Você está na página 1de 86

V.

09
revista

01
janeiro junho
2021

ISSN 2238-2496

Olho no Verde: experiências e


desafios do projeto

Qual é o Tempo que o Tempo


do Tempo Seco tem? Plano
de Ações de Mediação para
a implantação dos Coletores
de Tempo Seco em favelas da
Região Hidrográfica da Baía
de Guanabara

As Percepções Ambientais e
os Saberes Tradicionais das
Comunidades Locais de Boca
do Mato, Paraíso e Guapiaçu no
Entorno do Parque Estadual dos
Três Picos (RJ)

Petrópolis, as Marcas da
Sociedade na Natureza:
história ambiental e leitura das
paisagens

Transformando a Percepção
sobre a Etnia Guarani-Mbyá:
relato de uma experiência na
escola
Governo do Estado do Rio de Janeiro
Cláudio Castro, governador

Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade


Thiago Pampolha, secretário

Instituto Estadual do Ambiente


Philipe Campelo Costa Brondi da Silva, presidente

Diretoria de Licenciamento Ambiental


Leonardo Daemon, diretor

Diretoria de Pós-Licença
Fabio Costa, diretor

Diretoria de Biodiversidade, Áreas Protegidas e Ecossistemas


João Eustáquio Nacif Xavier, diretor

Diretoria de Gente e Gestão


Jorge Eduardo Barreto de Andrade, diretor

Diretoria de Recuperação Ambiental


Daniel Moraes de Albuquerque, diretor

Diretoria de Segurança Hídrica e Qualidade Ambiental


Hélio Vanderlei Coelho Filho, diretor
ISSN2238-2496
ISSN 2238-2496

revista

janeiro junho 2021 v.09


nº01
Produção editorial Pareceristas ad hoc
Gerência de Publicações e Acervo Técnico Alexandre Ortega
(GERPAT/DIRGGES) André Loureiro

Coordenação editorial
Carlos Couto
Tania Machado Denise Rambaldi
Fabio Mostacato
Revisão Heliana Vilela
Sandro Carneiro
Inara Carolina da Silva Batista
Ricardo Reys
José Edson Falcão
Normalização Luiz Constantino da Silva Jr.
Wellington Lira Moema Versiani Acselrad
Neise Ribeiro Vieira
Diagramação
Renata Teixeira
Thiago Duarte
Eduarda Cascaez Telmo Borges
Victor Maluf
Capa
Foto: Pedro Lobo, 2005 © Instituto Estadual do Ambiente (INEA)

Conselho Editorial Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução


Alceo Magnanini de dados e informações contidas nesta publicação,
desde que citada a fonte. Os artigos são de inteira
Alcides Pissinatti
responsabilidade de seus autores.
Silvia Marie Ikemoto
Luciana Maria Baptista Ventura Periodicidade: semestral
Maicon Guerra de Miranda
Renata da Matta dos Santos Disponível também em:
www.inea.rj.gov.br > Publicações > Publicações Inea >
Ricardo Marcelo da Silva
Revista Ineana
Vanessa Schinaider do Amaral Pereira Gonçalves
Viviani de Moraes Freitas Ribeiro Endereço para correspondência:
Tania Machado de Oliveira Gerência de Publicações e Acervo Técnico
Av. Venezuela, 110 - Sala 113 - Térreo - Saúde
CEP 20081-312 - Rio de Janeiro - RJ

E-mail
inea.gepat@gmail.com

--- v.09, n.01 (jan./jun. 2021)- ---Rio de Janeiro: INEA, 2021 -


4 Editorial

6
Olho no Verde: experiências e
desafios do projeto
Roberta Brasileiro
Vitória Araújo

24 Qual é o Tempo que o Tempo


Foto: Pedro Lobo

do Tempo Seco tem? Plano


de Ações de Mediação para
a implantação dos Coletores
de Tempo Seco em favelas
da Região Hidrográfica da
Baía de Guanabara
Maria da Silveira Lobo

40
As Percepções Ambientais e
os Saberes Tradicionais das
Comunidades Locais de Boca
do Mato, Paraíso e Guapiaçu
no Entorno do Parque
Estadual dos Três Picos (RJ)
Wallace Marcelino de Silva

54 Petrópolis, as Marcas da
Sociedade na Natureza:
história ambiental e leitura
das paisagens
Valério Winter

70 Transformando a Percepção
sobre a Etnia Guarani-Mbyá:
relato de uma experiência na
escola
Gabriela Rodrigues
Kenny Tanizaki-Fonseca
Viviane Fernandez
editorial
Phillipe Campelo área. Esse e outros resultados são elencados no primei-
presidente do Instituto Estadual ro artigo desta edição da Ineana, intitulado Olho no
do Ambiente (INEA) Verde: experiências e desafios do projeto. O traba-
lho faz um retrospecto dos cinco anos de execução do
Thiago Pampolha Olho no Verde, apresentando a metodologia utilizada,
secretário de Estado do Ambiente e os avanços alcançados, as dificuldades enfrentadas e

J
Sustentabilidade (SEAS) as ações a serem implementadas futuramente.
unho, mês em que se celebra o Dia Mundial Com relação à disponibilidade hídrica, a SEAS e o
do Meio Ambiente, chega ao fim com o INEA lançaram este ano o Programa Estadual de Se-
lançamento de mais uma edição da revista gurança Hídrica (PROSEGH). Além de ofertar água
Ineana e com o Estado do Rio de Janeiro
em quantidade e com qualidade suficientes para
tendo vários feitos a comemorar na área ambiental,
atender às necessidades da sociedade fluminense, o
muitos dos quais se devem ao trabalho que a SEAS
programa busca contribuir para o alcance das me-
e o INEA vêm fazendo pela conservação das nossas
tas da Agenda 2030 relacionadas, principalmente, ao
riquezas naturais e pelo desenvolvimento sustentável.
Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) n° 6:
Nosso estado possui 1.312.980 ha de cobertura flores- assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da
tal – o equivalente a 30% do território – inseridos em água e saneamento.
áreas protegidas. Desse total, 477 mil encontram-se
Dialogando com essa temática, temos o artigo Qual
protegidos por 39 unidades de conservação esta-
é o Tempo que o Tempo do Tempo Seco tem?
duais geridas pela SEAS e o INEA. Um marco. Assim
Plano de Ações de Mediação para a Implanta-
como outro alcançado neste mês: o reconhecimen-
ção dos Coletores de Tempo Seco em Favelas
to da 100ª Reserva Particular do Patrimônio Natural
da Região Hidrográfica da Baía de Guanabara.
(RPPN). Com isso, as áreas protegidas privadas reco-
O trabalho trata do plano elaborado por especialistas
nhecidas pelo INEA somam, hoje, 8.414,918 ha.
em resposta ao edital lançado em 2020 para implan-
Em relação ao desmatamento, há dez anos estamos tar sistemas de coleta de esgoto em oito municípios
no grupo de estabilidade de cobertura florestal, isto é, da Região Metropolitana do Rio e, assim, diminuir a
do desmatamento zero. Para manter este status, reto- poluição da Baía de Guanabara.
mamos o Projeto Olho no Verde, que verifica e fornece
Nos últimos meses, esforços também foram empreen-
informações para subsidiar e orientar o combate ao
didos para viabilizar melhorias nas unidades de con-
desmatamento ilegal em território fluminense, a partir
servação (UCs) estaduais. O projeto do cartão vincu-
do monitoramento, via imagens de satélite, das áreas
lado, que garante aos gestores das UCs recursos para
remanescentes de Mata Atlântica.
uso em atividades rotineiras, foi retomado. Já na Câ-
Desde o início do projeto, em 2016, o Olho no Verde já mara Estadual de Compensação Ambiental, além do
realizou mais de 1,3 mil vistorias em quase 5 mil m² de projeto que deverá renovar a frota de veículos das UCs
editorial

até o final de 2021, foi aprovada uma ampliação de


25% no efetivo de guarda-parques.

Medidas como essa ajudarão a melhorar não só as


instalações e serviços oferecidos aos visitantes, como
também a relação dos gestores de UCs com morado-
res e empreendedores do entorno. Esse último ponto
é abordado indiretamente no artigo As Percepções
Ambientais e os Saberes Tradicionais das Comu-
nidades Locais de Boca do Mato, Paraíso e Gua-
piaçu, no Entorno do Parque Estadual dos Três
Picos (RJ). Entre outros aspectos, o trabalho destaca
os diferentes atores sociais que se relacionam com
essa UC e as práticas culturais que eles desenvolvem
com elementos da paisagem local.

No que diz respeito à prevenção de desastres am-


bientais e ao de risco de inundações, a SEAS e o INEA
retomaram o Limpa Rio. O programa, de caráter pre-
ventivo e emergencial, tem como finalidade minimizar
os riscos associados a fortes chuvas, evitar inunda-
ções e facilitar o escoamento da água. Desde o início
do ano, o Limpa Rio passou por mais de 20 cidades,

Foto: Pedro Lobo


como Campos dos Goytacazes, Duque de Caxias e
Teresópolis, retirando mais de 500 mil m³ de resíduos.
Já em Petrópolis, quase R$ 29 milhões foram investi-
dos na retomada das obras para a canalização dos
rios Cuiabá, Santo Antônio e Carvão.

Os impactos da intervenção humana e do uso e ocu-


pação do solo na região são o tema do artigo Petró- Esse cuidado com a natureza na agricultura, vale
polis, as Marcas da Sociedade na Natureza: histó- destacar, é uma herança dos povos originários do
ria ambiental e leitura das paisagens. O trabalho Brasil, como demonstra o artigo Transformando a
investiga como, ao longo de 300 anos de história, for- Percepção sobre a Etnia Guarani-Mbyá: relato
mas e percepções da natureza condicionaram a ocu- de uma experiência na escola. O trabalho, que en-
pação, definiram funções e influenciaram a paisagem cerra esta edição, e no qual os indígenas são apon-
desse município da Região Serrana do nosso estado. tados como precursores dos chamados Sistemas
Agroflorestais (SAFs), descreve como a percepção
Já em parceria com o governo federal, por meio do
ambiental de um grupo de alunos do Ensino Funda-
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI),
mental mudou depois de participar do projeto Sa-
e com apoio financeiro do Fundo Global para o Meio
bores e Saberes Guarani, que utilizava os saberes
Ambiente (GEF) e do Banco Interamericano de De-
da etnia Guarani Mbyá para resgatar a relação ho-
senvolvimento (BID), o Projeto Conexão Mata Atlânti-
mem-natureza.
ca, do INEA, pagou, na primeira metade do ano, mais
de R$ 2 milhões a agricultores que, ao buscar formas Que os artigos publicados na revista Ineana conti-
ambientalmente corretas de produzir, preservam nuem inspirando ações e políticas públicas voltadas
suas áreas e mananciais, contribuindo para a manu- para a gestão ambiental pública. Uma boa leitura e
tenção dos serviços ambientais locais. até o próximo número.
Foto: Projeto Olho no Verde
revista ineana v. 08 n.02 p.32 - 45 jul > dez 2020

6
Ação de fiscalização deflagrada com base em alerta
emitido pelo Projeto Olho no Verde
Olho no Verde:

p. xxjan
v. 11- 23
n.01 p.6 2019
jun 2021
- xx>>xxx
do projeto

v.09ineana
revista
revista ineana
‘Olho no Verde’ Project: experiences
and challenges
Roberta Brasileiro; Vitória Araújo

Resumo Abstract
- To strengthen the protection of forest remnants and
restais e o combate ao desmatamento ilegal, o Esta- fight against illegal deforestation, the State of Rio
do do Rio de Janeiro criou o Olho no Verde, projeto de Janeiro created Olho no Verde, a project that
que utiliza imagens de satélite para monitoramento uses satellite images to monitor forest fragments,
- generating deforestation alerts and sending them
- to inspection. This article presents the methodo-
te artigo, apresenta-se a metodologia utilizada, os logy used, the advances made in the five years of
avanços realizados nos cinco anos de execução do the project's execution, the difficulties still faced, its
- main results and the future actions that are inten-
cipais resultados e as ações futuras que se pretende ded to be developed. Noteworthy are the advan-
desenvolver. Destacam-se como avanços a distri- ces in the distribution and management of alerts
buição e a gestão dos alertas por aplicação web, a by web application, the issuance of notification via
- mail, the project's communication actions, institu-
municação do projeto, as parcerias institucionais e o tional partnerships and the leading of discussions
direcionamento das discussões sobre autuação sem on assessment without the need for on-site inspec-
necessidade de vistoria in loco - tion. As challenges still remain the identification of
the offender, the scarce inputs for inspection, and
- the difficulties in expanding the monitoring of the
pliação do monitoramento dos alertas até a efetiva- alerts until the end of due diligence. The results are
ção de diligência. Os resultados são avaliados quan- evaluated according to the existence of a rural ca-
to à existência de Cadastro Ambiental Rural (CAR), à dastre (CAR), the distribution among the main mu-
distribuição entre os principais municípios em que foi nicipalities where illegal deforestation was found,
constatado desmatamento ilegal e aos domínios ge- and the corresponding geomorphological domains
omorfológicos correspondentes (serra, colina, mor- (mountains, hills, hills, etc.). Finally, the intended
future actions are presented, such as standardiza-
pretendidas, como normatização da autuação por tion of the infraction notice prosecution by satellite
imagem, reinvestimento em ações de comunicação image, reinvestment in communication actions, and
e reavaliação da metodologia utilizada. reassessment of the methodology used.

Palavras-chave Keywords
Olho no Verde. Desmatamento. Monitoramento Olho no Verde. Deforestation. Forest Monitoring.
Florestal. Geotecnologias. Geotechnologies.
7
1. Introdução
revista ineana v. 09 n.01 p.06- 23 jan > jun 2021

do em Young (2012), que comprova que no Rio


O bioma Mata Atlântica, apesar de já ter de Janeiro, entre 1985 e 1995/96, houve redução
perdido mais de 93% de sua área (MYERS et al., do emprego rural nos dez municípios que regis-
2000), ainda é abrigo de mais de 8.000 espécies traram maior desmatamento em área total.
endêmicas de plantas vasculares, anfíbios, rép- -
teis, aves e mamíferos (TABARELLI et al., 2005), tado, segundo a organização SOS Mata Atlântica
transformando cada fragmento florestal em um (2019), observa-se uma diminuição ao longo dos
espaço importante de conservação. anos nas áreas detectadas (Figura 1), o que, no en-
Totalmente inserido neste bioma, o Rio de tanto, não condiz muitas vezes com a variação da
Janeiro é o terceiro maior estado com porcenta-
gem de vegetação ainda preservada em seu ter-
ritório (FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA, 2019), não detectáveis por mapeamentos em grandes es-
ocupando um papel central na conservação da calas, e que avançam ano a ano sobre fragmentos
Mata Atlântica. Seus remanescentes florestais
correspondem a cerca de 20,49% 1 da área do es- visando ao aumento do terreno.
tado que sofre constantemente pressões antró- Da mesma forma, é comum encontrar supres-
picas, advindas principalmente de desmatamen- sões no interior do fragmento, deixando uma cortina
to ilegal e queimadas visando à transformação de vegetação nativa nas bordas, com o objetivo de
do uso da terra para pecuária, agricultura ou sil-
vicultura (TABARELLI, 2005; GELAIN et al., 2012). Por outro lado, devido à dificuldade de acesso,
Como observado por Tabarelli (2005), embo- os fragmentos florestais existentes em altas alti-
ra o número de unidades de conservação tenha tudes e relevos acidentados se mantiveram pre-
crescido consideravelmente nas últimas déca- servados. A exemplo, a Serra do Mar representou
das, elas são ainda insuficientes para garantir a e ainda funciona como uma verdadeira barreira
conservação da vegetação, necessitando, por- para o avanço e ocupação de suas terras (CRO-
tanto, de maior controle e melhor qualidade na NEMBERGER, 2014).
fiscalização ambiental. Diante do exposto, tornam-se extremamente
Contando com oito superintendências regio- -
nais, 39 unidades de conservação pública esta-
duais e uma Gerência de Fiscalizações Ordiná- Nova história da Mata Atlântica2, assinada por 17
rias, são muitos os desafios do Instituto Estadual estados da federação, ressaltou a necessidade de
do Ambiente (INEA) e da Secretaria de Estado do aumentar os esforços no combate ao desmatamen-
Ambiente e Sustentabilidade do Rio de Janeiro to, preservando os 12,5% ainda restantes do bioma
(SEAS) para monitorar 1.619.675,34 hectares de no país (SOS MATA ATLÂNTICA, 2019).
vegetação natural (INEA, 2020), com uma gama A partir daí, a Secretaria do Estado do Ambiente e
diversa de caraterísticas geográficas. Sustentabilidade (SEAS) iniciou um projeto para po-
Soma-se a isso uma cultura de impunidade
ambiental que remonta a questões históricas de
exploração dos recursos naturais (cultivos de
pau-brasil, cana-de-açúcar e café, mineração e estadual em referência nacional na vanguarda da
pecuária) com incentivos e subsídios governa- conservação ambiental.
mentais para a destruição das florestas (GELAIN, Em janeiro de 2016, teve início a execução do
2012; YOUNG, 2006). Tais incentivos, porém, não Projeto Olho no Verde, utilizando imagens de saté-
resultaram em um aumento de emprego rural ou lites de altíssima resolução espacial para monito-
8 de desenvolvimento humano, como demonstra- -
revista ineana v. 09 n.01 p.06 - 23 jan > jun 2021
1200 870,00
860,00
1000
850,00
800
840,00

600 830,00

820,00
400
810,00
200
800,00

0 790,00
2005- 2008 -2010 2012- 2013- 2014- 2015- 2016- 2017-
2008 -2010 2012- 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Desmatamento
Figura 1 - Histórico de desmatamento detectado e vegetação mapeada
Fonte: SOS Mata Atlântica, 2019 Vegatação

Figura 2 - Desmatamento com borda de vegetação camuflando a infração


Fonte: Empresa My Zoom
9
ção semiautomática de alertas de desmatamento, Desta forma, ao ser executado, o projeto provo-
revista ineana v. 09 n.01 p.06- 23 jan > jun 2021

cou uma mudança cultural dentro do órgão, familia-


INEA (NAPOLEÃO et al., 2017). rizando todos na utilização de imagens de satélite
Para entender os efeitos provocados pelo proje- para suas operações, e compondo as principais es-
to, é preciso considerar o contexto em que o mesmo tatísticas de desmatamento do estado.
foi lançado. Naquele momento, nos idos de 2016, fa- Apesar das resistências iniciais, o projeto ra-
pidamente provou ser uma ferramenta essencial
rondas semanais em busca de áreas desmatadas, no combate ao desmatamento ilegal. O projeto já
foi tema, inclusive, de um artigo na revista Ineana
(NAPOLEÃO et al., 2017), demostrando os resulta-
- dos de seu primeiro ano de detecção de desma-
ma de monitoramento existente para o bioma era o tamento, além dos resultados do mapeamento de
GLAD (Global Forest Watch ), que utiliza imagens de
3
uso e cobertura realizado em parceria com a Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
de desmatamento. De forma a ilustrar a diferença Passando por diversas gestões, o projeto está
nas resoluções espaciais das imagens trabalhadas, celebrando, neste ano de 2021, cinco anos de exis-
selecionamos duas imagens na área do Aeroporto tência. Assim, o presente trabalho tem como ob-
Internacional Tom Jobim - Galeão (Figura 3). jetivo discorrer sobre as melhorias realizadas nos
Outro aspecto inovador trazido pelo projeto foi processos durante esse período, mostrar as estra-
a sistematização das informações em um banco de tégias utilizadas e apresentar os resultados obti-
dados único e espacial, compartilhado pela primeira
vez entre SEAS e INEA, utilizando o software Arcgis
Online, o que permitiu o acesso a estatísticas históri-

Figura 3 - Comparação da visualização da área do aeroporto do Galeão: à esquerda, imagem de 50 centímetros de resolução
espacial oriunda do satélite World View 2 em escala 1:10.000 e composição verdadeira R1G2B3; à direita, imagem de 30 metros
de resolução oriunda do satélite Landsat 8 em escala 1:10.000 e composição verdadeira R4G3B2
Fonte: Projeto Olho no Verde

10
2. Métodos e desenvolvimento do ção imagens históricas desde 1999 até os dias atuais,

revista ineana v. 09 n.01 p.06 - 23 jan > jun 2021


projeto oriundas de sete satélites de altíssima resolução (Iko-
nos, WorldView-1,2,3 e 4, GeoEye-1 e QuickBird).
A utilização de imagens com este nível de pre-
Para a detecção de desmatamento por ima-
cisão é importante devido ao perfil de desmata-
gem de satélite, um dos fatores mais importantes
mento do estado. Ao longo dos anos de execução
é o insumo de imagens a ser utilizado para o mo-
do projeto, constatou-se que a maioria dos aler-
nitoramento. Isso porque existem algumas opções
tas se encontra entre 400 m² e 600 m², (Figura 4)
no mercado, que variam em resolução espacial, em
e que tal distribuição demanda imagens com este
quantidade de satélite disponíveis (normalmente tra-
nível de resolução.
balhando com constelações) e em periodicidade de
A detecção de desmatamento é realizada a
revisita, ou seja, a capacidade de coleta de imagens
cada vez que uma nova imagem é disponibilizada
para um mesmo local em um determinado intervalo
(em torno de 72 horas após a passagem do saté-
de tempo. Tal escolha impactará diretamente a fre-
lite) e comparada com a imagem imediatamente
quência e a qualidade do monitoramento, podendo
anterior. O algoritmo processado busca áreas que
alterar totalmente os resultados.
eram verdes (ou seja, vegetadas) na imagem an-
Por esse motivo, a equipe de coordenação do pro-
terior, e não o são mais na imagem atual, como
jeto está constantemente discutindo e buscando no-
no exemplo da Figura 5. O algoritmo detecta ape-
vos métodos para o monitoramento. A melhor opção
nas supressões de vegetação, não identificando,
encontrada em relação a custo e benefício para o es-
por exemplo, novas construções posteriores a
tado foi, e continua sendo, imagens de 30 centímetros
uma cobertura de solo exposto, não possuindo,
a um metro de resolução espacial, oriundas do for-
assim, nenhum desmatamento em seu processo.
necedor de imagens Maxar, que possui em sua cole-

Figura 4 - Frequência de alertas distribuídos por intervalos de áreas (em m2), jan/2016 a dez/2019
Fonte: Projeto Olho no Verde

11
revista ineana v. 09 n.01 p.06- 23 jan > jun 2021

Figura 5 - Antes e depois, com destaque para o polígono de detecção de desmatamento. Imagens oriundas do sensor Geoye, em
composição verdadeira R1G2B3, escala 1:1.500

Fonte: Projeto Olho no Verde

O sistema de imageamento possui, no entan- do durante períodos de tempos maiores (como


to, algumas limitações importantes. Primeiramen- um ano), tal variedade é dispersa, garantindo um
te, há a limitação natural de ocorrência de nuvens imageamento sistemático do território.
sobre os locais imageados. Os sensores utilizados O processamento ocorre em uma área de
são do tipo passivo, dependente da interação da 10.000 km², pré-definida pela equipe coordena-
luz solar com o alvo na superfície, e da captação dora. Quinzenalmente, a empresa contratada en-
dessa reflectância pelo sensor, para assim criar a via os alertas detectados à SEAS, que são, então,
imagem. Dessa forma, são suscetíveis às interfe- encaminhados à sala de situação. Na fase inicial
rências na passagem da energia eletromagnética do projeto, os alertas eram enviados diretamente
pela atmosfera. As nuvens representam um dos da empresa contratada para as equipes de fisca-
maiores problemas, pois refletem ou absorvem a lização. No entanto, esse procedimento logo se
maior parte da energia eletromagnética inciden- mostrou ineficaz, pois havia muitos alertas não
te, fazendo com que o sensor registre, naquele prioritários (como corte de eucalipto ou limpeza
ponto da imagem, a nuvem, em vez do terreno, de pousio, por exemplo), que sobrecarregavam
não sendo possível utilizar tal imagem para a de- as equipes de fiscalização. A solução foi criar
tecção de mudanças (MENESES; ALMEIDA, 2012). uma sala de situação com o objetivo de validar
Portanto, há uma variedade natural entre a ge- cada alerta individualmente. A avaliação leva
ração dos alertas nos meses chuvosos e secos, em consideração: o histórico de uso e cobertu-
que, se observada durante períodos de tempos ra, condição de acesso, existência de cadastro de
maiores (como um ano), é dispersada, garantin- proprietário, histórico de vistorias próximas, entre
do um imageamento sistemático do território. Da outros aspectos. Após essa análise, o alerta é va-
mesma forma, existe uma variedade de frequên- lidado e enviado à equipe de fiscalização mais
cia de imagens dentro do estado que pode aca- próxima. Todas as decisões são tomadas de for-
bar influenciando a frequência de recebimento de ma colegiada, com a participação de quatro re-
alertas. Contudo, mais uma vez, quando observa- presentantes das equipes de fiscalização do INEA
12
(Fiscalização Ordinária – sede do INEA e Região

revista ineana v. 09 n.01 p.06 - 23 jan > jun 2021


Metropolitana –, Superintendências Regionais, todos os alertas eram enviados por e-mail às equi-
Operações Especiais e Unidades de Conserva- pes, e seus resultados eram reportados por e-mail
ção) e de um representante da equipe de Gestão ou WhatsApp aos coordenadores do projeto. A par-
do Território e Informações Geoespaciais, além tir daí, os coordenadores buscavam manualmente
da equipe de coordenação da SEAS. os alertas no banco de dados e preenchiam os re-
A sala de situação é considerada parte essen- -
cial do projeto, e promove não só a melhoria dos mia para visualizar seus alertas de qualquer lugar
indicadores internos, como também a integração e em qualquer aparelho (celular, tablet ou compu-
das equipes participantes. Uma das vantagens da tador), desde que tenha acesso à internet, e plane-
decisão colegiada é a possibilidade de flexibilizar jar a operação. Basta acessar a pasta da equipe e,
os encaminhamentos de acordo com a real ca- posteriormente, inserir o resultado da vistoria. Nesta
pacidade das equipes de fiscalização. Por exem- -
plo, o alerta pode ser redirecionado para outras nadas do centroide do polígono, a área inicialmente
equipes em caso de ocorrências que inviabilizem detectada, as imagens de antes e depois, as datas
a fiscalização por determinados agentes, como das imagens processadas, o bairro, o município e
veículo em manutenção e deslocamento da equi- qualquer observação da sala de situação (Figura
pe para combate a incêndios. 6). Para preenchimento do resultado da vistoria, é
Outra mudança crucial foi a construção da apli- solicitado o tipo de supressão irregular encontrada
cação web para plataforma de análise e mapea- (corte ou queimada), se houve algum ato adminis-
mento baseada em nuvem, dentro do serviço do
Arcgis Online, para encaminhamento de alertas e

Figura 6 - Exemplo de interface da aplicação web do projeto


Fonte: Projeto Olho no Verde 13
Em 2017, na busca por uma alternativa que Em 2019, o projeto se dedicou à ampliação de
revista ineana v. 09 n.01 p.06- 23 jan > jun 2021

permitisse otimizar a fiscalização e utilizar todos parcerias institucionais para a expansão das ativi-
os alertas detectados, mesmo aqueles que por- dades de fiscalização. Uma das primeiras parce-
ventura não foram encaminhados para fiscali- rias estabelecidas foi a incorporação dos alertas
zação (seja pela dificuldade de acesso, seja pelo da plataforma Mapbiomas4 à sala de situação do
tamanho ou histórico do local), foi implementada Olho no Verde, expandindo a área monitorada
a notificação via correio. Notificações administra- para todo o estado, ainda que em uma menor re-
tivas são enviadas com uma breve apresentação solução espacial do que os 10.000 km² monitora-
sobre o projeto e com uma solicitação para o pro- dos diretamente pelo projeto.
prietário do terreno buscar a unidade administra- Neste mesmo ano, também foi publicada a
tiva do INEA mais próxima para prestar esclareci- Resolução SEAS nº 22, de 3 de julho de 20195, es-
mentos sobre a supressão detectada (Figura 7). tabelecendo o programa Parceiro Olho no Verde,
Em 2018, foram realizados investimentos em que procurava incentivar os municípios a atuarem
ações de comunicação, visando à divulgação do também na fiscalização de alertas do projeto. A
projeto e à consequente prevenção de novos des- SEAS enviaria os alertas aos fiscais municipais e,
matamentos. Para isso, foram instaladas 92 pla- em contrapartida, o município enviaria o resulta-
cas viárias (Figura 8) e foram adquiridas 2.000 do da vistoria. A resolução visou principalmente
placas de PVC a serem instaladas durante as vis- ao encaminhamento de alertas localizados em
torias (Figura 9). áreas urbanas, onde os municípios habilitados

Figura 7 - Notificação enviada via correio aos proprietários de terrenos que sofrem algum tipo de desmatamento

14 Fonte: Projeto Olho no Verde


revista ineana v. 09 n.01 p.06 - 23 jan > jun 2021
Figura 8 - Placa viária instalada pelo projeto
Fonte: Projeto Olho no Verde

Figura 9 - Placa de PVC instalada durante fiscalização

15
Fonte: Projeto Olho no Verde
para licenciamento possuem prioridade na autori- Janeiro, no momento da fiscalização, o fiscal gera
revista ineana v. 09 n.01 p.06- 23 jan > jun 2021

zação de supressão. apenas o Relatório de Vistoria e o Auto de Cons-


Em 2020, iniciou-se a aproximação com o Mi- tatação (Figura 10), nos quais são descritos todos
nistério Público Estadual, para o apoio deste na os aspectos observados (com seus atenuantes e
relação com os municípios e discussão sobre um agravantes), sem, no entanto, entrar no mérito do
tema sensível que ainda está sendo discutido in- valor das infrações observadas. Ao retornar ao
ternamente: a autuação com base apenas em ima- escritório, o fiscal abre um processo administrati-
gem de satélite, sem necessidade da vistoria de vo, no qual anexa seu relatório de vistoria e o auto
campo. Inspirado nas autuações de trânsito com- de constatação, e o encaminha ao setor de valo-
provadas por imagens, e tendo em vista a capaci- ração dos autos. Esta equipe, a partir dos fatos
- narrados nos documentos, é responsável por defi-
poração da tecnologia em diversas esferas jurídicas nir o valor que será declarado no auto de infração
(especialmente no ano de 2020), o tema está em do processo. Em seguida, o auto de infração é en-
processo de discussão, considerando as normativas caminhado ao infrator para efetivação da diligên-
estaduais existentes, especialmente a Lei Estadual cia ou contestação. Tal medida protege os fiscais
nº 3.467, de 14 de setembro de 2000, que dispõe so- no momento da vistoria e visa à diminuição da
bre as sanções administrativas derivadas de con- exposição do fiscal às tentativas de suborno por
dutas lesivas ao meio ambiente no Estado do Rio parte dos infratores. O grande desafio, porém, se
de Janeiro. Nesse contexto, já há algumas iniciati- encontra na diferença de tempo decorrido entre
vas similares em escala federal, como a Operação o envio dos alertas, a fiscalização e a geração da
Controle Remoto e Panóptico, do Instituto Brasileiro infração. Em média, leva mais de um ano para a
do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis geração do auto de infração, que ainda é passí-
(IBAMA), e Amazônia Protege, do Ministério Público vel de contestação e judicialização. Sendo assim,
Federal (MPF) (IBAMA, 2017; 2018), embora não se- para que o projeto conseguisse monitorar todo o
jam completamente replicáveis na escala e realida- andamento do processo administrativo, seria pre-
ciso que o fiscal inserisse o número do processo
Apesar da complexidade, é preciso considerar, na plataforma, e as demais equipes também in-
em normativas estaduais, a existência e a eficiên- formassem o seu andamento.
cia das imagens de satélite, em especial as de
altíssima resolução espacial que gerem produtos
precisos cartograficamente e que possuam regis- 3. Discussão sobre as estatísticas do
tro e direito legal de uso, como prova cabal do projeto
dano ambiental ilegal.
Nessa direção, há um parecer favorável da
Procuradoria do INEA (disposto no processo SEI- Até 2019, 1.389 vistorias ocorreram em conse-

070026/000742/2020). Nesse parecer, a Procu- quência dos alertas emitidos pelo projeto. Em 962
radoria entende que, embora o instrumento não delas (69%), foi constatada supressão de vegeta-
deva ser a regra para autuação no estado, é legí- ção irregular, ou seja, desmatamento ilegal. Dentre
timo a sua utilização para construção do auto de
as supressões irregulares, em 366 casos (38% em
constatação, desde que resguardada suas devi-
-
das limitações quanto à construção da infração.
res) foram encontrados os responsáveis, sendo ge-
Por fim, discute-se também a ampliação do
monitoramento dos alertas até a geração do auto rado algum tipo de auto administrativo (Figura 11).

de infração e/ou sanção administrativa e seu real Uma importante questão a se considerar é a
cumprimento pelo infrator. No Estado do Rio de quantidade de alertas enviados às equipes, sem-
16
revista ineana v. 09 n.01 p.06 - 23 jan > jun 2021

Figura 10 - Fluxo de atividades do projeto, destacando ações que ainda precisam ser monitoradas

17
Fonte: Projeto Olho no Verde
revista ineana v. 09 n.01 p.06- 23 jan > jun 2021

2016 2017 2018 2019

Figura 11 - Distribuição de vistorias ao longo dos anos em frequência e área


Fonte: Projeto Olho no Verde

pre maior que a sua capacidade de resposta. Em- te sentido, se avaliarmos a quantidade de alertas
bora sobrepostos às áreas inscritas no CAR, observa-
remos que apenas 37% das áreas possuem regis-
de respostas, resultado de uma série de ações com tro (Figura 12). A identificação de proprietários
no CAR é uma das principais ferramentas utili-
que demonstra que o projeto pode alcançar pa- zadas pelo projeto, de modo que a ausência de
tamares mais elevados, desde que haja fomento cadastro em 63% das consultas prejudica a efeti-
institucional. O mesmo ocorreu em 2019, graças às vidade não só das vistorias oriundas do Olho no

parcerias realizadas. Verde, como de todas as ações de fiscalização.

Por outro lado, é perceptível o baixo número de Torna-se, portanto, imprescindível ampliar a

vistorias que ocasionaram alguma autuação ad- adesão dos proprietários fluminenses ao CAR, e,

ministrativa aos infratores, reflexo da dificuldade principalmente, validar os cadastros já existen-

na identificação de infratores e proprietários. Nes- tes no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental


18
revista ineana v. 09 n.01 p.06 - 23 jan > jun 2021
Figura 12 - Distribuição de alertas em que foram constatados supressão irregular por sobreposição a áreas inscritas no CAR
Fonte: Projeto Olho no Verde

Rural (SISCAR). A coordenação do projeto, no en- do a partir das classes de vegetação do mapea-
tanto, busca diversificar as fontes de informações mento de uso do solo do INEA, o polígono prioriza
de proprietários, buscando parcerias com muni- as bordas das unidades de conservação e exclui
cípios, para acesso à base de Imposto Predial e áreas militares e áreas com constante presença de
Territorial Urbano (IPTU), e com os cartórios, para nuvens, como é o caso da Ilha Grande. Através do
acesso aos Registros de Imóveis. mapa de calor apresentado na Figura 13, podemos
Já a avaliação da distribuição espacial dos aler- observar os locais com maior presença de visto-
tas pelo estado torna-se especialmente delicada, rias com desmatamento ilegal constatado, além
uma vez que o polígono de monitoramento não se da localização de áreas urbanas.
-

Figura 13 - Mapa de calor de vistorias com supressão irregular constatada

19
Fonte: Projeto Olho no Verde
É possível observar uma proximidade de João da Barra, se destaca como um ambiente
revista ineana v. 09 n.01 p.06- 23 jan > jun 2021

zonas urbanas com as áreas onde mais fre- plano, sem ocupação urbana próxima, e que
quentemente foi contatada supressão irregular, sofre grande pressão em sua fitofisionomia, de -
indicando um padrão de desmatamento, princi- mandando maior atenção do estado.
palmente nas bordas das cidades. Para avaliar os municípios com áreas de
Avaliando a características dos alertas em desmatamento ilegal constatada, considerando
que foi constatada supressão irregular em rela- a distribuição irregular do polígono de monito-
ção ao domínio geomorfológico do terreno em ramento pelo território, optou-se pela geração
que se encontravam, também se observa um pa- de um índice proporcional ao polígono, com-
drão de localização em serras isoladas e locais parando a soma das áreas identificadas como
(Figura 14), se assemelhando à dinâmica descrita supressão irregular com a área monitorada no
pelo trabalho de Dos Santos et al. (2020). município em questão (Tabela 1).
Assim sendo, há um indicativo de priorização Os resultados demonstram a variabilidade
de políticas de conservação em áreas próximas de realidades no estado e não denota, a princí-
a zonas urbanas, principalmente em áreas de pio, uma dinâmica regional clara de composição
serras isoladas e locais onde ainda há fragmen- de uma frente de desmatamento.
tos de vegetação devido à dificuldade de acesso.
Em caráter excepcional, no entanto, a área
de restinga próxima ao Porto do Açu, em São

Figura 14 - Distribuição dos alertas em locais onde foi constatada supressão irregular por domínio geomorfológico (de acordo
com mapeamento CPRM, escala 1:100.000)
Fonte: Projeto Olho no Verde

20
revista ineana v. 09 n.01 p.06 - 23 jan > jun 2021
Tabela 1 – Ranking dos 15 municípios com mais alertas de desmatamento ilegal constatado,
quando comparados com a extensão do seu polígono de monitoramento

Quantidade
de alertas Área do polígono Área dos alertas
Área somada
Posição Município com supressão de monitoramento / área do polí-
dos alertas (m2)
irregular (m2) gono (%)
constatada

1 Araruama 3 96.695,60 17.097.497,77 0,566

2 Japeri 6 31.678,39 16.867.782,97 0,188

3 Bom Jardim 6 85.538,98 68.294.857,32 0,125

Armação
4 77 66.388,40 54.933.405,32 0,121
dos Búzios

5 Seropédica 11 55.017,57 50.670.803,08 0,109

6 Tanguá 5 30.922,73 34.017.304,78 0,091

Barra do
7 23 234.501,89 258.328.107,04 0,091
Piraí

8 Mendes 25 77.258,92 98.944.354,81 0,078

Arraial do
9 13 47.127,91 60.749.200,96 0,078
Cabo

10 São gonçalo 7 58.510,30 75.728.300,74 0,077

11 Rio Bonito 25 119.044,36 171.162.935,56 0,070

Rio de
12 90 227.819,82 330.594.732,06 0,069
Janeiro

13 Paraty 97 247.607,85 414.814.055,02 0,060

Rio das
14 2 7.211,13 13.580.414,96 0,053
Ostras

Mangara-
15 21 81.264,75 157.738.767,57 0,052
tiba

Fonte: Projeto Olho no Verde 21


4. Conclusões e/ou recomendações
revista ineana v. 09 n.01 p.06- 23 jan > jun 2021

Embora muitos avanços tenham sido conquis- CRONEMBERGUER, F. M. Paisagens da Serra


tados, ainda há muitas barreiras a serem rompi- do Mar: uma análise geoecológica da dinâmica da
das visando a melhor conservação ambiental dos paisagem. 2014. 159 p. Tese (Doutorado em Geo-
fragmentos florestais ainda existentes. grafia) – Programa de Pós-Graduação em Geo-
Um dos desafios a serem enfrentados é a nor- grafia, Universidade Federal Fluminense, Niterói,
matização da autuação com base em imagem de 2014.
satélite como alternativa para a fiscalização em
casos em que claramente seja possível observar a SANTOS, L. D.; SCHLINDWEIN, S. L.; FANTINI, A.
supressão de vegetação nativa e nos quais haja a C.; HENKES, J. A.; BELDERRAIN, M. C. N. Dinâmi-
informação sobre o proprietário. Neste contexto, ca do desmatamento da Mata Atlântica: causas e
é importante avançar na identificação de proprie- consequências. Revista Gestão & Sustentabilida-
tários, com acesso às informações de IPTU, cartó- de Ambiental, v. 9, n. 3, p. 378-402, jul./set. 2020.
rios, CAR e demais bases disponíveis.
Outro desafio é ampliar o monitoramento dos GELAIN, A. J. L.; LORENZETT, D. B.; NEUHAUS,
alertas até a geração do auto de infração e/ou M.; RIZZATI, C. B. Desmatamento no Brasil: um
sanção administrativa e seu real cumprimento problema ambiental. Revista Capital Científico-
pelo infrator, a fim de verificar a eficiência das -Eletrônica (RCC-e), v. 10, n. 1, 2012.
ações de fiscalização.
Da mesma forma, faz-se necessário o rein- INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E
vestimento em ações de comunicação do projeto, DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS. Amazô-
não só como forma de divulgação de suas ações, nia Protege: PF, Ibama e ICMBio propõem ações
mas também, e principalmente, como forma de civis públicas para punir responsáveis por desma-
prevenção a ocorrência de novos desmatamen- tamentos ilegais. 2017. Disponível em: http://www.
tos ilegais. Entende-se que o custo de ações deste ibama.gov.br/noticias/422-2017/1260-amazonia-
tipo é significativamente menor que o custo para -protege-mpf-ibama-e-icmbio-propoem-acoes-
reparação dos serviços florestais ofertados pelos -civis-publicas-para-punir-responsaveis-por-des-
remanescentes existentes. matamentos-ilegais. Acesso em: 20 abri. 2021.
Por outro lado, importante estar sempre atento
às novas tecnologias que podem viabilizar mudan- INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE
ças na metodologia e nos processos do projeto. E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS. Ope-
Cabe ressaltar também que, além de comba- ração Panóptico: Ibama adota nova estratégia
ter o desmatamento, os alertas e ações de fisca- para prevenir desmatamento na Amazônia. 2018.
lização relacionadas ao projeto são uma porta de Disponível em: http://www.ibama.gov.br/ultimas-
entrada para a descoberta e o combate a outros -3/1581-operacao-panoptico-ibama-adota-no-
crimes ambientais e atividades ilegais. Constru- va-estrategia-para-prevenir-desmatamento-na-
ções irregulares, empreendimentos sem licencia- -amazonia. Acesso em: 20 abri. 2021.
mento e até atividades como caça e tráfico de
animais silvestres já foram desmantelados graças INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE (Rio de
a ações de fiscalização no âmbito do Projeto Olho Janeiro). Uso e cobertura do solo – RJ 2018. Rio
no Verde, como constatado nos relatos de vistoria de Janeiro, 2020. Escala 1:100.000. Disponível em:
inseridos pelos fiscais na plataforma do projeto https://inea.maps.arcgis.com/home/item.html?i-
no Arcgis Online. d=634cd01b3473409c96d87bb41caeb87e. Acesso
22 em: 20 abri. 2021.
MENESES, P. R.; ALMEIDA, T. (org.). Introdução America Albers Equal Area Conic”, baseado em

revista ineana v. 09 n.01 p.06 - 23 jan > jun 2021


ao processamento de imagens de sensoria- imagens LANDSAT-5 e LANDSAT-8. Disponível em:
mento remoto. Brasília: [s.n.], 2012. https://inea.maps.arcgis.com/home/item.html?i-
d=634cd01b3473409c96d87bb41caeb87e
MYERS, N.; MITTERMEIER, R. A.; MITTERMEIER, ² Disponível em: https://www.sosma.org.br/ini-
C. G.; FONSECA, G. A. B.; KENT, J. Biodiversity hots- ciativa/nova-historia-para-a-mata-atlantica/
pots for conservation priorities. Nature, v. 403, p. ³ Disponível em: https://www.globalforestwat-
853-858, 2000. ch.org/
4
Informações disponíveis no link: http://plata-
NAPOLEÃO, P. R. M.; OLIVEIRA, T. M. M.; FER- forma.alerta.mapbiomas.org/ .
REIRA, R. Projeto Olho no Verde: o uso de ima- 5
Em 2019, ano em que foi lançada a iniciativa
gens de satélite no monitoramento do desma- Mapbiomas® Alertas, foram gerados 22 alertas
tamento no Estado do Rio de Janeiro. Revista pelo projeto, dos quais 11 foram validados pela
Ineana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 6-29, jul. 2017. sala de situação e enviados às equipes de fisca-
Disponível em: http://www.inea.rj.gov.br/wp-con- lização.
tent/uploads/2019/01/Ineana-5_Completa-Ver-
s%C3%A3o-Web.pdf. Acesso em: 19 jan. 2021.

FUNDAÇÃO SOS MATA ATL NTICA. Atlas dos


Sobre os autores
remanescentes florestais da Mata Atlântica: re-
latório técnico: período 2017-2018. São Paulo: SOS Roberta Brasileiro
Mata Atlântica, 2019. Disponível em: https://www. Pós-graduada em Gestão Empresarial
sosma.org.br/wp-content/uploads/2019/10/ com ênfase em Sustentabilidade pela
Atlas-mata-atlanticaDIGITAL.pdf. Acesso em: 19 Fundação Getúlio Vargas e bacharel
jan. 2021.
oito anos em projetos que envolvam

TABARELLI, M.; PINTO, L. P.; SILVA, J. M. C.; geotecnologia. Foi coordenadora

BEDE, L. C. Desafios e oportunidades para a con- do Projeto Olho no Verde, na


Coordenação de Gestão Ecossistêmica
servação da biodiversidade na Mata Atlântica
da Secretaria de Estado do Ambiente e
brasileira. Megadiversidade, v. 1, n. 1, p. 132-138,
Sustentabilidade (SEAS).
2005.
Vitória Araújo
YOUNG, C. E. F. Desmatamento e desemprego Bacharel e licenciada em Geografia
rural na Mata Atlântica. Floresta e Ambiente, v. pela UFF. Atualmente, cursa
13, n. 2, p. 75-88, 2006. Especialização em Análise Ambiental e
Gestão Territorial na ENCE/IGBE, com
conclusão prevista para agosto/2021.
Atua como analista ambiental no INEA,
Notas
integrando a equipe de Sensoriamento
¹ Dados de acordo com mapeamento de uso Remoto da Gerência de Gestão do

e cobertura do solo do INEA para o ano de 2018, Território e Informações Geoespaciais,

escala 1:100.000, considerando as classes de ve- onde é responsável por administrar a


aplicação web para a plataforma do
getação secundaria em estágio médio e avan-
Projeto Olho no Verde.
çado, mangue, restinga, reflorestamento e co-
munidade relíquia, calculado na projeção “South
23
Foto: Pedro Lobo

Saneamento básico: universalização da


rede de esgoto segue sendo um desafio na
Região Metropolitana do Rio
Qual é o Tempo que o Tempo do
Tempo Seco tem?

revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021


Plano de Ações de Mediação para
a implantação dos Coletores de
Tempo Seco em favelas da Região
Hidrográfica da Baía de Guanabara
What is the Deadline of the Dry Weather Sewage Collectors?
An Action Plan of Mediation for its implementation in slums at
the Guanabara Bay Water Basin

Maria da Silveira Lobo

Resumo Abstract
O Edital de Concorrência Internacional de Concessão The International Auction Notice for the Public Con-
da Prestação Regionalizada dos Serviços Públicos de cession of Water and Sewage Services of the State
Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário e dos of Rio de Janeiro foresees the implementation of
Serviços Complementares dos Municípios do Estado Dry Weather Sewage Collectors (DWSC) in slums
do Rio de Janeiro (nº 01/2020) prevê a implantação of 8 cities of the Guanabara Bay´s Basin in order
de Coletores de Tempo Seco (CTS) em oito municípios to diminish its pollution. The reaction to its terms
da Região Hidrográfica V para minimizar a poluição has stimulated the conception of an Action Plan of
da Baía de Guanabara. A reação ao edital suscitou Mediation of conflicts to be led by the Committee
um Plano de Ações para a Mediação de Conflitos, of the Water Basin of the Guanabara Bay with the
a ser liderado pelo CBH-BG com a participação de participation of key stakeholders. It was developed
stakeholders. O plano foi desenvolvido no curso de during the training course Integrated Urban Water
treinamento online de Gestão Integrada de Recursos Management, offered online by UN-Habitat and
Hídricos Urbanos oferecido pela ONU-Habitat e o the International Center for Urban Training of South
Centro Internacional de Treinamento Urbano da Coréia Korea, in Dec. 2020. The article presents the me-
do Sul, em dezembro de 2020. O artigo apresenta as thodology of the grounded theory used to analyze
metodologias da teoria fundamentada nos dados, governance issues and of the strategic and partici-
utilizada em reflexões sobre questões de governança patory Action Plan of Mediation. With focus on the
e gestão; do planejamento estratégico; e da pesquisa- criticisms and the contributions presented to the
ação-participativa do Plano de Ações de Mediação. National Social Development Bank, the proposal is
Com foco nas críticas encaminhadas ao BNDES na fase subdivided into three activities during a five years´
de consulta pública do edital, a proposta de mediação period: a) selection of the locations where to im-
subdivide-se em três atividades, a serem executadas plement the temporary solution; b) legal framework
num prazo de cinco anos: seleção de favelas a serem for the multiple uses of the bodies of waters in these
beneficiadas pelos CTS, enquadramento de corpos territories and c) monitoring program of the works
hídricos nestes territórios e monitoramento das obras and of the quality of water.
e da qualidade da água.

Palavras-chave Keywords 25
Gestão Integrada de Recursos Hídricos Urbanos. Integrated Urban Water Management. Sanitation.
Saneamento. Sustentabilidade. Sustainability.
1. Introdução
revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021

Visando alcançar a universalização do sanea-


PROBLEMA
mento e, em curto prazo, minimizar a poluição da
Baía de Guanabara e dos seus corpos afluentes,
melhorando, assim, a balneabilidade das praias e
lagoas, o edital de Concessão do Saneamento do
Estado do Rio de Janeiro prevê a implantação do
sistema de Coletores de Tempo Seco (CTS) nos mu-
nicípios de Belford Roxo, Duque de Caxias, Itaboraí,
Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro e
São Gonçalo. Os CTS são estruturas de intercepta-
ção de esgoto dimensionadas para a coleta do flu- Na Região Hidrográfica V (Bacia da Baía de Guana-
bara) há áreas em que não há saneamento básico e
xo de água em períodos sem chuva. Dessa maneira,
o esgoto é lançado direto nos rios e outras em que o
quando chove, o excesso de efluentes segue o curso sistema não é eficiente. Nestas áreas, o esgotamento
normal das galerias ou cursos de água (Figura 1). sanitário é ligado nas galerias de águas pluviais e a
De acordo com o edital levado à consulta públi- água poluída desemboca em rios que drenam para a
Baía de Guanabara.
ca (GERJ, 2020), o sistema CTS poderia ser implan-
tado tanto em áreas já urbanizadas como em áreas
irregulares não urbanizadas. As áreas seriam pro-
SOLUÇÃO
postas pela concessionária e aprovadas pela agên-
cia reguladora. Os critérios de priorização para a
escolha das áreas onde seriam implantados os CTS
eram: (i) regiões com rede coletora não conectada
com Estação de Tratamento de Esgoto (ETE); e (ii)
área sem rede coletora, mas com possibilidade de
enviar o esgoto coletado por tempo seco para uma
ETE existente (mesmo que a ETE precise de alguma
intervenção). A escolha das áreas irregulares que
receberiam os investimentos já nos primeiros cinco O edital de concessão tem como meta, a longo pra-
zo, a universalização do sistema separador absoluto
anos também caberia à concessionária, alinhada
das redes de água e esgoto. E a curto prazo, a implan-
com o estado e a agência reguladora, em função do tação do sistema de Coletores de Tempo Seco (CTS)
planejamento de urbanização e das condições de em algumas dessas áreas para minimizar a poluição.
segurança. A ampliação de toda a rede de abaste- Ou seja, estruturas de interceptação de esgoto para
a coleta do fluxo de água em períodos sem chuva. O
cimento de água e de esgotamento sanitário deve-
esgoto coletado desta forma é então encaminhado a
ria ocorrer ao longo de 20 anos. Durante a implan- uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE).
tação do sistema CTS, a ampliação do sistema de
esgotamento sanitário do tipo separador absoluto,
voltada à universalização do serviço público, seria Figura 1 - Esquema do Sistema Unitário e Esquema do Sistema
Separador Absoluto
adiada por cinco anos. Não haveria cobrança de
Fonte: Mutti (disponível em: http://drhima.poli.ufrj.br/images/
tarifa em decorrência da operação dos coletores de documentos/tcc/2015/pedro-rogrigues-2015.pdf)
tempo seco, e a meta de atendimento seria conta-
bilizada apenas para o sistema separador absoluto.

26
revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021
O edital provocou uma série de manifesta- rantir o controle social da prestação de serviços
ções, contestações e propostas apresentadas – comitê de monitoramento X comitês de bacias
em artigos acadêmicos, webinários, na mídia, nas hidrográficas; e f) qualificação do verificador/
redes sociais e, sobretudo, durante a consulta certificador independente dos serviços prestados
pública. As principais críticas e reivindicações ao pela concessionária.
Anexo IV - Caderno de Encargos foram: a) ques- É importante analisar como o novo modelo de
tionamento da solução temporária de CTS; b) a concessão de saneamento afetará a governança
perda de poder do município na escolha de locais dos recursos hídricos, as relações entre os diver-
a serem beneficiados e preocupação com ônus sos níveis governamentais – União, Governo do
da manutenção; c) necessidade de delimitar em Estado e Municípios da Região Metropolitana –,
contrato as áreas irregulares que serão benefi- bem como as relações entre os órgãos colegia-
ciadas; d) necessidade de cronograma de metas dos do Sistema Nacional de Gerenciamento de
para universalização do saneamento e receio de Recursos Hídricos (SINGREH), em especial as do
prorrogação ou postergação de investimentos Comitê de Bacia Hidrográfica da Baía de Guana-
com o consequente adiamento da solução defini- bara (CBH-BG) e seus subcomitês. Afinal, uma das
tiva; e) questionamento da governança para ga- questões mais intrigantes é compreender porque

Figura 2 - Mapa dos aglomerados subnormais por setor censitário

Fonte: RHA Engenharia e Consultoria

27
revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021

diversos atores-chaves da Região Hidrográfica V de Recursos Hídricos, além dos instrumentos de


consideram que “o problema da poluição da Baía gestão urbanística, à nova gestão do saneamen-
de Guanabara é um problema de governança”. to proposta pelo edital?; e, por fim, como empode-
A leitura do edital para a consulta pública sus- rar os moradores das áreas irregulares, de forma
citou as seguintes perguntas em relação à gover- a terem participação nas decisões sobre os novos
nança da Região Hidrográfica V e ao papel do co- investimentos em saneamento básico e no monito-
mitê: por que o CBH-BG não é mencionado?; por ramento de seus impactos?
que os planos de referência do edital são o Pla- A partir destas perguntas, foram definidos dois ob-
no Metropolitano de Saneamento, um estudo do jetivos para ações futuras: (i) propor métodos partici-
Consórcio Fator, Concremat e VG&P Advogados, pativos e outros critérios para a escolha da localização
e um conjunto de planos municipais de universa- dos investimentos em obras de ampliação do sistema
lização de saneamento?; por que os municípios de abastecimento de água e do sistema de esgota-
perderam poder quanto à escolha dos locais para mento sanitário em áreas irregulares dos municípios
a implantação do sistema de CTS e das áreas ir- do lado oeste da Bacia Hidrográfica Baia de Guanaba-
regulares que deverão receber investimentos de ra (BHBG), assinaladas em vermelho na Figura 2, e (ii)
saneamento básico, em que pese o fato de que elaborar uma proposta preliminar de enquadramento
passariam a receber 3% das outorgas variáveis?; de corpos hídricos localizados no território do lado oes-
como integrar a política ambiental, os instrumen- te da BHBG, em substituição à apresentada no Plano
tos de gestão dos recursos hídricos de competên- da BHBG de 2005 (CONSÓRCIO ECOLOGUS-AGRAR,
cia do CBH-BG e demais entidades do Sistema 2005), conforme o mapa na Figura 3.

Figura 3 - Proposta de enquadramento de corpos hídricos

Fonte: Consórcio Ecologus-Agrar

28
2. Material e métodos

revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021


reportagens de televisão, posts em redes sociais etc.
Essa abordagem interpretativa foi considerada a
Para responder à primeira questão (por que o mais adequada, tendo em vista que a pesquisadora
Comitê da BHBG não foi considerado no edital?), é membro do CBH-BG desde 2018.
adotou-se a metodologia de pesquisa da teoria fun- A pesquisa teve como ponto de partida a análise
damentada em dados, a grounded theory, desen- dos avanços, desde 2018, e do que ainda falta avan-
volvida nos anos 1960 por dois sociólogos e segundo çar, por parte do comitê, para o aperfeiçoamento da
a qual as proposições teóricas surgem dos dados governança das águas e do enfrentamento da crise
obtidos em pesquisas, mais do que de estudos an- hídrica na Região Hidrográfica da Baía de Guanaba-
teriores (GLASER; STRAUSS, 2017). O pesquisador ra. É o que ilustra o Quadro 1.
formula e faz perguntas básicas, como “o que está Numa segunda etapa, foi estudada a distinção
acontecendo?”, “qual é o principal problema dos entre os conceitos de governança e gestão na política
participantes?” e “como eles estão tentando resolvê- de recursos hídricos em documentos normativos da
-lo?”. As respostas e ideias são, então, codificadas e Agência Nacional de Águas (ANA), do Observatório
agrupadas, primeiramente, em conceitos e, depois, de Governança das Águas, bem como em material
em categorias. Assim, as hipóteses emergem a partir analítico publicado nos artigos da revista Ambien-
de dados coletados envolvendo o raciocínio induti- te & Sociedade ou apresentado em seminários e
vo. Trata-se de um processo comparativo em que webinários sobre o tema, como os organizados pelo
o nível de abstração aumenta progressivamente. De Museu do Amanhã e a Federação das Indústrias do
acordo com a teoria fundamentada, “tudo é data” Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN), de 2017 a 2020.
para o pesquisador: entrevistas e observações, re- Como referências teóricas, destacam-se o relatório
gistros de pesquisa de campo a partir de entrevistas da Aliança pela Água O município e a governança
informais, palestras, seminários, reuniões de espe- da água (NEVES, 2018), o livro Adapting Cities, de
cialistas e não especialistas, artigos de jornal e re- Ebba Brink (BRINK, 2018), e a tese de Natália Ribeiro
vistas, grupos de mensagem instantânea e emails, (RIBEIRO, 2020).

Quadro 1 - Análise dos avanços


Avanços até o fim de 2020 O que falta avançar

- Planejamento Estratégico, Controle Social e Gestão Financeira - Fortalecer e estabelecer instrumentos de gestão
2019-2022 - metodologia do Dragon Dreaming

- Dinâmicas e oficinas participativas do PPA (Plano de Aplicação


Plurianual)
- Resposta aos desafios do saneamento e seu novo
- Criação de 8 Macroprogramas: instrumento de gestão; coleta marco com a iminente privatização da CEDAE
e tratamento de esgoto sanitário; resíduos sólidos, drenagem e
água; monitoramento quali-quantitativo; infraestrutura vende;
educação ambiental; mobilização e capacitação; comunicação e
fortalecimento institucional; apoio à pesquisa
- Enfrentamento da crise hídrica e da pressão do
crescimento urbano desordenado
- Oficina Aquário

- Estruturação dos GTs e CTs

- Parcerias com Atores do Judiciário, do Legisllativo, do - Contribuição para a mitigação e a adaptação


Executivo, do Setor Privado sustentável dos ecossistemas fluviais, lagunares e
marinhos às mudanças climáticas
- Convênio com Ministério Público - SIG e TAC FUNDRHI

- Novo Plano: diagnóstico já foi concluído

- Escritório de projetos e Relatórios de Territorialidade

Fonte: Elaborado pela autora 29


revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021

Quanto ao conceito de participação social, des- anos, o planejamento estratégico do mundo dos ne-
tacam-se como referências o famoso artigo sobre gócios foi migrando, ou melhor, sendo incorporado
participação cidadã de Sherry Arnstein (ARNSTEIN, por outras disciplinas e pela administração pública.
1969) e a obra seminal do cientista político Norber- Ressalte-se que o edital prevê que a concessionária
to Bobbio O Futuro da Democracia: uma defesa apresente um plano de ação à agência reguladora,
das regras do jogo (BOBBIO, 1986). Ressalte-se que no máximo 180 dias após a assinatura do termo de
a crítica à manipulação como forma ilusória de par- transferência, o qual terá de ser revisto a cada cinco
ticipação, do final dos anos 1960, e da qual Arnstein anos. No urbanismo, o Planejamento Urbano Estra-
foi um dos expoentes, se insurgiu contra os projetos tégico, também conhecido como Projetos de Reno-
de renovação urbana e de combate à pobreza que vação Urbana, começou a ganhar espaço após o
haviam adotado alguns expedientes participativos paradigmático Plano de Reestruturação Urbana de
em benefício do grande capital e dos setores afluen- Barcelona para os Jogos Olímpicos de 1992. Hoje em
tes da sociedade. A crítica atual, por outro lado, é ao dia, o Planejamento Urbano Estratégico é considera-
engajamento cidadão nas políticas de adaptação à do um tipo de governança. O geógrafo Jordi Borja e
mudança climática, visto como uma transferência de o sociólogo Manuel Castells, no livro Local y Global
responsabilidades. Bobbio, nos anos 1970, já havia (BORJA; CASTELLS, 1998), definiram o Planejamento
nos alertado que a participação de todos os cida- Estratégico Urbano como:
dãos em todas as decisões a eles pertinentes é uma
Um projeto que unifica diagnósticos, es-
proposta insensata para as modernas sociedades
pecifica ações públicas e privadas e es-
industriais, pois, além de materialmente impossível,
tabelece um quadro de referências coe-
é indesejável do ponto de vista do desenvolvimento
rente de mobilização para a cooperação
ético e intelectual da humanidade. Faz-se necessário,
de atores sociais urbanos. Um processo
como buscou o autor, desfazer equívocos como o de
participativo é uma prioridade na defini-
opor a “democracia direta” à “democracia represen-
ção de conteúdo na medida em que será
tativa”, ou o de desmantelar o Estado do Bem-Estar
a base para a viabilidade dos objetivos
Social (Welfare State) para combater o excesso de
e ações propostas. O resultado do Plano
Estado representado pela burocratização, o corpo-
Estratégico não deve ser necessariamen-
rativismo e o assembleísmo. Em resumo, para evitar
te a criação de resoluções ou de um pro-
extremos, as regras do jogo democrático precisam
grama de governo (embora sua adoção
ser respeitadas.
pelo Estado e o Governo Local deva ins-
No que concerne ao referencial teórico-concei-
tigar regulamentos, investimentos, medi-
tual do Plano de Ação (Action Planning), é impor-
das administrativas, políticas, iniciativas
tante esclarecer que se trata de um método es-
etc) mas sim de um contrato de política
tratégico que começou a ser usado nos anos 1980
entre as instituições públicas e a socie-
por grandes companhias para ajudar no foco e na
dade civil. Por essa razão, o processo que
definição das etapas necessárias ao alcance de de-
se segue à aprovação do plano e o mo-
terminados objetivos, e que até hoje é um aspecto
nitoramento e a implementação de me-
importante do gerenciamento estratégico. Várias
didas ou ações é tão ou mais importante
empresas e firmas de consultoria desenvolveram
do que o processo de elaboração e de
ferramentas analíticas e técnicas para auxiliar no
aprovação consensual.
planejamento estratégico, como, por exemplo, a
análise SWOT (Strengths, Weaknesses, Opportuni-
ties and Threats), ou, em português, FOFA (Forças,
Oportunidades, Fraquezas e Ameaças). Ao longo dos
30
revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021
2.1 Plano de Ações de Mediação inundações e graves consequências para a saúde
pública, como ilustrado na Figura 4.
O Plano de Ações de Mediação apresentado a Em seguida, discutiu-se quais seriam as solu-
seguir foi elaborado no curso de treinamento ções para esses problemas e descartou-se, em co-
Integrated Urban Water Management (IUWT), mum acordo, ações de remoção de habitações nas
oferecido pela ONU-Habitat e o International Urban margens dos rios, pois nem todas as três cidades
Training Center em Hongcheon-gun, na Província dispõem de territórios para realocação.
de Gangwon, Coréia do Sul, em dezembro de 2020, Foi elaborado, então, um perfil de cada cidade,
em colaboração com dois autores: Dr. Abbu Bakar composto por: população; área; recursos hídricos;
Siddique, de Bangladesh, e Thanh Nguyen Thai, do Produto Interno Bruto per capita; principais
Vietnã. A apresentação conferiu aos autores do tendências de crescimento econômico, populacional
plano o prêmio de melhores Action Plan Developers e meios de transporte; principais problemas e
do curso. O grupo multinacional discutiu quais ameaças; a visão para 2030 com objetivos para três e
seriam as características e problemas comuns a cinco anos; análise de sustentadores (stakeholders);
três cidades: Rio de Janeiro, no Brasil; Faridpur, em levantamento de leis e regulamentos-chave e da
Bangladesh; e Ho Chi Minh, no Vietnã. Concluiu- estrutura institucional relevante para o planejamento;
se que as três cidades enfrentam problemas de identificação de soluções e ações; priorização das
habitação informal em áreas não urbanizadas e ações; e o desenho do plano e de sua implementação
poluição da água, com rios negros e odoríferos, realçando as oportunidades e riscos.

Action Planning for IUWM

City's problem

Informal houses Polluted water

Black and odorour


river water

Figura 4 - Plano de Ação Waste Water Treatment Action Plan 2020. No alto à esquerda: comunidade no Rio de Janeiro (Foto:
Pedro Lobo)

Fonte: Lobo, Siddique e Minh

31
revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021

Na sequência, foram definidas quais metas da Essas soluções/ações foram, então, priorizadas
Agenda 2030/Objetivos do Desenvolvimento Susten- em função de quatro critérios: a) relevância para ne-
tável seriam trabalhadas: 6.3 - reduzir pela metade a cessidade da população; b) urgência; c) efetividade;
proporção de águas residuais sem tratamento; 11.3 e d) viabilidade técnica e financeira. A Ação 1 foi a
- melhorar a capacidade de planejamento partici- que obteve a pontuação mais alta.
pativo, integrado e sustentável dos assentamentos Na análise de stakeholders institucionais (Qua-
urbanos; e 13.2 - integrar medidas para a mudança dro 2), foram identificados aqueles que têm poder
climática nas políticas, estratégias e planejamento direto na implementação do Edital de Concessão do
municipais. As seguintes metas foram acordadas Saneamento, posteriormente subdivididos entre os
para as três cidades até 2025: reduzir em 20% a que têm pouco interesse (Companhia Estadual de
poluição dos rios e aumentar em 25% o volume de Águas e Esgotos - CEDAE; Agência Reguladora de
águas residuais tratadas por meio de um plano para Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de
assentamentos urbanos que integrasse medidas Janeiro - AGENERSA; e Assembleia Legislativa do Es-
para a mudança climática às políticas municipais. tado do Rio de Janeiro - ALERJ) ou grande interesse
Em seguida, foram identificadas quatro solu- (ministérios de Desenvolvimento Regional e da Eco-
ções/ações para atingir as metas acordadas: nomia; Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-
mico e Social - BNDES; Ministério Público do Estado
do Rio de Janeiro – MPE-RJ). Quanto aos atores-
Ação 1. Instalar coletores de tempo seco em fa velas.
-chave com poder indireto sobre a implementação
Ação 2. Aplicar tecnologia para reparo de tubulação do edital, foram agrupados entre os com pouco inte-
sem escavação. resse os sindicatos e as associações de moradores,
e, entre os com grande interesse, o Instituto Rio Me-
Ação 3. Construir sistema de esgotamento sanitário
trópole, as companhias privadas de saneamento e o
de separador absoluto.
setor de indústrias (FIRJAN), a Fundação Rio Águas
Ação 4. Melhorar a estrutura de gerenciamento. e a Vigilância Sanitária.

Quadro 2 - Análise de sustentadores institucionais

Estudo de Caso de Gerenciamento de Águas Urbanas: Bacia Hidrográfica da Baía de Guanabara (cidade do Rio de Janeiro +
16 municípios)
Projeto: descontaminação de rios e lagoas de efluentes e resíduos sólidos
Solução 1: privatização + coletores de tempo seco em favelas (urbanizadas e não urbanizadas)

P Poder Direto/Baixo Interesse Poder Direto/Alto Interesse


O
D - Companhia Estadual de Saneamento - União (Ministérios da Infraestrutura, do
E - Agência Reguladora Estadual Desenvolvimento Regional e da Economia) + Banco
R - Assembleia de Deputados Nacional de Desenvolvimento Social
- Ministério Público Federal e Estadual
D
I Poder Indireto/Alto Interesse
Poder Indireto/Baixo Interesse
R
E - Autoridade Metropolitana
- Sindicato de Trabalhadores
T - Companhias de Saneamento Privadas e Indústrias
- Associações de Moradores
O - Fundação Rio Águas
- Organizações da Sociedade Civil
- Vigilância Sanitária

INTERESSE

Fonte: Lobo, Siddique e Minh (Waste Water Treatment Action Plan 2020)

32
revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021
Quadro 3 - Oportunidades (O) e riscos (R) para a implementação do sistema de Coletores de
Tempo Seco

Capacidade técnica e
Fatores Financeiros Fatores Humanos Ambiental
tecnológica

(O) facilidade para instalar


(O) necessita de um
em morros e em áreas
orçamento bem menor
não urbanizadas;
do que o sistema de
separador absoluto;
(R) risco de
(O) existência Estações de transbordamento
(R) capacidade limitada.
Tratamento de Esgoto; durante tempestades e
(O) apoio da União e de
chuvas fortes.
parceios internacionais;

(R) falta de manutenção


de instalações e
(R) capacidade limitada.
equipamentos.

Fonte: Lobo, Siddique e Minh (Waste Water Treatment Action Plan 2020)

Foram identificadas, no Quadro 3, as oportuni- do CBH-BG, das municipalidades ou, ainda, da


dades (O) e riscos (R) associados à implementa- União, conforme prevê o Decreto Presidencial nº
ção do sistema de Coletores de Tempo Seco. 10.588, de 24 de dezembro de 2020, que regu-
Quanto à ação/meta específica ‘Proposta lamentou o Novo Marco do Saneamento (Lei nº
de Mediação’, detalhada no Quadro 4, esta teve 14.026, de 15 de julho de 2020).
como horizonte de execução o ano de 2025, e le-
vou em conta o adiamento por cinco anos, esta- - A ação nº 2 levará dois anos e será o enqua-
belecido pelo edital, na implantação do sistema dramento com o banimento da classe 4 da quali-
de Separador Absoluto durante a instalação do dade da água dos corpos hídricos dos territórios
sistema de Coletores de Tempo Seco por parte escolhidos durante a ação nº 1. Este processo,
da concessionária vencedora do leilão. Todas as com várias etapas – diagnóstico, prognóstico,
três atividades incluídas na proposta serão coor- consulta pública, cenarização, proposta de en-
denadas pelo Comitê da Bacia Hidrográfica da quadramento e plano de ação –, poderá contar
Baía de Guanabara em parceria com outros ato- com recursos do CBH-BG e das municipalidades.
res, como o Ministério Público.
- A ação nº 3, que corresponde ao monito-
- A ação nº 1 será a escolha das favelas a se- ramento participativo das obras e da qualidade
rem beneficiadas pelos CTS. Haverá um proces- da água dos corpos hídricos, será iniciada no
so participativo de baixo para cima durante o 1º segundo ano e durará até o quinto, podendo se
ano por meio do método Avaliação Rápida Par- prolongar após 2025 e contar com recursos do
ticipativa (ARP), levando em conta indicadores CBH-BG, bem como de organizações não gover-
socioeconômicos e de saúde. Os recursos para namentais, a exemplo da S.O.S. Mata Atlântica/
o desenvolvimento desta atividade poderiam vir Observando os Rios.

33
revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021

Quadro 4 - Resumo da Proposta de Mediação

Descrição Período Responsável por Recursos

5 anos (depois Sepa- Concessionária de


OBJETIVO GERAL Implantação de CTS
rador Absoluto) Saneamento
Subcomitê Oeste +
OBJETIVO ESPECÍFICO Mediação 5 anos
Promotores Públicos
Avaliação Partici-
Escolha das Favelas
2021 pativa Rápida com
Atividade 1 onde será implanta- CBH-BG + Municípios
Indicadores de Saúde
do CTS
e Socioeconômicos
Diagnóstico, Prog-
Enquadramento
nóstico, Consulta
de trechos de rios CBH-BG + Municípios
Atividade 2 2022-2023 Pública, Cenarização,
poluídos no território
Proposta de Regula-
- sem classe IV
ção e Plano de Ações
Monitoramento Par-
ticipativo das Obras
Atividade 3 Monitoramento 2022-25 CBH-BG + Municípios
e da Qualidade da
Água

Fonte: Lobo, Siddique e Minh (Waste Water Treatment Action Plan 2020)

3. Resultados e discussão cos, coletivos atrelados à temática de saneamento


básico e grupos de pesquisa acadêmicos.
Tampouco há uma resposta única e fácil para
Em relação à pergunta “por que o CBH-BG não a pergunta “por que os municípios foram ‘desem-
é mencionado no edital?”, várias explicações podem poderados’ quanto à escolha dos locais para a im-
ser consideradas. A primeira é que o Instituto Rio plantação do sistema de CTS e das áreas irregulares
Metrópole, em 2019, emergiu como principal articu- que deverão receber investimentos de saneamento
lador dos 22 municípios da Região Metropolitana. O básico, em que pese o fato de que passarão a rece-
fato de os comitês de bacia serem colegiados, e não ber 3% das outorgas variáveis?”. No entanto, deve-se
órgãos de gestão, não deveria ser impeditivo, pois considerar desde fatores de ordem macropolítica,
são essenciais para a boa governança dos recursos como a criação da Câmara Metropolitana do Rio de
hídricos necessários ao sistema de saneamento. De Janeiro e a mudança da agenda do saneamento do
fato, uma vez que o Plano está sendo atualizado, os Ministério das Cidades (MCidades) para o Ministério
instrumentos de gestão do CBH-BG poderiam ser do Desenvolvimento Regional (MDR) e para a ANA,
fortalecidos, em especial o enquadramento, a outor- até os de ordem técnico-financeiras implicados na
ga, a cobrança e o sistema de informações georre- divisão dos serviços de saneamento entre upstream,
ferenciadas. Ressalte-se que a reivindicação do Fó- que continuarão a cargo da CEDAE, e downstream,
rum Fluminense de Comitês de Bacias Hidrográficas, separados por blocos de municípios.
encaminhada por carta em 3 de agosto de 2020, Observe-se que, no edital pós-consulta pública,
para inclusão da representação de todos os comitês apenas o município do Rio de Janeiro aparece como
de bacia hidrográfica em cada um dos comitês de instância decisória para a seleção das áreas irregu-
monitoramento cujo território tenha a atuação da lares não urbanizadas, alinhado ao governo estadual
concessionária, não foi acatada. O novo edital, no e à concessionária. Contudo, não foram alterados os
entanto, incluiu, na composição do comitê de moni- critérios de localização, que permanecem sendo os
toramento, o Conselho Estadual de Recursos Hídri- de planejamento de urbanização e de condições de
34
revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021
segurança, em detrimento de critérios fundamentais, res buscou dar respostas a algumas das questões da
como, por exemplo, o de saúde pública. pesquisa citadas na introdução deste artigo, em parti-
Porém, o Decreto Estadual nº 47.422, de 23 de de- cular: ”como integrar a política ambiental, os instrumen-
zembro de 2020, veio ao encontro das reivindicações tos de gestão dos recursos hídricos de competência do
para que as regras do jogo democrático entre as ins- CBH-BG e os instrumentos de gestão urbanística à nova
tâncias governamentais sejam respeitadas, garantin- gestão do saneamento proposta pelo edital?” e “como
do, no art. 2, parágrafo único, a prevalência do Plano empoderar os moradores das áreas irregulares de for-
Diretor Municipal sobre o Plano Diretor das Concessio- ma a terem participação nas decisões sobre os novos
nárias de Saneamento, pelo menos quanto à delimita- investimentos em saneamento básico e no monitora-
ção da área urbana. mento de seus impactos?”.
A proposta realça a missão do CBH-BG enquanto
A área urbana a ser considerada é aquela
órgão colegiado de mediação de conflitos e fortalece
delimitada nos Planos Diretores de cada
sua competência legal para deliberar sobre os instru-
município e, na ausência deste plano, no
mentos de gestão de recursos hídricos. Estes poderão
definido pela legislação municipal ou, por
estar em sintonia e sinergia com a política ambiental e
último, pelo IBGE. (DOERJ, 2020).
com os instrumentos de gestão urbana, tais como o Pla-
Em relação aos prazos para o atendimento das me- no Diretor Municipal e a Lei de Uso e Ocupação do Solo
tas do edital pós-consulta pública, o montante dos in- de alguns municípios, até por uma questão de sincronis-
vestimentos nas áreas irregulares não urbanizadas da mo. O caráter participativo da proposta reempodera as
capital deverá ser implementado nos primeiros 12 anos municipalidades, e as atividades de controle social suge-
de vigência da concessão, podendo a universalização ridas fortalecem a cidadania dos moradores para além
ser alcançada até 2040, mediante maiores investimen- dos direitos do consumidor. Acredita-se também que o
tos. Quanto ao tempo do CTS, especificamente, foi Plano de Ações de Mediação proposto poderá contribuir
mantido o prazo de cinco anos de adiamento da am- para o avanço dos objetivos do próprio Planejamen-
pliação do sistema de separador absoluto enquanto os to Estratégico, Controle Social e Gestão Financeira
coletores de tempo seco estiverem sendo implantados, 2019-2022 do CBH-BG. Entre eles, dar visibilidade ao
seja na capital fluminense ou nos demais municípios. protagonismo do Comitê na proposição de arranjos lo-
Porém, uma vez que, fora da capital, com exceção de cais para o cumprimento dos serviços públicos e, dessa
Nova Iguaçu, não foram especificados locais, perma- forma, apoiar o Executivo na tomada de decisões estra-
nece a ambiguidade entre promessa e ilusão: tégicas que envolvam diversas políticas públicas. Quan-
to ao objetivo de integração dos seis subcomitês do
As estruturas de captação em tempo seco
CBH-BG, a proposta de construção coletiva, inicialmente
previstas no contrato de concessão devem
nos municípios do Subcomitê Oeste, tem potencial de
ser adotadas prioritariamente nas áreas ir-
replicabilidade e, consequentemente, de integração das
regulares, sempre como solução temporá-
partes leste e oeste da baía.
ria até a execução de rede separadora ab-
Para o cumprimento dos dois objetivos iniciais do
soluta, quando tecnicamente viável. (GERJ,
Plano de Ações de Mediação, recomenda-se:
2020, grifo da autora)
1) que as oficinas de participação social sejam fun-
damentadas em indicadores socioeconômicos, urbanís-
4. Conclusões e/ou recomendações ticos e de saúde, e não apenas no critério de condições
de segurança, conforme consta no edital.
A Tabela 1 apresenta dados alarmantes de incidên-
O Plano de Ações de Mediação para a implanta- cia de arboviroses coletados para o diagnóstico do Pla-
ção dos coletores de tempo seco nas áreas irregula- no da BHBG.
35
revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021

Tabela 1 - Prováveis casos de arbovirose em 2019

Dengue Chikungunya
Municípios
Nº de casos Incidência em Nº de casos pre- Incidência em
previsíveis 100.000 hab visíveis 100.000 hab)

Belford Roxo 445 87,5 595 117


Cachoeiras de Macacu 6 10,2 5 8,5
Duque de Caxias 680 74,4 1.462 159,9
Guapimirim 13 21,8 68 114,1
Itaboraí 529 221.,6 669 280,3
Magé 126 51,7 1.049 430,5
Maricá 41 26 612 387,9
Mesquita 10 5,7 76 43,3
Nilópolis 30 18,5 60 37
Niterói 238 46,5 178 34,8
Nova Iguaçu 143 17,5 1.580 192,9

Petrópolis 147 48,1 553 180,9

Rio Bonito 18 30,1 7 11,7

Rio de Janeiro 17.600 263,1 25.020 374,1

São Gonçalo 708 65,7 1.342 124,5

São João de Meriti 180 38,1 437 92,6

Tanguá 17 50,2 17 50,2

RH - V 20.931 205,2 33.730 330,7

Fonte: Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (2019).


Atualização do Plano da BHBG - Diagnóstico – Tomo 1 - Pág 54 – RHA Engenharia e Consultoria, 2020

Fonte: Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro/RHA Engenharia e Consultoria

Destaque-se também a análise de potenciais im- também poderá contribuir com informações valio-
pactos à saúde da população fluminense frente ao sas para as oficinas participativas.
edital de concessão de saneamento, realizada por Recomenda-se que a metodologia para essas
pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (FIO- oficinas seja a de Avaliação Participativa Rápida
CRUZ) e da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) com utilização de Dispositivos de Análise de Percep-
(SOTERO-MARTINS et. al, 2020). Nela, dados secun- ção, os quais permitem o anonimato dos participan-
dários relacionados a indicadores de saneamento tes, viabilizando, assim, a aprovação no Comitê de
foram correlacionados a indicadores de saúde e Ética em Pesquisa do Conselho de Saúde.
georreferenciados para os municípios do Estado do 2) que a Classe IV, prevista na Resolução CONAMA
Rio de Janeiro e para os bairros da capital, incluindo nº 357/2005, seja excluída do Enquadramento de
taxas de incidência da Covid-19. Corpos Hídricos.
A pesquisa Saúde Urbana: doenças de veicula- O enquadramento e, depois, o monitoramento da
ção hídrica e doenças associadas à falta de coleta qualidade da água nos corpos hídricos que serão be-
de esgoto, linha de pesquisa 13 do edital de apoio à neficiados pelos CTS são fundamentais. Essas ações
pesquisa da RHV (Chamamento Público 010/2020), previstas no Plano de Ações de Mediação contribui-
36
revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021
rão para o atingimento das metas de universaliza- (ANA, 2013). E, do ponto de vista de gestão, deve-se
ção do saneamento. Mas é preciso que as metas se- considerar que:
jam estabelecidas apenas para as classes especial,
Muitas vezes, os benefícios gerados por
I, II e III, de modo que os rios deixem de ser valões.
ter uma boa qualidade de água acabam
É o que se espera que aconteça quando o esgoto
por superar, em muito, os custos de in-
passar a ser encaminhado para as ETEs, ao invés de
vestimento em estações de tratamento
ser despejado in natura nos corpos hídricos, pelo
de esgoto. Portanto, é preciso promover
menos durante o tempo seco. Essa proposta foi ado-
a articulação dos vários níveis de plane-
tada com sucesso pelo Comitê da Bacia Hidrográfi-
jamento, como os recursos hídricos, meio
ca Piracicaba, Capivari e Jundiaí e é advogada pela
ambiente, saneamento e uso do solo.
S.O.S. Mata Atlantica e por outras organizações da
(ANA, 2013)
Frente Parlamentar Ambientalista. (RIBEIRO; TRE-
MAROLI, 2020). 3) que o monitoramento da qualidade da água
O art. 3 da Resolução nº 91/2008 do Conselho dos rios que serão interceptados pelos CTS e que te-
Nacional de Recursos Hídricos estabeleceu que “a rão seus trechos enquadrados entre as classes I e III,
proposta de enquadramento deverá ser desenvolvi- com parâmetros e prazos específicos para diluição
da em conformidade com o Plano de Recursos Hí- da carga orgânica poluente, seja acompanhado pela
dricos da Bacia Hidrográfica, preferencialmente du- observação voluntária do tipo ciência cidadã.
rante a sua elaboração”. Este é o caso do Plano da Para concluir, esperamos que o Plano de
CBBH, atualmente em atualização, sendo essa, por- Ações de Mediação proposto possa vir a ser exe-
tanto, a oportunidade ideal para a aplicação desse cutado, em resposta à questão que angustia to-
instrumento. O enquadramento, inclusive, também é dos os fluminenses: qual é o tempo que o tempo
previsto pelas políticas estaduais de recursos hídri- do tempo seco tem?
cos e, de modo geral, deve ser usado como referên-
cia para a outorga e cobrança de recursos hídricos.
Referências bibliográficas
Em relação às políticas municipais, enfatiza-se que:

O enquadramento é um instrumento que


AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (Brasil). Planos de
tem forte relação com as políticas de uso
recursos hídricos e enquadramento dos corpos
e ocupação do solo e de saneamento. Na
de água. Brasília, 2013. (Cadernos de capacita-
medida em que se estabelece um padrão
ção em recursos hídricos, v. 5).
de qualidade de água, limita-se a forma de
ocupação daquele determinado território.
ARNSTEIN, S. R. A ladder of citizen participation.
Ou, por outro lado, o planejamento da ocu-
Journal of the American Planning Association,
pação do solo, por meio de zoneamentos
v. 35, n. 4, p. 216-224, 1969.
ecológico-econômicos ou planos direto-
res, certamente irá interferir na qualidade
ABRAHÃO, F. Concessão do saneamento do Estado
da água daquela bacia. (ANA, 2013)
do Rio de Janeiro: benefícios e externalidades
No que diz respeito à relação Estado e Socie- financeiras. In: SEMINÁRIO VISÃO DO SANEA-
dade, tanto o Plano de Recursos Hídricos quanto o MENTO BRASIL E RIO DE JANEIRO, 2020, Rio de
enquadramento são instrumentos de governança Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro, FIRJAN, 2020.
que, “quando elaborados, acabam por promover
uma ação preventiva para que os potenciais con- BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das
flitos em determinado território não se instalem” regras do jogo. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
37
BORJA, J.; CASTELLS, M. Local y global: la gestión de abastecimento de água e esgotamento sani-
revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021

de las ciudades en la era de la información. Ma- tário, por blocos de municípios do Estado do Rio
drid: Taurus, 1998. de Janeiro. Disponível em: http://www.rj.gov.br/
consultapublica/documentos/Grupo_1__Edi-
BRASIL. Decreto Federal nº 10.588, de 24 de dezem- tal_e_Anexos/Anexos_II_III_IV_V_do%20EDI-
bro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e fi- TAL.pdf. Acesso em: 11 dez. 2020.
nanceiro de que trata o art. 13 da Lei nº 14.026,
de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de RIO DE JANEIRO (Estado). Decreto nº 47.422, de 23
recursos públicos federais e os financiamentos de dezembro de 2020. Institui no âmbito do Es-
com recursos da União ou geridos ou opera- tado do Rio de Janeiro o programa de valoriza-
dos por órgãos ou entidades da União de que ção e incentivo ao aprimoramento da educação
trata o art. 50 da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro básica e dá outras providências. Diário Oficial
de 2007. Diário Oficial da União: edição extra, do Estado do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro,
Brasília, p. 32, 24 dez. 2020. Disponível em: ht- ano 46, n. 238, 28 dez. 2020.
tps://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2020/decreto/d10588.htm. Acesso em: 20 MUTTI, Pedro Rodrigues. Avaliação dos princípios
abr. 2020. da adoção de sistemas de esgotamento sani-
tário do tipo separador absoluto ou unitário
BRINK, E. Adapting cities: ecosystem-based em áreas urbanas de clima tropical. 2015. 88 f.
approaches and citizen engagement in muni- Projeto (Graduação em Engenharia Ambiental)
cipal climate adaption in Scania, Sweden. 2018. - Escola Politécnica, Universidade Federal do Rio
Tese (Doutorado em Ciências Sustentáveis) – de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Disponível em:
Lund University, Suécia, 2018. http://drhima.poli.ufrj.br/images/documentos/
tcc/2015/pedro-rogrigues-2015.pdf. Acesso em:
BRITTO, A. L.; FORMIGA-JOHNSSON, R. M.; CARNEI- 09 jun. 2021.
RO, P. R. F. Abastecimento público e escassez
hidrossocial na Metrópole do Rio de Janeiro. NEVES, E. M. O município e a governança da água:
Ambiente e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 1, p. subsídios para a agenda municipal de cuidado
185-208, jan./mar. 2016. com a água. 1. ed. Rio de Janeiro: Aliança pela
Água, 2018. v. 158.
COMITÊ DA REGIÃO HIDROGRÁFICA DA BAÍA DE
GUANABARA. Oficina de planejamento estra- OBSERVATÓRIO DAS ÁGUAS. Protocolo de moni-
tégico, controle social e gestão financeira, toramento da governança das águas: resumo
2019-2022. Rio de Janeiro, 2019. executivo. [S.l.: s.n.], 2019.

CONSÓRCIO ECOLOGUS-AGRAR. Plano diretor de RHA ENGENHARIA E CONSULTORIA. Atualização


recursos hídricos da região hidrográfica da do plano da BHBG: diagnóstico, 2020. [S.l.: s.n.,
Baía de Guanabara: relatório final - síntese. Rio 2020]. t. 1.
de Janeiro: Ecologus, 2005. 190 p.
ENQUADRAMENTO e monitoramento: roda de con-
GLASER, B.; STRAUSS, A. The discovery of groun- versa. Texto: Malu Ribeiro e Domenico Tremaroli.
ded theory. New York: Routledge, 2017. Rio de Janeiro: CBH-BG, 2020. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1Hb8BMo6rf-
RIO DE JANEIRO (Estado). Edital de concorrência 1ZAklRfO3nqS0DVizCEDnn-/view. Acesso em:
internacional: concessão dos serviços públicos 20 abr. 2020.
38
RIBEIRO, N. Conceitos sobre governança em recur- abr. 2020.

revista ineana v. 09 n.01 p.24 - 39 jan > jun 2021


sos hídricos. In: WEBINÁRIO “GOVERNANÇA NA
GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS – CONCEITOS
Sobre a autora
Agradecimentos:
E PRÁTICAS”, 2020. Anais [...]. [S.l.]: Comitê das
Bacias Hidrográficas dos rios Guandu, da Guarda Maria da Silveira Lobo
CBH-BG, S.O.S. Mata Atlântica; Universidade do Am-
e Guandu-Mirim, 2020. Socióloga-urbanista, doutora em
biente-INEA; INEANA, UN-Habitat e IUTC (Trang Ngu-
Estruturas Ambientais Urbanas (FAU-
yen, Yeonghoon Kim, Md
USP). É membro do Abbu Bakar
CBH-BG Siddique e Tha-
desde
RODRIGUES, R. Projeto aposta na captação em tem-
2018 eThai).
nh Nguyen integra a Câmara Técnica de
po seco para melhorar qualidade das águas da
Instrumentos de Gestão (CTIG), o Grupo
Guanabara. O Globo, Rio de Janeiro, 09 jul. 2018. de Acompanhamento da Atualização
Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/ do Plano (GPA-Plano) e os Grupos de
projeto-aposta-na-captacao-em-tempo-seco- Trabalho de Saneamento do Subcomitê
Oeste (GT Resíduos Sólidos, Drenagem e
-para-melhorar-qualidade-das-aguas-da-gua-
Água e GT Coleta e Tratamento de Esgoto).
nabara-22866374. Acesso em: 20 abr. 2020.

SOTERO-MARTINS, A.; SALLES, M. J.; CARVAJAL, E.;


HANDAM, N. B.; SANTOS JUNIOR, N.; ALMEIDA,
T. C.; MOURA, P. G.; MARTIN, L. E.; SANTOS, R. F.
Distribuição e análise espacial dos municípios do
Estado do Rio de Janeiro nos blocos regionais
de concessão à privatização da principal com-
panhia de saneamento do Estado. Revista Cien-
tífica Lua Nova: Revista de Cultura e Política,
Rio de Janeiro, jul. 2020. Disponível em: https://
preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/
view/1041/1495. Acesso em: 06 jan. 2021.

VOLSCHAN JUNIOR, I.; FIGUEIREDO, I. C. Contribui-


ção ao conteúdo do edital de concessão dos
serviços de abastecimento de água e esgo-
tamento sanitário do Estado do Rio de Ja-
neiro. Rio de Janeiro: DRIHMA, 2020. Disponí-
vel em: http://drhima.poli.ufrj.br/index.php/br/
destaque/noticias/314-contribuicao-ao-conteu-
do-do-edital-de-concessao-dos-servicos-de-
-abastecimento-de-agua-e-esgotamento-sani-
tario-do-estado-do-rio-de-janeiro. Acesso em: 20

39
Foto: Silva, W.M.

Comunidadede Paraíso em Guapimirim


As Percepções Ambientais e
os Saberes Tradicionais das

revista ineana v. 11 p. xx - xx >xxx 2019


revista ineana v.09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021
Comunidades Locais de Boca
do Mato, Paraíso e Guapiaçu no
Entorno do Parque Estadual dos
Três Picos (RJ)
Environmental Perceptions and Traditional
Knowledge of Local Communities of Boca do
Mato, Paraíso and Guapiaçu Around the Three
Peaks State Park (RJ)
Wallace Marcelino da Silva
Resumo Abstract
Este trabalho se propõe a analisar as percepções am- This work brings together a proposal for the analy-
bientais e os saberes tradicionais de comunidades lo- sis of environmental perceptions and traditional
cais existentes no Parque Estadual dos Três Picos (RJ). knowledge of local communities in the Three Pe-
Pretendeu-se encontrar respostas para as hipóteses aks State Park (RJ). It was intended to find answers
levantadas no estudo destas comunidades locais, to the hypotheses raised in the study of these local
como a real importância do saber tradicional passado communities, such as the real importance of tradi-
tional knowledge passed from generation to gene-
soluções voltadas à mitigação dos efeitos adversos ration, in order to find solutions aimed at mitigating
das relações antrópicas na natureza. Aferiu-se que os the adverse effects of human relations in nature.
diferentes atores sociais envolvidos possuem relações The different social actors involved have unique re-
singulares com o parque e desenvolvem práticas cul- lationships with the park and develop cultural prac-
turais com elementos da paisagem desta região do Es- tices with the landscape elements of this region of
tado do Rio de Janeiro. Um roteiro foi elaborado para the state. A script was prepared to guide the inter-
orientar as entrevistas realizadas com trinta morado- views conducted with a sample of 30 residents of
res de três comunidades instaladas no entorno e den- the communities that live in and around the Three
tro do Parque Estadual dos Três Picos (RJ): Boca do Peaks State Park (RJ), called Boca do Mato and
Mato e Guapiaçu, situadas no município de Cachoeiras Guapiaçu, located in the municipality of Cachoeiras
de Macacu (RJ), e Paraíso, localizada no município de de Macacu (RJ), and Paraíso, located in the munici-
Guapimirim (RJ). Observou-se que a região possui be- pality of Guapimirim (RJ). It was observed that the
lezas naturais que podem ser desfrutadas e mais bem region has natural beauty that can be enjoyed and
geridas de acordo com o Sistema Nacional de Unida- better managed according to SNUC (2000) throu-
des de Conservação da Natureza (2000), por meio do gh the development of ecological tourism aimed at
desenvolvimento de um turismo ecológico que gere generating income for the communities and, also,
renda para as comunidades e, ao mesmo tempo, tra- benefits for the park. The creation of the Three Pe-
aks State Park (RJ) reduced the anthropic pressure
embora tenha diminuído a pressão antrópica sobre on nature, but was not able to resolve the conflicts
a natureza, a criação do Parque Estadual dos Três Pi- generated by the private uses of natural resources
existing in the park and which go against the res-
do uso privado e ilegal de recursos naturais existentes trictive legislation of this protected area located in
na unidade de conservação, que se estende por cinco five municipalities in the State of Rio de Janeiro.

Palavras-chave Keywords
Percepções Ambientais. Parque Estadual dos Três Picos. Environmental Perceptions. Three Peaks State 41
Saberes Tradicionais. Mata Atlântica. P ark (RJ). Traditional Knowledge. Atl antic Forest.
1. Introdução 1.1 As unidades de conservação e os saberes
revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021

tradicionais
O ser humano transforma e é transformado
A humanidade sempre protegeu determinadas
em sua relação com o ambiente em que vive.
-
Nesta relação com o espaço vivido, surgem inte-
rém, a proteção pura e simples para a preserva-
rações antagônicas com os lugares e uma diver-
ção dos recursos naturais iniciou-se no século XIX,
sidade de formas culturais cada vez mais com-
com a criação do Parque Nacional de Yellowstone,
plexa (TUAN, 1980). As comunidades locais que
nos Estados Unidos.
vivem e possuem uma história construída nos
O surgimento das primeiras áreas naturais pro-
territórios que constituem as áreas protegidas
tegidas propiciou uma evolução histórica na gestão
possuem percepções ambientais que diferem
de áreas protegidas ao redor do mundo, ao instituir
de lugar para lugar e que podem ser utilizadas
um modelo no qual, dentro dessas áreas, o ser hu-
como importante fonte de saberes tradicionais
mano seria um visitante e nunca mais um morador.
para a educação ambiental.
Tal corrente de pensamento, que defende a separa-
Na Mata Atlântica, ecorregiões com expressi-
ção homem-natureza, é chamada de conservacionis-
vas riquezas biogeográficas se traduzem em uma
ta, uma vez que entende o indivíduo como um fator
grande diversidade de paisagens e culturas deri-
gerador de grande impacto no mundo natural (DIE-
vadas dos diferentes povos que interagem com
GUES, 2008; PEREIRA, 2018). Outra corrente de pen-
a floresta ao redor, construindo paisagens dis-
samento, denominada preservacionista, admite uma
tintas de acordo com as formas de apropriação
relação mais próxima entre culturas humanas e áreas
do espaço (DEAN, 1996; SANTOS, 1996; DIEGUES,
protegidas, pois parte do princípio que as sociedades
ARRUDA, 2001). Desta forma, a escolha do Par-
humanas também fazem parte do que conhecemos
que Estadual dos Três Picos (PETP), uma unidade
como natureza e, portanto, podem e devem fazer
de conservação de proteção integral, como obje-
parte de áreas protegidas (DIEGUES, 2008).
to deste estudo, mostra-se de suma importância
Os modelos para a criação de tais áreas surgiram
para o estabelecimento de diretrizes socioam-
a partir de experiências norte-americanas em seus
bientais que protejam a diversidade biológica e
parques naturais e das recomendações da União In-
geológica da região, assim como a riqueza cul-
ternacional para a Conservação da Natureza (IUCN,
tural das comunidades que vivem no entorno ou
na sigla em inglês). Esta política conservacionista
dentro do parque.
quase sempre considera o homem o causador da
A pesquisa realizada buscou analisar as per-
destruição do meio ambiente, motivo pelo qual defen-
cepções ambientais e os saberes tradicionais das
de a manutenção de ilhas conservadas de natureza
comunidades Boca do Mato, Guapiaçu e Paraíso,
“intocável” como uma espécie de testemunho vivo do
em suas relações culturais com a área protegida
que eram esses territórios antes do estabelecimento
na qual estão inseridas. O estudo da relação das
humano, tal qual descrito na obra O Mito Moderno
comunidades locais com o PETP pode estabele-
da Natureza Intocada (DIEGUES, 2008).
cer novos parâmetros de sustentabilidade frente
O poder destruidor do homem pré-revolu-
aos conflitos sociais que ocorrem em unidades de
ção industrial também é corroborado por auto-
conservação. Sob essa perspectiva, a criação de
res como Dean (1996) e Coimbra-Filho & Câmara
empregos, a educação ambiental e os serviços
(1996), cujos estudos mostram o impacto de po-
ambientais decorrentes da conservação do ar,
pulações ditas equilibradas sobre a Mata Atlântica
da água, do solo, da fauna e da flora despontam
brasileira. As unidades de conservação, a despeito
como benefícios sociais essenciais para todos
das diferenças entre as correntes conservacionis-
aqueles grupos que vivem no entorno ou dentro
ta e preservacionista, apresentam-se como uma
no parque, auxiliando também na preservação
das principais alternativas viáveis de conservação
42 dos saberes locais.
seu seio cultural (DIEGUES, ARRUDA). Finalmente,

revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021


essenciais para as populações humanas atuais e quanto aos sistemas produtivos, estes devem se
as futuras gerações, assim como dos povos que caracterizar pela baixa escala de produção; ser
vivem nestes espaços protegidos (DIEGUES & AR- voltados, basicamente, à subsistência; e registrar
RUDA, 2001). Há de se ressaltar, porém, que, de poucas trocas comerciais, considerando o sistema
acordo com Sistema Nacional de Unidades de econômico dominante no país onde esses povos
Conservação da Natureza (SNUC), existem várias estão inseridos (DIEGUES, 2008).
categorias de áreas protegidas.
1.2 A percepção ambiental e a paisagem
O primeiro parque nacional do Brasil foi o de
Itatiaia, localizado na Serra da Mantiqueira, na di- As questões ambientais são cada vez mais

visa dos estados do Rio de Janeiro e de Minas Ge- discutidas por vários setores da sociedade. Isso à

rais. (MEDEIROS, 2006). No entanto, desde a sua parte, a ética com o trato dos recursos naturais

criação, no ano de 1937, houve no Brasil uma evo- torna-se cada vez mais importante, à medida que

lução nos instrumentos legais para a criação de a procura e o uso de recursos naturais aumentam

áreas protegidas. Hoje existem várias tipologias, com a evolução da técnica, conforme analisado na

entre as quais a categoria “parque estadual”, que obra A Natureza do Espaço (SANTOS, 1996).

equivale à “unidade de proteção integral” constan- Os povos do planeta, com suas diferentes cul-

te no SNUC (2000). O PETP possui inúmeros servi- turas, mantém uma relação bem antagônica com

ços ambientais em seus limites. A gestão correta o meio que os cerca. Por conta disso, a percepção
ambiental é essencial para que as pessoas desen-

públicas, a sociedade civil e as comunidades locais volvam novas relações com o planeta e com os

que lutam por sua manutenção, em benefício pró- recursos naturais (CUNHA, LEITE, 2009). Pinheiro

prio e das gerações futuras. (2004) descreve, sucintamente, as diferenças entre


os conceitos de percepção ambiental, conscienti-

tradicionais, populações locais, culturas locais ou zação ambiental e sensibilização ambiental. A per-

comunidades tradicionais possuem forte carga de cepção seria entender com a ajuda dos sentidos, a

ambiguidade ou se baseiam em conceituações uti- sensibilização teria um caráter mais profundo que

lizadas sem critérios mais precisos. Esta confusão a percepção, e a conscientização, adquirida depois

conceitual se repete em várias línguas, no uso de


diversas expressões, o que aumenta ainda mais os compreensão ainda mais arraigado sobre o am-

equívocos. As maiores diferenças dizem respeito biente, servindo, ainda, de exemplo para mudan-

às populações indígenas tribais e às não indíge- ças coletivas da sociedade.

nas, principalmente em relação ao conceito de et- A percepção ambiental está relacionada a um

nia e ao reconhecimento da cultura ancestral, bem grau de seletividade de nossos sentidos frente aos

distinta da cultura que domina os grandes centros estímulos da paisagem que nos cerca. Isto é, a nossa

urbanos ou espaços rurais. Para serem reconheci- imagem do mundo vai sendo construída através dos

dos, os povos nativos ou tradicionais precisam os- estímulos recebidos em nossas relações com o meio.

tentar algumas características, como manter uma


ligação intensa e singular com territórios ances- vivências com as paisagens. Portanto, a percepção
ambiental é construída de acordo com essas inúme-

e interpessoal com grupos culturais diferentes. ras nuances frente ao mundo que vemos e em que

Além disso, necessitam ter idiomas e/ou dialetos fomos criados. A percepção ambiental nos oferece

próprios, muitas vezes em desacordo com aque- uma natureza pessoal, de acordo com nossos elos

le predominante em nível nacional, e apresentar e relações afetivas com os lugares em que fomos

instituições sociopolíticas singulares dentro do criados e com o qual possuímos uma história.
43
A área do PETP é um ambiente essencialmente Corrêa (2012) sustenta que uma das possibilida-
revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021

des da História Ambiental é pensar a paisagem e


das comunidades que vivem dentro e no entorno tudo que está contido nela como algo que vai além
do parque não oferece a elas uma grande pers- -
pectiva de mundo, pois, apesar da imensa varieda- ta, um parque ou uma baía. O autor sustenta, ainda,
que diversas áreas da história não têm contribuído
não há um marco legal de localização e tudo é vis- para discutir teoricamente o conceito de paisagem,
to à curta distância frente à grande densidade de mesmo considerando-o importante como parte do
todo a ser investigado. A Mata Atlântica na qual o
- PETP está inserido pode e deve ser um importante
pical confunde pela imensa variedade e riqueza -
de ambientes e espécies, fazendo com que suas ção ambiental das comunidades do entorno, uma
populações tenham percepções ambientais muito -
distintas das de povos nativos de áreas com ou- temunho vivo, enquanto paisagem, das populações
- humanas que deram origem às comunidades Boca
das ou savanas. Para os geógrafos, a paisagem do Mato, Guapiaçu e Paraíso.
esteve, durante muito tempo, atrelada à ideia de As perguntas abaixo foram utilizadas para aju-
uma interface atmosfera-hidrosfera como suporte dar na condução deste trabalho:
para a biosfera, até que passa a ser vista pelo geó- a) -
grafo cultural como a interface homem-natureza, cadas nas entrevistas?
propiciando generalizações regionais. A dimensão b) Quais saberes tradicionais podem ser des-
cultural trouxe novos olhares para as paisagens, os tacados?
quais passaram a ter intencionalidade, a ostentar c) Quais os principais recursos naturais do
investimento afetivo, a enxergar a paisagem como PETP são usados pelas comunidades locais?
lugar de sonhos e interesses planejados, como ver- d) Como o PETP e as áreas protegidas em geral
náculos, como discursos, como textos. são vistas pelos moradores destas comunidades?
As paisagens da primeira metade do século e) Qual é a relação entre os moradores das comu-
XX baseiam-se em duas das concepções supra- nidades locais selecionadas e os gestores do parque?
citadas: a da paisagem funcional como reflexo f) Qual a importância de se fazer uma análise
do funcionamento social, econômico e cultural da das práticas culturais locais?
sociedade, e a da paisagem arqueológica como
reflexo de funcionamentos passados. Atualmen- 2. Caracterização da área de estudo
te, a paisagem adquire contornos muito diversos,
dentro dos quais os geógrafos estudam a dimen- O Parque Estadual dos Três Picos foi criado

são estética. As paisagens podem ser ideológicas pelo Decreto nº 31.343, de 5 de junho de 2002.

ou até mesmo servir como guia dos serviços do Sua área, de difícil acesso nas regiões mais altas,

espaço, entre outras características. Por con- compreende terras dos municípios de Cachoeiras

ta disso, a paisagem vista no PETP possui uma de Macacu (49,01%), Teresópolis (19,09%), Nova

natureza singular, de acordo com a cultura das Friburgo (19,07%), Silva Jardim (7,01%) e Guapi-

comunidades locais. Novamente, o conceito de mirim (4%). Com 65.113 hectares, foi ampliado em

“povos da floresta” pode fazer com que essas po- 2009 e está localizado no leste do estado, na Ser-

pulações tenham dificuldades em ver e perceber ra do Mar, possuindo paisagens de grande beleza,
a paisagem como um todo, visto que a arqueolo- diferentes ecossistemas e um contexto complexo
gia da paisagem demora um certo tempo para se em termos de cultura, biodiversidade e geodiver-
constituir (CLAVAL, 2007). sidade (INEA, 2013).
44
revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021
Figura 1 - Mapa atual do Parque Estadual dos Três Picos
Fonte: INEA (www.inea.rj.gov.br)

A comunidade Boca do Mato, localizada ao usados na irrigação de cultivos e na produção de


redor da principal sede do PETP, no 1° distrito de água mineral.
Cachoeiras de Macacu, é constituída de atores so- -
ciais que direta ou indiretamente tiram proveito lizada na zona rural do município de Guapimirim, à
dos recursos naturais do parque. O local, com boa beira do Centro de Primatologia do Estado do Rio
infraestrutura turística e vários atrativos naturais, de Janeiro (CPRJ) e da antiga Estação Ecológica
como a Cachoeira das Sete Quedas e o "grande Estadual do Paraíso (EEEP), ambos parte do PETP.
jequitibá", faz da região parada obrigatória para A região é muito utilizada para turismo de massa,
motoristas com destino à cidade de Nova Fribur- principalmente em épocas mais quentes, por causa
go. Outros atrativos da localidade são as várias tri- de suas cachoeiras e trilhas (SILVA, 2015).
lhas ecológicas e a presença de poços para banho
em alguns pontos. Há ainda residências, tanto de 3. Materiais e métodos
veraneio quanto de famílias que buscam fugir de
A escolha das comunidades Boca do Mato e
grandes centros urbanos próximos, como a capital.
Guapiaçu, em Cachoeiras de Macacu, e Paraíso, em
A comunidade Guapiaçu localiza-se em Su-
Guapimirim, para o trabalho de entrevistas, levou
baio, 3° distrito de Cachoeiras de Macacu, e divi-
em consideração a proximidade do parque, a viabi-
de espaço com outras nas cercanias do parque.
lidade de locomoção e a distância delas em relação
Situada no centro do distrito, o mais isolado do
às áreas onde há planos para a construção de uma
centro urbano da cidade, possui grande varieda-

45
barragem. As saídas de campo preliminares aconte-
de de riquezas naturais, como recursos hídricos
ceram em janeiro de 2014, nos finais de semana utilização de recursos naturais do parque, como
revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021

dos dias 4-5, 11-12 e 25-26. Nessa etapa, morado- -


res responderam perguntas sobre o seu cotidiano, guntou-se, também, sobre possíveis problemas
caminhadas breves foram feitas para determinar ambientais, a renda da família, possíveis locais de
os limites das comunidades em relação ao par- visitação para pessoas de fora da comunidade e a
que, e atores-chave foram identificados com a atuação dos gestores do PETP. Todas as paradas
ajuda da técnica denominada “bola de neve”, ou para a realização das entrevistas foram marcadas
snowball, de uso reconhecido em pesquisas so- com aparelho GPS, visando à confecção de um
ciais (BALDIN; MUNHOZ, 2011). mapa para a visualização dos pontos ao redor do
Outras expedições foram feitas para a aplicação PETP. Posteriormente, os dados coletados foram
das entrevistas, para as quais foram utilizados cri- analisados e usados na elaboração de tabelas,
térios como: idade mínima (20 anos) e tempo míni- -
mo de permanência e residência na comunidade (10 liassem nas discussões.
anos). Ao todo, foram feitas trinta entrevistas semi- A porcentagem e os critérios etários aplicados às
-estruturadas de caráter qualitativo com roteiro pre-
viamente estabelecido para a coleta de dados, sem
levar em conta o gênero do entrevistado. O número
de entrevistas, de acordo com Gaskell (2003), é con- a ser adotada (GIL, 2008). No caso deste estudo, fo-
ram ouvidas 21 pessoas do sexo masculino (70%) e
- nove pessoas do sexo feminino (30%), entre elas jo-
dada, a percepção e a opinião dos entrevistados a vens de 21 a 35 anos (seis pessoas, 20%), adultos de
respeito de temas que, muitas vezes, são comparti- 36 a 58 anos (dez pessoas, 33%) e idosos com mais
de 58 anos (14 pessoas, 47%).
que processos sociais ou conjunturas politicas espe- A escolaridade, o tempo de moradia e a renda

Quinze entrevistas foram realizadas na região as análises dos moradores em relação à


da comunidade Boca do Mato, e outras 15, em Gua- paisagem, aos problemas ambientais, ao parque
piaçu (sete) e em Paraíso (oito). As entrevistas fo- e à percepção ambiental. Os resultados mostram
ram aplicadas mediante o método de abordagem que a maior parte dos entrevistados possuía
direta, com o auxílio de um roteiro-guia, sempre res- baixa escolaridade (19 pessoas, 63% do total).
peitando regras básicas de conduta social e ética. Oito tinham concluído o Ensino Médio (27%) e
Foram entrevistadas pessoas de idades diferentes, apenas três tinham curso superior (10%).
O perfil dos moradores mostrou-se bastante
moradores mais antigos – nascidos ou não na re- heterogêneo e significativo para posteriores-
gião – quanto a de parte da população mais jovem. análises referentes à percepção ambiental das-
As entrevistas não tinham duração pré-estabele- comunidades locais estudadas. Em relação à
cida. Poderiam durar 30 minutos ou mais de duas rendamensal individual, 30% dos moradores-
horas, a depender da quantidade de informações (nove) declararam receber mais de dois salários
levantadas ou do interesse do próprio entrevistado. mínimos; 33% (dez), entre 1,5 e 2 salários
Em média, foram realizadas de três a quatro entre- mínimos; e 37% (onze), um salário mínimo ou
vistas por dia de trabalho. nenhuma renda . Em relação à renda média das
O roteiro continha perguntas sobre diversos famílias, 50% (quinze)recebem entre nenhum e
assuntos, como o tempo de moradia na comuni- dois salários mínimos; 23,3% (oito), entre 2,5 e 3
dade, as percepções em relação às mudanças na salários mínimos; e 26,7%(sete), mais de três
paisagem ao redor, a destinação dos resíduos e a salários mínimos.
46
4. Resultados e discussões Os efeitos dessa diversidade de usos sobre as

revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021


vidas dos moradores e o próprio PETP podem ser
analisados sob muitos ângulos e perspectivas. Em
4.1 Uso passado e uso atual do PETP relação à renda, a maior parte dos moradores re-
latou que a criação do parque não alterou seus
Os diferentes usos do PETP e do seu entorno pe-
las comunidades Boca do Mato, Guapiaçu e Paraíso
pois muitos já são aposentados. Alguns, inclusive,
perderam um pouco da renda, uma vez que, com a
notar assimetrias no uso que os moradores fazem
criação do parque, as construções irregulares ces-
do parque ao longo do tempo, as quais se encon-
saram e a demanda por serviços de construção
tram em consonância com a legislação ambiental
civil caiu, como relatado por dois moradores da
relativa ao SNUC (BRASIL, 2000). As Figuras 2 e 3
Boca do Mato. Todavia, em outras áreas, como em
mostram os usos da área pelos moradores entre-
Guapiaçu, a situação é diferente, pois, de acordo
vistados antes e depois da criação do parque.

(5)
(5)

(4) (2)
(9)

(1)
(4)

(6) (1)

(14)

l m

á p m

Figura 2 - Uso antigo da área do PETP pelos moradores


Fonte: Elaborada pelos autores

47
revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021

(1) (1)
(3)

(9)
á

(5) t

l
(7)
(6)

Figura 3 - Uso atual da área do PETP pelos moradores


Fonte: Elaborada pelos autores

com relatos de um morador, lá ainda ocorrem ocu-


pações irregulares. do século XX. Drummond (1997) enfatiza que o Vale
Os que disseram que não tiveram sua renda alte- do Rio Paraíba do Sul, do qual amplas áreas do par-
rada depois da criação do PTP somam 24 pessoas, que fazem parte, só veio a ser desbravado no ínicio
totalizando 80% dos casos, e os que relataram mu- de 1800. Todavia, a introdução do café mudou toda
danças na renda totalizam seis pessoas, ou 20% dos a dinâmica da região aqui estudada, uma vez que
entrevistados. Entre estes, estão pessoas que traba- permitiu a utlização de áreas mais íngremes, típicas
lham atualmente no parque ou que já ganharam al- de relevo mais montanhoso. Assim, as regiões que
guma renda com serviços extras ofertados na área englobam os municípios de Guapimirim e Cachoeiras
do PETP, como os de guia turístico ou de serviços ge- de Macacu foram devastadas pelo cultivo da planta
rais de manutenção. africana (DRUMMOND, 1997).
Os moradores, em sua grande totalidade (14, ou Os efeitos desse tipo de ocupação contrastam
com o impacto dos povos indígenas que existiam na
parque para coleta de madeira para uso doméstico, região do parque ou nos arredores. Eles adentravam
como no fogão à lenha, prática ainda rotineira nas as terras mais altas dessas áreas apenas ocasional-
localidades estudadas e muito associada aos cha- mente, para caçar ou coletar frutos (DRUMMOND,
mados “caipiras” (DIEGUES; ARRUDA, 2001). A ma-
-
pintaria, mourões (chamados por eles de “moerões”), agricultura de pequena escala. Drummond (1997)
fabricação de ferramentas e venda para a constru- observa que algumas áreas da Mata Atlântica fo-
ção civil daquelas de melhor qualidade. ram inexplicavelmente poupadas de uma destruição
A extração em grande escala de madeiras nobres mais intensa, o que engloba a Região Serrana, muito
na região do parque onde se localizam as comunida- embora o difícil acesso ou a escassez populacional
48
revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021
Rio Macacu em Boca do Mato
Foto: SILVA, W. M.

49
Rio Guapiaçú e suas águas límpidas
Foto: SILVA, W. M.
possam ser apontados como alguns dos motivos.
revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021

Atualmente, a Mata Atlântica da região engloba as palmito da espécie Euterpe edulis, conhecido po-
áreas mais preservadas do Estado do Rio de Janei- pularmente como palmito-juçara, era extraído na
ro, mesmo com o aumento populacional iniciado em -
1951, com projetos do Instituto Nacional de Coloniza- bientais em várias regiões de Mata Atlântica do país.
ção e Reforma Agrária (INCRA) (SILVA, 2015). Hoje, a retirada do palmito na área do parque é mais
Outro uso do parque muito citado (por 19% dos rara. Já o uso de plantas medicinais foi relatado por
moradores) foi o da água. Nas três localidades es- quatro pessoas (8% do total amostrado). Na Boca do
tudadas, ela é captada de nascentes ligadas aos Mato, apenas uma moradora, descendente quilom-
rios que fazem parte da Bacia do Rio Macacu (Boca
do Mato), das bacias dos rios Caceribu e Guapiaçú parque, hábito que adquiriu depois de ter aprendido
(Guapiaçú), e da Bacia do Rio Paraíso (Paraíso). -
Segundo o plano de manejo do PETP (INEA, 2013), das na mata com sua falecida avó. Também é digno
a água do parque é de boa qualidade e abastece de nota o uso religioso de áreas protegidas por parte
a região mais preservada da Baía de Guanabara, de protestantes na comunidade Paraíso.
cujos rios drenam para a Área de Proteção Ambien- -
tal (APA) Guapimirim. A qualidade da água é ates- dos, como a proibição ao corte de árvores e à cons-
tada também pela presença de empresas de água trução de novos imóveis em áreas que atualmente
mineral ao redor dos municípios em que o PETP está
inserido e pelas inúmeras quedas d’água utilizadas -
pelos moradores nas épocas de grande calor desde
antes da criação do parque. Esse novo cenário é decorrente da criação e esta-
O uso de áreas do parque para atividades de belecimento do PETP, que proporcionou um melhor
lazer e turismo, como banhos de cachoeira, trilhas, ordenamento do solo, segundo relato de um mo-
descanso, apreciação da beleza da paisagem e lei- rador da Boca do Mato, e, também, do êxodo rural
tura de livros, também foi citado. Se antes da criação ocasionado pela diminuição das atividades agrope-
do PETP 11% dos moradores entrevistados o utiliza- cuárias nas imediações do parque (principalmente
- na Boca do Mato).
des de lazer. Contribui para esse pouco uso o fato de Na região da comunidade Guapiaçu, a criação
o núcleo do PETP em Paraíso ser fechado à visitação. da Reserva Ecológica de Guapiaçu (REGUA) tam-
Não há atualmente qualquer cultura ou ativida- bém contribuiu para mudanças semelhantes, em
de de agricultura nas localidades das entrevistas. razão das atividades lá desenvolvidas, ligadas à

ambiental em área afastada na região, onde antigos


produtores de pequenos cultivos para alimentação como palmiteiros e caçadores.
de subsistência possuem uma relação tensa com o Na comunidade Paraíso ocorreu algo parecido
parque por conta das restrições a essa atividade. A com o registrado em Guapiaçu. A antiga Estação
caça de animais silvestres também foi citada por 13% Ecológica Estadual do Paraíso foi incorporada ao
dos moradores entrevistados como uma atividade PETP e também contribuiu para o crescimento da
mata nativa. Todavia, lá essa mudança foi impul-
caça, o que pode se dar por conta da idade avança- sionada pelas restrições que as autoridades impu-
da de alguns ou do interesse da juventude por ativi- seram no acesso à área protegida e ao Centro de
dades tipicamente urbanas (SAMPAIO, 2011). Primatologia que existe no local.
A extração de palmito e plantas medicinais foi No que diz respeito à proteção ou à restauração
outro uso do parque relatado nas entrevistas. Dois -
50
cursos hídricos, todas as mudanças relatadas vão coletividade, e não apenas de interesses indivi-

revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021


ao encontro das normas estabelecidas pelo SNUC duais e privatistas.
(2000) para a categoria “parque”.

5. Conclusões
4.3 Conflitos ambientais e relações com os
gestores do PETP
A região do Parque Estadual dos Três Picos possui
Ao redor do mundo, as áreas protegidas lidam um imenso potencial de belezas naturais a serem des-
com várias problemáticas em relação ao seu uso. frutadas e mais bem geridas de acordo com o SNUC.
As relações entre diferentes atores sociais (mem- Esse é o melhor caminho para que sejam construídas
bros da sociedade civil, gestores, turistas etc.) se estratégias de preservação, como políticas públicas
materializam, muitas vezes, de forma antagônica, que tragam renda para a população das comunida-
necessitando da intermediação de pessoas que des instaladas dentro ou no entorno do parque e, ao
possuem técnicas e procedimentos corretos para mesmo tempo, protejam a própria Mata Atlântica, sua
mitigar os efeitos danosos decorrentes de even- bidoversidade e sua geodiversidade.
tuais conflitos. A importância estratégica do parque e seu entor-
O PETP, atualmente, não registra graves pro- no também deve ser enfatizada, principalmente em
blemas ambientais, como observado antes da relação aos abundantes recursos hídricos da região,
sua criação, uma vez que trouxe melhor ordena- que, além de inúmeras nascentes, abriga rios como
mento para o uso do solo e protegeu a floresta da
ação descontrolada de palmiteiros, caçadores e da Baía de Guanabara –, muito cobiçados por em-
lenhadores, trazendo inúmeros benefícios para os presas de água mineral e pelo estado, interessados
serviços ambientais diretos e indiretos da região. em atender ao imenso cotingente populacional do
No entanto, é necessário melhorar as relações Recôncavo da Guanabara.
entre os moradores e os gestores do parque, que Recentemente, nos anos de 2015 e 2016, vários
muitas vezes são vistos apenas como repressores agricultores e moradores de Guapiaçu ofereceram
de antigas práticas. ampla resistência aos planos do governo estadual
É de extrema importância estabelecer com os para o estabalecimento de uma barragem na lo-
moradores uma relação mais amistosa, para que calidade conhecida como Serra Queimada. Além
eles se transformem em mantenedores do parque. de afetar terras férteis do município de Cachoei-
Essa estratégia foi utilizada em uma reserva par- ra de Macacu, e deixar submersos remanescentes
ticular no entorno do parque, cujo dono passou a -
oferecer emprego para antigos caçadores. to o parque. A resistência, no entanto, deu certo,
Os parques e demais unidades de conserva- e a população continua de prontidão contra essa
ção no Brasil sofrem com a constante negligência ameaça a uma das regiões do estado de maior be-
do poder público e com a ganância do setor pri- leza e riqueza biológica e cultural.
vado. Os próprios moradores poderiam denunciar A expectativa é que essa pesquisa ajude na se-
às autoridades competentes – como já fazem – as dimentação de conceitos e no debate de assuntos
invasões por depredadores pouco preocupados cada vez mais importantes relacionados à sustenta-
com a finitude dos recursos naturais do Parque bilidade ambiental, como a percepção do ambiente
Estadual dos Três Picos. e os saberes tradicionais das comunidades Boca do
Além dissso, os saberes tradicionais sobre as
trilhas, animais e plantas poderiam se tornar um bem como as entrevistas que tornaram possíveis as
forte aliado do saber científico. Todo saber é vá- discussões e os resultados, foi feita com os embasa-
lido. O que importa é a sua aplicação em prol da mentos teóricos, conceituais e epistemológicos ne-
51
cessários para o alcance dos objetivos propostos e para garantir o desenvolvimento sustentável de re-
revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021

para uma satisfatória interpretação dos fenômenos manescentes da Mata Atlântica. As demandas cole-
sócioambientais, de acordo com a escala envolvida tivas da sociedade são cada vez mais importantes
e com as áreas escolhidas do PETP. em um mundo em que áreas com alta diversidade
A seguir, são apresentadas algumas estraté-
gias para auxiliar na conservação da Mata Atlânti- com paisagens belíssimas, muitas vezes sem qual-
ca, aproximar as comunidades instaladas no PETP quer estudo aprofundado, por conta do uso insus-
- tentável do sistema econômico-político vigente.
tores do parque: O estudo apresentado neste trabalho busca
contribuir para outros envolvendo as relações entre
1. Aplicação de trabalhos de conscientização em as populações humanas e as áreas protegidas no
salas de aula, no entorno das escolas e nos lugares Brasil. O Parque Estadual dos Três Picos é a maior
unidade de conservação administrada pelo gover-
- no estadual do Rio de Janeiro e conservá-lo para
ções futuras; as futuras gerações é essencial em tempos de es-
2. cassez de água, extinção de espécies da fauna e da
sobre educação ambiental e a história da devasta-
ção da Mata Atlântica no Estado do Rio de Janeiro; aumento do interesse público por soluções para as
3. Realização de mutirões com representantes de crises ambientais que vivemos no mundo atual.
órgãos públicos e da sociedade civil para a limpe-

áreas com espécies nativas;


4. Aplicação de questionários que investiguem o
conhecimento prévio das pessoas na área de Mata
Atlântica do parque; BALDIN, N. ; MUNHOZ, E. M. B. Snowball (bola de
5. Produção de documentário sobre o parque neve): uma técnica metodológica para pesquisa em
para exibição nas escolas da região; educação ambiental comunitária. In: CONGRESSO
6. Consolidação do turismo ecológico com a NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 10., 2011, Curitiba. Anais
criação de trilhas para pessoas de diversas idades [...]. Curitiba: PUCPR, 2011. p. 329-341.
e a implantação de outras atividades em ambiente
natural. BRASIL. Lei 9.985, de 18 de julho de 2000. Re-
gulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da
A principal contribuição deste trabalho é o en- Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de
tendimento que ele oferece acerca da percepção Unidades de Conservação da Natureza e dá ou-
ambiental e dos diferentes usos do parque pelas co- tras providências. Brasília: Presidência da República,
munidades locais no que tange aos conceitos aqui 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
trabalhados. Espera-se que este estudo contribua vil_03/leis/l9985.htm. Acesso em: 11 set. 2020.
para o estabelecimento de políticas públicas que
utilizem o conhecimento empírico das populações COIMBRA-FILHO, A.; CÂMARA, I. B. Os limites ori-
estudadas em estratégias claras que melhorem a ginais do bioma Mata Atlântica na Região Nordes-
relação entre os atores sociais envolvidos. te do Brasil. Rio de Janeiro: FBCN, 1996. 86 p.
Projetos e atividades inclusivas que estejam em
consonância com as percepções ambientais, os sa- CORRÊA, D. S. História ambiental e paisagem.
beres tradicionais e a forma como a população des- Halac, Belo Horizonte, v. II, n. 1, p. 47-69, 2012.
sas comunidades usa o PETP devem ser prioritários
52
CUNHA, A. S.; LEITE; E. B. Percepção ambiental: SAMPAIO, D. T. A caça de animais silvestres na

revista ineana v. 09 n.01 p.40 - 53 jan > jun 2021


implicações para a educação ambiental. Sinapse Mata Atlântica, Baixada Litorânea do Estado do
Ambiental, Betim, v. 6, n. 1, p. 66-79, 2009. Rio de Janeiro, Brasi -

CLAVAL, P. . 3. ed. Florianópo- 2011. Tese (Doutorado em Ecologia e Recursos Natu-


lis: UFSC, 2007. 453 p. rais) – Centro de Biociências e Biotecnologia, Univer-
sidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos
DEAN, W. A ferro e fogo: a história e a devasta- Goytacazes, 2011. 216 p.
ção da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1996. 484 p. SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tem-
po, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. 260 p.
DIEGUES, A. C. S. O mito moderno da natureza
intocada. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2008. 198 p. SILVA, W. M. A importância do conhecimento lo-
cal para a gestão ambiental no Parque Estadual
DIEGUES, A. C. ; ARRUDA, R. S. V. (org.). Os sabe- dos Três Picos (PETP), RJ. 2015. 115 p. Dissertação
res tradicionais e a biodiversidade no Brasil. São -
Paulo: USP, 2001. 211 p.

de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.


DRUMMOND, J. A. Devastação e preservação
ambiental: os parques nacionais do Estado do do TUAN, Y. : um estudo da percepção, ati-
Rio de Janeiro. Niterói: EDUFF, 1997. 298 p. tudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel,
1980. 342 p.
GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com textos,
imagem e som. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. 508 p.

GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social.


6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. 220 p.
Sobre o autor
INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE (Rio de Wallace Marcelino da Silva
Janeiro). Parque Estadual dos Três Picos: plano de Discente do Programa de Pós-
manejo/Resumo excutivo. Rio de Janeiro, 2013.102 p. Graduação em Meio Ambiente (PPG-
MA) da Universidade Estadual do
MEDEIROS, R. Evolução das tipologias e catego- Rio de Janeiro (UERJ), na linha de
rias de áreas protegidas no Brasil. Ambiente & So- pesquisa “Construção Social do Meio
ciedade, v. 9, n. 1 , p 41-64, 2006. Ambiente”. Mestre e graduado em
Geografia pela Universidade Federal

PEREIRA, E. M. Sensibilidade ecológica e ambien- do Rio de Janeiro (UFRJ).

-
-natureza. Sociologias, Porto Alegre, ano 20, n. 49, p.
338-366, 2018.

PINHEIRO, E. Percepção ambiental e a ativida-


de turística no Parque Estadual do Guartelá–Tiba-
gi (PR). 2004. 138 p. Dissertação (Mestrado em Geo-

Federal do Paraná, Curitiba, 2004. 53


Foto: Valério Winter
Fábrica São Pedro de Alcântara
(antiga fábrica)
Petrópolis, as Marcas da
Sociedade na Natureza:

2019
jun 2021
- xx>>xxx
história ambiental e leitura

p. xxjan
v. 11- 69
n.01 p.54
das paisagens

v. 09ineana
revista
revista ineana
Petrópolis, the Marks of Society in Nature:
environmental history and reading of
landscapes

Valério Winter

Resumo Abstract
O município de Petrópolis RJ foi tema de diferentes The municipality of Petrópolis RJ has been the sub-
estudos, mas em nenhum deles a relação histórica so- ject of different studies, in none of which the histo-
ciedade/natureza foi o objeto principal. O objetivo do rical relationship between society and nature was
estudo, cujos resultados aqui apresentamos foi inves- the main object. The objective of the study, which
tigar como que, ao longo da história, formas e percep- we present the results here, was investigated as if
ções da natureza condicionaram a ocupação, defini- throughout history, forms and perceptions of nature,
ram funções e influenciaram as paisagens verificadas conditioned the occupation, defined functions and
no lugar. Como base, utilizamos autores oriundos da lead in the landscapes verified in the place. We use
Geografia Cultural e História Ambiental. Concluiu-se authors from Cultural Geography and Environmen-
que a percepção histórica da natureza foi fundamen- tal History. It was concluded that the historical per-
tal na construção da paisagem atual e problemas ception of nature was completed in the construction
ambientais a ela relacionados. Ao longo de 300 anos, of the current landscape and related environmental
a percepção social da natureza foi caracterizada por problems. Over 300 years, the social perception of
movimentos evolutivos, estagnações e retrocessos, nature was characterized by evolutionary move-
nos quais a necessidade por espaço e a ideia de natu- ments, stagnations and setbacks, where the need
reza influenciaram na artificialização e impactação do for space and the idea of nature influenced the arti-
meio natural, condicionando formas e funções. ficialization and impact of the natural environment,
conditioning forms and functions.

Palavras-chave Keywords
Geografia. História Ambiental. Cultura. Paisagem. Geography. Petrópolis. Culture. Landscape. Nature.

55
1. Introdução
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021

geridas por Milton Santos (SANTOS, 1978). A “forma”


corresponde ao aspecto visível, que aqui definimos
A cidade de Petrópolis foi vista, avaliada e estu- como as fronteiras políticas do município de Petró-
dada por diferentes olhares. Existe um farto mate- polis, o sítio urbano inserido na Mata Atlântica. A
rial da história política, econômica e urbana do local; “função” está relacionada aos papéis historicamente
das relações socioculturais; da geografia física e de atribuídos à forma (sítio urbano), tais como: o ca-
outros aspectos. Todavia, percebemos uma lacuna minho de acesso às Minas Gerais durante o período
nos estudos sobre a relação do homem com a na- colonial ou o simbolismo do poder monárquico no
tureza, objeto principal da Geografia, que encontra Brasil Império. A “estrutura” representa as caracte-
um frutífero campo na História Ambiental. O estudo rísticas políticas, culturais e econômicas em cada
em questão teve como foco a história da relação ho- momento histórico, estabeleceram as condições
mem/natureza no município de Petrópolis. em que se deram e se dão as relações entre os ho-
O objetivo foi investigar e analisar como, ao lon- mens e a natureza local. O “processo” é a estrutura
go de 300 anos, a natureza foi apropriada e entendida em transformação.
pelos diferentes grupos que habitaram o que é hoje o As técnicas empregadas foram: pesquisa biblio-
município de Petrópolis, tornando-se testemunho de gráfica e documental, leitura de imagens (pinturas,
uma história ambiental bastante representativa da litogravuras, fotografias, desenhos), produção foto-
ocupação em áreas serranas no litoral brasileiro. gráfica e observação da paisagem.
Levantamos a seguinte hipótese: a relação do ho- Nesse artigo, começamos com o recorte espacial
mem com a natureza na história de Petrópolis foi ca- do objeto de nossa pesquisa – o “cenário de estudo”.
racterizada por movimentos evolutivos, estagnações Em seguida apresentamos os conceitos de natureza
e retrocessos, nos quais a necessidade por espaço e e paisagem, o campo da história ambiental e suas
a ideia de natureza influenciaram diretamente na ar- conecções com a geografia. Concluímos demons-
tificialização e impactação do meio natural condicio- trando os resultados obtidos.
nando formas e funções em um constante processo
de transformação da paisagem.
Por se tratar de estudo no qual o objeto é a per- 1. Cenário de estudo
cepção humana da natureza manifestada em do-
cumentos e imagens, optamos por uma abordagem
qualitativa de vertente exploratória.
Construímos nossos questionamentos a partir
dos três níveis de análise que Worster (1991) sintetiza
como os principais elementos do “fazer história am-
biental”: (i) o entendimento da natureza propriamente
dita, tal como se organizou e funcionou no passado;
(ii) se preocupa com as ferramentas e trabalho, com
as relações sociais que brotam desse trabalho, com
os diversos modos que os povos criaram de produzir
bens a partir de recursos naturais e (iii) as percepções,
valores éticos, leis, mitos e outras estruturas de signifi-
cação se tornam parte do diálogo de um indivíduo ou
de um grupo com a natureza (WORSTER, 1991).
Figura 1 - Recorte espacial da área (escala: 1:25.000 / Sistema
Para o estudo do espaço geográfico utilizamos as de Coordenadas Geográficas Datum Sirgas 2000)

categorias de forma, função, estrutura e processo su- Fonte: Lordeiro (2006)


56
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021
O município de Petrópolis está localizado ao nor- O ambiente serrano é úmido, com chuvas cons-
te da cidade do Rio de Janeiro, entre as coordena- tantes e temperaturas baixas. Morfologicamente,
das geográficas 43° 04’ – 43°14’ W e 22° 33’ – 22° este relevo exerce diversas funções dentro da dinâ-
25’ S, altitude média de 845 metros, em uma área de mica hidrológica. O Vale do Piabanha é um grande
793,085 km². Segundo dados do Instituto Brasileiro divisor das águas entre o Vale do Paraíba do Sul e a
de Geografia e Estatística (IBGE), sua população es- Baixada Fluminense Litorânea. A quantidade de chu-
timada em 2020 era de 306.678 habitantes, 95% dos va, associada ao clima e à vegetação mais densa,
quais na área urbana do município. estabelecem uma grande umidade local.
A cidade foi construída no alto da Serra da Estre- O município está dividido em cinco distritos: Pe-
la, em vale drenado pela Bacia do Rio Piabanha. Tra- trópolis, o 1º distrito, formado pelo centro histórico
ta-se de unidade formadora da Serra dos Órgãos, administrativo, e os bairros mais antigos, que con-
por sua vez uma sessão no Estado do Rio de Janeiro centram as principais plantas industriais e a maior
da Serra do Mar, cujas encostas variam entre 5° e parte da população; Cascatinha, o 2º distrito, com o
60° de declividade. O município ocupa área serrana, maior adensamento populacional e que cresceu em
com média pluviométrica de 2.000 mm, estando as torno da segunda grande fábrica têxtil instalada no
chuvas concentradas entre os meses de novembro município, a Companhia Petropolitana de Tecidos;
e março. O relevo é extremamente acidentado, com Itaipava, o 3º distrito, área rural que, nos anos 1970
ocorrência de grandes desníveis altimétricos em começa a receber um crescente fluxo de sítios de
grandes escarpamentos rochosos. É comum a ocor- recreio e condomínios residenciais de classe média;
rência de desprendimentos e deslocamentos de blo- Pedro do Rio, o 4° distrito, núcleo populacional que
cos de granito e gnaisse, ocasionados pelo processo cresceu nas margens da estrada União e Indústria,
de intemperismo e desagregação física. A geomor- hoje Rodovia Federal BR-040, principal via de liga-
fologia do município caracteriza-se por serras ali- ção entre Rio de Janeiro e Minas Gerais, e Posse, o
nhadas e assimétricas, com vertentes íngremes, ro- 5º distrito, área rural formada por famílias de traba-
chosas, bastante falhadas e fraturadas, bem como lhadores sem-terra, que, nos anos 1950 e 1960, cons-
por paredões lisos muito escarpados, verticalizados truíram moradias em áreas à época desvalorizadas
com matacões propensos a deslizamento. Em al- (margens do Rio Piabanha, encostas e locais de aces-
guns pontos, verifica-se solos com perfis profundos so difícil), e que gradualmente foi sendo transforma-
(GUERRA; GONÇALVES; LOPES, 2007). da em cinturão verde e alvo da especulação imobiliá-
O processo de urbanização local, iniciado em ria (RABAÇO, 1985).
1843, ano de criação do município, aliado às condi- O principal rio da cidade é o Piabanha, que nas-
ções geológicas, geomorfológicas, climatológicas ce na vertente oeste da Pedra do Retiro e segue por
e pedológicas, gerou um aumento na degradação cerca de 60 km pelos municípios de Petrópolis, Areal
ambiental, em especial, nas últimas quatro décadas. e Três Rios, onde encontra o Rio Paraíba do Sul e seu
A vegetação predominante é a floresta de Mata espelho, o Paraibuna, oriundo da Zona da Mata Mi-
Atlântica. O dossel arbóreo é denso, caracterizado neira. Em Petrópolis, o Piabanha drena uma área de
pela presença de palmeiras, aráceas e plantas epí- aproximadamente 520 km². Seus principais afluentes
fitas. A mata ocupa parte dos topos de morro e en- são, pela margem direita, os rios: Quitandinha, corpo
costas declivosas. Nas margens dos rios ainda não hídrico que recebe as águas do Rio Palatinado – am-
ocupadas verifica-se a presença de vegetação ar- bos com significativa importância histórica na forma-
bustiva e xerofítica. Atualmente, tem havido o estrei- ção do município –, Poço do Ferreira e Santo Antônio
tamento das manchas de vegetação remanescentes e pela margem esquerda, os Rios da Cidade e Araras.
e seu isolamento em “ilhas” (GUERRA; GONÇALVES; Os rios petropolitanos são de pequeno porte e
LOPES, 2007). descem por áreas declivosas. No município, o Pia-
57
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021

banha não ultrapassa os 80 metros de largura. “A cultura não é algo que funciona através dos seres
A profundidade média e a grande incidência de humanos; pelo contrário, têm que ser constante-
seixos rolados e trechos encachoeirados, ao lon- mente reproduzida por eles em suas ações” (COS-
go do seu percurso impossibilitam a navegação GROVE,1998).
(LORDEIRO, 2006). Ao pensar nas dinâmicas transformadoras da
paisagem, o pesquisador ambiental utiliza como
arma a interdisplinariedade, abordando conhe-
2. Natureza, paisagem e história cimentos de geomorfologia, espaço e história. A
ambiental geomorfologia permite que pensemos a paisagem
como unidade, mas é a partir da relação da socie-
dade com a natureza que chegamos a uma refle-
Para os professores Carvalho e Visentini, (1991), xão diferenciada, contrapondo os elementos físicos
a relação homem/natureza é um dos pressupostos da paisagem com as influências culturais, o que nos
para as relações dos homens com seus semelhantes. leva à história ambiental.
O ser humano é fundamentalmente constituído pela Oliveira (2007) entende a história ambiental
natureza. As diferentes ideias de natureza concebi- como um “campo de estudo” interdisciplinar, capaz
das pelos homens em cada período histórico refle- de reunir a história da interação sociedade/natu-
tem a sua propria evolução. Há uma multiplicidade reza, como a estrutura física e aspectos biológicos
de maneiras de se relacionar com a natureza. Tais do meio natural. Uma área de conhecimento muito
diferenças são resultado de construções históricas, próxima da geografia que trouxe novas discursões
acordos sociais e aspectos culturais. Quando aproxi- também para as demais ciências humanas.
mamos nosso olhar sobre um determinado período, A história ambiental recebeu forte influência de
conformação social ou cultural, podemos também autores franceses das décadas de 1920 e 1940, os
encontrar diferentes formas de conceber e entender quais publicavam seus artigos na revista Anaales.
a natureza e encontrar sua expressão visível, a pai- Para aquele grupo de estudiosos, a história não
sagem (CARVALHO; VISENTINI, 1991). deveria ser estudada como sequência de aconte-
Em O Homem e a Terra: a natureza da reali- cimentos, mas sim como processo em construção,
dade geográfica, Eric Dardel descreve a geografia utilizando diferentes fontes: arqueológicas, econômi-
como “a ciência da relação entre o indivíduo e a su- cas, sociais, culturais, entre outras. O salto conceitual
perfície terrestre”, Seria a "geograficidade", uma re- produzido pela escola dos Anaales promoveu uma
lação visceral que implica na existência e destino do crescente interdisciplinaridade com as demais ciên-
indivíduo (DARDEL,1952). Dardel afirma que "muito cias. Pesquisadores como Marc Bloch e Lucien Feb-
mais que uma justaposição de detalhes pitorescos, vre já apontavam para a importância das questões
a paisagem é um conjunto, uma convergência, um ambientais. Em 1949, Fernand Braudel, em O Medi-
momento vivido, uma ligação interna, uma impres- terrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de
são, que une todos os elementos" (DARDEL,1952). A Felipe II, chama a atenção para as paisagens geo-
paisagem é o reflexo das sociedades humanas no lógicas sobre as quais ocorrem os processos socioe-
espaço, comporta marcas gravadas pela vivência, conômicos e políticos (SOUZA, 2011).
existe porque existem homens. A paisagem é o resul- No Brasil, a história ambiental e a geografia con-
tado visível do mundo humano. fundem-se com a literatura. O professor Rui Ribeiro
A paisagem e seus significados encontram-se de Campos, no livro Breve Histórico do Pensamento
ocultos no cotidiano dos lugares, e é justamente nele Geográfico Brasileiro nos Séculos XIX e XX, apre-
que são reforçadas as relações sociedade/natureza senta obras literárias caracterizadas pela reação ho-
mediadas pelas técnicas e representações culturais: mem/natureza, antes da geografia como disciplina
58
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021
acadêmica ou de qualquer conceituação de história Castro (2003) conclui que os geógrafos, ao refletirem
ambiental. Campos ressalta que Euclides da Cunha sobre as diferentes concepções da geografia, intro-
(1866-1909), em seus estudos dos aspectos naturais duzem algumas questões essenciais para a história
nordestinos e textos sobre a Amazônia, buscou re- ambiental, como: a influência do meio sobre as socie-
lacionar os aspectos históricos, naturais e socioeco- dades, das cidades sobre o meio ou ainda a influência
nômicos da região. Sua obra era mais completa e recíproca entre o homem e o meio, o que fica clara-
avançada do que a geografia descritiva da época, mente refletido na paisagem. Segundo Morais (1991),
“ao mesmo tempo em que levantava hipóteses so- isso seria a paisagem como “registro de época e um
bre o solo amazônico e explicava o fenômeno das documento de cultura”. Para a história ambiental, essa
terras-caídas (assoreamento)” (CAMPOS, 2011). definição é fundamental, uma vez que introduz na pai-
Outro precursor do tema foi Sérgio Buarque de sagem o tempo e a cultura, o que também subsidia
Holanda (1902-1982). Em Raízes do Brasil (1963), o o estudo das relações sócio econômicas que surgem.
autor procura inserir culturas e processos sociais no Como escreveu Worster (1991), a pesquisa em his-
contexto ambiental de ocupação do território pelos tória ambiental, apesar de trabalhosa pela interdisci-
bandeirantes. Além de descrever técnicas e práticas plinaridade, é também extremamente gratificante. É o
cotidianas – caça e coleta, lavoura, viagen, vestimen- resgate dos sentidos dos homens sobre a natureza, o
tas, o intelectual trabalha a percepção dos paulistas entendimento de um conjunto complexo de forças físi-
sobre a vida e a natureza que os cerca (SOUZA, 2011). cas e concepções culturais. Longe de ser algo simples
Em 1973, autores da chamada 3ª geração dos de ser realizado, é um desafio a ser superado.
Annales, entre eles, Emmanuel Le Roy Ladurie, ressaltam
a importância do “clima” para a reflexão do historiador. 3. Resultados obtidos
Mas, é no meio acadêmico dos Estados Unidos que
ocorre a maior e mais significativa produção de história
ambiental, condição que perdura até hoje. Estudos A história da ocupação do alto da Serra da Estrela
como os de Clarence Glacken, Traces on the Rhodian e posteriormente do Vale do Rio Piabanha serve como
Shore: Nature and Culture in Western Thought from modelo para entendermos as diferentes experiências
Ancient Times to the End of the Eighteenth Century, humanas com a natureza. Partindo dos primeiros ha-
de 1967; Roderick Nash, Wilderness and the American bitantes, passando pelos primeiros colonizadores, de-
Mind, também de 1967; Donald Worster, Nature’s pois pelos viajantes/naturalistas, sem desconsiderar
Economy: a history of ecological ideas, de 1977, e, o planejamento da cidade, a ascensão e queda da
um pouco mais tarde, Warren Dean, Brazil and the indústria, tudo se explica na paisagem. Uma represen-
Struggle for Rubber: a study in environmental history, tação complexa na qual o homem não é uma unidade
de 1987 e A Ferro e Fogo: a história e a devastação isolada, e só pode ser compreendido pela forma como
da Mata Atlântica brasileir, de 1995, evidenciam o percebe e se relaciona com a natureza.
trabalho que é considerado por muitos como o mais Ao longo de 300 anos de História diferentes per-
importante estudo de história ambiental realizado no cepções influenciaram na transformação da paisa-
país formatando, sistematizando e levando, para além gem. No entanto, mesmo moldada espacialmente em
do meio acadêmico o campo da história ambiental favor do homem, a paisagem permaneceu fisicamen-
(SOUZA, 2011). te em oposição, o que gerou uma história de adaptação.
Para Freitas (2007), o que une história ambiental e 3.1 Da natureza compartilhada à natureza
geografia é a percepção comum do homem como o apropriada
principal elemento transformador do ambiente, mes-
mo que ainda se encontre restrito aos arranjos físicos O marco inicial da análise fesita neste trabalho é
do mesmo (FREITAS, 2016). a primeira metade do século XVIII, período no qual,
59
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021

conforme revelou a pesquisa, teriam existido as- Portugueses e neobrasileiros que chegam ao
sentamentos de populações tradicionais, no caso sertão dos índios Coroados reeditam o modus
um aldeamento indígena e dois grupos de quilom- operandi dos demais europeus que anos antes
bolas. Para designar as ocupações desse período conquistaram o litoral da colônia. São introduzi-
utilizamos a denominação criada por Fróes (2006), das novas ferramentas e animais. O uso do fogo é
Território Pré-Colonial Petropolitano (TPCP), que o intensificado (CABRAL, 2014). Os nativos fogem ou
autor emprega para descrever como era o Vale são escravizados. As novas tecnologias emprega-
do Piabanha antes da chegada dos primeiros co- das elevam o grau de impactação e a derrubada
lonos alemães. da floresta. No entanto, as características físicas
Sobreviventes das guerras de conquista trava- do terreno impedem a adoção da monocultura
das no litoral fluminense com grupos rivais e inva- agrícola, o que leva à busca por novas alternati-
sores europeus, grupos indígenas ramificaram-se vas econômicas.
pela região em diferentes famílias, chegando ao A ideia de construir um caminho alternativo ao
alto da serra a partir do Rio Paraíba do Sul (WIED - do ouro ganha corpo. É aproveitada uma antiga
NEUWIED, 1860). Eles percorreram todo o vale, des- picada ndígena, que é ampliada, criando assim
de o que é hoje o município de São João da Barra uma alternativa mais rápida e segura. Em pouco
até o encontro com os rios Piabanha e Paraibuna, tempo, o caminho passa a ser a principal função
– o primeiro descendo a vertente norte da Serra da da forma (SANTOS, 1978). Com a chegada de no-
Estrela, e o segundo a Serra da Mantiqueira. Três vos sesmeiros o processo é intensificado.
caminhos foram definidos: partindo do Rio Paraí- A forma da paisagem que nos restou foi aque-
ba do Sul duas etnias, Purys e Coroados, subiram la determinada pelo olhar do conquistador. A
por cerca de 20 km margeando o Rio Piabanha. Os descrição do lugar dos Coroados nos surge pelo
Purys seguiram pelo Rio Preto ocupando diferentes relato dos viajantes e naturalistas que percorre-
pontos em área que é hoje o município de São José ram a região no início do século XIX. A primeira
do Vale do Rio Preto. Um segundo grupo foi mais impressão da serra é de algo a ser vencido, um
adiante pelo vale, alcançando a montante um dos caminho a ser descoberto, é a forma de uma mu-
afluentes do Piabanha, onde, em um “sítio privile- ralha que protege o interior desconhecido e que,
giado”, instalaram sua aldeia. A paisagem então no imaginário europeu da época, estava repleto
construída teve como base a percepção indígena de tesouros a serem conquistados.
da natureza, a qual denominamos como “natureza Assim elaboramos o Quadro-síntese 1, na qual
compartilhada”, sendo a mesma pautada no temor, apresentamos (como nas demais) o cenário, pe-
equilíbrio e dependência. ríodo, atores envolvidos, o processo, a forma da
Graças à tecnologia rudimentar empregada, os paisagem e a percepção de natureza do momento.
impactos realizados não alteraram drasticamen- A natureza compartilhada, adaptada ao ritmo
te o meio natural. Mas, conforme observou Dean natural da cultura indígena, passa a ser de natu-
(1996), apesar de insignificantes essas intervenções reza apropriada. A natureza, antes um ser vivente,
criaram as condições necessárias para impactos é tornada em algo a ser convertido em capital. A
futuros. Dessa forma, a inserção pelos portugueses transformação da paisagem, antes imposta por
e seus descendentes da pecuária e de novas espé- agentes tectônicos/climáticos, agora é condicio-
cies vegetais no sertão serrano foram facilitadas nada pela técnica.
pela ocupação anterior. As trilhas indígenas de caça A paisagem retratada no Quadro-síntese 1 é a
utilizadas pelos colonizadores formaram estradas de tropeiros e viajantes prontos para vencer o ca-
e caminhos coloniais. A agricultura indígena abriu minho para o interior do país. Uma ação cotidiana
clareiras no terreno. na paisagem serrana desde a abertura, em 1721, do
60
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021
atalho de Bernardo Proensa. A forma da muralha 3.2 A natureza como patrimônio estratégico
escarpada que escondia um vale com encostas
declivosas também respondia pela função local
como rota de escoamento da riqueza. Era a subi- No caminho dos viajantes surgem lendas, uma
da da Serra da Estrela, uma estrada perdida no en- delas a da figueira de Tiradentes, localizada na
clave colonial português, mas que epresentava um fazenda do Padre Correia. A enorme árvore foi
importante papel na economia mundo do período. mencionada por viajantes e escritores, como John
A partir do Caminho Novo a paisagem do alto Mawe, em 1809, e o brigadeiro Cunha Matos em 1823
da Serra da Estrela é reordenada. As formas pas- (FRÓES, 2006). Segundo a lenda, o local era um pon-
sam a ser determinadas pela função. A paisagem to no qual Tiradentes descansava, quando percorria
resultante é a do caminho, das vias alternativas o Caminho do Ouro e que mais tarde recebeu uma
que fogem do fisco, das trilhas paralelas aos rios e de suas pernas esquartejadas, ficando a mesma ali
dos pontos de pouso e abastecimento nas fazen- pendurada, exposta como exemplo aos que tentas-
das que prosperam. A função é a da passagem, e sem se rebelar contra o domínio português – algo
a natureza é percebida pela ótica dos viajantes. não corroborado por fatos, pois Tiradentes foi preso
Em 1824, a cada dia, indo e vindo, passavam pelo quando chegou ao Rio e lá mesmo julgado e conde-
Caminho Novo em média 153 mulas dos tropeiros nado. A síntese do apresentado pode ser observada
e 77 pessoas (TAULOIS, 2007). no Quadro 2.

Quadro-síntese 1

Território Pré-Colonial
Cenário
Petropolitano

Período Século XVIII

Índios, Quilombolas,
Atores
Colonos

Sertão a ser conquistado.


Fixação de populações
Processo
tradicionais. Abertura do
Caminho do Ouro.

Relevo declivoso formando


vales de rios encaixados
Paisagem
tomados por densa floresta
Serra dos Órgãos 1835
tropical.
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
Disponível em http://enciclopedia.itaucultural.org.br/, acesso 30 de maio de 2016. Sociedade condicionada
Autor: Johann Moritz Rugendas (1802 – 1858).
Natureza pelo meio natural. Homem
em oposição à natureza.

Fonte: Elaborado pelo autor

61
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021

Quadro-síntese 2

Modernização da infraestrutura
Cenário
colonial

Período Final do século XVIII início do XIX

Estado, proprietários rurais,


Atores
colonos, viajantes.
Modernização das estradas e
caminhos. O caminho do ouro
Processo
como elemento principal da
paisagem,
Fazendas ocupando áreas de
Paisagem várzea. Encostas florestadas.
Intensificação das queimadas.
Fazenda do Padre Correia 1819
Fonte: Museu Imperial - IBRAM - MINC.
Disponível em http://www.museuimperial.gov.br/eventos/exposicoes/, acesso Natureza apropriada em função
11/12/2017. Natureza
Autor: Friedrich Hagedorn dos interesses do Estado.

Fonte: Elaborado pelo autor

A pintura do Quadro-síntese 2 nos conta uma his- contratadas obras de ampliação e instalação de
tória. O olhar do artista é a partir do caminho. São infraestrutura. As obras diminuem as distâncias e
tropeiros e demais viajantes emoldurados por uma aproximam a corte, no Rio de Janeiro, das fazen-
enorme figueira, a árvore que marcava um impor- das que ocupam o Vale do Rio Piabanha. Surgem
tante ponto de parada. Um lugar de memória, um novas funções.
pouso no caminho, um local próspero que testemu-
nhou a passagem de toneladas de ouro, era a fa-
3.3 A natureza planejada
zenda do Padre Correia. Uma propriedade nascida
como parte da infraestrutura do caminho, uma for-
ma determinada pela função, a de ligação do interior Percebendo a Serra da Estrela como lugar de
com a capital, uma rota de escoamento da riqueza. descanso e reabilitação para a saúde de sua filha, o
Ao final do século XVIII, o desenrolar de um novo Imperador D. Pedro I manifesta a vontade de adqui-
processo histórico e cultural, patrocinado e levado rir uma das fazendas da região e de nela construir
a cabo pela coroa portuguesa, vai gradativamente um palácio de verão, seria o “Palácio da Concórdia”,
modificando a percepção da natureza manifestada que também funcionaria como um lugar de união
pelo homem colonial. A natureza passa a ser per- das antagônicas correntes politicas manifestadas
cebida como recurso natural estratégico para o de- pela elite dominante da época. Algo só alcançado
senvolvimento do Estado. Aos poucos, a concepção após sua morte, quando o seu desejo é apropriado,
de que só deveriam ser valorizados os elementos e o sonho tornado um projeto que une a preserva-
naturais úteis aos homens dá lugar a análises mais ção da natureza – concepção própria do romantis-
profundas com claros objetivos de conhecer o meio mo – com a racionalização iluminista do espaço, o
e os sistemas que o mantêm. È a natureza percebida que denominamos “natureza planejada”.
como patrimônio estratégico. A cidade de Petrópolis é concebida como natu-
Nos primeiros anos do século XIX, a fim de in- reza planejada: uma idealização tornada projeto de
tensificar a exploração econômica da colônia, são Estado e conduzida por Júlio Frederico Köeler, um
62
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021
engenheiro militar de origem germânica, que, se- O resultado é uma paisagem na qual os valores
guindo os passos do pensamento humboldtiano, es- da elite sazonal se contrapõem aos dos moradores.
tabelece um caminho intermediário entre o racionalis- Para a elite em vilegiatura a natureza é algo bom
mo iluminista e o espiritualismo metafísico, aplicando a e eterno, um objeto a ser contemplado. Para os da
seu projeto uma síntese holística. Köeler implanta uma terra, é um entrave que precisa ser afastado. A flo-
organização espacial que adapta o traçado urbano à resta dificulta lavouras, o relevo diminui terrenos e
topografia. Os rios são esteticamente preparados e rios capeados e canalizados provocam inundações.
isolados das moradias por ruas largas e margens ar- Somando-se a isso tem-se o excesso de lixo (restos
borizadas, a beleza é privilegiada, a mata das encostas dos verões da elite), as restrições impostas pelo pla-
é preservada, ecologismo e pragmatismo formatam a nejamento e o fato de todos serem “inquilinos do Im-
paisagem (WINTER, 2019). perador”, meros arrendatários no território da elite.
Köeler foi um representante do romantismo ale-
mão. Seu projeto, apesar de racionalista ao canalizar e
3.4 A natureza transformada
reordenar rios e córregos, consegue manter um olhar
sagrado sobre a floresta tropical. A cidade é projetada
e instalada na presença da mata nativa. As encostas e Com o tempo a cidade, refúgio elitista estetica-
topos de morro são poupados. A Petrópolis de Köeler é mente planejado, é inserida na economia industrial.
um quadro romântico do Segundo Reinado. O aquecimento econômico atrai a população oriun-
A paisagem reflete o Brasil da primeira metade da da Baixada Fluminense e do Médio Paraíba do
do século XIX. Uma elite, personificada pelas mansões Sul. A atividade industrial, associada à pressão ur-
da nobreza em vilegiatura, que vive em função do Es- bana, produz novos impactos. Os rios capeados e
tado Imperial representado pelo palácio de verão do canalizados que cortam a Vila Imperial e sua perife-
Imperador. Ambos distantes do Brasil real, habitantes ria imediata não comportam o fluxo hídrico gerado
sazonais de uma cidade planejada nos moldes de uma pela crescente ocupação e pela impermeabilização
ideologia europeia, com clima e povo quase europeus. dos solos. O assoreamento dos rios passa a fazer
O objetivo: um espaço esteticamente planejado para parte da vida urbana local, e as cheias tornam-se
atendimento à nobreza imperial. Uma paisagem bu- constantes (AMBROZIO, 2013).
cólica que lembrava aos membros da elite as expe- As transformações, sociais, econômicas e cultu-
riências descritas ou vividas pela nobreza nas serras rais, resultantes dos processos de industrialização,
de Portugal. Um paraíso distante das intrigas e pro- ficam materializadas no que convencionou-se de-
blemas da corte, formas que estabelecem uma nova nominar de paisagem industrial. É a materialização
função, a vilegiatura. Um burgo nobre, um lugar de no espaço de formas de pensamento, manifesta-
veraneio para os “bem-nascidos” cuja periferia é ha- ções culturais e da interação homem/natureza me-
bitada por colonos germânicos. Um pedaço da Euro- diada pela tecnologia (Quadro-síntese 3).
pa nos trópicos. Semelhante ao que ocorreu em outros centros,
A idealização e o planejamento da cidade são par- as primeiras plantas industriais de Petrópolis foram
tes integrantes do processo de inserção na paisagem instaladas nas proximidades de fontes de energia,
dos novos códigos e valores que surgiam. Vivia-se um matéria-prima, de mercados de produção e consu-
contexto em que a racionalidade estava fortemente mo, com consequente atração de mão de obra. Foi
expressa nos atos e políticas implementadas pelo go- produzida uma nova estética do progresso, na qual
verno imperial, e o planejamento de Petrópolis é cópia a natureza e seus fenômenos são dispostos a ser-
fiel desse momento. A natureza já não é apenas um viço da sociedade. É afirmada a concepção de uma
patrimônio estratégico do Estado, agora ela pode ser nova natureza, reorganizada, “melhorada”, pelos in-
planejada em função deste. teresses do capital.
63
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021

Quadro-síntese 3

Cenário Industrialização

Segunda metade do século XIX a


Período
meados do século XX

Estado, novas levas de imigrantes,


Atores
empresários industriais.

Inserção da cidade na economia


Processo
industrial.

Plantas industriais ao longo


dos rios. Ferrovia, barragens,
Paisagem
impermeabilização. Intensificação
da ocupação em áreas frágeis.
Companhia Petropolitana, 1890
Fonte: Museu Imperial - IBRAM - MINC.
Autor desconhecido
Natureza Natureza como recurso natural.

Fonte: Elaborado pelo autor

São rugosidades (SANTOS, 1978), formadas por trecho de ligação entre Inhomirim e Petrópolis. As
funções industriais atuantes em um sítio urbano plantas industriais, estagnadas pela falta de espaço,
restrito, e, em muitos casos, de relevo proibitivo, o são substituídas por pequenas confecções e estabe-
que revela uma paisagem única. São plantas indus- lecimentos prestadores de serviços.
triais matematicamente pensadas para maximizar a Um exemplo marcante da função industrial for-
produção. Vilas operárias e, adjacentes a elas, apa- matando a paisagem é o da Companhia Petropoli-
relhos destinados ao lazer e atividades sociais dos tana de Tecidos de Cascatinha. A planta industrial
trabalhadores, tais como: campos de futebol, locais original da empresa foi denominada Conjunto Fabril
de diversão, locais de culto, escolas e hospitais, todos da Cascatinha, nome que vem de sua localização, no
na periferia imediata da fábrica, com clara intenção Distrito da Cascatinha.
de controle da vida social dos operários e das suas Fundada em 1873, a indústria foi iniciada como
famílias. Vias de comunicação e demais aparelhos uma atividade de pequeno porte. Em 1884, é reorga-
de infraestrutura (estradas, ferrovias, barragens, nizada e, dois anos depois, já possuía 1.071 operários, a
torres, linhas de transmissão), necessários para ob- maioria colonos italianos. Em 1887, a construção prin-
tenção de energia, transporte de matéria-prima e cipal da fábrica foi concluída (CABRAL; ALVES, 2018).
escoamento da produção. Estruturas em constante No auge das atividades, o conjunto fabril, com-
processo de transformação. posto por edificação principal, vila operária, refeitó-
rio, creche, ambulatório, administração, central elé-
trica, praça, coreto e igreja, ocupava 15.000 m² de
3.5 A natureza impactada
área construída. Na década de 1960, a empresa pas-
sou por sucessivas crises, o que resultou no declínio
A partir da segunda metade do século XX, a fun- da atividade. Em 1967, entra em concordata e, em
ção industrial é substituída pela função comercial, e seguida, vai à falência. Posteriormente, o complexo
a forma resultante é a do aglomerado urbano. Nos industrial sofre com ocupações irregulares e desor-
anos 1960, a empresa ferroviária deixa de operar o denadas, resultando em descaracterização e depre-
64
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021
dação de parte das edificações. Em 1981, o Conjun- guração da paisagem operária, não são mais sig-
to Fabril do Bairro da Cascatinha foi tombado pelo nificantes para as construções sociais do local. A
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional indústria transformou e foi transformada, e a pai-
(IPHAN) (CABRAL; ALVES, 2018). sagem, redimensionada.
Atualmente, o conjunto está subdividido em O Distrito de Cascatinha, que cresceu em função
galpões que abrigam atividades diversas de pe- da Companhia Petropolitana, tornou-se paisagem
queno porte (marcenarias, movelarias, confecções, de passagem (WINTER,2019), fenômeno que tam-
serralherias etc). O entorno é uma área caracteri- bém ocorreu com as áreas em torno das demais
zada por residências, estabelecimentos comerciais, plantas industriais do município que perderam seu
pequenos empreendimentos e serviços públicos. caráter inicial. Todo o simbolismo da fábrica como
A alta densidade populacional é constatada, em elemento impulsionador do desenvolvimento foi gra-
grande parte, nas encostas e margens dos rios Ita- dativamente alterado. Periféricas à região central,
marati e Piabanha. essas áreas começaram a sofrer pressão da espe-
A ocupação original do Distrito de Cascatinha se culação imobiliária (Quadro-síntese 4).
deu pela construção da vila operária e por algumas Analisando-se a paisagem industrial petropolita-
edificações junto à igreja. Anos mais tarde, a falência na, constata-se uma dinâmica de adequação mútua
e o abandono do complexo industrial transformaram demonstrada pela constante dialética do homem
o distrito, fazendo surgir uma paisagem de empobre- com a natureza. Embora tenha se erguido como
cimento e deterioração. O prédio principal da fábrica, ramificação serrana do centro capitalista nacional,
que abrigava uma única atividade, passou a ser divi- concentrado em São Paulo, a indústria têxtil inseriu
dido em pequenas e médias indústrias. É formado um na paisagem petropolitana valores históricos, paisa-
condomínio industrial, e a informalidade toma conta gísticos e arquitetônicos, que extrapolaram o local e
do complexo. Não houve um planejamento adequa- serviram, em parte, para a compreensão do movi-
do ou instalação de infraestrutura. A paisagem resul- mento de industrialização brasileira ocorrido na vira-
tante é de conjuntos de edificações construídas em da do século XIX para o século XX. Dessa forma, ao
diferentes períodos, com tipologias variadas e espa- refletir os valores históricos culturais, essa paisagem
ços atrelados ao processo produtivo que ali se deu. A passa a ser um importante elemento de identifica-
falência da indústria gera estagnação da economia ção. Nessa perspectiva, a paisagem indústrial de Pe-
local. No entanto, a transformação do antigo com- trópolis pode ser considerada um elemento coletivo,
plexo, aliada à valorização do solo urbano na área fruto da atuação social (SANTOS, 1996).
central do município, faz com que parte da popula-
ção busque no Distrito de Cascatinha uma alternativa
de moradia barata. 4. Conclusão
Em poucos anos, as encostas e as margens res-
tantes dos rios são ocupadas. Novas vias são abertas
e a paisagem adensada. Ocorre um aumento signifi- O olhar percebe a cidade como aglomerado ur-
cativo no desmatamento dos morros e ao longo das bano, cercado por frondosa mata nativa. A floresta
principais ruas de acesso ao distrito. O relevo é alte- serve de moldura para prédios e demais aparelhos
rado, e a mata nativa, substituída. urbanos. Mas é na relação da sociedade com a na-
Famílias descendentes de trabalhadores do an- tureza que se encontram as raízes dos problemas
tigo complexo industrial ampliam e modificam as ambientais. A aparentemente preservada paisagem
residências da antiga vila operária, transformando verde que caracteriza a cidade de Petrópolis masca-
radicalmente as características do lugar. A igreja e ra uma crescente pressão sobre a Mata Atlântica. O
os aparelhos de lazer, que influenciaram na confi- crescimento populacional subindo as encostas, bem
65
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021

Quadro-síntese 4

Cenário Desindustrialização

Período Segunda metade do século XX

Estado, empresários do mercado


Atores
imobiliáro, trabalhadores

Processo Crise da economia industrial local.

Ocupação de encostas e demais


Paisagem áreas frágeis. Pressão sobre a
mata nativa.
Distrito de Cascatinha, 2018
Autor: Valério Winter
Natureza percebida como
Natureza
vulnerável.

Fonte: Elaborado pelo autor

como a impermeabilização e o assoreamento de concentração de renda e o empobrecimento de


corpos hídricos, são os efeitos visíveis da estrutura parte da população.
econômica e das funções a ela associadas. O sítio urbano possui limitações físicas para
A leitura da paisagem possibilita ao pesquisador novas moradias e para a ampliação da rede de
um entendimento do espaço a partir de sua comple- produção industrial, serviços e infraestrutura, o
xidade. A paisagem é um emaranhado que mistura que dificulta a criação de novos postos de traba-
expressões humanas, trabalho, as heranças, etnias, lho. Em resposta, o mercado distribuiu os grupos
representações e tudo que está contido no espaço e, sociais conforme sua capacidade de financiamen-
ao mesmo tempo, influencia transformações e é por to. Petrópolis se configura pela multiplicidade de
elas influenciado. espaços e é marcada por áreas esteticamente
O processo de colonização por meio do qual por- agradáveis, cercadas por uma periferia carente
tugueses, neobrasileiros, imigrantes e afro-brasileiros de infraestrutura básica. A assimetria social aliada
estabeleceram-se na região deixou marcas que se à quase ausência de meios de ascensão econômi-
refletem nos hábitos, na religião e na memória dos ca favoreceu a desigualdade socioambiental.
moradores. A paisagem revela referências identitárias Um espaço social ambivalente produz uma
e territoriais, formando um mosaico de conflitos e in- natureza ambivalente, na qual rios, montes e
tegração socioespacial. áreas verdes podem ser agregados como ele-
Petrópolis entra no século XXI totalmente inserida mentos de valorização ou de desvalorização. O
no cenário nacional/regional. Hoje tem plenas condi- solo urbano é só mais uma mercadoria, uma or-
ções técnicas para atender às demandas do mundo ganização espacial socialmente desigual onde a
globalizado. Transformações estruturais conectaram tendência é a localização privilegiada em função
a cidade com redes de informação e capital, o que dos equipamentos de infraestrutura, beleza natu-
melhorou seu sistema produtivo. Todavia, a onda ral, aparelhos culturais e de serviços. O ambien-
modernizadora, não conseguiu evitar a crescente te sustentado e equilibrado para alguns, convive
66
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021
com áreas impactadas pela pobreza e por tragé- paisagem que socializa as desigualdades e privatiza
dias ambientais. os lucros, tornando a desigualdade social uma desi-
As particularidades de ocupação desse es- gualdade socioambiental. Em Petrópolis, a concentra-
paço ao longo dos vales dos rios e encostas foram ção de renda é maximizada por políticas públicas insu-
historicamente negligenciadas pelo poder público, ficientes. E esse processo transparesse na paisagem.
com exceção de algumas políticas populistas que
permearam diferentes governos. A distribuição e a
organização da cidade seguem a lógica de que o Referências bibliográficas
valor de troca do solo urbano, tido como mercado-
ria, é maior do que seu valor de uso. Classes sociais
economicamente favorecidas vivenciam uma cidade AMBROZIO, J. C. G. Petrópolis: o presente e o pas-
equipada, arborizada, ecologicamente planejada e sado no espaço urbano: uma história territorial.
esteticamente agradável, enquanto as demais ocu- Petrópolis, RJ: Escrita Fina, 2013.
pam áreas frágeis, desvalorizadas e ambientalmen-
te vulneráveis. Nesses lugares, a infraestrutura urba- CABRAL, L. M. S.; ALVES, R. A. A. Um olhar da gestão
na não acompanha o crescimento da população. sobre a industrialização têxtil de Petrópolis: es-
A contradição da modernidade/desigualdade é tudo de caso da Cia Petropolitana de Tecidos.
revelada na paisagem. A cidade das festas cerve- In: ENCONTRO NACIONAL DE CURSOS DE GRA-
jeiras, do centro historicamente preservado, da pre- DUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 28., 2017, Brasí-
sença da polícia dando segurança aos habitantes, lia. Anais [...]. Brasília: FGV, 2017. Disponível em:
da coleta regular de lixo, dos serviços, dos espaços www.enangrad.org.br. Acesso em: 27 jun. 2018.
de cultura, das praças e da educação também é a
dos alagamentos, das quedas de barreiras, das ruas CABRAL, D. C. Na presença da floresta: Mata
com calçamento deficitário, do lixo depositado nas Atlântica e história colonial. 1. ed. Rio de Janeiro:
encostas, da retirada indiscriminada da mata, da Gramond, 2014.
ausência de empregos e da impossibilidade de cria-
ção de novos postos de trabalho. Petrópolis não é CAMPANHA Petropolitana. 1890. 1 gravura. Museu
diferente das demais cidades latino-americanas, são Imperial.
problemas estruturais recorrentes, mas existe uma
particularidade. Em Petrópolis a problemática social CAMPOS, R. R. Breve histórico do pensamento
está associada a aspectos físicos restritivos. geográfico brasileiro nos séculos XIX e XX.
A paisagem urbana é um produto social, resulta- Jundiaí: Paco Editorial, 2011.
do da história construída. Ela é composta por dife-
rentes atores que a condicionam e por ela são condi- CARVALHO, M. B.; VESENTINI, J. W. Geografia do
cionados, que a constroem e reconstroem. São eles: discurso sobre a natureza. São Paulo: USP, 1991.
poder público, proprietários e incorporadores imo-
biliários, empreendedores urbanos, empresários in- CORRÊA, R. L. O espaço urbano. São Paulo: Con-
dustriais, detentores de capital e meios de produção, texto, 1995.
trabalhadores e grupos sociais excluídos. A forma de
agir desses agentes/atores varia de acordo com as COSGROVE, D. A geografia está em toda parte: cul-
formas de acumulação do capital, dos conflitos de tura e simbolismo nas paisagens humanas. In:
classe e das relações de produção (CORREA,1995). CORRÊA, R. L.; ROZENDAHL, Z. (org.). Paisagem,
A cidade é a representação concreta desses pro- tempo e cultura. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998. p.
cessos. O urbano tido como mercadoria reflete uma 92-123.
67
DARDEL, E. O homem e a Terra: natureza da reali- (org.) Paisagem, espaço e sustentabilidade:
revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021

dade geográfica. Tradução Werther Holzer. São uma perspectiva multidimensional da geografia.
Paulo: Perspectiva, 2011. Rio de Janeiro: PUC, 2007.

DEAN, W. A ferro e fogo: a história da devastação RABAÇO, H. J. História de Petrópolis. Petrópolis: Ins-
da Mata Atlântica brasileira. Tradução Cid Knipel tituto Histórico de Petrópolis, 1985.
Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
RUGENDAS, Johann Moritz. Serra dos Órgãos. In:
FREITAS, I. A. História natural, história da natureza e ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura
história ambiental: três histórias sobre uma gran- Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Dis-
de ideia. Espaço e Cultura, Rio de Janeiro, n. 35, ponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.
p. 153-175, jun. 2014. Disponível em: http://www.e- br/obra15454/serra-dos-orgaos. Acesso em: 07
-publicaçoes.uerj.br/index.php. Acesso em: mar. jun. 2021. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-
2016. 7979-060-7.

FRÓES, C. O. Petrópolis: a saga de um caminho: gê- SANTOS, M. Por uma geografia nova. São Paulo: Hu-
nese e evolução do território petropolitano. Pe- citec, 1978.
trópolis: IHP, 2006. Disponível em: http://ihp.org.
br/26072015/site/ixcof.htm. Acesso em: 14 jul. SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo,
2017. razão e emoção. São Paulo: USP, 1996.

GUERRA, A. J. T.; GONÇALVES, L. F. H.; LOPES, P. B. SOUZA, L. A.; DEAN, W. A ferro e fogo: a história e
M. Evolução histórico-geográfica da ocupação a devastação da Mata Atlântica brasileira. 1. ed.
desordenada e movimentos de massa no muni- São Paulo: Cia. Das Letras, 2004. 484 p. [1ª impres-
cípio de Petrópolis, nas últimas décadas. Revista são 1996]. AEDOS, Porto Alegre, v. 3, n. 8, jan./jun.
Brasileira de Geomorfologia, Brasília, ano 8, n. 1, 2011. Disponível em: www.seer.ufrrs/aedos. Aces-
p. 35-43, 2007. so em: 23 jul. 2016.

HAGEDORN, Friedrich. Vista da Fazenda do Padre TAULOIS, A. E. História de Petrópolis. Petrópolis:


Corrêa. [18--]. Óleo sobre tela. Disponível em: 2007. Disponível em: http://www.petropolis.rj.gov.
http://dami.museuimperial.museus.gov.br/hand- br/fct/index.php/turismo/conheca-petropolis/
le/acervo/7085. Disponível em: 2 jun. 2021. historia-depetropolis.html. Acesso em: 13 mar.
2017.
MORAES, A. C. R. Ideologias geográficas: espaço,
cultura e política no Brasil. São Paulo: Hucitec, WIED-NEUWIED, M. Viagem ao Brasil 1860. São Pau-
1991. lo: Companhia Editora Nacional, 1940.

HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. 4. ed. Brasília: Ed. da WINTER, V. Petrópolis, as marcas da sociedade na
Universidade,1963. natureza: história ambiental e leitura das pai-
sagens. 2019. Tese (Doutorado em Geografia)
LORDEIRO, M. S. Petrópolis: rios e montanhas. Petró- – Programa de Pós-Graduação em Geografia,
polis: Sumaúma, 2006. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2019.
OLIVEIRA, R. R. Sustentados pela floresta: popula-
ções tradicionais e a Mata Atlântica. In: RUA, J.
68
WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Tradu-

revista ineana v. 09 n.01 p.54 - 69 jan > jun 2021


ção de José Augusto Drummond. Estudos Histó-
ricos, Rio de Janeiro, v. 4. n. 8, 1991. Disponível em:
Sobre o autor
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh.
Acesso em: 05 jul. 2016. Valério Winter
Doutor em Geografia no Programa
de Pós-graduação em Geografia
da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (PPGEO-UERJ). Pesquisador
do Laboratório de História Ambiental
(PPGEO-UERJ). Graduado em Geografia
pela Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF), com especialização em Geografia
e Gestão do Território (UFJF). Foi
professor das redes municipal, estadual
e particular de ensino do município de
Petrópolis entre 2001 e 2013. Integra
a Superintedência Regional Piabanha
(SUPPIB) do INEA.

69
Foto: Kenny Tanizaki

70
Projeto do Educação Ambiental aproxima
alunos dos saberes tradicionais
Transformando a Percepção
sobre a Etnia Guarani-Mbyá:

2019
jun 2021
- xx>>xxx
relato de uma experiência na

p. xxjan
- 82
v. 11
escola

revista
revista ineana n.01 p.70
v. 09 ineana
Transforming the Guarani-Mbyá's Ethnic
Perception in Schools: reporting an
experience

Gabriela Rodrigues; Kenny Tanizaki-Fonseca; Viviane Fernandez

Resumo Abstract
Este trabalho pretende descrever a transformação da This work intends to describe the shift of the
percepção ambiental dos alunos que participaram da environmental perception of the students who
iniciativa Sabores e Saberes Guarani, desenvolvida participated in the project Sabores e Saberes Guarani,
como projeto de extensão na Universidade Federal which was developed as an Extension project at
Fluminense. O projeto de Educação Ambiental tem Universidade Federal Fluminense. The Environmental
como público-alvo alunos do 5º ano do Ensino Fun- Education project is aimed at 5th year students and
damental e o propósito de desenvolver o conceito de the purpose is to develop the concept of agroforestry,
agrofloresta, utilizando os saberes da etnia Guarani using the knowledge of the Guarani Mbyá ethnic
Mbyá para resgatar a relação homem-natureza, com group to rescue the relationship between man and
destaque para o papel que as comunidades tradicio- nature, with emphasis on the role that traditional
nais indígenas desempenham como gestoras do meio indigenous communities play as management of
ambiente. A metodologia utilizada avaliou a mudança the environment. The methodology used evaluated
da percepção ambiental ao comparar desenhos reali- the change in environmental perception based
zados pelos alunos do 5 º ano do Ensino Fundamental on the comparison of drawings made before and
antes e depois do projeto. Os resultados demonstra- after the project by the students. In fact, the results
ram a transformação do conhecimento dos alunos da demonstrated the transformation of students'
escola a respeito da temática a partir das ações do knowledge about the theme from the actions of the
projeto de educação ambiental. environmental education project.

Palavras-chave Keywords
Agrofloresta. Educação Ambiental. Guarani-Mbyá. Agroforestry. Environmental education. Guarani-
Percepção Ambiental. Mbyá. Environmental Perception.

71
revista ineana v. 09 n.01 p.70 - 82 jan > jun 2021

1. Introdução
certa forma, a figura do indígena já está inseri-
da nas diretrizes e bases da educação nacional
O estilo de vida do modelo capitalista se (BRASIL, 2008). Vale ressaltar que experiências
reflete na qualidade de vida da população ur- como a do projeto estudado são um caminho
bana. Chuva ácida, aquecimento global, polui- interessante e representam uma contribuição
ção do ar, ilhas de calor, desmatamento, entre para a elaboração de políticas públicas e de
outros desdobramentos, evidenciam que a crise outras iniciativas com o mesmo caráter.
ambiental passou a ser uma crise do modelo Este artigo tem como objetivo avaliar, atra-
civilizatório. Isso demonstra a necessidade de vés da análise de desenhos feitos por alunos
refletirmos sobre nossos hábitos e de fomentar do 5 º do Ensino Fundamental da escola Cen-
uma geração comprometida com a sustentabi- tro Educacional de Niterói, que participaram do
lidade. Dessa maneira, investir em educação, projeto de Ex tensão da Universidade Federal
conscientização pública e saúde são os pilares Fluminense (UFF), a percepção ambiental deles
para transformar as atitudes da sociedade de se transformou durante o projeto de ex tensão
forma geral. Sabores e Saberes Guarani. Assim, os objetivos
A nossa relação com a alimentação começa específicos deste trabalho são: (i) indicar prá-
quando somos crianças e, muitas vezes, maus ticas que permitam que os alunos explorem a
hábitos alimentares geram problemas crônicos relação homem-natureza construída no proje-
de saúde. Em seu estudo, Harry Hong (2016) to educativo, paralelamente à imagem da etnia
aponta que introduções recentes como trans- Guarani Mbyá; (ii) exaltar o papel que as comu-
gênicos, pesticidas, antibióticos, hormônios e nidades tradicionais indígenas desempenham
aditivos na agricultura industrial e na indústria como gestoras do meio ambiente; (iii) legitimar
alimentícia podem ter uma influência negativa a influência da cultura dos nossos povos origi-
em nossa saúde, motivo pelo qual recomenda a nários; (iv) fomentar o debate sobre o papel dos
redução de alimentos industrializados em nossa representantes da etnia Guarani Mbyá como
dieta e o consumo de produtos orgânicos, que gestores ambientais, que muitas vezes não cor-
podem ajudar a prevenir doenças modernas e, responde à imagem da figura indígena dissemi-
também, fornecer nutrientes mais valiosos. nada nas escolas convencionais; e (v) abordar
Dessa maneira, projetos que possibilitem o conceito de segurança alimentar por meio da
observar a transformação da percepção am- promoção de espaços experimentais de vivên-
biental a respeito do manejo agroflorestal e da cia em temas transversais à agroecologia.
alimentação Guarani Mbyá podem contribuir
para a quebra de paradigmas e estereótipos no
modelo brasileiro de educação convencional. 2. Desenvolvimento
O projeto Sabores e Saberes Guarani é um
trabalho pontual que, por meio de ações edu-
cativas, como aulas com representantes dessa Esta seção trata de conceitos importantes
cultura indígena, aborda plantio agroflorestal e para o contexto deste trabalho, como os de edu-
promove encontros que permeiam temas como cação ambiental crítica, decolonialidade e agro-
biodiversidade, segurança alimentar e intercul- floresta, apontada como um modelo agrícola
turalidade. Nesse sentido, exaltar a cultura dos sustentável, e, também, das roças Guarani Mbyá,
povos nativos brasileiros é um modo interessan- que possuem uma estrutura de produção susten-
te de atingir crianças não indígenas, já que, de tável por se basearem na ecologia da floresta.

72
revista ineana v. 09 n.01 p.70 - 82 jan > jun 2021
2.1. Agrofloresta 2.2. Roças Guarani Mbyá

Para que uma melhora no quadro socioam- De acordo com o Centro de Trabalho Indi-
biental torne-se possível, são imprescindíveis genista (CTI, 2007), a população dos Guarani
inovações nas práticas alimentares atuais. Mou- em território nacional era de aproximadamen-
ra (2013), Peneireiro (1999) e Gosth (1995, 1996) te 34.000 indivíduos, divididos entre os Kayová,
apresentam os Sistemas Agroflorestais (SAFs) Ñandéva e Mbyá. Os Mbyá estão localizados nas
sintrópicos como uma alternativa agrícola e re- áreas do litoral e no interior, desde o Rio Grande
volucionária ao modelo atual de produção de do Sul até o Espírito Santo.
alimentos, uma vez que é o que recria, da forma Segundo Gobbi (2008), o manejo agroflorestal
mais parecida possível, um ambiente de flores- dos Mbyá inclui práticas típicas de povos indíge-
ta. Nos SAFs, é adotado um consórcio de cul- nas amazônicos que promovem a biodiversidade
turas, de diferentes estratificações temporais, nos complexos sistemas de domesticação da pai-
de modo que que os alimentos sejam cultivados sagem. Técnicas agrícolas e manejo de sucessão
sem que haja competição de luz e nutrientes ecológica nas matas são empregados de forma
para promover o aumento da produtividade. associada. Em seu estudo, Noelli (1993) concluiu
Devido à não utilização de insumos químicos que, comparada às demais, a roça dos Guaranis
e/ou agrotóxicos, evita-se a contaminação do é superior a quase todas as demais da América
solo e de rios, lagos e córregos próximos. Ou- do Sul em número de gêneros alimentícios, tendo
tra característica dos SAFs é o manejo flores- sido identificados 39 deles e 180 cultivares. O alto
tal (rotação de culturas, seleção das espécies e grau de biodiversidade na composição das ma-
abertura de clareiras, por exemplo), que possi- tas se formou devido ao deslocamento Guarani
bilita manter a fertilidade do solo. Esse modelo ao longo do vasto território que ocupam.
objetiva cultivar três estratificações verticais A relação homem-natureza dos Guaranis
diferentes (baixa, média e alta) em um mesmo compreende uma pluralidade de aspectos, como
espaço, onde, como já mencionado, não haverá sua ecologia, cosmologia e sociologia. Esta pers-
competição por luz nem por nutrientes. Logo, a pectiva de cosmovisão cultural, geralmente não
floresta produzirá mais em uma área menor. baseada nos padrões de leis e regras estabeleci-
De acordo com Jose (2009), os SAFs promo- dos pela sociedade convencional, é caracteriza-
vem o aumento da produtividade, e contribuem da pelo respeito ao tempo dos processos natu-
para o sequestro de carbono, a conservação rais e pela obediência aos limites que a natureza
da biodiversidade, a recuperação de solos e a coloca.
regulação da qualidade da água e do ar, esta- Ladeira (2004), ao analisar a classificação
belecendo uma alternativa para o uso da terra referente às categorias de florestas Mbyás sig-
capaz de conciliar benefícios ambientais e so- nificativas, percebeu a diversidade de ambientes
cioeconômicos, e colaborando para a redução florestais classificados pelos Guaranis (Tabela 1).
da pobreza. Vivemos em um sistema de alto Apesar de o povo Guarani não se reconhecer
consumo que explora ao máximo todos os re- como “plantador de florestas”, se referindo ao
cursos que consideramos renováveis e disponí- próprio Nhanderú (o mato) como o responsável
veis. As consequências disso estão amplamente pela ação de plantio, os povos indígenas flores-
difundidas e permeiam muitas esferas da socie- tais podem ser considerados inventores dos “sis-
dade (GOSTH, 1995, 1996). temas agroflorestais” (MENEGAT, 1999).

73
revista ineana v. 09 n.01 p.70 - 82 jan > jun 2021

Quadro 1 - Diversidade de ambientes florestais classificados pelos Guaranis

Matas autênticas, primárias, férteis, que guardam plantas medicinais, frutos, cipós, árvores de porte, e
Kaàguy ete que devem abrigar todas as espécies vegetais do acervo Guarani.

Kaàguy porã Matas sadias, boas, com recursos naturais abundantes, onde vivem os animais originais em sua diversidade.

Matas intocadas e intocáveis, que nunca foram pisadas e mexidas, e que nem podem ser usadas pelos
Kaàguy poru ey homens por estarem em morros muito altos. Em Kaàguy poru ey, onde a vegetação é mais fechada e
não há trilhas, ficam e se protegem os seres da natureza.

Matas baixas (as capoeiras) onde os Mbyás escolhem áreas para as roças, encontram ou cultivam ervas
Kaàguy yvin ou material para artesanato.

Áreas que já não têm serventia (degradadas), onde os animais não chegam e os guaranis não encon-
Kaàguy rive tram árvores (yvyra) nem plantas apropriadas.

Kaàguy yvate Mata alta, que ainda tem espécies importantes da fauna e da flora. É um tipo de Kaàguy porã.

Mata média, em regeneração, que ainda guarda algumas espécies de fauna e flora necessárias à repro-
Kaàguy Karapei dução física e cultural do grupo.

Mata baixa, de pequeno porte, mas não obrigatoriamente associada à capoeira, para a qual o grupo
Kaàguy yvy designa um termo específico. É a mata secundária, mas que disponibiliza quase nada de recursos.

Kaàguy’i São as capoeiras. Estão associadas às roças (hapó).

Mata esparsa, baixa, na qual ainda habitam animais e plantas importantes. É como os guaranis denomi-
Kaáguy poça nam as matas de restinga.

Calipioty Mata de eucalipto.

Fonte: Mouzer (2011)

2.3 Educação Ambiental crítica e decolonialidades


dade de uma educação específica. Para o autor, a
modernidade é composta e se estabelece por meio:
Segundo Layrargues (2012), desde a Conferên- (1) do mito salvacionista, que consiste em acredi-
cia das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o tar que o progresso e a tecnologia resolverão todos
Desenvolvimento, também conhecida como Rio-92, os problemas da humanidade e que se deve impor
o termo “Educação Ambiental” vem sendo utilizado a civilização aos “selvagens”; (2) da colonialidade,
em diferentes contextos e empregado de diversas compreendida como a imposição de uma herança
maneiras, gerando ambiguidade e inconsistências. cultural instituída na opressão da colonização; e (3)
O autor defende que a Educação Ambiental, a partir da decolonialidade, que emerge como resistência
da sua perspectiva político-pedagógica crítica, vem contra o pensamento dominador. Dessa maneira,
solucionar esse conflito ideológico, aproximando a nada mais justo que a Educação Ambiental incor-
teoria da prática (LAYRARGUES, 2012). porar essa educação diferenciada, valorizando os
O pensamento decolonial latino-americano sur- saberes ancestrais desses povos a partir dessa
ge da resistência das populações tradicionais aos perspectiva da decolonialidade.
ataques a suas territorialidades e direitos humanos, Segundo Colares (2015), o conceito de decolo-
principalmente dos povos indígenas, grupos sociais nialidade pode ser definido como:
inseridos em uma trajetória histórica de massacre e
silenciamento impostos pela modernidade-colonia- (...) um questionamento radical e uma

lidade (KASSIADOU, 2018). Nesse sentido, devido ao busca de superação das mais distintas

fato de as comunidades tradicionais estarem inse- formas de opressão perpetradas pela mo-

ridas em um contexto de injustiça e vulnerabilidade dernidade/colonialidade contra as classes

perante os impactos ambientais, de acordo com a e os grupos sociais subalternos, sobretudo

proposta de Mignolo (2008), isso gera a necessi- das regiões colonizadas e neocolonizadas
74
a estrutura necessária para suas realizações pes-

revista ineana v. 09 n.01 p.70 - 82 jan > jun 2021


pelas metrópoles euro-norte-americanas,
nos planos do existir humano, das rela- soais (CENTRO EDUCACIONAL DE NITERÓI, 2019).
ções sociais e econômicas, do pensamen- O presente estudo está vinculado ao projeto
to e da educação. (COLARES, 2015) de extensão da Universidade Federal Fluminen-
se Sabores e Saberes Guarani, cujo objetivo é
Nessa perspectiva, o autor reflete sobre essa promover a percepção ambiental de alunos do
dor existencial de todos os grupos sociais vulnerá- Ensino Fundamental utilizando o indígena como
veis que sofrem historicamente com a colonização, exemplo e abordando os saberes do povo Gua-
propondo intervenções sociais “anticoloniais, não rani Mbyá relacionados à agrofloresta a partir
eurocêntricas, antirracistas, antipatriarcais e anti- do resgate da relação homem-natureza. Nesse
capitalistas” das mais diferentes formas. projeto, quatro ações com a turma do 5º ano do
Ensino Fundamental do CEN foram realizadas,
respectivamente, em julho, setembro, outubro e
2.5 Metodologia
dezembro de 2018, meses do segundo semestre
A escola Centro Educacional de Niterói (CEN), do ano letivo mais adequados à execução delas.
conhecida como Centrinho, localizada no municí- De forma a sintetizar o que foi apresentado, a Ta-
pio de Niterói (RJ), foi selecionada para a rea- bela 2 mostra o cronograma e a descrição das
lização do presente estudo. Esta instituição de ações realizadas no projeto.
educação funciona desde 1960, com turmas da A turma que participou das ações era com-
Educação Infantil e dos Ensino Fundamental e posta por 33 crianças, na faixa de 10-12 anos, com
Médio (formal e não formal). Baseado na pers- maior participação de meninos (17 alunos - 51,5%)
pectiva humanista, o CEN possui um projeto pe- do que de meninas (16 alunas - 48,5%). Ao todo,
dagógico inovador e dinâmico. Isso permite que foram produzidos 66 desenhos, considerando a
o aluno tenha um melhor diálogo com o mundo e primeira e quarta ações.

Quadro 2 - Cronograma e descrição das ações realizadas no projeto Sabores e Saberes Guarani
em 2018

Ações Descrição das ações

Elaboração de um desenho pelos alunos para retratar a relação dos Guaranis Mbyá com a
Primeira alimentação. Nesta atividade não houve qualquer intervenção ou atividade sobre o tema antes
de o desenho ser realizado, justamente para não influenciá-los de nenhuma maneira.

Aula com Wanderlei Weraxunu (representante do povo Guarani Mbyá) abordando a tradição de
cultivo de alimentos ao longo de milhares de anos, com o auxílio de apresentação de fotos do
Segunda acervo de espécies de frutas e legumes da Mata Atlântica, assim como degustação de algumas.
Dinâmica com jogos interativos trabalhando o conceito de biodiversidade e de agroflorestal, de
forma que incentive a cooperação dos alunos.

Terceira Plantio de determinadas culturas típicas do povo Guarani em um experimento agroflorestal.

Culminância do projeto, com um lanche de alimentos da cultura indígena e dinâmica com Wanderlei
Weraxunu (representante do povo Guarani Mbyá) com “contação” de histórias indígenas, pintura
Quarta corporal (tintas naturais) e simbologia cultural. Além disso, foi novamente proposto aos alunos a
elaboração de um desenho para retratar a relação dos Guaranis Mbyá com a alimentação (realiza-
ção do desenho de acordo com o conhecimento adquirido durante o projeto educacional).

Fonte: Elaborada pelos autores


75
A análise dos desenhos foi baseada na me- Considerando a perspectiva socioambiental,
revista ineana v. 09 n.01 p.70 - 82 jan > jun 2021

todologia utilizada no trabalho de Pedrini et al. os traços e símbolos presentes nos 66 desenhos
(2015) sobre percepção do ambiente marinho (33 antes e 33 depois das ações) foram classifica-
por crianças no Rio de Janeiro. Nesse estudo, dos e organizados em dois macrocompartimen-
ao todo foram produzidos 82 desenhos. Cada tos: concreto (formas definidas e identificáveis)
um foi analisado, classificado e organizado e abstrato (formas não identificáveis e ilegíveis).
em macrocompartimentos: concreto x abstra- Em seguida, cada macrocompartimento foi sub-
to, natural x artificial x fantasia. Em seguida, dividido em macroelementos. Os macroelemen-
o autor categorizou cada compartimento, que tos poderiam ser artificiais, ou seja, aqueles cons-
foi subdividido em macroelementos, os quais truídos pelos Guaranis Mbyá, (lança, oca, canoa,
foram agrupados em: elementos artificiais, fogueira), naturais (sol, nuvem, árvore, floresta,
aqueles construídos pelo homem (lixo, caste- água) e bióticos (o Guarani, a Guarani, pássaro,
lo, submarino), elementos naturais (sol, nuvem, macaco, peixe, onça). Os dados coletados nos
flora, água, solo) e macroelementos marinhos trabalhos de campo foram armazenados em uma
(peixe, alga, tubarão). Entre os 54 macroele- planilha eletrônica, considerando-se cada criança
mentos identificados pelos autores, 34% eram como uma unidade amostral. Estes dados foram
bióticos, e 85%, naturais. utilizados para gerar as representações gráficas.
Segundo Pedrini et al. (2015), a análise das
2.6 Resultados e discussão
informações e dados compreende uma ava-
liação qualiquantitativa. No sentido qualitati- 2.6.1 Diagnóstico Anterior ao Projeto (DAP)
vo, identifica-se cada símbolo expressado no
desenho que possa representar um item do Entre os 50 macroelementos identificados no
assunto abordado. Na avaliação quantitativa, diagnóstico anterior ao projeto (DAP), 17 (34%)
analisa-se a riqueza (quantas vezes o símbolo eram naturais; 18 (36%), bióticos; e 15 (30%), ar-
se repete). tificiais. Nos 33 desenhos analisados, a maioria

Desenhos de percepção ambiental relacionados à


alimentação do Guarani antes do projeto:

Somente práticas
6% indígenas de agricultura
15%
9%
Somente práticas
indígenas caça/ pesca

Práticas indígenas de
agricultura, caça e pesca

Nenhuma prática
70% associada à imagem do
Gurani

Figura 1 - Desenhos de percepção ambiental relacionados à alimentação do Guarani antes do projeto

Fonte: Elaborada pelos autores

76
revista ineana v. 09 n.01 p.70 - 82 jan > jun 2021
Quadro 3 - Macroelementos identificados e classificados a partir dos desenhos dos alunos do
Centro Educacional Niterói durante as ações do projeto Sabores e Saberes Guarani

Grupos de macroele-
Macrocompar-
mentos (número de Macroelementos
timentos
ocorrências)

Abstrato - -

Canoa, oca, mercado, casa, fogueira, roupa, fumaça, arco, flecha,


Artificiais (22) remo, machado, vara de pesca, rede de pesca, lança, cocá, pintura
corporal, carro, carrinho de compras, pá, bancada, cesta, banco.

Plantio de determinadas culturas típicas do povo Guarani em um experi-


Sol, nuvem, grama, árvore, água, fruta, raio, pedra, areia, milho, floresta,
Concreto Naturais (28) morro, tronco, onda, lenha, palmeira, alecrim, milho crioulo (vermelho),
mangueira, goiabeira, cenoura, planta, flor, hortaliça, raiz, macieira,
jaqueira, laranjeira.

O Guarani, a Guarani, peixes, gaivota, pássaro, coruja, leão, porco,


Bióticos (19) javali, elefante, onça, cobra, lagarto, aranha, borboleta, caranguejo,
macaco, rinoceronte, papagaio.

Fonte: Elaborada pelos autores

das crianças (23 alunos) escolheu representar o 2.6.2 Diagnóstico Posterior ao Projeto (DPP)

Guarani como caçador, retratando nos dese-


nhos as práticas indígenas de caça e pesca. A Entre os 66 macroelementos identificados no
minoria (cinco alunos) escolheu representar so- diagnóstico posterior ao projeto, 27 (40,9%) eram
mente práticas indígenas de agricultura, e três naturais; 18 (27,3%), bióticos; e 21 (31,8%), artificiais.
alunos retrataram, em um mesmo desenho, o Nos 33 desenhos analisados, a maioria das crianças
Guarani relacionado a práticas indígenas de (29 alunos) escolheu representar o Guarani em ati-
agricultura, caça e pesca. Além disso, alguns vidades relacionadas à agricultura indígena. Ape-
poucos alunos (dois) não retrataram o Guarani nas alguns (quatro alunos) escolheram representá-
atuando em atividades relacionadas à alimen- -lo não atuando em nenhuma forma relacionada
tação (Figura 1). com a sua alimentação - ou seja, sem nenhuma
A análise de todos os desenhos (n=66), inde- referência à caça ou à agricultura, como mostra a
pendentemente do momento da realização (se Figura 2.
no início ou final do projeto), resultou na iden- Dentro da amostra de 29 alunos que escolheram
tificação de 69 macroelementos: 22 (31,9%) de- representar o Guarani com práticas relacionadas à
les artificiais; 28, naturais (40,6%); e 19, bióticos agricultura indígena, apenas três retrataram tais
(27,5%) (Tabela 3). Vale ressaltar que não foi práticas aliadas à caça. Vale ressaltar que, nesta
identificado nenhum macroelemento abstrato, ação, nenhum aluno escolheu representar o Guara-
devido à faixa etária dos alunos (10-12 anos). ni somente como caçador, como mostra a Figura 3

77
revista ineana v. 09 n.01 p.70 - 82 jan > jun 2021

Desenhos de percepção ambiental relacionados à


alimentação do Guarani Mbyá após ações
desenvolvidas

12%
Práticas de agricultura
indígena

Nenhuma prática

88%

Figura 2 - Desenhos de percepção ambiental relacionados à alimentação do Guarani-Mbyá após ações desenvolvidas

Fonte: Elaborada pelos autores

Desenhos de percepção ambiental relacionados à


alimentação do Guarani Mbyá após as ações
desenvolvidas analisando somente a amostra de
práticas de agricultura indígena

9%
Somente práticas de
agricultura indígena

Práticas de Agricultura
Indígena associadas a
91% práticas de caça

Figura 3 - Desenhos de percepção ambiental relacionados à alimentação do Guarani Mbyá após as ações desenvolvidas, analisando
somente a amostra de práticas de agricultura indígena

Fonte: Elaborada pelos autores

Na quarta ação, os alunos tiveram contato com o do cultivado em 13 (39,4 %) dos desenhos. Além dis-
milho crioulo, que é dos principais alimentos da cultura so, os desenhos retratam outros aspectos da cultura
Guarani Mbyá e possui muitas simbologias e significa- Guarani Mbyá trabalhados no projeto, como pintu-
dos para o povo Guarani. Por essa razão, foi proposta ras que abordam simbologias e seus significados, a
uma experiência sensorial aos alunos (Figura 4). forma de plantio e as roças indígenas, o lugar em
Essa atividade influenciou os resultados obtidos. que eles vivem e o conceito de biodiversidade.
Entre os 29 alunos que retrataram os Guaranis-Mbyá Entre os resultados sobre a percepção ambien-
realizando práticas agrícolas, o milho apareceu sen- tal, foi identificado o conceito de agrofloresta, que
78
revista ineana v. 09 n.01 p.70 - 82 jan > jun 2021
Figura 4 - Aluno do Centrinho debulhando e mostrando o milho crioulo (milho de pipoca vermelho)

Fonte: Kenny Tanizaki

engloba biodiversidade e estratificações florestais da visão estigmatizada do indígena. Abaixo seguem


distintas. Esse conceito abordado no projeto foi clas- algumas figuras que demonstram desenhos de uma
sificado dentro do conjunto dos macroelementos na- mesma criança feitos nas etapas de DAP e DPP, nos
turais, a partir de árvores de diferentes tamanhos e quais podem ser observados os aspectos descritos
características que foram retratadas no desenho. O acima (Figuras 5 e 6).
aspecto cultural abordado no projeto foi representa- Esse estudo pretendeu ressaltar para os demais
do por desenhos que retratam a prática de realizar homens o conhecimento tradicional da comunidade
pinturas corporais com a simbologia referente à cul- indígena Guarani Mbyá como um potencial significa-
tura Guarani Mbyá e por outros artefatos, como ces- tivo de contribuição em termos de preservação de
tas e utensílios para caça. ecossistemas florestais, sustentabilidade, soberania
Outra questão identificada nos desenhos foi a di- alimentar e demonstração de pertencimento à natu-
ferença de protagonismo do Guarani entre as etapas reza. Convém lembrar que, apesar de esse ser o modo
de DAP e DPP. Na primeira amostra, de 33 alunos, em de vida dos Guaranis, que servem de exemplo para as
26 desenhos os Guaranis foram retratados de forma crianças do Centrinho (de ensino convencional) pelas
mais genérica, como apenas um elemento na paisa- suas práticas e cultura milenar de subsistência, isso
gem. Apenas em sete desenhos, o Guarani foi identi- não significa que os Guaranis são amplamente con-
ficado com destaque. No entanto, no DPP, o Guarani templados em termos de segurança alimentar. Dessa
foi retratado em tamanho maior em 16 de 33 dese- forma, se torna essencial a implementação de políti-
nhos. Além disso, suas roupas foram desenhadas de cas públicas de preservação e manutenção das prá-
um modo mais próximo a um conceito de modernida- ticas de agricultura e manejo florestal dos indígenas
de, indicando que o projeto contribuiu para retirada que permitam exaltar e difundir suas contribuições.
79
revista ineana v. 09 n.01 p.70 - 82 jan > jun 2021

Figura 5 - Exemplos de desenhos infantis obtidos antes (esquerda) e depois (direita) do projeto

Fonte: Acervo/Autores

Figura 6 - Exemplos de desenhos infantis obtidos antes (esquerda) e depois (direita) do projeto

Fonte: Acervo/Autores

3.Conclusão cipalmente em relação à etnia Guarani Mbyá, que tem


como característica marcante as roças indígenas — re-
flita o desconhecimento da sociedade brasileira, con-
Em suma, o resultado da transformação da percep- forme problematiza Silva (2012) ao abordar o ensino de
ção ambiental a respeito da temática abordada apre- História Indígena nas escolas.
senta dados satisfatórios em relação ao conhecimento Universidade e escola atuaram de forma integrada
sobre a comunidade tradicional Guarani. A análise do para a obtenção dos resultados aqui apresentados. A
mapa mental pós-projeto confirmou que a maioria dos primeira desempenhou uma importante função como
alunos mudou a forma como percebia os indígenas, promotora do projeto, proporcionando aos membros da
pois passou a caracterizar os modos de ser do Guarani comunidade acadêmica infantil esse tipo de experiência.
e o ambiente onde esse povo vive a partir das diversas Já a segunda exerceu um papel fundamental como
influências das atividades desenvolvidas no projeto de fomentadora de espaços educacionais e de vivências
Educação Ambiental Sabores e Saberes Guarani. É experimentais com temas interdisciplinares, que possibi-
possível que essa distorção do conhecimento inicial das litaram influenciar de forma significativa e positiva o pú-
crianças sobre a cultura dos povos originários — prin- blico-alvo, utilizando horários de aulas e contando com
80
o apoio de professores e professoras que auxiliaram no nal, para incluir no currículo oficial da rede de

revista ineana v. 09 n.01 p.70 - 82 jan > jun 2021


desenvolvimento das atividades com os alunos. ensino a obrigatoriedade da temática “História
Assim, foi demonstrado ser relevante que os alunos e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Congres-
urbanos aprendam sobre a importância da etnia Gua- so. Diário Oficial da União, Congresso, Brasí-
rani Mbyá e outros conceitos de meio ambiente que lia, 20 mar. 2008.
permeiam esse tema, como, no caso do estudo, os de
agrofloresta, manejo florestal, sementes crioulas, et- CENTRO EDUCACIONAL DE NITERÓI. A escola. Ni-
nobiodiversidade e soberania alimentar, associados à terói, RJ: [s.n.], 2019.
ampliação da percepção da realidade ambiental. Este
estudo pode ser considerado um ensaio científico com COLARES, J. Educação popular e pensamento
potencial para, futuramente, ser utilizado e mais bem decolonial latino americano em Paulo Frei-
explorado em outros trabalhos de mesma natureza, e re e Orlando Fals Borda. Doutorado (tese em
contribuir para a elaboração de políticas públicas ou de Educação) – Universidade Federal do Pará, Be-
outras análises em projetos com caráter similar. lém, 2015.
Mouzer (2011), em seu estudo, aponta o novo olhar
da concepção cosmoecológica que aflora em termos GOBBI, F. S. Entre parentes, lugares e outros:
de processos educacionais. Tal perspectiva corrobora traços na sociocosmologia Guarani no sul. [S.l.:
a possibilidade de ensinar meio ambiente de uma for- s.n.], 2008. Manuscrito.
ma mais espontânea e natural, referindo-se ao conhe-
cimento tradicional dos povos originários. Segundo o GÖTSCH, E. Break-through in agriculture. Rio de
autor, sistemas de ensino-aprendizagem podem, assim, Janeiro: AS- PTA, 1995. 22 p.
resgatar adaptações ecológicas e estabelecer relações
com a cosmovisão guarani: com a prática e o modo de GÖTSCH, E. O Renascer da agricultura. Rio de Ja-
ser dessa cultura, que também é ambiente e ecossiste- neiro: AS-PTA, 1996. 8 p.
ma. Essa nova configuração de realidade propõe a inte-
gração entre natureza e cultura, sem a dicotomização HONG, H. Modern health effects of pesticides, an-
dos assuntos que constituem o todo. tibiotics, hormones, genetic engineering, and
Nesse sentido, os alunos que obtiveram a experiên- food additives. Natural Medicine Journal, San-
cia do projeto Sabores e Saberes Guarani estão pre- ta Fe, NM, USA, v. 8, n. 4, apr. 2016. Disponível
dispostos a pensar em meio ambiente de uma forma em: https://www.naturalmedicinejournal.com/
mais integrada e sensível. Isso demonstra a relevância journal/2016-04/modern-industrial-foods-an-
que um projeto de Educação Ambiental pode exercer d-their-effects-human-body. Acesso em: 18
na transformação da percepção ambiental sobre tal as- abr. 2021.USA, v. 8, n. 4, apr. 2016. Disponível
sunto, pois os alunos vão se preocupar em como vão em: https://www. naturalmedicinejournal.com/
agir em relação ao meio ambiente, ou refletir sobre o journal/2016-04/modern-industrial-foods-an-
contexto em que este está inserido, o que pode possibi- d-their-effects-human-body. Acesso em: 18
litar um maior senso crítico e conscientização sobre as abr. 2021.
questões ambientais.
JOSE, S. Agroforestry for ecosystem services and
environmental benefits: an overview. Agrofo-

Referências bibliográficas restry Systems, v. 76, n. 1, p. 1-10, 2009.

KASSIADOU, A. Educação ambiental crítica e de-


BRASIL, Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. que es- colonial: reflexões a partir do pensamento de-
tabelece as diretrizes e bases da educação nacio- colonial latino-americano. In: KASSIADOU, A.;
81
SÁNCHEZ,C.; CAMARGO, D. R.; STORTTI, M. A.; SILVA, E. O ensino de História Indígena: possibilidades,
revista ineana v. 09 n.01 p.70 - 82 jan > jun 2021

COSTA, R. N. (org.). Educação ambiental des- exigências e desafios com base na Lei 11.645/2008.
de El Sur. Macaé, RJ: Nupem Ed., 2018. p. 32-48. Revista História Hoje, v. 1, n. 2, p. 213-223, 2012.

LADEIRA, M. I.; MATTA, P. (org.) Terras Guarani no Li-


toral: as matas que foram reveladas aos nossos
avós = Ka’aguy oreramói kuéry ojou rive vaekue
y. São Paulo: CTI, 2004. Sobre as autoras
Gabriela Rodrigues
LAYRARGUES, P. Para onde vai a educação ambiental?:
Graduada em Ciência Ambiental pela
o cenário político-ideológico da educação ambiental
Universidade Federal Fluminense (UFF).
brasileira e os desafios de uma agenda política crí- Mestranda em Biodiversidade em Unidades
tica contra- hegemônica. Revista Contemporânea de Conservação pelo Instituto de Pesquisa
da Educação, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, 2012. do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Idealizadora do projeto de extensão
Sabores e Saberes Guarani e bolsista
MENEGAT, R. (coord). Atlas ambiental de Porto Alegre. (2018-2019).
2. ed. Porto Alegre: Ed. Da Universidade, 1999.
Kenny Tanizaki-Fonseca
Graduado em Biologia pela Universidade
MIGNOLO, W. Desobediência epistêmica: a opção des-
Federal do Rio de Janeiro (URFJ). Mestre
colonial e o significado de identidade em política. Ca- e doutor em Geoquímica Ambiental pela
dernos de Letras da UFF: dossiê Literatura, língua e Universidade Federal Fluminense (UFF).
Atualmente é professor adjunto do Instituto
identidade, Niterói, RJ, n. 34, p. 287-324, 2008.
Geociências/Departamento de Análise
Geoambiental (GAG/UFF).
MOUZER, M. Cartilha agroflorestal Mbyá Guarani sa-
beres Yva’a. Universidade Federal do Rio Grande
Viviane Fernandez
Graduada em Oceanografia pela
do Sul. Rio Grande do Sul, 2011.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Mestre em Botânica pelo Instituto
NOELLI, F. S. Sem tekohá não há teko (em busca de de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio
um modelo etnoarqueológico da aldeia e da sub- de Janeiro. Doutora em Meio ambiente
pela UERJ. Atualmente é professora adjunta
sistência Guarani e sua aplicação em uma área
do Instituto Geociências/Departamento de
de domínio no delta do rio Jacuí-RS. Dissertação Análise Geoambiental (GAG/UFF) e professora
(Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciên- colaboradora do Programa de Pós-graduação
cias Humanas, Pontifícia Universidade Católica do em Meio Ambiente (PPGMA/UERJ).

Rio Grande do Sul, Porto Alegra, 1993.


PEDRINI, A; RUA, M.; BERNARDES, L.; MARIANO, D.;
FONSECA, L.;NUNES, R.;BROTTO, D. Percepção do
ambiente marinho por crianças no Rio de Janeiro,
Brasil. Revista Biociências, Taubaté, SP, v. 21, p. 27-
44, 2015.

PENEIREIRO, F.M. Sistemas agroflorestais dirigidos


pela sucessão natural: um estudo de caso. Piraci-
caba, SP, 1999. 138 p. Dissertação (Mestrado) – Esco-
la Superior e Agricultura “Luiz de Queiroz”, Universi-
dade de São Paulo,1999.
82
Para consultar o regulamento e as
edições anteriores da Ineana, acesse:
http://www.inea.rj.gov.br > Publicações
> Publicações Inea > Ineana

Você também pode gostar