O Ensino de Musica No Brasil Oitocentista

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O ENSINO DE MÚSICA NO BRASIL OITOCENTISTA

(Publicado nos Anais do Encontro Anual da ABEM, Londrina, 1996)

Vanda Lima Bellard Freire*


O ensino de música no Brasil não foi suficientemente
estudado, e, na verdade, ainda não nos debruçamos
verdadeiramente sobre a história da educação musical no
Brasil. Muitos dos modelos e práticas educacionais que
adotamos não foram devidamente analisados e criticados , e,
freqüentemente, não têm sua origem explicitada e
contextualizada.
Nesse sentido, a educação musical no século XIX é um
campo particularmente fértil de estudo, pois não está muito
distante dos dias atuais e corresponde ao período em que
ocorrem diversos acontecimentos significativos , no âmbito do
ensino musical, com repercussões que atingem nossos dias,
como a criação do Imperial Conservatório de Música, em
______________
* Vanda Lima Bellard Freire: Doutor em Educação/ UFRJ; Professora
Adjunta de História da Música na Escola de Música da UFRJ; Docente do
Curso de Pós-graduação em Música da UFRJ.
meados do século passado, do qual derivam, hoje, a Escola de
Música da UFRJ e muitos dos modelos de educação vigentes
no país.
Com a finalidade de caracterizar o ensino de música no
Brasil oitocentista, visando à elaboração de uma história
crítica da educação musical brasileira , é que se deu origem á
presente pesquisa, que se acha, ainda, em andamento.
A caracterização aqui pretendida aborda o ensino de
música por duas vertentes principais, a do ensino formal e a do
ensino informal, este último entendido, contrariamente ao
primeiro, como aquele exercido fora de um contexto escolar,
propriamente dito.
Tomou-se, como foco principal de estudo, o Rio de
Janeiro, por dois motivos principais: pela necessidade de
delimitação da pesquisa, e pelo fato de o Rio de Janeiro, ex-
capital do país, ter sido um dos principais focos irradiadores de
modelos e práticas de ensino musical para todo o país.
O ensino formal, no Rio de Janeiro oitocentista, tem
sua ocorrência registrável, ao longo do século XIX, em
estabelecimentos diversos - colégios de instrução geral, onde o
ensino de música era também ministrado, como o Colégio
Pedro II, criado em l 838; e estabelecimentos vocacionais,
como o Imperial Conservatório de Música, criado em 1841, e
efetivamente instalado em l 848.
O ensino informal, por sua vez, se processa, no mesmo
período, através de aulas particulares, ministradas por pessoas
nem sempre devidamente capacitadas, mas responsáveis por
considerável “fatia”do ensino de música no século passado, e
por músicos de reconhecida competência musical , como o
Padre José Maurício Nunes Garcia.
As principais fontes de pesquisa sobre os
estabelecimentos de ensino são, além das escassas fontes
bibliográficas, documentos remanescentes dessas instituições
e, hoje, encontráveis na Escola de Música da UFRJ, no colégio
Pedro II e nos Arquivos Municipal e Nacional, situados no Rio
de Janeiro. Além dessas fontes, há outras fontes primárias
importantes, como documentos de natureza diversa referentes à
legislação da época, e que são encontráveis, além dos locais já
citados, na Biblioteca Nacional e no Museu Histórico
Nacional, também localizados no Rio de Janeiro.
Quanto ao ensino informal, as principais fontes
primárias de informação são os jornais da época que citam,
com fartura, anúncios como os que se seguem:
Participa-se ao respeitável público que no dia l de
maio se abrio na rua do Ouvidor, n. 215, huma Aula de
Musica Vocal :são as horas da classe das cinco da tarde
às sete, e o Mestre poderá dar lições particulares em
horas commodas, ainda para os Srs. Empregados.(Diario
Mercantil, 15 de maio de 1827)

Annuncios - Bartholomeu Bertolozzi, professor e


compositor de musica, morador na rua do Conde n.38,
achando-se inteiramente restabelecido da sua grave
molestia, participa ao respeitavel publico que continua a
dar lições, em casas particulares, de canto, violão etc,
por tanto quem se quizer utilizar do seu prestimo, o
farão sabedor para serem procurados.(O Pharol
Constitucional, l6 de agosto de l 844)
Madame Clementiny dá lições de música vocal, harpa,
piano e língua francesa na Rua São José, n. l9.(Gazeta
do Rio de Janeiro, 6 de agosto de l 817)

Através desses anúncios podem ser detectadas diversas


peculiaridades desse ensino informal, como, por exemplo, a
formação absolutamente heterogênea dos professores que o
ministravam, já referida anteriormente:

Canto e Piano. Uma senhora brasileira de boa família,


e muito bem educada, digna da proteção do público
illustrado desta corte, sabendo tocar piano e cantar com
perfeição, dá lições de sua arte por preço razoavel em
casa de seus pais à rua do Sacco do Alferes n. 113,
sobrado. (A Actualidade, 7 de janeiro de 1860)

Professora de canto e piano. Uma senhora, ex-


discipula do Conservatório de Paris e do fallecido
professor Boiani, continua a lecionar canto e piano em
casas de familias e collegios, por preços razoaveis (...)
(Cidade do Rio, 27 de agosto)

No primeiro exemplo, transparece uma formação mais


doméstica; no, segundo, uma formação mais profissional.
Os jornais também trazem referências ao ensino
formal, e os anúncios abaixo ilustram essa situação:

No Largo da Lapa n.24, abrio-se hum Collegio de


educação de meninas, onde se ensina a ler, escrever,
contar, Grammatica Franceza e Ingleza; e a cozer,
marcar, bordar de todas as qualidades, dança e música
(Gazeta do Rio de Janeiro, l6 de agosto de l817)

Colégio Pujol (Estação dos Mendes) (...) Curso


Primário e Secundário. Acessórios. Cursos especiais de
Sciencias Naturais, Música (banda), Canto, Piano e
Gymnastica. .Rua do Hospício, 38” (Novidades, 26 de
janeiro de 1887).
Um anúncio do Externato Cunha Sales, “importante
estabelecimento de ensino secundário”, no qual ensinavam-se
“todos os preparatórios necessarios para o curso de qualquer
das faculdades do Imperio”, e que ensinava , também ,
“diversos instrumentos e musica [ sic] ”, discrimina os preços
das mensalidades: por uma a duas matérias - 8$000 , e, por
música e piano ou outro instrumento - 10$000 (O Grito do
Povo, de 16 de abril de 1879). A comparação desses preços
com outros referenciais da época pode levar a importantes
conclusões sobre o assunto.
Um outro tipo de ensino - o de caridade - também pode
ser apreciado nos jornais da época, como na notícia abaixo,
publicada no periódico O Verdadeiro Caramuru , de 21 de
novembro de 1 833:
Sem duvida a Sociedade Amante da Instrução,
grandes beneficios tem feito a mocidade Fluminense
pobre e desvalida, não só educando-a nas suas aulas,
mas até vestindo, e calçando, os meninos mais pobres ...
Nossa alma se extasia quando contempla corações tão
filantrópicos: e por isso rogamos-lhe haja de publicar
pela sua interessante Folha estes nossos sentimentos ,e
igualmente o numero dos meninos pobres socorridos por
essa sociedade a fim de que o Publico lhe faça a devida
justiça.
Primeiras Letras 150
Grammatica 43
Francez 62
Muzica 17
Aula das meninas 28
300

Além dos periódicos e das outras fontes já referidas, os


métodos destinados ao ensino de música, escritos ou
publicados no Rio de Janeiro, no século XIX, são importante
fonte de informação, podendo, também, contribuir para a
caracterização do ensino de música, formal e informal, aqui
pretendida.
Entre esses métodos, podem ser citados: o Método de
Pianoforte, escrito pelo Padre José Maurício Nunes Garcia, a
Arte da muzica, para uzo da mocidade brazileira por hum
seu patrício, impressa no Rio de Janeiro, em l.823, pela
Typographia de Silva Porto & Ca.; Elementos de Musica, de
Bonifacio Asioli, traduzido por Antonio Luiz Fagundes e
editado no Rio de Janeiro, em l 824, na Typographia de
P.Plancher, impressor de Sua Majestade Imperial; as diversas
Artinhas, em voga no século XIX, entre as quais a de
Francisco Manoel da Silva, impressa no Rio de Janeiro, em
l838; o Tratado d’harmonia e o ABC Musical, de Raphael
Coelho Machado, ambos publicados em 1 851.
As referências a esses métodos também podem ser
encontradas nos periódicos da época, como na notícia que se
segue:
Sahio a luz: Elementos de Musica, copendiados
pelo Insigne Bonifacio Asiole, Director e Mestre da
Câmara e Capella se S.M. o Rei da Itália, Censor do
Regio Conservatório de Música da cidade de Milão; e
adoptados no mesmo Conservatorio para a instrucção
dos seus alunos; traduzidos no idioma vulgar. Vende-se
no Armazem de Instrumentos de Musica de Ferguson e
Crochart, e nas Lojas de Livros de João Pedro da Veiga
e Companhia, João Baptista Bompard, Pedro Plancher,
João Baptista dos Santos, e Jerônimo Gonçalves
Guimarães, a preço de 1:280 réis (O Spectador
Brasileiro, 17 de janeiro de 1 825).

A extensa revisão que se vem empreendendo, ao longo


da pesquisa, em periódicos de época, tem podido, também,
fornecer importantes informações sobre a música, em geral, na
sociedade carioca oitocentista, permitindo situar o ensino de
música no âmbito das articulações sociais em que se insere.
O periódico A Notícia Histórica (1898), ao apresentar
um relato histórico do Instituto Nacional de Música, refere-se
ao ano de 1872, comentando que: o ensino chegou a annular-
se completamente no estabelecimento [Instituto Nacional de
Música] pelo effeito do desanimo dos professores ante a
indiferença e a inefficacia dos parcos auxilios officiais.

O baixo prestígio dos professores de música pode


também ser percebidos em uma notícia relativa ao
Conservatório de Música, publicada no periódico Vida
Moderna, de 7 de agosto de 1886:

(...) há professores que, apesar dos baixos salários, se


esforçam por bons resultados dos seus alunos e do
conservatório.

Outros trechos da mesma matéria revelam outros


aspectos contraditórios desse ensino:

(...) o diretor de um conservatório deveria ser, via de


regra, um maestro de grande merecimento artístico e
pessoal: deve ser capaz de “guiar os alumnos para o
caminho do apostolado”.
(...) como aceitar alunos que não lêem francês ou
italiano? A Bibliografia é estrangeira; há professores
estrangeiros que não são compreendidos.

Paradoxalmente, uma sociedade que utilizava e


valorizava a música em seu cotidiano, remunerava mal seus
professores, apesar das expectativas de que eles tivessem
notoriedade artística nacional e internacional, e da expectativa
elitista de um ensino formal que não podia prescindir de
línguas estrangeiras.
O periódico Vida Moderna, de 24 de julho de 1886
publica uma matéria que oferece material para uma
comparação do prestígio do professor de música com os de
outras áreas:

Entre nós um professor de sciencias e lettras recebe,


como funcionário público, o triplo, o quadruplo do
exíguo vencimento de um professor de música, sendo que
aquele explica muito a sua vontade a matéria, sem se
importar que o alumno a tenha ou não comprehendido,
ao passo que este esgota sua paciencia, fazendo com que
os seus alumnos adquiram a prática tão necessária em
música.

Esse conjunto de informações preliminares sobre o


ensino de música, no âmbito da sociedade carioca oitocentista,
permite o delineamento de contradições e sínteses, que vale a
pena investigar, em busca de subsídios para uma melhor
compreensão do ensino de música em nossos dias.

Metodologia e Referencial Teórico

O interesse em focalizar o ensino de música por


ângulos diferentes, tem relação direta com o enfoque
metodológico adotado - o dialético, em que se privilegiam as
contradições e sínteses inerentes ao fenômeno considerado,
assim como sua dinâmica, sua inserção na totalidade dos
movimentos sociais e suas possibilidades de mudança
qualitativa. Ou seja, ao optar pelo método dialético, como
ângulo de abordagem mais geral da pesquisa, opta-se por
considerar o ensino como fenômeno dinâmico, multifacetado,
mutável e necessariamente articulado com as diversas
instâncias da sociedade - trata-se, pois, de considerar um
ensino implicado temporalmente e espacialmente.
Em função dessa ótica, não se poderia abordar somente
uma modalidade de ensino de música, mas passa-se a ter um
comprometimento com as diversas modalidades de ensino que
interagem numa sociedade, em um determinado período, e com
o jogo de contradições e sínteses que se desenrolam nesse
processo - daí a necessidade de se abranger, na presente
pesquisa, o ensino formal e o informal.
A caracterização dessas modalidades de ensino está
sendo processada, a partir do levantamento de dados nas fontes
acima mencionadas. A interpretação dos dados toma como
base os seguintes referenciais teóricos: a concepção de
currículo como construção social (Goodson, 1.995) e como
campo contestado (Moreira e Silva, l.995); as categorias
pedagógicas descritas por Saviani (1.989); e os paradigmas
curriculares descritos por Domingues (l.986).
Complementarmente, também será tomada como
referencial a abordagem desenvolvida em minha tese de
Doutorado, relativa à elaboração de diretrizes para o ensino
superior de música com base na concepção dialética da
educação (Freire, l.992), uma vez que os referidos princípios
são aplicáveis a qualquer nível de ensino de música e são
convergentes com as concepções educacionais de autores
especificamente voltados para a aprendizagem musical, como
Keith Swanwick, e outros.
A concepção de currículo como construção social é
adotada por Goodson (l 995), que a utiliza, contrapondo-a à de
currículo como prescrição:

Acima de tudo , precisamos abandonar o enfoque único


posto sobre o currículo como prescrição. Isto significa
que devemos adotar plenamente o conceito de currículo
como construção social, primeiramente em nível da
própria prescrição, mas depois também em nível de
processo e prática (pág.67).

A diferenciação acima é particularmente pertinente à


pesquisa aqui descrita, uma vez que privilegia a condição do
currículo como processo (construção) e como elemento
socialmente implicado, condições essenciais a qualquer
abordagem dialética do ensino.
O reconhecimento de um primeiro nível prescritivo, no
currículo, é especialmente aplicável ao currículo formal
(escrito), e implica no reconhecimento de tres dimensões
conflituosas do currículo: o currículo escrito (formal), o
currículo ativo ou em ação (aquele que é, efetivamente,
praticado pelos professores) e o currículo oculto (conjunto de
princípios e práticas não explícitos nas duas dimensões
anteriores, mas tão significativos ,ou, até mesmo, mais
significativos que os explicitados no currículo formal e no
currículo em ação).
O reconhecimento dessas dimensões contraditórias do
currículo remete à outra concepção anteriormente referida - a
de currículo como campo contestado, também necessária ao
enfoque dialético adotado neste trabalho. Para esclarecer
melhor essa concepção, é oportuno citar Moreira e Silva
(l.995):

Em uma sociedade dividida, a cultura é o terreno por


excelência onde se dá a luta pela manutenção ou
superação das divisões sociais. O currículo educacional,
por sua vez, é o terreno privilegiado de manifestação
desse conflito. O currículo, então, não é visto tal como
na visão tradicional, como um local de transmissão de
uma cultura incontestada e unitária, mas como um
campo em que se tentará impor tanto a definição
particular de cultura de classe ou grupo dominante
quanto o conteúdo dessa cultura ( pág,27).

Nessa linha de pensamento, o currículo, concebido


como campo contestado é o campo em que interagem
diferentes práticas e conteúdos culturais, representativos de
diferentes segmentos da sociedade, com uma evidente relação
desigual de forças (já que a cultura das classes dominantes
tende a se impor às demais), mas, não como um processo de
recepção passiva de conteúdos, já que as classes não
dominantes têm suas formas próprias de reagir à cultura
hegemônica.
As concepções pedagógicas descritas por Saviani
também podem ser úteis à caracterização do ensino de música
no século passado: concepção humanista tradicional,
concepção humanista moderna, concepção analítica e
concepção dialética da educação.
Segundo Saviani, a concepção humanista tradicional ou
pedagogia da essência centraliza-se no intelecto, na essência do
conhecimento, enquanto a concepção humanista moderna ou
da existência centraliza-se na vida, na atividade. A primeira
valoriza, prioritariamente a transmissão do conhecimento e a
segunda enfatiza a experiência e os métodos.
A concepção analítica, de raízes neo-positivistas,
corresponde a um enfoque tecnicista do ensino, que prioriza os
meios, as formas de educar, com vistas a atingir, com
eficiência, os objetivos propostos.
A concepção dialética ou pedagogia radical,
diferentemente das duas anteriores, enfatiza a transformação, a
perspectiva crítica, a partir da difusão de conteúdos vivos e
atualizados. Situa-se, segundo Saviani, para além das
pedagogias da essência e da existência.
A caracterização que a presente pesquisa pretende fazer
da educação musical brasileira, no século XIX, tem nas
categorias descritas por Saviani um suporte para proceder à
identificação das práticas, métodos e objetivos educacionais,
quer no ensino formal, quer no informal. Que finalidades esses
dois tipos de educação visavam? Como se processava esse
ensino? Que conteúdos eram transmitidos? Qual a função
social desse ensino, em suas diversas modalidades?
No que tange ao ensino formal, os paradigmas
curriculares descritos por Domingues (1986), com base em
J.Mac Donald (1975 ), propiciam um ângulo complementar de
análise às categorias de Saviani. Esses paradigmas, assim como
as categorias pedagógicas anteriormente referidas, já foram
descritos em trabalho apresentado no III Encontro Anual da
ABEM (Freire, l.994) e serão revistos, aqui, apenas
brevemente. Esses paradigmas denominam-se: técnico-linear,
circular consensual e dinâmico dialógico.
O primeiro paradigma, o técnico-linear, tem maior
aproximação com a concepção humanista tradicional da
educação, e enfatiza a formação técnica, visando a habilitações
profissionais específicas; o segundo paradigma, o circular-
consensual, aproxima-se da concepção humanista moderna e
da analítica , e prioriza a experiência individual e coletiva; o
terceiro, denominado dinâmico-dialógico, é identificável à
concepção dialética, e enfatiza a prática social, a perspectiva
crítica e a transformação.
Como essas concepções paradigmáticas não são
necessariamente excludentes, pois, freqüentemente,
manifestam-se simultaneamente características de mais de um
desses modelos numa mesma época , e, até, em um mesmo
currículo, elas são particularmente úteis ao objetivo principal
desta pesquisa, que é o de identificar as principais
características do ensino de música no Rio de Janeiro
oitocentista, no âmbito de ensino formal e do informal.
A partir do levantamento de dados nas fontes já
referidas e da interpretação desses dados á luz do referencial
teórico descrito, está sendo, então delineado um perfil desse
ensino, sob uma perspectiva dialética.

Resultados Parciais da Pesquisa


A coleta de dados, até a presente data, já deu conta das
seguintes etapas: levantamento de currículos e programas do
Imperial Conservatório de Música e do Instituto Nacional de
Música, até o final do século XIX; amplo levantamento, em
periódicos de época, de notícias referentes a música, em geral,
com ênfase na educação musical; levantamento, na literatura
especializada, de referências a métodos musicais escritos ou
traduzidos no século passado, buscando-se constatar a
disponibilidade deles para consulta.
A revisão de literatura , tanto no que concerne á vida
musical no Rio de Janeiro oitocentista, quanto no que diz
respeito ao referencial teórico adotado está praticamente
concluida , e serve de subsídio á coleta de dados e ás primeiras
abordagens interpretativas do material coletado.
No que se refere ao ensino formal de música, apenas a
parte relativa ao Imperial Conservatório de Música e ao
Instituto Nacional de Música foi concluída e já foi apresentada
no III Encontro da ABEM. Concluiu-se, nessa etapa da
pesquisa, por uma caracterização dos currículos desses
estabelecimentos segundo o paradigma técnico-linear,
identificando-se, neles, uma claro e unívoco direcionamento
para a preparação estritamente técnica do músico, com vistas a
prepará-los para atuar na Igreja e no Teatro, sobretudo no
teatro de ópera.
Além dessas características, outras vão sendo
identificadas com o decorrer da pesquisa: o conteúdo desses
currículos é totalmente enraizado na música européia,
rejeitando, até mesmo, o canto em língua nacional; a forte
influência da ópera italiana exerceu-se, até mesmo no
repertório de concerto, pois todo ele é calcado
prioritariamente, até quase o final do século, em reduções,
fantasias, variações de trechos de óperas; assim como os
conteúdos musicais, as práticas instrumentais, sobretudo a
pianística, baseiam-se em modelos românticos, com ênfase na
ópera e no virtuosismo; as práticas camerísticas somente
começam a ter importância no final do século passado, quando
alguns músicos, como Alberto Nepomuceno e Leopoldo
Miguez, começam a buscar alternativas aos modelos derivados
da ópera italiana, buscando inspiração em modelos franceses e,
sobretudo germânicos, que valorizam mais essas práticas. Esse
ingresso da música camerística, verificável nos programas de
concerto do Instituto Nacional de Música, não foi
suficientemente para abrir uma discussão sobre os objetivos do
ensino de música nesse estabelecimento, cujos currículos
continuaram voltados para a priorização do virtuose solista,
mesmo no século XX ,e mesmo em detrimento das escassas
oportunidades no mercado de trabalho.
O ensino formal, não ministrado em estabelecimentos
especificamente direcionados para a educação musical, ainda
se acha em fase mais elementar de análise, baseada, por ora,
apenas nas informações obtidas em periódicos, uma vez que
ainda não se empreendeu o levantamento de outros
documentos de época, nos arquivos pertinentes.
Quanto ao ensino informal, parece constituir um
umiverso bastante heterogêneo, e a sistematização dos dados
coletados em periódicos de época ainda se acha em
andamento. É possível, contudo, no atual estado da pesquisa,
assinalar uma intensa procura por esse tipo de ensino,
buscando, ou uma habilitação profissionalizante, ou uma
habilitação amadorística, capaz de permitir uma atuação em
espaços não formais, como os salões e salas da sociedade
carioca oitocentista, de diferentes níveis sociais, que abrigavam
um intenso movimento musical, sem similar em nossos dias.
Nesses espaços não formais apresentavam-se, sem
distinção, músicos profissionais, como os pianistas Thalberg
ou Arthur Napoleão, e músicos amadores, em torno de um
repertório, em geral, menos virtuosístico que o dos teatros. A
forte influência da ópera italiana também pode ser constatada
no repertório desses salões, mesmo quando se trata de músicas
de perfil mais ao gosto popular, como as modinhas. Aliás, a
abertura desses espaços para um repertório mais eclético é um
dos principais diferenciadores, em relação aos espaços formais.
Pode-se, a grosso modo, caracterizar o ensino de
música do século passado, em função do espaço a que se
destinavam os produtos musicais : o ensino formal priorizava a
formação eminentemente virtuosística , em moldes europeus,
voltada, principalmente, para os palcos dos teatros de ópera, na
primeira metade do século, e, na segunda metade, para os
concertos solistas, nos teatros, e para apresentações nos clubes
musicais, onde, além do repertório solista, adquire espaço
crescente a música de câmara ; já o ensino informal priorizava
a atuação amadorística, em torno de um repertório mais
eclético, que abrangia músicas mais ao gosto popular, e que se
destinava, principalmente às salas e salões da sociedade da
época.
É possível supor, no atual estado da pesquisa, que o
ensino informal se aproximasse mais dos modelos humanistas
modernos de educação (embora com evidentes componentes de
uma concepção humanista tradicional), contendo, até mesmo,
elementos compatíveis com uma concepção dialética de
educação, pois destinava-se aos salões, que eram um espaço
vivo, onde a música desempenhava funções diversas e , até
mesmo contraditórias, como a de crítica social , a de validação
de normas sociais e a de expressão emocional. Essa
característica mais eclética do ensino informal contrapõe-se ao
ensino formal (pelo menos aquele ministrado no Imperial
Conservatório e no Instituto Nacional de Música), cujo perfil,
conforme já assinalado anteriormente, é claramente
identificável com o paradigma técnico-linear de currículo e
com uma concepção de educação para a essência. O ensino
informal, provavelmente, modelava-se mais por uma
concepção de educação para a existência.

É necessário, sem dúvida, aprofundar essas conclusões


preliminares, que, em certo sentido, são também provisórias,
tendo em vista que a pesquisa se encontra, ainda, em
andamento. Certamente, um conhecimento mais aprofundado e
seguro do ensino musical no Brasil, em suas diversas vertentes,
pode contribuir para nossas reflexões e decisões relativas ao
atual ensino de música. É essa contribuição que a presente
pesquisa pretende oferecer aos atuais educadores musicais
brasileiros.

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