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ARTIGO: O PAPEL SOCIAL DO MICROCRÉDITO: ESTUDO SOBRE O PROJETO CDD – CIDADE DE DEUS
THE SOCIAL ROLE OF MICROCREDIT: STUDY ON THE CDD – CIDADE DE DEUS PROJECT
EL PAPEL SOCIAL DEL MICROCRÉDITO: ESTUDIO SOBRE EL PROYECTO CDD – CIDADE DE DEUS
RESUMO
O presente estudo propõe-se a compreender como o programa de microcrédito implementado na Cidade de Deus está contribuindo
para a diminuição da pobreza no segmento da população excluída pelo mercado bancário tradicional. Para tal, destacam-se dois
aspectos: um, de cunho social – a busca do microcrédito pela população pobre -- e outro, de cunho econômico – que aborda a au-
tossustentabilidade financeira do programa. Foi empreendido um estudo qualitativo com pesquisa de campo e entrevistas semiestru-
turadas com microempreendedores locais, representantes de instituições financeiras e demais entidades que proporcionam crédito na
comunidade. Os resultados obtidos demonstram que ainda existem entraves que dificultam o acesso dos mais pobres aos recursos do
microcrédito e que a sustentabilidade financeira das instituições tem norteado as decisões quanto aos beneficiários destes recursos.
PALAVRAS-CHAVE: Microcrédito, inclusão social, políticas públicas, banco comunitário, Cidade de Deus.
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Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Ciências Contábeis, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
DOI: http://dx.doi.org/10.12660/cgpc.v24n77.67268
ISSN 2236-5710 Cadernos Gestão Pública e Cidadania | São Paulo | v. 24 | n. 77 | 1-24 | e-67268 | 2019
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Vera Lúcia de Aguiar Kelly - Ana Carolina Pimentel Duarte da Fonseca - Fernanda Filgueiras Sauerbronn
ABSTRACT
The present study aims to understand how the microcredit program implemented in Cidade de Deus
sought is contributing to reduce poverty in the segment of the population excluded by the traditional
banking sector. To this end, two aspects are highlighted: one with a social aspect – the search by the
poor population for microcredit; and another one – economic-oriented addressing the financial self-
sustainability of the program. Semi-structured interviews were carried out with local micro-entrepre-
neurs, representatives of financial institutions and other entities, which provide credit in the community.
The results obtained show that there are still barriers that hinder access of the poor to microcredit re-
sources and that the institutions’ financial sustainability have guided the decisions on the beneficiaries
of these resources.
KEYWORDS: Microfinance, social inclusion, public policies, microfinance institutions, Cidade de Deus/
Brazil.
RESUMEN
Este estudio busca comprender como el programa de microcrédito en Cidade de Deus trató de at-
ender las necesidades de un segmento de la población excluido del mercado de la banca tradicional.
Para esto, se destacan dos aspectos: uno, de carácter social —la búsqueda del microcrédito por la
población pobre y otro, de carácter económico— que aborda la autosostenibilidad financiera del pro-
grama. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con los microempresarios locales, representantes
de instituciones financieras y otras entidades que proporcionan crédito en la comunidad. Los resul-
tados obtenidos muestran que todavía existen barreras que dificultan el acceso de los pobres a los
recursos de microcrédito y que la sostenibilidad de la institución ha guiado las decisiones sobre los
beneficiarios de estos recursos.
PALABRAS CLAVE: Microcrédito, inclusión social, políticas públicas, institución de microfinanzas, Ci-
dade de Deus/Brasil.
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no ano seguinte, o Prêmio Nobel da Paz ao siderando que o país possui 10,27 milhões
professor de economia Muhammad Yunus, de pessoas vivendo em situação de extrema
pelas suas iniciativas pioneiras na área, e ao pobreza. Segundo o IBGE, cerca de 58% dos
Graamen Bank (instituição fundada por ele). brasileiros têm carências sociais, novo indi-
cador de pobreza que leva em consideração
De acordo com Yunus (2009 apud Polato, a qualidade de vida (itens avaliados: acesso
2013), “a sociedade nunca havia dado chan- aos serviços básicos, atraso educacional,
ce a essas pessoas. Elas pegaram o dinhei- acesso à seguridade social e qualidade dos
ro e assumiram riscos. Todos podem ser em- domicílios). Além disso, o índice de Gini, que
preendedores[...]”. mede a desigualdade na distribuição de ren-
da entre os países e cujo coeficiente varia
Notadamente, tem surgido na recente lite- entre 0 e 1, foi de 0,490 em 2014, o que re-
ratura internacional sobre microcrédito uma vela que o país ainda possui uma alta con-
onda de críticas sobre a eficácia desse ser- centração de renda (IBGE, 2015).
viço na redução de situações de pobreza.
Dentre as críticas efetuadas pelos autores, A partir dos dois mandatos do presidente
destacam-se quatro pontos que não devem Fernando Henrique Cardoso, “o governo
ser negligenciados: destinação dos recursos federal brasileiro passou a assumir o papel
do microcrédito a beneficiários que não fa- de formulador e indutor de políticas públicas
zem parte do público-alvo (indivíduos clas- voltadas para a concessão de crédito produ-
sificados como os mais pobres dos pobres tivo às populações de baixa renda” (Zouain
(Navajas, Schreiner, Meyer, Gonzalez-Vega, & Barone, 2007, p.370).
& Rodriguez-Meza, 2000); direcionamen-
to dos recursos, pelo público mais carente, Mesmo com o ambiente favorável e de ser
para suas necessidades diárias, ao invés de o Brasil o primeiro país a criar programas
alocá-los em investimentos produtivos para de microcrédito na América Latina – com a
iniciar ou expandir um negócio (Fafchamps, União Nordestina de Assistência a Peque-
McKenzie, Quinn, & Woodruff, 2014); retor- nas Organizações (UNO) conduzida no Re-
no esperado para o crédito é baixo devido cife em 1973 (Feltrin, Ventura, & Dodl, 2009),
à falta de capacitação, de conhecimento e o setor de microfinanças no Brasil tem veri-
de educação financeira dos microempreen- ficado um fraco ritmo de crescimento, com
dedores (Birochi & Pozzebon, 2016); perigos baixas taxas de penetração entre os em-
do endividamento às IMF’s e surgimento de preendedores informais, trabalhadores por
uma geração de empreendedores pobres e conta própria e microempreendedores, não
superendividados (Hulme, Dichter & Harper, obstante as políticas públicas implementa-
2007; Ali et al., 2017; Loubere, 2016). Tais das pelo Estado a partir de 1990, com foco
críticas têm servido de contraponto a abor- neste segmento (Santos & Santos, 2017).
dagens otimistas sobre o papel social do mi-
crocrédito. As operações de microcrédito são frequente-
mente consideradas pelo mercado financei-
No contexto brasileiro, há um espaço signi- ro como desvantajosas e caras em compa-
ficativo para o setor de microfinanças, con- ração às operações de crédito tradicionais,
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além das estatísticas de elevada mortalida- como Bangladesh, Bolívia e Indonésia (Led-
de das micro e pequenas empresas (MPEs) gerwood, 1998), estimulou a realização des-
(as quais fazem parte do público-alvo do sa pesquisa, tendo como cenário a comuni-
microcrédito). Esses dois fatores reforçam o dade da Cidade de Deus, uma das maiores
desinteresse da rede bancária em assumir comunidades situadas no Estado do Rio
os riscos dessas operações, limitando forte- de Janeiro. Além disso, como proposto por
mente a expansão do segmento. Santos e Santos (2017) e Gonzalez, Porto
e Diniz (2017), é necessário o acompanha-
O que se observa como função mais recor- mento dos desdobramentos das iniciativas e
rente do microcrédito praticado no Brasil é a orientações, advindas do governo federal, a
concessão de capital de giro a pequenos ne- respeito de microcrédito e microfinanças no
gócios já estabelecidos. Em menor escala, Brasil, ao aprofundar o conhecimento sobre
aparecem as operações de crédito mistas, instituições específicas e de diferentes perfis.
ou seja, parte para capital de giro e parte
para investimento fixo (Cárdenas & Olivei- No Rio de Janeiro, as favelas sempre apre-
ra, 2010). Segundo os autores, raramente sentaram uma economia local própria ca-
o microcrédito é direcionado à formação de racterizada pelo mercado informal; contudo,
novos negócios. com o processo de pacificação, o qual será
descrito mais adiante neste trabalho, viu-se
Pereira, Mross, Lavorato e Aguiar (2009) a possibilidade de fomento das estruturas
explicam que os bancos comerciais no Bra- econômicas por meio de oferta de micro-
sil também não privilegiam empréstimos crédito a trabalhadores informais, nano e
às instituições operadoras de microcrédito, microempreendedores por meio do projeto
principalmente às Organizações Sociais de CDD – Cidade de Deus. Entretanto, há pou-
Interesse Público (OSCIPs) em virtude da co conhecimento disponível sobre seu aten-
sua fragilidade patrimonial, bem como da dimento, de fato, no segmento da população
dificuldade de mensuração adequada, pe- excluído pelo mercado bancário tradicional
los bancos, do risco envolvido nesse tipo de ou se o projeto tem o seu foco voltado para a
operação. Os autores ressaltam que as So- sustentabilidade das instituições, direcionan-
ciedades de Crédito ao Microempreendedor do os recursos para outros segmentos não
(SCMs) e as OSCIPS, são proibidas, por lei, classificados como os mais pobres entre os
de obter recursos no mercado para garantir pobres.
as suas operações de crédito. Dessa forma,
os gestores das organizações de microcré- Assim, o presente estudo busca responder
dito também enfrentaram o desafio de equi- à seguinte questão de pesquisa: como o
librar os objetivos sociais e financeiros e en- programa de microcrédito implementado na
tender formas efetivas de avaliar a eficácia Cidade de Deus procurou atender ao seg-
de sua organização (Armstrong et al., 2017). mento da população excluída pelo mercado
bancário tradicional?
A natureza distinta do contexto brasileiro em
relação ao de outros países com conheci- MICROCRÉDITO: PRINCIPAIS CARACTE-
das histórias de sucesso nas microfinanças, RÍSTICAS
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Por outro lado, outros dois economistas têm soria na gestão dos negócios e até distri-
se destacado por suas posições a respeito buição de alimentos. Entretanto, os custos
do capitalismo liberal e do combate à pobre- incorridos na oferta de tais serviços podem
za: Amartya Sen e Jeffrey Sachs (Hemais, prejudicar a sustentabilidade da instituição.
Borelli, Casotti & Dias, 2014), abrindo espa-
ço para uma abordagem poverty lending. Assim, o microcrédito tem relevância estraté-
gica. Dado seu caráter concreto, a inclusão
Sen (2000), que foi agraciado com o prê- do microempreendedor no sistema financei-
mio o Prêmio Nobel de Economia em 1998, ro – ainda que em volumes muito pequenos,
acredita que o indivíduo com pouca renda constitui uma mudança qualitativa. A inclu-
não possui as capacidades básicas do ser são tende a fazê-lo demandar, gradualmen-
humano. Ele acredita que o potencial de te, o acesso a serviços não financeiros, es-
uma pessoa ser mais produtiva e obter ren- tabelecendo uma ponte para resolver outras
da mais elevada aumenta à medida que ela questões afetas à falta de oportunidades e de
alcança maiores capacidades para viver a superação da própria situação de desigual-
vida. Nesse sentido, os serviços de saúde, dade (Parente, 2006). Nessa abordagem,
educação básica, moradia, alimentação e, destacam-se a seguir a economia solidária
principalmente, justiça e igualdade social, e os bancos comunitários como instrumen-
contribuem para amenizar os problemas tos que podem ser utilizadas para a inserção
dos indivíduos de baixa renda. econômica e social.
Sachs (2005) também tem se dedicado, por Economia solidária: a experiência dos ban-
mais de 20 anos, a compreender os resul- cos comunitários de desenvolvimento
tados das políticas implementadas pelos
países ricos na solução das consequências Economia solidária é definida como:
geradas pela carência de recursos, a partir
de suas experiências em países como Bolí- O conjunto de atividades econômicas – de
via, Polônia, Rússia, China, Índia e Quênia. produção, distribuição, consumo, poupan-
No Brasil, essa discussão é circunscrita ça e crédito – organizadas sob a forma de
aos argumentos das correntes desenvolvi- autogestão compreende uma variedade de
mentista e minimalista (Soares & Sobrinho, práticas econômicas e sociais organizadas
2008). As IMF’s minimalistas focam mais na sob a forma de cooperativas, associações,
sustentabilidade das instituições. De acordo clubes de troca, empresas autogestioná-
com Gonzalez-Vega (2000), a corrente mini- rias, redes de cooperação, entre outras,
malista preocupa-se mais com os aspectos que realizam atividades de produção de
técnicos das microfinanças em detrimento bens, prestação de serviços, finanças so-
da abrangência dos impactos sociais do mi- lidárias, trocas, comércio justo e consumo
crocrédito. solidário. (Ministério do Trabalho e Empre-
go, 2015, p. 6)
Já as instituições desenvolvimentistas cos-
tumam oferecer, além do crédito, serviços Dentre os vários exemplos de experiências
não-financeiros como qualificação, asses- de empreendimentos de economia solidária,
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período entre novembro de 2013 a maio de riam contribuir com informações e opiniões
2015. a respeito da utilização de linhas de crédito
voltadas para a população de baixa renda e
A escolha pela realização do estudo de os possíveis benefícios gerados para seus
campo naquela comunidade pautou-se no tomadores. Com base nas informações le-
ambiente propício criado com a instalação vantadas, foi efetuada nova coleta de dados
de instituições financeiras e de um banco nos 17 meses subsequentes, por meio de
comunitário na localidade, após o período entrevistas individuais em profundidade com
de pacificação, no ano de 2009. Nessa fase duração de aproximadamente 60 minutos,
também ocorreu a criação de uma moeda conduzidas por meio de um roteiro semies-
local, denominada CDD, reunindo, desta for- truturado.
ma, elementos importantes para o desen-
volvimento de uma pesquisa sobre o tema Foram realizadas 28 entrevistas, das quais
proposto. 7 com representantes de agências e insti-
tuições que atuam no desenvolvimento e na
Em uma primeira etapa, foram realizadas promoção de programas sociais no Rio de
três visitas exploratórias na comunidade, em Janeiro e 21 com empreendedores da comu-
dezembro de 2013, para conhecer o ambien- nidade.
te e identificar os principais atores que pode-
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Ao analisar as percepções dos atores en- Faço a divulgação da linha de crédito atra-
volvidos neste estudo, foi possível identificar vés de folders (panfletagem) e também
vários entraves, em termos econômicos, ao visitando os estabelecimentos comerciais:
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crédito quanto à possibilidade de utilização fiador nem nada. Todo mundo aqui faz
do aval solidário, na prática a concessão de isso[...] (empreendedor nº. 3)
crédito ocorre de maneira individual. O uso
do aval solidário não é estimulado pelas ins- Quem não tem nada, não tem como pegar
tituições financeiras em virtude do custo e empréstimo, se não tem bens vai declarar
do risco envolvidos. Durante as entrevistas, o quê? Só honestidade e boa vontade não
tanto o representante do Banco do Brasil ajudam (empreendedor nº. 2)
quanto o da AgeRio evidenciaram a exigên-
cia de fiador, com renda comprovada e au- Aliada a essas exigências, a liberação de pe-
sência de restrições cadastrais como condi- quenos valores e prazos curtos de pagamen-
cionantes para ter acesso aos recursos do to dos empréstimos tem afastado os micro-
microcrédito. empreendedores do microcrédito, que têm
preferido utilizar outras fontes de recursos
Os valores emprestados variam, em mé- já mencionadas para impulsionar os seus
dia, em torno de R$ 4.500,00 e são exi- negócios ou mesmo pagar dívidas, confun-
gidas garantias pessoais (fiadores com dindo muitas vezes o microcrédito produtivo
renda comprovada). (representante da com o microcrédito para consumo.
AgeRio)
Adicionalmente, durante o período em que
Com referência à utilização de recursos do ocorreu o estudo de campo, foi possível iden-
microcrédito, apenas 20% dos entrevista- tificar que a moeda social CDD pouco con-
dos fizeram uso desse recurso no empre- tribuiu para o desenvolvimento do comércio
endimento; 75% optou por utilizar recursos da comunidade e do cumprimento do papel
próprios ou empréstimos de familiares e social do microcrédito. O projeto foi difun-
amigos; e 5% fizeram uso do crédito dire- dido entre os comerciantes com o envolvi-
to ao consumidor (CDC). Alguns pontos le- mento da associação de comerciantes local
vantados pelos entrevistados podem justifi- no processo de divulgação da moeda CDD.
car a baixa utilização do microcrédito pelos Entretanto, pode-se dizer que o processo de
microempreendedores, como: existência de divulgação não ocorreu plenamente com os
restrições cadastrais, desconhecimento so- demais moradores da comunidade, que viam
bre as linhas de microcrédito, altas taxas de a CDD com ceticismo, talvez por não terem
juros cobradas pelas instituições financeiras compreendido seu real significado e os efei-
e exigência de garantias pessoais (avalista tos de sua adoção no desenvolvimento local.
com renda comprovada).
A dinâmica de circulação da moeda CDD
Eu não consegui pegar o empréstimo por- não foi bem internalizada pelos moradores,
que não consegui arrumar avalista. Então bem como pelos comerciantes locais, o
eu peguei com uns chineses que fazem que dificultou a ampla aceitação da moeda
empréstimo aqui na comunidade. Só que pela comunidade (diretora da SEDES).
eles só fazem para quem é indicado por
um cliente deles. Peguei R$ 500,00 para Também há de se considerar que o curto pe-
pagar o mês que vem. Não me exigiram ríodo de existência do BCCD contribuiu para
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o fracasso do projeto, já que era o principal lá. Da última vez, teve tiroteio. (empreen-
fomentador da CDD na comunidade, minimi- dedora nº. 7)
zando assim o papel social do microcrédito
na região. É muita miséria. Dá vontade de chorar.
Quando recebem as cestas básicas é uma
O atendimento à população de extrema po- alegria danada. (empreendedora nº. 6).
breza
Ainda reforçando a percepção de que esta
O BCCD tinha como principal foco atender parcela de potencial público do microcrédi-
aos setores mais vulneráveis da população to na comunidade não vem sendo atendi-
pobre (extrema pobreza) da comunidade, da, destaca-se a observação efetuada pelo
promovendo a inclusão social, um dos pi- agente de crédito. No depoimento apresen-
lares fundamentais de sua ação. Por esse tado anteriormente, ele esclarece que pro-
motivo, procurou-se observar durante a re- cura atender aos proponentes que já têm um
alização do estudo de campo a inserção do negócio com possibilidade de crescimento
microcrédito nas áreas de extrema pobreza e com boas referências, em detrimento da-
da comunidade. Durante a realização do es- queles que estão iniciando o seu negócio.
tudo de campo foi possível perceber que a Adicionalmente, a instituição que tinha o seu
população em situação de extrema pobreza foco voltado para as pessoas mais carentes
na comunidade não vem sendo atendida pe- – o BCCD -- não chegou a atingir seu ob-
los programas de microcrédito. Ainda exis- jetivo, em função dos problemas já mencio-
tem áreas em que se encontram pessoas nados anteriormente e do curto período de
vivendo em situação de pobreza extrema, existência.
privadas de todos aqueles aspectos men-
cionados por Sen (2000) como necessários CONSIDERAÇÕES FINAIS
para o ser humano ter uma vida digna.
O presente estudo buscou analisar como o
Por questões de segurança, não foi possível programa de microcrédito implementado na
ter acesso a esse grupo de moradores, uma Cidade de Deus procurou atender ao seg-
vez que residem em local de difícil acesso e mento da população excluído pelo mercado
de risco. Segundo informações obtidas com bancário tradicional, à luz de duas aborda-
policiais da UPP local, a região, denominada gens ao microcrédito (poverty lending e fi-
Caratê, onde se localizam os novos conjun- nancial systems) e levando-se em conside-
tos habitacionais, não deveria ser visitada ração os aspectos social e econômico que
por ser uma área onde “ainda imperava” a permeiam a realidade local.
ação de traficantes. Alguns microempreen-
dedores entrevistados declararam: Os resultados apontam que os moradores da
Cidade de Deus convivem com a escassez
A gente arrecada mantimentos com os co- de recursos físicos, humanos e financeiros,
merciantes da comunidade. Fazemos as assim como com a escassez de serviços e
cestas básicas e levamos lá. Todo mês a políticas públicas. Nesse sentido, o ambien-
gente faz isso. Mas eu tenho medo de ir te analisado constitui-se num interessante
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Por sua vez, a instalação do banco comu- Por outro lado, o Banco Comunitário da Ci-
nitário veio ao encontro dos anseios de um dade de Deus -- cujo foco era atender às ca-
outro tipo de público do microcrédito: o tra- madas mais pobres da comunidade -- apre-
balhador informal, que dificilmente obteria sentava sérios problemas de gestão, crises
crédito através de um banco comercial tra- internas, dificuldades na obtenção de fundos
dicional, dada a ausência de comprovação e subsídios para a manutenção de suas ope-
de renda, como é o caso dos artesãos, cos- rações pouco rentáveis e acabou sucumbin-
tureiras, ambulantes de uma maneira geral, do diante das diversas pressões apontadas
etc. As várias experiências ocorridas em no estudo.
países como Índia (Guérin & Kumar, 2017),
Bangladesh (Ali et al., 2017), China (Loube- Embora as condições das linhas de micro-
re, 2016), Bolívia (Navajas et al., 2000), Ni- crédito sejam hoje mais simplificadas, ainda
carágua (Mason, 2014) e México (Worthen, assim têm sido um empecilho para muitos
2012), dentre outros, foram capazes de per- empreendedores. A burocracia imposta pe-
mitir a inclusão social e a geração de traba- las instituições financeiras, como a exigência
lho e renda para os mais pobres, assumindo de fiador e ausência de restrições cadastrais,
uma importância crescente como política e as altas taxas de juros têm impedido que
pública de desenvolvimento. No entanto, no mais pessoas se beneficiem desses recur-
Brasil as estratégias para o segmento mi- sos, em alinhamento ao estudo de Ali et al.
crofinanceiro seguem a lógica do sistema fi- (2017).
nanceiro, afastando-se das políticas sociais.
Corroborando o resultado de outras pes-
Os resultados deste estudo sugerem que a quisas efetuadas sobre o tema, destaca-se
concessão de crédito aos mais pobres não que o sucesso do microcrédito no combate
tem sido prioridade das instituições finan- à pobreza exige que os modelos de atua-
ceiras em geral, devido aos elevados custos ção desenvolvidos pelas IMF’s sejam dese-
operacionais, aos reduzidos valores de em- nhados de forma a atingir os mais pobres
préstimos, à assimetria de informações e à (Kim, 2017; Yunus, 2009; Silva, Fonseca, &
elevada relação custo-benefício. Santos, 2016). Tal desenho deve contemplar
uma adequada definição do público-alvo, no-
Assim, no que se refere às instituições fi- tadamente o grupo de baixíssima renda, a
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fim de evitar que usuários não pertencentes a integrar as ações? Questões como essas
a este grupo tenham acesso aos recursos podem se tornar pontos de partida para futu-
provenientes do microcrédito (Navajas et al., ras pesquisas em torno do desenvolvimento
2000; Loubere, 2016). Nesse sentido torna- do sistema microfinanceiro brasileiro.
-se imperiosa a criação de metodologias es-
pecíficas para análise do risco de crédito do REFERÊNCIAS
setor microfinanceiro, bem como a definição
de um marco legal mais apropriado para as Ali, I., Hatta, Z. A., Azman, A., & Islam, S.
atividades exercidas pelos BCD’s e as moe- (2017). Microfinance as a development and
das locais (Rigo, 2014). poverty alleviation tool in rural Bangladesh:
A critical assessment. Asian Social Work
Desta forma, conclui-se que o programa im- and Policy Review, 11(1), 4-15. doi:10.1111/
plementado na Cidade de Deus não atingiu aswp.12106
plenamente o segmento da população ex-
cluído pelo mercado bancário tradicional, Armstrong, K., Ahsan, M., & Sundaramur-
no período investigado, tendo suas ações thy, C. (2017). Microfinance ecosystem: How
aproximado-se mais da perspectiva eco- connectors, interactors, and institutionalizers
nômica e da adoção de melhores práticas co-create value. Business Horizons, 61(1),
voltadas para a sustentabilidade das insti- 147-155. doi:10.1016/j.bushor.2017.09.014
tuições financeiras envolvidas do que pers-
pectiva social (que defende a tese de que Banco Central do Brasil. (2015). Relatório
os programas de microcrédito deveriam so- de evolução do SFN- BACEN – quadro 1:
correr os mais pobres, concedendo crédito e Quantitativo de instituições autorizadas a
acompanhando o desenvolvimento do negó- funcionar. Recuperado de http://www.bcb.
cio). Este resultado alinha-se ao estudo na gov.br.
China conduzido por Loubere (2016) no qual
o microcrédito facilita a “(de)marginalização” Barone, F. M, Lima, P., Dantas, V., Rezende,
de certos indivíduos ou grupos, ao mesmo V. (2002). Introdução ao Microcrédito, Brasí-
tempo em que (re)produz desigualdades e lia, DF: Conselho de Comunidade Solidária.
exacerba a marginalização de outros.
Birochi, R., & Pozzebon, M. (2016). Impro-
Outras questões precisam ser igualmente ving financial inclusion: Towards a critical
equacionadas, considerando-se o processo financial education framework. RAE-Revista
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