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BOURDIEU, Pierre - Como Liberar Os Intelectuais Livres
BOURDIEU, Pierre - Como Liberar Os Intelectuais Livres
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Entrevista a Didier Eribon. Le Monde Dimanche, 4 de maio de 1980.
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as associações de consumidores. Na realidade, o que está em jogo é o conjunto
das operações que permitem fazer uma maçã azeda passar por uma maçã de
qualidade e os produtos de marketing, do rewriting e da redação publicitária por
obras intelectuais.
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impostos a qualquer conhecimento teórico pelas condições sociais de sua
efetuação: se há uma coisa que os homens de lazer escolar têm dificuldade em
compreender, é a prática enquanto tal, mesmo a mais banal, quer se trate da
prática de um jogador de futebol, de uma mulher kabyle cumprindo um ritual ou de
uma família bearnesa que casa os seus filhos.
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os tipos de pressões e censura sutis.
P - Em algum lugar, numa destas notas, você evoca que são como "o
Inferno" de seus textos, "os deslizes insensíveis que em menos de trinta
anos, fizeram com que de um estado do campo intelectual em que era tão
necessário ser comunista que nem era preciso ser marxista, se passasse a
um outro estado, em que ficou tão chique ser marxista que até mesmo se
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podia 'ler' Marx, para se chegar a um outro estado onde o último must da
moda é estar cansado de tudo e principalmente do marxismo".
- Isto não é uma fórmula polêmica, mas uma descrição estenográfica da
evolução de muito intelectuais franceses. Acho que ela resiste à crítica. E que é
boa para ser feita numa época em que os que se deixaram levar, como a limalha,
ao sabor das forças do campo intelectual, querem impor sua última conversão aos
que não os seguiram em suas sucessivas inconsciências. Não é agradável assistir
à prática do terrorismo em nome do anti-terrorismo, a caça às bruxas em nome do
liberalismo, pelos mesmos fulanos que em outra época, operavam com a mesma
convicção interessada para impor a ordem estalinista. Principalmente no mesmo
momento em que o Partido Comunista e seus intelectuais retornam a práticas e
propósitos dignos dos dias mais gloriosos do estanilismo, em direção ao
pensamento maquinal e à linguagem mecânica, produtos do aparelho e voltados
somente para a conservação do aparelho.
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conhecimento crítico dos limites do conhecimento que é a condição do verdadeiro
conhecimento.
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P - Em seu último artigo de Actes de Ia recherche, "Le mort saisit le
vif", o alvo é a Filosofia com letras maiúsculas...
- Sim. É uma das manifestações particularmente típicas desse modo de
pensamento altivo que comumente se identifica à grandeza teórica. Falar de
Aparelhos com A maiúsculo, de Estado ou Direito ou Escola, fazer dos Conceitos
os sujeitos da ação histórica, é evitar sujar as mãos na pesquisa empírica,
reduzindo a história a uma espécie de gigantomaquia onde o Estado enfrenta o
Proletariado ou, no limite, as Lutas, as modernas Erínias.
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de tudo contra toda filosofia do sujeito e do mundo como representação. Entre o
corpo socializado e os campos sociais, dois produtos que em geral são parte da
mesma história, estabelece-se uma cumplicidade infra-consciente, corporal. Mas
ela se define também por oposição ao behaviorismo. A ação não é uma resposta
cujos segredos estariam inteiramente no estímulo detonador. Ela tem como
princípio um sistema de disposições, que chamo de habitus, que é o produto de
toda a experiência biográfica (o que, como não existem duas histórias individuais
iguais, faz com que não existam dois habitus idênticos, embora haja classes de
experiências e, portanto, classes de habitus − os habitus de classes). Esses
habitus, espécies de programas (no sentido da informática) montados
historicamente estão, de uma certa maneira, na origem da eficácia dos estímulos
que os detonam, pois estes estímulos convencionais e condicionais só podem se
exercer sobre organismos dispostos a percebê-los.
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não se tornem cúmplices do poder por uma espécie de trapaça, de mentira a si
mesmos. E depois, não se deve esquecer todas as defasagens entre a história
incorporada e a história reificada, todas as pessoas que, como se diz muito hoje,
não "estão numa boa", ou seja, não estão bem no emprego, na função que lhes é
atribuída. Estas pessoas deslocadas, marginalizadas por baixo ou por cima, são
pessoas que têm histórias, que freqüentemente fazem a história.
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ou, mais próximo, dos jogos competitivos que dividem os partidos de esquerda,
mostrando que os interesses específicos dos "homens de aparelho" podem vir
antes dos interesses de seus mandantes. Quando não há mais grande coisa a
perder, principalmente quanto às ilusões, surge o momento de colocar todas as
questões Que durante muito tempo foram censuradas em nome de um otimismo
voluntarista, freqüentemente identificado com as disposições progressistas.
Também é o momento de voltar os olhos para o ponto cego de todas as filosofias
da história, isto é, o ponto de vista a partir do qual elas são tomadas; de interrogar,
por exemplo, como faz Marc Ferro em seu último livro sobre a Revolução Russa,
que interesses os intelectuais-dirigentes podem ter em certas formas de
"voluntarismo", próprios para justificar o "centralismo democrático", isto é, a
dominação dos permanentes e, mais amplamente, a tendência ao desvio burocrá-
tico do impulso subversivo inerente à lógica da representação e da delegação, etc.
"Quem aumenta sua ciência, dizia Descartes, aumenta a sua dor". E o
otimismo espontaneísta dos sociólogos da liberdade freqüentemente não é mais
que um efeito da ignorância. A ciência social destrói muitas imposturas, mas
também muitas ilusões. No entanto, duvido que exista alguma outra liberdade real
além daquela que torna possível o conhecimento da necessidade. A ciência social
não cumpriria mal sua função se pudesse se levantar ao mesmo tempo contra o
voluntarismo irresponsável e contra o cientismo fatalista: se pudesse contribuir um
pouquinho só para definir o utopismo racional, capaz de jogar com o
conhecimento do provável para fazer o possível acontecer. 2
In: BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero.
p. 54-62.
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Desenvolvimentos complementares sobre este tema poderão ser encontrados em: P. Bourdieu,
"Le mort saisit le vif, les relations entre I'histoire reifiée et I'histolre reifiée et I'histoire incorporée",
Actes de le recherche en sciences sociales, 32-33, abril - junho de 1980.
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