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COMO LIBERAR OS INTELECTUAIS LIVRES1

entrevista com Pierre Bourdieu

P - Às vezes lhe criticam por exercer contra os intelectuais uma


violência polêmica que beira o anti-intelectualismo. Em seu último livro, Les
sens pratique, você reincide nisso. Você coloca em questão a própria função
dos intelectuais, sua pretensão ao conhecimento objetivo e sua capacidade
de explicar cientificamente a prática...
- É notável que pessoas que todos os dias, todas as semanas, impõem
arbitrariamente os veredictos de um pequeno clube de admiração mútua, gritem
contra a violência quando os mecanismos desta violência são de repente
revelados. E que estes profundos conformistas se atribuam assim, por uma
extraordinária reviravolta, ares de audácia intelectual e até mesmo de coragem
política (eles quase nos convencem que se arriscam ao "Gulag"). O que não se
perdoa ao sociólogo é que entregue ao primeiro que apareça os segredos
reservados aos iniciados. A eficácia de uma ação de violência simbólica é
proporcional ao desconhecimento das condições e dos instrumentos de seu
exercício. Sem dúvida, não é por acaso que a produção de bens culturais ainda
não tenha suscitado suas associações de defesa dos consumidores. Podemos
imaginar todos os interesses, econômicos e simbólicos, ligados à produção de
livros, quadros, espetáculos de teatro, dança, cinema, que estariam ameaçados se
os mecanismos da produção de valor dos produtos culturais ficassem
completamente a descoberto diante dos olhos dos consumidores. Penso por
exemplo em processos como a divulgação circular das resenhas elogiosas entre
um pequeno número de produtores (de obras, mas também de críticas),
universitários de alto nível que autorizam e consagram jornalistas que se
autorizam e celebram. As reações que a revelação dos mecanismos da produção
cultural suscitam, lembram os processos que algumas firmas tentaram fazer contra

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Entrevista a Didier Eribon. Le Monde Dimanche, 4 de maio de 1980.

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as associações de consumidores. Na realidade, o que está em jogo é o conjunto
das operações que permitem fazer uma maçã azeda passar por uma maçã de
qualidade e os produtos de marketing, do rewriting e da redação publicitária por
obras intelectuais.

P - Você acha que os intelectuais − ou pelo menos os que, entre eles,


têm mais a perder − se revoltam quando seus lucros, e os meios mais
confessáveis que empregam para assegurá-los, são desmascarados?
- Sim, é claro. As críticas que me fazem são tanto mais absurdas porque
não cesso de denunciar a propensão da ciência social a pensar dentro da lógica
do processo ou a tendência dos leitores de ciências sociais a inserir os trabalhos
que lêem nesta lógica: o ressentimento, que pode adotar todas as espécies de
máscaras, a começar pela da ciência, vê a denúncia de pessoas nos lugares onde
a ciência pretende enunciar leis tendenciais transcendentes às pessoas através
das quais elas se realizam ou se manifestam.
Estas advertênciais me parecem mais necessárias ainda porque, na
realidade, a ciência social, cuja vocação é compreender, serviu às vezes para
condenar. Mas há um pouco de má fé em reduzir a sociologia, como sempre o fez
a tradição conservadora, à sua caricatura policialesca. E em particular, em tirar
partido do fato de que uma sociologia rudimentar dos intelectuais serviu como
instrumento de repressão contra eles para recusar questões que uma verdadeira
sociologia dos intelectuais coloca aos intelectuais.

P – Você pode dar exemplo destas questões?


- É evidente, por exemplo, que o jdanovismo deu a alguns intelectuais de
segunda classe (do ponto de vista dos critérios em vigor no campo intelectual) a
oportunidade de revanche, em nome de uma representação no interesse das
demandas populares, contra os intelectuais que tinham um capital próprio
suficiente para reivindicar sua autonomia face aos poderes. Isto não basta para
questionar todo questionamento em relação às funções dos intelectuais e àquilo
que sua maneira de cumprir estas funções deve às condições sociais nas quais
eles as exercem. Assim, quando lembro que a distância em relação às
necessidades comuns é a condição da percepção teórica do mundo social, não é
para denunciar os intelectuais como “parasitas”, mas para lembrar os limites

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impostos a qualquer conhecimento teórico pelas condições sociais de sua
efetuação: se há uma coisa que os homens de lazer escolar têm dificuldade em
compreender, é a prática enquanto tal, mesmo a mais banal, quer se trate da
prática de um jogador de futebol, de uma mulher kabyle cumprindo um ritual ou de
uma família bearnesa que casa os seus filhos.

P - Esta é uma das teses fundamentais de seu último livro, Le sens


pratique: é preciso analisar a situação social dos que analisam a prática, os
pressupostos assumidos em sua análise...
- O sujeito da ciência faz parte do objeto da ciência; ele ocupa um lugar aí.
Só podemos compreender a prática se dominamos, pela análise teórica, os efeitos
da relação com a prática que está inscrita nas condições sociais de qualquer
análise teórica da prática. (Estou dizendo pela análise teórica e não, como se
pensa freqüentemente, por uma forma qualquer de relação prática ou mística com
a prática, "observação participante", "intervenção", etc.). Assim, os rituais, que
sem dúvida são as mais práticas das práticas, pois se constituem de
manipulações e gesticulações, e de toda uma dança corporal, têm todas as
chances de serem mal compreendidos por pessoas que não sendo nem
dançarinos nem ginastas, se sentem inclinados a ver neles uma espécie de lógica,
de cálculo algébrico.

P - Situar os intelectuais é, para você, lembrar que eles pertencem à


classe dominante e que obtêm lucros desta posição, mesmo que estes
lucros não sejam estritamente econômicos.
- Contra a ilusão do “intelectual sem ligações nem raízes", que é uma
espécie de ideologia profissional dos intelectuais, eu lembro que enquanto
detentores de capital cultural, os intelectuais são uma fração (dominada) da classe
dominante e que muitas das suas tomadas de posição, em política por exemplo,
se devem à ambigüidade de sua posição de dominados entre os dominantes.
Lembro também que o fato de pertencerem ao campo intelectual implica em
interesses específicos, não somente em Paris mas também em Moscou, cargos
acadêmicos ou contratos editoriais, resenhas ou cargos universitários, e também
sinais de reconhecimento e gratificações freqüentemente imperceptíveis para
quem não pertence ao universo em questão, mas através das quais ocorrem todos

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os tipos de pressões e censura sutis.

P - E você acha que uma sociologia dos intelectuais lhes dá liberdade


em relação aos determinismos que lhes são impostos?
- Pelo menos ela dá a possibilidade de uma liberdade. Os que têm a ilusão
de dominar a sua época são em geral dominados por ela e, terrivelmente datados,
desaparecem com ela. A sociologia dá uma oportunidade de acabar com o
encantamento, de denunciar a relação de possuidor possuído, que aprisiona em
seu tempo os que estão sempre em dia, na moda. Há algo de patético na
docilidade com que os "intelectuais livres" se apressam em enviar seus artigos
sobre os assuntos impostos pelo momento, como atualmente é o caso do desejo,
do corpo ou da sedução. E nada é mais fúnebre do que ler, vinte anos depois,
estes exercícios obrigatórios de concursos reunidos, num perfeito conjunto, pelos
números especiais das grandes revistas "intelectuais".

P - Poderíamos retrucar que estes intelectuais têm ao menos o mérito


de viver de acordo com sua época...
- Sim, se viver de acordo com a época é se deixar levar pela corrente da
história intelectual, flutuar ao sabor das modas. Não, se a característica do
intelectual não é “saber o que deve ser pensado" sobre as coisas que a moda e
seus agentes designam como dignos de serem pensados, mas sim tentar
descobrir as coisas que a história e a lógica do campo intelectual lhe impõem que
pense, num certo momento, com a ilusão da liberdade. Nenhum outro intelectual
imerge mais na história, no presente, do que o sociólogo que exerce seu ofício (o
que, para os outros intelectuais, é o objeto de um interesse facultativo, exterior ao
trabalho profissional de filósofo, de filólogo ou de historiador, para o sociólogo é o
objeto principal, primordial, até mesmo exclusivo). Mas sua ambição é extrair do
presente as leis que permitam dominá-lo, livrar-se dele.

P - Em algum lugar, numa destas notas, você evoca que são como "o
Inferno" de seus textos, "os deslizes insensíveis que em menos de trinta
anos, fizeram com que de um estado do campo intelectual em que era tão
necessário ser comunista que nem era preciso ser marxista, se passasse a
um outro estado, em que ficou tão chique ser marxista que até mesmo se

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podia 'ler' Marx, para se chegar a um outro estado onde o último must da
moda é estar cansado de tudo e principalmente do marxismo".
- Isto não é uma fórmula polêmica, mas uma descrição estenográfica da
evolução de muito intelectuais franceses. Acho que ela resiste à crítica. E que é
boa para ser feita numa época em que os que se deixaram levar, como a limalha,
ao sabor das forças do campo intelectual, querem impor sua última conversão aos
que não os seguiram em suas sucessivas inconsciências. Não é agradável assistir
à prática do terrorismo em nome do anti-terrorismo, a caça às bruxas em nome do
liberalismo, pelos mesmos fulanos que em outra época, operavam com a mesma
convicção interessada para impor a ordem estalinista. Principalmente no mesmo
momento em que o Partido Comunista e seus intelectuais retornam a práticas e
propósitos dignos dos dias mais gloriosos do estanilismo, em direção ao
pensamento maquinal e à linguagem mecânica, produtos do aparelho e voltados
somente para a conservação do aparelho.

P - Mas esta lembrança dos determinismos sociais que pesam sobre


os intelectuais não leva a desqualificar os intelectuais e a desacreditar sua
produção?
- Acho que o intelectual tem o privilégio de se situar em condições que lhe
permitem trabalhar para conhecer suas determinações genéricas e especificas. E,
através disto, se liberar (pelo menos de forma parcial) e oferecer aos outros os
meios de liberação. A crítica aos intelectuais, se houver crítica, é o avesso de uma
exigência, de uma espera. Parece-me que é apenas à condição de conhecer e
dominar o que o determina, que o intelectual poderá cumprir a função liberadora
que a ele se atribui, freqüentemente de uma forma puramente usurpada. Os
intelectuais que se escandalizam diante da intenção de classificar este
inclassificável, mostram com isso como se afastam da consciência de sua verdade
e da liberdade que ela lhes poderia dar. Se o sociólogo tem algum privilégio, não é
o de ficar pairando acima daqueles aos quais ele classifica, mas de se saber
classificado e de saber mais ou menos onde se situa nas classificações. Aos que
pensam se vingar quando me perguntam os meus gostos em pintura ou em
música, respondo − e não como um jogo: os que correspondem ao meu lugar na
classificação. Inserir o sujeito da ciência na história e na sociedade, não é se
condenar ao relativismo; é colocar em discussão as condições de um

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conhecimento crítico dos limites do conhecimento que é a condição do verdadeiro
conhecimento.

P - É isto que o faz denunciar a usurpação da palavra pelos intelec-


tuais?
- De fato, é muito comum que os intelectuais se autorizem com a
competência (no sentido quase jurídico do termo) que lhes é reconhecida
socialmente, para falar com autoridade muito além dos limites de sua competência
técnica, particularmente no campo da política. Esta usurpação, que está na base
da ambição do intelectual à antiga, presente em todos os fronts do pensamento,
detentor de todas as respostas, é reencontrada sob outras aparências, no
apparatchik, ou no tecnocrata, que Diamat ou a ciência econômica invocam para
dominar.

P - Você poderia precisar isso?


- Os intelectuais se atribuem o direito usurpado de legislar sobre todas as
coisas, em nome de uma competência social que freqüentemente independe
inteiramente da competência técnica que ela parece garantir. Estou pensando
naquilo que a meu ver constitui uma das taras hereditárias da vida intelectual
francesa, o ensaísmo, enraizado tão profundamente em nossas instituições e
tradições que seria preciso horas para enumerar as condições sociais que o
tornaram possível (citarei apenas esta espécie de protecionismo cultural, ligada à
ignorância das línguas e tradições estrangeiras, que permite a sobrevivência de
empresas de produção cultural ultrapassadas; ou os costumes das turmas
preparatórias para as grandes escolas ou ainda as tradições das turmas de
filosofia). Aos que se contentam muito rapidamente, diria que os erros andam aos
pares e se sustentam mutuamente: ao ensaísmo daqueles que "dissertam de omni
re scibili, sobre qualquer coisa conhecível", respondem as dissertações "inchadas"
que, de um modo geral são as teses. Em suma, estamos falando do par
pedantismo e mundanismo, tese e besteira, que tornam as grandes obras
científicas muito improváveis e que, quando elas surgem, lhes dá a alternativa da
vulgarização semi-mundana ou do esquecimento.

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P - Em seu último artigo de Actes de Ia recherche, "Le mort saisit le
vif", o alvo é a Filosofia com letras maiúsculas...
- Sim. É uma das manifestações particularmente típicas desse modo de
pensamento altivo que comumente se identifica à grandeza teórica. Falar de
Aparelhos com A maiúsculo, de Estado ou Direito ou Escola, fazer dos Conceitos
os sujeitos da ação histórica, é evitar sujar as mãos na pesquisa empírica,
reduzindo a história a uma espécie de gigantomaquia onde o Estado enfrenta o
Proletariado ou, no limite, as Lutas, as modernas Erínias.

P - Você denuncia uma filosofia fantasmagórica da história. Mas suas


análises não esquecem a história, como às vezes lhe criticam?
- Na verdade, eu me esforço por mostrar que o que, por todos os cantos, se
chama de social é história. A história está inscrita nas coisas, isto é, nas
instituições (as máquinas, os instrumentos, o direito, as teorias científicas, etc.), e
também no corpo. Todo o meu esforço é no sentido de descobrir a história nos
lugares onde ela melhor se esconde, nos cérebros e nas dobras do corpo. O
inconsciente é história. E é assim, por exemplo, nas categorias de pensamento e
de percepção que espontaneamente aplicamos ao mundo social.

P - A análise sociológica é uma foto instantânea do encontro entre


essas duas histórias: a história feita coisa e a história feita corpo.
- Sim. Panofsky lembra que quando alguém tira seu chapéu para
cumprimentar, está reproduzindo, sem o saber, o gesto dos cavaleiros da Idade
Média, que tiravam seus capacetes para manifestar suas intenções pacíficas. Ao
longo do tempo, fazemos o mesmo. Quando a história feita coisa e a história feita
corpo se combinam de uma forma perfeita as regras do jogo e o sentido do jogo,
como, no caso do jogador de futebol, o ator faz exatamente o que ele tem que
fazer, "a única coisa a fazer", como se diz, sem nem mesmo precisar saber o que
faz. Nem autômato nem calculador racional, ele é um pouco como L'Orion Aveugle
se dirigeant vers de soleil levant, do quadro de Poussin, tão caro a Claude Simon.

P - O que significa que na base de sua sociologia há uma teoria


antropológica ou, mais simplesmente, uma certa imagem do homem?
- Sim. Esta teoria da prática, ou melhor, do sentido prático, se define antes

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de tudo contra toda filosofia do sujeito e do mundo como representação. Entre o
corpo socializado e os campos sociais, dois produtos que em geral são parte da
mesma história, estabelece-se uma cumplicidade infra-consciente, corporal. Mas
ela se define também por oposição ao behaviorismo. A ação não é uma resposta
cujos segredos estariam inteiramente no estímulo detonador. Ela tem como
princípio um sistema de disposições, que chamo de habitus, que é o produto de
toda a experiência biográfica (o que, como não existem duas histórias individuais
iguais, faz com que não existam dois habitus idênticos, embora haja classes de
experiências e, portanto, classes de habitus − os habitus de classes). Esses
habitus, espécies de programas (no sentido da informática) montados
historicamente estão, de uma certa maneira, na origem da eficácia dos estímulos
que os detonam, pois estes estímulos convencionais e condicionais só podem se
exercer sobre organismos dispostos a percebê-los.

P - Esta teoria se opõe à psicanálise?


- Aqui as coisas ficam muito mais complicadas. Diria apenas que a história
individual, naquilo que ela tem de mais singular, e na sua própria dimensão
sexual, é socialmente determinada. O que é muito bem expresso na fórmula de
Carl Schorske: "Freud esquece que Édipo era um rei". Mas se ele tem o direito de
lembrar ao psicanalista que a relação pai-filho é também uma relação de
sucessão, o próprio sociólogo não deve esquecer que a dimensão propriamente
psicológica da relação pai-filho pode ser um obstáculo a uma sucessão sem
história, na qual o herdeiro é de fato herdado pela herança.

P - Mas quando a história feita corpo está em perfeito acordo com a


história feita coisa, tem-se uma cumplicidade tácita dos dominados na
dominação...
- Às vezes algumas pessoas perguntam por que os dominados não são
mais revoltados. Basta levar em conta as condições sociais de produção dos
agentes e os efeitos duráveis que elas exercem registrando-se nas disposições,
para compreender que as pessoas que são o produto de condições sociais
revoltantes não são necessariamente tão revoltados quanto seriam se, sendo o
produto de condições sociais menos revoltantes (como a maior parte dos
intelectuais), fossem colocadas nessas posições. O que não quer dizer que eles

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não se tornem cúmplices do poder por uma espécie de trapaça, de mentira a si
mesmos. E depois, não se deve esquecer todas as defasagens entre a história
incorporada e a história reificada, todas as pessoas que, como se diz muito hoje,
não "estão numa boa", ou seja, não estão bem no emprego, na função que lhes é
atribuída. Estas pessoas deslocadas, marginalizadas por baixo ou por cima, são
pessoas que têm histórias, que freqüentemente fazem a história.

P - Você sempre diz que se ressente dessa situação de deslocamen-


to...
- Costuma-se dizer que as pessoas sociologicamente improváveis são
"impossíveis"... A maior parte das questões que coloco, e em primeiro lugar os
intelectuais, que têm tantas respostas e no fundo tão poucas perguntas, têm sem
dúvida suas raízes no sentimento de ser um estrangeiro no mundo intelectual.
Questiono esse mundo porque ele me coloca em questão, e de uma forma muito
profunda que vai bem além do simples sentimento da exclusão social: nunca me
sinto plenamente justificado em ser um intelectual, não me sinto “em casa", tenho
o sentimento de ter que prestar contas − a quem? não sei − do que me parece um
privilégio injustificável. Esta experiência, que creio reconhecer em muitos
estigmatizados sociais (por exemplo, em Kafka) não desperta a simpatia imediata
de todos aqueles que se sentem perfeitamente justificados em existir como
existem − e eles não são menos numerosos entre os intelectuais que entre outros
grupos. A mais elementar sociologia da sociologia atesta que as maiores
contribuições à ciência social são obras de homens que não estavam como peixes
n'água no mundo social tal como ele é.

P - Este sentimento de não estar "em casa" talvez explique a imagem


de pessimismo que freqüentemente se associa a você. Imagem da qual você
se defende...
- Eu também não gostaria que a única coisa que se encontrasse para
elogiar na minha obra fosse seu otimismo. Meu otimismo, se otimismo há, consiste
em pensar que é preciso tirar o melhor partido possível de toda a evolução
histórica que levou muitos intelectuais a um conservadorismo desabusado: quer
se trate desta espécie de lamentável fim da história do qual falam as "teorias da
convergência" (dos regimes "socialistas" e "capitalistas") e do "fim das ideologias"

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ou, mais próximo, dos jogos competitivos que dividem os partidos de esquerda,
mostrando que os interesses específicos dos "homens de aparelho" podem vir
antes dos interesses de seus mandantes. Quando não há mais grande coisa a
perder, principalmente quanto às ilusões, surge o momento de colocar todas as
questões Que durante muito tempo foram censuradas em nome de um otimismo
voluntarista, freqüentemente identificado com as disposições progressistas.
Também é o momento de voltar os olhos para o ponto cego de todas as filosofias
da história, isto é, o ponto de vista a partir do qual elas são tomadas; de interrogar,
por exemplo, como faz Marc Ferro em seu último livro sobre a Revolução Russa,
que interesses os intelectuais-dirigentes podem ter em certas formas de
"voluntarismo", próprios para justificar o "centralismo democrático", isto é, a
dominação dos permanentes e, mais amplamente, a tendência ao desvio burocrá-
tico do impulso subversivo inerente à lógica da representação e da delegação, etc.
"Quem aumenta sua ciência, dizia Descartes, aumenta a sua dor". E o
otimismo espontaneísta dos sociólogos da liberdade freqüentemente não é mais
que um efeito da ignorância. A ciência social destrói muitas imposturas, mas
também muitas ilusões. No entanto, duvido que exista alguma outra liberdade real
além daquela que torna possível o conhecimento da necessidade. A ciência social
não cumpriria mal sua função se pudesse se levantar ao mesmo tempo contra o
voluntarismo irresponsável e contra o cientismo fatalista: se pudesse contribuir um
pouquinho só para definir o utopismo racional, capaz de jogar com o
conhecimento do provável para fazer o possível acontecer. 2

In: BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero.
p. 54-62.

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Desenvolvimentos complementares sobre este tema poderão ser encontrados em: P. Bourdieu,
"Le mort saisit le vif, les relations entre I'histoire reifiée et I'histolre reifiée et I'histoire incorporée",
Actes de le recherche en sciences sociales, 32-33, abril - junho de 1980.

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