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COMMUNIO, nº 4, pp. 367-370. Julho/Agosto 1985.

TRADIÇÃO CONTEMPLATIVA PORTUGUESA


SELEÇÃO DE TEXTOS
(Textos selecionados pelos Cartuxos de Évora)

SANTO ANTONIO DE LISBOA


Sermão sobre a oração, no 10° domingo de Pentecostes.
Obras Completas, vol. II.
Editorial Restauração, Lisboa 1970, p. 192 e seg.

«A minha casa será chamada casa de oração; mas vós fizestes dela antro de ladrões». Escreve Salomão
no livro da Sabedoria: «Entrando em casa, descansarei com ela», isto é, com a Sabedoria. «Porque a sua
conversação não tem nada de desagradável, nem a sua companhia nada de fastidioso, mas tudo nela é
satisfação e alegria». O homem espiritual, voltando da solicitude dos bens temporais, da inquietação dos
pensamentos, entra na casa da própria consciência, e, fechada a porta dos cinco sentidos, descansa com a
sabedoria, dedicando-se à contemplação divina, em que saboreia o repouso duma doçura superior. De
facto, a conversação dos cultores da sabedoria nada tem de desagradável, quer dizer, nada tem com o
deleite do pecado. Efetivamente, o paladar, causador da impressão agradável, não envenena ninguém.
Nem a sua companhia tem nada de fastidioso, pois as delícias espirituais aumentam o desejo e quanto
mais se recebem mais avidamente se amam, pois nelas há satisfação e alegria. Feliz aquela casa, bem-
aventurada aquela consciência, a que o sabor da sabedoria causa agradável impressão, em que a mesma
sabedoria descansa. Diz da: «A minha casa será chamada casa de oração». A palavra «domus», no grego
«doma», quer dizer teto. A casa compreende alicerces, paredes e teto. Os alicerces designam a humildade;
as paredes o conjunto das virtudes; o teto, a caridade. Onde estes três elementos se encontram reunidos, aí
está o Senhor, que diz: «A minha casa Será chamada casa de oração».

FREI THOMÊ DE JESUS


Trabalhos de Jesus
Primeira Parte. Modo que se ha de ter na hora do exercício.
Silva & Pacheco, Ld,ª, Tomo I, Porto 1925, p. 25 ss.

Modo que se ha de ter na hora do exercício (da oração). – Chegada a hora do exercício, lembre-se que
tem a Deus trino e uno presente, ou dentro em seu coração muito mais íntimo que seu interior, ou em sua
majestade sobre si, a cujos pés está como uma miserável criatura, ou cercado de toda a parte d’Ele ou de
sua bondade, como hum pequeno peixe no meio do mar d’Ele, e n’Ele está de toda a parte alagado, como
humana pessoa que no meio do campo está cercado de todas as partes do Sol, que por todas elas lança
nelle seus raios. Porque vendo que tem perto de si ao Senhor com quem trata, que o vê, e sabe todo o seu
interior, e se não pôde enganar, estará diante d’Ele com maior reverencia e cuidado, fé e esperança,
confiado que o não desamparará, mas antes o ouvirá, e ajudará.
Cuide, e lembre-se dos mistérios em que se exercitar, não como passados, senão como que se acha
presente a eles, e naquela hora os visse; porque ainda que na execução e obras são já passados, não passou
a virtude deles, nem passou o amor com que o Senhor os obrou, mas está hoje tão vivo, tão infinito, tão
sem mudança, tanto o mesmo é não outro, como quando vivendo nesta vida mortal por nosso amor
padeceu, e morreu. E como Ele está presente, e atualmente ardendo no mesmo amor com que tudo fez por
nós, e em tudo tem agora tão presente e atual gosto, que se fosse necessário o tornaria de novo a passar:
também devemos nós de tratar suas cousas, não como passadas, senão como presentes: porque também
buscamos nós nelas o fruto, e proveito, não Como de cousa acabada, mas como de cousa viva, e eterna. E

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assim deve pôr os olhos no Senhor, e abraçar-se com Ele crucificado, e atribulado, e falar com Ele como
se o visse, e acompanhasse naquela hora.
Entrando no exercício, recolhidos os sentidos interiores, e exteriores com a devida reverencia, ao
Senhor, que tem presente, faça o sinal da Cruz e reze um Pater-noster ao mesmo Senhor, e uma Ave-
Maria, pedindo ajuda à Senhora da vida e misericórdia. E isto não ha de ser como por cumprimento, mas
com sentimento, indo-lhe o coração apollas palavras, alevantando afetos, e fervor. Porque o que se
exercita, na de trabalhar por não perder tempo nenhum na hora do exercício: mas que tudo, pouco e
muito, ajude afervorar, e recolher, e alevantar a alma a Deus, e enternecer-se.

FREI ANTONIO DAS CHAGAS


Cartas Espirituais. Carta 70 (= I.100 da lª edição)
Livraria Sá da Costa, Lisboa 1957, p. 185.

Os graus, por onde há-de subir a alma, e os enfeites com que se há-de adornar são cinco. O primeiro, é
coração limpo e sempre elevado em Deus. O segundo, um espiritual e interior silêncio, isto é, depoimento
de todas as imagens espirituais e operações das potências, por excelentes que sejam. O terceiro, um
apegamento anelante a Deus, fazendo aspirações das respirações, não buscando utilidade alguma nem
consolação de criaturas, ainda que se veja triste sem telas. O quarto, uma quietação ou encosto em Deus,
de maneira que nele vive com ele se una, assim como a pinga de água no vinho, ficando-se em 'suas
veias. A quinta, um suave 'sono de espírito, com que a alma dorme para tudo o que é mundo, ao que tem
cerrado os olhos, se fica totalmente em Deus, como Ele quiser, sem querer acordar deste sono, exceto
quando o mandar a obediência, caridade ou necessidade própria 'Ou alheia. Vão por este caminho as
almas a que Deus chama à perfeição.

PADRE ANTONIO VIEIRA


Sermão IV do Rosário
Sermões, Ed. Anchita, São Paulo 1943-45, p. 145 ss.

Quanta é a diferença que tem (posto que estejam tão juntos) na rosa o cheiro e a virtude, na árvore a
folha e o fruto, no mar a concha e a pérola, no céu a aurora e o dia, no homem o corpo e a alma – e para
que o digamos por seus próprios termos – quanta é a vantagem que faz o entendimento à voz: tanta é a
que tem (posto que irmãs entre si) a Oração Mental sobre a Vocal.
A Vocal é o exterior da Oração, a Mental o interior; a Vogal é a parte sensível, a Mental a que não se
sente; a Vocal é um corpo formado no ar, a Mental o espírito que o informa e lhe dá vida.
A Vocal recita preces, a Mental contempla mistérios; a Vocal fala, a Mental medita; a Vocal lê, a
Mental imprime; a Vocal pede, a Mental convence.
A Vocal pode ser forçada, a Mental sempre é voluntária; a Vocal pode não sair do coração, a Mental
entra nele e o penetra; e se é duro o abranda.
A Vocal exercita a memória, a Mental discorre com o entendimento e move a vontade: a Vocal
caminha pela estrada aberta, a Mental cava no campo e não só cultiva a terra, mas descobre tesouros.
A Oração Vocal é a Voz do Precursor no deserto, a Mental é o conceito da mesma Voz, que reconhece
o Messias e Lhe manda seguir os passos.
A Vocal é a boca do leão de Sansão, a Mental são as abelhas que nela fabricam os favos, mais doces
pelo mistério que pelo mel.
Enfim, da Vocal sobem ao Céu vapores, da Mental se acendem relâmpagos e descem raios, que
alumiam os olhos, que ferem os peitos e desfazem em cinzas os vícios.

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