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VOL.

6 | nº 6
Apoio Realização
Julho de 2019
Suplemento Gratuito
ISSN 2596-1373
04 08 17
ARTIGO CRISTALEIRA RADIADORA
FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA

João Dummar Neto


presidência

André Avelino de Azevedo


Eudismar Mendes direção administrativo-financeira
Nilto Maciel: a herança de Um brinde à
Lisiane Forte Raymundo Netto
um contista inclassificável cidade e ao país
Luciano Bonfim gerente editorial e de projetos
Araceli Sobreira Benevides de Airton Monte
Magna Maricelle Emanuela Fernandes
O Amor de um bom Amigo Ana Karla Dubiella
Tainá Aquino análise de projetos
Tércia Montenegro Bôscoly Morais
Rinaldo de Fernandes MARACAJÁ

10 11
Kelson Oliveira
Raymundo Netto
Argentina Castro
curadoria, pesquisa e edição geral
Antônio Beethoven
Emanuela Fernandes
Hermínia Lima
assistência editorial
Fernanda Quinderé
GENTE ILUSTRADA Araceli Sobreira Benevides, Tércia
FLORES DE Lourdinha Leite Barbosa
Montenegro, Ana Karla Dubiella, Walber
Walber Feijó Diogo Fontenelle
AÇUCENA Feijó e Raymundo Netto colaboraram nesta
Mônica Silveira edição com textos e quadrinhos (exceto os da
Trevas do Dia seção “Radiadora”)
Cícero Almeida
Rogaciano Leite Filho Fernando França
Anielly Aquino
A Morte do ilustrações
Joan Edesson de Oliveira
Jangadeiro Cândido Rolim Amaurício Cortez
editor de design
Pe. Antônio Tomaz Carlos Gildemar Pontes
Deive Maria Agostinho Giselle Fernandes
Verde projeto gráfico
Cândido B.C. Neto
Júlio Maciel
Elton Danana Amaurício Cortez
As Doces Meninas William Lial editoração eletrônica
de Outrora Cid Carvalho Karlson Gracie
Horácio Dídimo Franklin Viana tipografia Maracajá
Flávio San revistamaracaja@gmail.com
Majela Colares contato
Marly Vasconcelos Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução
sem autorização prévia e escrita. Todas as
informações e opiniões são de responsabilidade dos

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respectivos autores, não refletindo a opinião deste
suplemento ou de seus editores.

Este suplemento literário mensal é parte integrante


do Projeto Maracajá: Vida & Arte, em decorrência do
Contrato de Patrocínio celebrado entre a Fundação
Demócrito Rocha e a Assembleia Legislativa do
TIRAGOSTOS
Estado do Ceará, sob o nº 69/2018.
Os FitoManos
ISSN 2596-1373
Raymundo Netto

Artista da Capa
Fernando França
Todos os direitos desta edição reservados à:

Para ler todas as edições da


revista Maracajá
e assistir a todas as suas
videoentrevistas, acesse:
Fundação Demócrito Rocha

fdr.org.br/ Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora


Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará

maracaja Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271


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Do Alpendre

“A arte é um doce veneno, meu amigo,


que somente os eleitos provarão.”
Filgueiras Lima
(“Canção dos que sofrem”) Q uando de minha passagem pela Coordenadoria de
Políticas de Livros e de Acervo da Secretaria da
Cultura do Estado do Ceará (2008-2011), deram-me
a responsabilidade — entre tantas outras ditadas
pela falta de pessoal e/ou de interesse — de selecio-
nar, editar e publicar títulos de autores cearenses. Havia recursos para a diagrama-
ção e impressão. Para pesquisa, edição, seleção de imagens, elaboração dos elementos
pré-textuais, revisão, ilustração, criação de projeto gráfico e capas... não!
Como sou ruim de dizer "não posso" ou "não consigo", encarei o desafio, me virei
como pude (e não podia) e lançamos mais de 100 títulos apenas em nossas coleções,
não contando com o número de obras acolhidas por editais e aqueles 110 elencados
pelo Prêmio Literário para Autor(a) Cearense, o primeiro a premiar os nossos autores
pela sua criação, coisa que só aconteceu no Ceará desta vez e nunca mais, assim como
após a minha saída da Secult o fôlego de publicações desapareceu completamente.
Dessa leva, descobrimos que boa parte das obras literárias em nosso estado,
mesmo aquelas que são consideradas marcos de nossa literatura, nunca tiveram
uma segunda edição. E que, mesmo essas, foram produzidas em tiragens muito res-
tritas, de 300 a 500 exemplares, o que as invisibiliza, não permitindo o seu acesso
para análises, estudo, pesquisa ou mesmo para a simples e necessária fruição.
Daí, essa revista Maracajá ser um oásis de um deserto sem profeta. Durante
as 6 edições impressas e distribuídas e as respectivas videoentrevistas exclusivas
produzidas e veiculadas com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza
(SecultFOR) e da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, nós tivemos a oportuni-
dade de trazer luz a alguns de nossos autores injustamente esquecidos (são muitos ou
quase todos) e de apresentar ao mundo internético cerca de 140 autores vivíssimos
(gostaríamos de ter sido mais), de todas as tabas alencarinas, entre poetas, contis-
tas, ensaístas, ilustradores e quadrinistas, sendo para alguns desses a sua primeira
publicação. E com que alegria recebemos todos os meses, encartado em jornal – a
contramão mundial — um suplemento literário novinho em folha, “Meidin Ceará”.
Agradecendo a todos os leitores e também a todos os colaboradores (autores,
divulgadores e pontos de distribuição) e parceiros, encerramos o primeiro ciclo de
edição da Maracajá. Os 90 anos se foram, mas acreditamos em um amanhã — um
breve e ultraidílico outro dia — no qual sorriremos novidades.
Vida longa ao que vale ser vivido!

Raymundo Netto
Curador e editor do (sonho) Maracajá

3
Artigo

Nilto
Maciel:
a herança de
um contista
inclassificável
D
esde a publicação de seu
foto: acervo Raymundo Netto

primeiro livro de contos,


Itinerários (1974), Nilto
Maciel é um privilegiado
contista. Produtor de his-
tórias por 40 anos, a narrativa curta é a sua especialidade. As
gerações atuais necessitam conhecer a obra de desse incan-
sável escritor, cuja herança ficcional não pode ficar apenas ao
círculo de amizade de escritores. Os leitores jovens, leitores
estudantes do ensino básico, o público em geral não conhece
sua obra detalhadamente, muito menos a plasticidade de seus
contos. Isso é uma generalização, concordo, contudo, cabe a
leitores mais experientes a tarefa de se levar o mundo de Nilto
Maciel aos jovens.
O desenho de suas histórias, a narrativa linear e sintética
e o humor dão vida a personagens comuns e incomuns. Alguns
possíveis de serem encontrados bem ali na praça do Ferreira,
enquanto outros são seres tirados de um mundo infinito,
fantástico, avesso a classificações. A estética característica de
sua linguagem dá ao autor uma fina percepção das possíveis
realidades narradas por contistas brasileiros dos anos de 1970

4
Artigo
a 1980, como Murilo Rubião, Moacyr Scliar, J.J. reconstituem a vida simples, memoria-

Misturando um saber clássico e uma


criatividade provocadora, esse cearense
de Baturité precisa sair dos muros de um
mundo fechado e entrar na vida
Veiga e o próprio Drummond. lística, às vezes, no limiar, como é caso
Nilto Maciel produziu sem descanso. Cuidava do “Primeiro Homúnculo” e de “Um
dos detalhes de cada cena, fosse ela a mais simples Coveiro Monstruoso”, ambos em Contos
cena de um incêndio em uma fábrica de descaro- Reunidos. Por isso afirmo ser o seu esti-
çar algodão (ler “Incêndio”, em Contos Reunidos) lo inclassificável. Não cabe em uma cai-
a uma história sobre o fim/começo do mundo xinha de características essencialistas.
como se vê no inusitado “O Mundo Estaliano”. Ao contrário, o acontecimento de sua
Esse conto provoca no leitor um efeito singular palavra literária é amplo e dialógico, no
quando o personagem central, um tirano contro- sentido bakhtiniano do termo.
lador e vigilante das ações humanas, procura uma Misturando um saber clássico e
nova saída para seu dilema de não dar conta do uma criatividade provocadora, esse
engendrado sistema social criado para proibir o cearense de Baturité precisa sair dos
nascimento de novas gerações até chegar à total muros de um mundo fechado e entrar
destruição do agir reprodutivo. Algo sempre lhe na vida, no diálogo cotidiano do novo
escapa: o amor sobrevive e gera o grande confli- público presente nos espaços cultu-
to que também encontramos em 1984, de George rais e educacionais que formam leitor
Orwell; com uma singela diferença: a densidade de literatura.
provocada pelas proibições e vigilância na socie-
dade estaliana é exposta em três páginas apenas! Araceli Sobreira Benevides
Peripécias de Nilto Maciel. aracelisobreira@yahoo.com.br
Em Luz Vermelha que se Azula, o mérito maior Escritora que vive em terras potiguares.
de sua prosa repousa-se na inserção de persona- Professora de Literatura. Estudiosa da
gens históricos (Hitler, Jesus, Freud, entre outros) Análise Dialógica do Discurso.
em seus cotidianos, como mesquinhos, individua-
listas, insaciáveis. As histórias ficam contempora-
neamente mais curtas, baseadas em uma ou duas
Para conhecer mais sobre
cenas, e isso é uma tendência estilística muito ca-
Nilto Maciel e a sua produção
tivante, principalmente para a formação de novos
Indicamos a leitura do blog
leitores de literatura.
“Literatura sem Fronteiras”, criado
Outro caminho que o contista Maciel revisi-
pelo próprio autor:
ta é o de inserir temáticas vindas dos fatos histó-
literaturasemfronteiras.
ricos e científicos da humanidade, desenvolvendo blogspot.com
personagens fantásticos, misteriosos, cujos papéis

5
Artigo
foto: acervo Raymundo Netto

O Amor de um
Tércia Montenegro,
Ana Miranda, Pedro Salgueiro e
Caio Porfírio Carneiro bom Amigo
M
inha memória entra em loop sempre que desejo:
volto àquela noite na livraria Café com Letras, onde
havia algum evento — um sarau, lançamento? Não
lembro mais — e no meio do barulho escuto alguém
chamar “Pedro Salgueiro!” Olhei na direção de onde
vinha a voz; fui lá, rompendo a timidez dos meus 17 anos, e me apresentei. Pouco
tempo depois, saía O Peso do Morto, livro de estreia desse autor que conheci antes
pelos contos lidos aqui e acolá, com entusiasmo.
Muita literatura se passou desde então. Foi Pedro — não esqueço! — quem me
apresentou Kafka, Quiroga, Rulfo, Munro... Até hoje ele continua me indicando
novos nomes (seus presentes são invariavelmente livros); prossegue sendo um dos

6
Artigo
leitores mais compulsivos que conhe- passeios e alguns atritos também, que

Os seus contos têm o estilo da sua existência: o


mesmo olhar arguto, objetivo, persistente
ço — e este é o fundamento óbvio da toda amizade fiel conhece pontos ne- Mais sobre
qualidade do que ele escreve. Os seus vrálgicos. Mas no conjunto carrego
Pedro Salgueiro
contos têm o estilo da sua existência: o uma certeza maior: se a literatura me
mesmo olhar arguto, objetivo, persis- trouxe alegrias, a mais especial delas Nasceu em Tamboril, em 1964.
tente. Numa época em que pela mídia é conviver há décadas com o Pedro Publicou O Peso do Morto (1995),
se regurgitam tantas frases feitas, é um Salgueiro. Mesmo se passamos por hia- O Espantalho (1996), Brincar
conforto (re)ler um autor como Pedro tos de silêncio, cada reencontro se faz com Armas (2000), Dos Valores
Salgueiro. Ele aposta na própria coe- tão espontâneo que percebo, ao vê-lo, o do Inimigo (2005 - indicado pela
rência e sabe que o mais importante imutável amor de um bom amigo. Universidade Federal do Ceará
é a criação de um universo particular, para o seu vestibular, em 2005 e
inconfundível. Só busca isso quem tem Tércia Montenegro 2006) e Inimigos (2007 – finalista do
alma de artista. literatercia3@gmail.com Prêmio Jabuti em 2008), de contos;
Ao longo do tempo, ambos cons- Graduada e mestre em Letras e doutora além de Fortaleza Voadora (2006),
truímos narrativas dentro e fora de em Linguística pela Universidade Federal de crônicas, e Pici (2014), de pesqui-
nossas vidas. Sei que dei alguns sustos do Ceará(UFC). Hoje, é professora adjunta sa histórica. Entre suas premiações,
em Pedro: ele sempre tão calmo, com a da UFC, junto ao Departamento de Letras Prêmio da União Latina/Concurso
voz baixa e os gestos discretos, muitas Vernáculas. Escritora, iniciou a carreira Guimarães Rosa (Radio France
vezes considerou minhas viagens ou como ficcionista com a publicação de O ven- Internationale – RFI). É cronista
aventuras com espanto. Quando nos dedor de Judas (EDR). Em 2000, com Linha convidado do Caderno Vida & Arte
encontrávamos e eu falava dos riscos férrea, venceu o prêmio Redescoberta da do jornal O POVO, desde 2007, co-
que tinha vencido, escapando de situ- Literatura Brasileira, promovido pela revis- editor das revistas literárias CAOS
ações tão diversas, geralmente ele ria, ta Cult. De sua autoria, O resto de teu corpo Portátil e Para Mamíferos e organi-
jogando a cabeça para trás: “Mulher, se no aquário, (Edital de Incentivo às Artes da zou, em parceria, o Almanaque de
aquieta!”. Em outras ocasiões, quando Secult), O tempo em estado sólido (prêmio Contos Cearenses (1997) e O Cravo
eu estava superando relacionamen- Governo de Minas Gerais de Literatura e o Roxo do Diabo: o conto fantástico no
tos funestos, ele me fazia ver o lado prêmio nacional Ideal Clube de Literatura), Ceará (2011). Participou de diversas
engraçado da coisa. Pedro sabe como Rachel: o mundo por escrito (EDR), Os espan- antologias nacionais.
ninguém transformar pessoas em per- tos (EDR), Turismo para cegos (Companhia
sonagens – e há momentos em que ape- das Letras - Programa Petrobras Cultural
nas se precisa enxergar um desafeto de e Prêmio Machado de Assis, da Fundação
modo caricato. Gente rala feito caldo de Biblioteca Nacional, como o melhor roman-
bila, como Pedro costuma dizer, encon- ce do ano)
trando valores nos inimigos.
Tenho muitas outras cenas na me-
mória. Encontros no Bosque de Letras,
reuniões para projetos coletivos — anto-
logias, revistas — aniversários, almoços,

7
Cristaleira

Cristaleira

Um brinde à
cidade e ao país de
Airton Monte Embriagai-vos. É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a
isso; eis o único problema. Para não sentirdes o horrível fardo do
Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra,
é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas de quê?
De vinho, de poesia ou de virtude, como quiseres.
Charles Baudelaire

E
ra uma tarde de sábado, quando
foto: acervo Raymundo Netto

o conheci em uma roda de samba


da cidade. Até então, a referên-
cia mais forte que tinha dele era
o caderno em que minha mãe,
cuidadosamente, colecionava suas crônicas. Naquele tempo,
nem imaginava que um dia iria pesquisar um gênero tão bre-
jeiro quanto desprestigiado como a crônica (academicamente
falando, é claro).
Ao me sentar ao lado de Airton Monte, entre goles e re-
quebros febris, o que mais me chamou a atenção, instantanea-
mente, foi o seu olhar úmido, que contradizia seu bom humor
e me remetia a algo preso em uma gruta, um sentimento, uma
sensação de profundidade escorregadia e recôndita, que tam-
bém se insinuava em seus textos. Era assim que eu via (e ainda
vejo) a crônica de Airton Monte, que teve início entre 1987/88,
em um jornal semanal, tipo tabloide, um encarte do Jornal do
Dorian (JD). O presidente era o Neno Cavalcante e o diretor-
-executivo era o Gervásio de Paula. E se firmou diariamente,
nas páginas do jornal O POVO, até que ele nos deixou, em 2012.

8
Cristaleira
Logo ao aposentar a caneta, a má- humor e pela melancolia, ora desen- Ana Karla Dubiella
quina de datilografar e aderir ao com- cantada, ora tipicamente cearense, ao an_karla@hotmail.com
putador, o escritor/psiquiatra começou rir de si mesma para sobreviver. De Possui graduaço em Comunicação Social,
a receber diariamente e-mails de leito- bar em bar, a prosa e a poesia — a pro- especialização em Estudos Literários
res de todas as idades, criticando ou elo- esia, no dizer de Affonso Romano de e Culturais e mestrado em Literatura
giando seus textos, o que, segundo me Sant’Anna — correm frouxas e viram Brasileira pela Universidade Federal do
afirmou, o surpreendeu. Desde Moça literatura: “Porque nós gostamos de bo- Ceará. Doutora em Literatura Comparada
com flor na boca, sua primeira coletâ- tequins. Por isso que a gente frequen- pela Universidade Federal Fluminense.
nea (que acabou indicada para a seleção ta o Flórida Bar que tem 60 anos, que Atualmente, professora de Jornalismo,
de vestibular da UFC), a linguagem de nossos pais frequentavam. E o bar pra Gestora de Pesquisa e TCC no Centro uni-
Airton Monte tem o poder de encantar gente é isso (...) um espaço urbano onde versitário Inta (Uninta). É autora dos livros
(“a maior parte dos meus leitores são nos reuníamos para discutir as coisas. A traição das elegantes pelos pobres ho-
mulheres — e mulheres de 40 anos para Nós éramos uma geração, a geração de mens ricos: uma leitura da crítica social em
cima — e uma grande parte de aposen- 60, que nos interessávamos pelo Brasil! Rubem Braga (Edufes, 2007), Um coração
tados”, dizia). Que líamos Paulo Freire, que líamos postiço: a formação da crônica de Rubem
Em 2004, resolvi entrevistá-lo em Gilberto Freyre, Caio Prado Jr, a gente Braga (CCBNB, 2010) e a adaptação de sua
minha primeira pesquisa acadêmica (e queria saber que país era esse que a tese de doutorado As cidades de Rubem
que está no livro A traição das elegantes gente vivia. Coisas que a gente não Braga e W. Benjamin: flanando entre Rio,
pelos pobres homens ricos: uma leitura vê mais” ... Mas que costumamos ler,
1
Cachoeiro e Paris (Lumiar, 2017).
da crítica social em Rubem Braga). Foi ainda, nas crônicas de Airton Monte.
ele que me fez pensar sobre a grandeza
do gênero litero-jornalístico e sua re-
lação umbilical com a cidade, todas as Para conhecer mais

cidades: “não tem um jornal, do menor de Airton Monte

jornalzinho de uma pequena cidade A Primeira Esquina, de Airton

do interior ao maior, que não tenha Monte (EDR). O livro pode ser

um cronista. Até televisão tem um. A adquirido na Livraria Dummar:

TV se rendeu, desde Paulo Francis até Endereço físico:

o Jabor. Aqui, o jornalista Rogaciano Av. Aguanambi, 282, Joaquim

Leite Filho já fazia uma espécie de crô- Távora (anexo à sede do jornal

nica na TV Verdes Mares; o Lustosa fez, O POVO)

o Guilherme Neto fazia; o rádio, com o Endereço virtual (e-commerce):

Narcélio Limaverde, por exemplo, faz”.


livrariadummar.com.br
Fã de Caio Cid e Milton Dias,
Rubem Braga e Cony, Airton Monte
1 “Entre copos, conversas e canções: um estilo
conceitua sua obra com uma palavra: ‘boêmio’ de viver a cidade” é a tese apresen-
vida. E, dentro dela, a amizade, a mu- tada pela autora ao curso de doutorado em
Sociologia da Universidade Federal do Ceará,
lher, a noite e a boemia, a infância, a como parte dos requisitos para obtenção do
título de doutor em Sociologia. Em destaque,
política e o futebol, emoldurados pelo
trecho da entrevista com Airton Monte.

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Flores de Açucena

Trevas do Dia A Morte do Jangadeiro Verde


Na noite do mundo Ao sopro do terral abrindo a vela, Há uma ressurreição no Sertão rudo.
a nuvem gélida do sonho Na esteira azul das águas arrastada, Uma ressurreição! – Verde e risonho
percorre meus ossos vazados Segue veloz a intrépida jangada, É o vale, verde a serra, é verde tudo
trazendo dos corações atômicos Entre os uivos do mar que se encapela. Em que os meus olhos, deslumbrado, ponho.
das palavras não ditas
dos circuitos elétricos Prudente, o jangadeiro se acautela Bruto alcantil de aspecto mau, desnudo
das memórias esquecidas Contra os mil acidentes da jornada; Esvão de terra, ríspido e tristonho.
dos braços partidos Fazem-lhe, entanto, guerra encarniçada — Agora, tem branduras de veludo,
das mortes insensíveis O vento, a chuva, os raios, a procela. Verdes agora os vejo, como em sonho!
dos olhos vendados
das ideias falidas Súbito, um raio o prostra e, furioso, Em cisma, a sós, contemplo verde liana,
dos sentimentos perdidos Da jangada o despeja nágua escura; Verde, tão verde, com carícia humana
das bombas mortais E, em brancos véus de espuma, o desditoso As ruínas afagando a uma tapera.
dos Deuses escondidos
O nascer da morte Envolve e traga a onda entumecida, E, na contemplação que me não cansa,
No começo do dia. Dando-lhe, assim, mortalha e sepultura Sinto quão doce és tu, cor da Esperança,
O mesmo mar que o pão lhe dera em vida. — Até nos olhos de quem nada espera.
Rogaciano Leite Filho
Pe. Antônio Tomaz Júlio Maciel

As Doces Meninas
de Outrora
as doces meninas de outrora
amanheceram
vestiram os vestidos novos
pintaram as unhas de vermelho
por um instante resplandeceram
depois baixaram as cabecinhas louras
e envelheceram como as flores

Horácio Dídimo

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Gente Ilustrada

Walber Feijó

Nascido em Maranguape-CE (1970), Walber Feijó cresceu sob influência


das Histórias em Quadrinhos de onde tirou inspiração para o desenho.
Formado em Administração de Empresas pela Uece, entrou em contato
com a Oficina de Quadrinhos da UFC por volta de 1990, onde colaborou
com vários projetos, inclusive no álbum Moreira Campos em Quadrinhos.
Teve trabalhos publicados na revista Manicomics e Brazilian Heavy Metal
e, atualmente, compõe o grupo Armagem Herética. Além de quadrinhos,
trabalha com pinturas, ilustrações e retratos, especializando-se em técni-
cas como pastel e aquarela, como na ilustração “Jeri” (21x30cm), escolhi-
da pelo artista para esta seção.

11
Radiadora
Radiadora

A Última Música Navegantes


A noite caíra. Na abertura do crepúsculo De início subiu, e, a certa altura da corda, Caço, sedenta, a saudade que irrom-
o show começa. Todos se divertiam no acomodou-se quieta. Fiquei intrigada com pe como uma onda tempestiva —
anfiteatro repleto, ao som do jazz. De re- a atitude da acrobata. Mas de repente ao veloz e feroz. 
pente, a orquestra silenciou. Como num vê-la serpenteando naqueles panos, senti Feitio aquático dessas marés cheias.
ritual, os músicos saíram em fila indiana, simpatia por ela. Isso porque não havia Fecho os olhos salobros e busco sen-
permanecendo apenas o gaiteiro. Era um nenhuma rede de proteção. Verifiquei pos- tir o que, talvez, nem tenha mesmo acon-
homem alto, olhos ardentes, tinha apro- teriormente que nem precisava, pois, num tecido; coisas dos raios que caem atormen-
ximadamente cinquenta anos, vestia com passe de mágica, a contorcionista foi subin- tados e indiscretos sobre o mar.
elegância uma camisa de seda vermelha do até desaparecer numa fresta do teto. O percurso estrondoso marcha de
e usava um chapéu panamá. Fumava ci- Revi meus sete anos em um circo solas grossas sobre as minhas recordações. 
garro numa piteira de metal e conduzia mambembe. As estacas fincadas ao chão E são tantas — todas elas; saudades,
atitudes nervosas. sustentavam uma empanada de lona ras- escolhas e marés que enfrentei. 
Com a saída dos músicos, Franco gada. Os atores a fazer propaganda de uma Morri e nasci muitas vezes, esfor-
continuou tocando frenéticamente. As “peça”: Os salteadores da Calábria. çando-me a respirar dos instantes que
pessoas que estavam no local tinham a Fui selecionada para ser um saltea- tirei o sal da minha boca insaciável, que
impressão de que não estavam ali por dor. Às 19h30min lá estava eu a receber um engolia tudo e ainda tinha sede e fome;
acaso. O ar estava denso. Mesmo assim, tiro. Pei! Caí durinha. Foi o suficiente para das águas salgadas e das algas vermelhas.
os indivíduos imitavam com seus corpos atuar nas noites subsequentes. Pés molhados, sobreviventes, sobre
a cadência do músico. Esta minha primeira atuação me as conchas cortantes e recifes pontiagu-
A noite estava além da madrugada. acompanhou por toda infância e adoles- dos.  E o mel que descia era puro sangue,
As pessoas já demonstravam cansaço, mas cência. Fiz vários dramas posteriormente. dos cortes e das saudades que nem sei se
o gaiteiro não parava de tocar. Parecia mais Meio a essas conjeturas, verifico que existiram. 
inspirado ao ficar sozinho. o gaiteiro não terminou aquela música A maresia tem odores que depen-
De repente, um susto! Os outros com- louca, pois morreu de repente. Uma multi- dem dos mergulhos.
ponentes da orquestra voltaram e recome- dão de pernetas adentrou o palco e apode-
çaram o jaz num volume ensurdecedor. rou-se do músico. Lisiane Forte
Fiquei estarrecida! Não tinha coragem para Voltei ao passado mais uma vez ao ve- lisiforte@hotmail.com
levantar-me. Aquela música, sinistra, pare- rificar que cobriram o corpo dele com panos
cia tocada por mil demônios. Finquei pé e velhos, colocaram-no em uma fianga carre-
jurei que só sairia dali ao final do espetáculo. gada por dois homens. Os mortos da minha
Novo sobressalto. O grupo de músi- infância eram levados para ser sepultados
cos que retornara foi engolido um a um, por desse mesmo jeito. Entretanto, aquele ilus-
uma enorme e repugnável aranha que se tre músico não chegou a ser enterrado, pois
movimentava em gigantesca teia sobre o surgiu um fogaréu que consumiu a ele e aos
palco. Mesmo assim, o gaiteiro continuava dois homens que o carregavam.
tocando com uma força sobrenatural.
Nesse exato momento entrou a moça Eudismar Mendes
realizando acrobacia numa corda de pano. eudis_dinda@hotmail.com
12
Radiadora
As Pessoas Sentem Inveja Há uma Gota de
da Felicidade Alheia Sangue em cada 
Lágrima
Muita fumaça de cigarro pela casa ao Quando ele some, surgem golfinhos
passo que eles enchem a cara de literatura. que saltam sobre as nuvens em pleno Uma mulher do sertão nordestino deu
Primeiro beberam muitas doses de Hilda céu sem nuvens. Pois as nuvens são os à luz a um cacto. Todas as vezes em que
Hilst. Depois deram cabo de três garrafas próprios golfinhos que se transformam se mexia dentro de sua barriga, sentia
de Neruda e tantas outras de Bukowski. na nuvem seguinte que os irá receber do dores provocadas pelos espinhos em
Com os olhinhos carregados de mergulho. Olho para o chão e vejo mi- formação, penetrando sutilmente a sua
chama, ela falou que o melhor carinho do niaturas de árvores esquecidas no bolso carne. Mas não lamentava. Esperava
mundo é ser feliz com quem se ama e que dos transeuntes da cidade. Neste mo- com ansiedade seu nascimento para
o amor é uma bebida fina que aos beber- mento sinto que meus pés tocam o chão, tê-lo em seus braços. Sonhava beijan-
rões é dada a sorte de degustar, entretanto contudo o chão é feito de jornais velhos do-o, mesmo que as pontas de seus espi-
poucos sabem apreciar o raro sabor. e folhas arrancadas de livros abandona- nhos lhe fizessem sangrar os lábios… Só
Ela lhe contou: todas as noites tenho dos. Sempre acordo neste momento. desejava afagá-lo com suas mãos.
o mesmo sonho. Viajo dentro de uma gar- Para fechar a noite, ela disse que o O cacto cresceu. Depois de um pe-
rafa de vidro escuro e caio numa piscina amor é uma iguaria servida para glutões. ríodo de forte seca, em que nada vinga-
de água transparente. A piscina é habita- Sem dizer palavras, ele se aproximou e, va (nem mesmo o amor que só precisa de
da por rinocerontes. Eles me empurram bem de leve, lhe acariciou os cabelos, de- um coração a pulsar), a mulher sucum-
cada vez mais para o fundo. Sufocam-me. pois abriu outras garrafas de literatura e biu. A morte foi silenciosa e súbita. O
Choro e me esforço para sair da água, em ali mesmo sobre o tapete da sala embriaga- cacto todos os dias chorava, chorava, até
vão. Sinto uma imensa vontade de andar ram-se de Drummond ao natural. acumular uma boa reserva de água que
pela cidade tendo como única companhia Lá fora, a lua parecia um traço ins- o fizera resistir à seca. Chorava em silên-
um guarda-chuva. O guarda-chuva tem o pirado no bigode de Dalí. E eles sabem cio, para dentro de si mesmo. Sobreviveu
poder de admoestar rinocerontes. muito bem que lá fora as pessoas sentem à intempérie, sem a esperança, entre-
A cada noite o guarda-chuva se inveja da felicidade alheia. tanto, de ser novamente amado.
apresenta de uma forma diferente. Foi Agora, ela dorme e ele está sozinho Na companhia de seus próprios
presente de um homem bem mais velho e nu diante do espelho. Canta e dança no espinhos e da solidão de suas flores her-
por quem sinto afeto. O homem não tem tempo em que ela se embaraça com rino- mafroditas, só o que tinha de seu era a
um rosto definido. Muitas vezes é um par cerontes e guarda-chuvas. Daqui a pouco própria vida, além da última lembrança
de botas sem cadarços. Noutras um pe- será um novo caos. Daqui a pouco será um de sua mãe: uma gota de sangue a pingar
daço de vidro cortante e ainda me apare- novo cosmos. A saudade é uma canção em da ponta de um espinho.
ce como se fosse um jardim onde eu gos- movimento que se propaga e propõe um
taria de pisar suave e deitar na grama. O depois. Daqui a pouco nada será. Magna Maricelle
homem nunca fala e, independente da magna.moraes@uece.br
forma, quando vai embora leva consigo Luciano Bonfim
o guarda-chuva. lucianogbonfim@gmail.com

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Radiadora

Morgana de Tinta O Vaso de Louça


Conheci Morgana num museu e logo ficou o registro do seu fascínio A chegada do mês de junho foi, por muito tempo, motivo de alegria
pelas obras de arte. porque prenunciava as férias escolares. Os dias passavam levemente e
Dispersava-se do mundo e entrava em não sei que modo interior os problemas do cotidiano ficavam em segundo plano. Em tudo o que
de apreciação, não se abalando pelo som do seu nome sendo chamado eu fazia, havia um ar de descontração e, paradoxalmente, muita ansie-
ou pelas andanças das pessoas ao redor. Nossa amizade surgiu e se es- dade, nem tanto pelos próximos dias de descanso, mas, principalmen-
tendeu pelas galerias, firmada na simples existência dos vícios que se te, por causa da viagem que sempre fazíamos no mês de julho para o
completam. Ela, com sua mania de imergir nas sensações das obras, e sítio dos meus avós.
eu, com a minha fascinação secreta pelas expressões que adornavam Melhor do que o encontro com os primos e a liberdade de cor-
os rostos quando estavam diante do que se julgava ter valor artístico. rer e brincar à vontade, era o momento da chegada. Havia sempre o
Não era incomum observar o riso, a crítica ou o completo de- mesmo ritual: primeiro —  e o mais importante de todos —  ainda na
sinteresse. Muitas pessoas iam a esses lugares apenas pelas taças de varanda, entre as redes, eu recebia, dos anfitriões, um abraço amoro-
champanhe e pelas fotos, o que dessa vez não era o caso. so que só os avós sabem dar. Depois, todos iam até a pequena cozinha
Entre as peças de arte, escadarias e tapetes, Morgana sorria para que ficava cheia de gente conversando alto enquanto meu avô prepa-
as estátuas, recostava-se às colunas, apalpava até mesmo o frio das rava o café. Assim que minha avó me via, pegava um vaso de louça e
paredes. Não tinha nenhuma angústia, mas os olhos pareciam reluzir, me pedia para colher algumas flores para enfeitar a mesa que já era
sonhadores de algo impossível. coberta por uma toalha estampada sob um grosso plástico — ela dizia
Um dia me revelou seu desejo. Queria fazer parte das telas, en- que era para não sujar a mesa. Eu ia até o jardim e voltava feito um
trar nas texturas de tinta, se integrar nos balaústres ou até mesmo se raio. Pronto. Estava ali o meu lugar ideal: a família reunida entre o
desfazer no acúmulo de poeira em lugares já impossíveis de limpar, aroma do café e o perfume das flores.
que era para fazer ali morada. Assim foi durante muito tempo até que, em um mês de novem-
Eu ria dela, sem conseguir lhe revelar as minhas próprias estra- bro, fiz a mais triste das viagens que sempre fazia nas férias. Dessa vez,
nhezas em fotografar com os olhos aquelas expressões. Pensava que o tudo era diferente: os dias ficaram mais lentos e a tristeza sufocava
comum seria querer pintar uma obra, escrever livros, criar esculturas. qualquer outro sentimento que tentasse surgir. 
Mas isso de sonhar adentrar as criações eu nunca ouvi. Já no sítio, em vez de redes na varanda, estava um caixão. Parei,
Morgana dizia, resoluta, que encontraria um jeito. Eu só acreditei olhei para o meu avô que parecia dormir, observei todo o ambiente,
depois que desapareceu. mas não derramei uma lágrima sequer. Então me vi capaz de afagar
Os amigos e a família relataram seu sumiço com verdadeira afli- os mais sofridos e fui entrando vagarosamente na casa até chegar
ção. Não lhe acharam em lugar que fosse, e longos foram os dias à cozinha onde estava minha querida avó sentada em uma cadeira
de procura e medo por sua vida. Já eu, em andanças apressadas próxima à mesa. Não havia o cheiro do café, não havia mais ninguém
por museus e galerias, procurando-a em pessoas e rostos que além dela e da solidão.
nunca a viam, fui lhe achar numa pintura, sorrindo entre Quando me viu chegar, me deu um longo abraço. Caminhou com
camponeses enquanto jogava flores sobre o solo já verde. dificuldade, foi até o armário, pegou o vaso de louça e antes que falas-
Nos olhos da tela já não havia aquela sombra do que se qualquer coisa, eu já sabia o que deveria fazer enquanto enxugava
nunca se realiza. Estava feliz. minhas lágrimas.

Tainá Aquino Bôscoly Morais


taidaquino@hotmail.com boscolyms@hotmail.com

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Radiadora
ÚTERO
Faltou energia de madrugada no meu deles uma máquina robusta, para bater e me apertou, fechou tão bem o aperto
prédio. Tive que descer, do oitavo andar, trilha. Os dentes dele aí se cravaram em que eu quase desmaio, eu aí consegui lhe
pelas escadas escuras, pelo útero do meu braço, eu dei um urro e arranquei dar um esbarrão contra a parede, des-
edifício. E me perdi. Dentro do útero ta- contra ele, dei-lhe sopapos e mais sopa- moronei-o contra a quina da escada, ele
teei saídas, mas sempre errava a porta, pos, nos atracamos, bolamos por alguns rangeu os ossos e roncou, mas logo se en-
sempre esbarrava contra o maciço da degraus da escada, sem falar nada um curvou, transferiu-me um golpe violen-
parede. O sufoco e o calor excessivo me para o outro, sem saber do rosto um do to na barriga, e de novo nos embolamos
deixavam molhado. O escuro redobrava outro, eu apenas me guiando pelo cheiro e emborcamos e desabamos pela escada
o calor, calava em meus músculos gran- fétido do perfume, dávamos bracejadas, até que violamos uma porta e fomos ex-
des bolhas de suor, que me empapavam um tentando rebentar o outro, eu já sen- pulsos para o meio do piso brilhoso da re-
a camisa. Eu subia e descia, me contorcia tindo o filete de sangue escorrer do meu cepção, duas criaturas geradas do escuro,
dentro do útero, mas sequer um fiozi- supercílio, eu já ensaboando os dedos da ensopadas de ódio, o porteiro assustado e
nho de vento eu puxava de um orifício, mão no sangue do meu rival, nos engalfi- se dirigindo para registrar tão repentino
porque não havia orifício algum. Teve nhamos mais, a fúria sem fim, cotovelos parto no livro de ocorrência.
um momento que emborquei dentro do contra cotovelos, respirações assopradas,
útero, depois de tropeçar numa perna. rancor de anos de um pelo outro, e eu o Rinaldo de Fernandes
Aí eu senti o cheiro do perfume barato esmurrei, esmurrei mais nas costas, como rinaldofernandes@uol.com.br
do meu vizinho que no fim de semana se querendo fazer seu pulmão berrar, e
me cuspira no rosto a palavra larápio. O ele me trancou o pescoço com o braço,
pilantra estava ali também procurando
sair do útero. Subiu uma raiva por eu
estar ali tão próximo do escroto, que, me
guiando pelo perfume, resolvi apanhar
o cabelo dele e lhe dar um puxão para
conter o canalha num soco. Dentro do
útero do prédio eu esbofeteei meu vi-
zinho que me menosprezava por
eu ter dois carros munidos, um

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Amanhecer Outros Voos
Radiadora

Morei em um lugar  Retiro, um a um, teus dedos presos, ainda hoje, em meus cabelos.
que ainda não existia. Secura tua, fez rachar o chão do meu coração
Criamos as casas e as músicas Já não espero. Nada mesmo nos prometemos.
os pássaros e os consensos. Sigo outros voos que não passam pelo teu quintal.
Uma velha de cem anos me contou Tá silencioso meu coração
que com o tempo tudo mudaria, Arrisco beijos de outro colibri
e como mudaria:  Pelo menos ele me vê, me escuta, me sente e, principalmente, me lê.
pois os extravios e erros chegam logo De silêncio e securas não guardo lembranças.
após o terceiro ou quarto amanhecer. Uso cores de Frida Khalo
Desde então, maquino todas as noites me perco entre borboletas e, quem quiser, que venha comigo.
um novo lugar para a vida.
Ainda ajudo a criar este lugar Argentina Castro
onde o amanhecer não seja o fardo dos ombros argesales@gmail.com
nem a condenação dos dias
e sim o presente do mundo.

Kelson Oliveira
kelsongok@yahoo.com.br

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O Pedreiro Amálgama

Radiadora
Constrói-se um verso a partir de palavras Definitivamente, não sou engenheiro do verso. A tua alma sabe
unidas pela argamassa da gramática, Se engenheiro eu fora, meus versos que a minha aura brilha
dentro dos imensos blocos de cimento armado seriam quando te vê.
da imaginação, abstrações concretas de uma Por isso ela se lança,
a encadear paredes de pensamento firme, firme, firme antes de ti,
sobre pilares de sentimento. suavidade. buscando acender a luz
que tu não podes ver.
Mas para isso não é preciso ser Antônio Beethoven
engenheiro do verso. abcgondim@gmail.com E quando, a aura acesa acende
Faz-se tão-só uso do o mundo em torno de mim,
Fio de prumo: ela se expande.
uma dúctil racionalidade Assim, a alma se dilui
estendida pelo peso da emoção. no raio incandescente
da aura que a conduz.

Neste instante, nós, que éramos dois,


somos amálgama: aura-e-alma
a iluminar o infinito.

Hermínia Lima
herminialiteratura@gmail.com

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Radiadora

Degustação Emendando o Tempo Ecos do Amor Ausente


Enquanto espero A agulha do tempo costura a bainha dos dias A tua voz persiste em desdobrar-se pela taça da cristaleira,
Minha língua perdidos nas verdes veredas da inocência. Teu suspiro persiste em esfumar-se em círculos no cinzeiro,
Obscena Tempo das primaveras, esgarçadas quimeras, Teu desejo persiste na estrela cadente pela noite violeira,
Mastiga palavras debruçadas nas carcomidas cercas da existência. Tua imagem persiste em ressurgir no espelho do banheiro.
Engole ausências Das chuvas que lavam o alpendre e as dores
Sente sabores apascentam, dos risos e das vozes infantis Os teus olhos persistem em velejar no livro de cabeceira,
Degusta metáforas que ainda ressoam entre paredes inexistentes. Teus passos persistem em me chamar na soleira da porta,
À procura do instante A figura de meu pai esfuma-se na curva do caminho Teu sonho persiste em exalar jasmim pela cama de cerejeira.
Que me anima E retorna a galope no vento. Eterno é o tempo. De repente, acredito que tu não partiste nem estás morta.
Encontrar Os sonhos perdidos são molambos
Silenciosa e lacônica pendurados nos varais da mente. Diogo Fontenelle
Tua boca Da juventude o calor, do interdito o medo. diogofontenelle@uol.com.br
Tua língua Água represada na nascente.
Farta de prazer.
Lourdinha Leite Barbosa
Fernanda Quinderé lourdinhalb@gmail.com
fqmb@ig.com.br

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Radiadora
Pelos Dedos Poema para
Meu amor transborda
Ser como se Diz
Não cabe no peito um poeta como se dissesse ser
Escorre pelos dedos ousa um passo no ósculo do desespero, a pedra a palavra do poeta.
Que querem com os óculos por cima das ventas. tudo tão concreto
Mais que tudo olhar retraído. em cruz e credo e asfalto
Descaradamente te tocar máquina de fazer imagens.
E como não desejariam? parado na rua. há como se diz
Essa tua pele cheirosa e mágica ali calado, as ruas de dentro
Uma vontade trágica como quando se diz uma pedra na ilusão
Esse santo calor! do caminho. caminho
Ah, esse amor... até o limite do poema
escarnecer
Mônica Silveira de ser mesmo uma esquina.

então, como se pudesse dizer


olha o poeta.

Cícero Almeida
ciceroas0509@gmail.com

19
Radiadora

ave de rapina Cavalos Marinhos Uma Visita


você se assemelha a este pássaro Uma vez era a lua ainda minguando O ourives — vir de tão
surgeressurge das cinzas  quando as cabeceiras do rio longe — no centro da sala
das horas pariram a enchente. despliega um céu de
das emoções subterrâneas os búzios tocavam já há uma rubro terciopelo e
do inconsciente quando acorda semana e os viventes todos a mãe em seus vestidos de
sofriam dessa espera beleza simples não
Anielly Aquino que só conhecem os que se vão afogar escolher nenhuma
aniellyaquino@gmail.com demoraram pouco, as águas marrons estrela
falando alto
Cândido Rolim
... o rio assombrava candidorolim@hotmail.com

Joan Edesson de Oliveira


20
joansobral@yahoo.com.br
Radiadora
Uma Estrangeira
Rasguei minha camisa favorita  
Fiz bandagem para as tuas feridas Último Poema
De infância
pensei
fazer uma construção
Acalentei teu choro derradeiro
com plataformas potentes,
Chegada Com meu peito inocente 
onde escreveria meu último poema
Inebriado de dor
Se tu vieres com a canção do sol,
mas ouvi gemidos
Em claro terei toda a noite a Apertou o espanto
duma criança morrendo no asfalto
deslumbrar. De que havia outra
com brinquedos entre os dentes
E se nos raios da manhã Uma estrangeira 
que sangravam
Tu te fizeres presente,
como meu peito sangra palavras
Unir-me-ei à tua tez brilhante, Te pedi de joelhos:
A iluminar meu corpo errante. Não mate minhas filhas
ao mesmo tempo
Mas caso venhas como um(a) boa noite Meus sonhos 
pensei nos gritos dos adultos
Dormirei no dia e pousarei meu sonho
que se divertem com armas nucleares
Na vinda do teu crepúsculo. Mas sorrindo, pisastes sobre meu
mais fortes que a germinação
Então, apagarei as estrelas, corpo
do meu silêncio...
Desnudarei a noite Um dejeto, um sopro
E romperei teu véu Que você rejeitou 
questão final:
Por toda a madrugada.
nunca farei meu último
Deive Maria Agostinho
poema.
Carlos Gildemar Pontes deiviane.agostinho@gmail.com
gilpoeta@yahoo.it
Cândido B.C. Neto 21
Pérolas Partida tua noite
Radiadora

As cores vespertinas nos atraem, Agora parto e deixo paisagem quero uma noite de você.
a lua solitária goza que eu mesmo fiz; especial onde a lua amareleça
um orgasmo cheiroso vou fazer o caminho de volta e deixe cair as estrelas com
com perfume de céu. olhando as mesmas palmeiras pedidos em profusão.
Nádegas brancas e o mesmo pôr do sol;  
contornadas pelo bronze tentarei reconstituir rosas, nuvens não resistem à noite,
da meia-noite. juntando-lhes pétalas pisadas. sonhos não entendem o raiar
E nós, Eu joguei pétalas para enfeitar do dia.
homens encantados com a lua, o caminho e perfumar  
esquecemos as tardes, o vento. assim, o cenário de amor
as pérolas no fundo do mar Talvez não possa recompor quando olhos e braços
e chamamos de Pérola flores esmagadas partem na busca
o solitário ponto branco pelos pés trôpegos das caminhadas aflitas. de paz e certezas.
à noite escura a iluminar. É preciso morrer  
antes do fim do caminho, na tua noite, sem fantasmas
Elton Danana terminando com o último vestígio ou sombras, beijos ganham
etregis63@gmail.com do sol vermelho relevos que espantam lágrimas
que a noite vai sepultar. gritos ou tristezas.
É preciso mesmo morrer nos primeiros passos
para haver tempo de ressurgir Franklin Viana
Submundo na noite que já vem. franklinadvmoreira@gmail.com

Quando o sol
Cid Carvalho
fecha os olhos,
a lua ilumina
toda a desordem
que os esgotos
sobre a terra
realizam.

William Lial

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Calçadas Palavras de um Rio Teatro Vazio

Radiadora
Corpos se desfraldam Dentro de mim ainda dorme um canto Eu dançava sem par no teatro vazio,
esguios, alguma força que guardei da fúria no braço a pulseira com o nome impresso
saem das calçadas no ouro falso das moedinhas.
— suas moradas sujas — e no meu ventre se resguarda o cio... Súbito, a música cessou. Parei o rodopio.
esparsos, com frio, Palmas, ouvi palmas entusiasmadas
olham as estrelas do céu mas vem a morte disfarçada em homem e perplexa ergui os olhos.
e não se contentam... que me instiga a responder com mágoa: Na última cadeira com forro de palhinha,
atiram-se uns aos outros, tu, solidão, tu me aplaudias.
dissolvem-se em gozos. — dentro de mim ainda pulsa um rio
Depois Marly Vasconcelos
voltam às calçadas Majela Colares
mortos de fome,
olham as estrelas
que somem.

Flávio San
flavioartesan@hotmail

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Tiragostos

Os FitoManos de Raymundo Netto

artista
da capa
Fernando França
@fernandofrance

Desenhista, pintor e mestre em literatura


pela Universidade Federal do Ceará. Neto
de imigrante cearense, que partiu para
o Acre por volta de 1877, nasceu em Rio
Branco, em 1962. Iniciou-se nas artes ainda
na infância, e profissionalizou-se após sua
mudança para Fortaleza, Ceará, no início
dos anos de 1980. Apresentou suas obras
em diversas exposições coletivas e indivi-
duais no Brasil, Alemanha, França, Itália,
Espanha, Portugal, Dinamarca, Polônia e
Cabo Verde. Atualmente desenvolve uma
série intitulada “Encantes Amazônicos”,
com trabalhos inspirados nas histórias e
mitologia da Amazônia, trazendo à tona as
reminiscências de sua infância e adolescên-
cia no Acre. As ilustrações desta Maracajá
refletem a sua visão (uma recriação) sobre
esses mitos, criações coletivas, sem autoria
específica, e repassadas ao longo do tempo
de forma oral em forma de entidades e seres
da floresta, redimensionando o poder en-
cantatório desse universo mitológico.

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