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Atravessando fronteiras:

movimentos migratórios na história do Brasil

por Helenilda Cavalcanti e Isabel Guillen

Os movimentos migratórios perpassam a história do Brasil, trazendo em seu bojo conflitos de


alteridade. Como chama atenção a Bosi, a colonização não pode ser entendida como uma simples
corrente migratória: “Ela é a resolução de carências, de conflitos da matriz e uma tentativa de retomar,
sob novas condições, o domínio sobre a natureza e o semelhante que tem acompanhado
universalmente o chamado processo civilizatório” (Bosi, 1992:13). Contudo, esse processo é
configurado por um cenário de intolerância, ambição e morte, no que se refere aos contatos entre os
diferentes grupos sociais e étnicos que constituirão o mundo cultural e social brasileiro.

O colonizador – português –, ao invadir o território dos vários povos que aqui habitavam,
implantava um regime de posse e dominação, onde se tornou o senhor das terras e dos corpos,
impondo sua lei a ferro e fogo. A visão do invasor em relação aos habitantes do novo mundo não se
referia a um “eu”, mas a um “outro”, que era entendido como coisa de que ele poderia dispor ao seu
bel-prazer. Eram considerados como selvagens sem alma, não- humanos, ou de outra espécie, como
supunham alguns olhares europeus estudados por Todorov (1993). Com o advento da modernidade –
que carrega consigo os princípios de igualdade e liberdade –, ao colonizado é destinado o lugar do
outro mais humanizado, portanto, aquele que deve ser arrancado da natureza, do regime das
necessidades para ascender ao patamar da cultura. Mas essa condição de aculturado é também a
condição daquele que foi privado de sua cultura, uma alma penada. Este é o pecado original da
colonização, ou seja, a desqualificação da cultura do outro.

Nosso objetivo é traçar um quadro histórico dos movimentos migratórios no Brasil, não
exclusivamente do ponto de vista da colonização e do povoamento, mas levando em consideração o
significado da migração para os sujeitos que migram, salientando que nesse ato há uma reconstrução
de diversas práticas culturais e identitárias, nas quais a questão da alteridade é crucial. Nosso
entendimento prima por demonstrar que esse processo foi marcado por conflitos e rupturas, nos quais
novas resignificações culturais ocorrem. Acima de tudo, a História do Brasil é uma história recoberta de
diversidades e clivagens. Nesse desafio de ressignificar essa experiência, convidamos o leitor à
questionar a concepção de história como uma única via dentro da qual se constrói a unidade nacional.

I - A diáspora de índios e negros na colonização

No projeto de colonização, na busca de domínio e de conquista da nova terra e de


agenciamento de capital humano e simbólico, observa-se uma diversidade de situações nas quais o
fenômeno migratório se inscreve produzindo diferentes tipos de rupturas e contradições. Enfatizamos
que não se pode encerrar a discussão apenas nos seus aspectos econômicos. É preciso também
entender que o curso da colonização torna obrigatório para os sujeitos a formação de uma nova cultura
e identidade, na qual contornos e impressões culturais antigas devem ser apagados, com o propósito
de povoar e fixar o homem à terra.

O ato de subjugar os índios, expulsando-os e dispersando-os de seu território, a importação do


negro africano para o trabalho cativo, igualmente a fuga em direção a regiões mais interioranas, o
movimento de ocupação do sertão com a criação de gado e com a busca frenética por ouro, fazem os
recortes da ocupação territorial, marcando os deslocamentos de populações, desde os primórdios do
Descobrimento, com reflexos até os dias atuais.

Sérgio Buarque de Holanda lembra que os portugueses, preocupados em assegurar alguns


povoamentos, como os situados entre a baía de Todos os Santos e a baía do Rio de Janeiro, forçaram
migrações de índios da costa para que servissem de defesa contra os ataques dos outros gentios
( Holanda, 1993, pág. 72). Mas não podemos generalizar os movimentos migratórios dos grupos
indígenas exclusivamente como uma reação à presença do colonizador.

Do mesmo modo que o europeu buscava no novo mundo o Paraíso terreste, e via nestas terras
a imagem do Éden, os Tupi-Guarani estavam em deslocamento e andavam em busca de sua Terra
sem Mal (Holanda, 1969; Clastres, 1978). Essa aventura coletiva dos Tupi-Guarani, que significava
uma longa ascese, pois não eram movidos for forças econômicas, em geral não foi entendida pelos
cronistas que a descreveram, como Claude d´Abbeville, marcando os descompassos culturais dos
(des) encontros com o colonizador, e construindo um “cenário altamente conflitivo de
humanidades”(Martins, 1997).

Aqui o que nos interessa salientar é a diáspora dos homens por essas lonjuras adentro.
Perseguidos e acusados de cometer atrocidades e de praticar o canibalismo, alguns grupos indígenas
haviam desaparecido já em fins do século XVI. Os Tupinambá, do grupo Tupi-Guarani, que
originalmente ocupavam os Estados da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, passam a ser vistos no
norte do Brasil, hoje o atual estado do Maranhão. A dispersão dos Tupinambá vem confirmar o
processo de ruptura que deu origem à formação do povoamento do território brasileiro, por meio do
qual outras reterritorialidades foram iniciadas, com mudanças de natureza e conexões indefinidas.

Lembramos ainda, nesse sentido, a migração forçada dos negros africanos. Escravizados,
arrancados do continente africano para atender ao projeto prático da colonização do novo mundo, os
negros vivem intensamente essa ruptura. A história da escravidão negra no Brasil não se construiu
sem conflitos, soluções de compromisso, avanços e recuos. Em sua complexidade, não pode ser
entendida linearmente, pois em muitos momentos a própria noção de “liberdade” era um alvo em
constante movimento. Pensamos nos inúmeros quilombos que ocuparam os sertões, cidades,
engenhos, fazendas, garimpos, florestas. Na história dos quilombos, não há regras e modelos; ao
contrário, torna-se patente a diversidade dos modos como essas soluções para a fuga da escravidão
foram inventadas e experimentadas pelos próprios sujeitos ao se confrontarem com as especificidades
do momento histórico e do lugar(Reis e Gomes, 1996).

A diáspora negra é, sem dúvida, um desenraizamento forçado pela escravidão. A convivência


entre senhores e escravos não se deu sem muitos conflitos. Há quem sustente que essa convivência
tenha produzido uma cultura largamente compartilhada por ambos, a exemplo de Gilberto Freyre
(1985). Há outros que enfatizam a formação de uma cultura subalterna entre os escravos e seus
descendentes, que teria como base a cultura originária africana ( Carneiro, 1958; Ramos, 1942). Ou,
pelo menos, de reinterpretações africanas dos signos de origem européia com os quais tinham que
conviver no mundo da escravidão colonial. Se, de um lado, a primeira posição nos lembra a
capacidade humana de compartilhar culturas e de trocar signos, a outra aponta para os traços
subterrâneos da cultura originária do grupo migrante, com profundos vestígios visíveis em seus
descendentes. Mas, nesse novo território, essas sobrevivências culturais não são mais as mesmas,
pois refletem outros contextos históricos. É nesse quadro que podemos entender como os escravos
vão definir suas estratégias culturais e identitárias diante da escravidão.

A cultura que se desenvolve no novo solo era complexa, extravasando as


compartimentalizações das teorias sociais. Não só pela diversidade das culturas originárias trazidas
pela imigração daqueles que vinham de outros locais, mas também por que aqui surgiram outras,
advindas dessas culturas originárias em conflito. A história do Brasil é a história de gente
desenraizada, em constante movimento de encontros e desencontros dos quais se tem como resultado
não uma cultura ou identidade nacional - a unidade nacional em termos culturais e identitários é uma
fantasia, é algo imaginário -, mas multiplas identidades, nas quais a diferença emerge com traços de
ambigüidade e incerteza.

II - A busca de controle sobre os movimentos populacionais no século XIX

Durante o século XIX, houve um aumento da população dos homens livres pobres,
caracterizada pelo constante movimento em direção ao interior do país. Podemos remontar sua origem
ao período colonial, na busca do ouro nos séculos XVII e XVIII, bem como no alastrar das fazendas de
criação de gado e pequenas agriculturas de subsistência pelo sertão. Movimentos que se
intensificaram, à medida que as bases econômicas no século XIX se diversificaram com a produção do
café, cacau, algodão e borracha, propiciando a constituição de novas fronteiras agrícolas, fontes de
novas riquezas. É importante considerarmos, para entendermos o movimento que adentrava pelo
interior, o modo de vida “típico” das populações rurais, que viviam de uma agricultura itinerante e do
extrativismo como alternativa econômica. Esses homens livres pobres formavam pelo sertão uma
espécie de fronteira móvel, que estava recoberta por um imaginário de liberdade, representada na
literatura nacional com farta recorrência, ainda que grandemente idealizada no que concerne à
descrição de uma vida auto-suficiente nas grandes fazendas. Ao mesmo tempo, o modo de vida das
populações interiorinas era criticado pela elite intelectual que neles via um dos óbices para o progresso
do país. Monteiro Lobato, ao construir o personagem Jeca Tatu nas primeiras décadas do século XX, é
um exemplo emblemático dessa crítica, à qual se soma a figura do jagunço e do fanático religioso.

Para a itinerância das populações rurais, poderíamos, portanto, apontar as mais variadas
razões: esgotamento da terra, fuga do recrutamento, secas e flagelos naturais, recusa a se inserir num
esquema de dominação política, etc. Essas razões apontam para a luta pela elementar sobrevivência,
bem como a busca de sonhos e de uma vida livre dos mandonismos locais.

Simultaneamente ao crescimento populacional dos homens livres pobres, as elites governantes


enfrentavam o problema da abolição da escravidão, sendo evidente a necessidade de uma solução
para o problema da mão-de-obra. No entanto, havia uma série de restrições à utilização desse
segmento social, por serem considerados indolentes, indisciplinados, propensos à vadiagem e
refratários ao trabalho organizado. No bojo desses acontecimentos, o governo brasileiro define duas
estratégias para solucionar o problema da mão-de-obra.

A Lei de Terras de 1850, que transferia as terras devolutas para o controle dos Estados,
impedia a abertura de novas posses e estabelecia que novas propriedades da terra só se formariam
mediante compra. Segundo Martins, a Lei de Terras transformava as terras devolutas em monopólio
do Estado que, por sua vez, era controlado por uma forte classe de fazendeiros. Dessa forma, para ter
acesso à terra, era necessário que os homens pobres livres disponibilizassem sua força de trabalho
para o grande fazendeiro. Ao mesmo tempo em que se abolia o cativeiro dos homens, iniciava-se o
cativeiro da terra (Martins, 1979).

Mediante os problemas que a inserção dos trabalhadores nacionais traziam para o mercado de
trabalho, principalmente no que diz respeito à produtividade dessa mão-de-obra, os grandes
fazendeiros optaram pela imigração em massa de um contingente livre e liberto de estrangeiros. Esses
imigrantes, em sua variedade de povos vindos das regiões mais diversas da Europa, assolados pela
pobreza, pela desapropriação material e cultural, vêm para o Brasil não só na aventura de “fazer” a
América, como largamente se propaga. O movimento imigratório de modo mais amplo pode ser
entendido como “uma forma de resistência às duras condições de vida impostas pela penetração do
capitalismo no campo... ”, conforme a observação de Alvin para a migração italiana (Alvin, 1986, pág.
18), o que significa, portanto, que eles não foram submissos às condições de trabalho impostas no
Brasil, nem que se colocaram no mercado de forma passiva. Para os objetivos deste trabalho, importa
destacar que a condição de desenraizamento, implícita no movimento migratório, faz-se novamente
presente na nossa história, marcando, num certo sentido, os descompassos da nossa formação.

As estratégias acima apontadas, a Lei de Terras de 1850 e o incentivo à imigração, que


possibilitaram a abolição da escravidão e a transição para o trabalho livre nos moldes planejados pela
elite, foram arquitetadas para exercer o controle sobre a população. Concomitantemente, a elite
governante define estratégias para exercer o controle sobre o segmento dos homens pobres livres, no
sentido de discipliná-los, conquistá-los para uma vida ordeira e laboriosa. A população se constituiu,
dessa forma, num campo de intervenção e de saber, quando se projetou, no horizonte dessa elite, o
fim da escravidão, ou seja, quando o problema da mão-de-obra passou a ser um dado da economia
política e não mais da “economia doméstica”.

Já a partir da Lei de Terras de 1850, os movimentos populacionais ganharam visibilidade. Em


fins do século XIX, o fluxo de migração interna se intensifica, principalmente na região do Nordeste,
demonstrando a necessidade de intervenção do Estado. À medida que a própria lei buscava
indisponibilizar as terras devolutas no sentido de resguardar mão-de-obra livre para o trabalho
assalariado, desestruturava a economia de subsistência camponesa. Entre várias outras razões que
explicam essa desestruturação mencionamos a valorização monetária das propriedades, decorrente
da Lei de Terras, que propiciou o desenvolvimento comercial de algumas culturas, como a do café e a
do algodão, razões que apontam para um fechamento das terras livres, impondo limitações à
reprodução da condição de homens pobres livres.

É nessa confluência histórica que o constante e tradicional movimento das populações pelo
sertão se tornou o alvo dos dispositivos de segurança, ou seja, os movimentos da população se
transformavam num problema, cuja solução não mais passaria por medidas assistenciais, como
ocorria nos anos de grandes secas, mas apontavam para a necessidade de elaborar estratégias de
controle e sujeição. As relações com o controle da população são mais do que evidentes, e a
historiografia sobre os trabalhadores pobres livres bastante abundante, mostrando que se trata de um
problema já pensado, na verdade, pensado pelos próprios agentes sociais do século XIX, que
buscavam no espaço social a governamentabilidade da população.

Vale salientar que, em quase todos esses movimentos nos quais a população nordestina
esteve presente, ela foi induzida a “arribar” de suas terras e local de origem em troca de trabalho e
melhoria de vida. Estudos comprovam que muitos desses indivíduos, que se valeram de seu espírito
de aventura e coragem, ficaram reduzidos ao esquecimento e ao abandono dos serviços de
assistência a eles prometidos.

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