões de dólares.
As longas e desgastantes negociações para venda dos direitos televisivos
para as redes norte-americanas ocultavam um drama. A trama se desenrolou em
torno das finais dos esportes decisivos em Seul. Os ingredientes eram os horários
e o personagem principal, o atletismo.
O ponto culminante das Olimpíadas ocorre nas finais, quando as medalhas
de ouro são conquistadas. Aí o mundo liga a televisão.
Tradicionalmente, as finais dos esportes olímpicos mais populares se
realizam no final da tarde. Em Seul, isso criava um problema. Em função da
diferença horária entre Seul e Nova York, as finais à tarde iriam ao ar "ao vivo" no
Estados Unidos no final da noite e início da madrugada. Seria a ruína financeira.
Se as finais não fossem antecipadas em algumas horas, a audiência nos Estados
Unidos cairia muito.
Os Jogos teriam pouco apelo para os anunciantes. As Olimpíadas seriam
vendidas a preço de banana. Finais à meia-noite — ou reprises no dia seguinte —
significavam uma queda vertiginosa no valor dos Jogos.
As redes americanas queriam as finais no início da tarde, em Seul. Assim
entrariam no horário nobre, garantindo o retorno em propaganda.
A decisão de mudar o horário das finais só poderia ser tomada por cada
federação internacional. Elas planejavam os eventos dentro da estrutura global
dos jogos.
A federação-chave, responsável pelo maior número de horas de
transmissão, era sem dúvida a de atletismo. Um membro do Clube, Dr. Primo
Nebiolo, presidia truculento. Tinha consciência de controlar uma mercadoria que
os coreanos, o comité olímpico e as redes desejavam mais do que tudo.
A federação de atletismo programou as finais para o final da tarde, por
volta das 5, hora de Seul. Nebiolo deixou claro que não incomodaria seus atletas
com alterações de horário. Depois sentou e esperou.
No outono de 1984 Samaranch convocou Nebiolo para uma reunião em
Lausanne. Precisavam conversar sobre o horário das finais. Como poderia
persuadir Nebiolo a mudar o programa? Nebiolo disse a Samaranch que aceitaria
antecipar as finais para a hora do almoço, desde que recebesse uma parcela
maior dos direitos de televisão do COI.
Samaranch fincou e pé e disse que não. Previa protestos furiosos das
outras federações, se Nebiolo fosse atendido. Então Nebiolo exigiu negociar
separadamente com as redes. Samaranch impediu isso também.
Os coreanos foram chamados de volta à mesa de negociação, e várias
federações aceitaram as alterações propostas. Algumas pediram uma
compensação modesta — até um teto de US$ 200 mil, segundo informações — e
os coreanos concordaram em pagar.
No momento em que os coreanos aceitaram resolver o problema usando
dinheiro, e não as redes ou o COI, Nebiolo viu a chance de dar o golpe de sua
vida. Seu esporte agora detinha a chave para o sucesso ou o colapso dos Jogos.
Os coreanos estavam vulneráveis, e quanto mais Nebiolo adiasse a solução, mais
maleáveis eles se tornariam.
O conselho do atletismo reuniu-se em Camberra, em outubro de 1984, e
Nebiolo o convenceu a ficar firme. Tinham o direito de manter as finais às 5 horas
da tarde, e não haveria concessões. Os coreanos seguiram para Camberra com o
objetivo de fazer lobby no IAAF. Mas seu estilo era abrasivo, e estavam nas mãos
de Nebiolo. A equipe coreana saiu da Austrália sabendo que o valor dos Jogos na
televisão sofria uma hemorragia.
O jogo de pôquer prosseguiu até 1985. Para manter o cronograma das
preparações, os coreanos foram forçados a se comprometer com gastos cada vez
maiores, sem saber se recuperariam o dinheiro com a venda dos direitos de
televisão.
O COI parecia incapaz de lidar com o problema. A Review publicou um
texto dizendo que as redes se dispunham a "dobrar os valores pagos aos
organizadores se as finais dos esportes olímpicos mais importantes se
realizassem de manhã". Na realidade, os valores cairiam para a metade se as
federações não alterassem os horários.
Os coreanos argumentaram, desesperados, que a temperatura e a
umidade aconselhavam a transferências das finais para o período da manhã.
Nebiolo entrou empena, apertando o cerco contra Seul, com uma
entrevista na Review. Disse que consultara os líderes mundiais do atletismo, e
eles preferiam não mudar os horários. E completou: "Finais de manhã não
permitem que os atletas atinjam o máximo de seu potencial. E sempre nos
pautamos pelo interesse dos atletas."
Em março e abril e 1985 as redes pressionaram os coreanos mais ainda.
Os executivos declararam na imprensa de Nova York que as transmissões das
Olimpíadas, realizadas em setembro, coincidiriam com os campeonatos de futebol
universitário, de basquetebol e a estréia dos programas líderes de audiência, pro-
gramados para o outono.
A Advertising Age registrou que os coreanos, tendo desistido de pedir US$
l bilhão, ainda queriam US$ 500 milhões por "videoteipes e programas na
madrugada". Um comentarista escreveu que "em setembro as pessoas mandam
os filhos de volta à escola, e se divertem vendo o final das World Series de beise-
bol, o início do campeonato de futebol e as emoções da nova programação."
Tentavam diminuir a importância dos Jogos. As redes sabiam que as
especulações publicadas em Nova York seriam lidas em Seul no dia seguinte.
Mais pressão.
No final de março Samaranch lavou as mãos. "A questão dos horários de
competição em Seul devem ser decididas entre o comité organizador e as
federações internacionais. O fato de cada federação ser livre para negociar os
horários tornou mais fácil resolver o problema das finais pela manhã." Era um
sinal claro para Nebiolo fazer o que quisesse — desde que as finais aconte-
cessem.
Nebiolo conduziu sua tática de forma brilhante. Os coreanos estavam
quase de joelhos. Agora era a hora da Corrida do Ouro. Ele se acomodou em
Roma e esperou que os coreanos agissem, tentando um acordo.
Houve várias reuniões entre a IAAF e os coreanos. A imprensa recebia
informações regulares sobre a feita de progresso. Depois aconteceu a reunião
que jamais foi divulgada. Uma pessoa presente relatou o momento crucial,
quando as cartas foram postas na mesa. ' De acordo com esta fonte, um
negociador coreano, percebendo finalmente o calibre de seu oponente, perguntou
desesperado: "O que quer para mudar o horário das finais?" Era hora de atacar.
Estavam de joelhos. Os olhos de Nebiolo se ergueram, e ele disse sucinto: "Vinte
milhões de dólares." Os coreanos caíram de costas. Mas um cheque de US$ 20
milhões a Nebiolo os poria de volta na negociação de muitos milhões com a NBC.
Era um investimento. Eles concordaram em levantar o dinheiro.
Nebiolo tinha planos grandiosos para os US$ 20 milhões. Se conseguisse
manter a verba longe da IAAF, poderia administrar uma fortuna, e seus poderes
de patrocínio cresceriam enormemente.
Os organizadores de Seul persuadiram uma companhia de material
esportivo coreana a assinar um contrato de patrocínio com a federação atlética, A
empresa concordou em assinar o cheque de US$ 20 milhões, cinco a mais do que
a Visa pagara pelo patrocínio exclusivo total da Olimpíada no mundo inteiro. O
cheque foi depositado em uma conta no banco de Monte Cario.
Monte Cario tornara-se um centro de intrigas da política esportiva, desde
que Dassler e Nally ali se instalaram, na década anterior. A família real Grimaldi
era grata pêlos negócios atraídos por Dassler, pela associação internacional das
federações esportivas e pelo calendário recheado de reuniões.
Agora Nebiolo aparecia com outra organização esportiva, com mais
dinheiro. Mas queria algo em troca: patrocínio "real". Isso não era problema. O
herdeiro do trono, Sua Alteza Real o príncipe Albert, estava disponível.
No final da primeira semana de maio de 1985, o príncipe Albert e sua
comitiva foram recebidos em Lausanne por Samaranch. O motivo alegado foi a
recente eleição do príncipe Albert como presidente da federação de atletismo de
Mônaco. Não era uma das maiores federações do mundo. A dócil Review relatou
a visita da forma habitual, descrevendo o playboy Albert como "um homem do
mar", porque organizava uma regata a Nova York. Samaranch e seu nobre
convidado jantaram no melhor restaurante da cidade, O Girardet, onde, segundo
o press release, discutiram "o desenvolvimento do esporte no principado". O
desenvolvimento mais importante, para a economia de Mônaco, só seria revelado
dentro de um ano.
Uma semana depois, em Berlim Oriental, na 90a. sessão do COI, o
príncipe Albert foi admitido no Clube. Mais um "aristocrata" para a coleção de
Samaranch.
Agora tudo estava pronto. O cheque de US$ 20 milhões fora enviado em
segurança para Monte Cario. O príncipe Albert entrara para o Clube. Um mês
depois, o conselho da federação atlética de Nebiolo reuniu-se em Atenas, e
cumpriu sua parte no acordo secreto de Seul. Todas as finais importantes,
inclusive dos 100 metros e dos 1.500 metros, seriam realizadas na hora do
almoço, em Seul.
Agora a NBC poderia falar de dinheiro a sério, e os executivos a vender o
espaço comercial. Nebiolo deve ter rido sozinho. Ele levara a bolada no maior
jogo de pôquer do mundo. E com a mão vazia!
"Se os coreanos dissessem a Nebiolo que a exigência de US$ 20 milhões
era inaceitável, e se recusassem a pagar, ele teria dado de ombros e antecipado
as finais como desejavam", declarou uma fonte da IAAF. "Os coreanos não
sabiam que o conselho da IAAF tinha decidido não deixar as redes esperando por
muito mais tempo.
"É preciso lembrar que Primo queria que as redes pagassem muito dinheiro
pelo Campeonato Mundial de Atletismo de Roma, em 1987. Ele não poderia ser
visto como o sujeito que sabotou as Olimpíadas. Secretamente, a decisão já havia
sido tomada, e estava na hora de mudar os horários. Se os coreanos não fossem
tão ingênuos, tão deslocados neste tipo de negociação, poderiam ter batido o pé
e economizado um monte de dinheiro."
Nebiolo blefara alto. Felizmente para ele, os coreanos só sabiam sair da
encrenca pagando.
O Dr. Un Yong Kim comandou as negociações dos coreanos com as redes,
e fazia parte no grupo de Seul que tratava tanto das relações internacionais
quanto da organização dos eventos esportivos dos Jogos. O Dr. Kim liderou a
delegação de Roma, em busca da aprovação de Nebiolo para rever os horários
do atletismo. "O Dr. Kim desenvolveu, em cooperação com as associações
esportivas, uma programação aceitável para as televisões norte-americanas, sem
constranger as associações", registrou a revista Sport Intern.
Presumimos que o Dr. Kim soubesse que o problema do horário das finais
já estava resolvido. Parecia impossível que ele ignorasse um acordo envolvendo
uma soma tão alta, US$ 20 milhões. Estávamos errados.
"Eu não tinha a menor idéia. Não me envolvo com dinheiro, só com a
organização", declarou o Dr. Kim em nossa entrevista. "A NBC não determinou o
horário das finais de Seul. Nós fizemos isso. Procuramos os horários mais
adequados. Para o Japão e Europa não havia problemas. Para os Estados
Unidos, as imagens chegariam ao vivo à meia-noite ou de madrugada. Mas as
decisões foram tomadas pelo comité organizador. As federações não fizeram
imposições, tampouco. Estudamos os horários e determinamos os mais
apropriados.
"Nós, os coreanos, somos um povo muito orgulhoso, nacionalista, e não
gostamos que nos digam o que fazer. Respondemos simplesmente, 'vá para o
inferno'."
Depois de conversarmos com o Dr. Kim, na sessão do COI em
Birmingham, em 1991, despedimo-nos cordialmente, em nossa opinião. Poucas
horas depois a chefe da assessoria de imprensa do COI, Michele Verdier, nos
procurou. Madame Verdier não estava satisfeita. Na verdade, parecia muito
chocada por saber que jornalistas podiam querer informações além das
divulgadas em seus comunicados.
"O Dr. Kim queixou-se de vocês", ela disse. "Não fizeram perguntas sobre
a sessão. Perguntaram outras coisas." Este comportamento era aparentemente
inaceitável nos círculos olímpicos.
Depois dos Jogos de Seul, o Dr. Kim escreveu um livro sobre suas
experiências. A respeito dos problemas enormes com os horários das finais, ele
resumiu: "O atletismo foi a coisa mais difícil de ajustar." E só.
Nebiolo inventou um programa de caridade próprio, com os US$20 milhões
de Seul. Levaria o nome de "Fundação" Internacional de Atletismo, conhecida
pela sigla IAF. Sediada em Mônaco, teria o objetivo de ajudar a IAAF a promover
o esporte no mundo inteiro. A Fundação parecia repetir os propósitos da
federação, com dinheiro levantado em nome do esporte.
Os membros da IAAF souberam do projeto de Nebiolo pela Newsletter do
organismo. A Fundação foi criada pelo círculo íntimo de Nebiolo. O assunto
jamais foi levado à discussão de um congresso. A tão propagada "família atlética"
ficou fora de qualquer discussão democrática sobre a própria necessidade de se
criar a fundação, a origem do dinheiro e quem o controlaria. A jogada de Nebiolo
tinha dado certo.
A IAF foi registrada de acordo com as leis de Mônaco. Os estatutos
transmitem a impressão de uma organização grandiosa. Possui assembléia geral,
conselho, comité executivo, secretário-geral assistente, secretário-geral, vice-
presidente e presidente. Soa impressionante. Um exame detalhado revela que há
menos de trinta pessoas envolvidas. Os membros precisam sair do conselho da
IAAF, que atualmente conta com 25 pessoas.
Virtualmente, todo o poder da Fundação concentra-se nas mãos do
presidente — o Dr. Nebiolo, claro. Ele nomeia novos membros, é o único que
pode assinar cheques e "tomar as medidas necessárias", informando a Fundação
posteriormente.
Nebiolo também "tem todos os poderes de agir em nome da Fundação",
em "particular o poder de constituir advogados." Um advogado escolhido por ele,
Mino Auletta, velho amigo de Milão, recebe um pagamento anual de US$ 30 mil
da Fundação. Auletta também recebe uma importância considerável da federação
de atletismo de Nebiolo, cerca de US$ 100 mil anuais, para ficar de olho nos
contratos com a ISL e Adidas. Auletta substituiu uma firma de advocacia londrina
que costumava realizar este trabalho. Auletta recebeu perto de US$ l milhão nos
últimos cinco anos. Seu salário causou atritos dentro da federação.
A primeira reunião da nova Fundação ocorreu em julho de 1986, "com a
presença de Sua Alteza o príncipe Albert de Mônaco. O conselho convidou Sua
Alteza para a presidência honorária da Fundação, e sentiu-se honrado quando
Sua Alteza graciosamente aceitou o convite", revelou a Newsletter do atletismo.
Era a hora da onça beber água. No Natal, o príncipe Albert '| "honrou" a
primeira atividade pública da nova Fundação, dedicada ao incentivo do atletismo.
O evento, no hotel de Paris, em Mônaco, era o "Primeiro Encontro de Gala do
Atletismo Mundial", Nebiolo e seu príncipe condecoraram, com a "prestigiada
Estrela de Ouro do Atletismo", todos os responsáveis pela quebra de recordes do
ano. Para aplaudir, convocou o que chama de "membros da família atlética" —
dirigentes de confiança, jornalistas simpáticos, executivos de televisão e
patrocinadores.
A noite de badalação custou US$ 500 mil. "O objetivo moral desta
instituição é ajudar a aprimorar o esporte de alto nível", anunciou Nebiolo. Ele não
explicou como conciliaria isso com as origens do dinheiro que pagava a
champanhe daquela noite.
Os faraónicos encontros de gala se repetem anualmente. O convite diz:
"Na presença do presidente da Federação Internacional de Atletismo Amador, Dr.
Primo Nebiolo, e de Sua Alteza Real Príncipe Albert de Mônaco, O Encontro de
Gala do Atletismo se realizará no Clube Sporting, de Monte Cario."
Infelizmente, o príncipe Albert não tem qualificações para ser chamado de
"real". No mundo rígido da etiqueta, ele é apenas "sereno". Isso não deve
perturbar muito Nebiolo, que arranjou um príncipe para emprestar credibilidade à
fundação, e um dia o príncipe reinará naquele paraíso fiscal.
Nebiolo ocupa a presidência e ficará no cargo pelo resto da vida. Se a
Fundação for fechada por algum motivo, não há exigência .alguma de destinar os
US$ 20 milhões ou mais existentes na conta do banco de Monte Cario para o
atletismo.
Nebiolo jamais revelou a fonte do dinheiro da sua Fundação. Na verdade,
faz o possível para manter o segredo. Se perguntado a respeito, diz: "A origem é
anônima, porque as pessoas que o doaram preferem assim. O dinheiro é gasto
apenas na promoção do esporte."
Os escritórios da IAAF em Hans Crescent, perto de Knights-bridge, em
Londres, receberam uma cópia de uma grossa brochura, pronta para ser
distribuída. O texto informava que o capital inicial — de um único doador — era
mesmo US$ 20 milhões. Quando manifestamos surpresa pela existência de uma
empresa ou indivíduo capaz de doar uma soma tão vasta, houve consternação. A
brochura foi arrancada de nossas mãos.
Mais tarde disseram que tratava-se só de uma prova, a ser revisada.
Ficamos surpresos, obviamente custara uma fortuna. Explicaram que havia um
erro. Não era um doador só, e a brochura seria reimpressa. Tecnicamente isso é
verdade. A Adidas recentemente doou US$ 50 mil, e um ou dois patrocinadores
entraram com quantias modestas. Fontes da Adidas concordam que a Fundação
de Nebiolo não precisa de mais dinheiro, mas a doação ajudou a dar a impressão
de que os fundos vinham de mais de uma fonte.
A Fundação de Nebiolo mostra bem o que há de errado no Clube. Nos
últimos dois anos a Fundação investiu US$ 516 mil em projetos importantes. No
mesmo período, gastou mais de US$ l milhão em dois eventos de gala em
Mônaco. A cena se
repete anualmente. Até agora algo em torno de US$ 3 milhões já foi destinado a
estas festas.
Há também os valores pagos pela fundação a consultores profissionais,
gastos em viagens, hospedagem e outras despesas não reveladas. As perguntas
sobre o que acontece com a montanha de dinheiro guardada no banco de Monte
Cario recebem a diplomática resposta: "investimento em projetos autônomos su-
pervisionados pelo conselho da IAF e monitorados pelo secretariado da IAF."
Um membro do COI nos contou: "Ninguém comenta estes pagamentos
com as federações, porque seria embaraçoso. Sempre se fala "precisamos
pensar nas crianças que acordam às três da manhã para treinar — só nos
interessa o bem estar dos atletas.' Depois descobre-se que fizeram o contrário, e
centenas de milhares de dólares foram gastos."
O eminente dirigente olímpico deu sua opinião pessoal: "Não sabemos
muita coisa sobre a maneira como surgiram os recursos para a Fundação, apenas
que naquela parte do mundo, na zona cinzenta em que Nebiolo age, houve um
acerto."
13
AS TRAPAÇAS
O melhor ano de Primo Nebiolo deveria ter sido 1987. Mas o lado sombrio
de sua personalidade triunfou, e os doze meses de conquistas para o esporte e
prestígio para sua pessoa são lembrados apenas porque ele era o presidente no
período do pior exemplo de trapaça organizada na história do esporte moderno.
Como se não bastasse, ele se recusou a admitir os fatos ocorridos. Agora
é possível revelar os segredos da conspiração para roubar uma medalha de um
atleta norte-americano no salto a distância, durante o Campeonato Mundial de
Roma, em 1987, e entregá-la a um italiano. Só resta descobrir uma coisa: quando
o presidente ficou sabendo de tudo?
O ano começou como Nebiolo gostava. No final da primeira semana de
janeiro ele comandou uma reunião do conselho da IAAF no Rio de Janeiro, uma
de suas cidades favoritas. O convidado de honra era um velho amigo, presidente
da FIFA e membro do COI, João Havelange.
Depois Nebiolo seguiu para Paris, onde receberia mais uma comenda.
Pouco antes do final do mês ele compareceu ao hotel Inter-Continental. O press
release definiu o evento como "uma ocasião magnífica". O coronel Hamouda
distribuiria os prêmios anuais da revista Champion d'Afrique. Dassler obviamente
servia de anfitrião, e Samaranch se encarregou de entregar as "medalhas de
ouro" para o secretário-geral da UNESCO, Mahtar M'Bow, Havelange e Nebiolo,
perante 200 convidados.
Nebiolo ocupava o palco com perfeição. Bem alimentado e agraciado,
poderia dedicar algum tempo a refletir que planejara 1987 de modo a se manter
no centro do cenário esportivo o ano inteiro. Afirmara que 1987 seria o "ano do
atletismo". A temporada começaria na primavera, com o primeiro campeonato
mundial indoors da IAAF nos Estados Unidos.
Durante o verão haveria os preparativos para o segundo campeonato
mundial de atletismo, a realizar-se no estádio olímpico de Roma. Na véspera do
campeonato, Nebiolo compareceria ao congresso da IAAF, onde seria "reeleito"
presidente, sem a menor oposição, como já sabia.
O Ano do Atletismo deveria ser também o ano de Luciano Barra, um dos
dirigentes esportivos mais importantes da Itália. Empregado do comité olímpico
italiano, foi durante muitos anos um dos grandes responsáveis pelo sucesso do
atletismo local, e pela ascensão de Nebiolo ao poder. Fora da Itália, era
respeitado por sua capacidade de organizar e comercializar eventos de atletismo.
Barra também servia de secretário-geral para a Federação Italiana de
Atletismo (FIDAL), e um dos partidários de Nebiolo na disputa da presidência, no
final dos anos 1960. Ele passara muitos anos como dirigente esportivo viajando
pela Itália, de trem e ônibus, hospedando-se em hotéis modestos e estimulando
organizadores locais a promover o esporte nas várias regiões do país.
Ele funcionou como freio em vários esquemas de Nebiolo, e quando seu
chefe ocupou o palco internacional, Barra manteve-se discretamente um passo
atrás, garantindo que a retórica se transformasse em ação. Quando Dassler
instalou Nebiolo no cargo de presidente do atletismo mundial em 1981, foi criado
um novo cargo na IAAF, de "assessor da presidência". Barra o ocupou.
Mas o grande teste de Barra estava por vir: sediar o maior e mais
complexo evento de atletismo já visto no mundo. Ninguém duvidava de sua
capacidade para garantir que o campeonato mundial de Roma fosse um sucesso.
Mas nem Nebiolo nem Barra previram que uma tarefa tão grandiosa fosse de
impedir que o assistente encontrasse tempo para controlar seu chefe errático e
ambicioso, interessado em garantir medalhas para a Itália.
O primeiro campeonato de atletismo indoors em Indianápolis foi projetado
como mais um triunfo para Nebiolo, mais um passo no desenvolvimento do
esporte. Mas a delegação italiana voltou amargurada dos Estados Unidos.
O campeonato fora organizado para ampliar a força de Nebiolo. Cada uma
das federações — mais de 170 —- recebeu um convite para enviar pelo menos
dois atletas, um homem e uma mulher, tivessem ou não atingido os padrões
mínimos. Isso inevitavelmente aumentou o número de eliminatórias, e dúzias de
atletas sem chance experimentaram uma amostra rápida de uma competição
internacional antes de voltar para casa.
Convidar atletas inexperientes não foi uma demonstração de caridade
esportiva, e sim uma decisão política deliberada. Mesmo as nações com um único
competidor poderiam enviar um dirigente, pago pela IAAF. Eles sim, importavam.
Os dirigentes, e não os atletas, dariam votos cruciais para Nebiolo, quando este
precisasse. Embora a IAAF de Nebiolo dê muitos almoços, nenhum deles sai de
graça.
O campeonato foi disputado no gigantesco Hoosier Dome de Indianápolis.
Mais de 20 mil pessoas compareceram, no maior festival de atletismo indoors de
todos os tempos. Nebiolo expressou seu "imenso prazer" por ter 84 países
competindo. Seu desejo insaciável por recordes mundiais, para aumentar o valor
dos eventos para a televisão, foi satisfeito. Ben Johnson, unia montanha de
músculos entupidos de esteróides reluzindo sob os refletores, percorreu os 60
metros rasos em 6,41 segundos, um novo recorde.
Apesar de tanto sucesso, os dirigentes italianos ficaram furiosos.
Compareceram a Indianápolis acreditando na conquista de uma medalha de ouro
com sua grande estrela no salto em distância, Giovanni Evangelisti. Cari Lewis
não competiria, e o grande rival seria outro americano, Larry Myricks. Evangelisti
não estava no auge da forma, e depois de cinco tentativas, seu melhor pulo foi de
7,91 metros. Na última chance, ele se agachou
na beira da pista e correu para saltar, decidido a ganhar a medalha de ouro.
Os dirigentes italianos tinham certeza de que o salto fora válido. Todos os
olhos se voltaram para o telão de vídeo, e eles juraram ter visto o pé de
Evangelisti pisar bem antes da marca. Quando os juizes americanos ergueram a
bandeira anulando o salto, os italianos ficaram revoltados, convencidos de que a
medalha de ouro lhes fora roubada. E observaram desolados o salto de Larry
Myricks, de 8,23 metros. O incidente abriu uma ferida que jamais cicatrizaria.
O salto controvertido de Evangelisti em março não foi esquecido pêlos
dirigentes da equipe italiana. Embora suas energias se concentrassem na
organização do campeonato mundial em agosto, dali a cinco meses, tinham
tempo de refletir sobre o ocorrido nos Estados Unidos. Em Roma eles forneceriam
os juizes para o salto a distância.
Alguns dirigentes reuniram-se na sede do campeonato, para finalizar os
planos. O tema em discussão era surpreendente: os atletas italianos, ganhariam
as medalhas, a qualquer preço.
Eles discutiram diversos eventos, mas a decisão de Indianápolis ainda
ecoava em seus ouvidos, e resolveram que Evangelisti, desde que aparecesse
para saltar, atingiria a marca próxima dos 8,40 metros.
Notícias a respeito dos planos dos dirigentes da FIDAL vazaram
lentamente dentro da organização, e chegaram aos ouvidos da Sra. Anna
Micheletti, secretária da FIDAL, que avisou o marido, Renato Marino, chefe dos
técnicos dos clubes mais importantes da Itália. Ele mencionou o caso a seu amigo
Sandro Donati, técnico treinador de velocistas da equipe nacional. Donati se
preocupava cada vez mais com o estilo de Nebiolo na direção da FIDAL, e com a
falta de providências oficiais com o doping crescente no atletismo italiano. Marino
decidiu comparecer ao estádio com binóculos, e prestar bastante atenção no que
aconteceria na prova de salto a distância.
Durante o congresso da IAAF em Roma, na véspera do campeonato,
Nebiolo foi eleito para mais um mandado de quatro anus, por aclamação dos
delegados. Depois passou a lutar pelo aumento de seu poder.
Há quase uma década os países pequenos criticavam o sistema de
votação da IAAF. Queriam que cada nação tivesse direito a apenas um voto, e
para Nebiolo convinha alimentar tal ressentimento. Até 1984, os cerca de 170
países membros dividiam-se em quatro grupos. Dependendo do tamanho e do
destaque no atletismo mundial, tinham dois a oito votos nos congressos. Durante
os Jogos de Los Angeles, o sistema foi simplificado para três grupos.
Nos preparativos para o congresso de Roma, os russos apoiaram a
reivindicação das nações menores, na base de um voto por país. Eles se
dispunham a sacrificar sua posição privilegiada por um motivo simples. Com
tantos países dependentes da Rússia, sempre que necessário reuniriam um bloco
com os votos desejados. Ao apoiar os países menores, posavam de
progressistas.
Sob as luzes favoráveis de Roma, em agosto, Nebiolo viu a chance de se
ver livre para sempre da ameaça dos votos contrários por parte dos países da
Europa Ocidental, todos pertencentes ao primeiro time, e insatisfeitos com seu
estilo. Ele recomendou que o congresso modificasse o sistema, e o princípio de
um voto por país foi apresentado como uma revolução democrática. Nebiolo
consolidou seu domínio ditatorial sobre a IAAF.
Ele sabia muito bem que seria fácil garantir o apoio dos países pequenos.
Os ganhos crescentes da federação permitiam bancar o transporte dos atletas e
dos dirigentes para eventos internacionais, congressos e seminários técnicos, de
televisão e de marketing.
O acordo implícito era claro, e foi oferecido para locais remotos como
Vanuatu, Ilhas Cook, Nauru e Ilhas Marianas, no Pacífico; Aruba, Ilhas Turks e
Caicós, no Caribe; Butão, Macau e Laos, na Ásia. Os dirigentes receberiam
passagens aéreas regularmente, acomodações em hotéis de primeira e verbas
generosas em dólares, para despesas, em troca da lealdade que manteria Primo
no primo lugar.
Foi um golpe de mestre. Quanto mais os países poderosos criticavam
Nebiolo por seus gastos excessivos, mais empurrariam os dirigentes de rochedos
plantados nos mares do mundo para seus braços, e todos com o mesmo poder de
voto. Para completar o quadro, tudo parecia muito democrático.
Além de ser o "Ano do Atletismo", 1987 também foi promovido por marcar
os 75 anos da IAAF, Editaram um livro luxuoso, sobre o atletismo, com o título de
"Cem Momentos de Ouro". Encomendaram um filme comemorativo, mais 8 mil
conjuntos de brindes para competidores, dirigentes, patrocinadores, executivos de
televisão e todo o circo que acompanhava o presidente. Medalhas e prêmios
especiais foram distribuídos durante o ano, para "membros da família atlética,
VIPs, convidados e chefes-de-estado". Para o público, Nebiolo inaugurou uma ex-
posição no Foro Itálico, comemorando o aniversário da IAAF, também batizado de
"Cem Momentos de Ouro".
No jantar antes do campeonato, Nebiolo chamou Cari Lewis de lado. Ele
disse que esperava por um recorde mundial — qualquer recorde. "Este será o
maior evento de todos os tempos", avisou. Nebiolo repetiu a mesma história para
Ben Johnson. O canadense foi a estrela de Roma em 1987, e do mundo, nos
treze meses seguintes.
Em junho Johnson passou pelo último ciclo de duas semanas de
esteróides, esperou que o sistema eliminasse os sinais das drogas e viajou para
Roma. Na abertura do campeonato, ele derrotou Cari Lewis e quebrou o recorde
mundial, com a impressionante marca de 9.84 segundos nos 100 metros. "Eu vi
que os dirigentes canadenses tremeram enquanto o teste anti-doping de Johnson
era realizado", disse um membro do COI presente ao evento. Quando a estrela
passou no exame, o agente de Johnson passou a negociar milhões de dólares em
patrocínio.
Lewis, como muitos competidores e dirigentes do atletismo, sabia que
Johnson era um monstro criado pela drogas. Pouco antes da final dos 100
metros, Lewis fora informado de uma conversa altamente suspeita entre o técnico
de Johnson, Charlie Francis, e o técnico americano Chuck DeBus. Ao que consta,
Francis teria comentado: "Direi que Ben tinha gonorréia."
Era a prova virtual de que Johnson tomava uma droga chamada
probenecid, para mascarar traços residuais de esteróides. Um dos usos legítimos
da probenecid é aumentar a eficácia da penicilina no tratamento de doenças
venéreas. Francis estava bem preparado para contestar um resultado positivo.
Lewis disse que ficou perplexo: não sabia se acusava Johnson ou confiava
nos dirigentes para acabar com a fraude. O problema era que Lewis não confiava
nos dirigentes do atletismo de seu país, nem nos internacionais. Mais tarde Lewis
declarou que conhecia pelo menos um ganhador de medalha de ouro em Roma
que tomava drogas, e que outro campeão exibia marcas de agulha na coxa.
Depois de chegar atrás de Johnson nos 100 metros, Lewis viajou para
Londres. Em uma entrevista à televisão, disse: "Existem ganhadores de medalha
de ouro neste campeonato que tomam drogas, sem dúvida. Aquela disputa dos
100 metros ficará na história, por muitas razões. Se eu tomasse drogas, poderia
fazer 9.8 sem problemas." Feita a alusão a Johnson, ele voltou a Roma para
disputar o salto a distância.
Poucos duvidavam de quem venceria o salto a distância, levando as
medalhas de ouro e prata. Cari Lewis e o russo Robert Emitam haviam vencido
várias vezes naquele ano. Lewis se de dicava tanto ao salto que desistiu dos 200
metros rasos, para poder descansar. A disputa seria pela medalha de bronze,
entre Evangelisti, Myricks e o cubano Jefferson.
Ninguém esperava problemas com os juizes do salto a distância. Os três
delegados técnicos oficiais para o Campeonato Mundial de Roma eram Georg
Wieczisk, da Alemanha Oriental, Artur Takac, da Jugoslávia, e Hassan Agabani,
do Sudão. Todos membros graduados do conselho da IAAF de Nebiolo.
Dez minutos antes da prova começar, Luciano Barra e Takac chegaram à
pista e afastaram os fotógrafos da imprensa, alegando que estes obstruíam as
câmeras de televisão e incomodavam os atletas. Mas uma câmera foi esquecida
por todos. No final da pista de salto havia uma câmera estática, automática, que
registrava o percurso de cada atleta. As imagens da câmera eram gravadas em
videoteipe. Dificilmente seria usada numa transmissão ao vivo, porque só
mostrava a ação na pista. Mais tarde seria útil, para a montagem com cenas de
outras câmeras, do momento do salto.
Os juizes, sicilianos em sua maioria, e os dois técnicos ingleses que
monitoravam o aparelho eletrônico de medição da Seiko, esperaram o momento
da ação. A máquina da Seiko substituíra a tradicional medição por fita. Um prisma
reflexivo na ponta de uma haste era colocado na areia, no ponto onde o calcanhar
do atleta tocava o solo, e um raio luminoso "disparado" pela máquina posicionada
no ponto inicial. Se operada adequadamente, dois sinais sonoros tipo bip
indicavam que a medição se realizara.
Naquela tarde, às 5h30, Evangelisti abriu a competição, para delírio da
torcida italiana predominante. Correu pela pista, mas seu salto foi impugnado. A
multidão rugiu. O americano Larry Myricks também queimou o salto. Lewis voou
no ar e marcou 8,67 metros. Não foi superado naquela tarde, e tinha garantido a
medalha de ouro. Emitam ficou em segundo, com uma boa! marca: 8,30 metros.
Meia hora mais tarde começou o segundo round. Evangelisti' tentou de
novo, e conseguiu um salto modesto, 8,09 metros, que o colocou em quinto lugar.
Myricks ficou 5 centímetros atrás. Lewis pulou 8,65 metros, e Emitam queimou o
salto.
No terceiro round o italiano aumentou sua marca para 8,19 metros. Foi
superado no geral por Myricks, com 8,23 metros. Enquanto isso Lewis mostrou
que era mesmo o melhor do mundo, repetindo os 8,67 metros.
Evangelisti iniciou a segunda parte da final saltando menos de oito metros.
Myricks ficou nos 8,19 metros, e Emitam garantiu a medalha de prata, com 8,53
metros. O quinto round deprimiu ainda mais os italianos: Evangelisti foi
impugnado novamente. Myricks, com 8,33 metros, ficaria com a medalha de
bronze.
Era agora ou nunca. Se Evangelisti quisesse derrotar Myricks, seu último
salto precisaria ser especial. Ele se posicionou e fez uma pausa para se
concentrar. Antes que explodisse para a frente, a abertura do Guilherme Tell
ecoou pêlos alto-falantes, anunciando a entrega das medalhas para o arremesso
de peso feminino. O italiano fez um gesto irritado e deu as costas. Precisaria
esperar até o final da entrega dos prêmios para dar seu último salto.
Os organizadores haviam preparado planos elaborados para a entrega de
medalhas. Todos os dirigentes deveriam interromper suas atividades e virar de
frente para o pódio. Todos os olhos e câmeras voltaram-se para as três mulheres
que entravam em campo para receber as medalhas.
Por isso, quase ninguém reparou nas atividades dos juizes na pista de
salto. Os juizes esqueceram-se da câmera automática no final da pista. As
imagens foram gravadas e guardadas nos estúdios da RAI, a televisão estatal, ao
lado do estádio Olímpico.
A cerimônia terminou e Evangelisti preparou-se para seu salto l final, última
chance para ganhar a medalha de bronze. Quando i voou no ar, os espectadores
e conhecedores do esporte sabiam g que havia falhado. Evangelisti saiu da caixa
de areia, deu de ombros como quem diz "Fiz o máximo", e foi embora. "Foi um
bom salto", comentou a Track and Field News, "mas a torcida f não comemorou.
Ele foi embora, e parecia desanimado."
O juiz Sérgio Maggiari entrou na caixa e colocou a marca no ponto onde o
calcanhar de Evangelisti tocara o solo. Os juizes Mário Biagini e Paolo Pellegrino,
que aguardavam do lado de fora para nivelar a areia após o salto, sabiam que
não poderiam se mover antes de ouvir os dois bips da máquina de medição da
Seiko. Eles esperaram, mas a máquina emitiu apenas um bip.
Notaram que havia algo errado, e Pellegrino agiu, colocando seu ancinho
ao lado da marca de Evangelisti, para garantir a medição correta. Avisou Biagini
para não nivelar a areia. Para surpresa de Pellegrino, o chefe dos juizes,
Tommaso Aiello, correu até eles gritando: "Apaguem, apaguem".
Obedientemente, eles nivelaram a areia e a verdadeira extensão do salto perdeu-
se para sempre.
Biagini não pareceu completamente surpreso com o estranho desenrolar
dos eventos. Ele se voltou para Pellegrino e pediu: "Por favor, eu o conheço,
mantenha a calma, isso tudo é maior do que nós dois. Quando sair daqui, melhor
fingir que não viu nada, e ficar de boca fechada."
O resultado surgiu no placar. Evangelisti saltara 8,38metros. O estádio
pegou fogo. Ganharia a medalha de bronze, em terceiro lugar. Quando os outros
competidores fizeram a última tentativa, a multidão de torcedores gritou e vaiou a
todos, inclusive Myricks, que poderia alterar a situação. O norte-americano saltou
bem, mas os juizes mediram 8,20 metros, uma marca superior a todas as outras
de Evangelisti, fora a última. Mas, segundo os juizes, Myricks perdera para o
último e surpreendente salto de Evangelisti na tentativa final. "Saltei mais de 8,20
metros", disse Myricks mais tarde. "Houve algo suspeito no último round."
Evangelisti ganhou a medalha de bronze e o norte-americano ficou em quarto
lugar.
Muitos jornalistas esportivos norte-americanos presentes em Roma
pensaram que o resultado do salto a distância era pouco convincente. E não
estava sozinhos. Um repórter da Finlândia protestou a quem quis ouvir, afirmando
que Evangelisti recebera uma marca superior ao que merecia. O salto foi criticado
por outros especialistas. Na frente da pista encontrava-se um grupos de en-
tusiastas do esporte e estatísticos do atletismo inglês. Um deles, Alf Wilkins, de
Londres, declarou: "Calculamos o salto em cerca de 7,95 metros. Não
acreditamos no resultado. Certamente não foi 8,38 metros. Mesmo os italianos
mais próximos não ficaram animados com o salto. Todos comentaram o caso nos
restaurantes, naquela noite. O resultado foi recebido com reservas.
Wilkins faz parte da associação dos estatísticos do atletismo, que se
recusou a aceitar o salto, classificado como "duvidoso". Um veredito
surpreendente para um resultado obtido num campeonato mundial organizado
pela IAAF na presença de seu presidente.
Dois dias depois do salto, Renato Marino, que observara tudo com o
binóculo, sem identificar exatamente como o resultado de Evangelisti fora
alterado, estava em um bar de Roma. Ali encontrou-se com o diretor do
campeonato, Paolo Giannone e esposa. Enquanto comiam uma pizza, Giannone
disse que ficou preocupado com uma história a seu respeito, publicada nos
jornais. Luciano Barra declarou a um jornalista que recebera de Giannone um
pedido de desculpas por permitir que a cerimônia de premiação do arremesso de
peso feminino perturbasse o russo Sergei Bubka quando este se preparava para
quebrar o recorde do salto com vara.
Giannone insistia que não havia dado o sinal para o prosseguimento da
cerimônia. Estava fora da pista, conferindo a "regularidade" do salto a distância.
— Regularidade? — explodiu Marino. — Irregularidade, isso sim!
— Está vendo? — disse a esposa de Gionnone ao marido.
— Ele é um especialista, e percebeu tudo — Giannone retrucou.
— Eu não percebi tudo porque sou especialista — disse Marino. — Todo
mundo notou algo estranho.
— Você precisa entender — reagiu Giannone — que Evangelisti precisava
ganhar uma medalha. Foi o que nos disseram.
14
ESCÂNDALO
A primeira vítima do escândalo do salto a distância foi a carreira de Nebiolo
na Itália. Não bastava presidir o esporte universitário mundial, o atletismo italiano
e a federação internacional. Ele ambicionava outro posto, o de presidente do
comité olímpico italiano. A presidência controla um orçamento anual de US$ 750
milhões, dispondo de um poder proporcional a este valor. Com isso, seria o primo
no esporte italiano.
A vaga se abriu quando o presidente Franco Carraro entrou para o governo
do socialista Bettino Craxi. Somente os 39 presidentes das federações de
esportes podiam votar. Nebiolo já era | vice-presidente, como líder de um esporte
importante, e pretendia acionar quem lhe devia favores. Contou rapidamente os
votos prováveis e entrou na briga.
A eleição se daria no dia 12 de novembro de 1987, dois meses após o final
do Campeonato Mundial em Roma. Tarde demais para Nebiolo. A esperança de
uma vitória desabou uma semana antes da eleição. Os cronistas esportivos da
RAI ficaram tão per- | turbados quanto os outros repórteres com a incrível proeza
de Evangelisti no último salto. Resolveram aplicar um de seus recursos de vídeo
favoritos, o "Telebeam", uma espécie de tira-teima que analisava dos gols do
futebol aos saltos duvidosos.
Os resultados foram divulgados no noticiário noturno, em horário nobre. A
conclusão estonteante: Evangelista não saltara mais do que 7,90 metros na última
tentativa. Luciano Barra, assistente de Nebiolo, compareceu ao programa como
convidado. Afirmou, calmamente, que uma diferença tão grande — cerca de meio
metro — entre a medição oficial de 8,38 metros e os 7,90 medidos indicava que
não poderia ter ocorrido uma fraude. Ninguém, segundo ele, teria a coragem de
roubar tanto. Um erro técnico explicaria tudo, concluiu. Era a primeira deserção
nas fileiras de Nebiolo. Embora o presidente afirmasse que não havia erro algum,
seu assistente e secretário-geral da FIDAL admitia que o resultado não estava
correio. Sua opinião foi divulgada amplamente na Itália, ecoando principalmente
no CONI, o comité olímpico.
A eleição para a presidência aconteceria na elegante sede do CONI, ao
lado do estádio Olímpico, no Foro Itálico. Na Itália, um país alucinado por
esportes, tratava-se de um grande evento. O jornal mais importante, La
Republica, publicou um artigo longo, em destaque, assinado por Vittorio
Zambardino, sobre a disputa entre Nebiolo e o outro candidato, Arrigo Gattai,
presidente do esqui. "O dia mais longo da vida de Nebiolo começou às 6 horas da
manhã", começava o texto, "quando recebeu um telefonema em casa. Era
Marchio, presidente da federação de boxe. "Eles conseguiram. Levamos uma
rasteira. Vamos perder." Mais telefonemas. Um conselho: "Desista, para salvar as
aparências." Mas Primo iria até o fim.
"Ele foi o primeiro presidente a chegar ao CONI, às 8h20 da manhã. Seu
famoso bronzeado mostra rachaduras. Saúda efusivamente os presidentes que
chegam. Depois enfia a mão no bolso e anda de um lado para o outro, consciente
da derrota, mas . sem saber o motivo. Troca apertos de mão, frios e poucos. Ne-
biolo não sorri. Percorre o corredor das ambições perdidas. Os olhos
avermelhados encaram furiosos os traidores."
Carraro chega, e os presidentes esportivos reúnem-se para o discurso de
despedida. Carraro não perde a chance de apunhalar Nebiolo por causa dos
rumores referentes ao salto a distância, e faz uma referência à "moralização dos
esportes". A votação ainda demora um pouco.
"Alguém, tentando bancar o engraçado, diz: 'Quem quer comprar o meu
voto pode dar um passo à frente"', prossegue o texto do La Republica. "Nebiolo
permanece grudado na cadeira, fitando os óculos. Giorgio di Stefani, às 10h30,
anuncia o resultado: Gattai, 26; Nebiolo, 13. Nebiolo fica mais do que deprimido, é
1,65 metros de puro sofrimento. Ele sussurra: 'Acho melhor cumprimentá-lo.' Com
o rosto transformado numa máscara de angústia e os lábios secos forçando um
sorriso de palhaço, ele aperta a mão de Gattai. Tudo bem. Venceu o melhor.' Seu
sarcasmo trágico é óbvio."
O debate sobre o pulo de Evangelisti transforma-se num escândalo. Três
dias depois da eleição no CONI, a revista mais popular da Itália, UEspresso,
publica o primeiro de uma série de artigos sobre o que realmente aconteceu na
hora do salto. Eles conseguiram reunir indícios de que os juizes participaram de
uma espécie de conspiração para falsificar o resultado, dando uma medalha para
a Itália. Ã revista providenciou sua própria análise computadorizada das imagens
televisivas do salto. Como no Telebeam, ela indicou que Evangelisti pulara menos
do que o medido. Também houve dúvidas sobre vários outros saltos. A história
repercutiu no resto da imprensa e a pressão aumentou.
Era preciso fazer alguma coisa. Luciano Barra anunciou que providenciaria
um inquérito sobre o resultado do salto a distância para a FIDAL. A imprensa
esportiva italiana parecia aplacada. A manchete do Corriere dello Sport" foi:
"FIDAL esclarecerá salto de Evangelisti". Os dirigentes da FIDAL pediram à RAI o
videocassete com todos os saltos. Quando o receberam, tudo parecia normal. Só
semanas depois alguém se lembrou de perguntar se não haveria um teipe
cobrindo o momento da entrega de medalhas. Os técnicos da RAI recordaram-se
da câmera automática posicionada no final da pista, que registrará tudo. Pro-
meteram localizar a fita.
Na primeira semana de dezembro a UEspresso publicou a prova final, em
termos de análise independente. Mostrava, mais uma vez, que o resultado fora
falsificado. A informação deve ter vazado da federação atlética italiana, e neste
caso provavelmente Nebiolo já sabia de tudo.
O artigo levava o título "A Prova Alemã". O salto passara por uma análise
de um grupo formado no Instituto de Esportes de Colónia, liderado pelo Dr.
August Kirsch, também membro do conselho da IAAF. Eles desenvolveram um
modo tridimensional de medida, usando monitores eletrônicos que acompanha-
vam a pista e a caixa de areia de salto. Como a leitura dos monitores se fazia
enquanto os atletas competiam, as provas não podiam ser contestadas. Os
resultados de Kirsch para o salto foram assombrosos.
Todos os competidores, exceto Evangelisti, saltaram mais do que os juizes
declararam. Kirsch confirmou que Evangelisti conseguira apenas 7,91 metros na
última tentativa. A diferença entre esta medida e os 8,38 metros encontrados
pêlos juizes era inacreditável. Uma vingança contra os resultados em
Indianápolis, cinco meses antes.
O que fariam Nebiolo e a IAAF? O conselho da federação se reuniria em
Monte Cario na metade de dezembro, para o balanço anual e US$ 500 mil de
divertimento no "Evento de Gala" da Fundação de Atletismo, Para lembrar Nebiolo
de suas responsabilidades, o jornal Gazzeto dello Sport de Milão o acusou pelo
resultado de Evangelisti.
O escândalo não podia ficar de fora da pauta do conselho em Mônaco.
Barra já admitira publicamente que o resultado estava incorreto. As provas de
Kirsch não admitiam contestação. Duas medições eletrônicas diferentes
condenaram os resultados oficiais, e a imprensa italiana se enchia de revelações
comprometedoras.
No mínimo a medalha de bronze precisava ser cancelada, já não tinha a
menor credibilidade. Nebiolo não quis nem ouvir os argumentos. Tinha a seu favor
o fato da história estar restrita à Itália. Dificilmente alguém que não
acompanhasse a imprensa italiana saberia do escândalo.
A justiça concentrava-se nas mãos de Nebiolo, de seu conselho e dos três
delegados técnicos da federação no campeonato de Roma, Georg Wieczisk, da
Alemanha Oriental, Artur Takac da Jugoslávia e Hassan Agabani do Sudão, um
país devastado por uma década de ditadura militar, guerra civil e fome. As
atividades atléticas eram raras, e a capital, Cartum, um monte de ruínas. Tendo
pouco a fazer no Sudão, o rico comerciante Agabani passava a maior pane do
tempo em sua casa de férias de More-cambe, em Lancashire.
Ele alimentava o sonho de ser escolhido pelo COI para substituir o general
Gadir, representante do Sudão, condenado a quatro anos de prisão pelo regime
militar. Gadir acabou solto e voltou ao COI. Sem participar do conselho do IAAF,
sem viagens e hospedagem nas Olimpíadas e outros eventos, a vida seria abor-
recida para Agabani.
Artur Takac se destacou como atleta. Durante a Segunda Guerra Mundial,
fugiu da lugoslávia para a Suíça, e depois entrou para a Resistência Francesa.
Quando o esporte internacional explodiu ele se tornou um dirigente em tempo
integral, garantindo uma vida boa para si e para a família. Takac participara da
organização de dez Olimpíadas de verão e quatro Jogos de Inverno.
Takac participava da organização dos Jogos Estudantis de Zagreb com
Nebiolo. Também presidira o comité técnico dos Jogos Mediterrâneos. Com um
pé em outro barco, Takac servia de consultor remunerado para o COI. Membro do
conselho da IAAF, também atuava na Associação Atlética Européia.
O terceiro delegado técnico em Roma era Georg Wieczisk, homem que
passara a vida inteira no austero regime alemão oriental. Havia vantagens óbvias
na participação no conselho da IAAF, como a liberdade para viajar pelo mundo e
desfrutar de um estiIo de vida ocidental. Estes "três sábios" encontravam-se em
uma situação delicada situação ao comparecer a Mônaco, sob a égide de
Nebiolo. Talvez não soubessem de todas as histórias publicadas na Itália, mas se
fossem sérios em seu interesse pelo atletismo, seguramente teriam ouvido
comentários de que o resultado não podia ser considerado justo nem honesto.
O relato do inquérito conduzido por Luciano Barra foi levado ao conselho.
Era previsível, no geral. A Olivetti dizia que os resultados fornecidos pelo
computador eram perfeitos. A Seiko insistia que a medição da máquina fora
precisa. Contradizendo o relatório, havia a análise do Instituto Esportivo de
Colónia, assinada por August Kirsch, mostrando 7,90 metros no salto.
Com Nebiolo na presidência, o resultado era inevitável. Ele não aceitava
que houvesse algo de errado. O último salto de Evangelisti e sua medalhe de
bronze foram confirmados. Procurando uma desculpa, Nebiolo jogou com o "efeito
Maradona". "Quando vimos o videoteipe mostrando Maradona ajudando a bola a
entrar no gol com a mão no jogo contra a Inglaterra, na Copa do Mundo,
percebemos que ele trapaceara — mas já era tarde demais, como acontece agora
conosco. Lamento muito." A decisão oficial da IAAF após a reunião de dezembro
dizia: "A prova de salto a distância para homens foi corretamente conduzida, e o
resultado oficial não será alterado."
Confiante de ter abafado o escândalo, Nebiolo dedicou-se aos prazeres da
noite de gala da IAF. Ignorando o alarde em torno do caso Evangelisti, o
presidente Samaranch chegou de Lausanne em um jatinho particular e posou ao
lado de Nebiolo na festa.
Impossível abafar o escândalo. Nebiolo deixara de levar em conta a
determinação do técnico de corrida Sandro Donati. Ele já dera queixa na polícia
romana, que abrira um inquérito. Donati contestou a decisão do conselho da
IAAF, e depois foi até o Foro Itálico, protestando formalmente junto ao CONI
contra o resultado do salto.
Para horror de Nebiolo, o escândalo repentinamente escapou ao seu
controle. Ele manipulava a IAAF, mas não o CONI. Não faltavam críticas a ele no
Foro Itálico. Em janeiro de 1988 o CONI formou um comité de cinco pessoas para
investigar o escândalo e restaurar o bom nome do esporte italiano.
Havia provas incontestáveis de que o resultado do salto fora falsificado, e o
público italiano as descobriu nas páginas de L'Espresso no início de fevereiro de
1988, depois do início do inquérito do CONI. A medida do salto de Evangelisti não
havia sido deliberadamente alterada, como os céticos acreditavam. O salto não foi
medido e pronto!
A verdade surgiu pela câmera automática na pista. Ela ficou ligada o tempo
inteiro, durante a cerimônia das medalhas que atrasou o sexto e último round da
competição. Durante meses o teipe registrado por aquela câmera ficou esquecido
num canto. Agora saía em UEspresso uma única e devastadora imagem daquela
hora. O teipe inteiro passou na televisão italiana.
As imagens chocaram a todos. Aquela noite entrou para a história.
Enquanto a entrega de medalhas acontecia, o juiz Tommaso Aiello olhou para os
lados, de modo suspeito. Acreditando que os olhos de todos concentravam-se na
cerimônia, ele furtivamente colocou o prisma ótico na areia. Depois afastou-se do
local, saindo da cena registrada pela câmera, por cerca de um minuto. Em
seguida voltou, retirando o prisma da areia. Ele registrava a marca de 8,38 metros
para Evangelisti antes que o italiano saltasse. A falsa medida foi registrada pela
máquina da Seiko, pronta para ser apresentada após o salto real.
Nebiolo reagiu de modo surpreendente. Ele ignorou o vídeo-,j teipe com
Aiello e providenciou a remessa de uma carta da sede j da IAAF em Londres,
para o CONI, contestando o direito do l CONI de fazer um inquérito, "qualquer
medida de interferência não autorizada pode ser considerada uma violação ou
transgressão das regras do esporte internacional", sustentava. O uso] do
endereço londrino foi proposital. Nebiolo tentava negar o direito do CONI italiano
de se meter nos problemas de um organismo internacional. O CONI ignorou a
ameaça.
Nebiolo tentou novamente impedir que a verdade fosse revelada. Mais de
um mês depois ele ordenou que outra carta da IAAF fosse enviada ao CONI.
"Fomos informados de que as autoridades italianas encerraram o caso", dizia.
"Como conseqüência disso, damos a questão como encerrada de uma vez por
todas." Mais uma vez o CONI o ignorou, dando seqüência às investigações.
O tão esperado relatório do CONI poderia ter sido pior para Nebiolo. As 83
páginas o comprometiam, mas não tanto quanto algumas pessoas ligadas ao
órgão desejariam. Ao ser publicado em março de 1988, confirmou grande parte
das revelações da imprensa italiana sobre a forma como o resultado do salto de
Evangelisti havia sido falsificado.
Luciano Barra, assistente de Nebiolo, passou por maus bocados. Foi
acusado de negligência na investigação da IAAF. Além dos relatórios da Seiko e
da Olivetti, ele também reunira declarações de todos os juizes do salto, que
confirmaram a "regularidade" de suas ações.
Mas, segundo o relatório do CONI, já se sabia naquela época que se um
dos juizes fosse pressionado, "estaria disposto a revelar detalhes esclarecedores
de um ato ao qual faltava uma explicação adequada, com base na
documentação."
Havia mais críticas a Barra: "Ao invés de limitar a investigação a
documentos irrelevantes para a explicação dos fatos — capazes apenas de
mostrar uma feita de explicações — um inquérito mais rigoroso, se realizado, teria
resultados diferentes."
O CONI encontrou mais evidências de um complô na escolha dos juizes
para as provas de salto a distância. Eles não entendiam H porque quase todos
haviam sido escolhidos na Sicília. Ficaram também desconfiados porque a lista
original de juizes sofrera alterações sem nenhum motivo justificado.
Os investigadores conseguiram a lista original. Um grupo reunido para o
campeonato nacional italiano, um mês antes, trabalhara com eficiência. Tinha
juizes do país inteiro. Depois a lista foi arbitrariamente modificada, e dois juizes
experientes trocados por sicilianos. O CONI concluiu que isso não fazia sentido,
Em seguida o relatório passava para a conclusão. Um inquérito superficial
e incompleto tentara abafar o caso. Registrava "uma clara intervenção da IAAF,
com a intenção de interferir no trabalho do Comité e impedir o esclarecimento dos
fatos." Era uma crítica direta a Nebiolo e, por conseqüência, o comprometia com o
acobertamento.
Quanto ao salto em si o relatório foi bem claro: Evangelisti não saltou 8,38
metros. A medida falsa não se deu por falha no equipamento. O erro deveria ser
atribuído a "atividades conduzidas por pessoas identificadas nesta investigação."
Seis dirigentes da FIDAL, inclusive Tommaso Aiello, que colocara o prisma
na areia, foram expulsos. Luciano Barra, que não sofreu punição alguma,
imediatamente renunciou a seu cargo na FIDAL, dizendo: "Para levar a
tranqüilidade ao atletismo, e me defender melhor, coloco meu cargo de secretário-
geral à disposição do conselho da FIDAL."
Mais tarde Barra admitiu que deveria ter rompido com Nebiolo antes, e
aceitou as críticas à sua "investigação". Voltou da FIDAL para o CONI, sendo
encarregado de trabalhar no planejamento da Copa do Mundo de 1990. A
imprensa italiana ainda não estava satisfeita. A Gazzeto dello Sport mostrou
surpresa pela falta de punições a dirigentes e concluiu: "O silêncio da FIDAL
evidentemente significa que os líderes estão profundamente envolvidos, e como
resultado não podem julgar o escândalo." Uma semana depois, uma reunião de
técnicos italianos em Reggio exigiu que Nebiolo renunciasse à FIDAL.
Menos de um mês depois o conselho da IAAF reuniu-se novamente, desta
vez em Londres. Os jornalistas esportivos sitiaram a sede em Hans Crescem, e
Nebiolo deve ter se arrependido por não ter escolhido um local mais distante de
seu império para o encontro, talvez as Ilhas Marianas. O salto a distância entrou
em pauta novamente, três meses depois que seu conselho encerrou o caso.
O mais incrível foi a recusa de Nebiolo em alterar o resultado, mesmo
depois do relatório do CONI invalidando o salto de Evangelisti e das provas
contidas no teipe da televisão. Sua atitude surpreendente gerou o boato de que
impedira membros do conselho de ler o relatório do CONI. isso não seria difícil,
pois estava em italiano, e ninguém se deu ao trabalho de traduzi-lo. Quando os
membros do conselho chegaram a Londres, o professor Ljunqvist, da Suécia, teria
dito: "Se isso for verdade, os atletas não podem mais confiar em nós."
Não se sabe quem liderou o conselho contra Nebiolo. Quando ele
finalmente desistiu, valeu-se do efeito Maradona novamente, ao inverso.
Triunfante, ele alardeou: "Fizemos o que nenhum outro organismo internacional
fez. Mudamos o resultado depois de assistir à televisão. A FIFA fez isso quando
Maradona usou a mão no gol contra a Inglaterra?" Convenientemente, Nebiolo
ignorou os fatos: Myricks e Evangelisti, dois membros da "família atlética", foram
vítimas de uma conspiração dos próprios dirigentes, e não de um ato espontâneo.
Poucas nações sabem o que realmente ocorreu em Roma, porque o
assunto foi minimizado pelas revistas e informes da IAAF. Há sinais abundantes
de que a IAAF continuou encobrindo os fatos muito depois das revelações do
CONI e da mídia européia. Muitos dos 170 membros da IAAF sabem das notícias
do atletismo somente por intermédio da IAAF Newsletter. Apenas meia dúzia de
países possuem uma imprensa livre e recursos financeiros para acompanhar a
política esportiva. A cobertura do caso Evangelisti pela Newsletter foi deplorável.
Na edição com o balanço de 1988 saiu a pauta da reunião do conselho em
Londres em abril. Nenhuma menção ao escândalo. No meio do longo informe,
espremido entre uma cobertura enorme de um caso de atleta suspenso levado
aos tribunais e outra seção, dedicada ao marketing, havia um pequeno parágrafo:
"Depois de uma revisão da Prova de Salto a Distância Masculina, durante o
campeonato mundial da IAAF em Roma, em 1987, o conselho decidiu por
unanimidade que o sexto salto de Giovanrú Evangelisti não deveria ser contado, e
que o resultado seria ajustado em função disso. Portanto, Larry Myricks tornou-se
o vencedor da Medalha de Bronze (8,34 metros) e Evangelisti (8,19 metros) caiu
uma posição na classificação."
Não se mencionava o teipe da RAI, nem os fatos apurados, nem a
expulsão dos seis dirigentes da federação atlética italiana de Nebiolo, nem pedia
desculpas. Tampouco ficou claro que Evangelisti era totalmente inocente na
conspiração.
A esta altura Evangelisti já havia devolvido sua medalha há muito tempo, e
Myricks se preparava para Seul. E, mais importante de tudo, Nebiolo evitara o
escândalo que poderia tê-lo arruinado.
15
BEM NA CARA DE TODOS
Pense num hotel de alta classe, na Europa Ocidental. Garçons e
garçonetes correm para servir mais de uma centena de hóspedes e suas
respectivas esposas. A comida é ótima, os vinhos de primeira. Acertou: trata-se
de um jantar para os dirigentes de um dos esportes olímpicos mais populares.
Seu presidente, um membro do Clube, ocupa a cabeceira da mesa central. O
banquete faz pane de um final de semana de mordomia, tendo como justificativa
um acontecimento esportivo qualquer.
Todos se vestem com apuro: ternos caros para os homens, longo para as
mulheres. Participa da festa um atleta famoso, atual campeão do mundo, cuja
aparência surpreende. É o único que parece não ter se barbeado.
A quebra da etiqueta não chega a incomodar. Na verdade, chama a
atenção o fato de que o campeão é uma mulher. E exibe uma barba mais cerrada
do que a maioria dos homens presentes. Ela é um exemplo claro de atleta
dopada, bem-sucedida, desafiadora, exibindo os efeitos colaterais do abuso de
esteróides. Está mudando de sexo bem na cara de todos! Os dirigentes
esportivos e o presidente não se importam. Não vêem nada de mais. Só nós a
encaramos.
Muitos dirigentes presentes ao banquete fazem há anos discursos
arrebatados, como paladinos da cruzada anti-doping. Somente neste jantar
percebemos o quanto o doping foi aceito e integrado à vida de muitos dirigentes
do esporte internacional.
Cerca de dois mil atletas serão escolhidos para testes anti-doping
sofisticados na Olimpíada de 1992. A conta chegará a vários milhões de dólares.
Se o passado servir de exemplo, uns doze não passarão, em geral por usarem
esteróides e outras drogas que mascaram o uso de esteróides. Em sua entrevista
coletiva final, o presidente Samaranch poderá anunciar, mais uma vez, que
apesar de alguns incidentes isolados tratados de modo sensacionalista pela
imprensa, realizou-se uma Olimpíada sem drogas.
Um punhado de competidores passará vergonha, o público será enganado,
e os patrocinadores respirarão aliviados porque seu investimento maciço não
sofreu desgaste. A ISL tentará aumentar o preço para a utilização futura deste
"instrumento de comunicação" daqui a quatro anos, em Atlanta. Foi isso o que
aconteceu em Seul. O público recebeu garantias de que Ben Johnson, entupido
de esteróides, era uma aberração esportiva. O programa de testes anti-doping de
Barcelona será similar ao de Seul. l
Há fartos motivos para preocupações com o tratamento dado pêlos
dirigentes esportivos internacionais aos testes anti-doping O fato brutal é que há
anos se sabe, dentro do Clube, que testara atletas no dia da competição é
praticamente uma perda de tem* pó e dinheiro. Não passa de um show, uma
forma de encobrir a verdade. Quem toma drogas recebe orientação profissional,
por parte de médicos e técnicos, sobre o tempo necessário para eu-, minar os
traços das substâncias em seu corpo. Só um irresponsável, ou um Ben Johnson,
que assumiu um risco calculado < que seu último programa de esteróides seria
eliminado antes < Seul, é flagrado.
O único método aceitável para impedir o doping é o teste aleatório. Para
acabar com o doping, só o medo de que, a qualquer momento, durante os treinos,
quando os trapaceiros estão no meio dos programas de doping, uma equipe de
testes apareça de repente em sua cidade natal, no clube ou universidade, e colha
uma amostra. Testes ao acaso raramente acontecem, embora sejam necessários
há duas décadas.
A farsa de se confiar apenas em testes realizados durante os eventos foi
revelada assim que um investigador independente lançou uma luz sobre o mundo
sombrio do esporte. Depois do escândalo de Ben Johnson, o governo canadense
nomeou o chefe de Justiça de Ontário, Charles Dubin, para investigar o caso. Sua
mente independente e clara de jurista desmascarou anos de hipocrisia.
"Mesmo sabendo há anos que os testes durante as competições eram uma
falácia", registrou Dubin em seu relatório, "as comissões médicas de organizações
esportivas como a IAAF e o COI não tomaram providências para divulgar o ardil.
Ao deixar de agir, elas transmitiram a impressão de que as competições são
justas e que os laboratórios não podem ser ludibriados."
Os líderes do COI e das federações têm poucas justificativas. Seus
próprios cientistas, sumidades esportivas como o professor Brooks na Inglaterra,
o Dr. Manfred Donike na Alemanha e o Dr. Robert Dugal no Canadá, sugeriram
testes aleatórios já na década de 970. Até as Olimpíadas de Seul não haviam sido
inicia-^dos. Se as federações e o COI fossem sérios em sua disposição i de
eliminar o doping, poderiam ter investido a nova riqueza da j: televisão e dos
patrocínios para promover uma limpeza nos esportes. Se tivessem feito isso, Ben
Johnson jamais teria sido aceito na equipe de seu país.
Existe a possibilidade de Dubin não ter contado toda a verdade. Há indícios
de que muitas federações nacionais e internacionais ignoraram os usuários de
drogas, abafaram resultados pois em diversas ocasiões funcionaram como
traficantes, fornecendo esteróides para seus times.
Mais de uma década se passou desde que Sebastian Coe falou no
Congresso Olímpico de Baden-Baden, pedindo aos dirigentes que banissem para
sempre os atletas flagrados ao usar drogas. Coe, com o apoio de competidores
do mundo inteiro, vem repetindo o apelo, sem sucesso.
No outono de 1991, quando completávamos este livro, a droga mais
popular entre os atletas britânicos era um produto veterinário para o qual os
cientistas ainda não haviam desenvolvido um teste satisfatório. Os trapaceiros
terão pouco com que se preocupar em Barcelona. A federação atlética aumentou
o período de suspensão de dois para quatro anos, garantindo que os atletas
culpados fiquem fora da próxima Olimpíada. O COI deve implantar a mesma
medida logo. Mas isso não causará problemas a quem usa drogas que não
podem ser detetadas. Um dos truques usados por mulheres é um cateter. No dia
da competição elas enchem a bexiga com urina doada por amigas, sem conta-
minação. E seguem despreocupadas para os testes.
O COI e as principais federações esportivas, como a IAAF, divulgam
documentos comovedores sobre os males do doping. Elas investem somas
modestas em simpósios onde os cientistas esportivos mostram seus trabalhos
aos colegas, mas relutam em investir nas pesquisas para melhorar os métodos de
detetar as drogas, particularmente de substâncias hormonais. O que nunca
fizeram foi usar sua autoridade para promover uma investigação sobre quem usa
drogas, quem as fornece e se a política por elas adotada contra este "flagelo" é ou
não eficiente.
Nem o COI de Samaranch nem o IAAF de Nebiolo investigaram o
escândalo de Ben Johnson. Coube ao governo canadense a iniciativa de realizar
um inquérito adequado. No mesmo ano o governo da Austrália abriu um inquérito
porque seus dirigentes esportivos não investigavam as denúncias de doping. A
rente interminável de revelações sobre doping nos Estados Unidos dos nunca
provocou nenhuma investigação do USOC ou da Federação de atletismo. Foi
preciso esperar pela iniciativa do corte do senador Joe Biden para revelar os
escândalos do doping no país, e obter os testemunhos mais chocantes e
assombrosos sobre os efeitos colaterais dos esteróides.
A corredora norte-americana Diane Williams esclareceu muito este aspecto
do doping. Ela declarou ter sido forçada a se dopar por seu técnico. E relatou seu
caso ao comité de investigação em 1989. Diane contou que foi recrutada por um
dos técnicos mais bem-sucedidos dos Estados Unidos, no início da década de
1980, e imediatamente ele forneceu esteróides. Em um ano ela começou a notar
mudanças em seu corpo. Então ele lhe deu "aquelas pílulas com formato de bola
de futebol — Dianabol". Trata-se de uma conhecida marca de esteróides.
Sua frase seguinte deixou o comité embaraçado e silencioso: "Surgiram
traços masculinos, como bigode e pêlos no queixo. Meu clitóris começou a
crescer assustadoramente", disse Williams.
Em seguida ela começou a chorar, e o comité permitiu que fizesse uma
pausa. Logo prosseguiu: "Minhas cordas vocais se alteraram, a voz engrossou.
Fiquei coberta de pêlos. Os esteróides afetaram meu comportamento sexual. Em
muitos momentos eu virei uma ninfomaníaca."
Os esteróides também permitem que os homens aumentem a massa
muscular, mas os efeitos colaterais são igualmente perturbadores. Na mesma
investigação do senado, o técnico Pat Croce respondeu assim a uma pergunta
sobre o modo como lidava com os jovens que tomavam esteróides para aumentar
os músculos: "Eu digo a eles para abaixar a calça e mostrar se são realmente
|homens. Eles querem ficar grandes e masculinos, mas seus testículos
encolhem."
Por que homens e mulheres correm tais riscos? Uma resposta cândida foi
dada pelo corredor canadense Tony Sharpe, amigo Ide Ben Johnson: "A glória é
doce, os dólares são muitos."
l
% A glória e os dólares são atraentes demais para os dirigentes,
i como para os atletas. Quando um esporte "amador" começa a render
muito dinheiro, graças à televisão e aos patrocinadores, os atletas não são os
únicos beneficiados. As federações ganham prestígio e recursos. Mas tudo pode
se perder, caso o público descubra que seus heróis vivem a poder de drogas
ilícitas. Este temor cria uma cultura da cegueira. Os dirigentes esportivos que
deveriam erradicar o doping olham para o outro lado. Pior ainda, começam a
proteger suas estrelas, impedir que sejam desmascaradas.
Os escândalos atingiram seu pico nos Jogos Panamericanos de Caracas,
em agosto de 1983. Nas Américas, estes Jogos perdem em importância apenas
para as Olimpíadas. Muitos competidores, mais do que o público imagina,
passaram o verão estufando os músculos graças a programas baseados em
esteróides.
Mas uma surpresa os aguardava em Caracas. O Dr. Manfred Donike, de
Colónia, nomeado responsável pelo controle anti-doping, desenvolveu técnicas
novas e mais precisas para os testes. Isso foi descoberto por acidente. A equipe
médica do comité olímpico norte-americano foi a Caracas antes do evento, para
prevenir problemas sanitários e de alimentação. Eles descobriram o novo
equipamento de teste. Sem pensar nas conseqüências, os dirigentes informaram
o pessoal nos Estados Unidos o que esperava por eles.
A catástrofe era iminente, e a equipe mais vulnerável era a dos
halterofilistas. Ao chegarem em Caracas, foram levados secretamente para fazer
testes preliminares nos novos equipamentos. Os; resultados deveriam ter
detonado uma investigação abrangente por i parte das federações esportivas
norte-americanas. Havia onze halterofilistas na equipe. Um teste deu negativo,
em outro a urinai estava diluída demais para permitir a identificação de qualquer \
substância — sinal de que um produto havia sido usado para mascarar as drogas.
Os outros nove testes deram positivo.
Os dirigentes não pensaram em mandar a equipe de volta diretamente e
tomar providências para acabar com o doping. taram pelo encobrimento. Teria
sido muito constrangedor retirar dez dos onze atletas da competição. Todos
participaram,: dez deles tiveram um desempenho ridiculamente baixo. Só os
ganhadores de medalhas passavam pelo teste. Assim, eles escaparam das
medalhas e do desmascaramento.
O único halterofilista que passou no teste esforçou-se ao máximo e ganhou
três medalhas de ouro. Tornou-se o primeiro usuário de drogas a descobrir que é
possível passar no teste num dia e ser reprovado no outro. Traços da droga
permanecem nas gorduras do corpo, e passam para a urina em concentrações
variáveis. O gráfico da limpeza do corpo não é uma reta linear para baixo.
Apresenta um contorno irregular nos últimos dias, e quando o ganhador das
medalhas forneceu a amostra de sua urina, o teste acusou traços de drogas. Ele
perdeu as três medalhas.
Sua vergonha se diluiu num escândalo ainda maior. Pelo menos uma dúzia
de atletas chegou à Venezuela, ficou sabendo do risco, deu meia volta e retornou
aos Estados Unidos. Nem chegaram a pisar no estádio.
A história não acabou aí. Os atletas fugiram porque tinham certeza de que
não passariam nos testes e seriam desmascarados. Muitos deles, contudo,
tinham competido no Primeiro Campeonato Mundial de Atletismo em Helsinque,
havia duas semanas, quando seus corpos tinham índices ainda maiores de
esteróides. Nenhum resultado positivo foi anunciado na Finlândia. Era ina-
creditável.
O Dr. Donike também estava encarregado do controle de doping em
Helsinque, e usara o mesmo equipamento lá. Dias depois dos testes, foi
encaixotado e remetido para Caracas. Havia | apenas uma diferença significativa
entre os dois eventos. O campeonato de Helsinque foi o primeiro evento de porte
presidido l por Primo Nebiolo, depois que assumiu o controle da IAAF. Era l a
primeira leva dos milhões de dólares que começavam a inundar o esporte
mundial. Ele anunciou que não houve nenhum teste positivo em Helsinque.
Há poucas dúvidas de que o evento da IAAF em Helsinque oi um
campeonato de vários drogados. O jornalista John Rodda comentou no Guardian
de Londres: "Havia dúvidas e suspeitas obre a maneira como alguns atletas
chegaram ao auge. A alta incidência de contusões causou profunda preocupação.
A suspeita de que as contusões podem ter sido provocadas pela pressão
excessiva sobre o corpo, resultado do uso de drogas, nunca foi abertamente
discutida."
Um ano depois de Helsinque, o corredor norte-americano dos 400 metros,
Cliff Wiley, afirmou: "Pelo menos 38 testes deram positivo, dos quais 17 eram
norte-americanos. Mas os atletas eram tão importantes que os organizadores não
tiveram coragem de acusá-los."
A história de Caracas e Helsinque foi revelada pelo Dr. Robert Voy.
Especialista em medicina esportiva, tornou-se chefe da equipe médica do USOC
em 1984. O Dr. Voy criou vários problemas. Ele não queria entrar para o Clube.
Lutou contra o encobrimento e fez campanha pelo fim das drogas no esporte.
Renunciou a seu cargo em 1985, quando o USOC cortou seu orçamento.
"O IAAF deve ter alterado os resultados em Helsinque", disse o Dr. Voy,
que reserva sua crítica mais contundente para o presidente do atletismo: "Não
tenho dúvidas de que, pelo menos em 1983, Nebiolo não exigiu testes honestos e
rigorosos em Helsinque."
Nebiolo e o conselho da IAAF promoveram uma reunião três meses depois
de Helsinque, e anunciaram que lançariam um programa rigoroso de testes
aleatórios, sem anúncio prévio. Isso foi amplamente divulgado, e o público se
tranqüilizou. Os trapaceiros seriam intimidados, deixariam o esporte ou a droga. O
grama parecia muito convincente. Nunca foi colocado em prática, \
O fato da IAAF enganar o público já era muito ruim. O comitê olímpico dos
Estados Unidos foi mais longe ainda. Faltando um ano para os Jogos de Los
Angeles, dedicaram-se a ensinar à delegação como enganar os testes anti-
doping. Lançaram programa eufemisticamente voltado para "testes anti-doping
educacionais e não punitivos", num laboratório credenciado pelo COI| na
Califórnia, montado para as Olimpíadas.
Oficialmente, o esquema se destinava a familiarizar os atletas com os
procedimentos nos testes antes das Olimpíadas. Era uma piada escabrosa.
Pouca gente precisava de treinamento para urinar num vidro. Para os usuários de
drogas, o programa caiu do céu. Correram para o laboratório, aprendendo
exatamente em quanto tempo seu corpo se livrava dos traços de esteróides. As
doações espontâneas de pessoas e empresas, feitas ao USOC para preparar os
atletas para os Jogos, acabaram servindo para estimular as trapaças dos atletas.
Nenhum norte-americano foi flagrado nas Olimpíadas de Los Angeles. Entre os
estrangeiros, 14 não passaram nos testes.
Nem todos os dirigentes norte-americanos participaram deste escândalo.
"Quando soube do programa de teste pré-olímpico do USOC, destinado a ensinar
aos atletas maneiras mais eficientes de driblar os testes oficiais", disse a técnica
Pat Connolly, da equipe feminina, para o comité de investigação do senado, "eu
me senti traída, como uma criança abandonada pêlos pais."
Os Jogos de Los Angeles deram mais indicações da importância conferida
pelo presidente do atletismo, Nebiolo, aos flagrantes de doping. O escândalo mais
famoso de 1984 foi a saída do finlandês Martti Vainio minutos antes da largada
dos 5 mil metros rasos. Enquanto os corredores alinhavam-se na pista, chegou a
notícia de que o teste anti-doping de Vainio, realizado após a conquista da
medalha de prata nos 10 mil metros, dias antes, dera positivo.
Um dos juizes técnicos, Fred Holder, da Inglaterra, pediu a Vainio que se
retirasse. "Vainio saiu sem discutir, abandonando a pista imediatamente", Holder
contou em entrevista. "Mais tarde, Nebiolo ficou furioso. Insistiu que apenas o
conselho da IAAF poderia tomar uma decisão dessas."
O conselho só se reuniria novamente depois do encerramento i dos Jogos,
e suspeitava-se que Nebiolo planejava anunciar a des-|: classificação de um
ganhador da medalha de prata após o final |das Olimpíadas, quando a atenção da
mídia seria relaxada. Um dirigente da IAAF disse: "Isso foi uma besteira típica de
Nebiolo. Mostrou sua falta de experiência, sempre tentando esconder um
problema,"
Vainio comentou mais tarde: "Acho que havia outros. Fui o único
considerado culpado. Concordo com minha punição, mas quantos atletas deveria
haver neste barco?" Mais tarde revelou-se que o teste de Vainio na maratona de
Roterdam, dois meses antes, dera positivo. Os dois resultados deveriam implicar
no banimento perpétuo. Mas ele só foi acusado pela falta nas Olimpíadas, e
suspenso por 18 meses.
Os escândalos se sucediam, sem parar. Depois dos Jogos de Los Angeles,
o evento internacional seguinte era o segundo Campeonato Mundial de Atletismo
em Roma. O grande logro de 1987 foi o pulo de Evangelisti, mas a tolerância ao
doping foi igualmente triste.
No final do campeonato Nebiolo, de olho na bolsa dos patrocinadores,
afirmou que promovera um campeonato "livre de drogas". Era quase inacreditável
que um dirigente esportivo veterano negasse tão cinicamente um fato
reconhecido por cada atleta, técnico ou jornalista.
Um dos "triunfos" do campeonato foi o novo recorde dos 100 metros rasos,
por Ben Johnson. Um membro do COI, presente ao campeonato, declarou em
uma conversa particular: "Os dirigentes da equipe canadense tremeram até o
momento em que Ben Johnson passou no teste." Que Johnson tomava drogas
era um segredo de araque no mundo do esporte, mas o público não sabia. Pelo
jeito ele administrou bem o período de descontaminação antes de seguir para
Roma.
Cari Lewis, segundo colocado, atrás de Johnson, declarou em J entrevista
para a televisão: "Há ganhadores de medalhas de ouro neste campeonato que
certamente tomam drogas. A prova dos;| 100 metros ficará na história, por mais
de um motivo. Se eu usasse drogas, poderia fazer 9.8 agora mesmo."
Quando os repórteres questionaram Nebiolo sobre as acusações de Cari
Lewis, a melhor resposta que ouviram foi: "Ele deveria fazer um relatório para a
federação norte-americana". Duas semanas depois de quebrar o recorde,
Johnson foi recebido em audiência no Château de Vidy, pelo presidente
Samaranch.
Se o comportamento público de Nebiolo à frente da IAAF irritou os
observadores, a verdade sobre a federação italiana, que ele presidia também,
deixaria a todos sem fala. Ben Johnson e outros trapaceiros de Roma se
dopavam secretamente. Na Itália a situação beirava o inacreditável: as maiores
estrelas do atletismo passavam por doping com sangue e programas de
esteróides organizados e pagos pela FIDAL de Nebiolo, a federação atlética
nacional italiana.
Desde o início da década de 1980 a federação italiana estimulava o doping
com sangue. Meses antes de um evento importante, um atleta doava meio litro de
sangue. As células vermelhas, que transportam o oxigênio, eram extraídas e
injetadas novamente na véspera da competição. Como o corpo providenciara a
reposição das células no intervalo, o resultado era uma quantidade maior de
células vermelhas, e mais oxigênio nos músculos, durante as provas. Acreditava-
se que um corredor poderia diminuir seu tempo nos 5 mil metros em cinco
segundos.
Esta prática só foi proibida pelo COI no final da década de 1980, mas
sempre a consideraram imoral. Isso não incomodava a federação de Nebiolo. Um
de seus assessores técnicos, Dr. Francesco Conconi, era professor de bioquímica
na Universidade de Ferrar.
Não resta dúvida de que o líder do atletismo italiano estava [informado da
situação. No dia 10 de junho de 1983, Conconi ^escreveu a Nebiolo:
"Caro presidente, a pesquisa nos últimos três anos permitiu o
aperfeiçoamento de tecnologias superiores àquelas utilizadas em Moscou em
1980, lugoslávia em 1981 e Atenas em 1982."
O trabalho preparatório para Los Angeles, com os atletas que participarão
do programa, levará quatro meses. Precisamos iniciá-lo antes de l de novembro
de 1983. As tecnologias que pretendemos usar implicam em execução longa e
laboriosa, e o programa resultante será muito complexo."
Vários atletas presentes a Los Angeles passaram pelo doping com sangue.
A teoria não funcionou na prática, e as medalhas extras não se materializaram.
Depois dos Jogos, alguns documentos vazaram para a imprensa italiana e o
escândalo foi revelado.
O doping com sangue era questionável, porém legal na época; os
esteróides não. Isso não deteve a FIDAL em seu desespero de conseguir
medalhas, aplausos na Itália e mais contratos de patrocínio.
Na véspera da partida da equipe italiana para as Olimpíadas de Los
Angeles, o técnico de corridas Sandro Donati e um colega entraram no escritório
do departamento técnico da FIDAL e tropeçaram em uma caixa de papelão
coberta de rótulos dos Estados Unidos. Eles a abriram e encontraram mais de mil
frascos de esteróides. Cada frasco continha 100 pílulas de 5 mg. Provinham de
uma empresa de Nova York, e na caixa havia um aviso: "Somente com receita
médica."
As drogas eram administradas sob supervisão de um funcionário da FIDAL
em tempo integral. Ele executou seu trabalho metódica e burocraticamente,
insistindo com todos os atletas em tratamento para que assinassem um termo de
compromisso. A primeira versão, manuscrita, foi encontrada nos arquivos da FI-
DAL, e dizia:
Eu, ......... (nome do atleta), declarou que desejo realizar terapia com o
esteróide anabolizante ......... (nome da droga), em adição ao meu treinamento.
Faço isso por minha escolha e assumo a responsabilidade.
A FIDAL considerou esta redação muito explícita, e a trocou por uma
versão mais branda:
Eu, ...........(nome do atleta), declaro que por minha livre e
espontânea vontade desejo me submeter a terapia médica e remédios
sugeridos pêlos médicos da FIDAL. Serei informado da dosagem, possíveis
efeitos colaterais e reações adversas, além de informações sobre sua possível e
eventual toxidez.
Donati desafiou Nebiolo pessoalmente, e finalmente o confrontou. "Você
precisa ter uma visão mais ampla das atividades da federação", explicou o
presidente. "Eu dedico muito esforço à promoção do atletismo. O esporte tinha um
perfil muito baixo na mídia e junto ao público. Temos um grande circo, e se esti-
carmos demais a lona, o teto vai cair. Precisamos olhar o conjunto, não um só
aspecto. Não queremos que o teto caia."
O teto desabaria nas Olimpíadas de Seul. Pouco depois de congratular
Ben Johnson pelo recorde dos 100 metros em Roma, Samaranch declarou à
imprensa: "Garanto a todos que podem ficar tranqüilos, pois seremos muito firmes
na questão do doping. Trata-se de um tipo de fraude que não podemos tolerar."
Os fraudadores sabiam que não tinham muito a temer, e quando a primavera de
1988 deu lugar ao verão, dedicaram-se a tomar suas pílulas e injeções.
A primeira pista surgiu em maio. Um dos primeiros eventos importantes da
temporada era o Gatorade Classic, em Knoxville, no Tennessee. Quando
anunciaram que haveria testes anti-doping, muitos competidores desistiram. Só
um dos oito lançadores de disco apareceu, e um conhecido astro do salto triplo
cancelou sua participação.
O mesmo ocorreu no Pepsi Classic, realizado uma semana antes das
eliminatórias norte-americanas para as Olimpíadas. Ali também houve controle de
drogas. Faltaram tantos atletas que as provas de lançamento de peso e disco
foram canceladas.
As eliminatórias para as Olimpíadas foram disputadas em julho, em
Indianápolis. Mais uma vez, levantou-se a suspeita de que os trapaceiros estavam
usando drogas, pois precisavam se classificar para Seul. A prova estava nos oito
atletas com resultados positivos no teste da planta que produz efedrina, um
conhecido agente mascarador de esteróides. Eles foram inocentados porque a
efedrina também pode ser encontrada em algumas vitaminas.
Um ano mais tarde a maratonista australiana Lisa Martin afirmou que 17
atletas tiveram resultados positivos nas eliminatórias olímpicas dos Estados
Unidos. Seu empresário declarou que ela compareceu a um encontro depois das
eliminatórias, quando os atletas foram avisados: "Em Seul os testes serão para
valer."
As eliminatórias nos Estados Unidos apresentaram outra sensação: Flo-Jo,
a corredora Florence Griffith-Joyner, cuja carreira anterior não registrava maiores
feitos, A edição de 1987 da Track & Field News não a listava entre as dez
mulheres mais rápidas do mundo, e a colocava em sétimo lugar no ranking norte-
americano. Mesmo assim em um ano, como comentou venenosamente o
treinador de Ben Johnson, Charlie Francis, "ela é uma aberração histórica na
curva de performance, seus tempos estão cinqüenta anos à frente." Ela ganhou
três medalhas de ouro em Seul, quebrando dois recordes mundiais.
Cari Lewis e outro atleta destacado levantaram a questão do uso de
drogas. Um jornalista do Times de Londres perguntou: "Seria ela um hermafrodita
drogado?" Em novembro de 1991 Griffith-Joyner declarou aos jornalistas que,
embora "não quisesse perder tempo e dinheiro em um processo", ela iria "pegar
Lewis".
Depois dos Jogos de Seul, a revista Stem publicou uma declaração do
antigo campeão norte-americano dos 400 metros, Dar-| reli Robinson, que ela
havia pago US$ 2 mil por um frasco de 10 cc de hGH — hormônio de crescimento
humano. Na televisão ela o chamou de "lunático maluco mentiroso". Flo-Jo pás-*;
sou por todos os testes anti-doping que realizou. Entretanto, ainda não existe um
teste confiável para hGH.
Ben Johnson foi a melhor notícia para o COI e a IAAF nos anos 1980.
Finalmente podiam exibir um novo "homem mais rápido do mundo". Os recordes
mundiais de Johnson em Roma e Seul emocionaram o público e os
patrocinadores. Samaranch e Nebiolo pegaram carona no sucesso dele.
Johnson enfrentava problemas ao se preparar para Seul. Sua equipe
descobriu, no final de 1987, que depois de três anos de doping com hormônios,
seu peito esquerdo crescera muito. Ele estava virando mulher! Isso não foi
revelado ao público canadense, que recebia garantias dos dirigentes nacionais: o
esporte ali era limpo, porque os testes aleatórios haviam sido anunciados. Anun-
ciados sim, realizados não. Sempre havia uma desculpa para o adiamento.
Johnson estava pronto para levar mais glória e dinheiro aos dirigentes de Seul.
Os preparativos de Johnson para as Olimpíadas foram perturbados por
uma contusão, mas seu programa de doping prosseguiu inabalável. No final de
agosto ele começou a última série de duas semanas de doping, antes de Seul.
leria 13 dias até o torneio de aquecimento, em Tóquio, sem testes, e depois iria
para Seul, rezando para que seu corpo tivesse eliminado todos os sinais de
esteróides. Estava enganado.
O COI contestou as suspeitas de que teria preferido abafar o caso,
evitando um escândalo que assustaria os patrocinadores. Resta o fato de que
alguém dentro do laboratório de testes do COI ficou tão preocupado com o
possível ocultamente que vazou o resultado para a imprensa.
Se pode haver algo mais sórdido no esporte do que a ' 'exclusão" de
Johnson como usuário de drogas, foi a reação do COI e da IAAF à questão da
nova entrega de medalhas. Dois anos antes o atleta russo Vladislav Tretyak disse
na cara de Samaranch: "Quando um competidor ganha uma medalha e é
desclassificado, o vencedor real deve receber as honras que merece — o que
normalmente não acontece."
Não aconteceu em Seul, tampouco. A exigência de Tretyak foi te ignorada
quando Johnson perdeu a medalha. Limitar os estragos era a ordem do dia. O
escândalo já prejudicara demais a imagem e o valor econômico dos Jogos. A
última coisa que o nervoso presidente desejava era divulgar o desastre através de
uma segunda cerimônia pública de entrega de medalhas.
Samaranch olhou para o outro lado enquanto Nebiolo restringia a
"cerimônia" de premiação de Cari Lewis, Liníòrd Christie e Calvin Smith com suas
novas medalhas a seu escritório fechado, no estádio de Seul. "Não haverá
cerimônia especial", declarou a porta-voz do COI, Michele Verdier. "É uma regra
da IAAF".
Ben Johnson cometeu três erros graves em sua juventude: tomou
esteróides, foi flagrado e exigiu um inquérito para limpar seu nome. O governo
canadense o atendeu, nomeando o juiz Charles Dubin para chefiar a comissão de
inquérito. As provas foram trazidas a público, sob juramento, durante o ano de
1988, em Toronto. Tornou-se uma das investigações mais completas já realizadas
no esporte moderno.
Se o governo canadense não abrisse o inquérito, não haveria investigação
do caso Johnson. O escândalo teria sido rapidamente esquecido num canto. O
público poderia ficar sossegado, tu-'. do não passava de uma tragédia pessoal
restrita a Johnson. Dubin logo mostrou que estas afirmativas não passavam de
absurdos perniciosos.
Nas audiências ficou claro que todos as pessoas importantes', no atletismo
canadense e mundial sabiam que membros da equipe do técnico Charlie Francis,
Johnson inclusive, pertenciam à "irmandade da agulha". Contudo, nenhum
dirigente rompeu filei») rãs e protestou quando Johnson passou em um teste após
out quando era conveniente para ele fazê-los. Organizando os de doping, limpeza
e provas com testes, Johnson conseguiu sar por 19 testes em dois anos, antes
dos Jogos de Seul.
Dubin examinou as declarações do COI e da IAAF, a respeit da eficácia
dos testes anti-doping durante as competições, tidc como capazes de reprimir
fraudes, e confrontou as declarações com os depoimentos obtidos. Ele chamou
testemunha após testemunha, e muitos admitiram que usavam drogas ou
estavam envolvidos no fornecimento de drogas a atletas.
Tendo revelado a abrangência do doping, Dubin arrasou com a afirmação,
usada desde os Jogos de 1968, de que o pequeno número de resultados
positivos nos testes "provava" que o doping era um mal menor. Ele mostrou o
óbvio; nas palavras do inglês sir Arthur Gold, "só os descuidados ou mal
orientados são descobertos".
Implacavelmente o juiz canadense destruiu os mitos impostos pêlos
presidentes esportivos com o passar dos anos. Dubin compreendeu de que
maneira o público fora iludido. Ele mergulhou nas estatísticas exibidas pelo COI
para "provar" que apenas um punhado de competidores usava drogas. Segundo
Dubin, elas foram "usadas de modo enganoso, nas diversas tentativas de mostrar
que o abuso de drogas ocorria apenas com uma pequena porcentagem dos
atletas. Esta preocupação com as aparências, e não com a essência, é um tema
contínuo nas provas."
O sueco responsável pela comissão médica da IAAF, Arne Ljungqvist,
enfrentou fogo pesado. Ljungqvist é uma figura de destaque no atletismo sueco e
mundial. Dubin notou que Ljungqvist afirmou: "Os Jogos em Seul não podem ser
considerados As olimpíadas da droga'. Cerca de 1600 atletas foram examinados,
e surgiram dez resultados positivos. O problema em Seul foi que um dos atletas
dopados se chamava Ben Johnson."
Dubin retrucou em seu relatório: "O dr. Ljungqvist e outros l sabem que os
testes durante as competições não pegam todos os ^atletas culpados. Mesmo
assim, usam os resultados durante as í competições para medir a extensão do
doping em Seul. As pro-ivas constantes deste inquérito provam que os atletas
flagrados em |Seul não eram os únicos usuários de drogas, apenas os únicos
foram identificados."
í O juiz prosseguiu: "O dr. Ljungqvist desvia a atenção para |os testes
positivos, e deixa de lado o problema real do doping no
sporte. O público em geral foi levado a acreditar que se um unico atleta
teve resultado positivo, os outros não usavam drogas. Sabemos agora, como o
COI e a IAAF sabe há anos, que esta presunção é falsa."
As bases para as críticas de Dubin foram: em 1985 a IAAF anunciou que
as federações iniciariam testes anti-doping fora das competições, e que a IAAF
realizaria testes arbitrários em campeonatos nacionais. "Pouco ou nada foi feito
para implantar esta decisão", comentou Dubin.
Havia mais: "A IAAF também tinha poderes para delegar a realização de
testes às federações. Contudo, dos 184 países membros da IAAF, poucos tinham
um programa de testes fora das competições, em setembro de 1988. Sendo
assim, a regra nunca foi cobrada."
Finalmente o público ouvia a verdade sobre a federação de Ne-biolo:
"Infelizmente não usou sua influência de modo mais significativo para erradicar o
problema das drogas do atletismo. A postura da IAAF parece ser a de reagir ao
problema somente depois dos acontecimentos. A comissão médica da IAAF sabe,
desde sua fundação, que apenas os testes durante as competições não
constituem métodos eficazes de detetar esteróides, nem desencorajam
eficientemente o uso de esteróides."
Dubin conclui que só há uma maneira de limpar as Olimpíadas. Ele sugere
que o COI impeça a participação de qualquer federação nacional que não
organize e implemente efetivamente um programa eficaz de controle de doping.
Dubin deu o tom para Barcelona.
O relatório Dubin deveria ter revolucionado o esporte mundial. Foi
ignorado. A palavra "Dubin" aparentemente entrou na lista negra da COI Review e
da IAAF Review. Apena o Canadá, Austrália e os países nórdicos possuem
programas independentes de testes aleatórios, amparados pela lei e executados
por organismos escolhidos pelo governo. As federações esportivas perderam
seus poderes nestes países. Pode-se pensar que as federações internacionais
ficaram satisfeitas com esta política, pois aumentaria a confiança do público na
limpeza do esporte, finalmente.
Não é este o ponto de vista do dr. Nebiolo. Em julho de 1991 a IAAF enviou
novas instruções a todos os seus membros, no mundo inteiro.
"Alguns governos nacionais criaram Agências Nacionais Anti-Doping,
responsáveis pelo controle do doping no esporte. Percebemos, com alguma
preocupação, que estas agências assumiram o controle total dos assuntos de
doping nos países respectivos, e que os procedimentos adotados contrariam as
Regras da IAAF. A Comissão de Doping da IAAF acredita que os países membros
devem efetuar todos os esforços para recuperar o controle."
Outro ponto dava a impressão de ser mais uma tentativa de voltar o
relógio. Sempre se suspeitou que os dirigentes do atletismo eram muito seletivos
ao escolher atletas para os testes, preferindo competidores que sabiam estar
"limpos" e ignorando os dopados. Em outra carta, havia uma recomendação para
que os dirigentes nacionais tentassem recuperar a prerrogativa de escolher quem
seria testado.
A milionária IAAF finalmente iniciou os testes com seu ' 'grupo móvel". No
primeiro ano, a partir de maio de 1990, conseguiram testar apenas 113 atletas em
todos o mundo. Nenhum teste deu positivo, e nenhum teste foi realizado em
cidadãos norte-americanos. Há questões relativas a liberdades civis nos Estados
Unidos, no que diz respeito a testes aleatórios. Nebiolo não pretende dizer aos
norte-americanos, patrocinadores tão ricos, que têm o direito de não fazer os
testes — e que os demais têm o direito de excluí-los das competições. Vale
lembrar que muitos atletas norte-americanos desejam a implantação dos testes.
Apesar da contundência dos comentários de Dubin, apesar da ignomínia
que o escândalo Johnson deveria ter representado para Nebiolo e seu conselho
da IAAF, apesar do atletismo ter fracassado na erradicação do doping, eles ainda
desejam o direito de controlar os testes anti-doping. Mau sinal para Barcelona.
O COI e a IAAF tentam minimizar a doença que ataca o esporte. No final
de 1988, em Lausanne, o presidente Samaranch declarou sem rodeios: "O COI
está ganhando a guerra contra as drogas." Um de seus planos largamente
divulgados previa um "laboratório voador" do COI, para realizar testes ao acaso.
Custaria, segundo estimativas, US$ l milhão para ser montado, e mais US$ 500
mil anuais para operar. Parecia impressionante. A polícia anti-doping do COI
circulando pelo mundo, mergulhando para atacar os malvados. Como sempre, era
só aparência, sem essência. Dezoito meses depois o COI, que está gastando
US$ 40 milhões em um novo museu olímpico em Lausanne, discretamente
cancelou o projeto, por falta de verbas.
Mais incrível ainda, Samaranch e Nebiolo anunciaram que depois de
completar dois anos de suspensão, Ben Johnson seria bem-vindo na Olimpíada
de Barcelona. O cinismo não tem fim. Um atleta que tomou drogas por quase dez
anos, calculava suas doses para evitar um flagrante, e que mentiu ao ser
desmascarado, estava sendo encorajado a contribuir com sua moralidade duvi-
dosa para as Olimpíadas.
Houve uma certa gritaria dos dirigentes esportivos internacionais. Muitos
seguiram a linha oficial, e declararam que Johnson já fora suficientemente punido
e agora merecia o perdão.
Na metade de 1988, a fundação atlética de Nebiolo patrocinou um
simpósio sobre doping em Monte Cario. Os encarregados de testes e dirigentes
esportivos presentes ouviram uma interessante declaração do único dos
presentes que não era cientista, o ex-técnico inglês Ron Pickering: "Nenhum
presidente pode dizer que temos Jogos sem drogas, só porque não houve resulta-
dos positivos identificados — ou divulgados, nenhum presidente deveria dizer que
Ben Johnson é bem-vindo nos próximos Jogos. Seria pura hipocrisia aceitá-lo de
volta, quanto mais considerá-lo bem-vindo." A intervenção de Pickering
representou um sopro de ar fresco no simpósio, no mais complacente.
O principal consultor do Inquérito Dubin foi o QC Robert Armstrong. Em
1991, discursando em uma conferência anti-doping, ele repassou as descobertas
feitas em Toronto, sobre a maneira como os dirigentes internacionais enganavam
o público quando o tema era doping. Ele insistiu no ponto de que os testes
durante os eventos eram inúteis para determinar o uso de drogas.
Lamentou também, após as audiências de Biden nos Estados Unidos, "que
as provas tenham recebido tão pouca atenção por parte do COI e da IAAF, algo
surpreendente." Ele resumiu o estilo de liderança de Nebiolo, dizendo que no
passado o presidente da IAAF "parecia se satisfazer com pouco mais do que
exercícios de relações públicas."
Depois ele criticou o COI: "Eles não têm motivos para ficarem orgulhosos
ou satisfeitos com suas realizações. A comissão médica sabe há anos que os
testes na hora da competição são pura perda de tempo no caso dos esteróides."
Armstrong concluiu: "Há uma falha na liderança de nossas organizações
esportivas, a nível nacional e internacional. Nossos líderes esportivos nos
decepcionaram."
16
UM ADVOGADO DE DÊS MOINES
No final dos anos 80, Robert H. Helmick estava a ponto de se tornar um
dos homens mais poderosos do esporte internacional. Pertencia a uma geração
mais nova, se comparado a Sama-ranch, era norte-americano e conhecia Horst
Dassler. As coisas começavam a acontecer para ele. Helmick era o Número Um
no esporte olímpico norte-americano. De repente, no outono de 1991, seu rosto
ocupou a primeira página dos jornais americanos. Ele foi apanhado recebendo
dinheiro de empresas por baixo do pano, para facilitar negócios envolvendo as
Olimpíadas.
Não ocorreu apenas uma tragédia pessoal. A queda e desgraça de
Helmick mexeu com o centro do conflito das Olimpíadas modernas: o dinheiro.
Durante uma década o COI de Samaranch brigou com o poderoso comité
olímpico dos Estados Unidos pelo controle das somas fabulosas geradas pêlos
Jogos. A maior fatia provinha das redes de televisão norte-americanas e dos
patrocinadores dos Estados Unidos. Sem os dólares americanos, nada de Jogos
Olímpicos.
Helmick fez a ponte. Em Colorado Springs ele aparecia como presidente
do USOC, lutando pêlos interesses económicos dos Estados Unidos e contra o
COI. Em Lausanne, era o membro leal do círculo íntimo de Samaranch, a diretoria
executiva do COI, onde se esperava que lutasse pêlos interesses maiores do
movimento olímpico.
Na tarde do dia 18 de setembro de 1991, o americano alto, de cabelos
claros cortados rente e óculos de metal redondos surgiu na primeira classe de um
voo vindo de Berlim.
"Com pesar profundo eu renuncio a meu cargo de presidente do comité
olímpico dos Estados Unidos, a partir de agora", anunciou. Para o membro do
Clube Robert H. Helmick, aquele era o desfecho inevitável para as duas piores
semanas de sua vida.
Tudo começou quando o USA Today revelou que no ano anterior Helmick
recebera US$ 275 mil de clientes que pretendiam fechar acordos comerciais com
as Olimpíadas.
Na primeira revelação comprometedora, era acusado de receber US$ 37,5
mil da Turner Broadcasting System de Atlanta, mais conhecida pelo canal de
televisão Cable News Network, a CNN. O dono da CNN, Ted Turner, queria
romper o monopólio das grandes redes, e entrar no esquema dos Jogos. Helmick
constava secretamente na folha de pagamentos de Turner desde 1987, ajudando-
o a planejar sua campanha para as Olimpíadas de 1996 em Atlanta.
A segunda revelação indicava Helmick como consultor de federações
esportivas ansiosas pelo reconhecimento do COI, por US$ 75 mil. Uma das
tarefas confiadas a Helmick pelo COI era escolher os esportes que entrariam para
o lucrativo mundo olímpico. Ele se esquecera de contar aos colegas que recebia
dinheiro de firmas representantes da Associação Mundial de Golfe e da
Federação Internacional de Boliche.
Um outro detalhe escapou totalmente de sua mente, até que os repórteres
o denunciaram: seu relacionamento com o empresário de Boris Becker, lon Tiriac,
diretor da TIVI Amsterdam, uma firma de marketing que comercializava
patrocínios e direitos televisivos para o Campeonato Mundial de Natação.
Helmick, até recentemente presidente da FINA, a federação internacional de
natação, recebeu mais US$ 150 mil.
O último negócio revelado foi o acordo de Helmick com o Li-festyle
Marketing Group, uma divisão da Saatchi & Saatchi que lhe pagou US$ 14,5 mil
por consultoria.
A viagem para Berlim foi muito desagradável. As denúncias dos jornais
começaram a sair dias antes. Quando Helmick uniu-se aos colegas do COI para a
reunião trimestral da diretoria executiva, muitos já tinham visto as edições
europeias dos jornais norte-americanos.
Inevitavelmente perguntaram a ele: Esta conduta é compatível com a
promessa feita quando prestou o Juramento Olímpico? Helmick foi lembrado do
dia em que jurou "ficar livre de qualquer influência comercial", em 1985. Os
relatórios internos do conclave recomendavam sua renúncia ao USOC assim que
fosse possível. Para eles, não havia pressa de se tomar uma decisão poten-
cialmente embaraçosa. A diretoria executiva formou outra comissão. Sua missão:
investigar os negócios de um dos mais poderosos membros do Clube.
A renúncia era um passo que Helmick pretendia evitar a qualquer preço.
"Estas acusações constituem um ataque maldoso, não apenas a minha carreira
no esporte, como também a minha vida profissional", disse o advogado de 55
anos, quando surgiu a primeira reportagem. "Não tenho o menor motivo para
sequer cogitar uma renúncia."
Dois dias depois o americano alto não se mostrava tão agressivo. Depois
de uma reunião traumática em Chicago, com seus colegas dirigentes do USOC,
Helmick anunciou humilde que permitiriam sua permanência como presidente.
Mas um preço terrível fora cobrado.
Helmick foi forçado a reconhecer publicamente que cometera "erros de
julgamento a respeito de conflitos de interesse", e que "encerraria e se
distanciaria de todas as atividades de representacão atuais e futuras que
pudessem ser vistas como conflitantes com suas responsabilidades."
A humilhação prosseguiu. Helmick teve de aceitar cooperar com uma
investigação especial em todos os seus relacionamentos profissionais suspeitos.
Apesar de tudo isso, Helmick insistia que não havia feito nada de errado.
Conforme os dias se passavam e novas histórias surgiam, sua posição se
deteriorava. Dois deputados norte-americanos pediram uma investigação
independente nos negócios de Helmick. Depois a federação norte-americana de
esqui soltou uma bomba. Eles afirmavam que Harvey Schiller, diretor executivo do
USOC, usara sua posição para conseguir valiosos passes do esqui. Schiller disse
que houve apenas um mal-entendido.
Em uma última tentativa de limitar os estragos, Helmick declarou que não
tentaria a reeleição para a presidência do USOC, ao final de seu mandato em
1992. Anita DeFrantz, membro norte-americano do COI, declarou que achava o
anúncio de Helmick "diversionista".
Não bastava. Dois dias depois o presidente do comité olímpico mais
poderoso do mundo saiu cedo da reunião da diretoria executiva e pegou um avião
em Berlim.
"Ninguém me pediu ou forçou minha renúncia", disse descaradamente ao
voltar para os Estados Unidos. "Se alguém pensar que estou fugindo da raia,
engana-se. Não houve um único fiapo de 'prova' desde que esta loucura da
imprensa começou."
Uma vitória considerada pêlos norte-americanos como sua por direito era a
do basquete. Os Estados Unidos ganhavam a medalha de ouro desde 1936, ano
de estreia do esporte nas Olimpíadas. Mas, em 1972, o impossível aconteceu. Os
americanos perderam. Pior de tudo, para a Rússia.
Quando o apito final soou os americanos ganhavam por um ponto. Os
russos reclamaram que faltavam ainda três segundos. O árbitro não quis saber de
conversa. Os norte-americanos eram os vencedores. Entra em cena o secretário-
geral da federação internacional de basquete, que passa por cima do árbitro. Os
três segundos finais precisavam ser jogados.
Tic. Segundo número um: os russos atiram a bola de uma ponta da quadra
a outra. Tic. Segundo número dois: Aleksandr Belov tenta a última cesta. Tic.
Segundo número três: o jogo terminou. Os russos ficaram com a medalha de
ouro. Os americanos ficaram tão revoltados que foram embora de Munique sem
esperar pela medalha de prata.
Assistindo a derrota, cheio de fúria patriótica, estava o jovem Bob Helmick,
diretor do time de pólo aquático americano. A equipe conquistara a medalha de
bronze em Munique, apesar da flagrante parcialidade dos juizes olímpicos, em
sua opinião. "No pólo aquático, em 1972, os juizes roubaram de modo horrível",
disse Helmick vinte anos depois. "E eu me lembro do jogo de basquete, contra a
União Soviética, e dos famosos três segundos. Percebi que a pessoa responsável
pelo resultado era secretário da federação internacional.
"Concluí que os Estados Unidos não controlavam o esporte internacional.
Disse a mim mesmo: quero ser secretário da federação internacional que decide o
jogo a favor da URSS ou dos Estados Unidos. Não para tirar vantagem, mas para
garantir a igualdade."
Enrolado na bandeira americana, Helmick fez carreira, e em quatro anos
tornou-se secretário-geral da Federação Internacional de Natação, a FINA. Em
oito anos elegeu-se presidente. Um ano mais tarde fez o juramento e entrou para
o Clube. Em 1985, Bob Helmick colecionou outro trofeu: a presidência do comité
olímpico dos Estados Unidos.
Desde a decepção em Munique, nos anos 70, os Estados Unidos
percorreram um longo caminho. O USOC tornou-se o comité olímpico mais
poderoso do mundo. Hoje há o temor de que os Estados Unidos, cujo vigor
financeiro poderoso sustentava o movimento olímpico, possa destruir o castelo de
cartas cuidadosamente montado por Samaranch.
"Ninguém que eu conheça admira Helmick. Nenhum membro do COI fala
bem dele", diz um dirigente olímpico. "Ele é uma figura muito curiosa. Se
concentrarmos a atenção nele durante uma reunião do COI, veremos que nunca
fica mais de cinco minutos sentado em seu lugar na mesa diretora. Está sempre
circulando, andando, atendendo telefonemas. Não interessa se Sa-maranch está
no meio de um discurso, ele anda para cima e para baixo como um ioiô.
"Só posso concluir que ele é muito mais eficiente do que aparenta, porque
um advogado do interior, saído de Dês Moines, chegou ao topo. É um sujeito
muito ambicioso."
A ambição de Helmick no admirável mundo novo dos negócios e do
esporte internacional foi incentivada pelo homem da Adidas, Horst Dassler. "Este
advogado foi incentivado e protegido em sua ascensão no cenário internacional,
até se tornai' membro do COI", disse o antigo sócio de Dassler, Patrick Nally. "E,
por estar no lugar certo na hora certa, Bob se tornou o chefe do comité olímpico
mais poderoso do mundo."
Robert Helmick nasceu, cresceu, foi educado e trabalhou em Dês Moines,
uma cidade de lowa. Filho de professores universitários, Helmick mostrou desde
cedo interesse na natação, jogando pólo aquático na Roosevelt High School. Em
1954 resolveu estudar matemática na Drake University, onde seus pais lecio-
navam. Continuou nadando, e participou da Ali American nos tempos da Drake.
Seis anos depois ele se diplomou na Faculdade de Direito de Drake, fixou-
se em Dês Moines e foi trabalhar em uma firma local de advocacia, onde ficou por
31 anos, tornando-se sócio sénior. Em 1991 entrou para um escritório de
advocacia de Min-neapolis, Dorsey & Whitney. Foi anunciado que Helmick conti-
nuaria a se dedicar ao direito esportivo e internacional. Isso surpreendeu muitos
dirigentes olímpicos. Eles sempre pensaram que Helmick não passava de um
simples advogado do interior.
Nada disso, afirmou Helmick: "Desde 1977 meu currículo inclui direito
internacional e esportivo". Na edição mais recente da Olympic Biography, Helmick
apresenta-se como "Sócio sénior da Dorsey & Whitney, firma de advocacia de
Nova York, Washington DC, Bruxelas, Londres e Dês Moines, especializada em
direito internacional e financeiro." Não há nada sobre direito esportivo.
Durante a década de 1960, Helmick continuou a nadar. Chegou ao time de
pólo aquático de lowa, mas nunca à seleção nacional. Quando chegou a hora de
sair da água, Helmick concentrou suas energias na administração. Saiu-se bem.
Teve sucesso com os times de juniores a nível nacional, e depois das Olimpíadas
de 1968 no México, foi nomeado diretor do time de pólo dos Estados Unidos. Nas
Olimpíadas seguintes, em Munique, Helmick, como diretor, levou sua equipe à
medalha de bronze.
Helmick já estava abrindo caminho no mundo das federações esportivas
internacionais. No mesmo ano olímpico, foi eleito diretor do comité de pólo
aquático da federação internacional de natação, a FINA.
Helmick atrairia inevitavelmente a atenção de Horst Dassler. O mestre das
marionetes ampliava seus interesses empresariais. "Horst interessava-se
especialmente pela natação", disse Nally. "Ele lançara uma nova empresa de
equipamento para natação, chamada Arena. A ideia era tirar o domínio quase
exclusivo da natação, na época nas mãos da firma australiana Speedo."
Dassler contratou o nadador americano Mark Spitz, ganhador de sete
medalhas de ouro em Munique, para promover sua marca Arena. Spitz foi
acusado de promover interesses comerciais durante as Olimpíadas, mas uma
investigação posterior do COI o inocentou.
Promover a Arena era apenas uma das preocupações de Dassler. Ele
queria tornar a Adidas líder nos Estados Unidos, o maior mercado individual
existente. No início da década de 1980, o país gastava US$ 15 bilhões por ano
em roupas esportivas. Um em cada três americanos tinha um par de ténis.
Dassler queria que estes calçados ostentassem suas três listas. "Horst sempre
falava sobre a importância dos Estados Unidos", lembrou Nally, "e de como era
vital ter o país do nosso lado."
Quando os parceiros iniciaram seu ataque às federações internacionais, a
natação foi um dos primeiros esportes cobiçados. "Eu me lembro, quando
redigíamos os regulamentos para a copa do mundo de natação, que costumava ir
a Dês Moines íàlar com Bob Helmick", declarou Patrick Nally. "Ele tinha um
escritório numa pequena firma local de advocacia. Apareceu com um Mercedes
450 SL conversível vermelho, junto com a namorada. Passei um bocado de
tempo com Bob.
"Ele sempre comparecia às reuniões da federação internacional em Monte
Cario, normalmente com uma bela garota a seu lado. Fazia um pouco o género
playboy. Era gozado, porque Bob parecia meio deslocado, não se relacionava
bem com as pessoas e não tinha muito a dizer. Mas achava o máximo viajar para
o exterior. Adorava o cenário internacional, envolveu-se com as Olimpíadas e com
o campeonato mundial de natação que organizávamos.
"A FINA não era uma federação mais dinâmica que as outras. Não entrava
muito dinheiro. Mas, como todas as federações internacionais durante os anos
1970, crescia em importância conforme ganhava dinheiro com a televisão. Bob,
que obviamente gostava da boa vida, observava a tudo atentamente."
Helmick leva uma boa vida atualmente, sem dúvida. Seu apartamento de
cobertura em um condomínio fechado de lowa abriga uma coleção de arte
contemporânea. Tem também unia cascata terminando na banheira de
hidromassagem. Ele possui uma fazenda, um prédio de escritórios e um shopping
center em Dês Moines, além do apartamento em Nova York. Aprecia café fino,
música clássica e carros luxuosos. "Ele tem carros que nunca dirigiu", contou o
amigo Bill Reichardt. "Não gosta de sujá-los."
Naquela época pioneira, Helmick era um dos poucos norte-americanos
ativos no cenário esportivo internacional. "Não me surpreendo quando penso que
foi um norte-americano, Avery Brundage, o presidente do COI durante tanto
tempo", disse Nally.
"Os americanos mostravam muita ingenuidade sobre os acontecimentos
nas federações internacionais."
"É ainda mais extraordinário quando se pensa no fluxo de dinheiro que
entrava para as Olimpíadas, vindo predominantemente das companhias
americanas. A NBC, ABC e CBS pagavam fortunas pêlos direitos televisivos.
"Se a gente olha por um momento para as cifras despejadas no COI pelas
redes, se pensa que no início, quando as redes começaram a pagar um monte de
dinheiro para cobrir os eventos das federações internacionais, vemos que os
Estados Unidos foram os responsáveis pelo impulso financeiro deste crescimento.
No entanto, seu conhecimento e participação na administração e direção do
esporte internacional era mínimo.
"Horst viu em Bob Helmick um candidato em potencial muito interessante.
Horst acreditava que Helmick era deslumbrado pela mordomia, pêlos banquetes,
hospitalidade, suítes luxuosas nos hotéis. Horst tentaria seduzir o advogado de
Dês Moines com o estilo de vida e a tentação das federações internacionais, e
planejaria com Bob Helmick o que se deveria ou não fazer."
O grande salto para a frente aconteceu em Montreal. Helmick, em 1976,
tornou-se secretário-geral da federação de natação, presidida por Javier Ostos.
A natação já se desenvolvia dentro do quadro de negócios mais esporte.
Novos eventos internacionais foram criados, Nally fornecia o dinheiro via
campanhas de marketing, enquanto Dassler entrava com o kit da Arena. Quando
os Jogos de 1980 se realizaram em Moscou, Dassler podia se gabar de que a
Arena arrasara com a Speedo na disputa pelas piscinas. Em Moscou, mais da
metade dos nadadores olímpicos usavam produtos da Arena. Trinta e seis
medalhas foram conquistadas por atletas usando conjuntos da Arena, inclusive
onze dos dezesseis ganhadores de medalhas de ouro na categoria masculina,
uma vantagem arrasadora.
O único derrotado em Moscou foi o presidente Ostos. Ao contrário de
Havelange ou Nebiolo, o presidente da natação só cumpre um mandato de quatro
anos. Não pode se reeleger. As regras não se aplicam à secretaria-geral. No
congresso da FINA em Moscou, Helmick acompanhou a tentativa do presidente
Ostos de modificar a constituição da FINA para poder ficar mais quatro anos.
Helmick precisaria fazer o mesmo no futuro.
A sede do comité olímpico norte-americano se situa perto de uma antiga
base da Força Aérea dos Estados Unidos em Colorado Springs, no sopé das
montanhas Rochosas. O USOC de hoje tem uma vasta equipe de burocratas e
um orçamento anual de US$ 300 milhões. É o organismo esportivo amador mais
importante do país. Nem sempre foi assim. Até o final dos anos 1970, o USOC
não passava de uma agência de viagens para atletas olímpicos. O controle real
do esporte amador estava nas mãos de dois órgãos em constante atrito: a União
atlética Amadora (AAU) e a Associação Nacional de Atletismo Universitário.
As duas entidades se dedicavam tanto a sua disputa que negligenciavam o
cenário internacional. A equipe olímpica norte-americana voltou dos Jogos de
Montreal com o rabo entre as pernas. Fora humilhada pêlos russos e alemães
orientais, chegando em terceiro lugar no cômputo geral de medalhas. O
presidente Ford queria saber porque os Estados Unidos haviam sido derrotados
pêlos comunistas. Abriu um inquérito, que recomendou uma nova estrutura. O
USOC seria o órgão máximo. Daí em diante, controlariam o esporte amador. O
país procurava novas lideranças e o sucesso.
Helmick presidia a AAU, um dos alvos da comissão do presidente Ford.
Sem muito esforço, tornou-se vice-presidente do USOC revigorado. "Horst tinha
plena consciência da importância do comité olímpico norte-americano, e sabia
que poderia ajudar a abrir espaço para Bob", declarou Nally. Firmemente
instalado no USOC, Helmick esperava a hora de agir. "Eu torcia para que ele se
tornasse presidente do USOC em 1988". Mas a ascensão de Helmick ocorreu
antes do esperado.
Jack Kelly, irmão da princesa Grace de Mónaco e ganhador da medalha de
bronze no remo em Melbourne, assumiu a presidência do USOC em 1985. Três
semanas depois da eleição, Kelly morreu. "Era um sujeito forte, saudável",
recorda-se Nally. "Fazia jogging na Filadélfia quando teve um ataque do coração.
Bob Hel-mick fora eleito para o cargo número dois, vice-presidente, e re-
pentinamente foi catapultado para a presidência do USOC, em um momento
crucial."
Eles diziam que era impossível. Mas o grupo de empresários que
organizava os Jogos de Los Angeles discordava. Pela primeira vez as Olimpíadas
deram lucro. E muito mais do que qualquer um sonhava. As montanhas de
dólares resultantes do "Pro-jeto Olimpíada" superaram todas as previsões. Depois
de pagar todas as contas, sobrou no banco a incrível soma de US$ 215 milhões.
Nos dias negros da década de 1970, quando ninguém esperava que os
Jogos cobrissem as despesas, o USOC se comprometera a bancar os possíveis
prejuízos. Agora tinham direito a 40 por cento do lucro. Helmick herdou um baú de
ouro esportivo.
O sucesso financeiro deu origem a um conflito feroz. No mundo inteiro, os
outros comités olímpicos nacionais exigiram sua parte no bolo. Eles lembraram
aos norte-americanos que no momento do boicote dos países do Leste aos
Jogos, ele enviaram competidores extras para preencher o buraco, às suas
próprias custas. Eles tinham direito ao lucro. Queriam US$ 7 milhões.
O presidente do COI, Samaranch, foi forçado a implorar. "Estamos só
pedindo. Por favor. Eles podem dizer sim ou não. Se for não é não." O New York
Times solidarizou-se: "O USOC pode pagar os US$ 7 milhões, e dar graças por
Samaranch não ter pedido mais", disse o jornal. "Podem considerar isso uma gor-
jeta."
Podiam mesmo. Mas dentro do USOC os ânimos estavam exaltados. O
diretor executivo F. Don Miller lembrou ao movimento olímpico que os Jogos de
Inverno em Lake Placid, nos Estados Unidos, deram um prejuízo de US$ 11
milhões. "Ninguém do COI se levantou para sugerir uma divisão dos gastos
naqueles Jogos."
Ele foi em frente, esfregando nos narizes olímpicos o fato do lucro de Los
Angeles "ter origem na generosidade das corporações norte-americanas, no
ptíblico e nas redes de televisão. Oitenta por cento do apoio financeiro ao
movimento olímpico internacional sai dos Estados Unidos, e temos orgulho,
devido a nosso sistema de livre-empresa, por dar este apoio." Este era o xis da
questão. Os americanos começavam a acordar para o fato de que as verdinhas
do Tio Sam sustentavam o circo olímpico.
O COI contava com o presidente do USOC, Robert Helmick, para
"encontrar uma solução" para a disputa sobre o lucro de Los Angeles. Helmick
visitou Samaranch em sua residência oficial, o Château de Vidy, em Lausanne. Ali
os dois discutiram a questão. Helmick levou a Samaranch "motivos para ficar oti-
mista", disse um observador. O COI ficou satisfeito, porque com Helmick na
presidência, "o USOC e o COI encontram-se mais próximos do que em qualquer
outro momento, nos últimos cinco anos."
O Clube anunciou uma vaga. Um membro dos Estados Unidos, Douglas
Roby, ia se aposentar. O candidato a uma vaga no COI é indicado pelo
presidente. Os membros do COI tradicionalmente aprovam a nomeação. A
substituição de Roby era decisiva, numa época crucial para Samaranch. O USOC
começava a descobrir sua força. Ao mesmo tempo, Dassler e a equipe da ISL
percorriam o mundo, convencendo os comités olímpicos nacionais a entrar no
esquema do TOP. Dassler e Samaranch estavam mais próximos do que nunca.
Se o esquema do TOP emplacasse, Samaranch teria uma nova fonte alternativa
de renda com a comercialização dos direitos televisivos, enquanto Dassler
passaria a ganhar mais com o marketing do que com a fabricação de calçados.
Seus futuros respectivos, a longo prazo, dependiam de escolher o homem certo
nos Estados Unidos.
Havia muitos candidatos qualificados. No alto da lista vinha o nome do ex-
Secretário do Tesouro, Bill Simon. Desde sua saída do governo, ele ganhara
vários milhões com seus negócios. Tinha um currículo invejável, e seria uma
grande contribuição ao COI. Isso representou sua ruína. Primeiro, tratava-se de
um político profissional, a quem Samaranch não poderia controlar facilmente.
Segundo, incomodara Samaranch ao declarar em Los Angeles: "Está na hora de
dedicar atenção ao futuro do movimento olímpico, a longo prazo. Infelizmente as
lideranças olímpicas do COI parecem tão interessadas em tratar deste assunto
quanto uma ditadura do Terceiro Mundo em realizar eleições livres."
Outro candidato, Peter Ueberoth, liderara a equipe organizadora dos Jogos
de Los Angeles. Dinâmico homem de negócios, garantira a tranquilidade dos
Jogos. Foi derrubado pelo fogo cruzado da política olímpica.
O ano começou bem para Ueberoth. Em janeiro de 1985 o comité
organizador de Los Angeles, liderado por ele, anunciou que teria prazer em
desembolsar os US$ 7 milhões, tirados do lucro dos Jogos, e repassá-los para os
comités olímpicos nacionais. Pelo jeito o apelo de Samaranch funcionara. A
decisão deveria ser aprovada pelo USOC, que só realizaria sua assembleia no
mês seguinte.
Na reunião de fevereiro, más notícias para Ueberoth. O nacionalismo
provinciano levou a melhor. "A América ganhou sozinha o dinheiro. Por que dividi-
lo? Ninguém nunca nos pagou para ir a lugar nenhum", registrou o Sport Iníem.
Se fosse dar dinheiro ao resto do mundo, o USOC queria ter algum
controle político. A saída foi um "Fundo de Solidariedade". Os organizadores de
Los Angeles se opuseram. A cotação de Ueberoth caiu. E desabou quando
investiram mais de US$ 2 milhões para um festival de artes no Canadá. "Durante
sete anos pensamos que qualquer lucro seria destinado ao esporte", protestou um
membro do COI. "Agora, não só negam uma quantia modesta ao movimento
olímpico, como gastam o dinheiro fora do esporte norte-americano."
O USOC tinha seu candidato oficial ao COI. De longe o nome mais
experiente para o cargo era o do diretor-executivo do USOC, o veterano F. Don
Miller. O USOC estava tão empenhado na escolha de Miller que ofereceu um
ótimo negócio a Sama-ranch. O USOC deixaria de se opor ao programa TOP de
mar-keting, e permitiria um período experimental de quatro anos da ISL nos
Estados Unidos, caso Samaranch indicasse seu candidato. Era a oportunidade
que Samaranch e Dassler precisavam. O TOP não daria certo sem a cooperação
do USOC.
"Don era nosso candidato oficial", disse George Miller, que se tornou diretor
executivo do USOC em 1985. "Contava com o apoio do USOC, e Samaranch
concordou em nomeá-lo. Mas Helmick passou por cima de todos, foi até
Samaranch e disse: Indique o meu nome! Sou o presidente do USOC!' Helmick
deixou bem claro a Samaranch que estava no poder e poderia ser muito útil a ele.
Posso entender o ponto de vista de Samaranch. Mas Helmick não era o homem
que nós desejávamos em Lau-sanne." O pedido de Helmick foi muito bem aceito
por Samaranch.
Nove meses depois de entrar para o Clube, Bob Helmick voou até o
palácio presidencial olímpico em Lausanne. Levava boas notícias. A família
olímpica receberia finalmente os tão disputados US$ 7 milhões dos lucros de Los
Angeles. "O senhor tem consciência do quanto o COI, e eu, pessoalmente,
apelamos para que tal decisão fosse tomada, embora não houvesse obrigação
alguma do USOC", disse Samaranch. Helmick parecia corresponder às
expectativas. Samaranch escolhera o homem certo.
17
SINAIS DE ALARME
As pistas sobre quem era Bob Helmick, onde sua ambição o levaria, bem
como o esporte olímpico, começaram a surgir no momento em que Helmick
substituiu Jack Kelly na presidência do movimento olímpico norte-americano.
O progresso do novo presidente no USOC repetia a ascensão de
Samaranch ao COI em 1980. Os dois substituíram presidentes diletantes, que
preferiam delegar poderes aos funcionários de carreira. Os dois homens
pretendiam agir como líderes em tempo integral, ativos. Ambos despediram seus
poderosos diretores executivos. Samaranch esperou cinco anos para se livrar da
ameaça representada por Monique Berlioux. Helmick despediu George Miller,
diretor executivo do USOC na metade do tempo.
"Helmick veio a mim quando Jack Kelly morreu, e pediu ajuda para se
eleger", George Miller declarou em entrevista. "Eu achava importante empossar
um novo presidente imediatamente, por isso o apoiei. Mas em poucos meses de
cargo ele começou a decair. Ele não sabia conduzir os negócios, e se equivocava
quanto a seu papel. Era um homem dotado de grande ambição política, de modo
que usou o USOC para melhorar sua situação."
Antes de assumir a diretoria executiva do USOC, Miller íbra assistente do
chefe do Comando Aéreo Estratégico dos Estados Unidos. "O problema do
general Miller era ser competente demais", disse o dr. Robert Voy, ex-chefe do
serviço médico do USOC. "Ele era um indivíduo muito dinâmico. Tenho a forte
impressão de que Helmick considerava Miller uma ameaça potencial desde o
início, e que um confronto pelo poder pairava no ar."
Helmick agiu depressa. Montou um escritório olímpico para si em Dês
Moines. "Foi uma atitude inusitada", afirmou Geor-ge Miller. "Os presidentes,
como Bill Simon, trabalhavam em seus próprios escritórios. Bill só precisava de
um fax. Helmick fazia despesas enormes. O presidente nunca recebia dinheiro,
mas em pouco tempo começamos a fazer pagamentos para Helmick." O passo
seguinte de Helmick foi determinar que somente ele poderia assinar os contratos
de televisão e patrocínio. ' 'Até sua ascensão à presidência, todos os contratos
eram assinados pelo diretor executivo — eu", declarou Miller. "Helmick mudou o
sistema. Queria controlar tudo, bem ao seu estilo. Em função de seu cargo no
COI, eu o aconselhei a ficar afastado das negociações de contratos — havia um
conflito de interesses potência! Mas ele nem me deu ouvidos."
Em agosto de 1987 a disputa entre o general e o advogado acabou. O
general se foi. A batalha final se deu em torno de um plano do comité organizador
dos Jogos Panamericanos de India-nápolis para torrar US$ 100 mil com uma
recepção.
Depois que saiu do USOC, o dr, Voy contou: "Helmick concordou. George
Miller, responsável pelo orçamento, não havia sido consultado. Achou absurdo
desperdiçar US$ 100 mil numa festa, e sabia que o orçamento não previa tais
despesas com comida, bebida e diversão para não-atletas." Miller barrou a
despesa, desobedecendo Helmick. Em poucos dias recebeu um ultimato. Poderia
"renunciar" ou ser despedido. Escolheu a primeira opção, e saiu após negociar
uma compensação no valor de US$ 700 mil pelo resto de seu contrato.
Os alarmes não soaram com a saída custosa do competente Mil-ler.
Helmick estava livre para dirigir o USOC ao seu estilo. Ele anunciou que pretendia
"enxugar despesas e usar o dinheiro com os atletas." Era o que o público
desejava escutar.
Howard Miller ocupava o cargo de tesoureiro durante o primeiro mandato
de Helmick. O contador pinta um quadro diferente, que contradiz a propagada
economia — ou avareza — de Helmick. "Nunca tive problemas com o sujeito, até
que ele se tornou presidente", Howard Miller declarou. "Como George, eu também
apoiei Helmick quando Jack Kelly morreu. Depois descobri que Helmick só voava
na primeira classe. Dirigentes eleitos como nós devem ser voluntários, dispostos
a trabalhar em prol da entidade. Fiquei irritado. Disse a Helmick: 'Olha, você está
aqui para trabalhar pela organização. A organização não está aqui para trabalhar
para você.' "
Na gestão de Bob Helmick tudo parecia custar mais caro. As despesas do
congresso anual da USOC, quando se reunia a plenária dos delegados da
entidade, cresceram inexoravelmente. O congresso custou US$ 98 mil em 1986,
subiu para US$ 122 mil em 1987, e em 1988 Helmick contratou uma empresa de
consultoria de Washington para organizar o evento, que acabou custando US$
200 mil. Os colegas de Helmick no USOC espernearam e a mordomia acabou.
De acordo com o ex-tesoureiro, Miller, o orçamento anual para os
dirigentes do USOC, entre 1980 e 1984, foi de US$ 170 mil. Durante o primeiro
mandato de Helmick, nos quatro anos, o valor subiu para US$ 575 mil anuais.
Quase 80 por cento deste valor saía por conta das despesas pessoais de
Helmick. "Helmick gastava dinheiro como um marinheiro bêbado", contou Miller.
"E usava a organização para melhorar sua posição no COI." Miller não foi reeleito
para acompanhar os gastos de Helmick.
Novos alertas deveriam ter sido dados em 1988. Helmick queria ser eleito
para o grupo que liderava o COI, a diretoria executiva. Seu argumento era que os
Estados Unidos, o país que mais contribuía financeiramente para as Olimpíadas,
deveria ter um cargo no círculo íntimo.
Helmick era um candidato atraente para Samaranch. O presidente do COI
precisava controlar quem quer que ocupasse a presidência do USOC. Os Estados
Unidos mostravam sinais de inquietude, por causa da enxurrada de dólares das
redes e patrocinadores, que acabava saindo do país, em direção ao movimento
olímpico mundial. Um número crescente de vozes se erguia no USOC para
criticar uma situação onde faltavam recursos suficientes para preparar os atletas
do país para os Jogos.
Para entrar na diretoria executiva, Helmick precisava dos votos de seus
colegas do Clube. Ele anunciou formalmente sua intenção de se candidatar na
sessão do COI nas Olimpíadas de Seul, em setembro de 1988. Helmick começou
a fazer campanha — usando o dinheiro do USOC.
Em abril de 1988 Helmick mandou um convite pessoal para que diversos
membros do COI visitassem Washington durante a plenária do USOC. O dinheiro
foi transferido do "Fundo de Solidariedade" que o USOC concordara em criar
depois de Los Angeles, para desenvolver o esporte nos países pobres, e usado
para bancar viagens de primeira classe para meia dúzia de membros do COI e
seus acompanhantes. Chegando em Washington, estes dignatários andavam em
limusines com chofer, e faziam compras na Saks ou na Quinta Avenida.
"O Fundo de Solidariedade tem sido usado para bancar mordomias de um
punhado de dirigentes olímpicos", estrilou a Gas-zette Telegraph de Colorado
Springs, o jornal que denunciou a história, "para garantir o prestígio nas
organizações internacionais." O alarme soara, mas ninguém estava prestando
atenção.
Só no final de 1988 Helmick se deu conta de todas as implicações da
posição contraditória em que se metera. Para avançar no COI, precisava manter o
cargo de presidente poderoso do USOC. Só seria um jogador importante em
Lausanne se continuasse a dar as cartas em casa, destacando-se no acalorado
debate sobre a contribuição americana para as Olimpíadas,
Mas seu mandato no USOC estava chegando ao fim. Ele substituíra Jack
Kelly, que só cumprira três semanas de mandato, e ficou quase quatro anos no
poder. As regras do USOC permitem que o presidente cumpra um único mandato.
Helmick teria de cair fora. De repente, perderia a base de seu poder.
Helmick insistiu que, por ter ficado algumas semanas a menos, estava em
condições de disputar a presidência, e se manter no poder por mais quatro anos.
Seus críticos consideraram o argumento casuístico, mas Helmick obteve apoio
suficiente no USOC, e ganhou a parada. Seria elegível para um segundo
mandato.
Os problemas não terminavam aí. Se realmente pretendia conquistar os
votos para o USOC, Helmick precisava adotar uma posição dura em relação ao
COI e seu apetite insaciável por dólares. Se queria subir em Lausanne, teria de
garantir sua lealdade a eles.
"A questão do USOC contra o COI era muito delicada para Helmick",
declarou o ex-diretor executivo George Miller. "Ele sempre disse ao USOC o que
eles queriam ouvir, ou seja, que apoiava totalmente nosso direito de negociar
mais dinheiro da televisão e dos patrocinadores com o COI. Mas quando chegava
a hora de discutir, ele sempre baixava as porcentagens, e fazia isso em benefício
próprio, marcando pontos com o COI.
"Em 1986 eu falei com Samaranch, e exigi uma participação maior no
dinheiro que a televisão pagava pelas Olimpíadas. Seguiram-se longas e
exaustivas negociações entre Dick Pound, do COI, e eu. Pedíamos algo entre 20
e 25 por cento, e o COI oferecia 10 por cento. Chegamos a um impasse.
"Helmick anunciou subitamente que comandaria uma reunião entre as duas
partes. A equipe do USOC decidiu fechar questão em 15 por cento, mas Helmick
disse que Samaranch pediu sua intervenção, insistindo para que aceitássemos
dez por cento. Ele queria melhorar sua imagem no COI. Achei que ele nos vendeu
muito barato."
O mesmo ocorreu com as negociações do TOP-2, para o patrocínio dos
Jogos Olímpicos de Barcelona, que estavam em andamento na época em que
Helmick fazia campanha para a dire-toria executiva do COI. "Um de seus
assessores veio falar comigo", declarou Howard Miller, "e me disse que nossa
atitude no TOP-2 não ajudava a candidatura de Helmick. Eu disse que não
venderia o USOC a preço de banana só para beneficiar Helmick."
A reação de Helmick foi hesitar, vacilar e depois capitular no último
momento. Ele foi para a sessão do COI em Seul, permitindo que sua colega no
COI, Anita DeFrantz, submetesse sua candidatura oficial à diretoria executiva.
Depois Helmick anunciou que se retirava do pleito! Naquele momento ele
declarou que desistia porque confiava em todos os outros candidatos. Mais tarde
ele disse que estava indeciso. Sem dúvida bancou o irresponsável. Isso impunha
uma pergunta: Helmick era a pessoa indicada para presidir o USOC? Nenhum
sinal de alerta, desta vez.
Agora Helmick podia se concentrar na campanha doméstica pelo USOC.
"Ele me visitou em 1987, com uma lista enorme de pagamentos que o USOC
deveria fazer aos diversos esportes", informou George Miller. "Ele pretendia
aumentar o orçamento em US$ 5 milhões. Eu avisei que não tínhamos tanto
dinheiro. Helmick disse: 'Bem, dê um jeito de arrumar.' Quando eu falei que era
tarde demais para ajudar as equipes olímpicas de Cal-gary e Seul, mesmo que
arranjássemos o dinheiro, ele respondeu: 'Não me importa.' Só posso concluir que
aquilo era sua plataforma eleitoral para o USOC." Helmick foi eleito em fevereiro
de 1989, para um segundo mandato de quatro anos como presidente do USOC.
Tendo garantido seu poder em casa, Helmick concentrou-se
imediatamente em seu segundo objetivo: o precioso lugar na diretoria executiva
do COI. Ele disse aos repórteres que cobriam sua reeleição para o USOC que
estaria em campanha na próxima sessão do COI em San Juan, Porto Rico, em
1989. Uma potência económica como os Estados Unidos, anunciou Helmick, não
poderia "exercer sua influência" dentro da família olímpica se não estivesse
representado na diretoria executiva.
Samaranch acompanhava tudo do Château de Vidy. Ele sabia o quanto era
fundamental ter Helmick e os Estados Unidos na diretoria executiva. "É muito
importante que a aliança entre o COI e o USOC seja firme", Anita DeFrantz
declarou. "E para isso considera-se essencial a presença de um americano na
diretoria executiva. Se eu fosse mais importante do que Helmick, poderia ter
conseguido. Mas ele era também presidente do USOC.
"Samaranch faz questão da fidelidade ao COI. Isso vale também para
outros NOCs, por isso gostou da entrada de Vitaly Smir-nov, atual presidente do
NOC soviético. Mas os Estados Unidos são particularmente importantes, por
causa do dinheiro das redes de televisão. As pressões sobre o USOC têm tudo a
ver com estas verbas."
Na sessão de Porto Rico, naquele verão, Helmick foi eleito para a diretoria
executiva do COI. Ele chegou ao topo do movimento quando estourou a guerra
sobre a forma como o mundo olímpico devorava os dólares americanos.
O primeiro programa TOP de patrocínio de Dassler foi um desastre, do
ponto de vista americano. Como outros comités olímpicos nacionais, eles
seguraram seu próprio projeto de marke-ting para ajudar o COI e a ISL. O USOC
esperava que sua parte do bolo, quando este foi finalmente distribuído pelo COI,
fosse muito maior do que os US$ 13 milhões recebidos. Na rodada seguinte, em
Barcelona, o USOC estava decidido a dar uma mordida maior.
A revolta dos americanos com a visão de seus dólares voando pelo mundo
pode ser avaliada pelo artigo nacionalista publicado na revista Brookings Review
no final de 1989. Intitulado "O Ouro dos Tolos — Como Os Estados Unidos
Pagam Para Perder nas Olimpíadas", Robert Lawrence e Jeffery Pellegrom
escreveram algumas linhas constrangedoras para o COI: "Nós pagamos, eles
jogam. Nós apostamos, eles negociam." O artigo gerou uma comoção
devastadora. As duas áreas mais sensíveis eram o total pago pelas redes de
televisão pêlos Jogos, e as somas colossais voando das grandes corporações
que aderiram ao programa TOP de patrocínio. Só uma pequena parte disso
voltava para financiar o esporte no país. Especialmente incómodo foi o fato de
que o USOC recebeu apenas 2,5 por cento dos US$ 609 milhões pagos pela NBC
e ABC para transmitir as Olimpíadas de Calgary e Seul.
"O sistema financeiro montado para os Jogos é distorcido", eles
reclamaram. "Os americanos são lesados triplamente. Pagamos mais do que
seria justo pêlos Jogos, precisamos aguentar um número excessivo de anúncios
para assistir as Olimpíadas, e nossos atletas recebem só uma parcela ínfima do
dinheiro que gastamos." As críticas chegavam ao máximo. Quando o COI repartia
os lucros, a maior parte dos dólares do Tio Sam servia para ajudar os países
rivais.
"O dinheiro americano vai parar nos comités olímpicos nacionais que
organizam os esforços de nossos concorrentes", espernearam. "A URSS vai
receber mais do que pagou pêlos direitos televisivos. Quando trata com o resto do
mundo, o COI estende a mão aberta, e não o punho cerrado."
Os Estados Unidos, argumentavam no artigo, era a vítima de seu sistema
de livre-empresa. Só nos Estados Unidos as redes de televisão brigavam pelo
privilégio de entregar ao COI milhões de dólares pelo direito de transmitir os
Jogos Olímpicos. Na maioria dos outros países, as televisões estatais, alegando
pobreza, se unem para fazer sua oferta. Os autores sugeriam um remédio. O
USOC deveria poder comprar os direitos televisivos para os Estados Unidos por
um valor fixo. Depois leiloariam estes direitos entre as redes. Haveria um lucro
razoável, que poderia financiar os atletas americanos.
Era este o peso que Helmick carregava nas costas quando entrou para o
círculo íntimo de Samaranch. O presidente do COI poderia encontrar consolo no
fato de Helmick sonhar em substituí-lo. Já em 1986, quando era presidente da
natação internacional, Helmick transferira a sede da federação para Lausanne,
onde ficaria mais perto do COI. O times de Londres tinha lá suas suspeitas quanto
à determinação de Helmick para lutar pêlos direitos dos americanos. O jornal
publicou que Helmick "toma cuidado para não permitir que sua opinião
transpareça com muita intensidade, porque ele se vê — embora quase ninguém o
veja, no momento — como um sucessor potencial para Juan António Samaranch."
Voltando para os Estados Unidos, Helmick também se considerava um
sucesso potencial... de si mesmo. Quando iniciou seu segundo mandato como
presidente do USOC, em 1989, Helmick anunciou que, em 1993, no final de seu
mandato, pretendia se afastar e deixar os encargos para seu sucessor. ' 'Acredito
que os presidentes anteriores do USOC devem ter status de consultores
experientes", ele disse. "E é isso que pretendo fazer, ficar à disposição para
quando precisarem de mim. No mais, o novo presidente cuidará de tudo."
As afirmações públicas conflitavam com as atitudes em particular. Em
fevereiro de 1991 a diretoria do USOC aprovou uma mudança na constituição.
Dali em diante o presidente do USOC poderia se reeleger. O primeiro a se
beneficiar das novas regras seria Robert H. Helmick.
"Creio que o ocorrido a Helmick era inevitável", disse Geor-ge Miller. "Só
me surpreende que tenha demorado tanto tempo para acontecer." Apesar dos
alarmes periódicos que soaram, pouca gente prestou atenção a eles. O USOC
finalmente reagiu, mas só quando outros apontaram o que os membros
suspeitavam há anos. "O USOC odeia publicidade negativa", disse George Miller,
o homem que Bob Helmick despediu. "Revelam uma tendência para fazer um
círculo com as carroças, quando deveriam jogar o sujeito para os índios. Como
resultado, permitem que a entidade saia maculada."
Pelo menos o USOC tomou uma atitude. Forçou Helmick a admitir
publicamente que cometera "erros de julgamento". Depois abriu um inquérito
independente sobre os negócios secretos de Helmick. Em novembro de 1991 o
USOC divulgou ao público a principal conclusão do inquérito.
"Helmick violou repetidamente as disposições contra o conflito de
interesses do USOC, criando a impressão de que usava as vantagens de seus
cargos olímpicos em benefício de clientes particulares", disse Arnold Burns, ex-
assistente do promotor geral que conduziu a investigação. O relatório de Burns
contradizia frontalmente a insistência de Helmick de que nunca fizera nada de
errado. "O senhor Helmick", disse Burns aos jornalistas, "subestimou a seriedade
de sua conduta".
O COI de Samaranch, por sua vez, recusou-se a tomar um posição pública
quanto às atividades de Helmick. Os que se proclamam defensores dos valores
olímpicos lamentavelmente deixaram de se manifestar em uma das questões
éticas mais importantes do mundo esportivo moderno. O COI nomeou uma co-
missão de inquérito de três membros para investigar o problema. Mas a comissão
era composta de membros do próprio COI, e não de pessoas independentes. As
três sumidades deixaram que o COI tomasse a iniciativa de forçar a renúncia de
Helmick, e resolver se poupar da indignidade de redigir até mesmo um relatório
privado sobre os negócios secretos de seu colega e os potenciais conflitos de
interesse de seus colegas no COI.
No dia 3 de dezembro de 1991, depois de checar a disposição da diretoria
executiva do COI em uma reunião na Suíça, Helmick decidiu que sua jogada
olímpica chegara ao fim. Por volta da uma da manhã ele enfiou uma nota de
renúncia debaixo da porta da suíte de Samaranch no Palace Hotel de Lausanne,
e cinco horas depois o antiético olímpico deixava a Suíça e o COI para sempre.
"Sempre é triste a renúncia de um membro do COI", disse o diretor geral
François Carrard, como se a partida de um dos membros mais poderosos do COI
no meio da madrugada fosse um fato normal. "Mas em vários aspectos é óbvio
que o caso Hel-mick era delicado para o movimento olímpico, e sua decisão foi
sábia", prosseguiu Carrard. "E foi recebida com alívio."
A ambição de Helmick ruiu, vítima dos conflitos inerentes ao esporte como
negócio, os mesmos conflitos sobre os quais se estrutura o movimento olímpico
moderno, criação de Horst Dass-ler. Uma ironia que o fabricante de sapatos da
Alemanha sem dúvida apreciaria.
A queda de Helmick representa mais do que uma tragédia pessoal. É uma
tragédia para o esporte americano. Pois quando chegasse 1996, o americano
estaria na posição perfeita para tentar substituir Samaranch na presidência do
Comité Olímpico Internacional. Depois de uma ausência de um quarto de século
um americano poderia comandar novamente o esporte mundial. Para os Estados
Unidos, nada disso acontecerá, e o país pode agradecer a Bob Helmick, o
"homem de grande ambição política, que usou o USOC para melhorar sua própria
posição."
18
O DITADOR BENEVOLENTE
Uma aprazível tarde de verão nos campos ingleses. Na tenda erguida no
gramado do castelo de Warwick, 350 membros da família olímpica e sua
entourage se prepara para o banquete. "Oh, não", comenta um dirigente esportivo
ao estudar o cardápio à sua frente. "Salmão outra vez!" Na recepção no Salão
Principal do castelo tinha sido pior ainda. Valetes de libré verde tiveram a
coragem de servir champanhe!
Um gaiteiro escocês com traje de gala das Highlands completo precede a
anfitriã e seus convidados de honra, que ocupam os lugares na cabeceira da
mesa. No centro encontra-se a princesa real Anne, presidente da Associação
Olímpica Britânica. O presidente do COI, Sua Excia. Juan António Samaranch,
senta-se à esquerda. À direita da princesa real acomoda-se um sujeito de bigode,
o mexicano Mário Vazquez Rana, presidente da Associação dos Comités
Olímpicos Nacionais.
"Durante o jantar no castelo de Warwick", recorda-se um dos presentes,
"ficou patente que Rana era virtualmente ignorado pela princesa. Ele não gostou
nem um pouco. Muitas pessoas notaram." Rana só fala castelhano, e ficou tão
aborrecido que dispensou o intérprete inglês.
O aparente desprezo da princesa real por Mário Vazquez Rana espelha o
constrangimento existente em muitos membros do COI. O sentimento foi descrito
de modo direto por um membro do COI: "medo". Entretanto, antes do final
daquela semana, o latino-americano parrudo com quem a princesa mal se
dignava a conversar se uniria a ela nas fileiras do COI.
Um membro do COI que levou as restrições ao nome de Rana ao
presidente Samaranch ouviu o seguinte: "Não tenho como mante-lo fora do COI."
Outro olímpico contou uma história diferente: "Samaranch manifestou a opinião de
que era muito importante para ele ter Rana no COI, pois assim posso manter to-
dos os comités nacionais na linha."
Mário Vazquez Rana é um dos homens mais ricos do México. Ele tem mais
de 70 jornais, além de uma cadeia de rádio e televisão. Seu irmão cuida dos
outros negócios de família, entre eles uma fábrica de móveis e uma companhia de
aviação.
Peter Ueberoth, diretor dos Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984,
descreveu o estilo multimilionário de Rana: "Eu me lembro de uma festa em
especial, o casamento da filha, em sua propriedade na cidade do México.
Fazíamos parte do grupo de 1.600 amigos íntimos. Depois de mostrar a luxuosa
mansão, ele nos levou para lá do campo de futebol e das quadras de ténis
particulares. Chegamos a uma área enorme, cercada. Lá dentro, chocados, vimos
um imenso urso. 'Um presente do comité organizador de Moscou em 1980',
explicou tranquilamente. De repente meu presente para o pai da noiva, um rifle
Weatherby feito à mão, pareceu menos impressionante."
Os escritórios de Rana na cidade do México incluem salão de festas, bar,
teatro com 60 lugares, barbearia, sala de aeróbica, sala de relaxamento e piscina.
Sua fortuna pessoal é estimada em US$ 500 milhões.
Em 1986 Rana pagou US$ 40 milhões pela quase falida agência de
notícias United Press International (UPI). "Don Mário tornou-se grande demais
para o México, e mesmo para a América Latina", disse um "amigo" não
identificado à Business Week. Don Mário acumulou sua fortuna a partir da fábrica
de móveis da família, e ficou famoso como fmanciador do presidente Luis
Echeverria.
Perto do final do governo Echeverria, na metade dos anos 1970, Rana
adquiriu a Organizacion Editorial Mexicana, proprietária da cadeia El Sol, maior
editora jornalística mexicana, com 55 títulos espalhados pelo país. "Alguns
observadores viram o negócio como uma compensação", publicou a Business
Week. "Há pouco menos de um ano a cadeia jornalística fora parar nas mãos do
banco estatal de desenvolvimento, o Semex, que saldou as imensas dívidas do
proprietário anterior." O império das comunicações de Rana o tornou uma das
figuras políticas mais poderosas da América Central.
É difícil entender como ele arranja tempo para seu império. Rana preside a
Associação de Comités Olímpicos Nacionais desde sua criação, em 1979. A
ANOC possui hoje 165 membros. Ela levanta os fundos para enviar as
delegações dos países membros para as Olimpíadas, e nos países mais ricos
também desfruta do privilégio de selecionar as cidades que podem se candidatar
a sede das Olimpíadas e sessões do COI no futuro. Mas a ANOC, dominada
pêlos países da África, Ásia e América Latina, é uma entidade pobre. O
presidente Rana gasta cerca de USS 2 milhões por ano para financiá-la, tirando o
dinheiro de seu próprio bolso, dizem os boatos.
"Ele sempre viaja com uma equipe imensa, e paga todas as despesas",
declarou Ueberoth. "Em uma reunião das organizações esportivas
panamericanas, em 1982, em Los Angeles, a comitiva de Rana entrou em pânico
quando o peso sofreu uma ma-xidesvalorização repentina, e a gerência do hotel
exigiu pagamento imediato das contas. Rana controlou a situação, e persuadiu o
hotel a dar um dia de prazo. No dia seguinte um de seus assessorés entregou
uma mala cheia de dólares para o gerente do hotel, como garantia. Seu piloto
particular trouxera o dinheiro de seu banco na cidade do México."
A generosidade de Rana talvez não seja totalmente altruísta. Controlar a
ANOC dá poder e prestígio. Trata-se do principal canal usado pelo COI para
distribuir os milhões de dólares de lucro dos Jogos, Também serve de veículo
para repartir os milhões de dólares adicionais do Fundo de Solidariedade do COI,
destinado aos países pobres. O Fundo de Solidariedade olímpico até
recentemente era comandado por Anselmo Lopez, há muitos anos membro
espanhol do círculo íntimo espanhol de Sama-ranch. Lopez também é tesoureiro
da ANOC. Samaranch atual-mente comanda o Fundo, e Rana é seu
representante. Esta mescla de indivíduos e entidades reproduz o modelo
corporativista que Samaranch encontrava na Espanha fascista, onde todos os
lados pertenciam a uma única organização, para maior glória do Estado e do
líder.
Horst Dassler, da Adidas, logo percebeu o potencial de Rana. "Horst
passou a vida fazendo contatos", disse John Boulter, ex-corredor olímpico que se
uniu a Dassler no início da década de 1970. "Alguns davam certo, outros não.
Horst acreditava que Rana seria uma figura importante no futuro, e sabia que
precisava estar do lado dele."
Dassler apoiou a ANOC de Rana desde sua fundação. Ele ajudou a
financiar a entidade, e também emprestou os escritórios e acomodações
particulares em Paris para as reuniões. "Rana sempre precisou de apoio, porque
só fala espanhol", declarou Boulter. "Ele e Horst ficaram muito amigos. Eu não sei
se a amizade ajudou Horst em suas atividades comerciais no México, mas é bem
possível que Rana tenha aberto as portas da América Central para ele."
Em 1990 Rana recompensou o apoio de seu amigo, conferindo-lhe
postumamente a Medalha de Mérito da ANOC. Ela foi recebida pelo antigo
membro africano da equipe política, o coronel Hassine Hamouda, na época editor
da revista da ANOC, a Tribune. A revista até hoje publica anúncios de página
inteira da Adidas, La marque au 3 bandes, com o slogan Parienaire de l'ACNO,
Os comités olímpicos nacionais começaram a promover reuniões no final
dos anos 1960. Eles sentiram necessidade de reagir à liderança autocrática do
presidente do COI, Avery Brunda-ge. A iniciativa partiu dos comités europeus,
familiarizados com auditorias e balanços, típicos de seus sistemas políticos demo-
cráticos.
Atualmente Samaranch parece se dedicar a calar as vozes independentes
dos comités olímpicos mundiais. O conceito de discussão aberta e discordância
honesta, fundamental para qualquer organização democrática, talvez seja um
anátema para um homem cuja educação política se processou inteiramente sob o
regime ditatorial do general Franco.
Na estrutura abrangente de Samaranch, os líderes das federações
esportivas internacionais e dos comités olímpicos foram atraídos para o COI.
Desde que Samaranch assumiu o posto em Moscou, 39 dos 68 membros do COI
nomeados por ele eram presidentes e secretários-gerais antigos ou atuais. Esta
mudança distorceu a própria natureza do movimento olímpico.
"Deveríamos ter uma organização em pirâmide, com o COI no topo, e os
comités olímpicos e federações em cada um dos cantos", declarou um antigo
membro do COI. "Pode ser que não concordem às vezes, mas para isso temos o
COI. Mas se todos os presidentes esportivos e todos os presidentes dos comités
olímpicos entrarem, a estrutura não será correta."
Dennis Howell é um político profissional que, ao contrário do presidente do
COI, passou a vida atuando em um sistema democrático. Como ministro dos
esportes mais conhecido da Grã-Bretanha, e líder da tentativa de Birmingham
para sediar as Olimpíadas de 1992, ele analisou o estilo político de Samaranch
com argutos olhos profissionais.
"Samaranch não gosta de discussões", disse Howell. "Se vê problemas
pela frente, procura uma saída, de um jeito ou de outro. Ele atua tentando atrair
qualquer um que possa causar problemas, comprando as pessoas, nomeando-as
para o COI ou qualquer uma das diversas comissões. Trata-se de um estilo de
atua-ção, e ele agiu assim com Rana."
Tanto Rana quanto Samaranch tornaram-se presidentes de suas
respectivas entidades olímpicas na mesma época. Quando a ANOC substituiu a
discreta Assembleia Geral dos Comités Olímpicos Nacionais, em 1979, Rana
tornou-se o primeiro e único presidente da organização. Samaranch conquistou a
presidência do COI no ano seguinte. Esta dupla ascensão costuma ser mencio-
nada nas publicações da ANOC, e normalmente vem acompanhada do jargão
olímpico vazio.
Um exemplo típico, na revista Tribune da ANOC afirma: "A eleição de Rana
e Samaranch para presidir respectivamente a ANOC e o COI, no mesmo período,
incentivou o estabelecimento de laços de amizade entre os dois presidentes,
permitindo deste modo ações conjuntas para o desenvolvimento universal do
espírito olímpico. Dentro deste contexto, Mário Vazquez Rana jamais poupou
esforços para visitar todos os recantos de cada continente, de forma a
compreender os problemas, atenuar crises, desfazer mal-entendidos. Juan
António Samaranch e Mário Vazquez Rana nunca duvidaram, nos momentos
difíceis, que a situação do movimento olímpico e do esporte internacional não
pudesse ser revertida."
O estilo é pomposo, o conteúdo mínimo, e os conceitos banais. O estilo da
Tribune imita as várias publicações de Lausanne, ignoradas em muitos países
mais letrados, embora sejam as únicas fontes de notícias esportivas no resto do
mundo.
Rana precisou enfrentar uma eleição presidencial em 1981, mas nunca
mais foi perturbado por outros candidatos. Sempre que chega o momento de
renovar seu mandato presidencial, ocorre uma aclamação, dentro do estilo
olímpico, sem oposição.
"O senhor Mário Vazquez Rana é o único candidato à presidência da
ANOC", informou a Tribune na última vez em que o mexicano foi "reeleito" para
seu cargo, em 1990. "De acordo com a vontade manifesta dos presidentes dos
cinco continentes, e pêlos NOCs, desejamos a ele sucesso."
Na sede da ANOC na Rue d'Artois em Paris, chegaram "manifestações de
lealdade" de vários NOCs. A maioria vinha de países pobres do Terceiro Mundo,
com pouca tradição esportiva, gratos pela filantropia milionária do presidente no
que diz respeito a viagens e despesas de hospedagem.
Benin elogiou sua "eficiente liderança". Bukina Fasso ressaltou seu
"trabalho admirável". A Guiné lembrou os "serviços prestados". O Marrocos
preferiu mencionar a "criação de uma atmosfera e de um ambiente propícios para
o movimento olímpico". El Salvador citou sua "grande visão" e a Tailândia "a força
e a eficiência".
O grande valor de Rana tem sido seu apoio incondicional ao conceito de
Samaranch de um movimento olímpico abrangente, que necessita ficar no topo do
esporte internacional. "A proximidade dos dois é óbvia", disse Anita DeFrantz,
representante norte-americana no COI. "Está claro que Rana tem sido o que
Samaranch poderia classificar de amigo do peito do movimento olímpico, sempre
disposto a colaborar. Ele se ofereceu para tarefas que o presidente desejava ver
realizadas. E empresta seu avião quando o presidente precisa ir a um lugar não
servido pelas companhias aéreas regulares."
Muitos membros do COI acompanharam tensos as manobras de
Samaranch para aproximar Rana do COI. Rana é vice-presidente da Comissão de
Solidariedade Olímpica, membro da comissão do COI para o movimento olímpico,
e participa das comissões de apartheid e olimpismo.
Atualmente há uma preocupação real com a participação de Rana no COI.
Muitos membros se perguntam o que isso representa para os princípios da
entidade, e o que revela dos valores de seu presidente.
"Eu me preocupava com Rana", admite Anita DeFrantz. "Não acredito que
alguém possa ser eleito para o COI só porque naquele momento lidere uma
parcela importante da estrutura olímpica. Ele não preside o ANOC para sempre,
trata-se de um cargo eletivo, que pode ser perdido no futuro. Se perdê-lo, qual
sua utilidade para o COI? Penso que precisamos pensar nas outras coisas que
membros em potencial tenham a oferecer." Quando perguntada o que mais Mário
Vazquez Rana poderia oferecer ao COI, DeFrantz refletiu por um momento e
disse: "Eu não sei".
Dentro da família olímpica, acredita-se que há muito tempo Rana contribui
para a manutenção do ANOC com recursos próprios. Na organização da
assembleia geral de 1981, os delegados descobriram na prestação de contas a
importância de US$ 407.318, classificada simplesmente como "doação especial
obtida por iniciativa do presidente". O tesoureiro da ANOC, Anselmo Lopez, diz
apenas que o dinheiro veio de quatro empresas anónimas, três delas mexicanas.
As contas também revelam que poucos NOCs pagam suas anuidades. Só
a Jamaica, Finlândia, Espanha, Bolívia, Noruega, China e México pagaram a
contribuição de US$ 900. Sem a misteriosa doação e uma ajuda de US$ 200 mil
do COI, haveria apenas US$ 5.900 no banco. O resto do mundo olímpico não se
deu ao trabalho de pagar a taxa. A omissão funciona como um comentário da
importância e do valor atribuídos pelo mundo do esporte, tanto a Rana quanto ao
ANOC.
A maneira como os fundos foram distribuídos pelo ANOC gerou críticas
abertas. "O tesoureiro se instala no saguão do hotel", publicou a Continental
Sport, "e sem o menor pudor exibe maços de dólares para reembolsar as
despesas dos membros do comité executivo."
Mas a preocupação real é: se Rana paga a conta, ele também determina o
cardápio? Durante a campanha pela reeleição, em 1981, ele ajudou a pagar as
despesas de muitos NOCs que compareceram a Milão, onde se realizaria a
eleição. Como consequência, compareceram 127 NOCs, um número recorde.
Rana derrotou seu concorrente inglês, sir Dennis Follows, com facilidade: 95
votos a 25, com 7 abstenções.
Talvez Rana tivesse derrotado Follows mesmo sem o compare-cimento
recorde. Talvez a generosidade de Rana apenas ajude os NOCs mais pobres a
comparecer a uma reunião importante da sua associação nacional. Mas a ajuda
financeira aos votantes pode ofender os princípios de pessoas criadas dentro da
tradição ocidental de democracia política.
Para o antecessor de Samaranch, o nobre irlandês lorde Mi-chael Rillanin,
havia motivo de preocupações, a ponto de levá-lo a mencionar o problema
publicamente, em seu discurso ao congresso olímpico de Baden-Baden, em 1981:
"Existe uma tendência crescente para a obtenção de cargos através de favores, e
até mesmo, como se alega, do pagamento de passagens dos votantes."
A imprensa alemã deu espaço para os comentários de Killa-nin.
Infelizmente, o Frankfurter Alkgemeine também tirou as conclusões erradas. "Sem
dúvida nenhuma", afirmou o jornal alemão, "ele tinha em mente seu sucessor."
Alarmada, a assessoria de imprensa do COI saiu em defesa de Samaranch, e
divulgou um comunicado insistindo que Killanin não se referia ' 'de modo algum ao
presidente ou membros do COI."
"A maior objeção a Rana", declarou um dirigente olímpico, "é que suas
conquistas parecem ter sido obtidas graças ao talão de cheques. Em parte, é um
problema de gerações. Seus colegas mexicanos se opõem a ele, mas pertencem
à velha guarda. Eles organizaram os Jogos do México em 1968, na era pré-
Samaranch, ainda no estilo austero e moralista de Avery Brundage.
"Quando me falaram de Rana, no México, fizeram muita fofoca sem
substância. Disseram: 'Claro, meu jovem, sabe do que estamos falando.' Eu não
sabia do que falavam, na época, mas eles sim, e acreditavam que os outros
compartilhavam das mesmas opiniões."
O mito internacional de Rana, o bem-amado, não é unanimemente
compartilhado em sua terra natal. Quando Rana foi reeleito presidente do comité
olímpico nacional em 1990, o presidente Carlos Salinas comentou que "85
milhões de pessoas vivem no México, e pelo menos 20 milhões estavam na idade
de se eleger para a presidência do NOC. Por que é preciso ficar sempre com os
mesmos nomes, especialmente quando o esporte necessita de ideias e
organizadores mais motivados?
Samaranch estava tão determinado a colocar Rana no COI que ignorou os
desejos da maioria dos membros. "A maior parte de nós não queria Rana",
declarou um dos membros do COI. "Na sessão de 1984 Rana e Nebiolo foram
recusados como membros ex officio, propostos por Samaranch. Eu nunca soube
se Samaranch fez a sugestão nos últimos quinze minutos da sessão para tentar
enganar as pessoas, ou se pretendia dizer mais tarde a eles que tentara mas
falhara.
"Até Birmingham, eu preferia acreditar que ele agradecia a oportunidade de
dizer a eles que tentara. Esperava a convocação de uma eleição secreta em
Birmingham, mas depois percebi que ele realmente queria Rana na entidade."
As restrições a Rana em Birmingham eram tantas que pela primeira vez na
história da entidade uma complô entre membros dos escalões inferiores foi
armado para tentar derrotar o presidente.
"Nas pausas para o café todos falavam de Rana", comentou outro membro
do COI. "Um dos vice-presidentes disse: 'Sei o que vocês querem dizer'. Eu falei a
ele que se fosse mesmo amigo do presidente deveria alertá-lo. Samaranch
deveria dirigir-se ao plenário e anunciar: 'Como há discordância, realizaremos
uma votação secreta.' Ele que fosse o magnânimo. Mas ele não fez isso."
Na manhã de domingo, 16 de junho de 1991, a diretoria executiva do COI
tomou o café da manhã no salão do hotel Hyatt, antes da reunião final.
Kim, da Coreia do Sul, Pound, do Canadá, Gosper, da Austrália, Mbaye, do
Senegal, Hodler, da Suíça, Zhenliang He, da China, e seus colegas sentaram-se
em torno da mesa oval. Juan António Samaranch presidia. Havia ovos, salsichas,
bacon, cogumelos, tomates e batatas para quem ainda sentisse fome depois de
tanto banquete. Os estômagos mais delicados poderiam se deliciar com tortas e
frutas frescas.
"Eram todos pessoas importantes", disse uma das garçonetes que serviram
os grandes homens naquela manhã. "Quero dizer, eles se julgavam muito
importantes. Estavam obviamente acostumados a serem servidos. Mas não eram
educados. Alguns chegaram a estalar os dedos no ar, algo que odeio. Não sou
cachorro.
"Samaranch era o líder, obviamente, comandando tudo. Eu nem sei quem
ele era, para começo de conversa. Várias pessoas discutiam em torno da mesa.
Quando Samaranch falava, todos paravam e o escutavam."
O assunto final daquela manhã era a escolha dos novos membros do COI.
Por tradição, os recomendados pelo presidente são aprovados pêlos membros do
COI. Os membros podem votar a questão, mas por tradição eles inevitavelmente
sacramentam a nomeação de Samaranch.
Samaranch tinha quatro vagas para preencher naquela manhã, suas
sugestões foram: Thomas Bach, da Alemanha; Denis Os-wald, da Suíça; Jacques
Rogge, da Bélgica e Mário Vazquez Rana, do México.
Tendo concluído suas conversas, a diretoria executiva e o presidente
ergueram-se da mesa de café do Hyatt, cruzaram a passarela para o salão quatro
do Centro Internacional de Convenções, e foram ao encontro do resto de seus
colegas, prontos para a sessão final.
Os opositores de Rana estavam prontos e alertas. Seu plano, forçar
Samaranch a uma votação secreta. Se conseguissem, Rana não seria eleito,
acreditavam os conspiradores. Por ironia, a conspiração nasceu dentro da própria
diretoria executiva de Sama-ranch.
"Alguns dos elementos graduados do COI acreditavam que seria melhor
haver uma votação secreta", explica um membro do COI. "Mas eles necessitavam
do apoio de 25 pessoas para conseguir isso."
Mary Glen-Haig, representante da Inglaterra, foi contatada por oponentes
de Rana, que pediram seu apoio. Ela disse que apesar de não estar disposta a
pedir uma votação secreta, poderia preparar o terreno para a oposição,
perguntando a Samaranch no momento apropriado: "Senhor presidente, pode
garantir que os indicados contam com o apoio dos membros do COI em seus
respectivos países?"
O primeiro novo membro a ser indicado foi o alemão Thomas Bach. "para
não tornar a questão pessoal", disse Glen-Haig, ela fez a pergunta "naquela
hora".
Samaranch não respondeu. "Ele apenas prosseguiu a chamada, e disse:
'Vazquez Rana'. Mary Glen-Haig convenceu-se de que, tendo sido ignorada,
Samaranch pensou que o assunto se encerrara. Mas Glen-Haig tocou sua
campainha mais uma vez. François Carrard, diretor geral do COI, chamou a
atenção de Samaranch para o fato de que ela pedia a palavra novamente.
Mary Glen-Haig repetiu a pergunta: "Senhor presidente, pode garantir que
os indicados contam com o apoio dos membros do COI em seus respectivos
países?" Segundo uma reportagem do Times, Samaranch ficou "visivelmente
contrariado" e pediu que as mãos se erguessem.
Mary Glen-Haig ergueu a mão, junto com outras cinco mulheres: a princesa
real, Pirjo Haggman, a princesa Nora de Lich-tenstein, Anita DeFrantz e Carol
Arme Letheren. Quatro homens também se manifestaram: Philip von Schoeller,
príncipe Albert de Mónaco, Pedro Vazquez e Tay Wilson.
Naquela altura, Anita DeFrantz, norte-americana, deveria ter exigido uma
votação secreta. Mas não se manifestou.
"Fui apanhada de surpresa, quando Samaranch iniciou a votação de
repente", declarou Anita DeFrantz, "Ele fez isso antes que eu tivesse a chance de
pedir a votação secreta.
"Creio que a votação secreta seria desejável, as pessoas poderiam votar
como quisessem, sem medo. Mas ao fazer o juramento do COI, aceita-se o
princípio de que as decisões não permitem apelo. Como Rafia foi eleito, fica difícil
falar sobre qualquer tipo de oposição que possa ter existido."
"Ele lidou com a situação de forma astuta, era um técnico brilhante",
comentou um membro que votou contra Rana. "Samaranch é um ditador
benevolente. Treze pessoas votaram em Rana, 10 contra ele e houve 60
abstenções. Alguém pode se imaginar entrando para um clube com 60
abstenções?"
A história da eleição de Rana mostra bem a natureza do COI sob
Samaranch. O presidente, por intermédio da diretoria executiva, e não por meio
da sessão do COI, exerce o poder real no movimento olímpico. Trata-se de uma
vitória da crença de Samaranch no corporativismo. E convém a muitos membros
do círculo íntimo de Samaranch.
"Na maior parte das vezes, a diretoria executiva tem muito espaço de
manobra, concedido pêlos membros do COI", afirmou Un Yong Kim, da Coreia,
membro da diretoria desde 1988. "Isso se dá em parte por motivos práticos. A
sessão do COI, o parlamento do movimento olímpico, acontece uma vez por ano.
Tendo tanto trabalho a íazer, a diretoria executiva é obrigada a se reunir muito
mais." Quando se reúne, define as estratégias do COI, e as decisões na prática
são tomadas lá.
"Dentro da diretoria executiva, a decisão final é tomada por Samaranch",
declarou Kim. "Nunca vi uma recomendação da diretoria ser recusada pela
sessão do COI, desde minha entrada em 1986."
"Kim está correto, tecnicamente", disse o canadense Dick Pound, ex-
colega de Kim na diretoria executiva. "A sessão nunca rejeitou uma
recomendação da diretoria executiva. Mas isso acontece porque Samaranch sabe
o que vai emplacar ou não. Sa-maranch sabe organizar tudo direitinho. Ele é mais
do que um político, é um estadista."
"Para Samaranch", disse Pound, "evitar um problema é preferível a
resolver um que já aconteceu." Muitos membros do COI não contestariam a
afirmação de Pound. O movimento olímpico obteve o reconhecimento, e isso se
deve à habilidade de Samaranch, acredita um membro do COI. "Sua grande força
é a diplomacia. Ele não faz quase nada além disso. É sua vida. Ele não faz nada
além de comer, respirar, pensar e dormir a Olimpíada."
"Mas, embora Samaranch sempre fale da grande unidade do movimento
olímpico, e da importância de preservá-la, creio que ele tenta tapar o sol com a
peneira."
Os trabalhos da diretoria executiva são citados como exemplo: "Mesmo
que alguém seja contra uma moção apresentada na sessão, parece que todos a
apoiam. O nome de Rana foi apresentado como se a diretoria inteira o aprovasse.
Sei que não era bem o caso."
Muitos membros do COI crêem que há algo radicalmente errado em uma
entidade cuja diretoria executiva nunca revela a posição da minoria — mesmo
quando há desacordo.
"Uma das fraquezas de Samaranch", disse outro membro do COI que
prefere não se identificar, "é não nomear nomes muito fortes para o COI. Ele
conduz as reuniões da diretoria executiva como faz com as sessões do COI.
"Veja as contas do COI. São apresentadas aos membros de modo que se
poder ler tudo e não encontrar nada do que se quer saber. Os números só
aparecem na hora da reunião. Não dá tempo de ler direito. Marc Hodler é um
excelente diretor da comissão de finanças e sem dúvida confere tudo, mas é
preciso dizer que todos nós aceitamos os números porque Hodler os aceita.
Fazemos figuração. Nunca há uma discussão filosófica sobre qualquer tema."
Dick Pound descarta tais objeções. "O COI nunca quis ser uma
organização democrática com d minúsculo. Tem elementos do sistema de clubes
inglês. É fechado, mas dentro do clube há democracia."
"Creio que Samaranch é esperto, ladino e astuto", disse outro dirigente
olímpico. "Além disso, ele é ativo, num mundo meio parado. Mas a história pode
mostrar que ele era uma figura semelhante ao primeiro-ministro inglês Harold
Wilson. Enquanto estava no poder, todos admiravam como ele manipulava a
situação. Contudo, por trás do pano, as forças que ele dizia abominar ficavam
cada vez mais poderosas."
E o que o movimento olímpico de Samaranch pretende, ao se aproximar do
século 21? Repassando a pilha de discursos de Samaranch nos últimos dez anos,
pouco se descobre. "Se ouvimos um de seus discursos", disse um dirigente
olímpico, "e eu já ouvi um monte, percebemos que não há conteúdo algum."
A oratória de Samaranch segue um padrão constante e deprimente.
Primeiro ele evoca o nome de Couberún, fundador das Olimpíadas. Depois
enfileira alguns slogans olímpicos nebulosos: "O olimpismo é essencialmente um
movimento educativo", "esporte combinado com cultura", "unindo as pessoas em
benefício da humanidade". O orador e seus discursos seguem no piloto
automático.
"Não sei qual seria a base ética do movimento olímpico hoje", observou
Dennis Howell, "Se estudarmos como era no passado, temos de admitir que seus
alicerces andam meio abalados. Por causa da natureza gigantesca da
empreitada, agora é quase impossível encontrar um país que sedie os Jogos
dentro dos preceitos antigos. Creio que se afastou dos princípios do amadorismo,
caminhando para a universalidade, abrangendo todos os esportes.
"A situação pessoal de Samaranch é um fator importante dentro desta
colocação, especialmente quando ele negocia com a televisão, mas ele vê a
natureza abrangente dos Jogos como um princípio.
"Mas, na minha opinião, ele tomou muitas decisões ilógicas. Por exemplo,
falou em Birmingham sobre a necessidade de reduzir o número de competidores
nas Olimpíadas, e acaba de introduzir o ténis!"
"Liderança e sucesso." Assim outro olimpista resume as características de
Samaranch. "Ele está decidido a tornar o movimento olímpico o organismo mais
importante do mundo. Ele vê o movimento olímpico em termos de ONU. Por isso
é importante para ele que cada Olimpíada seja a maior de todas, tudo em seu
mundo é cada vez maior."
Mas os valores defendidos por Samaranch se enchem de contradições. "É
importante para Samaranch, por exemplo, que Stefí Graf jogue nas Olimpíadas.
Mas, se isso é tão importante, por que não Maradona? A resposta, claro, é que
Havelange e a FIFA não pretendem reduzir a importância da Copa do Mundo, e
não permitem. Mas a situação não é aceita como um fracasso. O futebol olímpico
é apresentado ao público como uma maravilha, porque permite aos países do
Terceiro Mundo competir no cenário mundial! Há resposta para tudo, no mundo
olímpico de Samaranch."
Os membros mais antigos do COI preocupam-se com o rumo tomado
devido à política do presidente. Temem que o espírito esportivo tenha se
ausentado do COI de Samaranch.
"Há uma aura em torno dos cinco anéis. Se Samaranch não tomar cuidado,
vai destruir tudo", disse um dos "tradicionalistas" olímpicos, "É como na antiga
discussão entre amadores e profissionais. Eu precisava economizar dinheiro para
ir aos Jogos, mas me divertia. Não vejo mais diversão alguma. O dinheiro
arruinou tudo.
"As Olimpíadas vão acabar como a final de Wimbledon, com Boris Becker
batendo o pé na quadra, se não tomarem cuidado.
Ele teria o mesmo comportamento se não houvesse tanto dinheiro em
jogo?"
"Meu julgamento geral é de que Samaranch tem sido um bom presidente
do movimento olímpico, mas carrega as sementes de sua própria destruição",
disse Howell. "Alguém precisa entrar em cena — não tenho um nome — e com
firmeza, na presidência, ajustar o rumo e voltar a acreditar em algo."
Há um problema fundamental esperando pelo próximo presidente do COI.
As estruturas que Horst Dassler implantou no mundo do esporte para beneficiar a
Adidas ainda dominam, enquanto que o homem responsável por tudo se foi. "De
um modo estranho", disse Howell, "um dos motivos para Samaranch continuar é
que, se ele também se for, a sucessão criará dificuldades consideráveis para o
COI.
"Samaranch decidiu sair depois de Barcelona, mas eu creio que ele
cometeu um grave erro de julgamento. Não acho que ele possa ganhar mais
espaço. Já é quase um monarca. É tratado como tal por muita gente. O
presidente quer isso, o presidente quer aquilo!"
Samaranch não dá pistas de quem deve ficar em seu lugar — embora seja
difícil que depois de ver seu mundo desabar com a morte de Franco permita o
mesmo no COI. Segundo um observador olímpico, ele parece estar mudando de
ideia: "Ele me disse, há alguns anos, que Dick Pound era o melhor nome do COI.
No ano passado falou que Kim, da Coreia, era o homem indicado para a tarefa."
"Mas as melhores pessoas no movimento olímpico são muito modestas",
prosseguiu. "Tão modestas que deixaram de se reunir para enfrentar os
problemas cada vez maiores. Alguns dos melhores estão velhos demais. Mas
ainda há pessoas que podem exercer grande influência, como o grã-duque Jean
de Luxemburgo e o príncipe Merode. A Princesa Real desapontou.
"Dos nomes em ascensão, Kevan Gosper acha que chega lá, e Dick Pound
não está muito bem cotado no momento. Se Mcrode encalhar, então Pound é o
nome que eu prefiro na presidência. Pelo menos ele é independente."
"Eu diria que é muito difícil olhar para os atuais membros do COI e dizer
qual sua contribuição para o desenvolvimento do esporte internacional", disse um
observador do COI de Samaranch em tempo integral.
"Todos falam de Pound e Gosper, mas eu considero que o próximo líder do
COI será Rana. Especialmente se Samaranch permitir que seu nome seja
lembrado novamente, o que o levaria até Atlanta, em 1996. Ele seria eleito
facilmente, sem oposição. Depois de Barcelona virá a conversa: 'Por favor,
presidente, fique'; depois acontecerão os centenários, muito atraentes. Haverá
uma pressão enorme para que fique, pois não existe um herdeiro óbvio.
"Minha intuição diz que nos próximos anos Rana terá tempo suficiente para
preparar o terreno, entrar na diretoria executiva e finalmente candidatar-se à
presidência."
19
O NÚMERO DO SAPATO DA FILHA MAIS NOVA
O salão da Highbury House, no subúrbio elegante de Moor Green, em
Birmingham, esbanja suntuosidade. Paredes decoradas com azulejos, painéis em
madeira e enfeites em branco e ouro. A sala de reuniões exibe um teto
magnificamente pintado e decorado com madeiras nobres como nogueira e pau-
cetim. As portas têm acabamento em sicômoro. A riqueza da mansão a torna bem
apropriada para o leilão dos Jogos Olímpicos.
Highbury, há 90 anos, servia de residência para um dos líderes políticos
mais importantes de Birmingham. Hoje pertence à cidade, que a usa para
atividades cívicas de prestígio. Também pode ser alugada por particulares.
"Procurando por um local super especial, para uma ocasião importante?" Diz o
folheto de divulgação. "Precisa de instalações sofisticadas, em um prédio cuja
arquitetura magnífica pode conferir a marca da distinção a sua reunião, dotado de
conotações históricas capazes de impressionar profundamente seus convidados?
Não precisa procurar mais."
Na segunda semana de junho de 1991 Highbury foi ocupada pêlos homens
que gastaram uma fortuna para impressionar seus convidados. Eles vinham da
cidade japonesa de Nagano, e pretendiam sediar os Jogos Olímpicos de inverno
de 1998. Para derrotar seus quatro rivais, precisavam ganhar a maioria dos votos
dos 88 membros do COI reunidos em Birmingham para a 97a. sessão. A escolha
das cidades olímpicas sempre acontece durante as sessões anuais do COI, e o
comité de Nagano não deixou nada por conta do acaso. Nada que o dinheiro
possa comprar, bem entendido.
Eles escolheram Highbury como base secreta para a rodada final de
hospitalidade sedutora, empresarial. A mansão custava 500 libras por noite. Era
uma gota no oceano. Para garantir que Nagano fosse escolhida, os japoneses
reservaram US$ 10 milhões.
"Quando cheguei lá fiquei impressionado",.disse Shirley Hunt, que
trabalhou em Highbury naquela semana. "Os japoneses trouxeram de avião seus
próprios chefs, garçonetes, garçons, tudo." Quando chegaram os convidados do
COI, um mestre na cerimónia do chá os saudou. "Eles vieram do hotel Hyatt para
a noitada", contou Hunt. "Cerca de trinta pessoas compareceram na noite em que
trabalhei lá. Todos usavam pequenos enfeites de lapela com o símbolo de
Nagano." Depois das delícias da tradicional cerimónia do chá, os convidados
foram conduzidos ao salão de banquetes, onde um banquete japonês foi servido.
"Havia entre meia e uma dúzia de mesas, todas maravilhosamente
decoradas. Os chefs japoneses fizeram um trabalho incrível. Arrumaram um
balcão com todos os tipos de peixe. Havia salmão, camarões, frutos do mar
variados, tudo sobre um balcão com gelo. O balcão móvel era conduzido até os
hóspedes, que faziam sua escolha e assistiam a preparação na hora. Foi um
show espetacular."
Quatro cozinheiros japoneses trabalharam na cozinha de Highbury a
semana inteira. Todas as noites, no ambiente espetacular da histórica mansão,
eles serviam seu festival do mar aos membros do COI que os visitavam.
"Havia também um bar completo", contou Hunt. "Com vinhos, destilados e
saque. Os destilados eram servidos à vontade. Disseram que não era preciso
medir as doses."
Quando os hóspedes partiam, cansados porém felizes, recebiam uma
pequena demonstração do apreço japonês. "Havia um sistema de computador da
Mitsubishi na entrada", disse Hunt. "Cada convidado tirava uma foto, como se
fosse para um documento. Eles a transmitiam para o computador e adicionavam
no fundo as montanhas de 'Nagano cobertas de gelo. Depois incluíam o mascote
de Nagano, um esquilo gordo e peludo, e finalmente as palavras 'Nagano é linda'.
O resultado se parecia com uma foto polaroid. Cada membro do COI levava uma
fotografia dele em Nagano. Eu também tirei uma!"
De volta ao Hyatt, exibindo suas fotos Mitsubishi, os convidados podiam
fingir que tinham passado a noite em Nagano! Mas ninguém precisava fingir.
Muitos membros do COI passaram noites agradáveis na cidade japonesa antes.
O entretenimento, os brindes e os custos ascendentes de se preparar uma
oferta para sediar os Jogos Olímpicos há muito formavam uma área de
constrangimento no movimento olímpico. Também era uma área de inação.
Desde 1965 o COI determinou que as cidades interessadas em sediar os
Jogos deveriam ser proibidas de dar recepções e festas durante as sessões.
Também foi ordenado que no máximo seis delegados de uma cidade interessada
poderiam comparecer. E, como medida mais severa, nenhum presente deveria
ser dado aos membros do COI.
Quase trinta anos depois a liderança olímpica ainda faz os mesmos
discursos, enquanto as cidades candidatas e os membros do COI continuam a
ignorar tudo calmamente. Em abril de 1991, a diretoria executiva aprovou um
novo conjunto de regras para acabar com a visível indulgência. "Conhecem o
problema da limitação dos gastos das cidades interessadas nos Jogos
Olímpicos", disse Samaranch obliquamente aos membros do COI. "Como sempre,
conto com seu apoio."
As novas restrições entrariam em vigor depois que a sessão de
Birmingham terminasse. Sendo assim, Magano e as cidades rivais poderiam
gastar o quanto quisessem, e os membros do COI aceitar todos os presentes.
Tanto Nagano, a cidade vencedora, quanto Salt Lake City, alugaram mansões
para exibir sua boa vontade, contrariando o espírito da mudança iminente.
Ninguém foi criticado. As duas cidades sozinhas levaram mais de mu pessoas a
Birmingham. Os custos somados dos gastos das cinco cidades que tentavam a
indicação chegaram a US$ 50 milhões.
As regras de Samaranch têm um sabor forte de déjà vu. Segundo as novas
regras, as cidades candidatas para b ano 2000 devem: evitar recepções e festas,
ter uma delegação de no máximo seis membros e um limite de US$ 200 no valor
total dos presentes dados a cada membro do COI.
Os novos regulamentos foram quebrados em dois meses, quando a
diretoria executiva do COI realizou sua reunião trimestral em Berlim, em setembro
de 1991. Os membros receberam o seguinte convite: "Por ocasião da reunião da
diretoria executiva do COI em Berlim, temos a honra de convidá-lo para uma noite
em Wits-haus Schildhorn." Os autores do convite, o comité de Berlim para os
Jogos Olímpicos do ano 2000. Eles não foram eliminados da competição.
Houve um tempo em que uma cidade não aceitaria os Jogos Olímpicos
nem que pagassem. Depois das perdas imensas em Montreal, poucas cidades
queriam arranjar décadas de dívidas. Só Los Angeles teve coragem para se
candidatar aos Jogos de 1984. Inevitavelmente, não precisaram dar presentes
demais aos membros do COI. Foi a última das campanhas baratas. Mas quando
os organizadores dos Jogos de Los Angeles informaram um lucro de US$ 215
milhões, um novo mundo se abriu para o colégio eleitoral exclusivo. A campanha
seguinte, para os jogos de 1992, deu o tom.
"Nunca se viu algo assim na história do movimento olímpico", disse Denis
Howell, que liderou a tentativa de Birmingham contra a cidade vencedora,
Barcelona. "Nenhum limite foi imposto à quantidade de recepções ou ao dinheiro
que se podia gastar nelas, nem tampouco às visitas dos membros do COI ou os
presentes dados a eles."
O orçamento da campanha de Birmingham, inicialmente estimado em
cerca de 1,5 milhões de libras, acabou sendo corrigido em mais um milhão. Os
vencedores de Barcelona gastaram 4,5 milhões de libras, E havia mais quatro
cidades interessadas nos jogos de verão. Sete outras, de Sofia a Berchtesgaden,
brigavam pêlos jogos de inverno, no mesmo ano. As treze cidades candidatas
gastaram um total oficial de 33 milhões de libras. Os gastos extra-ofïciais não
foram revelados.
Todos estes milhões tinham um mesmo destino: conquistar pouco mais de
40 votos no COI. Não há outro modo de se conseguir uma Olimpíada. Qualquer
cidade interessada deve voltar sua atenção exclusivamente para o Clube.
"No final do dia, era preciso sair e reforçar os vínculos com os membros do
COI", disse Bob Scott, o extrovertido empresário teatral que liderou a tentativa de
Manchester contra Atlanta e Atenas para os Jogos do Centenário, em 1996. "Eu
sei até o número do sapato da filha mais nova de um dos membros do COI!"
Scott voltou à estaca zero, e tenta novamente. Quer levar Manchester à
vitória na corrida pêlos Jogos do ano 2000. Uma das cidades rivais será Pequim.
"Vai ser interessante ver como os chineses farão a campanha. Em Birmingham
tinham seis pessoas; em Sidnei, para a conferência das federações
internacionais, levaram 14. No Campeonato Mundial de Atletismo de Tóquio,
sabe-se lá quantas. Mas estarão paparicando as esposas dos membros do COI?
Deveriam, no final trata-se de uma questão pessoal."
A lei básica de Scott, "sair e reforçar os vínculos com os membros do COI",
também serviu como alicerce para a campanha de Birmingham, em 1986. A
primeira coisa que a equipe de De-nis Howell fez foi criar um dossiê para cada
membro do COI. Todos seus interesses individuais e exigências foram
detalhados. Produziram um vídeo exaltando as qualidades de sua cidade,
construíram uma maquete das novas instalações e foram à luta, tentando contatar
o maior número possível de membros do COI nas assembleias esportivas do
mundo inteiro.
Segundo Howell, "os membros do COI esperam uma recepção em cada
um destes encontros. Se tais recepções eram esperadas, então Birmingham
deveria se esforçar ao máximo." Quanto ao delicado assunto dos presentes,
Howell buscou informações. "Era uma prática constante presentear os membros
do COI nestas ocasiões", descobriu. "Quando nos visitavam, resolvemos seguir a
praxe."
Howell, ex-ministro dos esportes, ficou profundamente abalado com esta
experiência. "Eu tinha plena consciência de que o processo de competição estava
escapando ao controle", declarou. Apesar desta preocupação, Birmingham fez a
sua parte. Para seu esforço final, na sessão do COI em Lausanne, onde seria
realizada a votação, a equipe de Birmingham enviou um coral, alugou um navio e
ofereceu um banquete sobre as águas do lago Le-man. De volta à terra firme, a
banda da polícia de West Midlands tocou no saguão do Falais de Beaulieu, onde
se realizava a sessão. O astro do futebol inglês Bobby Charlton recebeu os mem-
bros do COI.
Outras cidades interessadas foram igualmente extravagantes. Brisbane
gastou US$ l milhão para impressionar os membros do COI em Berlim, em 1985.
Além disso, Rupert Murdoch mandou US$ 200 mil em frutos do mar de avião para
a Alemanha, usados no banquete ao ar livre de Brisbane.
Amsterdam divulgou seu interesse nos Jogos promovendo festivais diários
de cerveja para a imprensa mundial. O lado negro da tentativa de Amsterdam foi
um relatório de que pelo menos um membro do COI pediu dinheiro para garantir
seu voto.
Direto das delícias de Berlim, 35 membros do COI voaram para ver de
perto um local proposto para os Jogos Olímpicos de inverno, a cidade sueca de
Falun. O evento máximo foi um banquete com a presença do rei e da rainha da
Suécia. O vice-presidente do COI, Ashwini Kumar, viajou com a esposa e dois
filhos. Não se sabe bem quem pagou a passagem da família de Kumar para a
Suécia.
Quando a comissão de auditoria examinou as contas de Berch-tesgaden,
na tentativa da cidade para sediar os jogos, encontrou "despesas excessivas e
imprevistas". Viagens aéreas para 33 membros do COI custaram ao comité 100
mil marcos alemães, A conta para Ivan Dibos, representante peruano no COI,
chegou a 27 mil marcos. Ele viajou acompanhado da esposa e três filhos.
Críticas ao exagero das campanhas encheram as páginas dos jornais.
"Nunca, na história do esporte, tanta atenção foi dada a pessoas que há muito
passaram da idade e da forma física necessárias para competir", afirmou o
Observer de Londres. "Foram gastos 33 milhões de libras para garantir os 43
votos dos 85 membros de uma oligarquia conhecida como COI."
"As campanhas longas e caras deixaram para trás perdedores demais",
publicou a Frankfurter Allegemeine Zeitung. "Só por esta razão, o COI deve
considerar a redução da escala deste teatro olímpico absurdo para um nível mais
razoável."
"A prova de que as considerações esportivas desempenham um papel
subordinado neste tipo de escolha", denunciou a Süddeutsche Zeitung de
Munique, "se mostra nos parcos resultados de Berch-tesgaden (6 votos) e
Amsterdam (5 votos). No que diz respeito aos atletas, os dois locais ofereciam
condições quase ideais."
A imagem dos membros do COI como um bando mimado e ganancioso era
potencialmente maléfica. O presidente Samaranch achou melhor entrar em ação.
Depois que Barcelona garantiu sua indicação, ele pediu às cidades candidatas
que pensassem em uma maneira de coibir os excessos. O resultado: mais regras
de Lausanne.
Ele decretou um banimento de todas as recepções e espetácu-los
organizados para todas as ocasiões imagináveis, na corrida pelo voto de 1996.
No futuro, elas só seriam autorizadas "dentro do âmbito de uma sessão do COI."
Também foram proibidos os presentes absurdamente caros que
soterravam os membros do COI. No futuro, decretou Lausanne, todos os
presentes devem ter um "caráter relevante". Não se definiu o que seria isso.
As incontáveis viagens de membros do COI a cidades candidatas também
deveriam parar. O próprio Denis Howell apresentou esta sugestão. Cinco anos
depois, o ex-ministro continuava cético. "Nunca vão impedir estas visitas dos
membros do COI", afirmou. "Está claro que a diretoria executiva não privará os
membros das viagens internacionais. Se fizerem isso, não se reelegem nunca
mais!"
As regras mais recentes tentam restringir as visitas às cidades candidatas
a uma única viagem por membro do COI, com um acompanhante. "E o que a
gente faz se alguém diz quero levar a minha filha?" Pergunta um veterano deste
jogo. "Denuncia o sujeito ao COI? Claro que não. É como chover no molhado.
Não muda nada. As cidades candidatas não ganham nada se recusarem o pedido
ou denunciarem o caso."
A experiência de Howell em dirigir a campanha de Birming-ham para os
Jogos de 1992 o levaram a dizer: "Nunca se viu nada igual na história do
movimento olímpico". Ele completou: "Espero que nunca mais se veja nada igual."
A campanha para 1996 não mostrou melhoria. Atlanta, Atenas,
Manchester, Melbourne e Toronto esbanjaram gentilezas para o pequeno grupo
que detinha a chave para seu sonho.
A tentativa de Atenas para sediar os Jogos do centésimo aniversário das
Olimpíadas modernas começou com um banquete formal no sopé da Acrópole. O
primeiro-ministro grego, Andreas Papandreou, anunciou a candidatura da cidade
na presença do presidente Samaranch e 16 membros do COI da Europa, África,
América Latina e Oceânia. A festa continuou com uma recepção dada pelo comité
olímpico helénico no Glyfada Golf Club. Um voo especial da Olympic Airways
levou os membros do COI a um aeroporto particular perto de Olímpia, Eles depois
passearam pelo Pireu, visitando o golfo de Corinto e os templos de Delfos. No
ano seguinte outros membros do COI foram à Grécia. Assistiram à estreia
mundial do novo bale sinfónico de Mi-kis Theodorakis, composto a partir do tema
de Zorba.
"Durante a apresentação deste trabalho musical excepcional," informou o
Times de Londres, "mais da metade dos membros do COI presentes passou o
tempo conversando alto, bebendo e rindo. Se eu fosse grego eu sentiria vontade
de levantar e gritar: Fiquem com seus Jogos, seus milhões da televisão, seus
patrocinadores e seus autómatos drogados!"
"Sou um membro independente do COI", afirmou um veterano. "Meu voto
não pode ser comprado." Isso pode ser verdade, mas muitos membros do COI
dão a impressão de que gostam de ser pagos.
No hotel Hyatt de Birmingham, em 1991, houve farta distribuição de
presentes quando o circo dos candidatos foi montado. Na sala reservada para
encomendas, no primeiro andar, pacotes exoticamente embrulhados empilhavam-
se, enviados pelas cinco cidades candidatas.
Havia cristais Vennini, bolsas Gucci, computadores pessoais, aquarelas,
edições limitadas de obras, lenços de seda, gravatas, livros e chapéus. Senhores
australianos altos, que nem concorriam à indicação, passeavam com punhados
de gravatas, brindes anunciando a disposição de Sidnei para sediar os Jogos no
ano 2000.
Shirley Hunt, que trabalhou na mansão de Highbury para os japoneses,
também esteve no Hyatt. "Havia tanta coisa chegando que as moças passaram a
semana inteira simplesmente enviando os presentes para os quartos do pessoal
do COI. Era incrível. Os presentes começaram a chegar por volta do meio-dia, e
depois disso a sala se encheu de caixas de todos os tipos. Eu sei que a princesa
Anne devolveu todos os presentes, mas acho que ela foi a única."
No hotel Hyatt, cada cidade candidata teve direito a uma "suíte oficial de
relações públicas". "Fomos instruídos a tratar a todos igualmente", declarou
Catriona McFadden, encarregada da divulgação do Hyatt. "Cada um recebeu a
suíte e vinte quartos. As suítes foram distribuídas conforme instruções de
Lausanne. Demos a cada cidade uma suíte vazia. Eles trouxeram toda a mobília e
a decoração de avião. O custo não parecia fazer a menor diferença."
Atrás de cada suíte havia quartos lotados com pilhas de caixas contendo
os brindes mais baratos: roupas esportivas, camisetas, canetas, chaveiros,
canecas de cerveja, isqueiros, broches e adesivos.
As persianas eram erguidas nas portas de vidro, quando os candidatos
saíam de seus quartos discretamente. A equipe italiana de Aosta trancava a porta
da frente, e insistia em transportar tudo pêlos fundos.
Uma equipe da televisão japonesa, sem ter muito o que filmar, decidiu dar
plantão na porta dos italianos. Quando ela foi finalmente aberta, acenderam as
luzes e a câmera entrou em ação. "Os italianos ficaram loucos", contou
McFadden. "Parecia o começo da terceira guerra mundial."
O grupo de Jaca escolheu um interior cheio de atividades, estilo alta
tecnologia, com um multi-display contínuo das atrações de inverno nos Pirineus
espanhóis.
Aosta preferiu uma abordagem mais clássica. A peça central da suíte era
uma imitação de uma fonte de pedra.
Salt Lake City transformou seu espaço numa recriação do velho oeste.
Uma banda country de camisa xadrez tocava, tendo ao fundo as montanhas
Rochosas.
"Caminhões lotados de mobiliário e peças de decoração chegavam sem
parar", contou Shirley Hunt. "Salt Lake City trouxe cargas e mais cargas de
pinheiros de verdade. Precisamos passar o aspirador depois, e levou horas. O
local virou um imenso carpete verde."
A cidade de Nagano preferiu a serenidade de uma casa de chá japonesa.
A suíte deles, como todas as outras, oferecia comida, bebida, salgadinhos, doces
e pequenas lembranças para todos", contou Hunt. "A maioria do pessoal também
trouxe montes de bebidas locais. Os italianos, vinhos; os espanhóis, cerveja; e os
japoneses saque. Cobrávamos rolha em tudo, precisávamos contar as garrafas!"
Conversamos com o sr. Tasuku Tsukada, prefeito de Nagano, na porta da
casa de chá japonesa.
— O que acha das possibilidades de Nagano?
— Estamos esperançosos — disse o prefeito.
Lentamente, começamos a abordar assuntos mais delicados.
— E quanto aos presentes?
O sr. Tsukada ouviu impassível a tradução de nossa pergunta. Balançou a
cabeça afirmativamente, e um ar resignado surgiu em seu rosto enquanto ele
desaparecia atrás de uma divisória dentro da suíte. Quando retornou, trazia uma
caixa de bombons magníficos.
O Sr. Tsukada sorri complacente e coloca o presente em nossas mãos. A
questão fora entendida da única maneira possível, para uma cidade candidata.
No fundo do corredor, os suecos montaram seu esquema. A suíte de
Ostersund parecia um anúncio colorido de cozinha su-perequipada. Os armários
de pinho sueco iam até o teto. A equipe oferece doses de vodca e copos de suco
de framboesa. Nas bandejas, tortinhas de carne de rena defumada.
Conversamos com o sr. Borg, encarregado do relacionamento com a
imprensa. Ele forneceu as estatísticas costumeiras.
— Visitamos 87 membros do COI em seus países. Convidamos 72 para
conhecer Ostersund. Trabalhamos em conjunto com o Ministério das Relações
Exteriores da Suécia para contatar todos os membros do COI, em qualquer pane
do mundo. Temos uma equipe de 43 pessoas em Birmingham.
Soubemos que o sr. Borg era veterano no assunto. Ele participou da
campanha de 1986. Na época, ele ajudava a melhorar as chances de Falun para
as Olimpíadas de inverno de 1992. Falamos do passado.
— Mudou alguma coisa?
— Tivemos bem mais visitantes na cidade do que na época de Falun —
informou.
Fica difícil imaginar. O COI ficou tão preocupado com a frequência que
seus membros eram convidados para visitar Falun, que pediu aos comités que
"evitassem convidar pessoas direta-mente envolvidas com a eleição." Quem diria!
— E quanto aos presentes?
— A distribuição de presentes cresceu — disse o sr. Borg. — Creio que o
valor de cada um diminuiu, mas a quantidade subiu. Damos a cada membro do
COI um presente durante nossa visita pessoal, um presente quando visitam nossa
cidade, um quando visitam a suíte de relações públicas, e um por dia de perma-
nência no hotel. Damos pequenas lembranças, como cristais e artesanato sueco",
disse, mostrando pequenas taças de cristal guardadas em um armário de pinho
sueco. Elas voltam depois para seus lugares. Não somos membros do COI.
— As moças do hotel, encarregadas de entregar os presentes, reclamavam
que alguns presentes eram grandes demais — disse Borg. Nenhum problema.
Malas extras encontram-se à disposição dos membros do COI, para que possam
levar sua carga embora.
Faltando 24 horas para a escolha, o vitorioso e os vencidos deixaram suas
acomodações no Hyatt.
"Os espanhóis não deram nem gorjeta, foram uns miseráveis", disse
Shirley Hunt. Os suecos deram a cada moça dez libras e um peso de papéis de
vidro, que sobraram nas prateleiras. Os italianos deram uma garrafa de licor. Os
japoneses, um mascote de pelúcia. Disseram que não davam dinheiro para
moças honestas!" contou Hunt. "Os espanhóis me deram um agasalho de Jaca.
Grande coisa! Os americanos não deram nada para ninguém!
"Nada disso se compara com as montanhas de presentes que eles
distribuíram durante a semana. Era tão escandaloso, um tentando superar o
outro. Para mim parecia suborno. Não havia um desejo sincero de se presentear
as pessoas. Era pura adulação dos membros do COI, que obviamente adoravam
toda a atenção recebida."
O sr. Borg contou que Óstersund normalmente providenciava passagens e
acomodações para os membros do COI que visitavam a cidade. "Mas eles podem
cuidar disso e mandar a conta", confirmou.
Esta facilidade de receber dinheiro das cidades candidatas, para
passagens aéreas e despesas, mostrou ser uma área nebulosa.
"O sistema era providenciar as passagens, caso eles quisessem nos
visitar", confirma Denis Howell, no caso da tentativa de Bir-mingham em 1986.
"Mas tivemos problemas com um dos membros do COI. Ele queria ser pago em
dinheiro. Não teria acontecido, se me informassem antes. Foi feito, e fiquei
furioso. É inconcebível, mas alguém foi ao hotel onde ele estava hospedado e
deixou o dinheiro na recepção. Era o que o sujeito queria, porque conseguira as
passagens em outro lugar."
Entre seus últimos decretos, o COI determinou que passagens aéreas de
primeira classe para membros do COI em visita a cidades candidatas devem a
partir de agora sair do próprio COI. São individuais e intransferíveis. As cidades
providenciam o reembolso depois. "As pessoas darão um jeito de contornar isso",
previu um antigo líder de cidade interessada. "Ninguém vai reclamar. Quem vai
policiar isso? O que a gente faz se alguém pedir dinheiro para a passagem? 'Ah,
por falar nisso, mande o dinheiro para o meu agente de viagens que ele cuida de
tudo'. A não ser que haja punições, as regras são ridículas. Não mudará nada, se
ninguém for punido. A desqualificação das cidades envolvidas é o único meio,
mas como fazer isso?"
Se a tão aguardada reforma acontecer, impedirá um truque corriqueiro,
praticado por um membro do COI do Leste Europeu em Birmingham, no ano
passado. "Na noite em que todos estavam saindo", contou Denis Howell, "alguém
veio falar comigo, e disse que um determinado membro do COI tinha muita baga-
gem e precisava de um carro para ir até o aeroporto de Londres.
Nosso encarregado de transporte ponderou que, em função do tráfego
entre Birmingham e Londres, seria melhor pegar o trem expresso para Heathrow
no aeroporto de Birmingham.
"Enfim, falei com meu pessoal, e perguntei se havia algum carro disponível.
Era dia de ir embora, estava tudo comprometido. Finalmente conseguimos dois
carros. Disseram que este membro do COI estava um pouco irritado, e não queria
pegar o avião em Birmingham.
"Ficamos completamente atónitos quando o motorista contou mais tarde
que o membro do COI o mandou seguir para o aeroporto de Birmingham assim
que o carro deixou o hotel Hyatt. O motorista falou que tinha ordens de ir para
Heathrow. O passageiro explicou que precisava trocar as passagens. Ele foi ao
aeroporto, pegou o dinheiro do trecho Birmingham-Londres e seguiu para Londres
de carro!"
O objetivo de cada equipe é visitar o maior número possível de membros
do COI. Fazer com que visitem as cidades custa muito dinheiro, também. Quanto
dinheiro ninguém sabe, ninguém diz. O comité de Salt Lake City publicou um
anúncio nos jornais locais, para levantar fundos para entreter membros do COI
em visita à cidade. Dizia o texto: "Nossa intenção é trazer entre 50 e 60 membros
do COI até aqui. Mas isso custará mais de um milhão de dólares."
"Tem uma calculadora?" Perguntou o Park Record de Utah. "Presumindo
que os 60 membros aceitem vir, e que o total não passe de um milhão, o custo
por membro é de US$ 16.666. Vamos tirar US$ 1.666 de passagens aéreas,
primeira classe. Ficamos com um número redondo, US$ 15 mil. É só subtrair
agora US$ 100 pelas camisetas, bonés e sacolas com o logo Salt Lake City 98, e
US$ 700 por uma semana no melhor hotel. Ainda sobram US$ 14.200 para
gastar. Isso levanta duas questões: O que os membros do COI comem? Como eu
faço para entrar no COI?"
Uma larga soma é gasta para adular os votantes, antes de levá-los até a
cidade para conhecer suas vantagens. Funciona como um namoro juvenil:
— Me dá um beijo — diz o rapaz.
— Não — responde a namorada.
— Mas eu te amo. Olha, trouxe um presente.
— Então beije.
"O segredo de um presente", disse um veterano do ramo, "não é o preço,
mas o quanto a pessoa o deseja. Um presente adequado é tudo. Se você der um
relógio Seiko para a princesa Arme, ela o devolve, e mesmo que não o faça,
provavelmente uma pessoa como ela já tem um relógio de pulso. Mas um outro
membro do COI pode ficar deslumbrado. É como os melhores presentes de Natal.
Algumas pessoas compram 17 presentes iguais e distribuem. Mas quem sabe
presentear pára e pensa no que esta ou aquela pessoa realmente deseja."
"Uma cidade, por exemplo, deu um livro de jardinagem para a esposa de
Raymond Gafner, da Suíça. Não custou praticamente nada, mas ela adora
jardinagem. Ficou deslumbrada. Não tanto com o presente, mas com o fato de
alguém se dar ao trabalho de descobrir do que ela gostava. Isso é talento para
presentear."
Atlanta tinha talento para presentear. Um membro da equipe de
candidatura dedicava-se a descobrir os melhores presentes "Um momento de
inspiração foi levar três membros do COI, fanáticos por golfe, para jogar no
Augusta, local do US Masters. Se você gosta de golfe, como os três gostavam,
não há nada no mundo que se compare a isso."
Mais dinheiro ainda é investido para subsidiar muitos membros do COI que
decidem fazer uma segunda visita à cidade candidata. "Um certo membro visitou
Birmingham mais do que todos os outros", disse Denis Howell. "Descobri por
acaso que minha equipe estava providenciando uma excursão pelo país, a pedido
do tal membro. Meu pessoal achava que deveria atender a todos os pedidos
deles, até ordem em contrário."
Birmingham também recebeu várias visitas de um veterano membro
africano do COI. "Como ele dava trabalho!" Lembrou um funcionário da equipe. "E
depois diz a todos que vai votar na cidade." O mesmo africano apareceu em
Toronto durante a campanha querendo fazer negócios com os patrocinadores da
cidade. Não teve êxito.
Bob Scott não se preocupa com a necessidade de agradar eleitores
potenciais de Manchester. "A gente vai ganhar seu voto mandando passagens de
terceira classe e dizendo para pegarem uma carona em Heathrow para chegar
aqui? Claro, a gente tem que fazer o máximo. Claro, damos tratamento de
primeira classe. Claro, a gente cuida deles direitinho. E se alguém disser:
'Gostaria tanto que meu filho estudasse inglês na Inglaterra', você providencia
isso e pronto. Não gasta muito. Trata-se de uma gentileza. É assim que os
contratos de armamentos são conseguidos, é assim com qualquer contrato. Se
maltratá-los e recusar hospedagem der votos, vamos fazer isso.
"Eu não sinto muita inveja de uma pessoa que dá um casaco de mink de
US$ 5 mil para a esposa de um membro do COI. Por outro lado, Manchester não
fez isso, e nós quebramos a cara! Mas não creio que o motivo tenha sido este.
Recebi agradecimentos das pessoas pêlos presentes que mandei, sem ter
mandado nada, só porque eles presumiam que tinham recebido presentes, por-
que todos mandam.
"Demos presentes, no sentido de por exemplo levar Francisco Elizalde,
membro filipino do COI, em um jatinho particular para a Sardenha, para ver um
jogo da Copa do Mundo, quando ele esteve na Inglaterra. Mas não gastamos
nada, um amigo emprestou o avião e pagou as despesas. Não sei como
classificar isso. Se ele não fosse membro do COI, teríamos ajudado?"
Scott tem uma opinião. No mundo olímpico, quem paga a conta não leva o
voto, necessariamente. "Quando estive em Tóquio em 1990", disse Denis Howell,
"Manchester deu uma festa. A princesa Anne compareceu. Quando cheguei, vi
cerca de 16 membros do COI. Havia conversado pouco antes com dois deles, e
sabia que seu voto iria para Atlanta, sem sombra de dúvida!"
Atualmente Bob Scott anda otimista, "As pessoas ficam decepcionadas
porque acreditam no que diiiem a elas. Bobagem. As pessoas odeiam magoar os
outros, no geral. Minha lembrança mais forte do dia da decisão, e participei de
pelo menos quatro importantes, é o ar melancólico dos membros do COI. Eles
odeiam aquilo. São obrigados a escolher entre amigos. Não gostam nem um
pouco."
O presidente Samaranch diz que a melhor cidade ganha. "O COI tem muita
dificuldade em chegar a uma decisão. O rnais importante, sempre, é a
apresentação." Talvez ele tenha razão. Mas os perdedores, de Sofia a Salt Lake
City, dirão outra coisa.
"Barcelona era uma boa cidade, assim como Paris, mas Barcelona ia
ganhar de qualquer jeito", disse Denis Howell. "Era óbvio, desde o início da
campanha, que os membros não se esqueceriam de que lado estavam, e
permaneceriam leais ao presidente Samaranch."
No momento crucial da votação em Lausanne, Jacques Chirac defendeu
as qualidades de Paris. Fez um discurso tão brilhante que atraiu vários membros
do COI para seu lado.
"O efeito foi tão devastador", Howell contou, "que os estrate-gistas de
Barcelona tomaram a decisão de enfraquecer a França apoiando a candidatura
da cidade francesa de Albertvüle para os jogos de inverno. A tática era ajudar a
França a ganhar as Olimpíadas de inverno, deixando Barcelona mais forte nos
jogos de verão. Os membros receberam telefonemas noturnos, pedindo votos
para Albertvüle."
Samaranch ficou neutro na disputa, e recusou-se a ajudar na candidatura
de sua cidade natal, Barcelona. "Ele podia se dar a este luxo", disse Howell.
"Quanto mais fica no poder, mais membros do COI nomeia, e muitos se sentem
em dívida para com ele. Isso, em si, já é pernicioso. Em minha opinião, o modo
como os membros são escolhidos para o COI gera distorções. Os julgamentos
individuais deveriam se basear apenas no mérito."
Outros políticos concordam com Howell. O ex-primeiro-ministro australiano
Bob Hawke, lamentou o fraco desempenho de Melbourne em sua tentativa de
sediar os Jogos de 1996, e comentou acidamente que "metade do poder de voto
atual se origina em membros do COI com menos de nove anos de entidade, fruto
da nova onda mercantilista. Nunca precisaram pagar passagens ou contas de
hotel."
A campanha para o centenário dos Jogos Olímpicos de 1996 foi distorcida
por rivalidades ainda mais fortes entre os principais competidores. A luta pêlos
jogos representou uma batalha de um ano entre o velho e o novo mundo, entre a
tradição olímpica e o dinheiro olímpico, Atenas contra Atlanta.
A força moral do argumento de que o centenário dos Jogos Olímpicos
deveria ser celebrado na Grécia, país de sua origem e renascimento, era
esmagadora. Mas contratos mais vantajosos seriam obtidos se os Jogos
acontecessem nos Estados Unidos. Atenas perdeu para Atlanta. Qual era a
vontade do presidente? Como é de seu feitio, Samaranch se manteve neutro em
público, deliberadamente.
"O que eu gostaria de saber", disse Bob Scott, chefe da equipe de
Manchester na tentativa de sediar os jogos, "é a forma como Samaranch
comunica seus pontos de vista nestes assuntos. As pessoas ouvem cada palavra
do que ele diz, olham em seus olhos e perguntam o que acha de Toronto? e
Samaranch faz cara de 'talvez' ou 'você está brincando'. Dizem que ele fica em
cima do muro, para ver de que lado o vento sopra. Todos dizem ter acesso
privilegiado a Samaranch. Não acredito. Não nego que as pessoas conversem
com ele, mas a ideia de que ele chama alguém de lado e diz 'muito bem, pessoal,
vamos fazer o seguinte' é totalmente absurda. Ele não age assim."
Não obstante, há notícias na imprensa dando conta de que Samaranch deu
a entender "claramente" que não desejava os Jogos na Grécia. Em uma tentativa
de neutralizar o argumento histórico de Atenas, para sediar o centésimo
aniversário dos Jogos Modernos, Samaranch disse que preferia comemorar o
aniversário em 1994, e não em 1996. Afinal, em 1894, na Sorbonne de Paris,
Pierre de Coubertin sugerira reviver as Olimpíadas. Agora, como Atlanta ganhou
sua campanha, o presidente Samaranch planeja comemorar a data em grande
estilo, duas vezes!
Mas Samaranch também apoiou a tentativa ateniense. ' 'Creio que ele ficou
perturbado com os insultos a Atenas", declarou Bob Scott. "Falou a favor deles
em algumas situações, e isso deixou algumas pessoas furiosas, como por
exemplo Billy Paine, de Atlanta, que protestou imediatamente."
"Samaranch me impressiona. Ele sempre parece estar numa posição onde
não tem como perder. Todos o adoram. Amam mesmo. Todos procuram seu
sorriso e sua bênção. Samaranch é um grande paladino de causas perdidas. Meu
palpite é de que ele fez o mesmo jogo com Atenas."
"Muitos membros do COI chegaram para a votação final pensando que a
maioria dos candidatos tinham condições de sediar os Jogos", declarou Scott. "A
coisa se reduziu a dois fatores. Para onde eu quero ir? O que é melhor para o
movimento? Mas, também, o que meu presidente prefere? Samaranch é uma for-
ça, porque todos pensam nele, não porque sai por aí dizendo o que quer."
Atenas não lutou apenas contra os Estados Unidos. Lutou contra Atlanta,
sede da Coca-Cola. Por mais de 60 anos a Coca-Cola investe pesadamente nas
Olimpíadas, e desde a metade da década de 1980 a companhia tornou-se o
patrocinador mais importante do TOP.
Tamanha é a influência da Coca-Cola no movimento olímpico que a
gigante dos refrigerantes sentiu-se compelida a seguir o exemplo de Samaranch e
se declarou neutra. "A Coca-Cola nega", disse Geral Bartels, presidente da
câmara de comércio de Atlanta, "mas o observador atento dirá que a Coca-Cola
foi um fator. Não creio que precisassem fazer campanha abertamente. Só
precisavam ficar lá, sentados."
O afastamento voluntário da linha de frente, comunicado durante uma das
visitas pessoais do presidente Samaranch à sede da empresa em Atlanta, não
impediu a firma de doar US$ 3su mil para o orçamento da candidatura de Atlanta.
A Coca-Cola diz que agiu com justiça. Também deu dinheiro para campanhas
rivais. Toronto recebeu US$ 125 mil, e Melbourne US$ 80 mil, dos engarrafadores
locais. A Coca-Cola se mostra altamente sensível a qualquer sugestão de que
tenha influenciado a escolha da sede do centenário. "Seria arrogância sugerir que
teríamos a possibilidade de influenciar os votantes", declarou o diretor da Coca-
Cola Don Keough.
Mesmo assim, a dívida do COI para a Coca-Cola é grande. Quando
Dassler lançou o primeiro projeto TOP, para financiar os Jogos de Seul, a Coca-
Cola foi a primeira companhia a aderir. As outras multinacionais a seguiram, e as
Olimpíadas prosperaram.
Quando Nagano ganhou a indicação para as Olimpíadas de Inverno de
1988, o presidente do comitê de candidatura, Goro Yoshimura, disse: "Fizemos
muitas promessas, e vamos cumpri-las." Isso era um indício do motivo de tanta
amargura no comitê de Salt Lake City. Eles não fizeram promessas — eles
praticamente terminaram de construir as instalações.
O Salt Palace estava pronto para inspeção, com seu vasto centro de
convenções e imprensa. Havia um estádio olímpico com 50 mil lugares; uma vila
olímpica para 4 mil atletas; pista de esqui e 50 mil quartos de hotel, fornecendo
todas as acomodações necessárias. Os locais para patinação e hóquei sobre o
gelo estavam em construção, com conclusão prevista para os próximos seis
meses.
Em contraste, quando Nagano ganhou a votação, ainda nem determinara
os locais onde colocaria as pistas de patinação, hóquei sobre o gelo, cerimônias
de abertura e encerramento e centro de imprensa. Os japoneses admitiram isso
em um comunicado à imprensa, depois da votação: "Se o COI estudou nossa
documentação cuidadosamente, perceberam que precisaremos conseguir a
terra."
Qual era o desejo do presidente Samaranch em Birmingham? O único que
sabe não quer falar. "Conforme a decisão tomada pela diretoria executiva do
COI", diz o anúncio formal feito em Birmingham, "o presidente do COI não
participará da votação." O imperador permaneceria publicamente neutro outra
vez. É preciso voltar às pistas discretas deixadas pelo caminho.
"Eu disse a Samaranch, no dia anterior à votação em Birmingham", contou
um veterano membro do COI, "que tecnicamente a melhor cidade era Salt Lake
City, sem dúvida. Eles tinham tudo pronto. Eu perguntei se era possível
contemplar mais uma vez os Estados Unidos, depois de Atlanta. 'Você vota na
capacidade para sediar os Jogos ou prefere escolher politicamente', ele perguntou
seco. 'Podemos dar os Jogos para os norte-americanos mais uma vez', falou. E
mudou de assunto."
Samaranch certamente parecia satisfeito com o resultado. Ele disse a um
repórter: "O que acha que seus colegas de imprensa teriam dito e escrito sobre o
grau de dependência do esporte, e particularmente do COI, em relação ao dólar e
às companhias de televisão norte-americanas, se depois da Copa do Mundo de
1994 e dos Jogos Olímpicos de 1996, os Jogos de Inverno de 19C)S também se
realizassem nos Estados Unidos?"
O COI possui um comitê de avaliação, cuja tarefa é determinar a
capacitação técnica dos competidores. Até mesmo esta avaliação foi neutralizada
no passado. O comitê não pôde dizer à sessão do COI em Tóquio, em 1990,
como classificara as cidades candidatas. A diretoria executiva de Samaranch
impediu sua divulgação.
O comitê, chefiado pelo sueco Gunnar Ericsson, enviou um relatório
preliminar para a diretoria. Dividia os seis candidatos em 2 grupos: O grupo l foi
classificado de "excelente", e incluía Atlanta, Toronto e Melbourne. O grupo 2,
"bom", incluía Manchester, Belgrado e Atenas.
A diretoria executiva não gostou da idéia dos grupos, e alterou o relatório
antes de apresentá-lo aos membros. "Como um comitê de avaliação pode
desempenhar sua tarefa corretamente se não deixam que avalie?" Perguntou um
membro indignado.
A Associação Nacional de Comitês Olímpicos Nacionais, presidida por
Rana, também fez uma avaliação dos candidatos a 1996. Seu relatório usou um
sistema de pontos positivos e negativos. A divisão, de tão simplista, dificilmente
serviria para situar alguém.
Atenas positivo: Contribuição moral para a tradição olímpica.
Atenas negativo: Prováveis temperaturas altas, pouca chuva.
Atlanta positivo: Os Jogos devem gerar lucros consideráveis em benefício
do movimento olímpico.
Atlanta negativo: Temperatura um pouco alta, com pouca chuva.
Melbourne negativo: Viagem muito longa para a maioria dos países
participantes.
Toronto positivo: Programa especial de hospitalidade para atletas.
Este último ponto positivo não seria decisivo quando os membros do COI
votassem.
Samaranch e sua diretoria executiva abominaram os excessos
publicamente. A avalanche de novas "instruções" em 1991 aparentemente coibia
as mordomias, mas era apenas a versão mais recente da longa lista de proibições
de Lausanne. Até agora, Lausanne pouco fez para colocá-las em prática. Em
contraste, o próprio presidente viaja bastante, visitando cidades candidatas, esti-
mulando seus sonhos e o inevitável aumento dos custos.
Em Salt Lake City Samaranch soube que 48 membros do COI haviam
visitado a capital de Utah. O presidente pareceu impressionado mas lembrou aos
presentes que "quarenta e oito não é igual a noventa e um."
Em uma entrevista coletiva antes de sua partida, disse a eles: "Os
membros que estiveram aqui saíram muito impressionados. Muitos me disseram
que Salt Lake City é uma candidata forte."
Mordendo a isca, perguntaram: "Estamos em primeiro lugar?" Samaranch
disse: "Talvez. Só posso adicionar uma palavra: é uma candidata muito, muito
forte."
Depois disso o imperador do encorajamento visitou os japoneses em
Nagano.
O encorajamento presidencial é um modo de vida. Quando o ex-primeiro-
ministro Yasuhiro Nakasone pediu ajuda a Samaranch para levar os Jogos a seu
país, a resposta foi: "Nagano é uma candidata forte."
"Estive conversando com um empresário inglês na China, recentemente,
que participa da tentativa de Pequim para sediar os Jogos no ano 2000", declarou
Denis Howell. "Ele me contou que Samaranch fez comentários muito positivos
depois de sua visita à China. Eu disse, 'entre na fila'. Ele diz isso para todo
mundo. Trata-se de sua marca registrada. Ele prefere ter vários candidatos, faz
parte do ego coletivo da entidade, e por isso eu acho que devemos acabar com
este método de seleção. É errado, e representa um terrível desperdício de
dinheiro público.
"Creio que Samaranch e seus colegas consideram o processo de escolha
atual tão importante e essencial para o futuro do COI que nunca vão limitá-lo. Na
verdade, as cidades candidatas fornecem milhões de libras para a publicidade
gratuita do COI. Se a questão for analisada nestes termos, é um ótimo negócio
para o COI, e meu ponto de vista é que eles tentarão manter a coisa sob controle,
mas nunca darão um basta."
Nas áreas públicas do Centro de Convenções Internacionais, fora do salão
de conferências onde os membros do COI se reuniram para votar, os violinistas
infantis de Nagano tocam em furiosa disputa com a banda country de Salt Lake
City, enquanto os menestréis ambulantes de Jaca tentam abafar o coral de
Õstersund.
Na chuva, do lado de fora, centenas de simpatizantes de Nagano, com
sorriso fixos e pipas japonesas, acenam com sinceridade maníaca para os
passantes assustados. Nos três dias anteriores, os partidários dos japoneses
cantam e tocam sob guarda-chuvas, fazendo coreografias.
Dentro do santuário, as câmeras de televisão estão ligadas, lotando o éter
de transmissões bilíngües apresentadas pelo âncora esportivo da BBC, de licença
no momento, Desmond Lynam, e um colega de fala francesa. Como um par de
papagaios, um repete a fala do outro.
Videoteipes intermináveis de vários recantos nevados do mundo são
incluídos no programa, para matar o tempo, enquanto a televisão aguarda o
desfecho: Juan António Samaranch anunciando o vencedor.
Os membros do COI entram em cena, seguidos pelo presidente em
pessoa. A banda toca o hino olímpico. A gente quase espera que o palco gire.
Depois que todo o elenco se posiciona e se imobiliza, os refletores finalmente
iluminam Samaranch.
Uma única folha de papel sai do envelope. "O vencedor é ... Nagano."
Dentro e fora do salão, homens crescidos choram. Alguns de alegria, outros de
raiva.
Salt Lake City evitou a eliminação por pouco, na primeira rodada. Os norte-
americanos conseguiram apenas 15 votos, o mesmo que a cidade italiana de
Aosta. Apesar das diferenças na qualidade dos projetos, os norte-americanos
foram forçados a um segundo turno humilhante contra os italianos. Um voto a
menos na primeira rodada e um dos candidatos mais fortes teria caído fora.
"Seria uma confusão dos diabos", disse Bob Scott. "Muita gente votou para
Jaca na primeira rodada, sem pretender apoiar a cidade depois." Os norte-
americanos ficaram furiosos. A Sra. Smirnov, esposa de um membro russo do
COI, Vitaly Smirnov, estava com passagem marcada de Birmingham para Salt
Lake City. Os russos apoiavam a tentativa americana. Depois da votação, seu
passaporte foi enfiado por debaixo da porta do quarto. A viagem, cancelada.
Na última entrevista coletiva em Birmingham, o presidente do COI
respondeu a pergunta sobre a primeira rodada. O jornalista queria saber se ela
desacreditava o GOL "É a última rodada que conta", retrucou Samaranch.
Fora do salão, o australiano Kevan Gosper, vice-presidente do COI,
parecia perturbado com os acontecimentos. "Precisamos rever o sistema",
confidenciou a um jornalista, completando: "E não informar os números de votos."
Marc Hodler, encarregado da comissão que preparou as regras mais
recentes de escolha, parecia resignado.
— Há planos para rever o sistema e o recebimento de presentes? —
perguntou um repórter.
— Estamos fazendo o possível — ele disse. — Nossa política é limitar o
valor dos presentes, para evitar despesas excessivas como grandes recepções,
que já foram proibidas.
Hodler lembrou aos jornalistas que só nas suítes de relações públicas do
Hyatt os membros do COI podiam ser recebidos. Ele parecia desconhecer as
noites japonesas em Highbury, assim como os jornalistas.
— As delegações das cidades interessadas são grandes demais? —
perguntou um jornalista.
— Fazemos o possível — disse Hodler, como quem repete um mantra. —
Queremos limitar cada delegação a seis pessoas, mas não conseguimos que
concordassem. Vivemos num mundo livre, sabe.
— Qual o teto máximo para cada presente?
— Estamos estudando diversos itens responsáveis por despesas no
passado, como exposições. Tentamos evitar presentes de valor elevado.
E isso encerrou a discussão.
Samaranch alega que está evitando os excessos no processo de seleção.
Mas as novas regras são dirigidas apenas às cidades, não aos membros do COI.
Pela primeira vez ele ameaçou desclassificar uma cidade que oferecesse excesso
de mordomias. Mas suas regras não prevêem sanções contra os membros do
COI, as pessoas beneficiadas. Nos anos 1980 as cidades candidatas reclamaram
a Samaranch das exigências descabidas de alguns indivíduos que identificaram,
pelo nome, membros do COI. A renúncia de nenhum deles foi pedida, como
aconteceria em muitos setores da vida pública e privada.
A realidade é o mundo de Birmingham, Highbury e do hotel Hyatt, onde
uma estudante adolescente trabalhava nas férias, e foi pela primeira vez exposta
aos guardiões do ideal olímpico.
"Eu não sabia o que esperar quando comecei", declarou Shirley Hunt.
"Ficamos envolvidas na atmosfera, curiosas para saber quem ganharia. Mas
acabei muito cínica quanto à coisa toda. No final da semana, eu me perguntava o
que tudo aquilo tinha a ver com o esporte. Não passava de um grande show. Era
tão descarado, eles pareciam decididos a gastar o máximo de dinheiro possível.
"Não parecia haver ligação alguma com as Olimpíadas que eu imaginava
— sabe,' aprimoramento humano, esforço. As Olimpíadas não são boas e
inocentes como a gente acredita, ou é levada a acreditar. O lado moral não é
óbvio. Só o dinheiro tem importância, é só mais um negócio. No final da semana
eu pensei: Já decidi o que eu quero ser na vida. Membro do COI."
20
DESTRUINDO AS OLIMPÍADAS
As Olimpíadas ainda oferecem uma oportunidade única: o prospecto de um
mundo melhor, enquanto os jovens competem juntos e em liberdade,
honestamente, a cada quatro anos. Que competir é tão importante quanto vencer
significa mais do que um clichê esportivo, trata-se de um ideal, a base para uma
vida democrática.
Certamente não se pode aceitar que o direito de tomar decisões críticas
para o futuro das Olimpíadas se concentre nas mãos de dois velhos, cuja maior
preocupação parece ser estimular os respectivos egos, as ambições e rivalidades
mútuas, em sua batalha para dominar o esporte mundial.
Juan António Samaranch e Primo Nebiolo carregam a maior
responsabilidade pela transformação de um festival para amadores num
espetáculo profissional de show-business. O esporte amador tem a ver com a
participação honesta, como valor intrínseco; a variante profissional cuida de
ganhar dinheiro, vencendo a qualquer custo, aceitando a manipulação dos
empresários. Pode ser até gostoso, tem de ser lucrativo, mas ético e democrático
não é. A responsabilidade dos dois é imensa. Eles lideraram o processo de leilão
do esporte, e da antiga pureza dos cinco anéis para quem oferecesse mais.
Fizeram discursos sobre a ameaça das drogas, e contemporizaram na hora de
tomar medidas efetivas. O tempo inteiro sabiam que os desonestos escapavam
aos testes. Eles ocupam o Olimpio do poder há 23 anos, no total. O esporte não
pode mais suportá-los.
Mesmo durante a batalha pela supremacia, tanto Juan António Samaranch
quanto Primo Nebiolo seguiram trajetórias similares. Parece haver pouca
diferença de filosofia entre suas abordagens da direção do esporte mundial.
Ambos subiram até ficar acima de seus colegas dirigentes, atingindo níveis de
poder previamente desconhecidos no mundo democrático do esporte. A única
coisa que os separa é quem ficará com o controle absoluto.
Eles estarão juntos durante o ano olímpico em Barcelona, que pode
representar a virada no movimento olímpico e no esporte mundial. Muitos
observadores, fora da complacência do Clube, acreditam que houve concessões
em demasia para os meios de comunicação e as multinacionais. Os espectadores
e participantes nunca foram consultados sobre os "instrumentos de comunicação"
e "categorias exclusivas" do merchandising dos produtos. Os telespectadores do
mundo inteiro acreditam cada vez mais que as estrelas são drogados,
transformados artificialmente em campeões químicos. No desespero por mais
dinheiro, mais benefícios, mais horas na televisão e mais recordes duvidosos, os
direitos e preocupações fundamentais de uma maioria silenciosa, mundial, fora do
Clube, são ignorados.
Há uma década, quando Samaranch discursou no congresso olímpico de
Baden-Baden, proclamou, como novo presidente: "Em um mundo onde o esporte
ganha em dimensão e importância a cada dia, o presidente do COI deve manter a
liderança." Ele definiu corporativamente sua tarefa, no primeiro ano de mandato.
Seu legado é a presença do nado sincronizado, do tênis profissional milionário e
das estrelas do basquete nos Jogos.
Enquanto se mantém no posto máximo, Samaranch pode se congratular
pelas conquistas consideráveis da última década. Ele não só se reinventou;
também reinventou o movimento olímpico e os Jogos. Vale notar que Samaranch
parece ter esculpido o movimento olímpico tendo como modelo a Espanha de
Franco. Assim como o general do palácio do Pardo, o líder do COI desfruta de
poder incontestável, e se senta no alto de uma estrutura onde práticas
consideradas corruptas em outras esferas da vida são aparentemente aceitas
como normais.
O general Franco, a quem Samaranch jurou lealdade, lidava brutalmente
com seus opositores. Eles eram torturados, assassinados e presos. Os mais
fones eram cooptados para o clube de Franco, e beneficiados com isenção de
impostos, fraudes empresariais e favores comerciais.
Samaranch, claro, não pode punir os dissidentes, mesmo que em algumas
ocasiões ele possa desejar estar na liderança do Movimiento do Generalíssimo, e
não do movimento olímpico. Mas ele tem o poder de excluir os criadores de
problemas potenciais dos pináculos da decisão do Clube. Membros ambiciosos
do COI, sonhando em suceder Samaranch, arriscariam tudo enfrentando-o em
público ou particularmente. Correm o risco de exclusão dos comitês importantes,
onde podem adquirir o prestígio que lhes garantirá votos no futuro. O menos
ambiciosos se contentam em participar do Clube e desfrutar das mordomias. Isso
explica talvez a situação notável de uma entidade com 94 membros e nenhuma
dissidência pública. Não há relatórios da minoria no COI. Nenhum membro
convoca entrevistas coletivas para contestar publicamente qualquer decisão.
Mesmo atrás das portas fechadas não há debates, a não ser que o líder os
permita. Ninguém se queixa — abertamente — sobre a mão de ferro de
Lausanne.
Mas estamos falando do esporte, não da segurança do Estado ou da vida
particular dos indivíduos. Como podemos permitir que os Jogos Olímpicos,
símbolo da abertura, da democracia e dos debates livres, tenha sua moral
abalada? Os ideólogos de Lausanne diriam que o esporte é de todos, e valioso
para todos. Simultaneamente, negam a quase todos qualquer papel nas deli-
berações. Eles divulgam press releases intermináveis, fazem discursos e
declarações de intenção sobre os Jogos servirem a todos, mas sempre deturpam
a realidade. Não podemos participar. A maioria dos membros do COI tem um
pouco mais de sorte. No geral, eles pegam seus presentes, seu prestígio, e
fecham a boca. O líder do esporte mundial está acima das críticas. Iludidos por
um bando de tolos elegantes e pêlos ladinos bem falantes do mundo do
patrocínio, somos vítimas de sua destreza.
Como não somos repórteres esportivos, nem parte do circo olímpico,
podemos nos distanciar e avaliar a realidade. O espírito da Europa dos ditadores,
para muitos destruído, parece estar vivo e prosperar no "bunker" de Samaranch,
com vista para o lago Leman. Um sobrevivente daquela era conseguiu, em nossa
opinião, seqüestrar uma das instituições mais valiosas e idealistas.
Não se trata do caso de um velho fascista que escapou por baixo do pano
e fugiu, para viver anônimo num país distante. Samaranch sobreviveu à
democracia em seu país, e parece ter encontrado um abrigo seguro no COI, onde
continua a viver no mesmo estilo autoritário do sistema que desabou pouco
depois dele comemorar 55 anos. Pouco provável que ele pudesse ter agido de
modo diferente. A experiência inicial de sua vida se deu sob uma ditadura, na
repressão e na negação da liberdade aos dissidentes.
Temos a impressão de que Samaranch tentou impor algo parecido com as
estruturas espanholas de Franco ao movimento olímpico. Há uma década a
instituição sediada no Château de Vidy representava apenas um terço da família
olímpica. Era complementada pelas federações esportivas internacionais e pêlos
comités olímpicos nacionais. Ao atrair mais líderes de federações e membros de
comitês nacionais para o COI, Samaranch tentou criar algo próximo ao antigo
modelo sindicalista onde trabalhadores e seus patrões eram jogados na mesma
organização, supostamente para o bem do estado. Atrair a oposição potencial
sufocou virtualmente o debate público saudável.
O COI de Samaranch desobedece muitas das regras aceitas de
comportamento na vida pública. As práticas que aceita durante a escolha das
cidades são condenáveis, e se opõem aos ideais esportivos.
Nenhum empresário ansioso por um contrato com outra companhia
conseguiria superar o nível dos presentes oferecidos pelas cidades interessadas
aos membros do COI, as pessoas que decidem sobre o contrato. Nenhuma
companhia interessada em fechar contratos com governos locais ou nacionais
poderia adotar semelhante conduta. O doador e o receptor seriam demitidos e
enfrentariam a possibilidade de acusações criminais. A ciranda interminável de
presentes e mordomias é imoral e indefensável. Os cidadãos de Birmingham e
Manchester e de outras comunidades que usaram recursos públicos para comprar
presentes para os membros do COI devem perguntar se este é um uso adequado
para o dinheiro dos contribuintes.
O líder poderia acabar com este escândalo com uma única medida. Ele
poderia escrever aos noventa e poucos membros e ordenar que recusassem mais
presentes. Ele poderia avisá-los que qualquer desobediência a esta instrução
levaria à expulsão imediata e humilhante do movimento olímpico. Por que
Samaranch nunca fez isso? Por que preferiu pedir às cidades interessadas que
suspendessem os presentes? Há poucas entidades no mundo que tentam legislar
sobre quem está fora de sua jurisdição, enquanto deixa seus próprios membros
em liberdade para adotar a postura que desejarem.
Há pouca dúvida quanto à reação negativa de alguns membros se o trem
da alegria parasse de circular. Mas quem precisa de gente assim na direção do
esporte mundial? Os nomes dos poucos membros do COI que pedem presentes e
tentam conseguir pagamentos por baixo da mesa são bem conhecidos pelas cida-
des que tentam sediar eventos. Os mesmos nomes circulam há tempos, e foram
seguramente denunciados ao COI em 1986 e 1990, depois dos escândalos que
levaram às vitórias de Barcelona na e Atlanta. Talvez Samaranch tenha chamado
sua atenção em particular.
O esporte mundial, o nosso esporte, merece um tratamento melhor. Estes
falsos olímpicos deveriam ser denunciados e expulsos do COI. Pelo jeito a política
de Samaranch é manter oculta a depravação em seu precioso movimento.
Poderia assustar os patrocinadores.
Milhões de frases enaltecedoras do "ideal olímpico" inundarão os meios de
comunicação antes e durante os Jogos. Sentiremos falta da verdade sobre o COI,
a partir do ponto de vista de seus próprios integrantes. O que realmente pensam
do modo antidemocrático com que seu líder comanda o movimento é ocultado do
resto do mundo. Há mais vazamentos nos serviços de espionagem mundial do
que da boca fechada de Samaranch. Por que tanta reticência? Uma resposta foi
dada por Tony Sharpe, que disse no inquérito de Dubin: "A glória é muito doce, os
dólares são muitos."
Durante as pesquisas deste livro, um membro do COI nos deu uma
entrevista. Gravamos todas as críticas ao estilo antidemocrático da direção. De
vez em quando um comentário deveria ser feito com o gravador desligado, não
identificando a fonte. Concordamos. Mais tarde, este membro entrou em pânico, e
sem nos avisar acionou uma famosa firma de advocacia para tentar nos impedir
de utilizar suas opiniões sinceras. A entrevista versava apenas sobre o esporte
olímpico e o modo como o COI é conduzido, um assunto dificilmente propício para
ações legais e litígios. Quando chegou a hora de fazer uma escolha, este membro
preferiu esconder a verdade e ajudar no grande logro de Samaranch — e
continuar a desfrutar das honrarias e do prestígio de seu cargo olímpico.
As mordomias de Barcelona também estarão ao alcance de um terço dos
membros do COI originários de países com pouca ou nenhuma tradição
democrática. No geral, homens, pois o COI moderno conta apenas com sete
mulheres. Nisso ele repete o esquema de muitas federações esportivas
internacionais, onde não há espaço para o sexo feminino.
Mais da metade dos atuais membros do COI foi nomeada por Samaranch,
um político profissional que nunca enfrentou uma eleição democrática, com uma
visão de mundo forjada a partir de uma ideologia repressiva e desacreditada. Isso
deveria preocupar os líderes do esporte mundial, que nesta virada de século
podem herdar um movimento desprestigiado.
Para os membros do COI, seus cargos vitalícios podem parecer o paraíso
na terra. É só pensar no que desfrutam. Em quatro anos há quatro sessões. Nos
anos olímpicos, a sessão se realiza junto com os Jogos, e o festival de
mordomias dura de uma a três semanas. Com o novo ciclo de dois anos,
alternando jogos e verão e inverno, aumentarão as viagens para as dez cidades
candidatas, que os cobrirão de gentilezas. Ademais, muitos pertencem a
comissões com nomes pomposos. Isso rende mais algumas rodadas de viagens
de primeira e hospedagem em recantos exóticos do planeta.
Há uma comissão para elegibilidade dos atletas, e sua tarefa é encontrar
maneiras de agradar as companhias de televisão, admitindo cada vez mais
profissionais nos jogos "amadores". Há também uma comissão atlética, e outra
para imprensa e televisão. E comissões para assuntos culturais, médicos,
aparteid, finanças, novas fontes de recursos para o esporte e esporte para todos.
A lista continua: comissões para o programa olímpico, mais duas para preparar os
12? Congresso Olímpico e para coordenação dos Jogos.
Alternativamente, os membros pode entrar para as comissões de
preparação dos Jogos de 1998, ou para os dois conselhos. Um, para o
movimento olímpico, e outro para as condecorações olímpicas. Samaranch
comanda este último. Ele precisará procurar novos alvos, pois acabaram-se os
tiranos do Leste europeu para condecorar.
A menos crível de todas as comissões é a da Academia Olímpica
Internacional. A bizarra instituição reúne-se na Grécia, e seus membros e
convidados dedicam-se a sérios debates sobre a filosofia do olimpismo. Um dos
baluartes desta comissão, que ajuda a desenvolver teorias sobre a pureza do
ideal olímpico, é Abdul Muttaleb Ahmad, assistente pessoal do falecido xeque
Fahd do Kuwait, que manobrou para assegurar a "eleição" de Ahmad, filho do
xeque, para a presidência do Conselho Olímpico da Ásia.
A mais importante politicamente é a comissão de Solidariedade,
encarregada de distribuir os lucros dos Jogos para criar condições de prática
esportiva em todo o mundo. Samaranch em pessoa a preside. Escolheu Mário
Vazquez Rana como participante, além do secretário-geral do ANOC, o ex-
diplomata polonês, que também compõe a comissão de coordenação olímpica.
Outros membros da Solidariedade são o irmão de Rana, Olegário e o grande
amigo de Samaranch, Anselmo Lopez. Outro amigo do presidente, da época
franquista, é o jornalista de Barcelona André Mercê Varela, que participa da
comissão de imprensa.
Depois dos Jogos, o COI ilustrará sua versão do ideal olímpico com uma
cascata de produtos comemorativos caros, luxuosos e bonitos: livros, panfletos e
revistas. Jornalistas destacados do mundo inteiro colaborarão com ensaios
simpáticos sobre os valores olímpicos e farão a hagiografia do líder. Textos
banais, pouco lidos fora da "família olímpica", mas servem para azeitar o sistema
e distrair a atenção da realidade.
A imagem dos jogos modernos de Samaranch se perpetuará em seu maior
projeto, o museu olímpico, a ser inaugurado brevemente em Lausanne. Custou
quase US$ 40 milhões. Boa parte deste dinheiro saiu das doações dos
patrocinadores do TOP. Em 1989, Samaranch pediu ao primeiro-ministro Kaifu
que permitisse o abatimento dos impostos para as companhias japonesas que
fizessem doações ao museu.
Os ditadores sempre apreciaram realizar suas comemorações em
ambientes grandiosos, e Samaranch não é exceção. Ele doará seus arquivos
olímpicos ao museu. Oferecemos nossa contribuição: uma cópia da carta escrita
por ele em 1986, terminando com as palavras "Sempre às suas ordens, com o
braço erguido eu o saúdo."
Samaranch já não pode saudar o generalíssimo Franco, mas encontrou
novos ídolos. No saguão do Hotel Princesa Sofia, em Barcelona, estarão os
homens de terno. Os controladores do esporte: executivos de televisão e
profissionais de marketing, que também não foram eleitos. Em público retribuirão
o abraço de Samaranch, mas em particular estimarão o valor futuro das Olim-
píadas.
O preço pago pelo televisionamento dos Jogos pode ter chegado ao
máximo. Conforme o domínio das grandes redes sobre a audiência enfraquece,
com a disseminação dos canais por cabo, e elas sofrem prejuízos com a
cobertura dos esportes nacionais, surge a necessidade de reavaliar o quanto
podem pagar. Os patrocinadores enfrentam um dilema similar, pois a cobertura
esportiva da televisão se amplia, criando novos eventos para veicular suas
mensagens.
Também estará no saguão do Princesa Sofia, consolidando sua relação
com os patrocinadores, o homem a quem o COI disse não, Primo Nebiolo. Sua
vingança, anunciada no outono de 1991, pode elevá-lo acima de seu rival
Samaranch, tornando-o o nome mais importante do esporte internacional, e
destruir as Olimpíadas como as conhecemos hoje.
Poderia ter sido diferente, se o COI tivesse aberto as portas para Nebiolo.
Desde que assumiu o controle da IAAF em 1981, sem a inconveniência de uma
eleição, ele tenta entrar para a elite de Lausanne. Como presidente do esporte
olímpico mais importante, ele se sente no direito de ocupar um lugar no COI.
Sendo Primo Nebiolo, sempre tenta ser o primo, e isso significa suplantar Sa-
maranch.
Quando Nebiolo sucedeu a Adriaan Paulen ele tinha 58 anos, e faltavam
17 para chegar à idade de se aposentar pelo COI. Sua primeira oportunidade
surgiu em 1982, quando se abriu uma vaga para um italiano no COI. Apesar de
liderar a federação esportiva mais importante, foi desprezado, e Franco Carraro
escolhido. Nebiolo manteve a pressão sobre Samaranch, e em 1984 o presidente
recomendou que ele e Rana se tornassem membros ex officio. Nebiolo aceitou a
solução, confiando que nenhum candidato italiano poderia vencê-lo quando
surgisse uma vaga, se tivesse presença formal no COI.
Mas os membros do COI rejeitaram a idéia. Nebiolo ficou furioso — e
respondeu como costuma. Pela primeira vez, tendo o sucesso do Primeiro
Campeonato Mundial de Atletismo de Helsinque por trás, sugeriu a realização de
seu próprio campeonato a cada dois anos. Foi o primeiro sinal de sua política de
garantia, de seu plano alternativo caso nunca chegasse ao poder olímpico.
Os piores obstáculos para sua entrada no Clube de Lausanne são os dois
membros italianos do COI. Franco Carraro goza de boa saúde, e aos 51 anos,
tem muitos anos pela frente, no COI. O outro membro, o antigo jogador de tênis
Giorgio di Stefani, aos 88, é um membro honorário do COI, caminha com ajuda de
uma bengala, mas parece decidido a ficar no cargo só para manter Nebiolo fora.
Não será impossível para Samaranch criar uma terceira vaga, mas será difícil.
Menos de dezoito meses após o escândalo do salto de Evangelisti, Nebiolo
foi espirrado da presidência do atletismo italiano, por causa de novos escândalos.
Perdeu seu cargo de presidente do CONI, o comitê olímpico italiano, e dificilmente
contará com seu apoio quando houver uma vaga no COI. Nebiolo também se
afastou de seu antigo colaborador, Luciano Barra. Apesar da divulgada
hostilidade após a separação, Barra recusa-se a comentar os anos passados a
seu lado na FIDAL e na IAAF.
A rejeição em 1984 levou Nebiolo a tentar criar uma vaga no COI. Em 1989
perguntamos a Giorgio di Stefani se era verdade o rumor de que Nebiolo
oferecera uma fortuna para que renunciasse ao COI, abrindo a vaga. Di Stefani
confirmou a história. "Nebiolo prometeu 50 milhões de liras há quatro anos, para
que eu me retirasse do COI", disse. "Samaranch pediu que eu não fizesse
escândalo por causa disso. Nebiolo nega tudo. Mas todos conhecem esta
história."
Nebiolo manteve a pressão durante a década de 1980, tentando entrar no
Château de Vidy pêlos fundos. Sugeriu repetidamente que os presidentes de
federações — como ele, por exemplo — deveriam participar da escolha das
cidades candidatas. Na sessão do COI em Lausanne, em 1985, ele propôs que
presidentes como ele "fossem consultados sobre o local de realização dos Jogos,
levando-se em conta as implicações internacionais e políticas, e não somente o
lado técnico." Isso equivalia a votar no COI.
Como Giorgio di Stefani não dava sinais de querer sair, Nebiolo atacou de
novo. Na reunião do COI em Tóquio, em 1990, para decidir sobre os Jogos de
1996, Nebiolo e seus colegas presidentes enviaram uma cana a Samaranch,
exigindo o direito de votar nas cidades candidatas, tornando-se membros ex
ofereceu do COI, além de receber uma parte da receita do projeto TOP de
patrocínio.
Nebiolo, pessoalmente, pressionou Samaranch ainda mais, e quando sua
ambição o cegou, cometeu uma série de gafes diplomáticas. A imprensa noticiou
que Nebiolo estava resolvido a implantar o campeonato mundial de atletismo a
cada dois anos. Como sempre, a disputa prosseguiu atrás de portas fechadas,
mas vazou tanta coisa que houve a necessidade de divulgar comunicados
minimizando o caso. Nebiolo enfatizou que o relacionamento entre a IAAF e o
COI era "melhor do que nunca", e Samaranch retrucou que continuavam, "como
sempre, positivas e cordiais". O fracasso em Tóquio levou Nebiolo a agir contra o
COI. Ele seguiu um caminho que pode destruir o Clube que o recusou.
Nebiolo sabe, enquanto permanece sentado na tribuna de honra do estádio
Montjuic e assiste à abertura dos Jogos por Samaranch, que aos 69 anos ele está
velho demais para liderar o movimento olímpico. Mesmo que se abra uma vaga
no ano olímpico, e Nebiolo seja aceito no COI, contará apenas com seis anos
antes de atingir a idade limite de 75 anos, pouco tempo para assumir a liderança.
Mas não há limitações do gênero na IAAF. O modelo de Nebiolo é João
Havelange, sete anos mais velho e controlando o futebol mundial, com seu
prestigiado torneio. O Terceiro Campeonato Mundial de Atletismo, realizado em
Tóquio em setembro de 1991, foi um tremendo sucesso. A cobertura da televisão
mundial durante toda a semana registrou uma série de novos recordes mundiais,
especialmente nos 100 metros e no salto a distância. Finalmente Nebiolo montara
um espetáculo capaz de rivalizar com as Olimpíadas.
Agora Nebiolo não pode crescer mais dentro do movimento olímpico, e se
esforça para minar os Jogos e firmar seu campeonato de atletismo como o
primeiro do mundo, pelo menos na televisão. Durante o campeonato de Tóquio
seus assessores de imprensa corriam para divulgar releases informando que o
total de telespectadores no mundo estava entre 4 e 5 bilhões. Poucos notaram
que esta é mais ou menos a população total do planeta. Importava mais o recado
que ele estava enviando para executivos e patrocinadores. Seu campeonato, e
não as Olimpíadas, era o grande acontecimento.
Nebiolo fez sua grande jogada em Tóquio. No futuro, anunciou, os
campeonatos mundiais de atletismo seriam realizados a cada dois anos, em vez
de a cada quatro. Seus agentes de marketing na ISL calculam que no total mais
dinheiro de televisão e patrocínio entraria para a IAAF com isso. O vice-presidente
da ISL, Paul Smith, declarou: "No futuro esperamos levantar apenas 75 por cento
dos recursos obtidos com a realização dos campeonatos a cada quatro anos. Mas
dobrar o número de campeonatos significa faturar 150 por cento do valor atual."
Isso representa um aumento de mais de US$ 37 milhões, que deverão sair dos
cofres cada vez mais disputados dos patrocinadores.
Os campeonatos mundiais de atletismo estão marcados para Stuttgart em
1993 e em Gothenberg em 1995. Isso significa que as Olimpíadas, onde o esporte
mais popular é o atletismo, estará espremida entre dois campeonatos de
atletismo.
O próximo passo de Nebiolo já foi calculado. Ele está tentando imitar o
exemplo de Havelange e banir competidores com mais de 23 anos das
Olimpíadas. Para Havelange, isso protege a Copa do Mundo de futebol. Se
Nebiolo conseguir impor a mesma regra na IAAF, conseguirá desvalorizar as
Olimpíadas, e ao mesmo tempo atrair os principais atletas para seu evento.
A maioria das quebras de recordes mundiais ocorrerá nos campeonatos, e
não mais nas Olimpíadas. A cobertura da televisão diminuirá instantaneamente,
acompanhada da fuga dos patrocinadores. Se os escândalos com drogas forem
evitados, os campeonatos terão cobertura ampla da televisão, como aconteceu
em Tóquio. O colapso provocará um efeito cascata na rede de interesses
comerciais em que se transformou a Olimpíada. Cidades interessadas em sediar
os Jogos estudarão a possibilidade de ficar com o campeonato de atletismo.
Grande parte dos recursos para montar estes eventos sai dos valores pagos
pelas redes de televisão. Se elas não puderem levar ao ar quebras de recordes,
os Jogos se desvalorização brutalmente. As cidades perderão o interesse, a
enxurrada de presentes e mordomias para os membros do COI secará. O único
benefício para o esporte será colocar o Clube de Lausanne na posição que
merece: na periferia.
Devemos nos perguntar qual a relevância do movimento olímpico
corporativista de Samaranch e da IAAF dirigida irresponsavelmente por Nebiolo
para o esporte decente e verdadeiro. Representam um bom modelo para nossos
filhos? Se a resposta for não, surge outra questão: se nós, nossos filhos e o
esporte não se beneficiam, quem lucra?
A resposta pode ser a nova casta de presidentes esportivos, os membros
do COI, as companhias de televisão e os patrocinadores que compraram o
esporte e empurraram os competidores para as drogas, para exibir um espetáculo
além dos limites do corpo humano.
Somos informados que as Olimpíadas destinam-se a todos — mas este
grande festival do esporte precisa do COI? Desde os Jogos de 1984, quando as
Olimpíadas tornaram-se um veículo para o lucro privado, o remoto Clube de
Lausanne busca seu próprio bem-estar, às custas do esporte. As cerimônias na
televisão, quando uma cidade ganha o direito de sediar os Jogos e meia dúzia de
outras sofrem humilhações, foram criadas como evento de mídia, para projetar a
imagem e a importância do COI. Se o Clube conseguir desistir dos hotéis cinco
estrelas e viagens de primeira classe, então os milhões gastos em cada sessão
poderiam ser investidos na melhoria das condições para a prática esportiva no
mundo inteiro. Seria um bom teste; muitos membros do COI renunciariam se
perdessem as mordomias. Então poderíamos tirar o esporte deste monte Olimpo
do desperdício e devolvê-lo para as pessoas comuns.
A visão distorcida de Lausanne considera que os problemas do esporte
são criados por pessoas e organizações fora do círculo mágico do Clube. Alas
eles são o problema. Não há necessidade de transformar os Jogos amadores em
mais um setor do show business, mais um espetáculo de profissionais. Se os
responsáveis pela guarda da moralidade, no Château de Vidy, pensassem em
nós, em vez de só pensar em si, os interesses comerciais teriam sido mantidos
sob controle.
Samaranch afirmou recentemente sobre o iatismo, uma atividade
esplêndida que acontece longe das câmeras de televisão: "Qualquer esporte que
não consegue interessar a televisão não tem futuro." Quem é Samaranch para
dizer isso? Será que todas as discussões devem ser encerradas porque o
fantoche da Catalunha tomou sua decisão? Esta é a nova ordem: se um esporte
não interessa para a televisão, não vale nada? Como isso se encaixa no conceito
de esporte para todos?
Tem mais: nos Jogos de Seul, Samaranch disse aos organizadores dos
eventos que amontoassem os presentes aos estádios nos pontos mais
convenientes, quando não houvesse um público considerável, impedindo que as
câmeras mostrassem lugares vazios.
O critério de que o importante é compelir parece que não tem mais
importância.
Todos têm responsabilidade na subordinação do esporte aos interesses
comerciais. Mas ainda há tempo para resgatar sua pureza e beleza. Se todos se
importarem, a situação pode ser revertida. A grande ferida representada pelo COI
no corpo do esporte pode ser lancetada em semanas, se mostrarmos aos
patrocinadores do programa TOP em Barcelona que não aprovamos o modo
como seus dólares alimentam um movimento olímpico que hoje se parece com o
Movimiento de Franco.
Talvez a Coca-Cola, Kodak, Ricoh, National Panasonic, Philips, Mars, Visa,
Bausch & Lomb, Brother, EMS e 3M não conheçam a história do líder olímpico e o
que ele fez com o esporte, a mais democrática das atividades. Talvez os
jornalistas do Time, um dos patrocinadores, ignorem o passado de Samaranch.
Será interessante acompanhar, no ano olímpico, como eles apresentam a longa
carreira profissional deste político fascista, e como encaixam os ideais olímpicos
universais com as atividades do Conselho Olímpico para a Ásia e sua liderança
anti-israelense.
Talvez os jornalistas possam perguntar ao Sr. Ed Meyer, da Grey Public
Relations, se ele está feliz por receber o dinheiro de Samaranch para criar uma
nova imagem para o COI. Há doze anos Samaranch subiu ao poder, quando as
Olimpíadas tinham uma imagem impecável. Talvez o Sr. Meyer descubra o que
houve de errado, antes de tentar consertar as coisas. Se o Sr. Meyer se preocupa
tanto com as Olimpíadas, como diz, talvez conclua que seus honorários poderiam
ser melhor usados para construir pistas de corrida ou campos de futebol, e
resolva deixar que os olímpicos se afoguem em seus dólares.
Não é uma visão agradável encontrar os olímpicos em Birmingham,
mergulhados nas mordomias. Vimos cenas chocantes. Se queremos tirar o
esporte das mãos deles, se queremos restaurar a moralidade, precisamos chamar
nossos representantes no COI e perguntar, no mínimo, o que fazem em benefício
do esporte.
Precisamos refletir se comprar produtos com os cinco anéis realmente
beneficia o esporte. Nos países onde o dinheiro dos contribuintes financia o
esporte, devemos perguntar se recebemos algo em troca. Qual a vantagem em
financiar um monte de drogados para que se exibam na frente das câmeras?
Talvez seja a hora de dar as costas para as Olimpíadas, da maneira em
que se encontram. O esporte não sofrerá. As crianças continuarão a jogar bola na
ma. Mas as crianças correrão um risco enorme se o único modelo disponível for a
"irmandade da agulha", a liderança nos moldes da Falange e a escolha entre os
esportes que podem ser manipulados pela televisão.
É tarde demais para realizar grandes mudanças para estes Jogos. Mas em
1994 o movimento olímpico reúne-se em Paris para celebrar seu centenário. Pode
ser a chance de renovação. Se o mundo enviar suas delegações dos comitês
olímpicos nacionais a Paris com instruções estritas de insistir num debate amplo
sobre o modo como o esporte amador pode ser reorganizado mais
democraticamente, os ideais talvez sejam ressuscitados.
Até agora, as possibilidades são remotas. A Carta Olímpica indica
claramente as regras para a realização do Congresso de Paris: "O presidente do
COI deve presidir e determinar os procedimentos. O Congresso Olímpico tem
caráter consultivo."
Isso não basta. Se o líder preside, temos a garantia da manutenção do
status quo e dos elogios à sua pessoa. Está na hora de superar o COI e montar
outra estrutura para organizar os festivais esportivos.
Assim como os outros Jogos Olímpicos, as sessões e congressos, a
reunião de Paris será patrocinada pelo comércio. Qualquer companhia que pensa
em bancar as tentativas de Samaranch em manter sua hegemonia, deve ser
avisada de que seus produtos :um gosto tão ruim quanto o próprio COI.
Registramos na Introdução deste livro a dificuldade em conseguir
dirigentes e administradores dispostos a dar declarações e ter seu nome
divulgado ao lado das críticas sobre o esporte moderno. Urn dos poucos que teve
a coragem de falar foi o eminente ex-técnico olímpico britânico, Ron Pickering,
que morreu subitamente em 1991.
"Creio que há um grave perigo que o esporte desça uma ladeira sem
retorno possível", Ron declarou pouco antes de morrer. ' 'Muitos de nós
acreditamos que na última década o esporte foi violentado pela cobiça, drogas,
hipocrisia, desvios e intrusão política. E pela liderança inadequada.
"O esporte é a única atividade humana que se baseia no idealismo.
Sobreviveu 33 séculos por causa disso. Se fosse simplesmente competição, não
duraria 33 semanas. Uma coisa não baseada na ética não pode ser chamada de
esporte. É um ambiente corrupto, e não podemos levar nossas crianças lá.
"Devemos guardar com empenho este ideal, e sempre que alguém
desrespeitar esta ética, devemos reagir. Do contrário, perderemos a jóia preciosa
que temos para entregar à próxima geração. E não creio que a minha geração
tenha sido muito boa para cuidar disso."
Apêndice A
Calendário das Olimpíadas Modernas
Jogos de Verão Jogos de Inverno

1960 Roma Squaw Valley


1964 Tóquio Innsbruck
1968 Cidade do México Grenoble
1972 Munique Sapporo
1976 Montreal Innsbruck
1980 Moscou Lake Placid
1984 Los Angeles Sarajevo
1988 Seul Calgary
1992 Barcelona Albertville
1994 Lillehammer
1996 Atlanta
1998 Nagano
Apêndice B
Lista dos Atuais Membros do COI

Os membros do COI levam o protocolo a sério, e existe uma ordem de


precedência, começando com os membros mais antigos.
Os primeiro 14 são membros vitalícios. As regras mudaram, exigindo a
renúncia dos membros aos 75 anos. Eles se tornam membros honorários, sem
direito a voto.
Os 93 membros têm uma média de 62 anos. Há 7 mulheres.
Na época da edição deste livro havia uma vaga, aberta com a renúncia do
norte-americano Robert Helmick. A questão dos membros da extinta URSS ainda
não foi definida.

Nome por ordem de precedência País de origem Data de admis- Data de Data de
são no COI Nascimento Aposentadoria

1. Grão-duque Jean de Luxembourg Luxemburgo 1946 1921 LM


2. Raja Bhalendra Singh Índia 1947 1919 LM
3. Giorgio de Stefan Itália 1951 1904 LM
4. Alexandru Siperco Romênia 1955 1920 LM
5. Syed Wajid AI Paquistão 1959 1911 LM
6. Ahmed Touny Egito 1960 1907 LM
7. Wlodzimierz Reczek Polónia 1961 1911 LM
8. Hadj Mohamed Benjelloun Marrocos 1961 1912 LM
9. João Havelange Brasil 1963 1916 LM
10. Marc Hodler Suíça 1963 1918 LM
11. Príncipe Alexandre de Merode Bélgica 1964 1934 LM
12. Major Sylvio de Magalhães Brasil 1964 1909 LM
Padilha
13. Gunnar Ericsson Suécia 1965 1919 LM
14. Mohamed Mzal Tunísia 1965 1925 LM
15. Juan António Samaranch Espanha 1966 1920 1995
16. Jan Staubo Noruega 1966 1920 1995
17. Aguslin Carlos Arroyo Equador 1968 1923 1998
18. Louis Guirandou-N'Diaye Costa do Marfim 1969 1923 1998
19. Virgílio de Leon Panamá 1969 1919 1994
20. Maurice Herzog França 1970 1919 1994
21 . Vitaly Smirnov URSS 1971 1935 2010
22. Pedro Ramirex Vazquez México 1972 1919 1994
23. Roy Anihonv Bridge Jamaica 1973 1921 1996
24. Manuel Gonçalez Guerra Cuba 1973 1917 1992
25. Ashwini Kumar índia 1973 1920 1995
26. Kéba Mbaye Senegal 1973 1924 1999
27. Mohamed Zerguin Argélia 1974 1922 1997
28. Matts Carlgren Suécia 1976 1917 1992
29. Kevin O'Flanagan Irlanda 1976 1919 1994
30. Peter Tallberg Finlândia 1976 1937 2012
31. José Vallarino Veracierto Uruguai 1976 1920 1995
32.Bashir Mohamed Attarabuls Líbia 1977 1937 2012
33. Kevan Gosper Austrália 1977 1933 2008
34. General Niels Holst Sorensen Dinamarca 1977 1922 1997
35. Lamine Keita Mali 1977 1933 2008
36. Shagdarjav Magvan Mongólia 1977 1927 2002
37. Philipp von Schoeller Áustria 1977 1921 1996
38. Renë Essomba Camarões 1978 1932 2007
39. Hamzah Bin Haji Abu Samah Malásia 1978 1924 1999
40. Iu Sun Kim Coreia do Norte 1978 1932 2007
42. Vladimir Cernusak Checoslovái uia 1981 1921 1996
43. Nikos Filaretos Grécia 1981 1925 2000
44. Pirjo Haggman Finlândia 1981 1951 2026
45. Zhenliang He China 1981 1929 2004
46. Flor Isava Fonseca Venezuela 1981 1921 1996
47. Franco Carraro Itália 1982 1939 2014
48. Phillip Coles Austrália 1982 1931 2006
49. Ivan Dibos Peru 1982 1939 2014
50. Mary Glen Haigh Reino Unido 1982 1918 1993
51. Chiharu Igaya Japão 1982 1931 2006
52. Príncipe Faisal Fahd Abdul Aziz Arábia Saudita 1983 1946 2021
53. Anani Matthia Togo 1983 1927 2002
54. Roque Napoleon Munoz Pena República 1983 1928 2003
Dominicana
55. PaL Schmitt Hungria 1983 1942 2017
56. Princesa Nora von Liechtenstein Somália 1984 1950 2025
57. David Sibandze 1984 1932 2007
58. General-de-divisão Henrv Olufemi Nigéria 1985 1926 2001
Adefope
59. Franciso Elizalde Filipinas 1985 1932 2007
60. Carlos Ferrer Espanha 1985 1931 2006
61. Príncipe Albert de Mônaco Coreia do Sul 1985 1958 2033
62. Dr. Un Yong Kim Grécia 1986 1931 2006
63. Lambis Nikolaou EUA 1986 1935 2010
64. Anita DeFrantz Congo 1986 1952 2027
65. Jean-Claude Ganga Holanda 1986 1934 2009
66. Anton Geesink Lugoslávia 1987 1939 2009
67. Slobodan Filipovic Bulgária 1987 1940 2014
68. Ivan Slavkov Samoa 1987 1942 2015
Ocidental
69. Paul Wallwork Reino Unido 1987 1950 2017
70. HRH Princesa Anne Colômbia 1988 1925 2025
71. Fidel Mendoza Carrasquilla Nova Zelândia 1988 1925 2000
72. Edward Wilson 1988 1946 2021
73. Ching Kuo-Wu Formosa 1988 1927 2002
74. Rampaul Ruhee Mauritânia 1988 1927 2002
75. Marat Gramov URSS 1988 1927 2002
76. Sinan Erdem Turquia 1988 1927 2002
77. Willi Kaltschmitt Lujan Guatemala 1988 1939 2014
78. General-de-divisão Francis Uganda 1988 1929 2004
Nyangweso
79. Borislav Stankovic lugoslávia 1988 1925 2000
80. Fernando Ferreira Lima Bello Portugal 1989 1931 2006
81. Walther Tröger Alemanha 1989 1929 2004
82. Philippe Chatrier França 1990 1928 2003
83. Carol Anne Letheren Canadá 1990 1942 2017
84. Shun-Ichiro Okano Japão 1990 1931 2006
85. Richard Carrion Porto Rico 1990 1952 2027
86. General Zein El Abdin Gadir Sudão 1990 1940 2015
87. Nat Indrapana Tailândia 1990 1939 2014
88. Charles Mukora Quênia 1990 1943 2009
89. Coronel Antonio Rodriguez Argentina 1990 1926 2001
90. Thomas Bach Alemanha 1991 1953 2028
91. Mário Vazquez Raña México 1991 1932 2007
92. Denis Oswald Suíça 1991 1947 2022
93. Jaques Rogge Bélgica 1991 1942 2017

VYV SIMSON e ANDREW JENNINGS são jornalistas ingleses, autores de


documentários para a televisão sobre a Máfia, o caso Irã-contras, o terrorismo, a
corrupção na Scotland Yard e outras áreas sombrias da vida pública.

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