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‘FÊMEAS’ NEGRAS: CONSTRUÇÕES DE ALTERIDADE FEMININA NAS FOTOGRAFIAS

OITOCENTISTAS BRASILIERAS. (Black Females: female otherness constructions in


19th century Brazilian photography).

VALENTIM, Danielle Rodrigues de Souza1.

RESUMO/ ABSTRACT: Tendo como referência os temas representação, etnicidade e


gênero, fotografias produzidas no Brasil do século XIX são aqui interpretadas como
complexos discursivos, subordinados às estruturas de poder e dominação européias. A
proposta deste paper é, pois, a partir das fotografias de escravas (africanas e afro-
brasileiras) orinundas da primeira metade do século XIX, analisar as estratégias de
produção cultural do sujeito branco-europeu na construção de gênero e de identidades etno-
raciais durante a expansão territorial européia em continente americano.

With reference to the themes of representation, ethnicity and gender, photography produced
in Brazil in the 19th century is here interpreted as discursive complexes, which are subject to
power structure and the European domination. The purpose of this work is therefore, based
on the photographs of slaves (African and Afro-Brazilian) from the first half of the 19th
century, analyze the strategies of cultural production of the white European subject in the
construction of gender and ethno-racial identities during the European territorial expansion in
the American continent.

PALAVRAS-CHAVE/ KEYWORDS: representação (representation); etnicidade (ethnicity);


identidade (identity); gênero (Gender).

INTRODUÇÃO

As representações visuais das mulheres negras na cultura de massa vêm, desde a


sua origem, atreladas à reprodução dos valores e estereótipos vinculados aos interesses
hegemônicos europeus. Durante o século XIX essas representações atendiam às demandas
culturais da época, cujas regras eram pautadas por teorias racistas2 desenvolvidas na
Europa e na América do Norte. Através da contemplação das fotografias do referido período,
nota-se que tais teorias encontraram um forte pilar de sustentação na produção fotográfica,
pois foi através das fotografias antropológicas e etnográficas que as teorias racistas
propagaram seus ideais pseudo-científicos de uma hierarquia das raças (onde a raça negra
é inferior à branca).

1
Graduada em Com. Social – Radialismo e Televisão pela UFPE. Mestre em Ciências das Artes e
dos Meios de Comunicação pela Universidade Carl von Ossietzky Oldenburg, Alemanha.
2
O termo teorias racistas refere-se às “práticas de visualização” (EDWARDS, 2003, p. 335) das
pesquisas da antropologia e/ou da etnografia realizadas durante o século XIX. Nesse contexto a
fotografia foi utilizada no processo de legitimação destas teorias raciais como instrumento científico.
Cf. EDWARDS, Elizabeth, 2003, p.335 et. seq.
Assim pode-se afirmar que o olhar sobre negras e negros durante o século XIX era marcado
por uma “curiosidade antropológia” (PESSANHA, 1992, p. 44) que se insere nos propósitos
europeus de exotização da realidade local construindo personagens de marcada alteridade
exótica. Fator que distancia as representações da imagem do(a) negro(a) de um caráter
realista ou documental, ao passo que atua como uma construção social e exemplifica a
‘urgência’ das ciências antropológicas e etnográficas bem como a curiosidade dos
europeus3 em terras distantes.
As imagens produzidas pelos europeus além de seguirem rigidamente as
convenções dos gêneros fotográficos desenvolvidos na Europa do século XIX, promovem
um certo “exotismo”4 dos seres retratados, ou seja, essas imagens apresentam uma
realidade imaginada pelos artistas europeus. As relações de alteridade se somam à tal
construção para criar um(a) personagem negro ou negra atemporal que habita a imaginação
européia oitocentista.

METODOLOGIA

A pesquisa teórica qualitativa demandou um prévio levantamento bibliográfico acerca das


imagens fotográficas das mulheres negras (africanas e afro-brasileiras) produzidas no Brasil
durante o século XIX, capaz de situá-las em seus contextos históricos, políticos e
geopolíticos. Para isto, considerou alguns fatores. O primeiro é a delimitação temporal, já
que tem como pressuposto a idéia de que a escolha dessas imagens delimita-se ao período
colonial, ou seja, às primeiras imagens de mulheres negras feitas por fotógrafos europeus
(na primeira metade do século XIX), com o objetivo de enviar à Europa imagens dos
Trópicos. Por isso trabalhou-se com os retratos em plano médio curto, primeiro e
primeiríssimo planos, uma vez que é mais nítida a encenação da imagem da mulher negra
criada pelo sujeito hegemônico branco no momento de produção das imagens, enquanto
que através dos retratos em planos médio e geral se percebe um caráter documental do

3
Na primeira metade do século XIX foram muitos os europeus, sobretudo franceses e alemães, que
abandonaram as confortáveis certezas do cotidiano de sua terra natal e se instalaram no Brasil. Seja
através das expedições científicas ou através do incentivo cultural de personalidades da polítca, como
D. Pedro II, por exemplo, que esses artístas europeus se estabeleceram no Brasil. Eles se dedicaram
à produção das primeiras imagens do país e de seus habitantes que seriam vendidas no mercado
europeu, afim de que o ‘velho continente’ pudesse tomar conhecimento sobre a vida ‘abaixo do
Equador’.
4
Segundo Ricón a definição do conceito “exótico/exotismo” é a seguinte: “O exotismo situa-se desde
meados do século XIX como um dos conceitos das áreas de produção e representação estéticas,
pois além de conceituar os contextos culturais da história européia, tal conceito representa ao mesmo
tempo um sinal de contrariedade a pontos de vistas e experiências pré-existentes. Suas referências
fundamentais remetem ao Romantismo liberal através das condições culturais que se baseiam em
formas intensas e emocionais de percepção, assim como na formação da idéia do desconhecido e
misterioso Mundo ‘não-europeu’, ‘não-moderno’; assim como remete às representações culturais,
geradoras de emoções semelhantes nos consumidores de cultura. RINCÓN, Carlos. 2001. p. 338-
366.Traduzido do texto em alemão.
cotidiano das escravas, as quais foram retratadas exercendo suas atividades laborais.
Tendo em vista a preocupação em examinar a construção da alteridade feminina, a escolha
pelos planos mais fechados se fez evidentemente necessária.
A seleção das fotografias levou em conta ainda as citações dos títulos em
publicações de referência do gênero (Fotografia Oitocentista), a menção em livros
extrangeiros e/ou em jornais do período estudado que serviram à definição de uma
dimensão panorâmica deste contexto editorial. A partir daí, uma seleção específica para fins
de análise, que considera a representatividade (temática, regional e política) definiu o corpus
submetido à análise teórica.
A revisão bibliográfica do campo teórico de análise foi orientada pelo marco
conceitual apresentado neste artigo, que parte dos estudos culturais, estudos de gênero,
bem como da recente literatura acadêmica sobre fotografias brasileiras oitocentistas.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A representação das mulheres escravas como um objeto do desejo revela que


muitos dos retratos oitocentistas expõem a sexualidade da mulher fotografada. A
preocupação em examinar com qual finalidade essas fotos foram produzidas, assim como
quais efeitos elas produzem no observador/consumidor de imagens é um dos principais
pontos deste artigo.

A historiadora alemã Katja Wolf analisou as representações da sexualidade feminina


na pintura nos séculos XVIII e XIX cujo foco estava voltado para a temática das senhoras
brancas e das serviçais negras. Wolf sugere algumas possíveis interpretações que podem
ser aplicadas à análise das representações de mulheres negras nas fotografias oitocentistas
brasileiras. A primeira observação da autora, fator já mencionado, é o fato de que a
representação da mulher negra se dá por meio de uma imagem criada pelo desejo
masculino. Além disso, os retratos (sejam eles pinturas ou fotografias) podem ser
interpretados como uma indicação histórica quanto à realidade social da vida sexual
feminina. Os contos eróticos e a “literatura galante” (BAKE/KIUPELS, 1996, p. 94)
fundamentam a tese de Wolf, como explicam Rita Bake e Birgit Kiupels:

““Todas as noções do sensual ‘século do galantismo’, como os muitos


tratados sobre a história da erotização tentam nos fazer acreditar, podem
ser apreciadas com certo ceticismo. [...] O que as mulheres realmente
sentiam pelos cidadãos e/ou aristocratas, permanece em segredo"
5
(Bake/Kiupels, 1996, p. 94 et. seq.) .

5
WOLF, Katja, 2004, op.cit., p. 31.
Assim como a literatura foi um campo de projeção da fantasia masculina, a pintura e
a fotografia foram utilizadas com a mesma finalidade. Uma outra possível interpretação é
que tais representações visuais das mulheres desenvolveram um “conceito de feminilidade”
(WOLF, 2004, p. 31) que relaciona a sexualidade como parte da existência feminina. Um
conceito construído através da “determinação” (BHABHA, 2011, p.97) do discurso colonial.

Segundo Bhabha a construção do sujeito colonial se dá através de uma “articulação”


das formas de uma “diferença” étnico-sexual. O autor afirma que “o corpo sempre está
subordinado às normas de um discurso economico de poder e dominação” (BHABHA, 2011,
p.99), desmonstrando assim, que a ligação entre os fatores étnicos e sexuais promove uma
forma específica de diferenciação causadora de uma repercussão estratégica. Esta, por sua
vez, sugere uma idéia de diversidade étnico-cultural, ou seja, o discurso de raça e
sexualidade (no contexto colonial) se situa num processo de “sobredeterminação funcional”
(BHABHA, 2011, p.109), onde os sujeitos coloniais são vistos como “esteótipos étnicos”
produzidos através do discurso colonial, ou seja, como uma forma de voyerismo e
fetischismo por parte dos colonizadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As representações das escravas em geral podem ser vistas como o resultado de


uma necessidade do sujeito branco-europeu pelo “exótico”. A já mencionada tradição
sexualizada de representação feminina constitui uma fantasia européia oriunda do período
colonial. Nesse contexto criou-se uma ligação entre cor negra e sexualidade para formar
uma imagem “exótica” das escravas africanas despertando “a fascinação por esse tipo de
mulher de natureza animal, sexual, lânguida” (FRIEDLANDER, 2001, p. 125).
A representação feminina que atenta para o corpo foi uma constante na produção de
imagens de mulheres negras dos fotógrafos oitocentistas. É comum observar-se nas
fotografias de escravas uma certa tensão erótica, produzida através do arranjo e disposição
das roupas delas, onde o corpo feminino, diferentemente da representação da mulher
branca, está parcialmente à mostra. A disposição da vestimenta aliada aos elementos da
beleza clássica e o “exótico” do fenótipo negro, reforçam o ideal de fêmea negra. Esse tipo
de representação é atribuída à imagem das escravas “o papel de fonte de atração e objeto
de desejo” (WOLF, 2004, p. 29) masculino. A escrava é vista como uma mulher que irradia
sexualidade. Sendo assim, pode-se afirmar que as roupas das escravas africanas nos dão
indícios da forte “sensualidade da cor negra” (WOLF, 2004, p. 29), uma vez que a
associação da cor de pele escura com prazer, divertimento, etc. era uma constante nesse
período.
REFERÊNCIAS

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